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L I V R O DO PROFESSOR

MINISTRIO DA EDUCAO FUNDESCOLA /PROJETO NORDESTE/SECRETARIA DE ENSINO FUNDAMENTAL BRASLIA, 2000

Presidente Fernando Henrique Cardoso Ministro da Educao Paulo Renato Souza Secretria do Ensino Fundamental Iara Glria Areias Prado Fundo de Fortalecimento da Escola - Direo Geral Antnio Emlio Sendim Marques Coordenao Escola Ativa Fernando Pizza

Elaborao: Ana Rosa Abreu, Claudia Rosenberg Aratangy, Eliane Mingues, Marlia Costa Dias, Marta Durante e Telma Weisz. Texto final: Denise Oliveira Projeto grfico e edio de arte: Alex Furini e Jos Rodolfo de Seixas Reviso: Elzira ArantesAlfabetizao - Livro do professor

2000 Projeto Nordeste/Fundescola/Secretaria de Ensino FundamentalQualquer parte desta obra poder ser reproduzida desde que atada a fonte.

Alfabetizao : livro do professor / Ana Rosa Abreu ... [et ai.]. Braslia : FUNDESCOLA/SEF-MEC, 2000. 176p. 1. Alfabetizao. 2. Ensino fundamental. 3. Escola pblica I. Abreu, Ana Rosa II. Aratangy, Claudia Rosenberg III. Mingues, Eliane IV. Dias, Marilia Costa V. Durante, Marta VI. Weisz, Telma VII. FUNDESCOLA VIII. MEC-SEF CDD 379.24

Este matenal foi inspirado nos mdulos do projeto Escola de Corpo e Alma" produzido pela equipe pedaggica da Prefeitura de Salvador em 1996. Esta obra foi editada para atender a objetivos dos Programas Projetos de educao Bsica para oNordesleeFUNDBCOtA,em Conformidade com os Acordos de Emprestimos nmeros 3663 BR e 4311 BR como Banco Mundial, no mbito do Projeto BRA95/013 di PNDU- programa das Noes Unidas para o Desenvolvimento

ndiceApresentao 5 O que precisa saber quem alfabetiza 7 Alfabetizao e letramento 7 Como se aprende a ler e escrever 10 O que est escrito e o que se pode ler 24 Aprender a ler: um pouco de histria 32 As ideias, concepes e teorias que sustentam a prtica de qualquer professor, mesmo quando ele no tem conscincia delas. 35 O que propor na sala de aula... 59 O que so: poemas, canes, cantigas de roda, adivinhas, travalnguas, parlendas e quadrinhas 59 fundamental lembrar 63 Situaes de aprendizagem 63 Exemplos de atividades 69 O que so: contos de fadas, mitos, lendas e fbulas 75 fundamental lembrar 80 Situaes de aprendizagem 80 Exemplos de atividades 85 O que so: textos informativos, textos instrucionais e biografias 92 fundamental lembrar 96 Situaes de aprendizagem 97 Exemplos de atividades 101

O que so: listas, cartas e bilhetes 105 fundamental lembrar 108 Situaes de aprendizagem 109 Exemplos de atividades 1 1 2 Como planejar as atividades de alfabetizao 119 Bibliografia comentada 151

APRESENTAO

Caro professor, Este livro foi feito com o intuito de ajud-lo a planejar boas atividades de alfabetizao. composto de duas partes: a primeira, "O que precisa saber quem alfabetiza", mais terica, deve ajud-lo a compreender melhor o processo pelo qual passam seus alunos quando esto aprendendo a ler e escrever. A segunda, uO que propor em sala de aula", mais prtica, contm informaes, explicaes, exemplos sobre diferentes tipos de textos e suas possibilidades de uso em sala de aula alm de um texto especfico sobre planejamento e uma bibliografia comentada. Tanto a primeira quanto a segunda no se esgotam aqui, ou seja, interessante que voc procure se aprofundar nos temas tratados, estudando a bibliografia indicada. E importante que voc amplie, reestruture e invente situaes de aprendizagem em alfabetizao. Seus alunos esto recebendo 3 volumes que contm os vrios tipos de textos que esto sendo abordados aqui. No esquea que cada regio, cada cidade, cada lugar tem suas cantigas, canes, lendas etc. Portanto esta coletnea pode ser ampliada por voc e por eles. Esperamos que este material possa contribuir com seu trabalho. Mos obra! EQUIPE DA SEF

O QUE PRECISA SABER QUEM ALFABETIZA

Alfabetizao e letramento da tradio pedaggica brasileira considerar a alfabetizao como uma etapa escolar anterior ao ensino da lngua portuguesa. Estudos e pesquisas dos ltimos vinte anos1 tm mostrado que as prticas que centram a alfabetizao apenas na memorizao das correspondncias entre sons e letras empobrecem a aprendizagem da lngua, reduzindo-a a um conjunto de sons a serem representados por letras. Em funo disso, essa viso mais tradicional da alfabetizao vem sendo questionada. Isso no significa que no seja necessrio aprender as letras e os sons correspondentes. Significa que isto apenas uma parte do contedo da alfabetizao. A alfabetizao uma aprendizagem mais ampla e complexa do que o "b-a-b". Esta concepo ampliada do contedo da alfabetizao acabou por levar a uma orientao pedaggica na qual, alm de aprender sobre as letras, os alunos aprendem sobre os diversos usos e as formas da lngua que existem num mundo onde a escrita um meio essencial de comunicao. Para ensinar os usos e as formas da lngua para se escrever em portugus, necessrio, sempre que possvel, faz-lo em situaes comunicativas. Significa ter como unidade de ensino a unidade funcional da lngua: o texto.Ver bibliografia anexa.

Significa tambm trazer para dentro da escola a diversidade textual que existe fora dela, abrindo assim, para nossos alunos, as portas do mundo letrado. E o que vem a ser isso de "letramento"? Segundo os Parmetros Curriculares Nacionais:

Letramento, aqui, entendido enquanto produto da participao em prticas sociais que usam a escrita como sistema simblico e tecnologia. So prticas discursivas que precisam da escrita para torn-las significativas, ainda que s vezes no envolvam as atividades especficas de ler ou escrever. Dessa concepo decorre o entendimento de que. nas sociedades urbanas modernas, no existe grau zero de letramento pois nelas impossvel no participar, de alguma forma, de algumas dessas prticas. Isto significa que as pessoas que vivem e trabalham nas cidades, mesmo quando so analfabetas, tm sempre algum conhecimento sobre as prticas sociais letradas. Por exemplo: um analfabeto que vive na cidade sabe que para descobrir para onde vai um nibus preciso ler o nome ou o nmero dele, e apesar de no saber ler acaba descobrindo formas de resolver seus problemas de transporte: seja pedindo a algum que leia, seja memorizando o nmero. Mas para poder participar realmente do mundo letrado, preciso muito mais que isso. preciso, por exemplo, poder ler jornais e livros. Tornar-se capaz de aprender coisas atravs da leitura. Costumvamos pensar que bastava ser capaz de decodificar para poder ler qualquer coisa. Hoje sabemos que no bem assim. Para ler jornais ou outros textos de uso social preciso conhecer no s as letras. mas tambm o tipo de linguagem em que so escritos. Para poder compreender o que se est lendo - e no apenas fazer barulho com a boca como um papagaio - necessrio

construir uma familiaridade com a linguagem que se usa para escrever cada gnero. Mas o que isso de "gnero"? Segundo os Parmetros Curriculares Nacionais: Todo texto se organiza dentro de um determinado gnero. Os vrios gneros existentes, por sua vez, constituem formas relativamente estveis de enunciados (...). Podemos ainda afirmar que a noo de gneros refere-se a "famlias" de textos que compartilham algumas caractersticas comuns (...). Os gneros so determinados historicamente. As intenes comunicativas (...) geram usos sociais que determinam os gneros. os quais do forma aos textos. por isso que, quando um texto comea com "era uma vez", ningum duvida de que est diante de um conto, porque todos conhecem esse gnero. Diante da expresso "senhoras e senhores", a expectativa ouvir um pronunciamento pblico ou uma apresentao de espetculo, pois sabe-se que nesses gneros o texto, inequivocamente, tem essa frmula inicial. Do mesmo modo, podemos reconhecer outros gneros como: cartas, reportagens, anncios, poemas etc.

Portanto, alm do conhecimento sobre as letras, o professor precisa ensinar a seus alunos, ao mesmo tempo, a linguagem que se usa para escrever os diferentes gneros. E a forma de ensinar isso trazendo para dentro da sala de aula a diversidade textual que existe fora. lendo para eles - em situaes onde essa leitura faa sentido - os mais variados textos. Principalmente para os alunos de escolas rurais que, com frequncia, no tm quase nenhum contato com textos e leitores. So exatamente essas crianas que mais dependem da escola para ter acesso ao conhecimento letrado e com relao a elas que maior a responsabilidade do professor. Em funo dessa nova compreenso do que seja a tarefa de alfabetizar, este material de apoio inclui um conjunto

de textos de diferentes gneros para serem usados com os alunos e vrias sugestes de atividades a serem realizadas com esses textos. Tanto os textos como as atividades so apenas amostras e sua funo dar ao alfabetizador uma ideia das possibilidades de trabalho.

Como se aprende a ler e escrever2A criana e seu processo de alfabetizao As pesquisas sobre o processo de alfabetizao vm mostrando que, para poder se apropriar do nosso sistema de representao da escrita, a criana precisa construir respostas para duas questes: 1. O que a escrita representa? 2. Qual a estrutura do modo de representao da escrita? A escola considera evidente que a escrita "um sistema de signos que expressam sons individuais da fala" (Gelb, 1976) e supe que tambm para a criana isso seja dado a priori Mas no . No incio do processo toda criana supe que a escrita uma outra forma de desenhar as coisas. Vamos dar alguns exemplos que o professor pode reconhecer, na sua prtica diria, mas no tinha at ento como interpretar. Pediu-se a uma criana, que aprendeu a reproduzir a forma escrita do nome de sua me (Dalva), que escrevesse a palavra "mame", cuja forma ela no conhecia. Ela escreveu, com convico, "Dalva". E, questionada em relao inadequao da sua escrita, ficou perplexa com a incapacidade adulta de compreender uma coisa to evidente, isto , que Dalva e mame so a mesma pessoa e, portanto, a mesma escrita.

Este texto um fragmento do artigo "Como se aprende a ler e escrever ou, prontido, um problema mal colocado", de Telma Weisz, publicado em Ciclo Bsico, CENP/ Secretaria de Estado da Educao de So Paulo, 1988.

O que a criana no compreende que a escrita representa a fala, o som das palavras, e no o objeto a que o nome se refere. De uma pesquisa realizada em Recife reproduzimos as seguintes informaes da entrevista ocorrida no incio do ano letivo com uma criana cursando pela primeira vez a 1a srie: Diante do par de palavras BOI/ARANHA: Experimentador: Nestes cartes esto escritas duas palavras: boi e aranha. Onde voc acha que est escrito boi e onde est escrito aranha? Criana: Aqui est escrito boi (apontando para a palavra ARANHA) e aqui est escrito aranha (apontando para a palavra BOI). Experimentador: Por que voc acha que aqui (BOI) est escrito aranha e aqui (ARANHA) est escrito boi? Criana: Porque essa daqui t pequena e esse daqui t grande. Tia me ensinou que boi comea com A. V-se, portanto, aqui. o divrcio entre o conhecimento da letra e as hipteses dessa criana a respeito da escrita. Para ela, a escrita devia conformar-se sua concepo ainda realstica da palavra, ou seja, coisas grandes tm nomes grandes e coisas pequenas tm nomes pequenos.3 Mas o fato que, em vez de confirmar, a realidade, dentro e fora da escola, desmente seguidamente a teoria que a criana construiu sobre o que a escrita representa. Desmente e problematiza, obrigando a criana a construir uma nova teoria, novas hipteses. Ao comear a se dar conta das caractersticas formais da escrita, a criana constri ento duas hipteses que vo acompanh-la por algum tempo durante o processo de alfabetizao:

In Aprender pensando: contribuies da Psicologia cognitiva para a educao, SEE Pernambuco/1983.

a) de que preciso um nmero mnimo de letras - entre 2 e 4 - para que esteja escrito alguma coisa4 e b) de que preciso um mnimo de variedade de caracteres para que uma srie de letras "sirva para ler". De incio, a criana no faz uma diferenciao clara entre o sistema de representao do desenho (pictogrfico) e o da escrita (alfabtico), como se pode observar na escrita de Reginaldo, 6 anos (22/8/84J.5REGINALDO, 6 anos

Reginaldo ainda no estabelece uma diferena clara entre o sistema de representao da escrita e do desenho. As letras que aparecem so as do seu nome, menos em "borboleta", onde usa as do nome de sua irm Sandra.

A ideia de que uma letra sozinha "no serve para ler", "no diz nada", nos d urna pista para compreender a dificuldade das crianas, mesmo as mais avanadas, com a escrita isolada dos artigos. In Repensando a prtica de alfabetizao - as ideias de Emlia Ferreiro na sala de aula, Telma Weisz - Cadernos de Pesquisa/1985.

O contato, no universo urbano, com os dois sistemas -da escrita e do desenho - permite estabelecer progressivamente essa diferenciao. Mas, mesmo quando a criana j tem claro que desenha-se com figuras" e "escreve-se com letras", a natureza do sistema alfabtico ainda permanece um mistrio a ser desvendado. Ainda antes de supor a escrita como representao da fala, a criana faz vrias tentativas de construir um sistema que se assemelhe formalmente escrita adulta, buscando registrar as diferenas entre as palavras por meio de diferenas na quantidade, posio e variao dos caracteres empregados para escrev-las. Veja a escrita da Edinilda(22/8/84). EDINILDA, 7 anosEdinilda avanou mais que Reginaldo. Ela supe que "escreve-se com letras", mas ainda no descobriu que as letras representam sons. Sua hiptese - preciso uma hiptese para produzir qualquer escrita - poderia ser descrita assim: Para escrever (qualquer coisa) preciso de 7 a 9 letras (o nome dela tem 8 letras). Mas no podem ser sempre as mesmas letras, nem na mesma posio. Por isso ela varia o mximo que pode dentro do seu limitado repertrio, o que, s vezes, exige que ela invente algumas. Edinilda j percebeu que a palavras diferentes correspondem escritas diferentes, mas no sabe a que atribuir essas diferenas, pois no descobriu ainda o que que as letras representam.

Enquanto no encontra respostas satisfatrias para as duas perguntas fundamentais: "o que a escrita representa?" e "qual a estrutura do modo de representao da escrita?", a criana continua pensando e tentando adequar suas hipteses s informaes que recebe do mundo. A descoberta de que a escrita representa a fala leva a criana a formular uma hiptese ao mesmo tempo falsa e necessria: a hiptese silbica. A HIPTESE SILBICA A hiptese silbica um salto qualitativo, uma daquelas "grandes reestruturaes globais" de que nos fala Piaget. Um salto qualitativo tornado possvel pelo acirramento das contradies entre as hipteses anteriores da criana e as informaes que a realidade lhe oferece. O que caracteriza a hiptese silbica a crena de que cada letra representa uma slaba - a menor unidade de emisso sonora. Veja, a seguir, trs amostras de escrita silbica.

A hiptese com a qual essa menina trabalha a de que cada letra representa uma emisso sonora, isto , uma slaba oral. o tipo de escrita que Emlia Ferreiro chama silbica estrita. Cleonilda demonstra um razovel conhecimento do valor sonoro convencional das letras que, no entanto, ela adapta s necessidades de sua hiptese conceituai. A vogal "o", por exemplo, vale "to" em gato, "bor" e "bo" em borboleta, "lo" em cavalo e novamente "bo" em boi.

A escrita desse menino tambm silbica. Mas, no caso dele, esta hiptese entra em conflito com outra: a hiptese da quantidade mnima de caracteres para que um conjunto de letras possa ser considerado uma palavra. (No incio do processo de alfabetizao, as crianas supem que uma nica letra "no serve para ler", o que varia de uma para outra o nmero de letras que tido como mnimo, em geral entre 2 e 4.) O Lourivaldo exige trs letras no mnimo, o que cria um problema na escrita dos monosslabos e disslabos. A soluo que ele encontrou foi agregar letras sem valor sonoro s palavras com menos de trs slabas, o que acabou criando, em gato e boi, uma discrepncia entre a inteno da escrita e a interpretao da leitura: na escrita a letra muda era a terceira, mas na hora de ler preferiu considerar como muda a letra do meio. H tambm preocupao com o valor sonoro convencional.

Essa uma escrita silbica bem mais difcil de reconhecer que as anteriores.

Um caso em que o conhecimento que a rofessora construiu observando a criana que possibilita a interpretao. Daniel estava vivendo um momento de conflito cognitivo. Vinha testando sua hiptese silbica em todas as palavras a que tinha acesso, isto , todas as que algum lia para ele, e ficava visivelmente aflito com as letras que sobravam. A forma que encontrou de acomodar a situao foi agregar letras mudas no final, mas esse arranjo no era, de modo algum, satisfatrio. Seu desconforto durante a atividade era visvel: recusou-se a ler "borboleta" e "boi" e foi preciso insistir muito para que lesse "cavalo" e "gato". Dissemos que a hiptese silbica falsa e necessria. Vamos analisar as duas partes dessa afirmao. Em primeiro lugar, a questo da falsidade. Supor que cada letra representa uma slaba falso com relao concepo adulta da escrita, conveno social, que alfabtica. Mas no resta dvida de que muito mais verdadeira que as hipteses anteriores. Ela d uma res-

posta verdadeira primeira questo: "O que a escrita representa?" O salto qualitativo a descoberta de que a escrita representa os sons da fala. Junto com a compreenso da natureza do objeto representado emerge a necessidade de estabelecer um critrio de correspondncia. No mais possvel criana atribuir globalmente a palavra falada sua escrita. Impe-se a necessidade de partir tanto a fala quanto a escrita e fazer corresponder as duas sries de fragmentos. Nesse esforo, a criana comete um erro: supe que a menor unidade da lngua a slaba. Um "erro" alis muito lgico se pensarmos na impossibilidade de emitir o fonema isolado. A hiptese silbica , ento, parcialmente falsa, mas necessria. Necessria como so necessrios "erros construtivos" no caminho em direo ao conhecimento objetivo. As pesquisas de Emlia Ferreiro, em 1982, com 900 crianas que cursavam pela primeira vez a 1a srie da escola pblica em vrias cidades do Mxico, mostram que mais ou menos 85% das crianas estudadas que aprenderam a ler utilizavam a hiptese silbica em pelo menos uma das quatro entrevistas realizadas durante o ano. Isto , a maioria das crianas precisou desse "erro construtivo" para chegar ao sistema alfabtico. Como o intervalo entre as entrevistas era de 60 a 80 dias, fica difcil saber se os 15% restantes passaram ou no por esse erro construtivo. Mas uma coisa certa: impossvel chegar compreenso do sistema alfabtico da escrita sem descobrir, em algum momento, que o que a escrita representa a fala. Mas, no processo de alfabetizao, a hiptese silbica , ao mesmo tempo, um grande avano conceituai e uma enorme fonte de conflito cognitivo.

No entanto, a hiptese silbica cria suas prprias condies de contradio: contradio entre o controle silbico e a quantidade mnima de letras que uma escrita deve possuir para ser interpretvel (por exemplo, o monosslabo deveria se escrever com uma nica letra, mas quando se coloca uma letra s. o escrito "no pode ser lido", ou seja, no interpretvel): alm disso, h contradio entre a interpretao silbica e as escritas produzidas pelos adultos (que tm sempre mais letras do que as que a hiptese silbica permite antecipar). No mesmo perodo - embora no necessariamente ao mesmo tempo - as letras podem comear a adquirir valores sonoros (silbicos) relativamente estveis, o que leva a uma correspondncia com o eixo qualitativo: as partes sonoras semelhantes entre as palavras comeam a se exprimir por letras semelhantes. E isto tambm gera suas formas particulares de conflito. (Emlia Ferreiro) Imaginem como fica conflitante para a criana defron-tar-se com o fato de que, por exemplo, sua escrita para "pato" (AO) ficou igual que ela produziu para "gato". Vocs devem estar se perguntando por que isso no foi percebido at ento; por que no se tornou observvel antes para ns, professores. A resposta que no podamos "ver" a escrita silbica por razes semelhantes de que a humanidade no pde rever a ideia de uma Terra plana enquanto no admitiu que esta que girava em torno do Sol e no o contrrio. Foi necessria uma concepo dialtica do processo de aprendizagem, uma concepo que permitisse ver a ao do aprendiz construindo o seu conhecimento, onde o professor aparece no mais como o que controla a aprendizagem do aluno e sim como um mediador entre aquele que aprende e o contedo a ser aprendido. S a partir desse novo referencial possvel imaginar que a criana aprenda algo que no foi ensinado pelo professor.

A CAMINHO DA HIPTESE ALFABTICA Vamos recapitular para no perder o fio. Vimos emergir das pesquisas uma criana que se esfora para compreender a escrita. Que comea diferenciando o sistema de representao da escrita do sistema de representao do desenho. Que tenta vrias abordagens globais, numa busca consistente da lgica do sistema at descobrir - o que implica uma mudana violenta de critrios - que a escrita no representa o objeto a que se refere e sim o desenho sonoro do seu nome. Que nesse momento costuma aparecer uma hiptese conceituai que atribui a cada letra escrita uma slaba oral. Que essa hiptese gera inmeros conflitos cognitivos, tanto com as informaes que recebe do mundo como com as hipteses de quantidade e variedade mnima de caracteres construdas pela prpria criana. Veja a seguir as amostras de escrita da Cleonilda, do Lourivaldo e do Daniel, de 22/8/84, onde isso aparece com clareza.

Daniel escreve alfabeticamente as palavras, mas regride ao nvel silbico-alfabtico (de transio) na frase. E possvel que isso tenha acontecido porque estava preocupado com a separao das palavras. Foi o nico que no escreveu tudo junto, como seria normal. O que coerente com seu estilo: muito atento forma adulta de escrever, buscando sempre reproduzir suas caractersticas, mesmo sem compreender.

As escritas silbica e silbico-alfabtica tm sido encaradas como patolgicas pela escola que no dispe de conhecimento para perceber seu carter evolutivo. Se o professor compreende a hiptese com que a criana est trabalhando, passa a ser possvel problematiz-la, acirrar por meio de informaes adequadas - as contradies que vo gerar os avanos necessrios para a compreenso do sistema alfabtico. E foi isso o que aconteceu com Cleonilda, Lourivaldo e Daniel, como se pode ver nas amostras de escrita de 30/11/84 (na coluna da direita, em cada um dos exemplos anteriores). Cleonilda, que em 90 dias de aula estava alfabetizada, no capaz de articular oralmente nenhum encontro consonantal nem no seu prprio nome. Apesar disso, ou talvez por isso mesmo, das crianas que se alfabetizaram nesse grupo era a que menos erros de escrita cometia. Ela jamais escrevia "comi" para "come", como o Lourivaldo. que falava corretamente. Reginaldo. como se pode ver no quadro seguinte, pela evoluo da cpia de seu nome, no tem orientao espacial da escrita, "come" letras, espelha letras, tem traado inseguro, incapaz de manter a ordem das letras na cpia (e tinha dificuldade para segurar o lpis)...

(14/6/84) Diante da recusa e da ansiedade da criana, a professora sugere o uso do apelido Regi, em lugar de Reginaldo, e oferece um modelo para cobrir e copiar.

(19/6/84) Insiste em copiar Reginaldo. Fica muito infeliz com o resultado.

(25/6/84) Aceita fazer "lio de nome", isto , cobrir o modelo e copiar embaixo. Durante o ms de agosto, Reginaldo se esfora para copiar todas as letras do seu nome, agregando-as aos poucos. A conservao da ordem das grafias do modelo no tem ainda significado, o que importa a presena.

(8/8/84) (8/8/84) (8/8/84) (8/8/84)Em setembro e outubro consegue garantir a presena de todas as letras e parece comear a se preocupar com a ordem.

Em novembro descobre que as letras representam sons (ver quadro abaixo) e a questo da ordem das

(assinatura na ausncia de modelo)

posicionar corre-tamente cada letra

1- tentativa (rejeitada) de escrever mato. Prof. - "Mato se escreve com que slabas?'7 (2 tentativa) (ma - to) Regi - "O ma do macaco." (escreve M) "O to do pato." (escreve T) " E a bolinha?" (apaga o T e substitui por O) Prof. - "Agora escreve boi." Regi - (escreve B) " o i (que falta)?" Prof. "O que voc acha?" Regi - "E." (Escreve A)

(bo-i)

No entanto, os seus problemas perceptivo-motores desapareceram como por encanto, quando ele descobriu o que, exatamente, as letras representavam. Pensem bem, que importncia tm a posio ou a ordem das letras, se para ns elas so apenas desenhos? O que esse texto tentou informar em linhas gerais como que se aprende a ler. Tentamos mostrar que as dificuldades desse processo so muito mais de natureza conceituai e muito menos perceptual, conforme pensvamos antes. E, como nossa prtica se baseava sobre o que sabamos, preciso repens-la, no?

O que est escrito e o que se pode lerComo vimos anteriormente, as crianas constroem hipteses sobre como se escreve e muitos professores j ouviram falar disso. No entanto, parte importante e pouco conhecida das investigaes sobre a aquisio da escrita se refere ao que poderamos chamar hipteses de leitura, isto , as ideias que as crianas constroem sobre o que est ou no grafado em um texto escrito e o que se pode ler ou no nele. As crianas, antes de aprender a ler e escrever, constroem ideias e distines que parecem estranhas aos nossos olhos alfabetizados. Crianas pequenas costumam pensar que qualquer coisa que esteja escrita perto de uma figura deve ser o nome da figura. Por exemplo, elas imaginam que se em uma caixa de remdio h algo escrito deve ser "remdio" ou, quem sabe, "plulas". A hiptese de que o que est escrito junto de uma imagem deve ser seu nome fica evidente quando perguntamos a crianas que no sabem ler o que se v em

uma figura e ela responde "uma" bola (ou "uma" boneca ou "uma" bicicleta...) e quando perguntamos o que est escrito junto da bola ela diz apenas "bola" (ou "boneca", ou "bicicleta", omitindo o artigo indefinido). Essa distino sutil sistemtica e caracteriza o que Emilia Ferreiro chamou a hiptese do nome Isto , no incio, as crianas pensam que o que se escreve so apenas os nomes. Investigando essas ideias infantis ela descobriu coisas interessantes.6 Uma de letras a seguinte: as letras representam o nome dos objetos. Santiago, um menino de 3 anos pertencente classe mdia, a mais jovem das crianas que acompanhamos longitudinalmente. foi quem fez explicitamente essa afirmao. Enquanto olhava um novo carrinho de brinquedo, das primeiras ideias que as crianas elaboram em relao ao significado de uma sequncia descobriu as letras impressas no objeto e. apontando para estas letras, disse: "Aqui esto as letras. Elas dizem o que ". O texto escrito na verdade dizia MXICO, mas Santiago achou que estava escrito "carro". De modo semelhante. as crianas acham que as letras impressas em uma lata de leite dizem "leite": que as letras em um relgio dizem "relgio", e assim por diante. O significado de um texto escrito , portanto, inteiramente dependente do contexto. Se o contexto for um livro com figuras, imagina-se que as letras "digam" o nome dos objetos ilustrados. A proximidade espacial entre a escrita e as gravuras a informao relevante que as crianas procuram para descobrir qual dos textos escritos poderia "dizer" o nome de cada objeto ilustrado.

Experimento descrito no artigo "A interpretao da escrita antes da leitura convencional", capitulo do livro Alfabetizao em Processo, de Emilia Ferreiro, Editora Cortez. Usaremos a seguir vrios fragmentos deste artigo para ajudar a explicar as ideias da autora e os resultados dessas investigaes.

A um grupo de crianas entre 3 e 5 anos, de diferentes origens sociais - que a pesquisadora acompanhou durante dois anos, realizando entrevistas individuais a cada dois meses -apresentou-se um conjunto de cartes com imagens e um conjunto de carteias com textos escritos. Nenhuma das crianas sabia ler ou conhecia de memria a forma do que estava escrito nas carteias. Solicitava-se a elas que agrupassem em pares as figuras com os escritos que "combinassem" com elas. Depois, pedia-se a cada criana que dissesse o que estava escrito em cada uma. Emilia Ferreiro classificou as respostas em trs grupos, ou melhor, em trs nveis: As crianas no nvel 1 deixam evidente que o significado atribudo ao escrito (texto) depende inteiramente do contexto: o significado do texto muda tantas vezes quanto varia o contexto. Por exemplo, se um determinado texto tiver sido colocado em relao imagem de uma girafa, "ele diz girafa", mas o mesmo texto escrito pode "dizer" outros nomes ("leo", "cavalo" etc, se o conjunto de cartes ilustrados for um conjunto de animais). O mesmo texto escrito pode "dizer" novamente "girafa", se for outra vez colocado nas proximidades daquela imagem.(...) As crianas no nvel 2 j no aceitam que um texto escrito dependa to completamente do contexto e, nas entrevistas, explicam: Areli (de 4 anos e 7 meses, pertencente classe mdia) argumenta que o texto escrito atribudo ao leo no pode servir para outro animal, "porque do leo"; o texto escrito pertencente girafa no pode servir para outro animal, "porque diz girafa". Victor (de 5 anos e meio, favelado) argumenta que o texto escrito atribudo a uma espiga de milho no adequado para o homem, porque se o colocarmos perto da figura de um homem "ele vai se chamar milho".

O que caracteriza o nvel 3 a possibilidade de considerar algumas propriedades do prprio texto escrito em relao imagem. Vejamos um exemplo - em outro tipo de experimento - onde a criana considera as propriedades quantitativas do texto, sem renunciar ideia de que s os nomes esto escritos. Ana Teresa (5 anos e 3 meses) procura interpretar um texto de trs segmentos que acompanha a imagem de uma cena com vrios personagens. O texto : "as galinhas comem" e Ana Teresa pensa que est escrito "gato. galinha, menino" um nome para cada um dos segmentos, na ordem da esquerda para a direita; trata-se de trs nomes de personagens representados na figura. Quando, porm, no mesmo dia, a mesma menina procura interpretar outro texto de trs segmentos que acompanha uma figura com um nico personagem, suas dificuldades se tornam manifestas. A figura um pato na gua. O texto "o pato nada". Ana Tereza comea tentando uma silabao do nome "pato", a fim de ajustar-se s segmentaes do texto: atribui a primeira slaba ("pa") ao primeiro segmento do texto ("o") e a segunda slaba ("to") ao resto do texto ("pato nada"). Esta soluo no a satisfaz porque deve atribuir uma nica slaba a dois segmentos. Tenta ento outra soluo: atribui o nome "pato" a um dos segmentos maiores ("nada"), pensa que diz "gua" no outro segmento de quatro letras ("pato") e. como no lhe ocorre mais nada porque no h outros elementos na figura, atribui o nome "cores" ao segmento restante ("o").

Uma das ideias mais surpreendentes (surpreendentes para nosso olhar alfabetizado, claro) construdas pelas crianas no incio de seu contato com o mundo da escrita a distino entre o que est escrito e o que se pode ler. A ideia de que se deve escrever tudo o que se quer dizer no compreendida antes que a criana se alfabetize. Pelo

contrrio, descobrir que necessrio escrever tudo, sem omitir nada, requer bastante experincia com a lngua escrita. Emilia Ferreiro e colaboradores realizaram experimentos com crianas de diferentes pases, diferentes lnguas, diferentes idades e classes sociais, buscando compreender a natureza e a evoluo dessa distino entre "o que est escrito" e "o que se pode ler". E observaram que, em torno dos 4 ou 5 anos, crianas urbanas costumam pensar que apenas os substantivos precisam estar escritos para que se possa ler um enunciado. Como quando uma criana desenha, por exemplo, um menino jogando bola: o que aparece no desenho o menino e a bola, tudo o mais inferido por quem o interpreta quando olha para o desenho e diz: "o menino est jogando bola". Vejamos um exemplo concreto para ajudar a compreender:7 Apresentamos e lemos para a criana a orao: "a menina comprou um caramelo". A criana a repete cor-retamente (repetindo inclusive o assinalar contnuo que acabamos de fazer). Se lhe perguntarmos onde est escrito "menina" ou "caramelo", no ter dificuldades em assinalar alguma das palavras escritas (no importa, no momento, saber se a indicao ou no correta), mas no lhe ocorrer que o verbo, e muito menos os artigos, estejam escritos. De acordo com a anlise realizada pelas crianas deste nvel, existem partes escritas em demasia, e bastaria apenas duas palavras: "menina" e "caramelo" para se poder ler uma orao completa. O que falta no a memria imediata (j que a criana conse-

Transcrito de "A compreenso do sistema de escrita: Construes originais da criana e informao especifica dos adultos", captulo do livro Reflexes sobre a alfabetizao, de Emilia Ferreiro, Editora Cortez.

gue repetir a orao quando lhe perguntamos: "o que dizia o texto todo?"). um problema de contraste de concepes. Para poder utilizar a informao oferecida pelo adulto (quando l o texto para ela), a criana deveria partir das suposies bsicas de nosso sistema escrito: que todas as palavras ditas esto escritas, e que a ordem da escrita corresponde ordem da enunciao. E interessante observar que as ideias das crianas sobre "o que est escrito" e "o que se pode ler" evoluem em direo correspondncia termo a termo entre o falado e o escrito, no dependendo para isso da decifrao ou do conhecimento das letras. Esta uma evoluo conceituai e acredita-se que esteja relacionada s oportunidades de con-tato com a escrita. Retiramos do mesmo artigo citado acima a transcrio de trs entrevistas que nos parecem muito esclarecedoras. A orao que nos servir de exemplo : "Papai martelou a tbua". Entrevistador (L a orao.) O que diz? Diz tbua em algum lugar? Erick (6 anos) Papai martelou a tbua (Repassa o texto com o dedo indicador, repetindo para si a orao e logo mostra tbua) (Mostra papai sem pestanejar) (Repassa o texto desde o comeo, como antes.) Martelou. (Repete o mesmo procedimento.) A.

Diz papai em algum lugar? O que diz aqui? (martelou)

E aqui? (a)

Como vemos, Erick consegue atribuir cada parte falada a uma parte escrita, apesar de no saber ler. Entrevistador (L a orao.) O que diz? Onde est escrito papai? E aqui? (martelou) E aqui? (tbua) E aqui? (a) Eu escrevi: papai martelou a tbua. Ento o que diz aqui? (papai) Aqui? (tbua) E aqui? (a) Silvia (6 anos) Papai martelou a tbua. Aqui (papai). Martelou TbuaT

Sim. papai martelou a tbua. Papai TbuaT

Slvia consegue atribuir o verbo (martelou) sua escrita mas lhe parece inadmissvel que algo possa estar escrito em um segmento com apenas uma letra. Imagina ento que esta letra possa ser um pedao de um dos substantivos, no caso o "ta", de tbua. Entrevistador (L a orao.) O que diz? Diz papai em algum lugar? Diz tbua em algum lugar? O que diz aqui? (martelou) E aqui? (a) Laura (6 anos) Papai martelou a tbua. Aqui (papai). Aqui (tbua). Martelo

O que diz o texto todo? Onde est escrito tbua? O que diz a? E aqui? (a) Diz algo ou no diz nada? Por qu?

Papai martelou a tbua. (Mostra tbua). Tbua No, no diz nada. Tem uma letra s.

Mas para Laura apenas os nomes esto escritos. Tanto que no teve dvidas em transformar o verbo "martelou" no substantivo "martelo". Este no foi um procedimento particular de uma criana. No caso desse enunciado, vrias crianas que estavam nesse momento do processo transformaram "martelou" em "martelo", uma soluo engenhosa para resolver a questo ali. naquele momento. Esta questo - a distino entre "o que est escrito" e "o que se pode ler" - evolui, evidentemente, na direo inversa da apresentao das entrevistas. Erick mais avanado que Silvia e esta, que Laura. No entanto os trs tm a mesma idade. Estamos enfatizando este fato para marcar que na evoluo das ideias sobre a escrita a idade conta menos que o tempo de participao em situaes e atividades onde a escrita est direta ou indiretamente presente. Se a idade fosse a varivel mais importante, no existiriam adultos analfabetos. As ideias infantis que descrevemos aqui so construes originais das crianas e do inmeras pistas ao leitor atento sobre por que importante oferecer criana a oportunidade de se defrontar com textos nos quais ela sabe o que est escrito ou pode deduzir a partir do contexto. Coloc-la frequentemente neste tipo de situa-

o oferecer-lhe oportunidades para pensar sobre a escrita, elaborar hipteses, test-las e reconstru-las progressivamente, apoiando-a em seu esforo para aprender a ler e escrever. Para saber mais sobre este tema leia: "A compreenso do sistema de escrita: construes originais da criana e informao especfica dos adultos", captulo do livro Reflexes sobre a alfabetizao, de Emilia Ferreiro, Editora Cortez. "A interpretao da escrita antes da leitura convencional". captulo do livro Alfabetizao em processo, de Emilia Ferreiro, Editora Cortez. "Leitura sem imagem: a interpretao dos fragmentos de um texto", captulo do livro Psicognese da lngua escrita, de Emilia Ferreiro e Ana Teberosky, Editora Artmed.

Aprender a ler: um pouco de histriaQuando pensamos em alfabetizao, o que nos vem imediatamente cabea a sala de aula, a escola. At a recente publicao de estudos sobre a histria da leitura, todos ns, caso nos perguntassem, responderamos que sempre foi na escola que se aprendeu a ler. Investigaes atuais sobre a histria das prticas sociais de leitura esto mostrando que nem sempre foi assim e essa revelao est ajudando a produzir transformaes muito interessantes na didtica da alfabetizao. O que aparece nas pesquisas dos historiadores que, muito antes da existncia de escolas tal como as

que conhecemos, ampliou-se muito o nmero de pessoas que sabiam ler sem que aparentemente tivessem sido ensinadas. Historiadores como Jean Hbrard verificaram que esta alfabetizao, que ningum compreendia muito bem como acontecia, tinha relao com a instruo religiosa. No mesmo perodo histrico em que os livros deixaram de ser produzidos a mo, copiados um a um, e passaram a ser reproduzidos industrialmente, em tipografias - graas inveno de Gutenberg -, a Europa foi sacudida por um movimento conhecido como a Reforma Protestante. Este movimento foi desencadeado pelo padre alemo Martinho Lutero, que se rebelou contra o Papa e estabeleceu as bases doutrinrias que deram origem s Igrejas protestantes. Uma das mudanas mais importantes era o direito de cada cristo livre interpretao das Escrituras. Isto , o exerccio da f exigia o acesso pessoal ao que estava escrito na Bblia. Todo cristo tinha o direito e o dever de se esforar para buscar a palavra de Deus, tentar compreender seus desgnios, atravs das Sagradas Escrituras, o que ento estava se tornando possvel, pois as bblias impressas comeavam a estar ao alcance de muitos. Na tradio catlica, apenas os religiosos deveriam saber ler. O acesso palavra de Deus, para os catlicos, era mediado pelos padres, que a interpretavam. Para os protestantes, no entanto, nenhum intrprete autorizado, nenhuma tradio poderia se interpor entre o crente ("mesmo se uma miservel filha de moleiro, ou mesmo uma criana de 9 anos", escreveu Lutero) e as Escrituras. Jean Hbrard conta que, no sculo XVII. na Sucia e na Finlndia, pases de forte presena luterana, praticamente toda a populao era alfabetizada sem que exis-

tissem escolas elementares. Como possvel uma coisa dessas se hoje, mesmo com escolas, temos tanta dificuldade para alfabetizar todas as nossas crianas? Em primeiro lugar, no havia uma preocupao especfica com a alfabetizao, e sim com a catequese. O que importava era a instruo religiosa. Mas no so s os cristos que tm escrituras sagradas. Tambm os judeus e os muulmanos as tm. O estudo da Tora pelos judeus e do Alcoro pelos maometanos tambm tem muito a nos contar sobre prticas no escolarizadas de alfabetizao. E com o estudo dessas prticas que a didtica da alfabetizao tem aprendido coisas importantes. Tanto o estudo da Bblia como o da Tora judaica, bem como o do Alcoro, tinham em comum o fato de que se lia, ou melhor, se recitava o texto sagrado em voz alta at sua memorizao. Saber o texto de cor e procurar no escrito onde est o que se fala parece ter cumprido um papel fundamental na difuso dessa alfabetizao sem escola, uma alfabetizao cujo sucesso era atribudo a uma espcie de iluminao de origem divina. Quando a alfabetizao passou a ser assunto escolar, a prtica de colocar os que no sabem ler diante de um texto desapareceu. Hoje ns a estamos recuperando, porque podemos compreendla em seus fundamentos psicopedaggicos e adapt-la s nossas atuais necessidades. claro que no estamos propondo obrigar as crianas a decorar enormes textos e recit-los at no aguentar mais. Mas o fato de compreendermos que essa situao produzia um excelente espao para a reflexo sobre o modo de funcionamento da escrita tornou possvel adapt-la nossa realidade. Assim, tm sido criadas diversas atividades de leitura apoiadas em textos e

dirigidas s crianas que ainda no sabem ler. Algumas delas estaro entre as sugestes de atividades que voc vai encontrar mais frente. Para os interessados no tema da histria das prticas sociais de leitura: CHARTIER, Roger. A ordem dos livros: leitores, autores e bibliotecas na Europa entre os sculos XIV e XVIII. Braslia: Editora Universidade de Braslia, 1994. CHARTIER, Roger (org.). Prticas de leitura. So Paulo: Estao Liberdade, 1996. CAVALLO, Guglielmo e CHARTIER, Roger. Histria da leitura no mundo ocidental (vols. I e II). So Paulo: Editora tica, 1998. HBRARD, Jean. "A escolarizao dos saberes elementares na poca moderna". Na revista Teoria e Educao, 2, 1990. pgs. 65-110.

As ideias, concepes e teorias que sustentam a prtica de qualquer professor, mesmo quando ele no tem conscincia delas8Quando analisamos a prtica pedaggica de qualquer professor vemos que, por trs de suas aes, h sempre um conjunto de ideias que as orienta. Mesmo quando

Texto extrado dos captulos 4 e 5 do livro O dilogo entre o ensino e a aprendizagem de Telma Weisz, Editora tica, 1999.

ele no tem conscincia dessas ideias, dessas concepes, dessas teorias, elas esto presentes. Para compreender a ao do professor, preciso analis-la com o objetivo de desvendar os seguintes aspectos: qual a concepo que o professor tem, e que se expressa em seus atos, do contedo que ele espera que o aluno aprenda; qual a concepo que o professor tem, e que se expressa em seus atos, do processo de aprendizagem, isto , dos caminhos pelos quais a aprendizagem acontece; qual a concepo que o professor tem, pressa em seus atos, de como deve ser o ensino. e que se ex

A teoria empirista - que historicamente a que mais vem impregnando as representaes sobre o que ensinar, quem o aluno, como ele aprende e o que e como se deve ensinar - se expressa em um modelo da aprendizagem conhecido como de "estmulo-resposta". Este modelo define a aprendizagem como ua substituio de respostas erradas por respostas certas". A hiptese subjacente a essa concepo que o aluno precisa memorizar e fixar informaes - as mais simples e parciais possveis e que devem ir se acumulando com o tempo. O modelo tpico de cartilha est baseado nisso. As cartilhas trabalham com uma concepo de lngua escrita como transcrio da fala: elas supem a escrita como espelho da lngua que se fala. Seus "textos" so construdos com a funo de tornar clara (segundo o que elas supem) essa relao de transcrio. Em geral, so palavras-chave e famlias silbicas, usadas exaustivamente - e a encontram-se coisas como o "beb baba na bab", "o boi bebe", "Didi d o dado a Ded". A funo do material escrito numa cartilha apenas aju-

dar o aluno a desentranhar a regra de gerao do sistema alfabtico: que "b" com "a" d "ba", e por a afora. Centrada nesta abordagem que v a lngua como pura fonologia, a cartilha introduz o aluno no mundo da escrita apresentando-lhe um texto que, na verdade, apenas um agregado de frases desconectadas. Esta concepo de "texto para ensinar a ler" est to impregnada no imaginrio do professor que, certa vez, uma professora que se esforava para transformar sua prtica documentou em vdeo uma aula e me enviou, para mostrar como j conseguia trabalhar sem a cartilha. A atividade era uma produo coletiva de texto na lousa. O texto produzido pelos alunos e grafado pela professora era o seguinte:O SAPO O sapo bom. O sapo come inseto. O sapo feio. O sapo vive na gua e na terra. Ele solta um lquido pela espinha. O sapo verde.

Como se pode observar, cada enunciado tratado como se fosse um pargrafo independente. Exigncias mnimas de coeso textual, como no repetir "o sapo" em cada enunciado, nem sequer so consideradas. S na quinta frase aparece, pela primeira vez, um pronome para substituir "o sapo". E na sexta frase, l est ele de novo. Seria fcil concluir que a professora que no sabe escrever com um mnimo de coerncia e coeso. Mas no era esse o caso. Alm de saber escrever, era uma tima professora: empenhada e comprometi-

da com seu trabalho e seus alunos. Apenas havia interiorizado em sua prtica o modelo de "texto" que caracteriza a metodologia de alfabetizao expressa nas cartilhas. E de tal maneira, que nem sequer tinha conscincia disso: foi preciso tematizar sua prtica a partir dessa situao documentada para que ela pudesse se dar conta.

COMO A METODOLOGIA DE ENSINO EXPRESSA NAS CARTILHAS CONCEBE OS CAMINHOS PELOS QUAIS A APRENDIZAGEM ACONTECEPoderamos dizer, em poucas palavras, que na concepo empirista o conhecimento est "fora" do sujeito e internalizado atravs dos sentidos, ativados pela ao fsica e perceptual. O sujeito da aprendizagem seria "vazio" na sua origem, sendo "preenchido" pelas experincias que tem com o mundo. Criticando essa ideia de um ensino que se "deposita" na mente do aluno, Paulo Freire usava uma metfora - "educao bancria"- para falar de uma escola em que se pretende "sacar" exatamente aquilo que se "depositou" na cabea do aluno. Nessa concepo, o aprendiz algum que vai juntando informaes. Ele aprende o "ba, be, bi, bo, bu", depois o "ma, me, mi, mo, mu" e supe-se que em algum momento, ao longo desse processo, tenha uma espcie de "estalo" e comece a perceber o que que o "ma", o "me", o "mi", o "mo" e o "mu" tm em comum. Acredita-se que ele seja capaz de aprender exatamente o que lhe ensinam e de ultrapassar um pouco isso, fazendo uma sntese a partir de uma determinada

quantidade de informaes. Na verdade, o modelo supe apenas a acumulao. Os professores que, convivendo com alunos reais o tempo todo, acabam encontrando na figura do "estalo" a resposta para certas ocorrncias aparentemente inexplicveis. Porque sabem que alguns entendem o sistema logo que aprendem algumas poucas famlias silbicas, enquanto outros chegam ao "Z", de "zabumba", sem compreend-lo. E j que no tm como entender essas diferenas, buscam explicaes no que se convencionou chamar de "estalo". Frequentemente dizem: "O menino deu o estalo", ou "Ainda no deu o estalo, mas uma hora vai dar". Para se acomodar a essa teoria, o processo de ensino caracterizado por um investimento na cpia, na escrita sob ditado, na memorizao pura e simples, na utilizao da memria de curto prazo para reconhecimento das famlias silbicas quando o professor toma a leitura. Essa forma de trabalhar est relacionada crena de que primeiro os meninos tm de aprender a ler e a escrever dentro do sistema alfabtico, fazendo uma leitura mecnica, para depois adquirir uma leitura compreensiva. Ou seja, primeiro eles precisariam aprender a fazer barulho com a boca diante das letras, para depois poder aprender a ler de verdade e a produzir sentido diante de textos escritos. Assim, os trs tipos de concepo a que nos referimos no incio deste captulo se articulam para produzir a prtica do professor que trabalha segundo a concepo empirista: a lngua (contedo) vista como transcrio da fala, a aprendizagem se d pelo acmulo de informaes e o ensino deve investir na memorizao. Na verdade, qualquer prtica pedaggi-

ca, qualquer que seja o contedo, em qualquer rea, pode ser analisada a partir deste trio: contedo, aprendizagem e ensino. PARA MUDAR PRECISO RECONSTRUIR TODA A PRTICA A PARTIR DE UM NOVO PARADIGMA TERICO Quando se tenta sair de um modelo de aprendizagem empirista para um modelo construtivista, as dificuldades de entendimento s vezes so graves. De uma perspectiva construtivista, o conhecimento no concebido como uma cpia do real, incorporado direta-mente pelo sujeito: pressupe uma atividade, por parte de quem aprende, que organiza e integra os novos conhecimentos aos j existentes. Isso vale tanto para o aluno quanto para o professor em processo de transformao. Se o professor procura inovar sua prtica, adotan-do um modelo de ensino que pressupe a construo de conhecimento sem compreender suficientemente as questes que lhe do sustentao, corre o risco, grave no meu modo de ver. de ficar se deslocando de um modelo que lhe familiar para o outro, meio desconhecido, sem muito domnio de sua prpria prtica - "mesclando", como se costuma dizer. O equvoco mais comum pensar que alguns contedos se constroem e outros no. O que, nessa viso "mesclada", equivale a dizer que uns precisariam ser ensinados e outros no. Em outros casos o modelo empirista fica intocado e as ideias que as crianas constroem em seu processo de aprendizagem so distorcidas, a ponto de o professor v-las como contedo a ser ensi-

nado. Um exemplo disso so os professores que, encantados com o que a psicognese da lngua escrita desvendou sobre o que pensam as crianas quando se alfabetizam, passaram a ensinar seus alunos a escrever silabi-camente. Que raciocnio leva a uma distoro desse tipo? Se os alunos tm de passar por uma escrita silbica para chegar a uma escrita alfabtica, ensinlos a escrever silabicamente faria chegar mais rpido escrita alfabtica, pensam esses professores. Essa perspectiva s pode caber em um modelo empirista de ensino, cuja lgica intrnseca organizar etapas de apresentao do conhecimento aos alunos. Essa lgica no faz nenhum sentido em um modelo construtivista. Outro tipo de entendimento distorcido, mais influenciado por prticas espontanestas, o seguinte: diante da informao de que quem constri o conhecimento o sujeito, houve professores que entenderam que a interveno pedaggica seria, ento, desnecessria. Se o aluno quem vai construir o conhecimento, o que os professores teriam a fazer dentro da sala de aula? E passaram a no fazer nada. Como se v, fcil nos perdermos em nossa prtica educativa quando no nos damos conta do que orienta de fato nossas aes. Ou melhor, de quais so as nossas teorias em ao.CONTEDOS ESCOLARES SO OBJETOS DE CONHECIMENTO COMPLEXOS, QUE DEVEM SER DADOS A CONHECER, AOS ALUNOS, POR INTEIRO

A mudana na concepo dos contedos oferecidos pela escola provoca, de imediato, uma transformao enorme na oferta de informao aos alunos. Vamos continuar

com o exemplo da lngua escrita para tornar mais claro o que queremos dizer. Se o professor parte do princpio de que a lngua escrita complexa, dentro de uma concepo construtivista da aprendizagem ela deve ser -mesmo assim e por isso mesmo - oferecida inteira para os alunos. E de forma funcional, isto , tal como usada realmente. Quando algum aprende a escrever, est aprendendo ao mesmo tempo muitos outros contedos alm do b--b, do sistema de escrita alfabtica - por exemplo, as caractersticas discursivas da lngua, ou seja. a forma que ela assume em diferentes gneros atravs dos quais se realiza socialmente. Pensando assim, caber ao professor criar situaes que permitam aos alunos vivenciar os usos sociais que se faz da escrita, as caractersticas dos diferentes gneros textuais, a linguagem adequada a diferentes contextos comunicativos, alm do sistema pelo qual a lngua grafada, o sistema alfabtico. Para algum ser capaz de ler com autonomia preciso compreender o sistema alfabtico, mas isso apenas lhe confere autonomia. Qualquer um pode aprender muito sobre a lngua escrita, mesmo sem poder ler e escrever autonomamente. Isso depende de oportunidades de ouvir a leitura de textos, participar de situaes sociais nas quais os textos reais so utilizados, pensar sobre os usos, as caractersticas e o funcionamento da lngua escrita. Para os construtivistas - diferentemente dos empiristas, para quem a informao deveria ser oferecida da forma mais simples possvel, uma de cada vez, para no confundir aquele que aprende - o aprendiz um sujeito, protagonista do seu prprio processo de aprendizagem, algum que vai produzir a transformao que converte informao em conhecimento prprio. Essa construo, pelo aprendiz, no se d por si mesma

e no vazio, mas a partir de situaes nas quais ele possa agir sobre o que objeto de seu conhecimento, pensar sobre ele, recebendo ajuda, sendo desafiado a refletir, interagindo com outras pessoas. Quando se acredita que o motor da aprendizagem o esforo do sujeito para dar sentido informao que est disponvel, tem-se uma situao bastante diferente daquela em que o aprendiz teria de permanecer tranquilo e com os sentidos abertos para introjetar a informao que lhe oferecida, da maneira como oferecida. Em um modelo empirista a informao introjetada, ou no. Em um modelo construtivista o aprendiz tem de transformar a informao para poder assimil-la. Concepes to diferentes do origem, necessariamente, a prticas pedaggicas muito diferentes. AFIRMAR QUE O CONHECIMENTO PRVIO BASE DA APRENDIZAGEM NO DEFENDER PR-REQUISITOS Para aprender alguma coisa preciso j saber alguma coisa - diz o modelo construtivista. Ningum conseguir aprender alguma coisa se no tiver como reconhecer aquilo como algo que se possa apreender. O conhecimento no gerado do nada. uma permanente transformao a partir do conhecimento que j existe. Essa afirmao - a de que o conhecimento prvio do aprendiz a base de novas aprendizagens - no significa a crena ou defesa de pr-requisitos. Tampouco esse tipo de conhecimento se confunde com a matria ensinada anteriormente pelo professor. Se, por um lado, o que cada um j possui de conhecimento que explica as diferentes formas e tempos de aprendizagem de determinados contedos que esto

sendo tratados, por outro sabemos que a interveno do professor determinante nesse processo. Seja nas propostas de atividade, seja na forma como encoraja cada um de seus alunos a se lanar na ousadia de aprender, o professor atua o tempo inteiro.NO INFORMAR NEM CORRIGIR SIGNIFICA ABANDONAR O ALUNO PRPRIA SORTE

Como j vimos, diante de um corpo de ideias to novo como a concepo construtivista da aprendizagem e o modelo de ensino atravs da resoluo de problemas, o professor est tambm na posio de aprendiz. No entanto, o conhecimento pedaggico produzido coletiva-mente, o que permite aos professores hoje aprender a partir do que outros j aprenderam, tomando cuidado com erros j cometidos por outros. Um erro que precisa ser evitado por suas graves consequncias o desvio espontanesta: como o aluno quem constri o conhecimento, no seria necessrio ensinar-lhe. A partir dessa crena o professor passa a no informar, a no corrigir e a se satisfazer com o que o aluno faz "do seu jeito". Essa viso implica abandonar o aluno sua prpria sorte. E muito importante que o professor compreenda o que significa, do ponto de vista da criana, o "vou fazer do meu jeito". Vamos usar a alfabetizao novamente para exemplificar. Quando uma criana entra na escola, ainda no-alfabetizada, tanto ela quanto o professor sabem que ela no sabe ler nem escrever. Ao propor que ela se arrisque a escrever do jeito que imagina, o que o professor na verdade est propondo uma atividade baseada na capacidade infantil de jogar, de fazer de conta. Em um contrato desse tipo - que reza

que o aluno deve escrever pondo em jogo tudo o que sabe e pensa sobre a escrita - o professor deve usar tudo o que sabe sobre as hipteses que as crianas constroem sobre a escrita para poder, interpretando o que o aluno escreveu, ajud-lo a avanar. Dentro desse contrato, quem "faz de conta" a criana. Nesse espao em que a criana escreve "do seu jeito", o papel do professor delicado. Mas semelhante ao de algum adulto que participa de uma brincadeira de faz de conta sem entrar nela. Ao professor cabe organizar a situao de aprendizagem de forma a oferecer informao adequada. Sua funo observar a ao das crianas, acolher ou problematizar suas produes, intervindo sempre que achar que pode fazer a reflexo dos alunos sobre a escrita avanar. O professor funciona ento como uma espcie de diretor de cena ou de contra-regra e cabe a ele montar o andaime para apoiar a construo do aprendiz. COMO FAZER O CONHECIMENTO DO ALUNO AVANAR O processo de aprendizagem no responde necessariamente ao processo de ensino, como tantos imaginam. Ou seja, no existe um processo nico de "ensino-apren-dizagem", como muitas vezes se diz, mas dois processos distintos: o de aprendizagem, desenvolvido pelo aluno, e o de ensino, pelo professor. So dois processos que se comunicam, mas no se confundem: o sujeito do processo de ensino o professor, enquanto o do processo de aprendizagem o aluno. equivocada a expectativa de que o aluno poder receber qualquer ensinamento que o professor lhe transmitir,

exatamente como ele lhe transmite. O professor que precisa compreender o caminho de aprendizagem que o aluno est percorrendo naquele momento e, em funo disso. identificar as informaes e as atividades que permitam a ele avanar do patamar de conhecimento que j conquistou para outro mais evoludo. Ou seja, no o processo de aprendizagem que deve se adaptar ao de ensino, mas o processo de ensino que tem de se adaptar ao de aprendizagem. Ou melhor: o processo de ensino deve dialogar com o de aprendizagem. Nesse dilogo entre professor e aprendiz, cabe ao professor organizar situaes de aprendizagem. Mas o que vem a ser isso? Elas consistem em atividades planejadas, propostas e dirigidas com a inteno de favorecer a ao do aprendiz sobre um determinado objeto de conhecimento, e esta ao est na origem de toda e qualquer aprendizagem. No basta, no entanto, que sejam planejadas, propostas e dirigidas para se constiturem automaticamente em boas situaes de aprendizagem para os alunos. Para terem valor pedaggico, serem boas situaes de aprendizagem, as atividades propostas devem reunir algumas condies, respeitar alguns princpios. Boas situaes de aprendizagem costumam ser aquelas em que: os alunos precisam pr em jogo tudo o que sabem e pensam sobre o contedo que se quer ensinar; os alunos tm problemas a resolver e decises a tomar em funo do que se propem a produzir; a organizao da tarefa pelo professor garante a mxima circulao de informao possvel; o contedo trabalhado mantm suas caractersticas

de objeto sociocultural real, sem transformar-se em objeto escolar vazio de significado social. certo que nem sempre possvel organizar as atividades escolares considerando simultaneamente esses quatro pressupostos pedaggicos. Isso algo que depende muito do tipo de contedo a ser trabalhado e dos objetivos didticos que orientam a atividade proposta. Mas os princpios acima apontam uma direo e esta direo que convm no perder de vista.

ALUNOS PEM EM JOGO TUDO O QUE SABEM, TM PROBLEMAS A RESOLVER E DECISES A TOMARJuntos, os dois primeiros pressupostos formam o pano de fundo de uma proposta didtica baseada na concepo da aprendizagem como construo. Nesse sentido, "pr em jogo" o conhecimento que se tem no significa simplesmente us-lo, mas arriscar-se: o aprendiz precisa testar suas hipteses e enfrentar contradies, seja entre as prprias hipteses, seja entre o que consegue produzir sozinho e a produo de seus pares, ou entre o que pode produzir e o resultado tido como convencionalmente correto. Ao falar em "problemas a resolver", no se est pensando em problemas matemticos, nem em perguntas para as quais se devem encontrar respostas. De uma perspectiva construtivista, o conhecimento s avana quando o aprendiz tem bons problemas sobre os quais pensar. isso que justifica uma proposta de ensino baseada na ideia de que se aprende resolvendo problemas. Construir situaes que se orientem por esses pressupostos exige do professor competncia para estabelecer os

desafios adequados para seus alunos, que so os que ficam na interseo entre o difcil e o possvel. Se a proposta difcil demais e impossvel de realizar, o desafio no se instaura para o aprendiz, pois o que est posto um problema insolvel no momento. Se a proposta possvel, mas fcil demais, no h nem sequer desafio colocado. Portanto, o desafio do professor armar boas situaes de aprendizagem para os alunos: atividades que representem possibilidades difceis, mas coloquem dificuldades possveis. Para que o aluno possa pr em jogo o que sabe, a escola precisa autoriz-lo e incentiv-lo a acionar seus conhecimentos e experincias anteriores, fazendo uso deles nas atividades escolares. Essa autorizao no pode ser apenas verbalizada pelo professor: importante que ele prepare as atividades de maneira que isso seja de fato requisitado. Certa vez, uma professora que iniciava um trabalho sobre os plos com seus alunos perguntou a eles o que sabiam sobre os pinguins. Foi um alvoroo, mas um menino que tinha se mudado para aquela escola naquele ano no falou nada. A professora ento se dirigiu a ele e perguntou: Joo, voc conhece pinguim? Sim. Ento o que sabe sobre ele? Nada. Como, nada? Algo voc deve saber: como ele , em que tipo de lugar ele mora. que a minha professora no deu pinguim no ano passado.

No tem importncia, aqui ningum ainda estudou isso na escola, mas a gente aprende muitas coisas fora da escola. Eu no, s o que eu sei o que eu vi nos programas da TV Cultura e nos desenhos. A valorizao dos saberes construdos fora das situaes escolares condio para que os alunos tomem conscincia do que e do quanto sabem. Esses, ou quaisquer conhecimentos que tenham, no so necessariamente conscientes, sistematizados ou corre-tos do ponto de vista adulto. Mas certo que eles "esto em jogo" quando se aprende na escola, principalmente quando as propostas de ensino so planejadas para que assim seja. Se, em uma situao de aprendizagem da multiplicao, por exemplo, o professor tem como objetivo que seus alunos faam uso dos saberes que possuem que realizem operaes de forma mais econmica, deve propor atividades em que essas operaes vo se tornando mais complexas, levando-os, de fato, a pr em uso o que sabem, ao mesmo tempo em que observam outras formas de resoluo que no as prprias. O professor pode agrupar os alunos em duplas para participar de um jogo como o descrito a seguir, de maneira que fiquem juntos um aluno que realiza a operao utilizando procedimentos mais econmicos e outro que no o faz. Jogos que colocam em questo a agilidade na resoluo dos clculos requerem, dos que usam estratgias pouco avanadas, um esforo para aprender outras mais rpidas, que permitam ganhar tempo.

JOGO DE CAIXA DE FSFOROS Material: 9 (ou 10) caixinhas de fsforo e palitos. Participantes: 2 alunos ou 2 grupos. Regras: O jogo envolve dois jogadores. Cada um deve pr a mesma quantidade de palitos em cada caixinha. Pode-se usar 2, 3, 4, at 9 caixinhas e s se pode colocar at 9 palitos de fsforo em cada uma. Deve-se preparar escondido a jogada que ser proposta ao oponente e colocar os palitos nas caixinhas, para que ele diga quantos existem no total - este o problema que a ele colocado. Um deles pega, por exemplo, 4 caixinhas e pe 5 palitos em cada. O oponente ter de dizer quantos palitos h ao todo, sem tirar os palitos das caixas para contar. Quem acertar ganha 1 ponto. Pontos: ganha pontos quem conseguir dar a resposta correta. Se o que est na posio de dar a resposta errar, o que props o desafio deve saber a resposta, caso contrrio perde um ponto. Vencedor: ganha o jogo aquele que tiver mais pontos no final de 10 rodadas (ou outra quantidade que se combine previamente). Um dos aspectos interessantes desse jogo que o parceiro que prope o desafio tem sempre que saber o resultado, porque se no souber e tiver que conferir o outro vai ver, j que esto um de frente para o outro. Geralmente, as crianas comeam propondo clculos com nmeros baixos: duas caixinhas com 3 palitos cada uma, 3 caixinhas com 2 palitos cada. medida que vo se soltando, propem coisas cada vez mais complexas. Adoram 9 vezes 9 ou 8 vezes 8. Uma das descobertas que fazem que, as-

sim como os dobros, os "quadrados" tm que ser memorizados, para facilitar. E comeam a construir estratgias de multiplicao: 9 caixinhas com 9 palitos o mesmo que 10 caixinhas com 9 palitos, menos 9 palitos; 8 caixinhas com 9 igual a 81 (que j sabe de cor), menos 9. Dessa forma, as crianas vo compreendendo as propriedades da multiplicao e, consequentemente, ampliando seus conhecimentos matemticos. No entanto, tratar-se de um jogo no garante, em si, que a situao de aprendizagem seja interessante: existem jogos extremamente enfadonhos, outros que no desafiam, por serem muito fceis ou muito difceis. A vantagem que um jogo do tipo acima apresenta para quem est aprendendo multiplicao o fato de configurar uma situao em que a agilidade no uso do tempo de resoluo um fator importante: o jogo fica mais interessante se as estratgias forem rpidas. Isso vai fazendo com que a tabuada seja aprendida de forma inteligente. A limitao do tempo - que sempre uma varivel em qualquer atividade humana - importante na construo de estratgias aritmticas mais avanadas. Quando se restringe o tempo, as estratgias tm de se tornar mais econmicas e isso, por sua vez, exige um aprofundamento em relao natureza da operao que est sendo realizada e s suas propriedades. Em qualquer rea de conhecimento possvel organizar atividades que representem problemas para os alunos e que demandem o uso do que sabem para encontrar solues possveis. Voltando aos princpios: quando dizemos que os alunos devem ter problemas a resolver e decises a tomar em funo do que se propem a produzir, estamos nos referindo a uma questo de natureza ideolgica, que tem enormes consequncias de natureza pedaggica (e vice-versa).

No adianta lamentar que a maioria dos alunos tenha como nico objetivo em sua vida escolar tirar boas notas e passar de ano, pois a escola quem lhes ensina isso. Ensina em atos, quando prope tarefas cujo sentido escapa criana e, frequentemente, ao prprio professor. fundamental que os professores que tm compromisso poltico compreendam que a alienao que educa para a alienao. Quando falo de tarefas cujo sentido escapa criana, no estou me referindo a tarefas chatas, cansativas, e no estou propondo que se transforme a escola em um parque de diverses. Aprender envolve esforo, investimento, e justamente por isso que em cada atividade os alunos devem ter objetivos imediatos de realizao para os quais dirigir o esforo de equacionar problemas e tomar decises. Esses objetivos no precisam emergir do seu interesse, nem devem ser decididos por eles. Propostos pelo professor, constituem-se em parte da prpria estrutura da atividade, de tal forma que os alunos possam se apropriar tanto dos objetivos quanto do produto do seu trabalho. Vou dar um exemplo. A produo de texto, ou, como mais conhecida, a redao, uma atividade presente em qualquer tipo de proposta pedaggica. O que varia o momento em que se considera a criana apta a redigir textos. A discusso sobre se necessrio escrever convencionalmente ou no para comear a produzir textos envolve questes tanto do campo da lingustica (o que um texto) quanto do campo da pedagogia ( necessrio aprender para poder redigir, ou necessrio redigir para poder aprender?). Mas nossa questo nesse momento no essa e sim o sentido do ato de redigir para o aluno. Creio que ningum discordaria que escrever para ser lido completamente diferente de escrever para ser corrigido. So dois sentidos distintos que tornam o que aparen-

temente a mesma atividade, a redao. em duas atividades completamente diferentes. A prpria correo, como uma outra atividade, ganha sentido quando tratada como um esforo de buscar maior legibilidade e permite ao aluno compreender que necessrio escrever dentro de padres convencionais, no para agradar ao professor, e sim para poder ser lido com facilidade. A ORGANIZAO DA TAREFA GARANTE A MXIMA CIRCULAO DE INFORMAO POSSVEL Informao tudo o que de fato "acrescenta". Livros e outros materiais escritos informam, a interveno do professor informa, a observao de como um colega resolve uma situaoproblema informa, as dvidas informam, as dificuldades informam, o prprio objeto com o qual os alunos se debatem para aprender informa. O conhecimento avana quando o aprendiz enfrenta questes sobre as quais ainda no havia parado para pensar. Quando observa como os outros a resolvem e tenta entender a soluo que os outros do. Isso o que justifica a exigncia pedaggica de garantir a mxima circulao de informao possvel na classe. Significa permitir que as perguntas circulem e as respostas tambm, e que cada aluno faa com isso - que informao - o que lhe possvel em cada momento. Para promover a circulao de informaes, preciso que o professor aceite que seu papel o de um planejador de intervenes que favoream a ao do aprendiz sobre o que objeto de seu conhecimento. E que abra mo da posio de ser o nico informante da classe - posio muitas vezes adotada no por autoritarismo, mas para evitar que os alunos errem, pois, quando trocam livremente

informaes, expem uns para os outros suas hipteses, muitas vezes erradas. A preocupao em evitar o contato do aluno com a resposta errada uma marca do modelo empirista de ensino e est relacionada ideia de que ela vai se fixar em sua memria. As crianas frequentemente reproduzem o padro de comportamento que os adultos tm com elas. Em uma classe onde o respeito intelectual com o processo de aprendizagem dos alunos baixo, comum estes se vangloriarem dos seus saberes, gozarem e humilharem os outros quando do respostas inadequadas. Em uma classe onde o professor cultiva a cooperao e o respeito intelectual, os alunos costumam fazer o mesmo com os colegas. Quando o professor proporciona situaes de intercmbio e colaborao na sala de aula, eles podem trocar informaes entre si, discutir de maneira produtiva e solidria e aprender uns com os outros. Para poder explicar para o colega que seu jeito de pensar est incorreto, o aluno precisa formular com preciso e argumentar com clareza - e esta uma situao muito rica para sistematizar seus prprios conhecimentos. Quando se contradiz e percebe isso, pode reorganizar suas ideias e. dessa forma, seu conhecimento avana. Em um ambiente de respeito e solidariedade os alunos aprendem a dar as informaes que julgam importantes para o colega. Em uma sala de aula onde essa prtica adotada, no raro v-los oferecendo informaes parciais uns para os outros e escutar dilogos do tipo: "Agora pensa, para ver se voc descobre", "Repare bem, que voc encontra a resposta". comum, tambm, ver uma criana perguntando coisas do tipo "Com que letra comea padaria?" e tendo como resposta " com a mesma letra do nome do Paulo" - uma resposta bastante diferente de: "D aqui

que eu fao um 'p' para voc", ou "No est vendo que o p'?". E h, claro, a possibilidade de o aluno que perguntou ouvir de seu colega: "Padaria? Comea com 'a'"- e se dar por satisfeito. O medo de que eles aprendam errado, em uma hora dessas, faz com que muitos professores recuem e bloqueiem a circulao de informao. Uma classe , de certa forma, uma microssociedade. E o professor estabelece o seu modo de funcionamento, muito menos por ter montado um declogo na parede - o que muito interessante, desde que seja discutido com os alunos - mas. principalmente, por passar, atravs de seus prprios atos, quais as atitudes que devem ser valorizadas, quais no, que formas de relao so bem aceitas, quais no. A classe incorpora isso tudo porque o professor est no comando e referncia. Os alunos muitas vezes discutem, defendem suas opinies. E a atitude diante do que consideram um no-saber do outro tem muito a ver, tambm, com o temperamento de cada um. H crianas que no discutem, mas no arredam p; outras at discutem, mas acabam cedendo. A questo central no haver ou no discusso, mas sim que cada um consiga formular o seu argumento a favor ou contra uma dada questo. Aprende-se muito quando se est exposto a uma argumentao e aprende-se mais ainda quando se tem que defender um ponto de vista. O esforo de comunicar uma ideia sempre faz avanar a compreenso e altamente produtivo do ponto de vista da aprendizagem. A interao entre os alunos no necessria s porque o intercmbio condio para o convvio social na escola: a interao entre os alunos necessria porque informa a todos os envolvidos e potencializa quase infinitamente a aprendizagem.

O CONTEDO TRABALHADO DEVE MANTER SUAS CARACTERSTICAS DE OBJETO SOCIOCULTURAL REAL Ao longo deste sculo, foram sendo criadas prticas que se instalaram to fortemente no senso comum, a ponto de imaginarmos que sempre existiram, que tudo sempre foi assim. A ideia de que para aprender na escola era necessrio que os materiais fossem produzidos especialmente para esse uso escolar criou uma espcie de muro, que no deixava entrar na escola nada que fosse do mundo externo. No livro Psicanlise da alfabetizao, Bruno Bethelheim mostra, por exemplo, como aconteceu uma involuo dos textos, atravs dos anos, para ensinar a ler em ingls. Em nome de facilitar a aprendizagem, inventaram-se escritos que apresentam a leitura como uma atividade esvaziada de qualquer sentido. No Brasil, esses escritos tambm se constituram em uma marca registrada, principalmente da escolaridade inicial. Isso no quer dizer que a descaracterizao dos contedos seja privilgio das primeiras sries. Mais adiante pode-se encontrar uma outra inveno da escola: a redao escolar, um gnero que no existe em nenhum outro lugar alm da escola. Trata-se, em geral, de um texto sem destinatrio, que nunca ser lido de fato, a no ser pelo professor, com o objetivo exclusivo de corrigi-lo. E no apenas o ensino da lngua portuguesa que est cheio de criaes escolares, que em nada coincidem com as prticas sociais de uso da lngua, objeto de ensino na escola. As demais reas tambm possuem suas invenes especficas, todas elas. Quando um aluno, como os que eu tinha em 1962,

trabalha como vendedor na rua e no consegue resolver problemas matemticos simples na escola, de se pensar o que foi feito do ensino da matemtica que a torna algo to pouco familiar. Claro que a questo que se coloca para os alunos que vo bem nas contas "de rua" diferente: na escola aprende-se a linguagem matemtica escrita, que pouco usada na rua. Mas no se pode deixar de lado esta competncia que o aluno j traz desenvolvida e sobrepor a escolarizao a ela. Toda cincia ou prtica social, quando se converte em objeto de ensino escolar, acaba, inevitavelmente, sofrendo modificaes. A arte diferente da Educao Artstica, o esporte diferente da Educao Fsica, a linguagem diferente do ensino de Lngua Portuguesa, a cincia diferente do ensino de Cincias e assim por diante. Mas preciso cuidado para no produzir invenes pretensamente facilitadoras, que acabam tendo existncia prpria. Cabe escola garantir a aproximao mxima entre o uso social do conhecimento e a forma de trat-lo didaticamente. Pois se o que se pretende que os alunos estabeleam relaes entre o que aprendem e o que vivem, no se pode, com o intuito de facilitar a aprendizagem, introduzir dificuldades. Nesse sentido, o papel da escola criar pontes, e no abismos. No momento em que compreendemos que no preciso simplificar tudo que se oferece aos alunos, que eles podem enfrentar objetos de conhecimento complexos -desde que o professor respeite e apoie a forma pela qual vo penetrando nessa complexidade -, tambm passamos a abrir a escola para o mundo e fazer dela um ponto de partida para a aventura do conhecimento. Nunca o ponto de chegada.

O QUE PROPOR NA SALA DE AULA

O que so: poemas, canes, cantigas de roda, adivinhas, trava-lnguas, parlendas e quadrinhosAs adivinhas, as cantigas de roda. as parlendas. as quadrinhas e os trava-lnguas so antigas manifestaes da cultura popular, universalmente conhecidas e mantidas vivas atravs da tradio oral. So textos que pertencem a uma longa tradio de uso da linguagem para cantar, recitar e brincar. A maioria deles de domnio pblico, ou seja, no se sabe quem os inventou: foram simplesmente passados de boca a boca, das pessoas mais velhas para as pessoas mais novas. Os poemas servem para divertir, emocionar, fazer pensar. Geralmente tm rimas e apresentam diferentes diagramaes. So textos com autoria, isto , geralmente sabemos quem os fez. Todos ns conhecemos poemas, pois so textos de conhecimento popular. So parecidos com as canes, s que no so musicados. Alguns so feitos especialmente para crianas. Os poemas, assim como as quadrinhas e os trava-lnguas, "brincam" com os sons das palavras e com o seu significado.

A poesia nada mais do que uma brincadeira com as palavras. Nessa brincadeira, cada palavra pode e deve significar mais de uma coisa ao mesmo tempo: isso a tambm isso ali. Toda poesia tem que ter uma surpresa. Se no tiver no poesia: papo furado! (J.Paulo Paes) Poema de Jos Paulo Paes CONVITE Poesia brincar com palavras como se brinca com bola, papagaio, pio S que bola, papagaio, pio de tanto brincar se gastam. As palavras no: quanto mais se brinca com elas mais novas ficam. Como a gua do rio que gua sempre nova. Como cada dia que sempre um novo dia. Vamos brincar de poesia?

Cano de Dominguinhos e Anastcia TENHO SEDE Traga-me um copo d'gua Tenho sede E esta sede pode me matar Minha garganta pede Um pouco d'gua E os meus olhos pedem Teu olhar A planta pede chuva Quando quer brotar O cu logo escurece Quando vai chover Meu corao s pede Teu amor Se no me deres Posso at morrer.

As cantigas de roda so textos que servem para brincar e divertir. Com bastante frequncia se encontram associadas a movimentos corporais em brincadeiras infantis.CAI BALO Cai, cai balo cai, cai balo aqui na minha mo. No cai no, no cai no cai na rua do sabo.

As adivinhas servem para divertir e provocar curiosidade. So textos curtos, geralmente encontrados na forma de perguntas: O que , o que ? Quem sou eu? Qual ? Como? Qual a diferena?O que , o que que cai em p e corre deitado? Resposta: A chuva.

Os trava-lnguas brincam com o som, a forma grfica e o significado das palavras. A sonoridade, a cadncia e o ritmo dessas composies encantam adultos e crianas. O grande desafio recit-los sem tropeos na pronncia das palavras.O RATO E A RITA O rato roeu a roupa do rei de Roma, O rato roeu a roupa do rei da Rssia, O rato roeu a roupa do Rodovalho... O rato a roer roa. E a rosa Rita Ramalho do rato a roer se ria.

As parlendas so conjuntos de palavras com arrumao rtmica em forma de verso, que podem rimar ou no. Geralmente envolvem alguma brincadeira, jogo, ou movimento corporal.Boca de forno Forno Tira um bolo Bolo

Se o mestre mandar! Faremos todos! E se no for? Bolo!

As quadrinhas so estrofes de quatro versos, tambm chamadas de quartetos. As rimas so simples, assim como as palavras que fazem parte do seu texto.Roseira, d-me uma rosa; Craveiro, d-me um boto; Menina, d-me um abrao, que eu te dou meu corao.

FUNDAMENTAL LEMBRAR... A presena desses textos na sala de aula favorece a valorizao e a apreciao da cultura popular, assim como o estabelecimento de um vnculo prazeroso com a leitura e a escrita. Quando os alunos ainda no lem e escrevem convencionalmente, atividades de leitura e escrita com esses textos, que pertencem tradio oral e as crianas conhecem de memria, podem possibilitar avanos nas hipteses dos alunos a respeito da lngua escrita. SITUAES DE APRENDIZAGEM A seguir voc encontrar uma lista de situaes de sala de aula que possibilitam a aprendizagem da lngua escrita por meio de atividades de leitura e escrita com textos de tradio oral. As sugestes que seguem servem para trabalhar com

vrios textos: adivinhas, cantigas de roda, parlendas, quadrinhas e trava-lnguas, por isso necessrio que, ao trabalhar cada um deles, voc construa uma sequncia de atividades que considere pertinentes para ensinar os seus alunos. Tirando dvidas As sequncias de atividades so planejadas e orientadas com o objetivo de promover uma aprendizagem especfica e definida. So sequenciadas com inteno de oferecer desafios com graus diferentes de complexidade, para que os alunos possam ir paulatinamente resolvendo problemas a partir de diferentes proposies.Referencial Curricular Nacional para Educao Infantil /MEC.

Leitura pelo professor - importante que o professor faa a leitura de vrios textos do mesmo gnero (adivinhas, cantigas de roda, parlendas, quadrinhas ou trava-lnguas), de modo que os alunos possam se apropriar de um amplo repertrio do texto em questo. Essa atividade de leitura pode ser diria (na hora da chegada, na volta do recreio...), ou semanal. O importante que os alunos tenham um contato frequente com os textos, para que possam conhec-los melhor. Leitura compartilhada (professor e alunos) de textos conhecidos - Em alguns momentos da rotina de sala de aula, o professor pode ler junto com os alunos alguns textos (adivinhas, cantigas de roda, parlendas, quadrinhas ou trava-lnguas) que os alunos conheam bastante, para que possam inferir e antecipar significados durante a leitura. Os textos que sero lidos podem estar afixados na sala em forma de cartaz, escritos na lousa ou impressos no livro do aluno.

J

Leitura coletiva - Ler, cantar, recitar e brincar com textos conhecidos. fundamental que os alunos possam vivenciar na escola situaes em que a leitura esteja vinculada dire-tamente ao desfrute pessoal, descontrao e ao prazer. Leitura dirigida - Propor atividades de leitura em que os alunos tenham de localizar palavras em um texto conhecido. Por exemplo: o professor l o texto inteiro e depois pede aos alunos que localizem uma palavra determinada (ex.: "piano", na parlenda "L em cima do piano"). A inteno que possam utilizar seus conhecimentos sobre a escrita para localizar e ler as palavras selecionadas. Leitura individual - Quando os alunos conhecem bastante os textos, j podem comear a l-los individualmente. E nesse caso importante que tenham objetivos com a atividade de leitura. Por exemplo: ler para escolher a parte de que mais gosta, ler para depois recitar em voz alta para todos etc. Pesquisa de outros textos - Os alunos podem pesquisar outros textos do mesmo gnero em livros, na famlia e na comunidade. Podem, por exemplo, entrevistar pais, avs e amigos a respeito de adivinhas, cantigas de roda, parlendas, quadrinhas ou travalnguas que conhecem; ou procurar textos conhecidos no Livro do aluno. No caso dos poemas, tambm possvel pesquisar autores da comunidade, autores conhecidos no Brasil inteiro etc. Rodas de conversa ou de leitura - Sentar em roda uma boa estratgia para socializar experincias e conhecimentos, pois favorece a troca entre os alunos. A roda de conversa permite identificar o repertrio dos alunos a respeito

do texto que est sendo trabalhado e tambm suas preferncias. A roda de leitura permite compartilhar momentos de prazer e diverso com a leitura. No caso dos trava-ln-guas, interessante propor um concurso de trava-lnguas - falar sem tropear nas palavras. Escrita individual - Escrever segundo suas prprias hipteses fundamental para refletir sobre a forma de escrever as palavras. Por isso importante criar momentos na rotina de sala de aula em que os alunos possam escrever sozinhos. Por exemplo: pedir que os alunos escrevam uma parlenda que conhecem de memria, ou que escrevam a cantiga de roda preferida. Vale ressaltar que, quando propomos a escrita de textos que os alunos conhecem de memria, em que no h um destinatrio especfico, fundamental aceitar as hipteses e no interferir diretamente nas produes: no se deve corrigir, escrever embaixo ou coisa do tipo. Tirando dvidas Nessas atividades de escrita, o aluno que ainda no sabe escrever convencionalmente precisa se esforar para construir procedimentos de anlise e encontrar formas de representar graficamente aquilo que se prope a escrever. por isso que esta uma boa atividade de alfabetizao: havendo informao disponvel e espao para reflexo sobre o sistema de escrita, os alunos constroem os procedimentos de anlise necessrios para que a alfabetizao se realize. Escrita coletiva - O professor escreve na lousa, ou em um cartaz, o texto que os alunos ditam para ele. Nesse caso absolutamente necessrio que todos os alunos conheam bem a cantiga de roda, a parlenda ou a quadrinha que ser

ditada. Durante o processo de escrita, fundamental que o professor discuta com os alunos a forma de escrever as palavras, pois isto favorece a aprendizagem de novos conhecimentos sobre a lngua escrita. Quando for possvel. liste coletivamente os ttulos dos textos de que os alunos mais gostam. Reflexo sobre a escrita - Sempre que for possvel favorea a reflexo dos alunos sobre a escrita, propondo comparaes entre palavras que comeam ou terminam da mesma forma (letras, slabas ou partes das palavras). Aprendendo com outros - A interao com bons modelos fundamental na aprendizagem, por isso importante que os alunos possam compartilhar atos de leitura e observar outras pessoas lendo, recitando ou cantando os textos que esto estudando. Desta forma podem aprender a utilizar uma variedade maior de recursos interpretativos: entonao, pausas, expresses faciais, gestos... O professor pode chamar para a sala de aula alguns familiares ou pessoas da comunidade que gostem de ler, recitar ou cantar para os outros. Tambm possvel levar para a sala de aula gravaes de pessoas lendo, cantando ou recitando. Gravao - Se for possvel, grave em fita cassete a leitura ou recitao dos alunos de seus textos preferidos. Esta fita pode compor o acervo da classe, ou ser um presente para algum especial. Produo de um livro - Seleo dos textos preferidos para a produo de uma coletnea (livro). Cada aluno pode escrever um de seus textos preferidos.

Projetos - As propostas de aprendizagem tambm podem ser organizadas por meio de projetos que proponham aos alunos situaes comunicativas envolvendo a leitura e escrita das adivinhas, cantigas de roda, parlendas, quadrinhas ou travalnguas. Essas propostas de trabalho podem contemplar todas as sries, cada aluno contribuindo de acordo com suas possibilidades. Exemplos: propor a realizao de: um mural /painel de textos para colocar na entrada da escola; um recital ou coral para pessoas da comunidade: um livro de textos, para presentear algum ou para compor a biblioteca da classe. Como os textos produzidos nos projetos tm um leitor real. o professor deve torn-lo o mais legvel possvel, com o mnimo de erros, traduzindo a escrita dos alunos ou revisando as escritas em que s faltam algumas letras. Tirando dvidas Os projetos so excelentes situaes para que os alunos produzam textos de forma contextualizada; alm disso, dependendo de como se organizam, exigem leitura, escuta de leituras, produo de textos orais, estudo, pesquisa ou outras atividades. Podem ser de curta ou mdia durao, envolver ou no outras reas do conhecimento e resultar em diferentes produtos: uma coletnea de textos de um mesmo gnero (poemas, contos de assombrao ou de fadas, lendas etc), um livro sobre um tema pesquisado, uma revista sobre vrios temas estudados, um mural, uma cartilha sobre cuidados com a sade, um jornal mensal, um folheto informativo, um panfleto, cartazes de divulgao de uma festa na escola, um nico cartaz...Parmetros Curriculares Nacionais - Lngua Portuguesa/MEC

EXEMPLOS DE ATIVIDADES Seguem algumas sugestes de atividades que voc poder tomar como modelo para elaborar outras para os seus alunos:

EXEMPLO 1 O QUE E O QUE E1. O PASSARINHO QUE MAIS VIGIA A GENTE? BEMTE-VI PAPAGAIO EMA 2. QUE CRESCE ANTES DE NASCER, E DEPOIS QUE NASCE, PRA DE CRESCER? UVA OVO CLARA 3. QUE SENDO APENAS SEU, USADO MAIS PELOS OUTROS DO QUE POR VOC? P NARIZ NOME 4. QUE TEM P DE PORCO, RABO DE PORCO, TEM ORELHA DE PORCO, MAS NO PORCO NEM PORCA? FEIJOADA ARROZ MACARRO 5. A AVE QUE QUEREMOS NO QUINTAL E NUNCA QUEREMOS NA CABEA? PATO GALO PERIQUITO 6. DE NOITE APARECEM SEM SER CHAMADAS, DE DIA DESAPARECEM SEM QUE NINGUM AS TENHA ROUBADO? SOL ESTRELAS BOLAS

7. QUE MAIS ALTO SENTADO DO QUE EM P? GATO BOLA PIO 8 QUE TEM NA CASA E EST NO PALET? FORRO PANO BOTO 9. QUE VAI AT A PORTA DA CASA MAS NO ENTRA? CALADA CIMENTO PEDRA 10.QUE SE TEM EM CASA E NO SE QUER TER NA CASA? FOGO GS TINTA

VAMOS ADIVINHAR AO CONTRRIO? LEIA AS RESPOSTAS E INVENTE AS PERGUNTAS!

Resposta:

OVO

Resposta:

BULE

Resposta: SOMBRA

EXEMPLO 3NOME:. DATA:

O QUE E O QUE E1. O QUE MUITA GENTE ACABA VIRANDO DEPOIS QUE MORRE. 2. CAIXINHA DE BOM PARECER QUE NENHUM CARPINTEIRO PODE FAZER. 3. TEM BICO MAS NO BICA; TEM ASA, MAS NO VOA. 4. NASCE VERDE, VIVE PRETO E MORRE VERMELHO. NO PODE FALTAR NUM CHURRASCO. 5. DE DIA TEM 4 PS, NOITE TEM 6 E, S VEZES, 8 PS. 6. TEM COROA, MAS NO REI. TEM ESPINHOS E NO PEIXE. 7. QUE A GENTE COMPRA PARA COMER, MAS NO COME.

8. FICA MAIS ALTO QUE UM HOMEM E MAIS BAIXO QUE UMA GALINHA. 9. NA GUA EU NASCI, NA GUA ME CRIEI, MAS SE NA GUA ME JOGAREM, NA GUA MORREREI. 10. QUEM ENTRA NO V. QUEM V NO ENTRA. 1 1. O NAVIO TEM EMBAIXO, A TARTARUGA TEM EM CIMA E OS CAVALOS TM NAS PATAS.

RESPOSTAS BULE O ABACAXI O CARVO NOTCIA A CAMA

CASCA DE AMENDOIM O CHAPU O CASCO TMULO

O GARFO O SAL

EXEMPLO 4POEMA: A FOCA COMPLETE COM AS PALAVRAS QUE FALTAM, CONSULTANDO AS DADAS ABAIXO. QUER VERA . FICAR FELIZ? PR UMA _ NO SEU QUER VERA FOCA BATER E DAR A ELA UMA QUER VER A FOCA FAZER UMA E ESPETAR ELANARIZ - BARRIGA - PALMINHAS - FOCA - SARDINHA - BOLA BRIGA - BEM NA BARRIGA.

EXEMPLO 5VAMOS VER QUEM ADIVINHA