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Alfabetização: o método em questão ESTE CAPÍTULO TEM OS SEGUINTES OBJETIVOS: • evidenciar que o método de alfabetização sempre foi uma questão na história do ensino inicial da língua escrita; • caracterizar a questão atual do método no processo de alfabetização; • sugerir as principais causas para o fato de métodos de alfabetização constituírem uma questão; • apresentar facetas da aprendizagem inicial da língua escrita e jus- tificar o foco deste livro na faceta linguística dessa aprendizagem, a que se reserva a designação de alfabetização; • distinguir aquisição da fala de aprendizagem da escrita; • caracterizar a aprendizagem inicial da língua escrita como apren- dizagem de um sistema de representação e um sistema notacional; • relativizar a importância do método, que não pode ser considerado como A questão, na alfabetização.

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Alfabetização: o método em questão

ESTE CAPÍTULO TEM OS SEGUINTES OBJETIVOS:

• evidenciarqueométododealfabetizaçãosemprefoiumaquestãonahistóriadoensinoinicialdalínguaescrita;

• caracterizaraquestão atualdométodonoprocessodealfabetização;• sugerirasprincipaiscausasparaofatodemétodosdealfabetização

constituíremumaquestão;• apresentarfacetasdaaprendizageminicialdalínguaescritaejus-

tificarofocodestelivronafaceta linguísticadessaaprendizagem,aquesereservaadesignaçãodealfabetização;

• distinguiraquisição da faladeaprendizagem da escrita;• caracterizaraaprendizageminicialdalínguaescritacomoapren-

dizagemdeumsistema de representaçãoeumsistema notacional;• relativizaraimportânciadométodo,quenãopodeserconsiderado

comoAquestão,naalfabetização.

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UMA qUESTãO hISTórICA

Pretende-seque,àpalavraquestão,centralnotítulodestecapítulocomotambémnotítulodestelivro,oleitoratribuaoduplosentidoqueelatemnalíngua:deumlado,questãocomoassunto a discutir,ou,maisqueisso,dificuldade a resolver–métodosdealfabetizaçãocomotemaaesclarecer,problemaadeslindar;deoutro,questãocomocontrovérsia, polêmica–mé-todosdealfabetizaçãocomoobjetodedivergências,desacordos.

Poroutrolado,considerandoaambiguidadequetemcontaminadoapalavramétodo,quandoselheacrescentaocomplementode alfabetização–frequentementemanuaisdidáticos,cartilhas,artefatospedagógicosrecebeminadequadamenteadenominaçãodemétodos de alfabetização–,convémdesde já esclarecer que aqui se entendepormétodo de alfabetização umconjuntodeprocedimentosque,fundamentadosemteoriaseprincípios,orientemaaprendizagem inicial da leitura e da escrita,queéoquecomu-mentesedenominaalfabetização.1

Esclarecidosostermosdafrasequedátítuloaestecapítulo,pode-seagoraafirmarqueaquestão dos métodos de alfabetização,emumeoutrodosdoissentidosdapalavraquestão,anteriormenteindicados,éhistórica,nãoéumaocorrênciaatual.Estevepresente,emnossopaís,aolongodahistóriadosmétodosdealfabetização,pelomenosdesdeasdécadasfinaisdoséculoxix,momentoemquecomeçaaconsolidar-seumsistemapúblicodeensino,trazendoanecessidadedeimplementaçãodeumprocessodeescolarizaçãoquepropiciasseàscriançasodomíniodaleituraedaescri-ta.Comoconsequênciadaindefiniçãodecomogarantiressedomínio,ométodoparaaaprendizageminicialdalínguaescritatornou-se,jáentão,umaquestão,noprimeirosentidodapalavra–umadificuldadearesolver;ecomoconsequênciadediferentesrespostassugeridasparaessadificuldadeométodotornou-se,tambémjáentão,umaquestão,nosegundosentidodapalavra–,umobjetodecontrovérsiasepolêmicas.Umaquestãoqueatraves-souoséculoxxeaindapersiste,recebendo,aolongodotempo,sucessivas

1 Apenasnestecapítulo,emvirtudedesuaperspectivapredominantementehistórica,usa-seemdeterminadoscontextosapalavra“alfabetização”paradesignaroprocessoaquesepreferedaradesignaçãomaisamplade“aprendizageminicialdalínguaescrita”;comoseveráadiante,reserva-se,nestelivro,apalavraalfabetizaçãoparadesignarumsódoscomponentesdessaaprendizagem,ocomponentequeéotemacentraldestelivro.

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pretensas“soluções”,emummovimento,analisadoporMortatti(2000),de contínua alternância entre “inovadores” e “tradicionais”: um “novo”métodoéproposto,emseguidaécriticadoenegado,substituídoporumoutro“novo”quequalificaoanteriorde“tradicional”;esteoutro“novo”éporsuaveznegadoesubstituídopormaisum“novo”que,algumasvezes,éapenasoretornodeummétodoquesetornara“tradicional”erenascecomo“novo”,eassimsucessivamente.2

Essemovimentodealternânciametodológicateveinícioemnossopaís,comoditoanteriormente,apartirdasúltimasdécadasdoséculoxix.3Antesdisso,aquestãonãoerarelevante:considerava-sequeaprenderalereescreverdependia,fundamentalmente,deaprenderasletras,maisespecificamente,osnomesdasletras.Aprendidooalfabeto,combinavam-seconsoantesevogais,formandosílabas,parafinalmentechegarapalavraseafrases.Eraométododasoletração,comapoionaschamadasCartas de AbC,nosabecedários,nossilabários,nob + a = ba.Umaaprendizagemcentradanagrafia,ignorandoasrelaçõesoralidade-escrita,fonemas-grafemas,comoseasletrasfossemossonsdalíngua,quando,naverdade,representamossonsdalíngua.

Noperíodocompreendidoentreasúltimasdécadasdoséculoxixeoiníciodoséculoxx,duasviasdeevoluçãoseabriramnocampodosméto-dosparaoensinoinicialdaleituraedaescrita,ealternaram-senapráticapedagógicaatéosanos1980.

Porumlado,foi-seprogressivamentedandoprioridadeaovalorsonorodasletrasesílabas,demodoque,donomedasletras,istoé,dasoletração,avançou-separamétodosfônicosesilábicos–métodosquereceberama

2 Éimportantenãoesquecerqueessaalternânciahistóricadepropostasmetodológicasparaaalfabetizaçãonãoocorreu,enãoocorre,apenasnoBrasil,maspodeseridentificadaemmuitosoutrospaíses.Emblemático,nessesentido,éoartigoemqueStevenStahlanalisaomovimentodeexpansãoedeclíniodapropostadenominadawhole language,nosEstadosUnidos,artigosignificativamentedenominado“WhyInnovationsComeandGo(andMostlyGo):TheCaseofWholeLanguage”(Stahl,1999).Sobresucessoefracassodeinovações,naFrança,vertambémChartier(2000).Poreconomiadetexto,limitamo-nosaquiamencionarapenasomovimentobrasileirodasinovaçõesquevêmevão,esobretudovão...

3 Nãosepretende,aqui,traçarumahistóriadosmétodosdealfabetização,oquefugiriaaoobjetivodestelivro,quebuscadiscutiraquestão atualdosmétodosdealfabetização–paraisso,procura-seapenascontextualizaraquestãoatualpormeiodeumabreverecapitulaçãodassucessivasquestõesdemétodo,nopercursodaalfa-betização,noBrasil;paraumahistóriadosmétodosdealfabetizaçãoemnossopaís,remete-seàjácitadaobradeMortatti(2000),aPfrommNeto,RosamilhaeDib(1974),eaFrade(2007).AobradeBraslavsky(1992),emboranãosecaracterizeporumaperspectivahistórica,éumaanálisedaquestãodosmétodosnaAméricaLatina,atéoiníciodosanos1990.

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denominaçãogenéricade sintéticos.Esta via é evidenciadanas seguintespalavrasdeHilárioRibeiro,autordaCartilha Nacional,escritanosanos1880,comediçõessucessivasatéosanos1930:“Comoaartedaleituraéaanálisedafala,levemosdesdelogooalunoaconhecerosvaloresfônicosdasletras,porqueécomovalorquehádelerenãocomonomedelas”(Ribeiro,1936,apudMortatti,2000:54).

Poroutrolado,passou-seaconsiderararealidadepsicológicadacriança,anecessidadedetornaraaprendizagemsignificativae,paraisso,partirdacompreensãodapalavraescrita,paradelachegaraovalorsonorodesílabasegrafemas,dandoorigemaosmétodosquereceberamadenominaçãogenéricadeanalíticos.Entreeles,destacou-seométodo da palavração,introduzidonoBrasiltambémnosanos1880,pelaCartilha MaternaldeJoãodeDeus,dequeSilvaJardim,eminenteeducadorpaulistanasúltimasdécadasdoséculoxixeprimeirasdoséculoxx,foiograndedivulgador.PalavrasdeSilvaJardim,emconferênciade1884,evidenciamestasegundaviadeevoluçãonocampodosmétodosdealfabetização:

Éfictíciaasoletração,emquesereúnemnomesabsurdosexigindoemseguidavalores;transitóriaasilabação,emquesereúnemsílabas,isola-damente,paradepoislerapalavra;definitivaapalavração,emqueselêdesde logoapalavra[...].Comoaprendemosafalar?Falandopalavras;comoaprenderemosaler?Éclaroquelendoessasmesmaspalavras.(SilvaJardim,1884,apudMortatti,2000:48)

Dessasduasviasdeevolução,nasceuacontrovérsia–aquestão–,queseestendeuatéosanos1980,entremétodossintéticosemétodosanalíticos,controvérsiaqueseconcretizouemummovimentopendular:4ora aopçãopeloprincípiodasíntese,segundooqualaaprendizagemdalínguaescritadevepartirdasunidadesmenoresdalíngua–dosfonemas,dassílabas–em

4 Ametáforadomovimentopendularpararepresentarassucessivasmudançasdemetodologiasaolongodahistórianãosódaalfabetização,mastambémdaeducaçãocomoumtodo,éreiteradamenteusadanabibliografiasobreotema,particularmentenadelínguainglesa;foioriginalmentebuscadaemSlavin(1989),quepropõequeomovimento pendularemeducaçãosedeveaofatodeaspropostasseremadotadasantesqueresultadosdepesquisaasfundamentem.Sobreametáforadomovimento pendularemeducação,vertambémRobinson,BakereClegg(1998).

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direçãoàsunidadesmaiores–àpalavra,àfrase,aotexto(métodofônico,métodosilábico);oraaopçãopeloprincípiodaanálise,segundooqualessaaprendizagemdeve,aocontrário,partirdasunidadesmaioreseportadorasdesentido–apalavra,afrase,otexto–emdireçãoàsunidadesmenores(métododapalavração,métododasentenciação,métodoglobal).5Umaououtraorientaçãopredominou,emdiferentesmomentos,aolongodequasetodooséculoxx–atéosanos1980.

Indiferentemente, porém, da orientação adotada, o objetivo, tantoemmétodossintéticosquantoemmétodosanalíticos,é,limitadamente,aaprendizagemdosistemaalfabético-ortográficodaescrita.6Emborasepossaidentificar,nosmétodosanalíticos,aintençãodepartirtambémdosignifi-cado,dacompreensão,sejanoníveldotexto(métodoglobal),sejanoníveldapalavraoudasentença(métododapalavração,métododasentenciação),estes–textos,palavras,sentenças–sãopostosaserviçodaaprendizagemdosistemadeescrita:palavrassãointencionalmenteselecionadasparaserviràsuadecomposiçãoemsílabasefonemas,sentençasetextossãoartificialmenteconstruídos,comrígidocontroleléxicoemorfossintático,paraserviràsuadecomposiçãoempalavras,sílabas,fonemas.

Assim,nasduasorientações,odomíniodosistemadeescritaéconside-radocondiçãoepré-requisitoparaqueacriançadesenvolvahabilidadesdeusodaleituraedaescrita,lendoeproduzindotextosreais,istoé:primeiro,éprecisoaprenderalereaescrever,verbosnestaetapaconsideradosintran-sitivos,parasódepoisdevencidaessaetapatornaressesverbostransitivos,atribuir-lhes complementos: ler textos, livros, escreverhistórias, cartas...(Soares,2005).Tambémopressuposto,nasduasorientações,éomesmo–odequeacriança,paraaprenderosistemadeescrita,dependedeestímulosexternoscuidadosamenteselecionadosouartificialmenteconstruídoscomoúnicofimdelevá-laaapropriar-sedatecnologiadaescrita.Pode-seafirmar

5 Essasduaspropostasmetodológicascorrespondem,naPsicologiaCognitiva,aosdoismodelosdeprocessamentodaleituradenominadosbottom-upetop-down(debaixoparacima,decimaparabaixo).

6 Usam-se,nesteparágrafo,osverbosnotempopresenteporque,naverdade,oquenelesediznãosetornouaindapassado:emboraumaperspectivahistórica,quenestetópicoseadota,permitaidentificar,aolongodotempo,umirevirentremétodossintéticosemétodosanalíticos,essemovimentotemsidofrequentementeignoradonaaçãodocentenassalasdeaula,onde,independentementedodiscursopedagógicoouderecomendaçõesoficiais,métodossintéticosoumétodosanalíticospersistem,oumesmosefundem,gerandoométodo misto,tambémdenominadométodo eclético.

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que,emboratenhamsidoconsideradosopostoseatéincompatíveis,métodossintéticosemétodosanalíticosinserem-senomesmoparadigmapedagógicoenomesmoparadigmapsicológico:oassociacionismo.7

Assimsendo,pode-seafirmarquearupturametodológicaentreaso-letraçãoeessesmétodos,ocorridanofinaldoséculoxix,foiumaprimeiramudançadeparadigmanaáreadaalfabetização;umasegundaemaisradicalmudançadeparadigmaocorrequaseumséculodepois,emmeadosdosanos1980,comosurgimentodoparadigmacognitivista,naversãodaepistemo-logiagenéticadePiaget,queaquisedifundiunaáreadaalfabetizaçãosobadiscutíveldenominaçãodeconstrutivismo,8paradigmaintroduzidoedivul-gadonoBrasilsobretudopelaobradeEmiliaFerreiroesuaconcretizaçãoemprogramasdeformaçãodeprofessoreseemdocumentosdeorientaçãopedagógicaemetodológica.

Onovoparadigmaopôs-seaosmétodossintéticoseanalíticos,atéentãovistoscomoantagônicoseconcorrentes,questionandosuascarac-terísticascomuns:emambos,oensinoprevalecesobreaaprendizageme,consequentemente,aalfabetizaçãosereduzaumaescolhademétodo;ambostêmcomopressupostoqueacriançaaprendepor“estratégiasper-ceptivas”,emboraosmétodossintéticoscoloquemofoconapercepçãoauditiva–percepçãodascorrespondências entreooral eoescrito–,enquantoosmétodosanalíticoscolocamofoconapercepçãovisual–per-cepçãodascorrespondênciasentreoescritoeooral–;ambosconsideramacriançacomoumaprendizpassivoquerecebeoconhecimentoquelheétransmitidopormeiodométodoedematerialescrito–cartilhasoupré-livros–elaboradosintencionalmenteparaatenderaométodo(cf.FerreiroeTeberosky,1986,capítulo1).

7 ÀmesmaafirmaçãochegamAdamseOsborn(2006)aoanalisarodebateentreowords-first groupeophonics-first group,entreosanos1920e1960,nosEstadosUnidos:aquestãonãoeraseserianecessárioensinarasrelações fonemas-grafemas,masquandoecomodeveriamserensinadas:“Thequestionwasnotwhetherphonicsshouldbelearned,butwhenandhow”(p.86).

8 Qualifica-secomo“discutível”adenominaçãoconstrutivismonaáreadaalfabetização,edoensinoemgeral,porqueotermorefere-se,maisamplamente,aumateoriadagêneseedodesenvolvimentodoconhecimento,ou,maisrestritamente,aumateoriadaaprendizagem.Usá-loparareferir-seaumaconcepçãodoprocessodealfabetização,comoocorreentrenós,temconduzidoaequívocoscomoodesuporqueconstrutivismoéumateoriadaalfabetizaçãoou,maisgraveainda,queéummétododealfabetização.Noentanto,respeitandoaamplaapropriaçãodessadenominaçãopelaáreadaalfabetização,noBrasil,elaéutilizada,nestelivro,comosentidoquelhevemsendoatribuídonessaárea.

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Fundamentando-seemobjetivosepressupostosradicalmentediferentes,noquadrodamatrizteóricadocognitivismopiagetiano,onovoparadig-maafirma,aocontrário,aprevalênciadaaprendizagemsobreoensino,deslocandoofocodoprofessorparaoaprendiz;esclarecequeoprocessodeaprendizagemdalínguaescritapelacriançasedáporumaconstruçãoprogressivadoprincípioalfabético,doconceitodelínguaescritacomoumsistemaderepresentaçãodossonsdafalaporsinaisgráficos;propõequeseproporcioneàcriançaoportunidadesparaqueconstruaesseprincípioeesseconceitopormeiodeinteraçãocommateriaisreaisdeleituraedeescrita– textosdediferentesgêneroseemdiferentesportadores: textos“paraler”,enãotextosartificialmenteelaborados“paraaprenderaler”,apagando-se,assim,adistinção,quemétodossintéticoseanalíticosassu-mem,entreaprendizagemdosistemadeescritaepráticasdeleituraedeescrita(FerreiroeTeberosky,1986;Ferreiro,1985).

Nessequadrodedeslocamentodofocoeducativo–do(a)alfabetizador(a)9esuaopçãopordeterminadomododeensinarparaacriançaeseuprocessopeculiardeaprendizagem–,ométododealfabetização,talcomoatéentãoentendido, se torna irrelevante.Oconstrutivismonãopropõeumnovo

9 Convémfundamentaraopçãofeita,nestelivro,pelousodaduplaformamasculino/femininoparadesignarprofissionaisna áreadaalfabetização.Se se tomasse comocritério a realidade,queevidencia significativapredominância,emnossopaís,demulheresnaalfabetização,ousodofeminino–a alfabetizadora–seriajustificável,alternativaque,aliás,temsidoadotadacomcertafrequênciaemtrabalhosacadêmicos.Poroutrolado,dopontodevistalinguístico,seriacorreto,aocontrário,ousodaformamasculina–o alfabetizador,já que a norma gramatical considera, no caso de referência a grupodepessoas dos dois sexos, comonadesignaçãodeprofissões,aformamasculinacomoumgêneronão marcado,neutro, ummasculinogenérico,comindependênciaentreogênerogramaticaleosexo.Entretanto,assume-seaquiqueaquestãonãopodeserconsideradaapenasdopontodevistadarealidadeoudopontodevistalinguístico,dadoograndepesodeaspectospsicológicosesociais.Éque,nousodiscursivodalíngua,estereótiposepreconceitosculturaissesobrepõemànormagramatical:ousogramaticalmentecorretodomasculinogenériconaverdadeconstróirepresentaçõescognitivasesociaisqueatribuemespecificidadeaogenérico,associandoogênerogramaticalaosexo,demodoque,aoler,emumtexto,o alfabetizador,asmulherespodemperderavisibilidadeesesentirem,decertaforma,excluídas.Inversamente,podeocorrerqueaoler,emumtexto,a alfabetizadora,oshomenssintam-seexcluídosoumarginalizados(sobretudoporquejásãominorianaárea)–nestelivro,pretende-seevitarambasasalternativas.Essasconsideraçõessefundamentamempesquisasdesenvolvidasdesdeosanos1970,estimuladaspelomovimentofeminista,sobreosefeitosdochamado“androcentrismo”dalíngua.Ver,porexemplo,aspesquisasrecentes:Chatard,GuimondeMartinot(2005);Gygax(2007);Gygaxetal.(2009).Noentanto,comoaduplaformamasculino/feminino,seusadanestelivronatotalidadedoscasosemqueelacaberia(porexemplo,professor(a),autor(a),pesquisador(a),leitor(a),aluno(a)etc.)podedificultaraleitura,emvirtudedeserelaaindapoucofamiliar,eassimconstituirobstáculoaumaleiturafluente(emboraGygax,2007,contesteessapossibilidade),optou-seporsóusá-lanadesignaçãodaprofissãoqueéotemacentraldestelivro–alfabetizador(a).Nosdemaiscasos,mantém-seomasculinogenérico.

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método,masumanovafundamentaçãoteóricaeconceitualdoprocessodealfabetizaçãoedeseuobjeto,alínguaescrita.Nessenovoquadroteóricoeconceitual,osmétodossintéticoseanalíticos,agoraqualificadoscomo“tradicionais”,sãorejeitados,porcontrariaremtantooprocessopsicoge-néticodeaprendizagemdacriançaquantoapróprianaturezadoobjetodessaaprendizagem,alínguaescrita.Assim,noconstrutivismo,ofocoétransferidodeumaaçãodocentedeterminadaporummétodopreconcebidoparaumapráticapedagógicadeestímulo,acompanhamentoeorientaçãodaaprendizagem,respeitadasaspeculiaridadesdoprocessodecadacriança,oquetornainadmissívelummétodoúnicoepredefinido.

Essamudançadeparadigma,consideradauma“revoluçãoconceitual”naalfabetização(FerreiroeTeberosky,1986:21;Ferreiro,1985:41),alteraomovimentopendular:opêndulopassaadeslocar-senãomaisentremétodossintéticos,deumlado,emétodosanalíticos,deoutro,masentreambos,qualificadosde“tradicionais”,deumlado,ea“desmetodização”propostapeloconstrutivismo,deoutro,entendendo-sepor“desmetodização”ades-valorizaçãodométodocomoelementoessencialedeterminantenoprocessodealfabetização.Équeacríticaveementeaqueoconstrutivismosubmeteuosmétodosanalíticosesintéticosresultounasuposiçãodequemétodosdealfabetização,aquesepassouaatribuirumaconotaçãonegativa,afetariamnegativamenteoprocessodeaprendizageminicialdalínguaescrita.Ouseja:como,noparadigmaanterior,aaprendizagemdaleituraedaescritaeraconsideradaumproblemaessencialmentemetodológico,osmétodosqueesseparadigmagerou–métodosanalíticosesintéticos–contaminaramoconceitodemétododealfabetização,demodoquearejeiçãoaelessetornouumarejeiçãoamétodoemalfabetização,deformagenérica.

Oconstrutivismo, embora comasdiferentes enem sempre corretasinterpretaçõesqueaeleforamdadasnapráticadocente,foihegemôniconaáreadaalfabetização,particularmentenodiscursoacadêmicoenasorienta-çõescurriculares(cf.Parâmetros Curriculares Nacionais,1997),atéosanosiniciaisdoséculoemcurso,quandoaquestão do métodoreapareceemaisumavezseenfrentaummomentodecontrovérsiasemtornodoscaminhosadequadosparaconduzircomsucessooprocessodealfabetização.

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A qUESTãO ATUAL

NahistóriadaalfabetizaçãonoBrasil,oprincipalpropulsordasperió-dicasmudançasdeparadigmaedeconcepçãodemétodostemsidooper-sistentefracassodaescolaemlevarascriançasaodomíniodalínguaescrita.

Atéosanos1980,via-senométodoasoluçãoparaofracassonaalfa-betização,nesseperíodosempreconcentradonaclasseousérieinicialdoensinofundamental,traduzindo-seemaltosíndicesdereprovação,repetên-cia,evasão.Comoofracassopersistiaadespeitodométodoemuso,acadamomentoumnovométodoeratentado,eassimopêndulooscilava:oraumaououtramodalidadedemétodosintético,oraumaououtramodalidadedemétodoanalítico:silábico,palavração,fônico,sentenciação,global...

Nosanos1980,o construtivismo surgecomo, ele também,umaal-ternativadecombateaofracassoemalfabetização.Emborareconhecendoque as causas do fracasso eram sobretudodenatureza social (Ferreiro eTeberosky,1986:17-8),propunha-sequeasolução,paracombaterosaltosíndicesdereprovaçãonaaprendizageminicialdalínguaescrita,serianãoumnovométodo,masumanovaconcepçãodoprocessodeaprendizagemdalínguaescrita,“tendocomofimúltimoodecontribuirnasoluçãodosproblemasdeaprendizagemdalectoescritanaAméricaLatina,eodeevitarqueosistemaescolarcontinueproduzindofuturosanalfabetos”(FerreiroeTeberosky,1986:32).

Entretanto,nosanosiniciaisdoséculoxxi,apesardahegemoniaexercidapeloconstrutivismonasduasdécadasanteriores,ofracassoemalfabetiza-çãopersiste,emboraessefracasso,agora,configure-sedeformadiferente:enquanto,noperíodoanterior,o fracasso, reveladopormeio sobretudodeavaliações internas à escola, concentrava-sena série inicialdoensinofundamental,aentãogeralmentechamada“classedealfabetização”,ofra-cassonadécadainicialdoséculoxxiédenunciadoporavaliaçõesexternasàescola–avaliaçõesestaduais,nacionaiseatéinternacionais–,ejánãoseconcentranasérieinicialdaescolarização,masespraia-seaolongodetodooensinofundamental,chegandomesmoaoensinomédio,traduzidoemaltosíndicesdeprecárioounulodomíniodalínguaescrita,evidenciandograndescontingentesdealunosnãoalfabetizadosousemialfabetizadosde-

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poisdequatro,seis,oitoanosdeescolarização.10Nessecontexto,torna-sesignificativoofatodeoPlanoNacionaldeEducação,aprovadopeloCon-gressoNacionalem2014,terestabelecido,comoumadesuas20metas,“alfabetizartodasascrianças,nomáximo,atéofinaldo3º (terceiro)anodoensinofundamental”.

Maisumavez,vive-seummomentodeconstataçãodofracassonaal-fabetizaçãoe,comosempreaconteceuaolongodotempo,maisumavezométododealfabetizaçãoseconfiguracomoumaquestão:apontadocomoresponsávelpelofracasso,torna-seumadificuldade a resolver–umdossen-tidosdapalavraquestão–e,emvirtudedasdivergentessoluçõespropostasparavenceressadificuldade,torna-setambémobjetodepolêmica–ooutrosentidodapalavraquestão.Ouseja:nosanosiniciaisdoséculoxxireapareceadiscussão sobremétodosnaalfabetização, relativamentemarginalizadaduranteasduasúltimasdécadasdoséculoxx,eenfrentam-sedenovopolê-micas,agoramaiscomplexas:nãoapenasdivergênciasemtornodediferentesmétodosdealfabetização,mastambém,etalvezsobretudo,dúvidassobreapossibilidadeouanecessidadedemétodoparaalfabetizar–ummovimentoderecuperaçãodométodoemconflitocomatendênciaàdesmetodização,consequênciadainterpretaçãoquesedeuaoconstrutivismo.11

10 Éprecisolembrarqueosbaixosníveisdeapropriaçãodalínguaescritaquevêmsendoevidenciadosaolongodetodooensinobásiconãopodemseratribuídosapenasaproblemasnaáreademétodosdealfabetização,jáquesedevemaumconjuntodefatores,entreosquaisosmaisevidentessãoainadequadacompreensãodaorganizaçãodoensinoemcicloseumequivocadoconceitodeprogressãocontinuada,consideradaalterna-tivaàreprovaçãoeàrepetência.Maisadiante,nestecapítulo,olugardométodonoconjuntodefatoresquedeterminamosresultadosdoprocessodealfabetizaçãoserádiscutido.

11 Embora sepretenda,neste capítulo, focalizar a questãodosmétodosde alfabetização apenasno brasil, éprecisomencionarqueessaquestãonãoéumaexclusividadebrasileira:tambémemoutrospaísesmétodosdealfabetizaçãovêmconstituindoumaquestão,eumaquestãocomasmesmascaracterísticasidentificadasnabrasileira.NosEstadosUnidosenaFrança,paracitarapenaspaísesquesempreexerceraminfluênciasobreoBrasilnaáreadaeducação,identifica-seomesmomovimentopendularentremétodosdealfabetização:desdeofinaldoséculoxixeaolongodoséculoxx,opêndulooscilou,nessespaíses,comoocorreunoBrasil,entremétodossintéticosemétodosanalíticos;métodosalternaram-se,emummomentoconsiderados“inovadores”,emoutromomentoconsiderados“tradicionais”;etambémnessespaíses,comonoBrasil,aprimeiradécadadoséculoxxienfrentadificuldadesepolêmicasarespeitodosmétodosdealfabetização.ParaahistóriadosmétodosdealfabetizaçãonaFrança,sugerem-seKrick,ReichstadteTerrail(2007),ChartiereHébrard(2001);comfocoempaísesdelínguainglesa,obranãorecente,masconsiderada“clássica”,éMathews(1966);umaanáliseatualizadapodeserencontradaemAdams(1990;1999),Stahl(2006)eSadoski(2004);emAlexandereFox(2004),encontra-seumaanáliseexaustivadepesquisaepráticadaalfabetizaçãonasegundametadedoséculoxx,nosEstadosUnidos,emquepodemseridentificadascoincidênciascomahistóriadaalfabetizaçãonoBrasil,nesseperíodo.

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MéTOdOS dE ALfABETIzAçãO – SEMPrE UMA questão: POr qUê?

Emboranãosepossaatribuiraumasócausaapersistênciadeproblemasecontrovérsiasemtornodemétodosdealfabetização,jáqueváriosfatoresrelacionam-secomaquestão,umaexplicaçãoprevalecesobreoutraspossíveis:métodosdealfabetizaçãotêmsidosempreumaquestãoporquederivamdeconcepçõesdiferentessobreoobjetodaalfabetização,istoé,sobreo queseensinaquandoseensinaalínguaescrita.

Umaprimeiracausadedivergênciasquantoaoobjetodaalfabetizaçãoéamaioroumenorimportânciaatribuída,emdiferentesmétodos,aumaououtradasduasfunçõesdalínguaescrita:naetapadaaprendizageminicialdalínguaescrita,ensina-sealerouensina-seaescrever?12

Historicamente,aleiturafoioobjetoprivilegiadodaalfabetização,oqueserevelanareferênciafrequente,atéosanos1980,a“métodosde leitura”ea“livrosde leitura”,independentementedopressupostopedagógicoadotado:métodossintéticosouanalíticos,predominantesnesseperíodo,privilegiavamaleitura,limitandoaescritaàcópiaouaoditado;aescritareal,autêntica,istoé,aproduçãodetextos,eraconsideradacomoposterioraodomíniodaleitura,oucomodecorrêncianaturaldessedomínio.Confirmandoessatendência, a bibliografia sobre a aprendizagem inicial da língua escrita,durantequasetodooséculoxx, refere-sepredominantementeaoensinoda leitura;atémesmonasdefiniçõesdedicionáriosparatermosrelativosàalfabetizaçãoaleituraéprivilegiada:Maciel(2002),analisandodefiniçõesdecartilhaemdiferentesdicionários,evidenciaque,emtodoseles,atribui-seàcartilhaafunçãodeensinara ler.13

12 Obinômioleitura-escritaéaquianalisadosobopontodevistadosmétodosdealfabetizaçãoedeumaperspectivahistórica.Emoutroscapítulosdestelivroessebinômioseráanalisadosobopontodevistadodesenvolvimentodacriançaedosprocessosdeaprendizagem(nosegundocapítulo),esobasperspectivasfonológicaecognitiva(sextoesétimocapítulos).

13 Esteprivilégioàleituranãoéfenômenoapenasbrasileiro.Bastalembrarque,nosEstadosUnidos,denomina-sereading–leitura–aaprendizageminicialdalínguaescrita;tambémnaFrançaareferênciaaessaaprendizagemsefazcomaexpressão“apprendre à lire”.FarnaneDahl(2003)mostram,comdadosdoEducational Resource Information Center(Eric),quemesmonapesquisaacadêmicaseverificaapredominânciadointeressepelaleituraemrelaçãoàescrita;segundoessasautoras,entreos950.000artigosedocumentosqueencontraramcatalogadosnessebancodedados,116.621tinhamaleituracomotema,enquantoapenas63.480,ouseja,poucomaisqueametadedaproduçãosobreleitura,tinhamaescritacomotema.

26 • Alfabetização

Éapartirdemeadosdosanos1980queoprivilégioatéentãoatribuídoàleitura,nosmétodosdealfabetização,torna-seumaquestão.14NoBrasil,comodecorrênciadamudançadeparadigmaqueoconstrutivismorepre-sentou,aescrita,paraalémdacópia,doditado,istoé,aescritaentendidacomoproduçãotextual,passaadesempenharpapelimportantenaalfabe-tização.Aocontráriodosmétodossintéticoseanalíticos,querejeitavamaescritanãocontrolada–acriançasódeveriaescreverpalavrasquejáhouvesseaprendidoaler–,oconstrutivismoenfatizouopapeldaescrita,sobretudodeumaescrita“espontânea”ou“inventada”,15consideradacomoprocessopormeiodoqualacriançaseapropriariadosistemaalfabéticoedasconvençõesda escrita, tornandodesnecessárioo ensinoexplícito e sistemáticodessesistemaedessasconvenções;tambémaocontráriodosmétodossintéticoseanalíticos,queadiavamoconvíviodacriançacomosusosefunçõesdalínguaescrita,propôs,aolongomesmodoprocessodeaprendizageminicialdalínguaescrita,aescritadetextosdediferentesgêneros.

Umasegundacausadedivergênciasquantoaoobjetodaalfabetizaçãoéaintrodução,naáreadaculturadoescrito,doconceitodeletramento.Nosanos1980,oslimitesdoensinoeaprendizagemdalínguaescritaseampliam:emdecorrênciadodesenvolvimentosocial,cultural,econômi-co,políticoemnossopaís,duranteoséculoxx,ganhamcadavezmaiorvisibilidade asmuitas e variadas demandas de leitura e de escrita naspráticassociaiseprofissionais,gerandoanecessidadedemaisavançadasediferenciadashabilidadesdeleituraedeescrita(Soares,1986),oqueexigiu, consequentemente, reformulação de objetivos e introdução denovaspráticasnoensinodalínguaescritanaescola,dequeéexemploagrandeênfasequesepassaaatribuiraodesenvolvimentodehabilidadesdeleituraedeescritadeumagamaamplaevariadadegênerostextuais.

14 SegundoFarnaneDahl(2003),notextocitadonanotaanterior,tambémnapesquisaacadêmica,segundoosregistrosdoEric,ointeressepelaescritasócresceapartirdosanos1990:complementandoosdadosapre-sentadosnanotaanterior,essasautorasinformamque,consideradoapenasoperíodo1990-2003,24.831documentoseartigosforamcatalogadoscomoleiturae22.941comoescrita,umadiferençapequena,nesseperíodorecente.

15 Aescrita“espontânea”,“inventada”ou“criativa”serádiscutidanopróximocapítulosobaperspectivadoprocessodedesenvolvimentodacriança,emsuaprogressivaapropriaçãodalínguaescrita,enocapítulo“Consciênciafonêmicaealfabetização”sobaperspectivafonológica.

Alfabetização: o método em questão • 27

Surgeentãootermoletramento,queseassociaaotermoalfabetizaçãoparadesignarumaaprendizagem inicial da língua escritaentendidanãoapenascomoaaprendizagemdatecnologiadaescrita–dosistemaalfabéticoesuasconvenções–,mastambémcomo,deformaabrangente,aintroduçãodacriançaàspráticassociaisdalínguaescrita.16

Emsíntese,odiferentepesoatribuído,naaprendizageminicialdalínguaescrita,aumaououtrafunçãodaescrita–àleituraouàescrita–eaindaaalternânciaentreconsiderá-lacomoaprendizagemdosistemaalfabético-ortográfico–alfabetização–oucomo,maisamplamente,tambémintro-duçãodacriançaaosusosdaleituraedaescritanaspráticassociais–aoletramento–representam,emúltimaanálise,umadivergênciaemrelaçãoaoobjetodaaprendizagem:umadivergênciasobreo queseensinaquandoseensinaalínguaescrita.

Essadivergênciasobreoobjetodaaprendizageminicialdalínguaescritaserevelaquandoseconsideraoconceitodealfabetizaçãoquefundamentaosdiferentesmétodos.Alfabetização,noestadoatualdasciênciaslinguísticas,daPsicologiaCognitiva, daPsicologia doDesenvolvimento, é processocomplexoqueenvolvevárioscomponentes,oufacetas,edemandadiferentescompetências.Dessacomplexidadeeconsequentemultiplicidadedefacetasdecorremdiferentesdefiniçõesdealfabetização,cadaumaprivilegiandoumoualgunsdoscomponentesdoprocesso.Sirvacomoexemplooverbete

16 Paraessaampliaçãodoconceitodeaprendizageminicialdalínguaescritajávinhacontribuindooconstrutivis-mo,quedefendeaconstruçãodosistemaalfabéticopelacriançapormeiodeseuconvíviocommaterialescritoreal,enãoartificialmenteelaboradoparapromoveraaprendizagemdessesistema.Issoexplicaaresistênciadepartidáriosdoconstrutivismoaaceitarotermoletramento.Naverdade,talvezapalavraletramentonãofossenecessáriasesepudesseatribuir,comopretendeoconstrutivismo,umsentidoampliadoàpalavraalfabetização.Entretanto,natradiçãodalíngua,nosensocomum,nousocorrente,emesmonosdicionários,alfabetizaçãoécompreendidacomo,restritamente,aaprendizagemdosistemaalfabético-ortográficoedasconvençõesparaseuuso,aaprendizagemdoleredoescreverconsideradosverbossemcomplemento(Soares,2005);ampliaro significadodapalavraalfabetização,paraquedesignemaisqueoque tradicional e correntementevemdesignando,seria,comofoi,umatentativainfrutífera,peladificuldade,oumesmoimpossibilidade,dopontodevistalinguístico,deintervirartificialmenteemumsignificadojáconsolidadonalíngua.Ferreiro(2001:71-2),aoresponderaumaperguntasobrecomotraduzirialiteracy,esclarecequeevitaessetermo,apenas“emmuitoscasos,traduzo‘literacy’como‘culturaescrita’,porquefazsentidoesabemosdoqueestamosfalando”;destaque-seotítuloderecentelivrodeFerreiro(2013),O ingresso na escritae nas culturas do escrito,queparecereferir-seàalfabetização–ingresso na escrita–eaoletramento–culturas do escrito.Ésignificativoque,noiníciode2015,atradicionalInternational Reading Association(ira)tenhamudadoseunomeparaInternational Literacy Association,comajustificativadequereadinglimitavaofocodaAssociação.

28 • Alfabetização

“leitura”doDicionário de alfabetização17organizadoporHarriseHodges(1999):sãotrezeasdefiniçõesapresentadasnoverbete,18diferenciadassegun-doafasededesenvolvimentodoaprendizesegundoasdistintasconcepçõesdeleitura;segundoHarriseHodges(1999:160),“asdefiniçõesdevemservistasnocontextodasorientaçõesteóricasepragmáticasdodefinidor”.

Conclui-sequeconcepçõesdeaprendizagemdaescritadiferenciam-sepelafacetadoprocessoqueelegemcomoobjetodaaprendizagem;conse-quentemente,diferenciam-seascompetênciasquecadaconcepçãoestabelececomoobjetivosaperseguir,ouseja:distinguem-seosmétodosdealfabeti-zação–deformamaisampla,etalvezmaisadequadamente,osmétodosdeorientaçãodaaprendizagem inicial da língua escrita.

Basicamente,trêsprincipaisfacetasdeinserçãonomundodaescritadis-putamaprimazia,nosmétodosepropostasdeaprendizageminicialdalínguaescrita:19afacetapropriamentelinguísticadalínguaescrita–arepresentaçãovisualdacadeiasonoradafala,facetaaquenestelivrosereservaráadesig-naçãodealfabetização;afacetainterativadalínguaescrita–alínguaescrita

17 Nooriginal,The Literacy Dictionary,éapalavrareadingqueencabeçaoverbete;essapalavratem,naverdade,umsentidomaisamploqueodapalavraleitura,porqueéusada,noinglês,paradesignaroprocessodeaprendizageminicialdalínguaescrita;comoessaaprendizagemtevesemprecomofocoaleitura(cf.nota13),apalavrareadingcorrespondeaoque,nalínguaportuguesa,chamamosalfabetização.Acrescente-seaindaqueatradução,notítulodoDicionário,de literacyporalfabetizaçãoétambéminadequada,poisliteracy,nalínguainglesa,nãocorrespondeàalfabetizaçãoemportuguês;nopróprioDicionário,overbeteliteracyétraduzidoporlectoescrita,oquerestringegrandementeosentidodapalavraque,emportuguês,setemtraduzidoporletramento(literacia,emportuguêseuropeu).

18 Naverdade,HarriseHodgesapresentamvintedefinições,masasseteúltimassãoextensõesdosentidodapalavraparaalémdainteraçãocomalínguaescrita.

19 TomandocomocritérioosmétodosqueforamesãoutilizadosnoBrasil,critérioadequadoaotemaquenestelivrosedesenvolve–aquestãodosmétodos–,propõem-setrêscategorias,queconstituemas três facetassugeridas;naturalmente,essas facetasnãosónãoesgotamtodososcomponentesdo fenômenocomplexoqueéaaprendizageminicialdalínguaescrita,comoaindacadaumadelaspoderiaserfracionadaemvárioscomponentes–acategorizaçãoé,comotodacategorização,reducionista.Nabibliografiasobrealfabetização,encontram-seinúmeraspropostasdemodelosderepresentaçãodoscomponentesdesseprocessoedesuasin-terações(exemplossãoRuddelleUnrau,2004,particularmenteoconjuntodetextosquecompõemaSeçãoTrês,“ModelsofReadingandWritingProcesses”,eStahleHayes,1997);outrosautoresanalisamoscompo-nentesdoprocessonaperspectivadeseusfundamentosconceituais(comoSadoski,2004;Kucer,2005)ounaperspectivadasteoriasemqueessescomponentessefundamentam(umexemploéTraceyeMorrow,2006).Cabeaindalembrarquedocumentosoficiaisdeorientaçãoparaoprocessodealfabetização,promulgadosporórgãodepolíticaeducacionaldeváriospaíses,indicamoscomponentesquedevemestarpresentesnapráticaescolar;casosexemplares,porsuainfluênciainternacional,sãooNational Reading Panel,nosEstadosUnidos(nichd,2000a);oRose Review,noReinoUnido(Rose,2006).Citem-seaindaprogramasdeensinodeâmbitonacional(comoosprogramasparaaescolaelementarfrancesa,Ministèredel’ÉducationNationale,2008)easbases curriculares nacionaisvigentesemváriospaíses(EstadosUnidos,Austrália,NovaZelândia,Portugal,Chile,entreoutros).

Alfabetização: o método em questão • 29

comoveículodeinteraçãoentreaspessoas,deexpressãoecompreensãodemensagens;afacetasocioculturaldalínguaescrita–osusos,funçõesevaloresatribuídosàescritaemcontextossocioculturais,estasduasúltimas facetasconsideradas,nestelivro,comoletramento.

Dessastrêsfacetasdecorremtrêsobjetosdeconhecimentodiferentesna composição do processo de aprendizagem inicial da língua escrita,objetosaquecorrespondemdomínioscognitivoselinguísticosdistintose,consequentemente,trêscategoriasdecompetênciasaseremdesenvol-vidas:sesepõeofoconafaceta linguística,oobjetodeconhecimentoéaapropriaçãodosistemaalfabético-ortográficoedasconvençõesdaes-crita,objetoquedemandaprocessoscognitivoselinguísticosespecíficose,portanto,desenvolvimentodeestratégiasespecíficasdeaprendizageme,consequentemente,deensino–nestelivro,aalfabetização.Sesepõeofocona faceta interativa,oobjetosãoashabilidadesdecompreensãoeproduçãodetextos,objetoquerequeroutrosediferentesprocessoscog-nitivoselinguísticoseoutrasediferentesestratégiasdeaprendizagemedeensino.Finalmente,sesepõeofoconafaceta sociocultural,oobjetosãooseventossociaiseculturaisqueenvolvemaescrita,objetoqueimplicaconhecimentos,habilidadeseatitudesespecíficosquepromovaminserçãoadequadanesseseventos,istoé,emdiferentessituaçõesecontextosdeusodaescrita.Essatricotomiaexplicaaquestão–ascontrovérsias–entreosmétodos,mencionadaanteriormente.

Assim,averdadeiraquestãoresultadadiferençaentreosobjetosfocaliza-dosnaaprendizageminicialdalínguaescrita:afaceta linguísticapredominanosmétodossintéticoseanalíticos,paraosquaisoobjetodaaprendizageminicialdalínguaescritaéosistemaalfabético-ortográfico,eascompetênciasvisadassãoacodificaçãoedecodificaçãodaescrita.Poroutrolado,éafaceta interativaquepredominanoconstrutivismo,20emqueafacetalinguísticanãoéassumidapropriamentecomoobjetodaaprendizagem:ascompetên-ciasaelavinculadassãoconsideradasdecorrênciadainserçãodacriançano

20 Empaísesdelínguainglesa(particularmenteEstadosUnidoseAustrália),aoposiçãoentreessasduasconcep-çõesdealfabetizaçãoedemétodossetraduziu,nosanos1990,noquesedenominoureading wars–conflitoentrephonicsewhole language(sobreestaquestão,verSoares,2004).

30 • Alfabetização

mundodaculturadoescrito,ouseja,decorrênciadodesenvolvimentodasfacetasinterativaesociocultural.

Umaoutraexplicaçãoparaofatodeosmétodosdeaprendizageminicialdalínguaescritaconstituíremumaquestãoé,decertaforma,resultadodaexplicaçãoanterior:comofoidito,asdiferentes facetasda línguaescritaimplicamseleçãodediferentesobjetosparaoprocessodeaprendizagem,ge-randocontrovérsiassobreosmétodos.Comodesenvolvimentodapesquisasobreaaprendizagemdalínguaescritaemdécadasrecentes,cadafacetadalínguaescritatemgeradoestudoseinvestigaçõessobreobjetosdiferentes,apartirdequadrosteóricosespecíficos;multiplicam-seediversificam-se,assim, resultados de pesquisa e quadros teóricos, e, consequentemente,multiplicam-seediversificam-setambémasimplicaçõesparaosmétodosdeintroduçãodacriançaàlínguaescrita.

Trata-sedefenômenorecente:aalfabetizaçãosófoiassumidacomotemalegítimoenecessáriodeestudoseinvestigaçãocientífica,noBrasil,apartirdosanos1960,comocomprovaapesquisadeSoareseMaciel(2000).21Aconfluênciadedoisimportantesfatorespodeexplicarodesenvolvimentodapesquisasobrealfabetização.

Umprimeirofatorfoiomovimentodedemocratizaçãodaeducação,queocorreapartirdosanos1950,dequedecorregrandeampliaçãodoacessodealunosàescola,edealunospertencentesàscamadaspopulares,socioeconômicaeculturalmentediferenciadosdascriançasprovenientesdascamadasprivilegiadas,queatéentãopovoavamassalasdeaula.Aescolaenfrentou,comoconsequência,mudançasnãosóquantitativas,mastambémqualitativas,queresultaramemdificuldades tantoparaoensinoquantoparaaaprendizagemdalínguaescrita–éapartirdessemomento,décadade1960,queosíndicesdefracassoescolarnafasedealfabetizaçãocrescemsignificativamente,oqueexercepressãosobreestudiososepesquisadores,embuscadeesclarecimentodoproblemaepropostasde solução.Nesseprimeiromomento,osestudossevoltaramprincipalmenteparapesquisas

21 Aesterespeito,veraindaSoares(2006).NãoapenasnoBrasilapesquisasobrealfabetizaçãoérecente;tambémempaísescommaislongaericatradiçãoempesquisanaáreadaeducação,sóapartirdemeadosdoséculoxxocorreoreconhecimentodaalfabetizaçãocomotemadeinvestigaçãocientífica;veraesserespeito,comrelaçãoaosEstadosUnidos,AlexandereFox(2004,cf.nota11).

Alfabetização: o método em questão • 31

quantitativassobreíndicesdereprovação,repetência,evasão,eparapesquisassobrecomoalfabetizar,desenvolvidassobretudoporespecialistasdaáreadaPedagogia–atéentão,considerava-sequeaalfabetizaçãoeratemaexclusivodaPedagogia,apenaseventualmentedaPsicologia:aquestãodosmétodospredominava,quasesemprefundamentadaemprincípiospsicológicos.

Nosanos1970,umsegundofatorsurgecomocausamotrizdodesen-volvimentodapesquisasobrealfabetização:outrasáreas,alémdaPedagogia,passaramatomaraalfabetizaçãocomoobjetodepesquisa.ComoafirmamShankweilereFowler(2004:483),se,noiníciodoséculoatual,omovimen-topendularnaspráticasdealfabetizaçãonãorepresentanovidade,“nova é a importância atribuída à pesquisa na ciência da alfabetização para decisões sobre como ensinar a leitura e a escrita”.

Deumlado,asciênciaslinguísticas–aFonéticaeFonologia,aPsico-linguística,aSociolinguística,aLinguísticaTextual,aPragmática–,intro-duzidasnouniversoacadêmicoapenasapartirdoiníciodosanos1960,voltam-se,nasdécadasseguintes,paraainvestigaçãodascaracterísticasdalínguaescritacomoobjeto linguísticoeasimplicaçõesdessascaracterísticasparaaaprendizagemdesseobjeto.Deoutrolado,aPsicologiaCognitivaeaPsicologiadoDesenvolvimento,quetambémmuitoavançaramnasúltimasdécadasdoséculoxx,voltam-separaainvestigaçãodoprocessopormeiodoqualacriançaaprendealínguaescrita,aprimeiracolocandoofoconasoperaçõescognitivasenvolvidasnaaprendizagemdalínguaescrita,asegundabuscandoaidentificaçãodosestágiosoufasespelosquaisascriançaspassamemsuaprogressivaaquisiçãoedomíniodalínguaescrita.Emterceirolugar,emaisrecentemente,osestudossocioculturaisvoltam-separaainvestigaçãodocontextodepráticaseusossociaiseculturaisdeleituraeescritaesuainfluêncianaspráticasescolaresdealfabetização.22

Emsíntese,arespostaàperguntaquedátítuloaestetópico:métodos de alfabetização – sempre uma questão: por quê?,foiadiantadaemseuprimeiroparágrafo:métodosdealfabetizaçãotêmsidosempreumaquestãoporque

22 Deve-sesobretudoaoscursoseprogramasdepós-graduaçãoemEducaçãoodesenvolvimentodapesquisasobreaalfabetização:apesquisaemeducação,emgeral,eemalfabetização,emparticular,crescenoBrasilgraças,sobretudo,àproduçãocientíficadeprofessoresealunosdemestradoedoutorado,apartirdofinaldosanos1960,quandofoiinstitucionalizadaapós-graduaçãonopaís.

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derivamdeconcepçõesdiferentessobreoobjetodaalfabetização,istoé,sobreo queseensina,quandoseensinaalínguaescrita.

Doquefoiexpostoparafundamentaressaresposta,conclui-sequeaaprendizageminicialdalínguaescritaéumfenômenoextremamentecom-plexo:envolveduasfunçõesdalínguaescrita–lereescrever–que,seseigualamemalgunsaspectos,diferenciam-seemoutros;écompostodeváriasfacetas–aquiconsideradascomofacetalinguística,facetainterativaefacetasociocultural–quesedistinguemquantoàsuanatureza,aomesmotempoquesecomplementamcomofacetasdeummesmoobjeto;éestudadoeinvestigadofracionadoemsuasdiferentesfunçõesefacetas,cadaumadelasassumida,isoladamente,comoobjetodedeterminadasciências.

Umareflexãosobreaquestãodosmétodosdealfabetizaçãoevidenciaqueascausasdequemétodostenhamsido,econtinuemsendo,umaquestãoéquecadaumdelesprivilegiadeterminadafunção,determinadafaceta,de-terminadospressupostosteóricos,ignorandooumarginalizandoosdemais.Toma-seumapartedoobjetocomosefosseotodo,oquelembraaconhecidahistóriadoscegoseoelefante:23

Seishomenscegostentamdescobrircomoéumelefante.Oprimeirotocaabarrigadoanimal,eafirmaqueeleécomoumaparede;osegundotocaapresa,ediscorda:umelefanteécomoumalança;oterceirotocaatromba,edeclaraqueoanimalécomoumaserpente;oquartotocaaperna,econtesta:não,umelefanteécomoumaárvore;oquintotocaaorelha,edefendequeeleécomoumleque;finalmenteosextotocaorabo,easseguraqueoelefanteécomoumacorda.Conclusão:cadacegoestácertoemparte,mastodosestãoerrados...

Oespecialista–cientista,pesquisador–nãopodedeixardeagircomooscegos:fragmentaoprocessodeaprendizagemdalínguaescrita,estudaepesquisaapartequelhecabe,noquadrodesuaáreaespecífica.Paraosestudosepesquisas,éinevitável:seotodoécomplexoemultifacetado,se

23 Trata-sedeumahistóriatradicionaldaÍndiaqueopoetaamericanoJohnGodfreySaxe(1816-1887)divulgounomundoocidentalemumpoema,“TheBlindMenandtheElephant”.

Alfabetização: o método em questão • 33

cadafacetaédeumanaturezaespecífica,cadaumasópodeserinvestigadaisoladamente.Noentanto,quandoofenômenopassaaserobjetonãodepesquisa,masdeaprendizagemedeensino,éadequadoagircomooscegos?Elegerumaououtrafunção,umaououtrafaceta?Ouéprecisoreconstituirotodo?Notópicoseguinte,emqueseapresentaapropostadeste livro,responde-seaessasperguntas.

A PrOPOSTA dESTE LIVrO

Retomandoaanalogiacomahistóriadoscegoseoelefante:talcomocadacegoexaminouapenasumapartedoelefante,eerradamentegenerali-zou,tomandoapartepelotodo,assimtambémaspropostasemétodosparaaaprendizageminicialdalínguaescritarestringem-se,emgeral,aumapartedoprocesso,equivocadamenteconsiderandoqueaparteéotodo.Combasenessepressupostoéquefoipropositadamenteusadaaolongodestecapítulo,eseráusadaaolongodestelivro,apalavrafaceta,paradesignarcomponentesdaaprendizageminicialdalínguaescrita:talcomo,emumapedralapidada,asváriassuperfícies–facetas–sesomamparacomporotodoqueéapedra,assimtambémoscomponentesdoprocessodeaprendizagemdalínguaes-crita–suasfacetas–sesomamparacomporotodoqueéoprodutodesseprocesso:alfabetizaçãoeletramento.Umasófacetadeumapedralapidadanãoéapedra;umsócomponente–faceta–doprocessodeaprendizagemdalínguaescritanãoresultanoproduto:acriançaalfabetizadaeinseridanomundodaculturaescrita,acriançaletrada.

Noentanto,háumadiferençafundamentalentreaaçãodecientistas,depesquisadores,eaaçãodealfabetizadores(as),emrelaçãoaotodoesuaspartes–suasfacetas.

Como emqualquer temamultifacetado, tambémna aprendizageminicial da língua escrita o todo só pode ser compreendido se cadaumadesuaspartesécompreendida;porisso,paraaciência,paraapesquisa,énecessáriofragmentaressaaprendizagem,tomarcadaumadesuasfacetasseparadamente,afimdeapreenderascaracterísticasespecíficasacadauma,construirprincípioseteoriasqueelucidemcadauma.Assimfazemoslin-guistas,ospsicolinguistas,ossociolinguistas,ospsicólogos...

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Jáaosquepromovemeorientamoprocesso–aosqueensinam–cabeconsiderar,sim,cadaparte,cadafaceta,separadamente,umavezqueéneces-sáriodesenvolverascompetênciasespecíficasacadauma,fundamentando-senosprincípioseteoriasqueaelucidam;cabetambémconsiderarasváriasfacetasemsuasrelações,demodoadesenvolverharmonicamenteaapren-dizagemdotodo,nãosócomoumaestratégiadeensino,massobretudoemrespeitoaosprocessosreaisdeleituraeescrita,emqueasdiferentescompe-tênciasnãoatuamseparadamentenememsequência,massimultaneamente.Naverdade,pode-sedizerqueoscientistaseospesquisadoresnãotomamcomoobjetodeestudoepesquisapropriamenteaaprendizageminicialdalínguaescrita,masdeterminadocomponentedesseprocesso.Paraoensino,oobjetoéoprocesso,queéotodo(emboraeventualmenteoprocessotam-bémpossatornar-seobjetodepesquisa,quandopesquisadoresinvestigamapráticadeensinodalínguaescrita,comoumtodo,emsaladeaula).

MarilynJagerAdams,umadasmaisconceituadaspesquisadorasnaáreadaalfabetização,emobraquesetornouum“clássico”nessaárea(Adams,1990), após desenvolver uma interessante analogia entre o processo deconstruçãoefuncionamentodeumautomóveleoprocessodeconstruçãoefuncionamentodas“partes”,noensinodalínguaescrita,diferenciaosdoisprocessos,jáque,nosegundo,

[...]aspartesnãosãodiscretas.Nãopodemosagircompletandocadasub-sistemaindividualmente,emseguidaatando-oaoutro.Aocontrário,aspartesdosistemadealfabetizaçãodevemcrescersimultaneamente.Devemcrescercadaumaemrelaçãoaoutraecadaumaapartirdeoutra.[...]Elas[aspartesdosistema]devemestarinterligadasnopróprioprocessodeaquisição.E,oqueéimportante,essadependênciaatuanasduasdireções.Nãosepodedesenvolveradequadamenteosprocessosmaisavançadossemadevidaatençãoaosmenosavançados.Nemsepodefocalizarosprocessosmenosavançadossemconstantementeesclarecerepraticarsuasconexõescomosprocessosmaisavançados.(Adams,1990:6)24

24 Traduçãonossa.Todasastraduçõesdecitaçõesdeoriginaisemlínguaestrangeirasãoderesponsabilidademinha.

Alfabetização: o método em questão • 35

Asreflexõesanteriorespermitemsituarapropostadestelivroe,sobretu-do,apontarseuslimites.Parte-sedopressupostodequeaquestãodosméto-dosdeensinodalínguaescritatemsuaorigemnatendênciahistórica,quechegaàatualidade,deequivocadamentefragmentaroprocesso:osmétodosoufocalizamumasófaceta,ousequenciamasfacetas,comosedevessemserdesenvolvidasseparadamente,eumaapósaoutra.Consequentemente,nestelivrosereconhece,esedefende,comorespostaàquestãodosmétodos,que,emsuadimensãopedagógica,istoé,emsuapráticaemcontextosdeensino,aaprendizageminicialdalínguaescrita,emboraentendidaetratadacomofenômenomultifacetado,deveserdesenvolvidaemsuainteireza,comoumtodo,porqueessaéanaturezarealdosatosdeleredeescrever,emqueacomplexainteraçãoentreaspráticassociaisdalínguaescritaeaquelequelêouescrevepressupõeoexercíciosimultâneodemuitasediferenciadascompetências.Éoquesetemdenominadoalfabetizar letrando.

Poroutrolado,emboraasfacetasdoprocessodeaprendizageminicialdalínguaescritadevamserdesenvolvidassimultaneamente,cadaumadelasdemandaaçõespedagógicasdiferenciadas,definidasporprincípioseteo-riasespecíficosemquecadaumadelassefundamenta.Assim,nestelivrotambémsereconhece,esedefende,quearespostaàquestãodosmétodosrequerqueseconsiderenãosóaaprendizagemda línguaescritacomoumtodo,mastambémaespecificidadedecadaumadesuasfacetas,asdiferentesimplicaçõesmetodológicasquedecorremdosprincípioseteoriasqueesclarecemcadauma.Assim,afirma-sequearespostaàquestãodosmétodoséplural:hárespostas,nãoumaresposta,eaquestãonãoseresolvecomummétodo,mascommúltiplosmétodos(ouprocedimentos,comoseproporánoúltimocapítulo),diferenciadossegundoafacetaquecadaumbuscadesenvolver–métodosdealfabetização,métodosdeletramento.25

Entretanto,oslimitesrazoáveisparaumaobradestanaturezaimpõemque,noquadrodessacomplexidadedoprocessodeaprendizageminicialdalíngua

25 Adverte-seoleitordequeapalavramétodo,nestecapítuloenosseguintes,temosentidoquelhefoiatribuídono iníciodestecapítulo:método comoconjunto de procedimentos.Umamelhorexplicitaçãodoconceito de métodoserápropostanocapítulo“Métodosdealfabetização:umarespostaàquestão”,depoisdeapresentadosnoscapítulosanterioresosprincípioseasteoriasquefundamentamoconceitoqueseproporá.

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escritaedecadaumadesuasfacetas,fundamentadasemváriasediferentesteorias,dequedecorremváriosediferentesmétodosdeensino,privilegie-se,nestemomento,apenasumadasfacetas.Assim,nestelivro,emborasemprenaperspectivadoprocessocomoumtodo,discute-seapenasafaceta linguística–aaprendizagemdosistemaalfabético-ortográfico,queconduzàhabilidadedeleituraedeproduçãodepalavrasescritas,aqueaquisereservaadesignaçãodealfabetização–porconsiderá-la,porumlado,oalicercedasduasoutrasfacetas,poroutro,esobretudo,aquelaquemaistemsidoobjetodaquestãodosmétodos.

Emprimeirolugar,afacetalinguísticaéalicercedasduasoutrasfacetasporque,emboraaaprendizageminicialdalínguaescritadevaincluirhabi-lidadesdecompreensãoedeproduçãodetextoescrito,eaindadeusodalínguaescritanaspráticassociaisqueocorrememdiferentescontextosdesociedadesletradas,estashabilidades,queconstituemasfacetasinterativaesociocultural,dependemfundamentalmentedoreconhecimento(naleitura)edaprodução(naescrita)corretose fluentesdepalavras.ComoafirmaTolchinsky(2003:xxiii),

[...]aprenderosistemadeescritaéapenasumfionateiadeconhecimen-tospragmáticosegramaticaisqueascriançasprecisamdominarafimdetornarem-secompetentesnousodalínguaescrita,maséumaaprendizagemimperativa,epromoveasoutras.

Emsegundolugar,aquestãodosmétodosdealfabetizaçãotem-secarac-terizadofundamentalmentepordúvidasedivergênciassobreaadequadaorientaçãodacriançaparaaaprendizagemdosistemaalfabético-ortográ-fico–paraaleituraeescritadepalavras.Emboraessaaprendizagemdoqueaquisedenominafacetalinguísticadevaocorrerdeformasimultâneaeinterativacomasduasoutrasfacetas,aquestãodemétodosemrelaçãoaessasoutrasduas–métodosparaodesenvolvimentodacompreensãodetextoescritoeparaaproduçãodetextoescrito,noscontextossociocultu-rais–nãotemmerecidoacentralidadequevemtendo,historicamente,aquestãodemétodosparaaaprendizagemdosistemadeescrita.

Para terminaresta seção,citam-semaisumavezpalavrasdeAdams,aquelascomqueiniciasuaobrade1990,beginning to Read:

Alfabetização: o método em questão • 37

Antesdecomeçaralerestelivro,vocêdeveterplenoconhecimentodequeotemanelediscutidoéaleituradepalavras.Entretanto,antesdeterminaraleituradestelivro,vocêdeveterplenoconhecimentodequeahabilidadedelerpalavrasrapidamente,corretamenteesemesforçoéfundamentalparaacompreensãocompetentedetextos–nossentidosóbvioseemváriosoutrossentidos,maissutis.Leitura competente não é umahabilidadeunitária.Éum completo ecomplexo sistema de habilidades e conhecimentos.No interior dessesistema,osconhecimentosehabilidadesenvolvidosnoreconhecimentovisualdepalavrasescritassãoinúteisemsimesmos.Sótêmvalore,deformaabsoluta,sósãopossíveisseorientadoseaprendidospormeiodeconhecimentoscomplementareseatividadesdecompreensãodalíngua.Poroutrolado,seosprocessosenvolvidosnoreconhecimentoindividualdepalavrasnãofuncionaremadequadamente,nadamaisnosistemafun-cionaráadequadamente.(Adams,1990:3)

Sãopalavrasque,naadvertênciapresentenoprimeiroparágrafo,expres-samcomprecisãooquetambémseesperadoleitordestelivro,eque,naargumentaçãodesenvolvidanosegundoparágrafo,reforçamajustificativaparaaopção,quesefaznestelivro,portematizarafacetalinguísticadaaprendizageminicialdalínguaescrita–aalfabetização.

POr qUE fACETA linguística?

Esclarecidaaopçãofeita,nestelivro,porprivilegiarafacetalinguística,convém justificaro adjetivo comque sequalifica essa faceta.Realmente,qualificarumasódasfacetasdoprocessodeaprendizageminicialdalínguaescritacomoadjetivo“linguística”podeserconsideradoinadequado,umavezque,sendoesseumprocessofundamentalmentecentradonalíngua–emsuamodalidadeescrita–todasassuasfacetasmereceriamreceberacaracterizaçãode“linguísticas”.Noentanto,adimensãodolinguísticonãoéamesmaemtodasasfacetas,demodoqueoadjetivofoireservadoparaaquelafacetaemqueessadimensãopredomina:adimensãodoprocessodeaprendizageminicial

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dalínguaescritaquesevoltaparaafixaçãodafalaemrepresentaçãográfica,transformandoalíngua sonora–dofalaredoouvir–emlíngua visível–doescreveredoler.Esseprocessoderepresentaçãodacadeiasonoradafalanaformagráficadaescritaconstituiumatecnologia queenvolveaaprendizagemdosistemaalfabético-ortográficoedasconvençõesquegovernamousodessesistema.Perfetti(2003:16)afirmaqueessaaprendizagemconstituia natureza essencial daaprendizagemdalínguaescrita,eacrescenta:

Certamenteum objetivodaalfabetizaçãoéobtersignificado(háoutros);entretanto,oobjetivodealgumacoisanãoéomesmoquesuanaturezaessencial.[...]Semdúvida,aprende-semuitomaisqueomododecodifi-caçãodalínguaemumsistemadeescrita.Masesteéoeventodeapren-dizagemcentralaoqualdevemserassociadasaprendizagensadicionaisdeletramento,porexemplo,estratégiasdecompreensão.

Assim,nafacetaaquesereservaaquiacaracterizaçãode“linguísti-ca”,oobjetodeconhecimentoéessencialmente linguístico–osistemaalfabético-ortográficodeescrita.Asduasoutrasfacetasimplicamoutrosobjetosdeconhecimentoquevãoalémdolinguístico:nafacetainterativa,oobjeto de conhecimento éousoda língua escritapara a interação–acompreensãoeaproduçãodetextos,oqueenvolve,paraalémdadi-mensãolinguística,elementostextuaisepragmáticos,nãoexclusivamentelinguísticos;nafacetasociocultural,oobjetodoconhecimentosãoosusoseasfunçõesdalínguaescritaemdiferentescontextossociaiseculturaiseemdiferenteseventosdeletramento,estandopresentes,portanto,inú-meroselementosnãolinguísticos.

Emsíntese,aalfabetização–facetalinguísticadaaprendizageminicialda línguaescrita– focaliza,basicamente,aconversãodacadeiasonoradafalaemescrita.Nessesentido,éfundamentalcompreenderanaturezalinguísticaecognitivadessaconversão,pormeiodoconfrontoentreoprocessodeaprendizagemdaescritaeoprocessodeaquisiçãoda fala.Sãosemelhantesoudiferentesessesdoisprocessos?Ostópicosseguintespropõemrespostaaessapergunta,dequedependeadefiniçãodaneces-sidade,ounão,demétodosdealfabetização.

Alfabetização: o método em questão • 39

AqUISIçãO dA ESCrITA: UM PrOCESSO NATUrAL?

Noiníciodosanos1970,umateoriadaleitura,propostaporFrankSmithnoslivrosUnderstanding Reading: a Psycholinguistic Analysis of Reading and Learning to Read(1971)26ePsycholinguistics and Reading(1973),passouaexercergrandeinfluêncianaalfabetização,nospaísesdelínguainglesa.Combasenateoriadeque“toda leituradoescritoé interpretação,atribuiçãodesentidoaoescrito”(Smith,2004:3),oautorargumentaqueacriançaaprenderiaaler–aprenderiaadarsentidoaumtexto–deformatãonaturalquantoaprendeadarsentidoaomundoquearodeia,tãonaturalquantoaprendea falar.Aaprendizagemda escrita seria,portanto,umprocessosemelhanteàaquisiçãodafala,diferenciando-sedestaapenasporterporobjetoalínguavisível,enãoalínguasonora.Consequentemente,noquadrodessateoria,talcomoacriançaadquireafalapormeiodeoportunidadesdeouvirefalaremumcontextomotivador,receptivoesignificativo,gerandoetestandohipóteses,damesmaformaelaaprenderiaalereescrever;naspalavrasdeFrankSmith(1989:237):

Tudoqueascriançasprecisamparadominaralinguagemfalada,tantoparaproduzi-laporsimesmasquanto,maisfundamentalmente,paracompreen-deremsuautilizaçãopelosoutros,éteraexperiênciadeusaralinguagememumambientesignificativo.Ascriançasaprendemfacilmentesobrealinguagemfalada,quandoestãoenvolvidasemsuautilização,quandoestalhesfazsentido.E,damesmaforma,tentarãocompreenderalinguagemescritaseestiveremenvolvidasemsuautilização,emsituaçõesondeestalhesfazsentidoeondepodemgeraretestarhipóteses.

26 Understanding Readingteve6edições,noperíodode1971(1ªedição)a2004(6ªedição,estarepublicadaem2012,naRoutledge Education Classic Edition Series).Emboracomdiferençassignificativasnaorganizaçãoemcapítulos,tópicosesubtópicos,algumaatualizaçãoereferênciasapesquisasdesenvolvidasduranteessasquasequatrodécadas,Smithmantémsuateoria,tornando-amesmomaisradicalacadaedição,semprecontestandoasmuitascríticasqueateoriarecebeu,sobretudoapartirdosanos1990(entreessascríticas,umadasmaisbemfundamentadaséadeAdams,1991).Understanding ReadingfoitraduzidonoBrasilnofinaldosanos1980(Smith,1989–Compreendendo a leitura),combasena4ªedição,de1988.Asreferênciasàobra,nestelivro,sãofeitasoraà1ªedição,de1971,quandoseconsideraimportantesituarhistoricamenteapropostadeumconceito,oraàúltimaedição,à6ª,de2004,quando,aocontrário,sequerevidenciarapersistênciadeSmithnaafirmaçãodeconceitosdificilmentesustentáveis,noestadoatualdosestudosepesquisassobrealínguaescritaesuaaprendizagem,ora,finalmente,àtraduçãodaobraparaoportuguês,nestecasoapenasquandootrechocitadoestápresentetambémnaúltimaedição,de2004.

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NamesmadécadaemqueFrankSmithpropunhasuateoriadaleitura(anos1970),ecomosmesmospressupostosteóricos,outroteóricodaleitura,KennethGoodman,lançavaasbasesdaorientaçãopedagógicaqueganhouadenominaçãowhole language,quepredominounasescolasnorte-americanasduranteosanos1980.Éde1979otextodesseautorcomumtítuloqueremeteimediatamenteaFrankSmith:“LearningtoReadisNatural”(GoodmaneGoodman,1979:138).Nessetexto,osautoresafirmam:

Acreditamosqueascriançasaprendemalereescreverdomesmomodocomoaprendemafalareouvir,epelamesmarazão.Essemodoéestaremcontatocomalínguasendousadacomoveículoparaacomunicaçãodesignificados.Arazãoéanecessidade.Aaprendizagemdalíngua,sejaoral,sejaescrita,émotivadapelanecessidadedecomunicação,decompreenderesercompreendido.

Compare-seessacitaçãocomaanterior,deFrankSmith,everifica-sequeosautoresassumemamesmateoria–aprenderalereescreverénatural,acriançaaprendeaescritatalcomoaprendeafalareouvir,construindoe testandohipóteses–,e inferem,dessa teoria,amesmapropostaparaoensinodaescrita:proporcionaràcriançaumambienteemque haja oportunidades e necessidade de ler e escrever de formasignificativa.Nessequadro,nãoseprevêensinosistemáticoeexplícitodafacetalinguísticadaalfabetização,nopressupostodequeacriançadescobriráoprincípioalfabéticoeseapropriarádosistemaalfabéticodeescritaedesuasconvençõesporprocessosemelhanteàquelepeloqualseaproprioudacadeiasonoradafala.27Assim,Goodman(1986:24)afirma,sobreaaprendizagemdalínguaescrita:

27 LibermaneLiberman(1992)analisam,emumamuitobemfundamentadacrítica,apropostateóricaeme-todológicadeKenethGoodman.

Alfabetização: o método em questão • 41

Porqueaspessoascriameaprendemalínguaescrita?Porqueprecisamdela!Comoaprendemalínguaescrita?Damesmaformaqueaprendemalínguaoral,usando-aemeventosdeletramentoautênticosquerespondemasuasnecessidades.Frequentementeascriançasenfrentamdificuldadesnaaprendizagemdalínguaescritanaescola.Issoacontecenãoporqueémaisdifícilaprenderaescritaqueaprenderalínguaoral,ouporquesãoaprendizagensdiferentes.Aconteceporquenóstornamosaaprendizagemdalínguaescritadifícil,tentandotorná-lafácil.

Nospaísesdelínguainglesa,esseposicionamentoemrelaçãoàfacetalinguísticadaalfabetizaçãofoiassumidonapropostapedagógicadawhole language;noBrasil,napropostapedagógicadoconstrutivismo.Emboraasduaspropostassediferenciememoutrosaspectos,ambasassumemomesmopressuposto–apropriar-sedosistemadeescritaéumprocessonatural – e ambas conduzem àmesma orientação pedagógica – essaapropriaçãoocorrenaturalmente emumcontextodeinserçãodacrian-ça emsituações emquehaja razãoeobjetivopara compreender e sercompreendidopormeiodaescrita.Assim,paraFerreiro(1992:29-32),coerentementecomafundamentaçãopsicogenéticadesuateoria,dequesetrataráadiante,oquenãoénatural noaprendizadodalínguaescrita,eodistinguedoaprendizadodalínguaoral,nãoéfundamentalmenteumadiferençaentreosobjetosdeconhecimento–línguaoraloulínguaescrita–massãoas“atividadessociaisfrenteàsduasaprendizagens” (1992:29): enquantoosadultosrespondemcomcompreensãoeentusiasmoàstentativasdeexpressãooraldacriança,aceitando-ascomo integrantesdeumprocessodeconstruçãodaaprendizagemdalínguaoral,reagemdemaneiraoposta–particularmenteosprofessores–às tentativasdeleituraeescrita,desqualificando-aseconsiderando-ascomoerros,nãocomoaproximaçõesàescrita;poroutrolado,talcomonaaquisiçãodalínguaoral,“nãoseaprendeumfonema,nemumasílabaenemumapalavra por vez, também a aprendizagem da língua escrita não é umprocesso cumulativo simples, unidade por unidade,mas organização,desestruturaçãoereestruturaçãocontínua” (1992:31).

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Comodecorrênciadopressupostodequeapropriar-sedosistemadeescritaéumprocessonaturaledaorientaçãopedagógicaquedelederiva–essaapro-priaçãoocorrenaturalmente emumcontextodeinserçãodacriançanaculturaescrita–,afacetalinguísticadaalfabetizaçãonãodemandariaensinoexplícitoesistemático.Empaísesdelínguainglesa,adivergênciaentrecolocarounãoofoconafacetalinguísticasemanifestounaoposiçãoentrewhole languageephonics(oposiçãotãoradicalqueosdebatesganharamadenominaçãode“guerras”,aschamadasreading wars);noBrasil,essadivergênciamanifestou-senaoposiçãoentreconstrutivismoemétodos “tradicionais”–analíticosesintéticos.

AqUISIçãO dA ESCrITA: UM PrOCESSO dE APrENdIzAGEM

Emposiçãocontráriaaosquedefendemqueaprenderaescritaéumprocessonatural,linguistasepsicólogoscognitivosnegamradicalmenteateoriadasimilaridadeentreaprenderalereescrevereaprenderafalareouvir.Jácontemporaneamenteàpublicação,porKennetheYettaGoodman,doartigo“LearningtoReadisNatural” (1979),GougheHillinger(1980)publicaramartigoque,desdeotítulo,jáéumacontestação:“LearningtoRead:anUnnaturalAct”.Osautoresafirmamdeformacategóricaqueacriançanãoaprendealernaturalmente,econcluem,fundamentando-seemdadosdepesquisassobreasdificuldadesenfrentadasporalfabetizandos,que“ascriançasquasenuncaaprendemalerseminstrução,e,mesmoquandoacriançarecebeinstruçãodiária,explícitaecuidadosa,aprendealermuitodevagarecomgrandedificuldade” (1980:180-1).

Mais recentemente (1993-1994),28KeithStanovich (2000:400), re-conhecidopesquisadornaáreadaPsicologiaCognitivadaleitura,afirmouque“aideiadequeaprenderaleréexatamenteigualaaprenderafalarnãoéaceitapornenhumlinguista,psicólogooucientistacognitivoresponsá-vel,nacomunidadedepesquisadores”;segundoele,osqueafirmamqueaaprendizagemdaescritaocorredamesmaformaqueaaquisiçãodafala

28 Como,naargumentaçãoquesevemdesenvolvendo,acontextualizaçãotemporalésignificativa,indica-seaquiadataemqueotextodequeseretiraacitaçãoapareceuoriginalmente:emartigopublicadonoperiódicoThe Reading Teacher,v.4,n.47,1993/1994;oartigofoiposteriormenteincluídonacoletâneadeartigosdeStanovichpublicadaem2000,indicadanareferênciabibliográficadotextocitado.

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[...]ignoramosfatosóbviosdequetodasascomunidadesdesereshuma-nosdesenvolveramlínguasorais,massóumaminoriadessaslínguasexistenaformaescrita;queafalaéquasetãoantigaquantoaespéciehumana,masalínguaescritaéumainvençãoculturalrecentedeapenasosúltimostrêsouquatromilanos;quevirtualmentetodasascriançasemambientesnormaisdesenvolvemfacilmenteafalaporsimesmas,enquantoamaiorpartedascriançasnecessitadeinstruçãoexplícitaparaaprenderaler,eumnúmerosignificativodecriançasenfrentadificuldades,mesmodepoisdeintensosesforçosporpartedeprofessoresepais.(Stanovich,2000:364)

Subjacenteaessesindiscutíveisargumentoshistórico-culturaisepsico-cognitivosemquesebaseiaaargumentaçãodeStanovich,estáoconceitochomskyanodoinatismodafala:afalaéumacapacidadeinata,enquantoa escrita, segundoStevenPinker (2002: 6), é “claramenteumacessórioopcional;overdadeiromotordacomunicaçãoverbaléalínguafaladaqueadquirimosquandocrianças”.Essasdiferençasentreonatural(afala)eocultural(aescrita)sugeremumenigmaqueoneurocientistafrancês,StanilasDehaene(2012:17-8),denomina“oparadoxodaleitura”:

Nossacapacidadedeaprenderalercolocaumcuriosoenigma,quedenomi-nooparadoxodaleitura:comopodeserquenossocérebrodeHomo sapienspareçafinamenteadaptadoàleitura,quandoestaatividade,inventadaemtodosseuscomponentes,nãoexistesenãoháalgunsmilharesdeanos?Aescritanasceuháaproximadamente5.400anosentreosbabilônios,eoalfabetopropriamenteditonãotemmaisque3.800anos.Estasduraçõesnãosãomaisdoqueuminstanteaosolhosdaevolução.Nossogenomanão teve tempode semodificarparadesenvolveroscircuitoscerebraisprópriosàleitura.[...]Nada,emnossaevolução,nospreparouparareceberasinformaçõeslinguísticaspelaviadoolhar.Contudo,aimagemcerebralnosmostra,noleitoradulto,mecanismosaltamenteevoluídoseadaptadosàsoperaçõesrequeridaspelaleitura.

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Quesoluçãotemesseenigmaouparadoxo?Sendoalínguaescritaumobjetoculturaldeinvençãorelativamenterecentenahistóriadahumanidade,“simplesmentefaltoutempoparaqueumaevoluçãoconcebesseoscircuitosespecializadosparaaleitura”(Dehaene,2012:18),oquenãoocorrecomosdois“alicerces”daleitura:afalaeavisão,capacidadesinatas,geneticamenteprogramadas.Estudosepesquisasnocampodaneurociênciadosprocessoscognitivos,campoquesevemdesenvolvendorápidaesolidamentenasúlti-masdécadas,comoapoioemmodernastecnologiasdeneuroimagemquepermitemidentificarofuncionamentodocérebroduranteatividadesqueenvolvemalínguaescrita,29indicamqueasoluçãodoenigma,ouparado-xo,estánaplasticidadedaarquiteturadocérebroqueseadaptaaobjetosculturaiscriadospelohomem–umainteraçãoentrenaturezaecultura,queDehaene(2012:165-66)assimcaracteriza:

Nossa história evolutiva, pelo viés do patrimônio genético, especificasuaarquiteturacerebral limitada,masparcialmentemodificável.Novasinvenções culturais são possíveis,mas somente namedida emque seajustaremaoslimitesdaarquiteturadenossocérebroeentraremnoen-velopedaplasticidade.Essesobjetosnovosdeculturapodemseafastarconsideravelmentedosobjetosnaturaispormeiodosquaisnossocérebroevoluiu–nada,nomundonatural,separeceaumapáginadetexto.Maselesdevem,nomínimo,encontrarseu“nichoecológico”nocérebro:umcircuitocujopapelinicialémuitopróximo,ecujaflexibilidadeésuficienteparaserconvertidoaessenovouso.

AsoluçãodoenigmapropostoporDehaeneestá,pois,noqueeledenomina“reciclagemneuronal”:uma reconversão,naaprendizagemdaescrita,decircuitosneuronaisjáfuncionais,fundamentalmenteos

29 EmHrubyeGoswami(2011)encontra-seumaexcelenterevisãodaspesquisassobrealfabetizaçãoquevêmsendodesenvolvidasnaáreadaneurociência,comindicaçãodapotencialidadedessaspesquisasparaumamelhorcompreensãodosprocessosdeaprendizagemdalínguaescritaeênfasenaimportância,paraoplenoentendimentodessesprocessos,deinteraçãointerdisciplinarentreaspesquisasemeducaçãoeaspesquisasemneurociência.Entretanto,Goswami(2006a)alertaparaoperigodos“neuromitos”quevêminvadindoaeducação,conduzindo,porilaçõessimplistaseequivocadas,aumadivulgaçãoeusoinadequados,noensino,deresultadosdaspesquisasemneurociência.

Alfabetização: o método em questão • 45

circuitosdalinguagemedavisão,paraoutrosfins,oque,obviamente,exigeaprendizagem.30NaspalavrasdeMaryanneWolf(2007:11),emlivro emque faz análise abrangente e instigantedas várias facetasdaleitura,sobaperspectivadaneurociência:

[...]nãohágenesespecíficosapenasparaaleitura[...].Diferentementedesuaspartescomponentescomoavisãoeafala,quesãoorganizadasgenetica-mente,aleituranãotemumprogramagenéticodiretoquesejatransmitidoparageraçõesfuturas.[...]Istoépartedoquetornaaleitura–equalquerinvençãocultural–diferentedeoutrosprocessos,eéarazãoporqueelanãochegaàsnossascriançastãonaturalmentequantoavisãooualínguaoral,quesãopré-programadas.

Pode-se,assim,concluirqueaaprendizagemdaescritanãoéumpro-cessonatural,comoéaaquisiçãodafala:afalaéinata,éuminstinto;sendoinata,instintiva,énaturalmenteadquirida,bastandoparaissoqueacriançaestejaimersaemambienteemqueouveefalaalínguamaterna.Aescrita,aocontrário,éumainvençãocultural,aconstruçãodeumavisualizaçãodossons dafala,nãouminstinto.

Emdecorrência,seafalanãoé,nemprecisaser,ensinadadeformaex-plícita,consciente–nãohánecessidadedemétodosparaorientaraaquisiçãodofalaredoouvir–,aescritaprecisaserensinadapormeiodemétodosqueorientemoprocessodeaprendizagemdoleredoescrever.Nessesentido,éinteressanteoresultadoaquechegaramCrain-ThoresoneDale(1992)que,empesquisa longitudinal, investigaramsecrianças linguisticamenteprecoces aos20meses, isto é, comnível de linguagemoral superior aonormalnessaidade,manifestariamtambémprecocidadenaescritanapré-escola,tendoconcluídoque,seaprecocidadenalinguagemoralsemanteveaolongodosanos,nãoseestendeuàescrita,quandoascriançasaelaforamintroduzidas.Esseresultadoreforçaosargumentosanteriormenteapresen-tados,evidenciandoadissociaçãoentreaquisiçãodafala,processonatural,

30 Sobreareciclagemneuronaleaalfabetização,sugere-se,nabibliografiabrasileira,aleituradeScliar-Cabral(2010).

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eaprendizagemdaescrita,processoquedependedeensino,econfirmaanãopertinênciadahipótesedosanos1970dequeaescritaseria,comoafala,adquiridaporumprocessonatural.

A fACETA LINGUÍSTICA dA ALfABETIzAçãO: A APrENdIzAGEM dA ESCrITA ALfABéTICA

Ao contrário de escritas logográficas ou ideográficas, que grafamossignificados–oconteúdosemânticodafala–,aescritaalfabéticagrafaossignificantes–ossonsdafala–,decompondo-osemsuasunidadesmíni-mas,os fonemas,que,emborasejamentidadesabstratas,nãoobserváveisdiretamente, nãoaudíveisenãopronunciáveisisoladamente,setornam,noentanto,visíveissobaformadeletrasougrafemas.31

Dessa forma, aprender a escrita alfabética é, fundamentalmente,umprocessodeconvertersonsdafalaemletrasoucombinaçãodele-tras–escrita–,ouconverterletras,oucombinaçãodeletras,emsonsdafala–leitura.Essa“conversão”desonsemletras,deletrasemsons,queéaessênciadeumaescritaalfabética,é,comoditoanteriormente,umainvençãoculturalquetemsidocaracterizadaoracomoainvençãodeumcódigo, oracomoainvençãodeumsistema de representação,oraaindacomoainvençãodeumsistema notacional.

Acaracterizaçãodosistemadeescritaalfabéticocomoumcódigo,emboratalvezamaiscomum,e,emdecorrênciadisso,ousofrequentedosverboscodificaredecodificartêmsidoapontadospormuitoscomoimpróprios.Na verdade, um código é, em seu sentido próprio, umsistemaque substitui (comoocódigoMorse, a escritaemBraille)ouesconde(comocódigosdeguerra,criadosparagarantirasegurançadecomunicações)ossignosdeumoutrosistemajáexistente–porexemplo,épossível criarumcódigopara substituirou esconderosgrafemasdosistemaalfabéticoporoutrossignos.Consequentemente,seseconsidera

31 Oconceitodefonemaesuasimplicaçõesparaaalfabetizaçãosãodiscutidosdeformadetalhadanocapítulo“Consciênciafonêmicaealfabetização”.

Alfabetização: o método em questão • 47

seusignificadoliteral,overbocodificardenotaautilizaçãodeumsistemadesinaisousignosquesubstituemosgrafemasdosistemaalfabético,eoverbodecodificardenota,literalmente,adecifraçãodesinaisousignostraduzindo-osparaosistemaalfabético.Assim,este,osistemaalfabético,éosistemaprimeiro,nãoéumsistemadesubstituiçãodeoutropreexis-tente–nãoéumcódigo,anãoserqueseconsiderassequeosgrafemas“substituem”ossonsdafala,oquenãoélinguisticamenteverdadeiro:osgrafemasrepresentamossonsdafala,eosistemadeescritaalfabéticofoiinventadocomoumsistema de representação,nãocomoumcódigo.ParaFerreiro(1985:12),adiferençaessencialéque

[...]nocasodacodificação,tantooselementoscomoasrelaçõesjáestãopredeterminados; onovo códigonão faz senão encontraruma repre-sentaçãodiferenteparaosmesmoselementoseasmesmasrelações.Nocasodacriaçãodeumarepresentação,nemoselementosnemasrelaçõesestãopredeterminados.[...]Ainvençãodaescritafoiumprocessohis-tóricodeconstruçãodeumsistemaderepresentação,nãoumprocessodecodificação.

ParaTolchinsky(2003),quedistinguerepresentações internas(mentaisoucognitivas)deexternas,ainvençãodaescritafoiaconstruçãodeumsistemaderepresentação externaque–comotodarepresentaçãoexterna–foi“criadadeliberadamenteparasignificaralgo,paraserinterpretada”(2003:7),esecaracterizaportrêsdimensões:éumarepresentaçãoarbitrária,porque“oeloentreformaseconteúdonãoseexpressaemtermosdesimilaridade,causalidade,relaçõesparte-todoouconexõeslógicasounaturais”; éumarepresentaçãoconvencional,porqueexigeuma“inculcaçãosocialespecífi-ca”,demodoagarantiruma“uniformidadedeinterpretaçãoparasignosarbitrários”(2003:13);eéumarepresentaçãosistemática,porque“ossignosconstituemumsistema”:osignificadodecadasignoédeterminadopelosistemadequeelefazparte(2003:14).

AindaparaTolchinsky(2003:p.xxi),aescrita,comotambémosnume-rais,“sãoumaespéciedesubdomíniosnoamploterritóriodasrepresentações

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externas,porqueseutilizamdeumanotação(oalfabetoeosistemadenu-meraçãoindo-árabe)”.Umanotação,defineTolchinsky(2003:15),“éumconjuntolimitadodeelementos;cadaelementotemumaformaespecífica,umnomeeumadeterminadaposiçãonoconjunto”.A.Morais(2005:33)conceituanotaçãocomo“registrosimbólicomaterializadonumasuperfícieexterior(folhadepapel,teladecomputador,etc.)”.Nessaperspectiva,aescritaalfabéticaéumsistema notacional.32

Em síntese, pode-se dizer que a escrita alfabética foi historicamenteconstruída comoum sistema de representação externa, que sematerializacomoumsistema notacional, nãocomoumcódigo.Naperspectivadoensino,queéaqueseadotanestelivro,emqueofocoéaquestãodosmétodosdealfabetização,assume-sequeaescrita,paraacriança,emseuprocessodedesenvolvimentoeaprendizagem,étantoum sistema de representaçãoquantoumsistema notacional.

Éumsistema de representaçãoporque,emseuprocessodecompreensãodalínguaescrita,queseiniciaantesmesmodainstruçãoformal,acriançadecertaforma“reconstrói”oprocessodeinvençãodaescritacomorepresen-tação,oquenãoquerdizer,conformealertaTolchinsky(2003:20),que“háumarecapitulaçãodahistóriasocialnoprocessoindividualdeaquisição”. Eexplica,justificandoarevisãoquefazdaorigemehistóriadaescritaedosnumerais: “oqueocorreéqueessarecapitulaçãopodeiluminarmuitosproblemasqueascriançasenfrentamnoprocessodeseapropriaremdessesobjetossociais” (apesquisadorarefere-seaossistemasdeescritaedenume-ração).ÉoqueafirmatambémFerreiro(1985:12-3):

Nocasodosdoissistemasenvolvidosnoiníciodaescolarização(osistemaderepresentaçãodosnúmeroseosistemaderepresentaçãodalinguagem),asdificuldadesqueascriançasenfrentamsãodificuldadesconceituaisse-melhantesàsdaconstruçãodosistema,eporissopode-sedizer,emambososcasos,queacriançareinventaessessistemas.Bementendido:nãose

32 Sobreosconceitosdecódigo,representaçãoenotaçãorelacionadoscomacaracterizaçãodaescritaalfabéticaeoutrasescritas(numérica,musical),podem-seconsultarSinclair(org.,1990);Ferreiro(1985);Tolchinsky(1995;2003);A.Morais(2005;2012).

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tratadequeascriançasreinventemasletrasnemosnúmeros,masque,parapoderemseservirdesseselementoscomoelementosdeumsistema,devemcompreenderseuprocessodeconstruçãoesuasregrasdeprodução,oquecolocaoproblemaepistemológicofundamental:qualéanaturezadarelaçãoentreorealeasuarepresentação?

Por outro lado, a escrita é, para a criança, um sistema notacionalporque,aocompreenderoqueaescritarepresenta(acadeiasonoradafala,nãoseuconteúdosemântico),precisatambémaprenderanotaçãocomque,arbitráriaeconvencionalmente,sãorepresentadosossonsdafala(osgrafemasesuasrelaçõescomosfonemas,bemcomoaposiçãodesseselementosnosistema).

Aoanalisara faceta linguísticadaalfabetização,este livroanalisa,emoutraspalavras,aaprendizagemdalínguaescritacomoumsistema de re-presentaçãoeumsistema notacional.33Nocontextodasmuitasecomplexasquestõesqueperturbamaáreadoensinoparaaaprendizageminicialdalínguaescrita,estelivroserestringe,pois,aumadasfacetasdoprocessodeaprendizageminicialda línguaescrita, focalizandoseus fundamentosteóricoseasimplicaçõesdestesparaaquestão dos métodos.

Assim, os capítulos “Fases de desenvolvimento no processo deaprendizagemdaescrita”,“Aprendizagemdalínguaescritaemdiferentesortografiasenaortografiadoportuguêsbrasileiro”e“Consciênciameta-linguísticaeaprendizagemdalínguaescrita”apresentamosfundamentosepressupostosquecontextualizameconfiguramafacetalinguísticadaaprendizageminicialdalínguaescrita.Anaturezadessafaceta,umdosdoistemascentraisdestelivro,édiscutidanoscapítulos“Consciênciafonológica e alfabetização”, “Consciência fonêmica e alfabetização”,“Leituraeescritadepalavras”e“Oefeitoderegularidadesobrealei-

33 Otermocódigo, porimpróprio, comoditoanteriormente, sóéusadonoscapítulosqueseseguememcitaçõescujosautoresoadotam;eventualmente,porém,serãousadosnestelivroosverboscodificaredecodificar,assumindo-oscomosentidodeprocessosdecifraçãooudecifraçãodosistema notacional,jáqueinexistem,nalíngua,verbosderivadosdosubstantivonotaçãoqueexpressemessesentido(osverbosnotaredenotar,nousoqueédelesfeitonalíngua,nãoserelacionamcomoconceitodenotaçãoaplicadoaosistemaderepresentaçãoalfabética).

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turaeaescrita”,enquantoosegundotemacentraléobjetodocapítulofinal,“Métodosdealfabetização:umarespostaàquestão”:asconclusõese inferências que, decorrentes dos capítulos anteriores, sugeremumarespostaparaaquestãodosmétodosdealfabetizaçãoeinferênciassobreaformaçãodealfabetizadores(as).Aindanessecapítulofinal,busca-serecuperar a totalidadedoprocessodeaprendizagem inicialda línguaescrita,apresentandoapossibilidadee,maisqueisso,anecessidadedeconjugarafacetalinguísticacomasduasoutrasfacetas,paraumapráticabem-sucedidadealfabetizaçãoeletramento.

Entretanto,paraque,naleituradospróximoscapítulos,aquestão dos métodossejaconsideradanoslimitesdarelativaimportânciaquetem,busca-secontextualizá-lanotópicoseguinte,queencerraestecapítulo.

MéTOdOS SãO uMa qUESTãO, NãO SãO a qUESTãO

Inseridanocampodaeducaçãoescolar,aaprendizageminicialdalínguaescritasofreainfluênciadosfatoresquecondicionam,epodematémesmodeterminar, esse campo: fatores sociais, culturais, econômicos,políticos;éilusóriosuporquemétodosatuemindependentementedainterferênciadesses fatores.Assim,a fimdeevitarque,nos capítulosque se seguem,sejaatribuídoumvalorabsolutoouindependenteaosmétodossugeridosemdecorrênciadeprincípioseteoriasquesãotemasdoscapítulosqueseseguem,destacam-se aqui aspectos que, atuando sobre eles, evidenciamoutras questõesqueinterferememsuapráticaerelativizamseupodercomofatordeterminantedaalfabetização.

Métodosparaaaprendizageminicialdalínguaescrita,segundoocon-ceitoadotadonestelivro,sãoconjuntosdeprocedimentosque,combaseemteoriaseprincípioslinguísticosepsicológicos,orientamessaaprendizagem,emcadaumadesuasfacetas.Noentanto,métodosnãoatuamautonoma-mente, sem limitaçõesouobstáculos; constituídosdeprocedimentosdeinteraçãoentrealfabetizador(a)ealfabetizandos,efetivam-senainter-relaçãoentreparticipantesdiferenciados,emsituaçãodeaprendizagemcoletiva,emumcontextoescolarinseridoemdeterminadacomunidadesocioeconômica

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ecultural.Ouseja:métodosnãoconstroemumprocessolinear,mas,comoconsequênciademuitoseváriosfatoresintervenientes,configuram-secomoumprocessodegrandecomplexidade.

Deumlado,o(a)alfabetizador(a)sedistingueporcaracterísticaspes-soais, taiscomoclassesocial,gênero,traçosdepersonalidade, idade,va-riantelinguística,eporexperiênciasprofissionais,comoformaçãoinicialecontinuada,experiêncianomagistério,motivaçãoeaptidãoparaoensino,particularmenteparaaalfabetização.

Deoutro,osalfabetizandostambémsedistinguemporcaracterísticaspessoais–entreoutras,classesocial,gênero,idade,traçosdepersonali-dade,contextofamiliar,domíniodalínguaoral,variantelinguística–,eporexperiênciasdeaprendizagemprévia–convívio,ounão,comalíngua escritano ambienteda família eda comunidade,habilidades,conhecimentos, atitudesdesenvolvidasemrelaçãoàescolaeà línguaescrita.Destaque-se, ainda,o impacto, emsituaçãodeaprendizagemcoletiva, das diferenças individuais entre os alfabetizandos, tanto emrelaçãoàscaracterísticaspessoaisquantoemrelaçãoàsexperiênciasdeaprendizagemanterioresàalfabetização.

Essaspeculiaridadesdealfabetizador(a)ealfabetizandosafetamaintera-çãoqueentreelesocorre,eintervêmnapráticadosmétodos,queprocuramfazeramediaçãoentreensinoeaprendizagem.Maiscomplexasetornaasituaçãodeensinoeaprendizagemseseconsideraqueelaocorreinseridaemdeterminadocontextoescolareemdeterminadacomunidade.

Emprimeirolugar,elaocorreemumasaladeaulacomcertonúmerodealunos,númeroquepodeseradequado,ounão,àsnecessidadeseàspossibilidadesdosmétodosdealfabetização,comespaçosuficienteeadequado,ounão,àsatividadesprevistaspelosmétodos,comdispo-nibilidade,ounão,dematerialdidáticoerecursosnecessáriosàpráticadosmétodos.

Emsegundolugar,asaladeaulaemquesedesenvolveaaprendizagemestáinseridaemumaescolaqueédedeterminadotamanho,temdetermi-nadascondiçõesfísicasemateriais,orienta-seporcertocurrículoecertaorganizaçãodo tempo, é dirigidapordeterminado gestor, está sujeita a

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interferênciaspositivasounegativasdeórgãosexternosdaadministraçãoeducacional(distribuiçãodelivrosdidáticos,paradidáticos,deliteratura,avaliaçõesexternasdaaprendizagemdosalunos)eemqueimperadetermina-do“clima”,quepossibilitaefacilita,ounão,açõeseiniciativas,eincentiva,ounão,alfabetizadores(as)ealfabetizandos.

Finalmente,aescolasesituaemdeterminadacomunidade,comcertacomposiçãosocialeétnica,umcertoníveleconômico,umgraumaioroumenordeinserçãonaculturaletrada,determinadasexpectativasemrelaçãoàescolaeàescolarização.

São,pois,numerosos e complexosos fatoresquepodem intervirnapráticademétodosdealfabetização–elesconstituemoutras questõesqueseacrescentamàquestãodosmétodos.Assim,osmétodosque,naconcepçãoadotadanestelivro,são,decertaforma,proposiçõesdecorrentesdeteorias,alteram-senapráticado(a)alfabetizador(a)–afinal,quemalfabetizanãosãoosmétodos,maso(a)alfabetizador(a),sendoele/elaquemé,comousoespecíficoquefazdosmétodosecomtudoqueacrescentaaeles,esendoosalfabetizandosaquelesquesão,ocorrendooprocessonoscontextosenascondiçõesemqueocorre.SegundoAllanLuke(1998:312),emtextoemquediscuteaquestãodemétodosdealfabetização,“umensinoeficientenãodependeapenasdaaprendizagemdeumconjuntodemétodosfunda-mentadoscientificamente”,eacrescenta:“issosóocorreriaseassumíssemosoaxiomadalógicade‘todasascoisaspermanecendoiguais’”, mas,concluiele,“nasescolasdoOcidentepós-industrial,‘todasascoisasnuncaperma-necemiguais’”.

Noentanto,aexistênciadessasoutrasquestõesnãoimplicaa invali-daçãooudesvalorizaçãodosmétodos.Noquadrodeumaconcepçãodoprocessodeintroduçãodacriançaàescritacomoensinoeaprendizagemdeumconjuntodecompetênciasdistribuídaspordiferentesfacetasdalínguaescrita,elucidadasporestudosepesquisasnaáreadasciênciaslinguísticaserelacionadasadiferentesdomínioscognitivosporestudosepesquisasnaáreadaPsicologia,osmétodos,fundamentadosnessesváriosestudosepesquisas,mantêm,adespeitodainterferênciadefatoresexternosaeles,suavalidade,sesãosolidamenteconstruídossobreoalicercedaanálisedoobjetoaser

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aprendido,alínguaescrita,edosprocessoscognitivosdeaprendizagemdesseobjeto:métodostêmaimportantefunçãodepropiciaraoensinosubstratocientíficoepedagógicoquefundamenteaprática,aomesmotempoquepodesercorrigidoporela,edeoferecercritériosparaencaminhamentosecorreçãoderumos.Precisam,sim,adaptar-seàinterferênciadosfatoresexternos,demodoarespeitá-losouasuperá-los,masnãopodemsernegadosporcausadeles.Retomandoeampliandooconceitoanteriormenteproposto:métodosdealfabetizaçãosãoconjuntosdeprocedimentosfundamentadosemteoriaseprincípioslinguísticosepsicológicos,massuficientementeflexíveisparaque,napráticapedagógica,possamsuperarasdificuldadesinterpostasporfatoresexternosqueinterfiramnaaprendizagemdosalfabetizandos.

Assim, reconhecendoquemétodosnão sãoaquestão,masumadasquestõesnaaprendizageminicialdalínguaescrita,eaindaquemétodosdevem fundamentar-se empesquisas e teorias sobre essa aprendizagem,estelivro,comoobjetivodeesclareceraquestão dos métodos,apresentaumarevisãodealicercesteóricosdequesepodeminferirmétodosdealfabetiza-ção,istoé,métodosqueorientemodesenvolvimentoeaaprendizagemdafaceta linguísticadaalfabetização,recorteessencialdaaprendizageminicialdalínguaescritaedaintroduçãodacriançaàculturaletrada.