Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra

186

Transcript of Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra

Page 1: Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra
Page 2: Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra

–PAULOFREIREEDONALDOMACEDO

ALFABETIZAÇÃO:LEITURADOMUNDO,LEITURADAPALAVRA

Tradução:Tradução:LólioLourençodeOliveira

PAZETERRA

Page 3: Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra

Copyright©EditoraVilladasLetras

Títulooriginal:Literacy:readingthewordandtheworld

DireitosdeediçãodaobraemlínguaportuguesaadquiridospelaEditoraPazeTerra.Todososdireitosreservados.Nenhumapartedestaobrapodeserapropriadaeestocadaemsistemadebancodedadosouprocesso similar, em qualquer forma ou meio, seja eletrônico, de fotocópia, gravação etc., sem apermissãododetentordocopirraite.

EditoraPazeTerraLtda.RuadoTriunfo,177—Sta.Ifigênia—SãoPauloTel:(011)3337-8399—Fax:(011)3223-6290http://www.pazeterra.com.br

TextorevistopelonovoAcordoOrtográficodaLínguaPortuguesa.

CIP-BRASIL.CATALOGAÇÃONAFONTESINDICATONACIONALDOSEDITORESDELIVROS,RJ

Freire,Paulo,1921-1997

Alfabetização:leituradomundo,leituradapalavra/PauloFreire,DonaldoMacedo;traduçãoLólioLourençodeOliveira.–RiodeJaneiro:PazeTerra,2011.

Formato:ePubRequisitosdosistema:AdobeDigitalEditionsMododeacesso:WorldWideWeb

ISBN978-85-7753-215-5(recursoeletrônico)

1.Alfabetização2.Autodeterminação3.PolíticaeeducaçãoI.Macedo,DonaldoII.Título.

Bibliografia

CDD-370.115

Índicesparacatálogosistemático:1.Alfabetizaçãoepolíticaeducacional379

2.Educaçãoedemocracia370.115

Page 4: Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra

SumárioPREÂMBULO

PREFÁCIO

ANNE.BERTHOFF

CARTAAOSLEITORES

INTRODUÇÃO:ALFABETIZAÇÃOEAPEDAGOGIADOEMPOWERMENTPOLÍTICO

HENRYA.GIROUX

1 Repensandoaalfabetização:umdiálogo

2 AlfabetizaçãonaGuiné-Bissau:umreencontro

3 OanalfabetismodaalfabetizaçãonosEstadosUnidos

4 Alfabetizaçãoepedagogiacrítica

5 Repensandoapedagogiacrítica:umdiálogocomPauloFreire

APÊNDICE:CARTAAMÁRIOCABRAL

BIBLIOGRAFIA

Page 5: Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra

PREÂMBULO

Acrisedoanalfabetismotemsido,comumente,consideradaumfenômenoadstrito aos países do Terceiro Mundo. Cada vez mais, porém, oanalfabetismoameaçaacontinuidadedodesenvolvimentodepaísesaltamenteindustrializados. Um livro muito famoso de Jonathan Kozol, IlliterateAmerica (1985), oferece uma análise sucinta da crise do analfabetismo nosEstados Unidos, onde mais de sessenta milhões de norte-americanos sãoanalfabetos, ou funcionalmente analfabetos. As implicações desse nível tãoalto de analfabetismo são de largo alcance e, no entanto, amplamenteignoradas. O analfabetismo não só ameaça a ordem econômica de umasociedade, como também constitui profunda injustiça. Essa injustiça temgraves consequências, como a incapacidade dos analfabetos de tomaremdecisõesporsimesmos,oudeparticiparemdoprocessopolítico.Dessemodo,oanalfabetismoameaçaocarátermesmodademocracia.Solapaosprincípiosdemocráticosdeumasociedade.

A crise mundial do analfabetismo, se não combatida, exacerbará aindamais a debilidade das instituições democráticas e as injustas relaçõesassimétricas de poder que caracterizam a natureza contraditória dasdemocracias contemporâneas.A contradição inerente à utilização hoje feitado termo “democracia” foi captada de maneira expressiva por NoamChomsky(OnPowerand Ideology [1987]), em sua análise da sociedadedosEstadosUnidos.

“Democracia”,naretóricadosEstadosUnidos,dizrespeitoaumsistemadegovernoemqueelementosdaelite,instaladosnacomunidadeempresarial,controlam o Estado, graças a sua predominância na sociedade privada,enquanto a população observa silenciosamente. Assim entendida, ademocraciaéumsistemadedecisãodeeliteederatificaçãopública,comosedánosEstadosUnidos.Emconsequênciadisso, o envolvimentopopularnaformação das políticas públicas é considerado uma grave ameaça. Isso nãoconstituiumpassoemdireçãoàdemocracia;antesrepresentauma“crisedademocracia”quedevesersuperada.

A fim de superar, pelomenos parcialmente, essa “crise da democracia”,deve-se instituir uma campanha de alfabetização crítica. Deve ser uma

Page 6: Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra

campanhadealfabetizaçãoquetranscendaoatualdebatearespeitodacrisedaalfabetização—oqualtendearetomarvelhospressupostosevaloresrelativosao significado e à utilidade da alfabetização —, ou seja, a ideia de que aalfabetização é simplesmente um processo mecânico que enfatizaexcessivamenteaaquisiçãotécnicadashabilidadesdeleituraedeescrita.

EmAlfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra, acenamos comuma visão da alfabetização comouma formade política cultural. Emnossaanálise,aalfabetizaçãotorna-seumconstrutosignificativonamedidaemqueé encarada comoum conjunto de práticas que funciona para empower,1 ouparadisempower, as pessoas. Em seu sentidomais amplo, a alfabetização éanalisadaconformefuncioneparareproduziraformaçãosocialexistente,oucomoumconjuntodepráticasculturaisquepromoveamudançademocráticaeemancipadora.Nestelivro,valemo-nosdeumconceitodealfabetizaçãoquetranscende seu conteúdo etimológico. Isto é, a alfabetização não pode serreduzida aomero lidar com letras e palavras, como uma esfera puramentemecânica. Precisamos ir além dessa compreensão rígida da alfabetização ecomeçaraencará-lacomoarelaçãoentreoseducandoseomundo,mediadapela prática transformadora desse mundo, que tem lugar precisamente noambienteemquesemovemoseducandos.

Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra compõese de trêspartes: 1. capítulosqueoferecemuma reconstrução teóricada alfabetização,como se discute nos diálogos; 2. capítulos que oferecem análises históricasconcretasdecampanhasdealfabetizaçãoempaísescomooCaboVerde,SãoToméePríncipeeaGuiné-Bissau;3.capítulosanimadosporumalinguageme um projeto do possível, que criticam os antigos modos de ver aalfabetização, ao mesmo tempo que traçam novos caminhos que apontamparaalternativasnovas.

Consideramos extremamente importante que os leitores comecem estelivrolendoaIntroduçãodeHenryGiroux.GirouxsituaAlfabetização:leiturado mundo, leitura da palavra em um contexto que fornece uma base paradesenvolver uma pedagogia crítica relativamente às implicações teóricas epráticasglobaisdolivro.

DesejamosexpressarnossossincerosagradecimentosaHenryGirouxporseus percucientes comentários e contribuições no correr da preparação do

Page 7: Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra

manuscrito. Agradecemos a nossos colegas e amigos do Departamento deInglêsdaUniversidadedeMassachusetts,emBoston,porseudecididoapoio,desde que este livro foi concebido, particularmente a Neal Bruss, VivianZamel, Ron Schreiber, PollyUlichny, Eleanor Kutz, CandaceMitchell, ElsaAuerbach e Ann Berthoff. Queremos também expressar gratidão a JackKimballeaJulieBrinesporsuainestimávelajudanacopidescagemdotexto.Agradecemos a Dale Koike pela enorme ajuda na tradução de partes destelivro.NossosagradecimentosaBarbaraGraceffa,queajudoupacientementecom a datilografia e a preparação dos originais. Finalmente, agradecemos anossas famílias pelo permanente e firme apoio a nossos esforços paracontribuirnodesenvolvimentodeumprojetodopossível.

PauloFreirePontifíciaUniversidadeCatólica

SãoPaulo,Brasil

DonaldoMacedoUniversidadedeMassachusetts

Boston,EstadosUnidos

Page 8: Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra

Nota1 Overbotoempowertemumsignificadomuitorico:1.darpodera;2.ativarapotencialidadecriativa;3.desenvolver apotencialidade criativado sujeito; 4.dinamizar apotencialidadedo sujeito.Por isso,preferimos manter essa palavra no original, bem como suas derivadas empowerment (subst.),empowering(ger.),disempower(antôn.)etc.

Page 9: Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra

PREFÁCIO2

EMAÇÃO CULTURAL PARA A LIBERDADE, diz-nosPaulo Freire que, ao procurar“apreenderasubjetividadeeaobjetividadeemsuadialeticidade”—ouseja,compreenderapromessaeas limitaçõesdoquechamade“conscientização”—,procurandocentrarseusesforços,elese tornou“umandarilhodoóbvio,tornando-se o andarilho da desmitificação da conscientização”. E continua:“Nesta andarilhagem, venho apreendendo também quão importante se faztomaroóbviocomoobjetodenossareflexãocrítica.”

Paulo Freire nos ensina a olhar — e a olhar novamente — para nossateoriaepráticaeparaométodoquepodemosextrairdadialéticadarelaçãoentre elas.Nocampoda teoriada alfabetização,nada émais importantedoqueolhareolharnovamenteparaopapeldeumapercepçãodoperceber,depensar sobre o pensamento, de interpretar nossas interpretações. Essascircularidades deixam atordoados os positivistas; faz com que aqueles queFreire chama de “mecanicistas” fiquem muito aflitos com a pedagogia dooprimido. Uma das coisas que mais aprecio em Paulo Freire é que ele éinquieto, mas não aflito. São assim os andarilhos: amam o próprio ócio e,como Sócrates, o primeiro dessa estirpe, deleitam-se com o diálogoespeculativo e crítico em cenários bucólicos — mas também estãoconstantementeemmovimento.

PauloFreireestáumavezmaisemmovimento,eessaatividade,comoseesperaria de um mestre da dialética, implica olhar novamente para suasformulações mais antigas. Neste livro, que se segue imediatamente aAçãoculturalparaaliberdade,umavezmaisnoséoferecidaumasériedereflexõesedereconsiderações:trêsdelassobaformadelongosdiálogoscomDonaldoMacedo,juntamentecomumacarta(1977)extraordinariamenteinteressanteaMárioCabral,MinistrodaEducaçãodaGuiné-Bissau.Emcomentáriosobreocontextoculturaldetododiscurso,Freireassinala,nocapítulo3:“Consideroque a pedagogia será tanto mais crítica e radical, quanto mais ela forinvestigativa e menos certa de ‘certezas’. Quanto mais ‘inquieta’ for umapedagogia,mais crítica ela se tornará.”É evidenteque elenão tem intençãoalguma de permitir que sua própria pedagogia se assente sobre a “certeza”.Aos leitores que conhecem de muito a teoria e a prática de Freire, pode

Page 10: Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra

parecerqueessetipoderevisãonadateriaaoferecer,mascertamentenãoéoque acontece. Somos convidados a nos tornar andarilhos do óbvio, e oproveitoémuitogrande.

Éinstrutivo,pois,começardenovocomPauloFreire,porqueseucomeçosempre foi interessante e nunca banal; sempre complexo, embora nãocomplicado.Acomplexidadeestáaliporquealiestáadialética.Nadasobreasociedade,alíngua,aculturaouaalmahumanaésimples:ondequerquehajasereshumanos,háatividade;eosatoshumanossãoprocessoseosprocessossão dialéticos. Nada simplesmente se desenrola, quer na natureza, quer nahistória;aobstinaçãodasambiênciaseestruturasdetodaespécieénecessáriaao crescimento e ao desenvolvimento, àmudança e à transformação. Isso éuma coisa óbvia, e temos que fazer uma grande caminhada antes quepossamospretendercompreender.

ÉjustoquesedigaqueainfluênciadePauloFreiretevealcancemundialequeoêxitonoenfrentamentodoproblemadoanalfabetismo,sejanoTerceiroMundo ou nas cidades do interior do mundo ocidental, pode muito bemdependerdeemquemedidaosresponsáveisporprogramasdealfabetizaçãovenham a compreender o significado da pedagogia do oprimido de PauloFreire.Seaeducaçãodeveatuardeoutramaneiraquenãocomoinstrumentode opressão, ela deve ser concebida como uma “pedagogia do saber”.3 Aeducação para a liberdade não é simplesmente uma questão de estimular oensinoquetenhaumcertosaborpolítico;nãoéummeiodetransmitirideiastidascomoverdadeiras,por“melhores”queelassejam;nãosetratadedoaroconhecimentodoprofessoraosnãoinstruídosoudeinformá-lossobreofatoda opressão que sofrem. O ensino e a aprendizagem são dialógicos pornatureza, e a ação dialógica depende da percepção de cada um comocognoscente, atitude essa que Freire chama de conscientização. Essa“consciênciacrítica”éenformadaporumavisãodelinguagemfilosoficamentebemfundadaeanimadaporaquelerespeitonãoemotivopelossereshumanosqueapenasumasólidafilosofiadamentepodeassegurar.

Emminhaopinião,nãohámuitoquesepossafazercomasideiasdePauloFreireamenosqueseatendaaduascondições:queestudemosrigorosamentesua filosofia da linguagem e da aprendizagem, uma vez que ela,fundamentalmente,nãocondizcomasopiniõesquetêmsidodisseminadase

Page 11: Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra

institucionalizadas (durante quarenta anos, pelo menos) por educadores,pesquisadorese,também,porburocratas;equereinventemososformatosdenossas conferências e periódicos e, naturalmente, de nossas salas de aula.Voltareiaesteúltimoponto,mas,porenquanto,particularmenteemproveitodaquelesparaquemistosejaumaintroduçãoàobradeFreire,voufazerumesboçodesuafilosofiadalinguagemedoconceitodeaprendizagemaqueeladásustentação.

A linguagem fornece a Paulo Freire metáforas geradoras. Sua visão dohomem como o animal da linguagem (animal symbolicum) está emconsonância com as concepções de Whitehead, Peirce, Cassirer, Langer eoutrosdequemsepossaextrairumafilosofiadalibertação.Freireoexpressadestemodo:“Oatodeaprenderalereescreverdevecomeçarapartirdeumacompreensãomuito abrangente do ato de ler o mundo, coisa que os sereshumanos fazem antes de ler a palavra.Atémesmo historicamente, os sereshumanosprimeiromudaramomundo,depoisrevelaramomundoe,aseguir,escreveram as palavras. Esses sãomomentos da história.Os seres humanosnão começaram por nomear A! F! N! Começaram por libertar a mão eapossar-sedomundo.”

IssoeledissenaUniversidadedeMassachusetts,emBoston.Nocapítulo3destelivro,expressa-odestemodo:“Lerapalavraeaprendercomoescreverapalavra,demodoquealguémpossalê-ladepois,sãoprecedidosdoaprendercomoescreveromundo,istoé,teraexperiênciademudaromundoedeestaremcontatocomomundo.”FreirecertamentesaberiaoqueEmersonqueriadizerquandofalavade“amãodamente”.

Àsvezesestamostãoacostumadosapensarnalinguagemcomoum“meiode comunicação” que pode ser surpreendente descobrir, ou ser levado alembrar, que a linguagem é o meio de construir aqueles significados quecomunicamos.ApedagogiadeFreire funda-senumacompreensãofilosóficadesse poder gerador da linguagem.Quando falamos, o poder discursivo dalinguagem—sua tendênciapara a sintaxe— trazopensamento junto comela. Não pensamos nossos pensamentos e, depois, os pomos em palavras;dizemos e significamos simultaneamente. A elocução e o significado sãosimultâneose correlatos. (Freire, comoVygotsky,põedeparteaquestãoda

Page 12: Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra

prioridade da linguagem ou do pensamento como a questão do ovo e dagalinha.)

Aodemonstrar,nosCírculosdeCultura,opapeldodiálogonaconstruçãodo significado, Freire também indica um modo de pôr de parte o debateestéril a respeito do caráter “natural” da linguagem. A aptidão para alinguagem é inata, mas só se pode concretizar em uma situação social.Camponeses e professor estão empenhados numa ação dialógica, numintercâmbioativodoqualossignificadosemergemesãovistosemergir,paraapedagogia de Paulo Freire é essencial que os educandos sejam capacitadospelo conhecimento de que são educandos. Essa ideia não condiz com asabedoria tradicional da prática educativa atual que enfatiza que onde querque o saber como seja de importância crucial, o saber que é uma perda detempo.Omodelo tradicional para a aprendizagem de uma segunda língua,bemcomoparaa“aquisição”de“habilidadesparalereescrever”,éaatividademotora. Juntamente com os modelos desenvolvimentistas de crescimentocognitivo, essa visão da aprendizagem legitima a ideia do ensino como“intervenção”edateoriacomoumaimposiçãoautoritária.

AconscientizaçãodeFreireviradecabeçaparabaixoessasideias.Elenosajuda a compreender o pleno significado do nome de nossa espécie,Homosapiens sapiens: o homem é o animal que sabe que sabe. Freire afirmaenfaticamente emPedagogia do oprimido que nossa espécie vive não só nomomentopresente,masnahistória.Alinguagemnosdáopoderderecordarsignificados,edessemodopodemosnãosóinterpretar—umaaptidãoanimal— como interpretar nossas interpretações. Saber que garante que há umadimensãocríticadaconsciênciaenosdeslocadocomportamento instintivo,não mediado, do tipo estímulo-resposta, dos outros animais, para aconstrução de significados para a atividade mediada, para a construção dacultura.ParaFreire,teoriaéocorrelatopedagógicodeconsciênciacrítica;nãoéinculcada,massimdesenvolvidaeformuladacomoumaatividadeessencialdetodaaprendizagem.

A linguagem assegura também o poder da conjuntura: por podermosnomearomundoe,assim,tê-lodentrodamente,podemosrefletirsobreseusignificadoeimaginarummundomudado.Alinguageméomeioparaatingiruma consciência crítica, a qual, por sua vez, é o meio de imaginar uma

Page 13: Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra

mudança e de fazer opções para realizar transformações ulteriores. Assim,nomearomundotransformaarealidade,de“coisas”nomomentopresente,ematividadescomoreaçãoasituaçõeseprocessos;emtornar-se.Oensinodalinguagemnocontextode“habilidadesdesobrevivência”estámaisàfrentedoque o treino com livro de exercícios, porém não completa a libertação. Alibertação só vem quando as pessoas cultivam sua linguagem e, com ela, opoderdeconjetura,a imaginaçãodeummundodiferenteaquesedevedarforma.

NocernedapedagogiadosaberdePauloFreireencontra-seaideiadequenomear o mundo torna-se um modelo para transformar o mundo. Aeducaçãonãosubstituiaaçãopolítica,maslheéindispensáveldevidoaopapelquedesempenhanodesenvolvimentodaconsciênciacrítica.Isso,porsuavez,dependedopodertransformadordalinguagem.Aonomearomundo,pede-seàspessoasdosCírculosdeCulturadeFreireque façamumlevantamentode suas roças e aldeias e que coletem os nomes de ferramentas, lugares eatividades que sejam de importância fundamental em suas vidas. Essas“palavrasgeradoras”são,aseguir,organizadasem“fichasdedescoberta”,umaespécie de quadro de vogais, um gerador de léxico feito por cada qual.Algumas das palavras que ele produz são sem sentido; outras sãoreconhecíveis.Opontoessencialéqueosomealetra(forma)seemparelhamentre si apresentando significado ou a possibilidade de significado. Osignificadoestáalidesdeocomeço,oquecertamentenãosedácomosdoismétodos concorrentes para ensinar a ler preferidos pelos educadores norte-americanos — o fonético e o global. O codifica e a codificação —correspondentes a o-que-se-diz e a o-que-se-quer-dizer — são aprendidoscorrelataesimultaneamente.Decodificar—aprenderarelaçãoentre letrasesons—caminhaladoaladocomadecodificação,ouinterpretação.Assim,osignificado está presente desde o início à medida que os educandos“problematizamoexistencial”.Emdesenhosdeumcaçadorprimitivo,oudeuma cozinha pobre, ou em reação a uma vasilha de água, ou outrascodificações,elesnomeiamoqueveemeodequeselembram,identificandoeinterpretandoosignificadodoqueveem.

Paulo Freire afirma que procurar eliminar a crença supersticiosasimplesmente ridicularizando o pensamento mágico não só é impossívelcomo contraproducente. O pensamento pré-crítico é, ainda assim,

Page 14: Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra

pensamento; não deve ser simplesmente rejeitado, mas pode e deve sertransformado.Atarefafundamentaldo“processodealfabetizaçãodeadultoscomo ação cultural para a liberdade” é prover os meios para essatransformação.Ocamponês—ouqualquereducandoquesofraaopressãodasuperstição,sejaeladeideologiareligiosaoudeideologiadaGuerraFria,deliberalismodoutrináriooudequalquerdasmúltiplas formasdepensamentototalitário — só pode libertar-se mediante o desenvolvimento de umaconsciênciacrítica.

Freire rejeitao conceitobancáriode educação (oprofessor fazdepósitosquerendemjurosecorreçãomonetária).Anutriçãoéoutrametáfora:“Comaisto. Faz bem a você!” Freire cita a saudação zombeteira de Sartre — O!philosophiealimentaire!Emvezdaeducaçãocomodoação—doaraosalunosideias valiosas que queremos partilhar —, deve haver um diálogo, umintercâmbiodialético,noqualasideiastomamformaemudamàmedidaqueos educandosdoCírculodeCulturapensam sobreoprópriopensamento einterpretam as próprias interpretações. A dicotomia entre “o afetivo” e “ocognitivo”, tão importante na teoria educacional norte-americana, não tempapel algum na pedagogia de Freire. Ele vê o pensamento e o sentimento,juntamentecomaação,comoaspectosdetudoquantofazemosaoentenderosentidodomundo.

Uma das coisas notáveis a respeito de Paulo Freire é que ele tornaacessíveisessasideiassobreopodergeradordalinguagemesobreopapeldaconsciênciacrítica—eelasnão ficamnemlugares-comunsnemsimplórias.EleéummestredoaforismoedaquiloqueKennethBurkechamade“relatorepresentativo”, uma história que sugere algo para além delamesma, comouma metáfora. Ele previne contra a utilização de slogans, mas motes emáximassãoalgomais—eFreireéumadmirávelconstrutordefrases.

NãosedevepensarquelerFreiresejaumexercíciodereconhecimentodeideias já aceitas. Mesmo quando está expondo ideias convencionais, asignificação se aprimora à medida que ele desenvolve contextos e extraiimplicações. Paulo Freire não é somente um admirável teórico; é um dosgrandesprofessoresdesteséculo.

Nestelivro,aparecemnovamenteosprincípiosdaconsciênciacríticaedapedagogia do saber: são redescobertos, reexaminados, reavaliados,

Page 15: Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra

reinventados.Recogniçãoereinvenção,ambosdeimportânciafundamentalnateoria e na prática, ressoam por todas as páginas deste livro. A recogniçãoimpõe uma consciência crítica ativa por meio da qual se apreendem asanalogias e disanalogias e todos os demais atos da mente são executados,aqueles atos de nomear e de definir, por meio dos quais construímos osignificado. Na verdade, faz sentido dizer que a cognição é dependente darecognição,porquenuncavemos, simplesmente: vemos como,em termosde,comrespeitoa,àluzde.Todasessasexpressõesassinalamospropósitoseosembaraços que constituem as fronteiras do “discurso” no uso corrente.4 Oconceitoderecogniçãoéumconceitocomoqualearespeitodoqualdevemospensar.UmdosrelatosrepresentativosdePauloFreireilustradequemodo:

[…]visitamosumCírculodeCulturadeumapequenacomunidadepesqueirachamadaMonteMário.Eles tinhamcomoumadaspalavras geradoras o termobonito, nomedeumpeixe, e,como codificação, um expressivo desenho do pequeno povoado, com sua vegetação, casastípicas,barcospesqueirosnomareumpescadorsegurandoumbonito.Osaprendizesolhavampara essa codificação em silêncio.De repente, quatro deles se levantaram, como se tivessemcombinadoantes,esedirigiamparaaparedeemqueestavapenduradaacodificação.Olharamatentamenteparaacodificaçãobemdeperto.Depois,foramparaajanelaeolharamparafora.Entreolharam-se como se estivessem surpresos e, olhando novamente para a codificação,disseram:“IstoéMonteMário,MonteMárioécomoisto,enósnãosabíamos.”

Eisaíumarepresentaçãodoatofundamentaldamente—arecognição.Ocomentário de Freire sobre esse relato representativo é que a codificaçãopermitiu que os participantes doCírculo deCultura “conseguissem algumadistância em relação aopróximomundo e começaram a reconhecêlo”. Essainterpretação do significado da história prepara-nos para reconhecer,ademais, que ela representa a dialética essencial de toda investigaçãocientífica; mostra-nos como a concepção modela a formação de conceitos;comoolhareolharnovamenteéaprópriaformaeconfiguraçãodaexploraçãocriativa e do pensamento crítico; como a observação é o ponto de partidaindispensável para a pedagogia do saber.Na verdade, essa história é umaparábola dos caminhos do olho da mente, da imaginação: enquanto aimaginação não for proclamada um direito nato do homem, não seráconcebível qualquer libertação. A história é, assim, uma parábola dapedagogiadosaber.

Recognição,porpartedoprofessor,implicaoreconhecimentodaquiloqueoeducandosabeerespeitoporesseconhecimento;requertambémavaliação.

Page 16: Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra

Freire temmuito claroque ser “não julgativo” éumavirtude retórica enãoumaopção lógica.Devemos respeitarapluralidadedevozes, avariedadedediscursose,naturalmente, linguagensdiferentes:devemos ter tato,masumaatitudeneutraéimpossível.Freireassinalaque,pordefinição,todaatividadehumanaéintencionaletem,porisso,umadireção.Umprofessorquenãoseempenhe empermitir que essa direção seja apreendida e que não entre emação dialógica para examiná-la estará recusando-se à “tarefa pedagógica,políticaeepistemológicadeassumiropapeldesujeitodessapráticadiretiva”.Osprofessoresquedizem“Respeitoosalunosenãosoudiretivo;ecomosãoindivíduos que merecem respeito, devem determinar sua própria direção”acabamporajudaraestruturadepoder.

Esse ponto é muito importante quando chega à reinvenção, a qual,juntamente com a recognição, é o tema principal deste livro. Avaliação,direção,recogniçãoearticulaçãodepropósitosnãoconstituemintervenções,nem são, por si mesmas, autoritárias. A principal reinvenção que osprofessoresradicaisdevemvezporoutraseproporéprecisamentediferenciarautoridade de autoritarismo e saber como encontrar isso em todos os“discursos”,emtodasasconstruçõesdesignificado.Respeitoéocorrelatoderecognição, e a expressão disso por Paulo é sempre animadora e nuncarepetitiva ou sentimental. “A reinvenção”, diz ele, no capítulo 7, “exige, dosujeitoquereinventa,umaabordagemcríticadapráticaedaexperiênciaaserreinventada”. Crítica, para Freire, significa sempre interpretar a própriainterpretação, repensar os contextos, desenvolver múltiplas definições etolerarambiguidades,demodoquesepossaaprenderapartirdatentativaderesolvê-las.E significaamaiscuidadosaatençãoaonomearomundo.Todo“discurso”temembutidaemsi,emcertograu,ahistóriadeseuspropósitos,mas Freire nos lembra seguidamente, também, de seu caráter heurístico(gerador): nós podemos perguntar “E se…?” e “Como seria se…?”.Representando,assim,opoderdeconjetura,alinguagemofereceomodelodetransformaçãosocial.QuandoFreireescreve,nocapítulo3,que“areinvençãodasociedade[…]exigeareinvençãodopoder”,oquequerdizer,creio,équeareinvençãoéotrabalhodamenteativa;éumatodeconhecimentopeloqualreinventamos nosso “discurso”. Freire nunca se deixa levar por sonhosutópicos.Seussonhossãoconstruídosporumaimaginaçãocríticaeinventiva,

Page 17: Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra

exercida—praticada—nodiálogo,nanomeaçãoerenomeaçãodomundo,oqueorientasuareconstrução.

Ummododemanter-sealertaparaasignificaçãodasdistinçõessobrequeinsiste Paulo Freire é pensar sobre elas em trios. EmAção cultural para aliberdade, ele justapõea Igreja tradicional e a Igreja liberal,modernizante, a“outra linha da Igreja […] tão velha quanto o cristianismo mesmo — aprofética”. Essa tríade— tradicional/liberalmodernizante/profética — podeservir como paradigma das dispostas dialeticamente neste livro:autoritarismo/domesticação/mobilização; atitudes que sãoingênuas/astutas/críticas; e pedagogias que são burguesas autoritáriaspositivistas/laissez-faire/radicalmentedemocráticas.Mais estimulante é outratríadecomumtermomédioduplo:asatitudespedagógicascaracterizadasporneutralidade/manipulação ou espontaneidade/práxis política. Metade dascontrovérsias que campeiam na educação podia ter um fim, se se pudessedesenvolverumaconsciênciacríticadasignificaçãodaquele“ou”.

Cadaumdoscapítulosdestelivrocontribuiparanossacompreensãodeoquesevinculaàsopçõesquefazemosentreessastríades.OsquejáconhecemaobradeFreireprovavelmenteconsiderarãoocapítulo5demaiorinteresse,poisalielediscuteacríticaaseutrabalhoemGuiné-Bissau,especialmenteaacusaçãodequefoi“populista”.“Refletireisobrereflexõespassadas”,escreveFreire,eprosseguecomumaanálisepenetrantedeoquesepodeexigirdeumprocesso de alfabetização emancipadora numa sociedade com múltiplosdiscursoseduaslínguasconcorrentes.Capítuloquetodososleitoresjulgarãoimediatamente esclarecedor, bem como inteiramente encantador, é oprimeiro, “A importância do ato de ler”. Hámais sabedoria nessas poucaspáginassobre“aleituradomundo,aleituradapalavra”doquenaavalanchede chamadas pesquisas de psicolinguistas e de agentes de instruçãoprogramada, para não falar nos teóricos retóricos, que ainda não podem seresolver a falar de significar, conhecer e dizer, embora se refiramcuidadosamentea“espaçodeconteúdo”e“espaçoretórico”!Ospesquisadorespositivistas que se dedicam a estudar a alfabetização com conceitos“mecanicistas”delinguagemconcluíramquelerapalavraeescreverapalavranãotêmqualquerefeitosobreacapacidadecognitiva.Minhaopiniãopessoaléque eles são insuperavelmente ignorantes; mas para os que acharamirresistíveis essas pesquisas, dedicar uma tarde ao estudo da concepção de

Page 18: Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra

Freiredeescrevercomoumaformadetransformaromundoseriacertamentesalutarepoderiaserprofilático.

Trêsdoscapítulosestãonaformadediálogo,esuponhoque,paraalgunsleitores,serãodedifícilleitura.Creioqueosacadêmicosnorte-americanos—particularmente em ciências sociais — consideram o discurso falado(conversa!)umaformaestranha.PauloeDonaldoescutamumaooutro.Cadaumdáretornoaooutro,dizendo(erealmentequerendodizer)“Ouçooquevocê está dizendo e parece-me ser…”. E eles prosseguem,monotonamentetalvez, para um leitor impaciente, não porém para quem possa imaginar ocenáriobucólico adequado,ouo café, onde sepoderia escutar essa trocadeideias que vai e vem desordenadamente, mas intensamente dialógica. Taisleitores terão a sensação de que podem intrometer-se, discordar ouinterrompercomobservaçõesàmargem.Podemtornar-separceirosvirtuaisdodiálogo,refletindosobresuasprópriasreflexões.

MinhaexperiênciapessoalaoouvircasualmenteconversasemCambridge,Massachusetts, e em universidades por todo o país, é que os acadêmicosnorte-americanos sempre dizem “Como eu estava dizendo…”; isto,decodificado,significa:“Vocêmeinterrompeu!”Diálogosnãodialéticosdessetipo reproduzem-se emnossos congressos e reuniões acadêmicas, onde nosdeixamos esmagar pela arquitetura, controlar pela estrutura das salas dereunião e pelo programa estabelecido pelo grupo organizador. (Dois milpratos sendo empilhados do outro lado de um tabique tornam o encontroentreduaspessoasquetentamnomearomundoumaoperaçãomuitodifícil.)Se a administraçãodohotelnãopermiteque sedesloquemas cadeirasparaformar um círculo ou se pretendem cobrar trinta e cinco dólares por cadamicrofoneextra,porquenãoameaçamosrealizarnossaconvençãodoladodefora?Algumascoisasestãomaissobnossocontroleimediato:porqueéqueogênero preferido nas convenções é a preleção? Não deveríamos dar umasoluçãoaoevidenteparadoxodeumapreleçãoarespeitodaaçãodialógica?Aspreleçõesestãoforademoda:porquenosapegamosaelasemnossassalasdeaula e em nossos congressos? A preleção é uma antiga invenção medievaldevidaaofatodequeoslivroseramescassos.Apreleção[eminglês, lecture]era originalmente uma leitura (lectito, lectere); alguém lendo em voz altatornavaumúnicolivroacessívelamuitos.Porqueteráissosobrevividoentre

Page 19: Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra

os letradosdaerapós-Gutenberg?Nãohádúvidaalgumadequeapreleçãoestáexigindoreinvenção.

Precisamos de novosmodelos para os congressos, e isso bem podia serumadasdádivasdePauloFreireparanós: ajudar-nos a imaginar as formasque poderiam ter nossos congressos. Apresentamos a seguir algunsprocedimentosquepoderiamserseguidossemqualquertransformaçãomuitogrande.

1. Verdadeirasdiscussõessoba formadepainel sãopossíveis, sesepuderdesmontaroatril(lat.lectorille,viaesp.latril).Trêsapresentaçõescurtas(de dez minutos), seguidas de uma réplica informal de outros trêsparticipantes,queaseguirteriamsuavez.5

2. Umavariantepoderiasertrêsparticipantesfalarememsequênciasobreumúnico tema(espontaneidadeensaiadaémelhor), comperguntasdopúblico,antesquepassassemaotemaseguinte.

3. Umpaineldessetipo—naverdade,umaconversaformalizada—podeser seguidode umperíodode dezminutos durante o qual o público éconvidadoamanifestar-seporescrito.Colhem-seessasintervenções,faz-se uma seleção e, com o auxílio de equipamento de processamento dedados, elas sãopostas aodispordosparticipantesnodia seguinte.Esseprocedimento — chamado de inkshedding por seus inventores, RussHunt e JimReither6—deslocaodiálogovirtualnadireçãododiálogoreal, criando redes de relações ao longo do caminho. A tecnologiapermite-nosreinventarMonteMário.

4. Oscientistaspuseramemprática“apresentaçõescomcartazes”emsuasconvenções: são codificações das pesquisas em andamento. Umproblema cuidadosamente formulado é seguido de uma explicaçãoconvincente sobre umprocedimento experimental e de uma exposiçãodosresultados.Diagramas,gráficoseoutros“recursosvisuais”mostramo necessário. O cientista cujo trabalho é apresentado fica à disposiçãopara, alternadamente, “ler” o cartaz e responder a perguntas. Por queainda não fizemos isso? Por que não há poetas em instituiçõespatrocinadas e pelo InstitutoNacional de Educação?Quemmelhor doque eles para desenvolver os símbolos e narrativas para servir comocodificaçõeserelatosrepresentativos?

Page 20: Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra

Umapedagogiainquietasignificaquedevemosentornarocaldo.Omodomaissimplesdecomeçarafazê-loseriaproblematizaroformatoeafunçãodenossos encontros profissionais. Eis um exemplo.Um admirador e discípuloíntimodePauloFreirefoiconvidadocomoconsultordeumencontrosobrealfabetização. Ele e um colega seu escutaram os professores (na maioria,negros) durante o dia todo, enquanto eles explicavam detalhadamente ospadrõesqueeramobrigadosaobedecer,oscurrículosquedeviamplanejar,ostestes que tinham que aplicar. Quando questionados, ou se recusavam areconhecer o caráter opressivo e irracional dessas estruturas ou declaravamsua impotência: “Eles dizem que devemos fazer assim.” Naquela noite, oconsultorconsultouseucolegaconsultor;puderamdiscernirummodelo:os“eles” que insistiam quanto aos padrões a serem mantidos eram em suamaioria negros; “eles” insistiam em que os professores negros (namaioria)continuassem a experimentar procedimentos com escrúpulo, se não comentusiasmo. Com uma consciência que se tornara crítica pelo examecuidadoso dos procedimentos até aquele ponto, o consultor dirigiu-se aotelefoneecomeçoua ligarparaos superintendentes:deondeveioessa ideiasobreaaquisiçãodeumasegundalíngua?Queméafonteprincipalparaessateoria?Quemafirmaqueessessãoosúnicoscaminhos?Aseguir,oconsultorcomeçou uma segunda rodada de telefonemas a essas fontes — linguistasfamosos, professores famosos (alguns com quem ele havia estudado) eteóricos famosos.Devemtersido, talvez,“telefonemasdeconsulta”,masemtodo casonaquela tarde elepôde relatar textualmenteoquehaviamditoosespecialistas: “Não, não foi isso que eu quis dizer. Não, isso é umainterpretação equivocada deminha pesquisa.Não, jamais a utilização desseteste foi prevista para esse fim. Não, as implicações não são essas.” Assim,libertados do erro de interpretação da teoria, os participantes da reuniãopuderam deslocar-se da solução de problemas (como podemos tornarmaiselevadososresultadosdostestes?)paraaproposiçãodeproblemas(sesepodedefinir dessa maneira o papel da escrita, qual seria a consequência para oplanejamentodocurrículo?).O freiristaconseguira transformarocongressonum Círculo de Cultura. Encontrara maneiras de fazer com que osparticipantes olhassem e olhassem novamente para as próprias teoria eprática,atéqueestivessemlivresparainventarnovaspedagogias.

Page 21: Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra

PauloFreiretemaousadiadeacreditarqueosprofessoresdevemaprendercomseusalunospelodiálogo.Suapráticaéimaginativa,inventiva,reinventivae inteiramente pragmática. Paulo Freire é um dos verdadeiros herdeiros deWilliam James e deC. S. Peirce. Ele nos diz: “Omodo como funciona suateoriaeoqueelafazmudarlhedirámelhoroqueéasuateoria.”Elequerqueconsideremosovalordeumaideiaperguntandooquantoelaimporta.Querque pensemos sobre a dialética dos fins e meios, sobre os mistérios dodesespero e da esperança. E ele nos estimula a não adiar a mudança paraalgummomentopropício;anãosermosperduláriosemlevarmosaspessoasaestar prontas paramudar, prontas para aprender, prontas para a educação,mas, em vez disso, a reconhecermos que “a prontidão é tudo”. Ele me fazlembrardeA.J.Muste,opacifistaquetantoirritouReinholdNiebuhr.Mustecostumava dizer: “Não há caminho algum para a Paz; a Paz é o caminho.”Creio que Paulo nos está dizendo: “Não há caminho algum para atransformação;a transformaçãoéocaminho.”Istonãoémistificação,nãoéum paradoxo de espírito que devemos resolver: é, sim, uma dialética quedevemosfazercumprir.

AnnE.BerthoffConcord,Massachusetts

Page 22: Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra

Nota2 Incluí,nestescomentários,observaçõesextraídasdaapresentaçãoquefizdePauloFreirenaBibliotecaKennedy,deBoston,em1985,eincorporeialgumaspassagenstiradasdeumrelatóriosobreavisitadePauloFreireàUniversidadedeMassachusetts,emBoston,em1984,preparadoporsolicitaçãodeJamesH.BroderickeporelepublicadoparadistribuiçãonaFaculdadedeArteseCiências.EssavisitadeFreirefoipatrocinadapeloScholarshipinTeaching,programadirigidopeloprofessorBroderickefinanciadopelaFundaçãoFord.Paraapreparaçãodesteprefácio,consulteimeusamigosecolegasElsaAuerbach,LilBrannon,NealBruss,LouiseDunlapeDixieGoswami.

3 Certavez,fuicensuradoporumcompanheiro,admiradordePauloFreire,porfalarnuma“pedagogiadosaber”emvezde“pedagogiadooprimido”deFreire.Sãoambasumasóemesmacoisa:apedagogiado oprimido, para não se basear emmodelos bancário ou de nutrição, deve ser “uma pedagogia dosaber”, expressão empregada por Freire em seu importante ensaio sobre conscientização. Cf. Açãoculturalparaaliberdadeeoutrosescritos.RiodeJaneiro:PazeTerra,1976[13aedição,SãoPaulo:PazeTerra,2011].

4 Coloqueidiscurso entre aspas, nãopor julgar que seja irreal ou superficial,mas comoummododeassinalarocaráterproblemáticodotermo.Emtrabalhosliterários,discursoéalgonãoespecífico;alémdisso, um discurso poético é “não discursivo”, no sentido de que suas abstrações assumem formadiferente das encontradas na argumentação ou em outros tipos de exposição. Em sociolinguística,discurso é geralmente definido em termos de sua relação com o trabalho (“produção”). Empsicolinguística,éoobjetodeanáliseestilística,compretensõesaumasignificaçãomaisampla.O uso descuidado dos termos contribui para institucionalizar um pseudoconceito, no sentido deVygotsky.Éespecialmenteperigoso,namedidaemquepodeparecerlegitimarasvagasconcepçõesde“relatividade linguística” de B. L. Whorf. O que é fundamental não esquecer é que discurso não ésinônimodelinguagem,equeeleéconstruídoemoldadopelacultura,comonãooéaestruturaformalda linguagem. Estendi-me a respeito desse tema em “Sapir e as duas tarefas da linguagem”, a sairbrevementeemSemiotica.

5 AnnBerthoff,AngelaDorenkampeJeanLind-Brenkmanseguiramesseforma-tonoCongressosobreComposiçãoeComunicaçãoemNíveldeCollege(1980).Otemadopainelera“Asimplicaçõespolíticasdapesquisasobrecomposição”.

6 JamesReither(DepartamentodeInglês,UniversidadeSt.Thomas,Fredericton,NovaBrunswick,E3B5G3, Canadá) é o diretor responsável do Inkshed, boletim informativo que pretende “intensificar asrelações entre pesquisa, teoria e prática relativas a linguagem, aquisição de linguagem e uso dalinguagem”. Inkshed é mantido pela Universidade de St. Thomas e por contribuição voluntária deassinantes.

Page 23: Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra

CARTAAOSLEITORES

NÃOGOSTARIAQUEESTElivrochegasseàssuasmãossemumaspoucaspalavrasminhas,comasquaispretendoalgumasexplicaçõesnecessárias.

Seisanosatrás,o JournalofEducationdaUniversidadedeBoston,EUA,publicouumartigomeu,“Aimportânciadoatodeler”.Somadoadoisoutros,aqueleartigoderaorigemaumpequeno livropublicadopelaCortez,comomesmo título, em1982.Opequeno livrodaCortez, com três artigosque secompletam, discute aspectos gerais do ato de ler, fala da alfabetização ebibliotecaspopularesesedetémnaexperiênciadealfabetizaçãodeSãoTomée Príncipe, na África, de que participei na etapa derradeira de meu exílio.PartedesteúltimoartigosefixanaanálisedosmateriaisusadosnoesforçodealfabetizaçãodeSãoToméePríncipe.

No começo de 1986, uma editora norte-americana, que havia antespublicadooutro livromeu,se interessouemtraduzir“A importânciadoatode ler”.Propus, então,aoeditordacasapublicadora, juntaraos trêsensaiosconstitutivos do livro a ser traduzido ao inglês a colaboração de DonaldoMacedo, professor de psicolinguística daUniversidade deMassachusetts nocampusdeBoston,excelenteintelectual,rigorosoesensível.AcolaboraçãodeMacedosedaria,comodefatosedeu,atravésdetrabalhosseusnocampodalinguagemeda alfabetização enaproduçãode capítulosdialógicos comigo,emquediscutiríamosumagamadetemasligadosàlinguagem,àculturaeaocomandodaescritaedaleitura.

Assim, o que no Brasil havia sido um livro meu, nos Estados UnidospassouaserumlivromeuedeDonaldoMacedoeveioapúblicoem1987sobo título deLiteracy: Reading TheWord and TheWorld.Mais ainda, veio apúblicotrazendocomorostoaanálisededoisentreosmelhoresintelectuaisnorte-americanosquehojeseentregamcriticamenteàcompreensãodeumapedagogiaradical:HenryGirouxeAnnE.Berthoff.

Agora,Literacy:ReadingtheWordandtheWorldchegaaoBrasil.EchegaporsugestãodeGirouxedeMacedo.Foramelesque,numadasconversasquecostumávamos prolongadamente entreter, quando nos encontramos semtempomarcadoparanosdespedireemquemutuamentenosensinamos,me

Page 24: Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra

convenceram a tentar sua publicação no Brasil. Mas chega ao Brasilobviamentesemostrêsensaiosque,aqui,constituíramAimportânciadoatodeler.Assim,asreferênciasqueBerthoffeGirouxfazem,emseusensaios,aumououtropassodesteoudaqueletextodeAimportânciadoatode ler sópoderãosercotejadasseoleitorcuriosoconsultarapublicaçãodaCortez.

Há algo ainda a que gostaria de me referir. Ao ler e reler a excelentetraduçãofeitapeloprofessorLólioLourençodeOliveira,resolvialterar,paramaior clareza, passagens deminha— e somenteminha—participação emalgunsdosdiálogoscomMacedo.Emessência,porém,osdiálogoscontinuamosmesmosquecompõemooriginalnorte-americano.

PauloFreireSãoPaulo,maiode1990

Page 25: Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra

INTRODUÇÃO

ALFABETIZAÇÃOEAPEDAGOGIADOEMPOWERMENTPOLÍTICO

Acadamomentoemque,deummodooudeoutro,aquestãodalínguapassaparaoprimeiroplano, issosignificaqueumasériedeoutrosproblemasestáprestesasurgir,aformaçãoeaampliaçãodaclassedominante,anecessidadedeestabelecerrelaçõesmais“íntimas”esegurasentreosgruposdominanteseas massas populares nacionais, ou seja, a reorganização da hegemoniacultural.7

Essas observações, feitas na primeirametade do século XX pelo teóricosocial italiano Antonio Gramsci, parecem estranhamente discordantes dalinguagemedas aspirações que envolvemodebate conservador e liberal dehojearespeitodaescolaridadeedo“problema”daalfabetização.Defato,asobservações de Gramsci parecem tanto politizar a noção de alfabetizaçãoquanto, aomesmo tempo, dotá-la de um significado ideológico que sugereque ela pode ter menos a ver com a tarefa de ensinar as pessoas a ler e aescreverdoquecomaproduçãoealegitimaçãoderelaçõessociaisopressivaseexploradoras.Mestredadialética,Gramsciencarouaalfabetizaçãocomoumconceito e como uma prática social que devem estar historicamentevinculados,porumlado,aconfiguraçõesdeconhecimentoedepodere,poroutro, à luta política e cultural pela linguagem e pela experiência. ParaGramsci,aalfabetizaçãoeraumafacadedoisgumes;podiaserbrandidaemfavordoempowermentindividualesocial,ouparaaperpetuaçãoderelaçõesderepressãoededominação.Sendoaalfabetizaçãocríticaumcampodeluta,Gramsci consideravaque sedeveria lutarpor ela, tantocomoumconstrutoideológico, quanto como um movimento social. Como ideologia, aalfabetizaçãodeviaserencaradacomoumaconstruçãosocialqueestásempreimplícita na organização da visão de história do indivíduo, o presente e ofuturo;alémdisso,anoçãodealfabetizaçãoprecisavaalicerçar-senumprojetoético e político que dignificasse e ampliasse as possibilidades de vida e deliberdade humanas. Em outras palavras, a alfabetização, como construtoradical, devia radicar-se em um espírito de crítica e num projeto de

Page 26: Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra

possibilidade que permitisse às pessoas participarem da compreensão e datransformaçãode sua sociedade.Comodomíniodehabilidadesespecíficasedeformasparticularesdeconhecimento,aalfabetizaçãodeviatornar-seumaprecondiçãodaemancipaçãosocialecultural.

Como movimento social, a alfabetização estava presa às condiçõesmateriaisepolíticasnecessáriasparadesenvolvereorganizarosprofessores,osagentescomunitárioseoutros,dentroeforadasescolas.Issoerapartedeumalutamaiorpelasordensdeconhecimento,valoresepráticassociaisquedeveriam, necessariamente, prevalecer para que a luta pela instauração deinstituiçõesdemocráticasedeumasociedadedemocráticativesseêxito.ParaGramsci,aalfabetizaçãotornou-seumreferenteeumamodalidadedecríticaparaodesenvolvimentodeformasdeeducaçãocontra-hegemônicasemtornodo projeto político de criar uma sociedade de intelectuais (no sentidomaisamplo do termo) que pudesse captar a importância de desenvolver esferaspúblicas democráticas como parte da luta da vida moderna no combate àdominação, bemcomo tomarparte ativana lutapela criaçãodas condiçõesnecessáriasparatornaraspessoasletradas,paradar-lhesumavoztantoparadarformaàprópriasociedade,quantoparagoverná-la.

Exceto Paulo Freire, é difícil, na atual conjuntura histórica, identificarquaisquerposiçõesteóricasoumovimentossociaisdemaiorimportânciaqueafirmem e ampliem a tradição de uma alfabetização crítica desenvolvida àmaneirade teóricos radicais comoGramsci,MikhailBakhtineoutros.8NosEstados Unidos, a linguagem da alfabetização vincula-se quase queexclusivamente a formas populares do discurso liberal e de direita, que areduzem, ou a uma perspectiva funcional ligada a interesses econômicosconcebidosdemaneira acanhada, ou a uma ideologia destinada a iniciar ospobres, osdesprivilegiados e asminoriasna lógicadeuma tradição culturalunitáriaedominante.Noprimeirocaso,acrisedaalfabetizaçãobaseia-senanecessidadedeformarmaistrabalhadoresparaocupaçõesqueexigemleitura“funcional” ehabilidadeparaescrever.Os interessespolíticos conservadoresque estruturam essa posição estão evidentes na influência de gruposempresariaiseoutrossobreasescolasparaquedesenvolvamcurrículosmaisestreitamenteafinadoscomomercadodetrabalho,currículosqueassumirãoorientaçãofirmementeprofissionale,aofazê-lo,reduzirãoanecessidadedeasempresas promoverem treinamento em serviço.9 No segundo caso, a

Page 27: Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra

alfabetização torna-se o veículo ideológicomediante oqual a escolaridade élegitimada como local para o desenvolvimento do caráter; neste caso, aalfabetização está associada à transmissão e ao domínio de uma tradiçãoocidental unitária, baseada nas virtudes do trabalho perseverante, dadiligência, do respeito à família, da autoridade institucional e de umindiscutível respeito pela nação. Em suma, a alfabetização se torna umapedagogiadochauvinismorevestidapelojargãodosGrandesLivros.

Nointeriordessediscursodominante,oanalfabetismonãoémeramenteaincapacidadedelereescrever;étambémumindicadorculturalparanomearformas de diferença dentro da lógica da teoria da privação cultural. Oimportanteaquiéqueanoçãodeprivaçãoculturaléusadaparadesignar,nosentido negativo, formas de moeda cultural que se apresentam comoperturbadoramente incomuns e ameaçadoras quando avaliadas pelo padrãoideológico da cultura dominante relativo ao que deve ser valorizado comohistória, competência linguística, experiência de vida e padrões de vida emsociedade.10A importância de desenvolver umapolítica de diferenças nestaperspectiva raramente é virtude ou atributo positivo de vida pública; naverdade,adiferençacoloca-se frequentementecomodeficiênciaeépartedamesma lógica que define o outro, dentro do discurso da privação cultural.Ambas essas tendências ideológicasdespojama alfabetizaçãodasobrigaçõeséticas e políticas da razão especulativa e da democracia radical a submetemaos imperativos políticos e pedagógicos da conformidade social e dadominação.Emambososcasos,aalfabetizaçãorepresentaumafastamentodopensamento crítico e da política emancipadora. Stanley Aronowitz captoutantoosinteressesemjogonaformaçãododiscursoatualsobrealfabetização,quantoosproblemasqueelereproduz.Eleescreveu:

Quando os Estados Unidos estão em dificuldades apelam para suas escolas. […] Osempregadores querem um sistema educacional estreitamente afinado com o mercado detrabalho,sistemaqueadapteocurrículoasuasnecessidadesemtransformaçãoelhespermitaeconomizardinheiroemtreinamento.Oshumanistasinsistemnosagradodeverdasescolasdereproduzir “a civilização como a conhecemos” — valores ocidentais, cultura literária e oceticismodoetoscientífico.[…]Atualmente,osneoconservadoresseapropriaramdoconceitodeexcelência,definindo-ocomohabilidadesbásicas, formaçãotécnicaedisciplinaemsaladeaula. As escolas estão se aninhando nos braços das empresas e, no local de qualquer ideiasensatadealfabetização,colocandoalgoaquechamamde“alfabetizaçãoparaocomputador”.Nosprogramasexistentesdealfabetizaçãodeadultos,osmateriaisemétodosutilizadosrefletemuma abordagem tipo “a ideologia acabou” que não consegue estimular os alunos, e —

Page 28: Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra

juntamentecomastensõesdavidaquotidiana—resultamhabitualmenteemtaxasmaciçasdeevasão, “provando”umavezmaisqueamaioriadosanalfabetosnãoaprenderá,nemmesmoquandoodinheirodo governo seja “posto”neles. […]Poucosdeles estãodispostos a falar alinguagemtradicionaldohumanismoeducacionaloua lutarpela ideiadequeumaeducaçãogeral é a base da alfabetização crítica. Desde o colapso dos movimentos dos anos 1960, osprogressistas aderiram aos conservadores, enquanto os radicais, com raras exceções,permanecemcalados.11

Enquanto a alfabetização tem sido encarada como importante campodelutaparaosconservadoreseliberais,apenasmarginalmentetemsidoadotadapelosteóricoseducacionaisradicais.12Noscasosemquetemsidoincorporadacomo aspecto essencial de uma pedagogia radical, ela é gravementesubteorizada,e,emboramanifestandoamelhordasintenções,suasaplicaçõespedagógicas sãomuitas vezes condescendentes e teoricamente enganadoras.Neste caso, a alfabetização visa a prover as crianças oriundas da classetrabalhadoraedeminoriascomhabilidadesdeleituraeescritaqueostornemfuncionais e críticos dentro do ambiente escolar. Desta perspectiva, aalfabetização, mais do que nunca, está ligada a uma teoria do déficit deaprendizagem. A acusação é de que as escolas distribuem desigualmentedeterminadashabilidadeseformasdeconhecimentodemodoabeneficiarosalunosdeclassemédiaemprejuízodosdeclassetrabalhadoraoudeminorias.O que está em jogo aqui é uma visão da alfabetização impregnada de umanoção de equidade. A alfabetização torna-se uma forma de capital culturalprivilegiado, e os grupos subalternos, afirma-se, merecem ter sua fatia nadistribuiçãodessetipodemoedacultural.Aspedagogiasquefrequentementeacompanham essa visão da alfabetização enfatizam a necessidade de que ascriançasdeclasseoperáriaaprendamashabilidadesde lereescreverdequeprecisarãoparaserembem-sucedidasnasescolas;ademais,suaculturaesuaexperiênciapessoais sãomuitas vezes consideradas antes comopotência,doquecomodéficitsa seremutilizadosnodesenvolvimentodeumapedagogiacrítica da alfabetização. Infelizmente, as pedagogias que se desenvolveramcomessepressupostogeralmentenãooferecemmaisdoqueumaabordagemtipo folheto de publicidade dos modos de se utilizar a cultura da classeoperáriaparaodesenvolvimentodeformassignificativasdeinstrução.

Essa abordagem específica da alfabetização radical está teoricamenteinvalidadaporinúmerasrazões.Emprimeirolugar,deixadeencararaculturada classe trabalhadora como um campo de luta e de contradição. Segundo,

Page 29: Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra

sugere que os educadores que trabalham com grupos subalternos precisamfamiliarizar-seapenascomashistóriaseasexperiênciasdeseusalunos.Nãohá indicaçãoalgumadequeaculturaque taisalunos trazemparaasescolasestejaterrivelmentenecessitadadeexameeanálisecríticos.Emterceirolugar,essaabordagemdeixadefocalizarasimplicaçõesmaisamplasdarelaçãoentreconhecimento e poder. Deixa de compreender que a alfabetização não serelaciona apenas com os pobres, ou com a incapacidade dos grupossubalternos de ler e escrever adequadamente; relaciona-se, também, demaneira fundamental, com formas de ignorância política e ideológica quefuncionam como uma recusa em conhecer os limites e as consequênciaspolíticas da visão demundo de cada um.Vista dessemodo, a alfabetizaçãocomo um processo é tão disempowering quanto opressiva. O importante areconhecer aqui é a necessidade de reconstituir uma visão radical daalfabetizaçãoquegireem tornoda importânciadenomeare transformarascondições ideológicas e sociais que solapam a possibilidade de existiremformasdevidacomunitáriaepúblicaorganizadasemtornodos imperativosde uma democracia crítica. Este não é um problema associado apenas aospobres ou aos grupos minoritários, mas também é problema para aquelesmembrosdeclassemédiaoualtaqueseretiraramdavidapúblicaparadentrodeummundodeabsolutaprivatização,pessimismoeganância.Alémdisso,umavisão radicalmente restauradada alfabetizaçãoprecisaria fazermaisdoque esclarecer o alcance e a naturezado significadodo analfabetismo. Seriafundamental, também, desenvolver um discurso programático para aalfabetizaçãocomopartedeumprojetopolíticoedeumapráticapedagógicaqueofereçauma linguagemdeesperançaede transformaçãodosque lutamnopresenteporumfuturomelhor.13

Em minha opinião, o tema do desenvolvimento de uma teoriaemancipadora da alfabetização, juntamente com uma correspondentepedagogia transformadora, adquiriunovadimensão emaior significaçãonoatualperíododeGuerraFria.Odesenvolvimentodeumapolíticaculturaldaalfabetização e da pedagogia torna-se umpontode partida importante parapossibilitar que aqueles que têm sido silenciados ou marginalizados pelasescolas,pelosmeiosdecomunicaçãodemassa,pela indústriaculturalepelacultura televisiva exijam a autoria de suas próprias vidas. Uma teoriaemancipadora da alfabetização indica a necessidade de desenvolver um

Page 30: Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra

discurso alternativo e uma leitura crítica de como a ideologia, a cultura e opoder atuam no interior das sociedades capitalistas tardias no sentido delimitar,desorganizaremarginalizarasexperiênciasquotidianasmaiscríticaseradicaiseaspercepçõesdesensocomumdos indivíduos.Estáemdiscussão,aqui, o reconhecimento de que é preciso agarrar-se aos ganhos políticos emoraisquetêmsidoconseguidosporprofessoreseoutros,equeporelessedeve lutar com renovado rigor intelectual epolítico.Paraque isso sedê, oseducadores e trabalhadores de esquerda, de todos os níveis da sociedade,precisamatribuir ao temada alfabetizaçãopolítica e cultural amais elevadadas prioridades. Em outras palavras, para que venha a concretizar-se aalfabetização radical, opedagógicodeve tornar-semaispolítico eopolítico,mais pedagógico. Ou ainda, há uma necessidade terrível de desenvolverpráticas pedagógicas, no primeiro caso, que reúnam os professores, pais ealunos em torno de visões da comunidade que sejammais emancipadoras.Poroutrolado,hánecessidadedereconhecerquetodososaspectosdapolíticaforadasescolasrepresentamtambémumdeterminadotipodepedagogia,emqueoconhecimentoestásemprevinculadoaopoder,easpráticassociaissãosempre encarnações de relações concretas entre seres humanos e tradiçõesdiversos, e que toda interação contém implicitamente visões a respeito dopapeldocidadãoedoobjetivodacomunidade.Aalfabetização,dentrodessaperspectiva mais ampla, não apenas empowers as pessoas mediante umacombinaçãodehabilidadespedagógicasedeanálisecrítica,comotambémsetorna um veículo para estudar de quemodo definições culturais de gênero,raça, classe e subjetividade se constituem como construtos tanto históricosquantosociais.Alémdisso,aalfabetização,nestecaso,torna-seomecanismopedagógico e político fundamental mediante o qual instaurar as condiçõesideológicas e as práticas sociais necessárias para o desenvolvimento demovimentos sociais que reconheçam os imperativos de uma democraciaradicalelutemporeles.

OMODELOFREIRIANODEALFABETIZAÇÃOEMANCIPADORA

Diante das considerações acima é que a obra anterior de Paulo Freire arespeito da alfabetização e pedagogia tem assumido significação teórica epolíticadecrescenteimportância.Historicamente,PauloFreireproporcionouum dos poucos modelos práticos e emancipadores sobre o qual se pode

Page 31: Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra

desenvolver uma filosofia radical da alfabetização e da pedagogia. Como sesabeeestáamplamentedocumentado,ele temsepreocupado,nocorrerdosúltimos vinte anos, com o tema da alfabetização como projeto políticoemancipador, e tem desenvolvido o conteúdo emancipador de suas ideiasdentro de uma pedagogia concreta e prática. Seu trabalho exerceu papelsignificativonodesenvolvimentodeprogramasdealfabetização,nãoapenasno Brasil e na América Latina, como também na África e em programasisolados na Europa, na América do Norte e na Austrália. É essencial, naabordagem que Freire faz da alfabetização, uma relação dialética dos sereshumanos com o mundo, por um lado, e com a linguagem e com a açãotransformadora, por outro. Dentro dessa perspectiva, a alfabetização não étratadameramentecomoumahabilidade técnicaaseradquirida,mascomofundamento necessário à ação cultural para a liberdade, aspecto essencialdaquilo que significa ser um agente individual e socialmente constituído.Aindadamaiorimportância,aalfabetizaçãoparaFreireé,inerentemente,umprojeto político no qual homens e mulheres afirmam seu direito e suaresponsabilidade não apenas de ler, compreender e transformar suasexperiências pessoais, mas também de reconstituir sua relação com asociedade mais ampla. Neste sentido, a alfabetização é fundamental paraerguer agressivamente a voz de cada um como parte de um projeto maisamplodepossibilidadeedeempowerment.Alémdisso,otemaalfabetizaçãoepoder não começa e termina com o processo de aprender a ler e escrevercriticamente;aocontrário,começacomofatodaexistênciadecadaumcomoparte de uma prática historicamente construída no interior de relaçõesespecíficasdopoder.Istoé,ossereshumanos(comosãoosprofessorestantoquantoosalunos),dentrodedeterminadasformaçõessociaiseculturais,sãooponto de partida para analisar, não apenas de que modo constroemativamentesuasexperiênciaspessoaisdentrodasrelaçõesdepodervigentes,mas também de que modo a construção social dessas experiências lhesproporcionamaoportunidadededarsentidoeexpressãoasuasnecessidadesevozescomopartedeumprojetodeempowermentindividualesocial.Assim,alfabetização para Freire é parte do processo pelo qual alguém se tornaautocrítico a respeito da natureza historicamente construída de sua própriaexperiência. Ser capaz de nomear a própria experiência é parte do quesignifica “ler” o mundo e começar a compreender a natureza política dos

Page 32: Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra

limites bem como das possibilidades que caracterizam a sociedade maisampla.14

ParaFreire,alinguagemeopoderestãoinextricavelmenteentrelaçadoseproporcionam uma dimensão fundamental da ação humana e datransformaçãosocial.Alinguagem,comoadefineFreire,temumpapelativona construção da experiência e na organização e legitimação das práticassociais disponíveis aos vários grupos da sociedade. A linguagem é o“verdadeiro recheio” da cultura e constitui tanto um terreno de dominaçãoquanto um campo de possibilidade.A linguagem, nas palavras deGramsci,era tanto hegemônica quanto contra-hegemônica, servindo de instrumentotantoparasilenciarasvozesdosoprimidosquantoparalegitimarasrelaçõessociais opressivas.15 Ao universalizar determinadas ideologias, procuravasubordinar omundo da ação e da luta humanas aos interesses dos gruposdominantes. Ao mesmo tempo, porém, a linguagem também era encaradacomo o terreno sobre o qual os desejos, aspirações, sonhos e esperançasradicais ganhavam sentido pela incorporação do discurso da crítica e dapossibilidade.

Nosentidomaisimediato,anaturezapolíticadaalfabetizaçãoéumtemafundamentalnosprimeiros escritosdeFreire. Isso é evidentenasdescriçõesvividas dos movimentos destinados a proporcionar às pessoas do TerceiroMundo as condições para a crítica e para a ação social, quer para derrubarditaduras fascistas, quer para utilizar em situações pós-revolucionárias, emque as pessoas estão engajadas no processo de reconstrução nacional. Emqualquer desses casos, a alfabetização torna-se sinal da libertação e datransformação destinadas a desativar a voz colonial e, em seguida, adesenvolver a voz coletiva do sofrimento e da afirmação silenciada sob oterroreabrutalidadederegimesdespóticos.

FREIREEMACEDOEAALFABETIZAÇÃOCOMOUMALEITURADAPALAVRAEDO

MUNDO

Nestenovolivro,PauloFreireeDonaldoMacedonãosófundamentamaobraanterior que Freire produziu sobre alfabetização, mas também, de maneiraadmirável, apresentam e aperfeiçoam as implicações que ela tem para umapolíticaculturalmaisabrangenteeampliamsuaspossibilidadesteóricaspara

Page 33: Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra

omaior desenvolvimento dos alicerces de uma pedagogia crítica. As vozesconjugadas de Freire e de Macedo proporcionam uma demonstraçãorequintada da ideia de alfabetização crítica como um desdobramento dacríticaedocompromissomedianteoprocessododiálogo.RecorrendoasuastradiçõesecompromissosdiversosnaAméricaLatina,naÁfricaenosEstadosUnidos,FreireeMacedosituamasnoçõesdeteoriaepráticaemumdiscursoque é, a uma só vez, histórico, teórico e radicalmente político. Não apenascadaumdessesautoresexpõesuaprópriaopiniãoteóricaepolítica,moldadaporseusprincípiospolíticosepedagogiarespectivos,comotambémcadaumdeles oferece ao outro um referente para o outro indagar e refletir maisprofundamente sobre questões surgidas no correr dos últimos dez anos emtorno do sentido e da significação de uma ideia radical de alfabetizaçãobaseadanomodelofreiriano.Ateoriaeapráticacaminhamjuntasnestelivro,de modo que esses dois construtos são analisados como uma questão dedefiniçãoedeaplicação;sãotambémapresentadoscomoumaformadepráxisradical no diálogo intensamente absorvente levado a cabo por Freire eMacedo.Há,porexemplo,umatentativaderedefiniras interconexõesentrealfabetização, cultura e educação, de examinar o tema da alfabetização nosEstados Unidos e de reconstruir e analisar criticamente o programa dealfabetizaçãonaGuiné-Bissau,àqualFreiredeuassessoriaecolaboração.Nocorrerdessesdiálogos,ateoriasetornaumatodeproduzirsignificadosenãomeramente uma reiteração ou registro de posições teóricas anteriormenteformuladas.Emconsequência,surgemnovasformulaçõeseconexõesteóricasfundamentaisrelativasàalfabetização,àpolíticaeaoempowerment.

FreireeMacedo tambémanalisamedemonstramdequemodo foidadauma expressão política e pedagógica concreta à abordagem de Freire daalfabetizaçãonocurrículoenosmateriaisdealfabetizaçãoutilizadosemSãoToméePríncipe.Nessediálogo,Freireresponde,demaneiraenérgicaeclara,aalgumasdascríticaspublicadasultimamentecomreferênciaaseutrabalhona Guiné-Bissau. Essa réplica é proveitosa, pois ajuda a retificar o registrohistórico sobre inúmeros temas importantes e porque mostra haver umainteração dialética entre os princípios normativos e políticos pessoais deFreireeasformulaçõeseestratégiasemqueseengajouquandoparticipavadacampanhadealfabetizaçãodaGuiné-Bissau.Freiretambémsurgeaquicomoumhomem empenhado numdiálogo crítico com suas próprias ideias, seus

Page 34: Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra

críticos e com as circunstâncias de diferentes lutas históricas. Em seu afãinteligenteesensíveldeenvolverFreirenumadiscussãosobreaprópriaobra,Macedo arma, de maneira brilhante, o cenário para uma irresistíveldescoberta de Freire como ser humano e como revolucionário.O resultadodissonãosónosproporcionaumacompreensãomaisampladosignificadodaalfabetização eda educação como formadepolítica cultural, como tambémdemonstraaimportânciadeseterumavozquefalacomdignidade,incorporaalinguagemdacríticaeempregaumdiscursodeesperançaepossibilidade.

Em vez de proporcionar, de maneira didática, uma visão geral dospressupostos básicos que enformam este livro, pretendo abordá-lo de umamaneiracoerentecomseupróprioespíritocríticoetransformadordeencararaalfabetizaçãocomoumesforçopara lero textoeomundodialeticamente.Ao fazê-lo, quero situar o texto de Freire eMacedo dentro de um quadroteóricoquenospermitacompreendermelhorosignificado/conexãodialéticaqueestelivrotememrelaçãocomarealidadevividadoensinoedapedagogia.Neste caso, o texto é representadopelosprincípiospedagógicos críticosqueestruturamosignificadofundamentaldestelivro;ocontextoéomundomaisamplo da escola e da educação, que inclui as escolas públicas bem comoaquelasesferaspúblicasemqueexistemoutrasformasdeaprendizagemedeluta. No que se segue, quero analisar a importância de apresentar aalfabetização como um construto histórico e social tanto para absorver odiscurso da dominação, quanto para definir a pedagogia crítica como umaformadepolíticacultural.Aseguir, indicareialgumasdas implicaçõesqueavisão da alfabetização emancipadora de Freire e Macedo têm para odesenvolvimentodeumapedagogiaradicaldavozedaexperiência.

AALFABETIZAÇÃOCRÍTICACOMOPRECONDIÇÃOPARAOEMPOWERMENT

INDIVIDUALESOCIAL

Nosentidopolíticomaisamplo,compreende-semelhoraalfabetizaçãocomoumainfinidadedeformasdiscursivasecompetênciasculturaisqueconstroemetornamdisponíveisasdiversasrelaçõeseexperiênciasqueexistementreoseducandos e omundo. Em sentidomais específico, a alfabetização crítica étanto umanarrativa para a ação, quanto um referente para a crítica.Comonarrativaparaaação,aalfabetizaçãotorna-sesinônimodeumatentativaderesgatar a história, a experiência e a visão do discurso convencional e das

Page 35: Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra

relaçõessociaisdominantes.Elasignificadesenvolverascondiçõesteóricasepráticas mediante as quais os seres humanos podem situar-se em suasrespectivashistóriase,aofazê-lo,fazer-sepresentescomoagentesnalutaparaexpandir as possibilidades da vida e da liberdade humanas. Nesses termos,alfabetização não é o equivalente de emancipação; demodomais limitado,masfundamental,elaéaprecondiçãoparaoengajamentoemlutasemtornotantoderelaçõesdesignificado,quantoderelaçõesdepoder.Seralfabetizadonão é ser livre;éestarpresenteeativona lutapela reivindicaçãodaprópriavoz, da própria história e do próprio futuro. Do mesmo modo como oanalfabetismonãoexplicaas causasdodesempregomaciço,daburocraciaedocrescenteracismonasprincipaiscidadesdosEstadosUnidos,daÁfricadoSul e de outros lugares, assim também a alfabetização não representa nemgaranteautomaticamentealiberdadesocial,políticaeeconômica.16Comoumreferenteparaacrítica,aalfabetizaçãoofereceumaprecondiçãobásicaparaaorganização e a compreensão da natureza socialmente elaborada dasubjetividadeedaexperiência,eparaaavaliaçãodecomooconhecimento,opoder e a prática social podem ser moldados coletivamente a serviço datomadadedecisõesquesejaminstrumentosparaumasociedadedemocráticaenãomeramenteconcessõesaosdesejosdosricosedospoderosos.17

Para que uma teoria radical da alfabetização abranja a ação e a críticahumanas como parte da narrativa da libertação, ela deve rejeitar a práticapedagógicareducionistade limitaracríticaàsanálisesdeprodutosculturaistais como textos, livros, filmes e outras mercadorias.18 As teorias daalfabetizaçãoligadasaessaformadecríticaideológicadissimulamanaturezarelacional domodo como se produz o significado, isto é, a intersecção dassubjetividades,objetosepráticassociaisnointeriordedeterminadasrelaçõesdepoder.Assimsendo,acríticacomodimensãofundamentaldessavisãodaalfabetização existe à custa do desenvolvimento de uma teoria adequada decomoosignificado,aexperiênciaeopoderestãoinscritoscomopartedeumateoriada açãohumana.Dessemodo, seria essencial a uma teoria radical daalfabetização o desenvolvimento de uma visão da ação humana em que aproduçãodosignificadonãoestejalimitadaàanálisedecomoasideologiasseinscreveram em determinados textos. Neste caso, uma teoria radical daalfabetização precisa incorporar uma noção de ideologia crítica que incluaumavisãodaaçãohumanaemqueaproduçãodosignificadotenhalugarno

Page 36: Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra

diálogoenainteração,queconstituireciprocamentearelaçãodialéticaentreas subjetividades humanas e omundo objetivo. Como parte de um projetopolíticodefinitivo,uma teoria radicalda alfabetizaçãoprecisaproduzirumavisão da ação humana restauradamediante formas de narrativa que atuemcomopartede“umapedagogiadoempowerment[…]centradadentrodeumprojetosocialqueviseaintensificarapossibilidadehumana”.19

Éessencialparaanoçãodealfabetizaçãocrítica,desenvolvidanosdiálogosdeFreireeMacedo,umcertonúmerode intuições fundamentais relativasàpolítica do analfabetismo. Como construção social, a alfabetização não sónomeia experiências consideradas importantes para uma dada sociedade,comotambémrealçaedefine,peloconceitodeanalfabeto,aquiloquesepodedenominara“experiênciadooutro”.Oconceitodeanalfabeto,nessesentido,dá muitas vezes uma cobertura ideológica para que os grupos poderosossimplesmentesilenciemospobres,osgruposminoritários,asmulheres,ouaspessoas de cor. Consequentemente, nomear o analfabetismo como parte dadefinição do que significa ser alfabetizado representa uma construçãoideológica enformada por determinados interesses políticos. Embora aindagação de Freire e de Macedo a respeito do conceito de analfabetismoprocure desvendar esses interesses ideológicos dominantes, proporcionatambém uma base teórica para a compreensão da natureza política doanalfabetismo como prática social vinculada tanto à lógica da hegemoniacultural, quanto a formas particulares de resistência. Está implícita nessaanálise a noçãode que o analfabetismo, comoproblema social, atravessa asfronteiras entre as classes e não se limita ao fato de as minorias nãoconseguirem dominar as competências funcionais de ler e de escrever. Oanalfabetismo significa, num nível, uma forma de ignorância política eintelectuale,emoutro,umexemplopossívelderesistênciadeclasse,desexo,de raça oude cultura.Comoparte da questãomais ampla emais difusa dehegemonia cultural, o analfabetismo refere-se à incapacidade funcional ourecusa das pessoas de classemédia ou alta de ler omundo e suas própriasvidas de um modo crítico e historicamente relacional. Stanley Aronowitzsugereumavisãodoanalfabetismocomouma formadehegemoniaculturalna exposição que faz sobre o que deve significar ser “funcionalmente”alfabetizado.

Page 37: Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra

Averdadeiraquestãorelativaaos“funcionalmente”alfabetizadoséseelespodemdecodificarasmensagens da cultura demassa contrariamente às interpretações oficiais da realidade social,econômicaepolítica; se se sentemcapazesdeavaliar criticamenteosacontecimentos,ou, atémesmo,deinterferirneles.Secompreendemosalfabetizaçãocomoacapacidadedosindivíduosegruposde se situaremnahistória,de severemcomoatores sociais capazesdediscutir seusfuturos coletivos, então o obstáculo central à alfabetização é a privatização e o pessimismoarrasadoresquevieramadifundir-sepelavidapública.20

Aronowitz chama a atenção para o fato de a maioria dos educadoresradicaisecríticosnãoconseguircompreenderoanalfabetismocomoformadehegemonia cultural. Mais uma vez, analfabetismo, empregado desse modo,inclui uma linguagem e um conjunto de práticas sociais que sublinham anecessidade de desenvolver uma teoria radical da alfabetização que assumaseriamente a tarefa de desvelar o modo pelo qual determinadas formas deregulamentação social e moral produzem uma cultura da ignorância e daestupidez absoluta, fundamental ao silenciamento de todas as vozespotencialmentecríticas.

É importante também que se enfatize, uma vezmais, que, como ato deresistência, a recusa a ser alfabetizado pode constituir menos um ato deignorânciaporpartedosgrupossubalternosdoqueumatoderesistência.Istoé,osmembrosdaclasse trabalhadoraedeoutrosgruposoprimidospodem,consciente ou inconscientemente, recusar-se a aprender os códigos ecompetênciasculturaisespecíficassancionadospelavisãodaalfabetizaçãodacultura dominante. Essa resistência deve ser vista como uma oportunidadeparainvestigarascondiçõespolíticaseculturaisquejustificamessaresistênciaenãocomoatosincondicionaisderecusapolíticaconsciente.Exprimindodemaneirasimples,os interessesqueenformamtaisatosnunca falamporsi,etêmdeseranalisadosdentrodeumquadrodereferênciamaisinterpretativoecontextual, o qual vincule o contexto mais amplo da escolaridade àinterpretação que os alunos atribuem ao ato de recusa. A recusa a seralfabetizado,nessescasos,proporcionaabasepedagógicaparaseentrarnumdiálogo crítico com os grupos cujas tradições e culturas são, muitas vezes,objetodeumainvestidamaciçaedeumatentativadaculturadominanteparadeslegitimaredesorganizaroconhecimentoeastradiçõesutilizadosporessesgruposparasedefiniremeparadefiniremsuavisãodomundo.

Para os professores, a questão essencial que precisa ser investigada é amaneira pela qual, como diz Phil Corrigan, o currículo social da escola

Page 38: Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra

constróipráticassociaisemtornodadiferenciaçãoalfabetizado/analfabetodemodoacontribuirparaa

[…]construçãosocialregulamentadadesilenciamentodiferencialedeestupidezcategorizadadentrodosvórticesdasexualidade,daraça,dosexo,daclasse,dalinguagemedaregionalidade.[…] [Isso] torna mais forte o que há de essencial na funcionalidade da ignorância, aimportânciadedeclararsemvaloreestúpidaamaioriadaspessoasduranteamaiorpartedotempo,comumapalavraúnicaeexatadepoderfataleclassificador:mau.Efazendo-os“adotar”essa identificação, como se ela fosse a única prova de identidade que pudessem exibir, eintercambiar.21

Para Corrigan e outros, a construção do significado dentro da escola émuitas vezes estruturada mediante uma gramática social dominante, quelimita a possibilidade do ensino e aprendizagem críticos nas escolas. Alinguagemdominante,nestecaso,estruturaeregulamentanãosóoquedeveserensinado,mastambémcomodeveserensinadoeavaliado.Segundoessaanálise,aideologiacombina-secomapráticasocialnaproduçãodeumavozda escola — a voz da autoridade indiscutível —, que busca demarcar eregulamentar osmodos específicos pelos quais os alunos aprendam, falem,ajam e se apresentem. Nesse sentido, Corrigan está absolutamente corretoquando afirma que ensino e aprendizagem dentro da escolarização públicanão se ocupam simplesmente da reprodução da lógica e da ideologiadominantesdocapitalismo.Nemseocupamprimordialmentecomosatosderesistênciaempreendidospelosgrupossubalternosquelutamporumavozepor um senso de dignidade nas escolas. Essas duas práticas sociais existem,masfazempartedeumconjuntomuitomaisamploderelaçõessociaisemquea experiência e a subjetividade se constroem dentro de uma diversidade devozes,condiçõesenarrativasqueindicamqueaescolarepresentamaisdoqueanuênciaourejeição.

No sentido mais geral, a escolarização ocupa-se da regulamentação dotempo, do espaço, da textualidade, da experiência, do conhecimento e dopoder entre interesses ehistórias conflitantes,quenãopode ser enquadradaem simples teorias de reprodução e de resistência.22 As escolas devem servistas em seus contextos históricos e relacionais. Como instituições,apresentam posições contraditórias dentro da cultura mais ampla erepresentam, também, um terreno de combate complexo relativo ao quesignifica ser alfabetizado e empowered, de modo tal que permite que

Page 39: Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra

professores e alunos pensem e ajam de maneira condizente com osimperativosearealidadedeumademocraciaradical.

Atarefadeumateoriadaalfabetizaçãocríticaéalargarnossaconcepçãoarespeitodecomoosprofessoresproduzem,mantêmelegitimamativamenteosignificado e a experiência nas salas de aula. Ademais, uma teoria daalfabetização crítica obriga uma compreensão mais profunda de como ascondições mais amplas do Estado e da sociedade produzem, negociam,transformam e se abatem sobre as condições de ensino de tal modo quepossibilitam ou impossibilitam que os professores ajam de modo crítico etransformador.Igualmenteimportanteéanecessidadededesenvolver,comopressuposto básico da alfabetização crítica, o reconhecimento de que oconhecimento não se produz unicamente nas cabeças dos peritos, dosespecialistasemcurrículos,dosadministradoresescolaresedosprofessores.Aprodução de conhecimento, como mencionamos anteriormente, é um atorelacional.Paraosprofessores, isso significa ser sensível às atuais condiçõeshistóricas,sociaiseculturaisquecontribuemparaasformasdeconhecimentoedesignificadoqueosalunostrazemparaaescola.

Sesequiserdesenvolverumconceitodealfabetizaçãocríticaemconexãocom as noções teóricas de narrativa e ação, é importante, então, que oconhecimento, os valores e as práticas sociais que constituem ahistória/narrativasejamcompreendidoscomoaencarnaçãodedeterminadosinteresseserelaçõesdepoderreferentesacomosedeveriapensar,vivereagirquantoaopassado,aopresenteeaofuturo.Nasuamelhorforma,umateoriadaalfabetizaçãocríticaprecisadesenvolverpráticaspedagógicasnasquais,nalutaporcompreenderavidadecadaum,reafirmeeaprofundeanecessidadedeosprofessoreseosalunosrecuperaremsuasprópriasvozes,demodoquepossamtornaracontarsuasprópriashistóriase,aofazê-lo,“conferirecriticarahistóriaque lhescontamemcomparaçãocomaqueviveram”.23Contudo,issosignificamaisdoqueapenastornaracontarecompararhistórias.Afimde ir além de uma pedagogia da voz que sugere que todas as histórias sãoinocentes, é importante examinar essas histórias quanto ao interesse e aosprincípiosqueasestruturameexaminá-lascomopartedeumprojetopolítico(no sentido mais amplo) que pode possibilitar ou solapar os valores e aspráticasqueproporcionamosfundamentosdajustiçasocial,daigualdadeedacomunidadedemocrática.Emseusentidomaisradical,aalfabetizaçãocrítica

Page 40: Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra

significa fazer com que a individualidade de cada um esteja presente comopartedeumprojetomoralepolíticoquevinculaaproduçãodosignificadoàpossibilidadedaaçãohumana,da comunidadedemocrática edaação socialtransformadora.24

AALFABETIZAÇÃOEALIBERTAÇÃODORECORDAR

Na tentativa de desenvolver um modelo de alfabetização crítica queenglobeumarelaçãodialéticaentreumaleituracríticadomundoedapalavra,FreireeMacedoestabelecemasbasesparaumnovodiscursonoqualanoçãodealfabetizaçãotrazconsigoumaatençãocríticaàteiaderelaçõesemqueosignificadoseproduz,tantocomoconstruçãohistórica,quantocomopartedeum conjunto mais amplo de práticas pedagógicas. Neste sentido, aalfabetizaçãosignificamaisdoquerompercomopreestabelecido,ou,comodisseWalterBenjamin,“contrariarosentidodahistória”.25Significa,também,compreenderosdetalhesdavidaquotidianaeagramáticasocialdoconcretomedianteas totalidadesmaisglobaisdahistória edocontexto social.Comopartedodiscursodanarrativaedaação,aalfabetizaçãocríticasugerequeseutilize a história como uma forma de libertar amemória. No sentido aquiempregado,históriasignificareconhecerostraçosfiguraisdepotencialidadesinesgotadas bem como fontes de sofrimento que constituem o passado decada um.26 Reconstruir a história nesse sentido é situar o significado e apráticadaalfabetizaçãonumdiscursoéticoquetemcomoreferênciaaquelassituaçõesdesofrimentoqueprecisamserlembradasesuperadas.27

Comoelementolibertadordorecordar,abuscahistóricatorna-semaisdoqueumasimplespreparaçãoparaofuturopormeiodarecuperaçãodeumasérie de eventos passados; em vez disso, torna-se um modelo para aconstituiçãodopotencialradicaldamemória.Éumatestemunhaponderadadaopressãoedadorsuportadasdesnecessariamenteporvítimasdahistóriaeumtexto/terrenodelutaparaoexercíciodadúvidacrítica,realçandonãosóasfontesdesofrimentodequeéprecisorecordar,demodoquenãovenhamarepetir-se,comotambémoladosubjetivodalutaedaesperançahumanas.28Em outras palavras, a libertação do recordar e as formas de alfabetizaçãocrítica que ela alicerça expressam sua natureza dialética, tanto em “seuimpulso crítico desmistificador, dando um testemunho ponderado dos

Page 41: Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra

sofrimentosdopassado”,29quantonasseletasefugazesimagensdeesperançaqueelasofertamaopresente.

ALFABETIZAÇÃOCOMOFORMADEPOLÍTICACULTURAL

Teorizar a alfabetização como uma forma de política cultural pressupõeque as dimensões social, cultural, política e econômica da vida quotidianasejam as categorias primordiais para a compreensão da escolarizaçãocontemporânea.Dentrodestecontexto,avidaescolarnãoéconcebidacomoum sistema unitário,monolítico e rígido de regras e regulamentações,mascomoum terreno cultural caracterizadopela produçãode experiências e desubjetividades em meio a variados graus de acomodação, contestação eresistência.Comoformadepolíticacultural,aalfabetizaçãoaomesmotempoilumina e examina a vida escolar como um lugar caracterizado por umapluralidade de linguagens e de lutas conflitantes, local em que as culturasdominante e subalterna entram em conflito e onde professores, alunos eadministradoresescolaresfrequentementedivergemquantoacomosedevemdefinirecompreenderasexperiênciaseaspráticasescolares.30Dentrodessetipo de análise, a alfabetização proporciona um foco importante para acompreensãodos interesses eprincípiospolíticos e ideológicos em jogonosentrechoquesenosintercâmbiospedagógicosentreoprofessor,oeducandoeasformasdesignificadoedeconhecimentoqueelesproduzememconjunto.

Oqueestáemjogoaquiéanoçãodealfabetizaçãoqueestabelecerelaçõesdepoderedeconhecimentonãoapenasaoqueosprofessoresensinam,mastambém aos significados produtivos que os alunos, com todas as suasdiferenças culturais e sociais, trazem para as salas de aula como parte daproduçãodeconhecimentoedaconstruçãodeidentidadespessoaisesociais.Neste caso, definir alfabetização no sentido freiriano, como uma leitura domundoedapalavra,élançarasbasesteóricasparaumaanálisemaiscompletadecomoseproduzoconhecimentoedecomoseconstroemassubjetividadesnointeriorderelaçõesdeinteração,nasquaisprofessoresealunosprocuramfazer-sepresentescomoautoresativosdeseusprópriosmundos.31

Tradicionalmente, os educadores radicais têm enfatizado a naturezaideológica do conhecimento (ou como uma forma de crítica ideológica oucomo um conteúdo ideologicamente correto a ser passado claramente aos

Page 42: Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra

alunos) comoo centroprimordial do trabalho educativo crítico.É essencialnessaperspectivaumavisãodoconhecimentoquesugerequeeleéproduzidona cabeça do educador ou professor/teórico e não em um engajamentointerativo que se expressa pelo processo de escrever, falar, debater e lutar arespeitodoqueseconsideraconhecimentolegítimo.Emsuma,opensamentoabstrai-se teoricamenteapartirdesuaprópriaprodução,comopartedeumembate pedagógico, e é, também, subteorizado pelo modo como éconfrontadonocontextopedagógicoemqueéensinadoaosalunos.Aideiadeque o conhecimento não se pode construir fora de um embate pedagógicoperde-se no pressuposto errôneo de que o conteúdo de verdade doconhecimentoéaquestãomaisfundamentalasertratadaaoensinaralguém.Dessemodo,aimportânciadanoçãodapedagogiacomopartedeumateoriacrítica da educação ou é subteorizada ou simplesmente esquecida. O quemuitas vezes tememergidodessamaneirade ver éumadivisãode trabalhoem que os teóricos que produzem conhecimento estão restritos àuniversidade, os que simplesmente o reproduzem são encontrados comoprofessoresdeescolasbásicaseosquepassivamenteorecebem,sobaformademigalhas, em todos os níveis de escolaridade, desempenham o papel dealunos.EssarecusaemdesenvolveroqueDavidLustedchamoudepedagogiada teoria e do ensino não apenas identifica erradamente o conhecimentocomo uma produção isolada de significado, como também nega oconhecimento e as formas sociais pelas quais os alunos dão importância àspróprias vidas e experiências. Sobre essa questão, vale a pena reproduzirLusted.

Oconhecimentonãoseproduzemintençãodaquelesqueacreditamserseusdetentores,quercomacaneta,quercomavoz.Eleseproduznoprocessodeinteração,entreoescritoreoleitor,nomomentodaleitura,eentreoprofessoreoeducando,nomomentoemqueseencontramnasala de aula. O conhecimento não é tanto aquilo que se oferece, quanto aquilo que écompreendido.Pensaremcamposdecorposdeconhecimentocomosefossempropriedadedeacadêmicosedeprofessoresestáerrado.Issorejeitaumaigualdadenasrelaçõesemmomentosdeinteraçãoeprivilegiaimpropriamenteumdosladosdointercâmbio,eoqueesselado“sabe”,emdetrimentodooutrolado.Alémdisso,paraprodutoresculturaiscríticos,manteressavisãodoconhecimentotrazconsigosuaprópriapedagogia,umapedagogiaautocráticaeelitista.Nãoé só que isso renegue o valor do que os educandos sabem, o que realmente faz, mas queidentifica erroneamente as condições necessárias para o tipo de aprendizagem — crítica,engajada,pessoalesocial—exigidapelopróprioconhecimento.32

Page 43: Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra

Nosentidomaisóbvio,essaposiçãoéexemplificadapelosprofessoresquedefinem o êxito de seu ensino exclusivamente pela correção ideológica dadisciplinaqueensinam.Exemploclássicoéodaprofessorade classemédia,horrorizada,comrazão,comosexismomanifestadopelosalunoshomensdesua classe. A professora reage apresentando aos alunos grande número deartigosfeministas,filmeseoutrosmateriaiscurriculares.Emvezdereagiremcomgratidão,porestaremsendopoliticamenteesclarecidos,osalunosreagemcom escárnio e resistência.A professora fica frustrada, enquanto o sexismodos alunos parece tornar-se ainda mais acirrado. Nesse confronto, surgemdiversoserrospedagógicosepolíticos.Emprimeirolugar,emvezdeprestarumpoucode atenção a comoos alunosproduzem significado, a professoraradical admite, erroneamente, como evidente por si mesma, a natureza dacorreçãopolíticaeideológicadesuaposição.Aofazê-lo,assumeumdiscursoautoritário que não dá aos alunos a possibilidade de contar suas históriaspessoais,deapresentareemseguidaquestionarasexperiênciasquepõememjogo.Aseguir,negandoaosalunosaoportunidadedequestionareinvestigaraideologiadosexismocomoumaexperiênciaproblemática,aprofessoranãoapenassolapaasvozesdessesalunos,comoaindademonstraaquiloque,aosolhos deles, não passa de mais um exemplo de autoridade institucional declassemédia a lhes dizer o que devem pensar. Em consequência, o que deinício parece ser uma intervenção pedagógica legítima da voz de umaprofessoraradical,acabaporsolaparsuasprópriasconvicçõesideológicas,porignorar a relação complexa e fundamental entre ensino, aprendizagem ecultura dos alunos. As melhores intenções da professora são, desse modo,subvertidas pelo emprego de uma pedagogia que participa exatamente dalógica dominante que ela busca contestar e destruir. O importante areconhecer, neste caso, é que uma teoria radical da alfabetização precisaerguer-se sobre uma teoria dialética da voz e do empowerment. No sentidomaisgeral,issosignificavincularasteoriasdeensinoeaprendizagemateoriasmais amplas da ideologia e da subjetividade. O modo como professores ealunos leemomundo,nestecaso, está inextricavelmente ligadoa formasdepedagogiaquepodemfuncionarouparasilenciaremarginalizarosalunosoupara legitimar suas vozes, num esforço para os empower como cidadãoscríticoseativos.33

Page 44: Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra

DesenvolverumapedagogiaradicalcoerentecomavisãodealfabetizaçãoedevozpropostaporFreireeMacedo implica tambémrepensaranaturezamesmadodiscursocurricular.Deinício,issoexigecompreenderocurrículocomorepresentativodeumconjuntodeinteressessubjacentesqueestruturamomodopeloqualdeterminadahistóriaécontadamedianteaorganizaçãodoconhecimento,dasrelaçõessociais,dosvaloresedas formasdeavaliação.Ocurrículo representa uma narrativa ou voz, a qual émultifacetada emuitasvezes contraditória, mas situada também dentro de relações de poder que,commaior frequência, favorecemos alunosbrancos, do sexomasculino, declasse média, de língua inglesa. O que isso indica, para uma teoria daalfabetização e da pedagogia críticas, é que o currículo, no sentido maisfundamental,éumcampodebatalhasobrecujas formasdeconhecimentoahistória, asvisões, a linguagem,a cultura e a autoridadepredominamcomoumobjetolegítimodeaprendizagemedeanálise.34Finalmente,ocurrículoéuma outra instância de uma política cultural cujas práticas significativascontêm não só a lógica da legitimação e da dominação, mas também apossibilidadedeformastransformadoraseempoweringdepedagogia.

Alémdetratarocurrículocomoumanarrativacujosinteressesdevemserpostosadescobertoeexaminadoscriticamente,osprofessoresradicaisdevemdesenvolvercondiçõespedagógicasemsuassalasdeaulaquepermitamqueasdiversas vozes dos alunos sejamouvidas e legitimadas.O tipodepedagogiacríticaqueaquisepropõepreocupa-sefundamentalmentecomaexperiênciadoaluno;elatemcomopontodepartidaosproblemaseasnecessidadesdospróprios alunos. Isso propõe tanto a confirmação quanto a legitimação doconhecimentoedaexperiênciapormeiodosquaisosalunosdãosentidoàspróprias vidas. Mais evidente ainda, isso significa substituir o discursoautoritárioda imposiçãoeda aulaporumavoz capazde falarnosprópriostermos de cada um, uma voz capaz de escutar, recontar e desafiar as basesmesmasdoconhecimentoedopoder.35

Éimportanterealçarqueumapedagogiacríticadaalfabetizaçãoedavozdeveestaratentaànaturezacontraditóriadaexperiênciaedavozdoalunoe,porisso,estabelecerasbasespelasquaisessaexperiênciapodeserexaminadaeanalisada comrespeito tantoa suas forças,quantoa suas fraquezas.Nestecaso, a voz não apenas proporciona um quadro de referência teórico quealicerça a subjetividade e a aprendizagem, como ainda proporciona um

Page 45: Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra

referenteparaacríticaàespéciedelouvorromânticodaexperiênciadoaluno,quecaracterizougrandepartedapedagogiaradicaldoiníciodosanos1960.Oqueestáemquestãoaquiéavinculaçãodapedagogiadavozdoalunoaumprojetodopossível,quepermitequeosalunosafirmemeexaltemainteraçãodediversasvozeseexperiência,aindaqueaomesmotemporeconheçamqueessas vozes devem sempre ser examinadas quanto aos diversos interessesontológicos,epistemológicos,éticosepolíticosquerepresentam.Comoumaforma de produção histórica, textual, política e sexual, a voz do aluno deveradicar-se numa pedagogia que permita que os alunos falem e quecompreendam a natureza da diferença como parte tanto de uma tolerânciademocráticaedeumacondiçãofundamentalparaodiálogocrítico,quantododesenvolvimento de formas de solidariedade enraizadas nos princípios daconfiança, do compartilhamento e num compromisso com a melhoria daqualidadedavidahumana.Umapedagogiade alfabetização crítica ede vozprecisa desenvolver-se em torno de uma política de divergência e decomunidade, que não se baseia apenas numa exaltação à pluralidade. Umapedagogiacomoessadeveserconseguidaapartirdeumadeterminadaformade comunidade humana em que a pluralidade seja dignificada mediante aconstrução de relações sociais em sala de aula em que todas as vozes seunifiquem, em suas divergências, tanto em seu esforço para identificar erelembrarmomentosdosofrimentohumano,quantoemsuastentativasparasuperarascondiçõesqueperpetuamaquelesofrimento.36

Em segundo lugar, uma pedagogia crítica deve levar muito a sério aarticulaçãodeumamoralidadequepostuleuma linguagemdavidapública,decomunidadeemancipadoraedocomprometimentoindividualesocial.Osalunosdevemserintroduzidosaumalinguagemdoempowermentedaéticaradical que lhes permita pensar a respeito de como a vida em comunidadedeve ser construída em torno de um projeto do possível. Roger Simonexprimiucommuitaclarezaessaposiçãodaseguintemaneira:

Umaeducaçãoqueempowersapossibilidadepropõequestõessobrecomopodemos trabalharparaare-construçãodaimaginaçãosocialaserviçodaliberdadehumana.Quenoçõesdesaberequeformasdeaprenderdarãosustentaçãoaisso?Creioqueoprojetodopossívelexigeumaeducaçãoradicadanumavisãoda liberdadehumanacomoacompreensãodanecessidadeeatransformação da necessidade. Essa é a pedagogia que exigimos, aquela cujos padrões eobjetivos finais sejamdeterminados comrelaçãoametasde crítica e coma intensificaçãodaimaginação social. O ensino e a aprendizagem devem estar vinculados àmeta de educar osalunos para correr riscos, para lutar com as relações de poder vigentes, para apropriar-se

Page 46: Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra

criticamentedas formasde conhecimento existentes forade sua experiência imediata, e paraimaginarversõesdeummundoque (no sentidoblochiano) “aindanãoé”—a fimde seremcapazesdealterarasbasessobreasquaisavidaévivida.37

Em terceiro lugar, os professores devem propiciar aos alunos aoportunidadedeexaminardiversaslinguagensoudiscursosideológicos,comose encontram desenvolvidos numa variedade de textos e de materiaiscurriculares. Isso é importante por diversas razões. Uma pedagogia críticaprecisa primeiro validar e investigar a produção de leituras diferenciais.Aofazê-lo,os alunos são estimulados a engajar-sena tarefa teórica epráticadeexaminarsuasprópriasposiçõesteóricasepolíticas.Aseguir,umapedagogiadesse tipo deve criar as condições de sala de aula necessárias para aidentificaçãoeaproblematizaçãodasmaneirascontraditóriasemúltiplasdeveromundoqueosalunosusemparaaconstruçãodesuaprópriavisãodomundo.Aquestãoaquié,pois,desenvolvereexaminarafundoomodocomoosalunosexecutamdeterminadasoperaçõesideológicasparadesafiarouparaadotar certas posições apresentadas nos textos e contextos de que dispõem,tantonaescolaquantonasociedademaisampla.Emseguidaaisso,eessencialpara o desenvolvimento de uma compreensão crítica e dialética da voz,encontra-seanecessidadedeosprofessoresreconheceremqueossignificadose ideologias do texto não são as únicas posições de que os alunos podemapropriar-se.38Umavezqueasubjetividadeeaidentidadeculturaldoalunosão,elasmesmas,contraditórias,éimportantequesevinculeomodocomoosalunos produzem significado aos diversos discursos e formações sociais,exteriores à escola, que constroem ativamente suas experiências esubjetividadescontraditórias.

Em quarto lugar, como parte do discurso da alfabetização e da voz, oseducadores críticos precisam examinar os interesses sociais e políticos queconstroem suas próprias vozes. Especialmente importante é que osprofessores levem em conta o modo pelo qual tais interesses ideológicosestruturam sua capacidade tanto para ensinar quanto para aprender comoutros.Umateoriaradicaldaalfabetizaçãoedavozdevepermaneceratentaàafirmação de Freire de que todos os educadores críticos são tambémeducandos.Nãosetratameramentedeaprenderarespeitodoqueosalunosdevemsaber;trata-se,muitomais,deaprenderacomorenovarumaformadeautoconhecimentomedianteumacompreensãodacomunidadeedacultura

Page 47: Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra

que constitui ativamente as vidas de seus alunos. Dieter Misgeld diz issomuitobem:

Atransformaçãosocialcontémemsieexigeaautoformação.[…]Aidentidadedoseducandosedosprofessoresestátãoemquestão,edeveserdescobertapormeiodapedagogiaemqueelescooperam, quanto o conteúdo daquilo que aprendem. […] Os pedagogos de Freire(professores-alunos, ou animadores de atividades nos círculos de cultura) podem, por isso,permitir-se aprender, e devem aprender de seus alunos. A aprendizagem de que estamosfalando não é meramente incidental. Não se trata simplesmente de uma questão demonitoramentododesempenhodoaluno,demodoqueumatarefadeaprendizagempossaserapresentadacommaioreficiênciadidática.Emvezdisso,opropósitodaaventuraeducativaéaprendidoere-aprendidodosalunosecomosalunos.Osalunosfazemcomqueosprofessoresselembremdatarefaessencialdaaprendizagem:queaaprendizagemeoensinodestinam-sealevaracabooautoconhecimentocomoconhecimentodaprópriacultura(e“domundo”,comoFreirediz).Aprende-seacompreender,aestimareaafirmarsuaparticipaçãocomomembrodacultura.Cadaqualéalguémparaquemaculturaexiste.Aprende-sesobresimesmocomoum“serdedecisão”ecomoum“sujeitoativodoprocessohistórico”.39

Juntamente com a implicação de que os educadores precisam levar emconta constantemente tanto a palavra quanto o mundo, encontra-se opressupostomenosóbviodequeosprofessoresprecisamdesenvolverpráticaseducativasemqueprofessoresealunossecomprometamunscomosoutroscomo agentes de culturas diferentes/semelhantes. Isso mostra como éimportante que os professores desenvolvam pedagogias que lhes permitamafirmar suas próprias vozes, aomesmo tempo que conseguem estimular osalunosaafirmar,contarerecontarsuasnarrativaspessoaispeloexercíciodesuas próprias vozes. Isso indica, também, que a autoridade institucional eautoconstituída,queofereceabaseparadiscursodoprofessor,nãoédesculpapararecusaraosalunosaoportunidadedequestionarseuspressupostosmaisfundamentais. Issoconstituimenosumargumentopara solaparouanularaautoridade e o fundamento da voz do professor, do que para propiciar ofundamentopedagógicoparacompreendercomoeporqueessaautoridadeseconstruiu e a que propósito ela serve. É importante, também, que osprofessores reconheçam como muitas vezes silenciam os alunos, mesmoquando agem com a melhor das intenções.40 Isso sugere que se atentecriticamente, não só à imediação da própria voz, como parte do aparatoestabelecido de poder,mas também aosmedos, à resistência e ao ceticismoqueosalunosoriundosdegrupossubalternostrazemconsigoparaocenáriodaescola.

Page 48: Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra

Em quinto lugar, as vozes que estruturam o ambiente escolar têm sidomuitas vezes teorizadasdemaneira imprópria, por educadoresde esquerda,como parte de um antagonismo inconciliável entre, de um lado, a voz doprofessoredaescolae,deoutro,asvozesdosgrupossubalternosdealunos.Caindo na armadilha de uma lógica polarizadora de reprodução versusresistência, esse discurso oferece uma compreensão inadequada de como osignificado é negociado e transformado nas escolas; e também não deixaespaço algum para o desenvolvimento de um discurso programático detransformação e possibilidade. Freire e Macedo devem ser enaltecidos porproporcionarem, em suas discussões sobre a voz e sobre a importância dodiálogo, uma leitura alternativa do que se dá nas escolas em torno daprodução e da transformação do significado. Embora o discurso oficial daescola e a voz subalterna dos alunos possam ser moldados a partir denecessidades diversas, existe uma frequente interação entre eles que resultanumprocessodedefiniçãoedecoerçãorecíprocas.41 Isso indicahaverumainteração muito mais sutil entre a ideologia dominante das escolas e asideologiasdosvariadosalunosquenela se encontram.Épreciso reconhecerqueessaposiçãovaibemmaislongedoqueomodeloreprodutivodaescola,desenvolvidopor teóricos tãodiferentesquantoPaulWillis,na Inglaterra, eSamBowles eHerbGintis, nos EstadosUnidos.42Não se pode desprezar anatureza característica das oscilantes formas de acomodação, resistência equestionamento que definem a qualidade particular da complexa interaçãoentreasvozesdoprofessoredoaluno, emespecialpor ser exatamenteessaqualidade quemostra a importância de sempre se analisar a cultura escolardominante como parte de um contexto histórico, social e pedagógicodeterminado.Essavisãodavozedapedagogiaproporciona,também,abaseparaodesenvolvimentodepossíveis alianças eprojetos em tornodosquaisprofessoresealunospodemdialogarelutarjuntosafimdefazercomquesuasrespectivas posições sejam ouvidas fora das salas de aula e na comunidademaisampla.

CONCLUSÃO

Cabe repetir que a abordagem da alfabetização desenvolvida por Freire eMacedonestaspáginasnãoésimplesmentesobreempoweringosalunos,masrefere-se, também, ao empowerment dos professores como parte do projeto

Page 49: Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra

mais amplode reconstrução social e política. StanleyAronowitz e eu temosafirmadoque a alfabetização crítica éumaprecondiçãoparao engajamentono trabalho pedagógico radical e na ação social.43 Para essa luta, éfundamentalanecessidadederedefiniranaturezadotrabalhodosprofessorescomo intelectuais transformadores. A categoria de intelectual é importante,neste caso, para a análise, tanto das práticas ideológicas e materiaisparticulares que estruturam as relações pedagógicas emque se envolvemosprofessores,quantopara identificar anatureza ideológicados interessesqueosprofessores produzeme legitimamcomoparte da culturamais ampla.Anoção de intelectual oferece um referente para criticar aquelas formas depedagogiasgerenciais,esquemascontábeisecurrículos“àprovadeprofessor”que definiriam os professores simplesmente como técnicos. Além disso,oferece a base teórica e política para que os professores se engajem numdiálogo crítico entre si e com outros a fim de lutar pelas condições de quenecessitam para refletir, ler, partilhar seu trabalho com outros e produzirmateriaiscurriculares.

Atualmente,nosEstadosUnidos, osprofessoresnão só estão sofrendoainvestida da nova direita e do governo federal, como ainda trabalham sobcondições recheadas,demaneira esmagadora,de coerçõesorganizacionais econdiçõesideológicasquenãolhesdãoummínimodeespaçoparaotrabalhocoletivo e para atividades críticas. Sua carga horária é grande demais,geralmenteestão isoladosemestruturascelularese têmpoucaoportunidadede trabalhar coletivamente com seus pares. Além disso, são impedidos deexercer seu próprio conhecimento relativo à seleção, organização edistribuiçãodemateriaisdeensino.Maisainda,osprofessoresatuammuitasvezessobcondiçõesde trabalhodegradanteseopressivas. Issoestá ilustradode maneira vigorosa em recente estudo sobre professores das escolasprimáriasda regiãodeBoston, realizadoporSaraFreedman, Jane JacksoneKatherine Boles. Elas descobriram que a retórica muitas vezes associada àvisãoqueopúblicotemdaescolaestáindiscutivelmenteemdesacordocomasfunçõesquesepediamaosprofessoresparadesempenharemseuscargos.Porexemplo, as escolas são incumbidas de preparar as crianças para a idadeadulta, mas os professores mesmos eram tratados como incapazes de fazerjulgamentosmaduros; as escolas recebem a responsabilidade de estimular osenso de autonomia e de confiança nos alunos, mas os professores, nesse

Page 50: Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra

estudo, eram constantemente fiscalizados, dentro de uma rede de vigilânciaadministrativa, sugerindo que nem mereciam confiança nem podiamtrabalharautonomamente;exige-sequeasescolascriemcidadãoscapazesdeponderar as implicações de suas ações numa sociedade democrática e, noentanto, esses professores executavam seu trabalho dentro de uma rede derelaçõesdetrabalhorigidamentehierarquizadaesexista;piorainda,exigia-seque ensinassemas crianças a assumir riscos, apesar alternativas e a exercerjulgamento independente, enquanto eles eram restritos a práticas didáticasqueenfatizavamosaspectosrepetitivos,mecânicosetécnicosdoensinoedaavaliação.44

Éimportantequeserealcevigorosamentequeosprofessoresnãopodemassumir o papel de intelectuais críticos dedicados a uma pedagogia daalfabetização e da voz, a não ser que existam as condições ideológicas emateriaisadequadasparadarsustentaçãoaessepapel.Essabatalhadevesertravada não apenas quanto à questão de que e como ensinar, mas tambémquanto às condições materiais que possibilitam e dificultam o trabalhopedagógico. É uma consideração tanto teórica quanto prática a que osprofessores radicais têm de recorrer como parte de uma teoria dealfabetizaçãocríticaevoz.Nãosepretendequeaenormedimensãopolíticadetal tarefa leve os professores ao desespero, mas, ao contrário, que lhesproponha que, lutando por condições que apoiem o ensino participativo, aescrita e a pesquisa coletivas e o planejamento democrático, os professorescomeçarãoa fazerasnecessárias incursõesparaaaberturadenovosespaçosparaodiscursoeaaçãocriativosereflexivos.Nuncaserádemaisenfatizaraimportânciadecriaressetipodediscursocríticoeascondiçõesque lhedãosustentação.Poissomentedentrodeumdiscursocomoesseedascondiçõespráticasnecessáriasparaconcretizarseusinteresseséquesepodedesenvolveruma pedagogia emancipadora, pedagogia que relacione linguagem e poder,que leve a sério as experiências populares como parte do processo deaprendizagem,quecombataamistificaçãoequeajudeosalunosareordenaraexperiência bruta de suas vidas por meio das perspectivas abertas porabordagens da aprendizagem baseadas no modelo de alfabetização críticapropostoporFreireeMacedo.

Naturalmente, enquanto as escolas não possam ser feitas de molde aempower professores e alunos, os educadores precisam compreender a crise

Page 51: Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra

ideológica epolítica atual que envolve a finalidadeda escolapública.Comopartedaatual investidapolíticacontraos serviçospúblicosea justiça socialemgeral,asescolasestãosendo,cadavezmais,subordinadasaosditamesdosinteresses neoconservadores e de direita que, de bom grado, fariam delaanexos do local de trabalho ou da igreja. Numa sociedade democrática, asescolasjamaispoderãoserreduzidasaarmazénsdegrandescompanhiasouacamposdetreinamentoparacristãosfundamentalistas.Nestaépocaemqueademocraciamuitasvezespareceestarrecuando,éprecisoqueasescolassejamrecuperadas,equese luteporelascomoesferaspúblicasdemocráticas.Maisespecificamente,oseducadoresprogressistasdevemunir-seecommembrosde outrosmovimentos sociais para lutar pela importância e pela prática daalfabetização crítica, como parte do processo indispensável de formação doindivíduo e da sociedade necessária à criação de formas de vida públicaessenciais ao desenvolvimento e àmanutenção de uma democracia radical.Issosugerenãosóumnovoplanoemtornodoqualdesenvolverareformadaescolapública,mastambémumplanoparaavinculaçãodegrupospolíticosprogressistasdivergentes.Aalfabetizaçãoéindispensávelatodososaspectosdateoriacríticaedapráxisradical,edeveproporcionarabaseparavoltarainjetaropedagógicodentrodosignificadodapolítica.FreireeMacedodevemserenaltecidospornosofereceremnestelivroumavisãodaalfabetizaçãoedavozquedemonstraeafirmaaimportânciadaescolacomopartedalutapelaexpansão das possibilidades humanas dentro de um discurso que propõenovasquestões,revelaaimportânciadasolidariedadedemocráticaepropõeaprioridadedeumalógicaquedignificaaimportânciadademocraciaradicaledajustiçasocial.

HenryA.GirouxUniversidadedeMiami

Oxford,Ohio

Page 52: Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra

Notas7 AntonioGramsci,apudJamesDonald,“Language,Literacy,andSchooling”,inTheStateandPopularCulture.MiltonKeynes:OpenUniversity,U203PopularCultureUnit,1982,p.44.Comreferênciaàsobservações de Gramsci sobre a linguagem, cf. Antonio Gramsci, The Modern Prince and OtherWritings,traduzidoporLouisMarks.NovaYork:NewWorldPaperbacks,1957,passim;SelectionsfromthePrisonNotebooks,organizadoetraduzidoporQ.HoareeG.NowellSmith.NovaYork:InternationalPublishers,1971;eLettersfromPrison.Londres:JonathanCape,1975.

8 Cf.,porexemplo,PauloFreire,Pedagogiadooprimido.NovaYork:SeaburyPress,1970 [48aedição,SãoPaulo:PazeTerra,2011];Id.,Educaçãocomopráticadaliberdade.RiodeJaneiro:PazeTerra,1967[33aedição,SãoPaulo:PazeTerra,2011];Id.,Açãoculturalparaaliberdadeeoutrosescritos;MikhailBakhtin, The Dialogical Imagination, traduzido por Caryl Emerson e Michael Holquist. Austin:UniversityofTexas,1981;V.N.Volosinov[M.M.Bakhtin],MarxismandthePhilosophyofLanguage.NovaYork:SeminarPress,1973;eId.,Freudianism:AMarxistCritique.NovaYork:AcademicPress,1976.

9 Paraumadeclaraçãoclássicadedefesadessaposição,cf.ComitêdePesquisaePolíticadoComitêparaoDesenvolvimentoEconômico,InvestinginOurChildren:BusinessandthePublicSchool.NovaYork:Commitee for Economic Development, 1985. Uma crítica a essa posição pode ser encontrada emStanleyAronowitzeHenryA.Giroux,EducationunderSiege.SouthHadley,Massachusetts:BerginandGarvey,1985.

10 Issonãoestáparticularmenteevidentenodiscursodosteóricosdaprivaçãoculturaldanovadireita,comoNathanGlazer,masétambémassuntodapolíticafederaldeeducação.Porexemplo,oMinistroda Educação,William Bennett, abertamente contrário ao bilinguismo, manifesta uma posição que émenosumataquecontraapolíticadasminoriaslinguísticaspersedoquecontraopapelqueaeducaçãopode desempenhar no empowerment das minorias pela dignificação das respectivas culturas eexperiências.Interessantedivulgaçãodessetemaencontra-seemJamesCrawford,“BilingualEducatorsDiscussPoliticsofEducation”.EducationWeek,19/11/1986,pp.15-6.Paraumtratamentomaisteórico,cf. James Cummins, “Empoweing Minority Students: A Framework for Intervention”. HarvardEducationalReview,56,fevereirode1986,pp.18-36.

11 Stanley Aronowitz, “Why Should Johnny Read?”.The Village Voice Literary Supplement, maio de1985,p.13.

12 Comoexceçãoquantoaisso,cf.osdiversosartigossobrepolíticadealfabetizaçãoemHumanitiesinSociety 4 (outono de 1981), editados por Donald Lazere. Cf. também Richard Ohmann, English inAmerica. Cambridge e Oxford: Oxford University Press, 1976; Id., “Literacy, Technology, andMonopolyCapital”.CollegeEnglish,47,1985,pp.675-84;ValerieMiller,BetweenStruggleandHope:TheNicaraguan Literacy Crusade. Boulder: Westview Press, 1985; Stanley Aronowitz, op. cit.; e JamesDonald, op cit. Para uma revisão da literatura conservadora, liberal e radical sobre alfabetização, cf.Henry A. Giroux, Theory and Resistance in Education: A Pedagogy For Opposition. South Hadley,Massachusetts: Bergin and Garvey, 1983; Linda Brodkey, “Tropics of Literacy”. Boston UniversityJournal of Education, 168, 1986, pp. 47-54; Rita Roth, “Schooling, LiteracyAcquisition, andCulturalTransmission”.BostonUniversityJournalofEducation,166,1984,pp.291-308;eIraShor,CultureWars.NovaYork:RoutledgeandKeganPaul,1986.Umaexcelentedemonstraçãodarelaçãoexistenteentreumateoriaradicaldealfabetizaçãoeapráticaemsaladeaulaencontra-seemAlexMcLeod,“CriticalLiteracy:TakingControlofOurOwnLives”.LanguageArts, 63, janeirode1986,pp. 37-50; e Shirley

Page 53: Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra

Heath, Way with Words. Nova York: McGraw Hill, 1983. Excelente revisão da literatura sobrealfabetização e ensino de leitura encontra-se em Patrick Shannon, “Reading Instruction and SocialClass”.LanguageArts, 62, outubrode 1985, pp. 604-11; eparauma importante críticade abordagemdominantedaleituraedaalfabetização,baseadanousodosBasalReaders,cf.KennethGoodman,“BasalReaders:ACallforAction”.LanguageArts,63,abrilde1986,pp.358-63.

13 Admirável análise teórica da relação entre a obra de Freire e o discurso da esperança e datransformação encontra-se emPeterMcLaren, “Postmodernity and theDeathofPolitics:ABrazilianReprieve”.EducationalTheory,36,1986,pp.389-401.

14 UmavisãomaisrecentedateoriadaalfabetizaçãoepolíticadeFreireencontra-seemDavidDillon,“ReadingtheWorldandReadingtheWord:AnInterviewwithPauloFreire”.LanguageArts,62,janeirode1985,pp.15-21.

15 AntonioGramsci,Selections from thePrisonNotebooks, organizado e traduzido porQ.Hoare eG.NowellSmith.NovaYork:InternationalPublishers,1971.

16 ImportanteestudosobrealfabetizaçãoeideologiaéodeLindaBrodkey,WritingonParole:EssaysandStudiesonAcademicDiscourse.Filadélfia:TempleUniversity.

17 S.AronowitzeH.A.Giroux,op.cit.

18 GillianSwanson,“RethinkingRepresentations”.Screen,27,outubrode1986,pp.16-28.

19 RogerSimon,“EmpowermentasaPedagogyofPossibility”.LanguageArts,64,abrilde1987,pp.370-82.

20 S.Aronowitz,op.cit.

21 PhilipCorrigan,“StateFormationandClassroomPractice”,comunicaçãoapresentadanoSeminárioIvorGoodson,UniversidadedeWesternOntario,2-3/10/1986.

22 Para uma discussão crítica das teorias de reprodução e resistência, cf. H.A. Giroux, op. cit. Cf.tambémJ.C.Walker,“RomanticisingResistance,RomanticisingCulture:ProblemsinWillis’sTheoryofCulturalProduction”.BritishJournalofSociologyofEducation,7:1,1986,pp.59-80.

23 FredInglis,TheManagementofIgnorance.Londres:Blackwell,1985,p.108.

24 HaroldRosen,“TheImportanceofStory”.LanguageArts,63,marçode1986,pp.226-37.

25 Walter Benjamin, Iluminations, organizado por Hannah Arendt. Nova York: Schocken, 1969,especialmente“ThesisonthePhilosophyofHistory”,pp.253-64.

26 ErnstBloch,ThePrincipleofHope.Cambridge,Massachusetts:MIT,1985,t.III.Paraumadiscussãosobreapolíticadoantiutopianismo,esperançaelutanasteoriasradicaisdaeducação,cf.H.A.Giroux,“Solidarity,Struggle,andthePublicSphere,parts1&2”.TheReviewofEducation,12,n.3-4,verãoeoutonode1986.

27 Estetemaestámaisdesenvolvidonasdiversasobrasetradiçõesdateologiada libertação.Paraumarevisãoperspicazeumaanálisecríticadessaperspectiva,cf.RebeccaS.Chopp,ThePraxisofSuffering.Maryknoll,NovaYork:Orbis,1986.

28 Cf.HerbertMarcuse,ErosandCivilization.Boston:BeaconPress, 1955; ePaulRicoeur,Freud andPhilosophy:AnEssayonInterpretation,traduzidoporDenisSauvage.NewHaven:YaleUniversity,1970.

29 MartinJay,“AnamnesticTotalization”.TheoryandSociety,11,1982,p.13.

Page 54: Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra

30 PeterMcLaren,SchoolingasaRitualPerformance.NovaYork:RoutledgeandKeganPaul,1986.

31 RogerSimon,op.cit.,p.4.

32 DavidLusted,“WhyPedagogy?”.Screen,27,setembro-outubrode1986,pp.4-5.

33 Importanteanálise sobre temas semelhantes encontra-seemKathleenWeller,WomenTeaching forChange.SouthHadley,Massachusetts:BerginandGarvey,1987.

34 Umaadmirávelhistóriadocurrículocomocampodelutaencontra-seemHerbertM.Kliebard,TheStrugglefortheAmericanCurriculum,1893-1958.NovaYork:RoutledgeandKeganPaul,1986.

35 H.A.Giroux,“RadicalPedagogyandthePoliticsofStudentVoice”.Interchange,17,1986,pp.48-69.

36 SharonWelch,CommunitiesofResistanceandSolidarity.NovaYork:Orbis,1985.

37 R.Simon,op.cit.,pp.11-2.

38 G.Swanson,op.cit.

39 DieterMisgeld, “EducationandCultural Invasion:CriticalSocialTheory,Educationas Instruction,and the ‘Pedagogy of the Oppressed’”, in John Forester (org.), Critical Theory and Public Life.Cambridge,Massachusetts:MIT,1985,pp.106-7.

40 MichelleFine,“SilencinginPublicSchools”.LanguageArts,64,1987,pp.157-74.

41 Esse tema encontra-se bem desenvolvido emAdrian T. Bennet eMichelle Sola, “The Struggle forVoice:Narrative,Literacy,andConsciousnessinanEastHarlemSchool”.BostonUniversityJournalofEducation,167,1985,pp.88-110.

42 Samuel Bowles eHerbertGintis, Schooling in Capitalist Society. Nova York: Columbia University,1981.

43 S.AronowitzeH.A.Giroux,op.cit.,especialmentecap.2,pp.23-46.

44 Katherine Boles, Sara Freedman e Jane Jackson, “The Other End of the Corridor: The Effect ofTeachingonTeachers”.RadicalTeacher,23,1983,pp.2-23.

Page 55: Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra

1REPENSANDOAALFABETIZAÇÃO:UMDIÁLOGOMacedo:A ideiade alfabetização emancipadora sugere duas dimensões daalfabetização.Porumlado,osalunosdevemalfabetizar-sequantoàsprópriashistórias,aexperiênciaseàculturadeseumeioambienteimediato.Poroutrolado, devem também apropriar-se dos códigos e culturas das esferasdominantes,demodoquepossamtranscenderaseuprópriomeioambiente.Muitasvezes,háenormetensãoentreessasduasdimensõesdaalfabetização.Como pode a alfabetização emancipadora lidar eficientemente com essatensãodemodoanãosufocarnenhumadessasdimensões?Ecomolidarcomaconsciênciaouasubjetividadedoseducandos?

Freire:Comecemospelo fim: a consciência é geradanaprática social deque se participa. Mas tem, também, uma dimensão individual. Minhacompreensão do mundo, meus sonhos sobre o mundo, meu julgamento arespeito do mundo, tendo, tudo isso, algo de mim mesmo, de minhaindividualidade, temque ver diretamente com a prática social de que tomoparte e comaposiçãoquenelaocupo.Precisode tudo issopara começar apercebercomoestousendo.Nãomecompreendose tratodemeentenderàluzapenasdoquepensoserindividualmenteouse,poroutrolado,mereduzototalmente ao social. Daí a importância da subjetividade. Mas não possosepararminhasubjetividadedaobjetividadeemquesegera.

Quando, em sua pergunta, indaga sobre como lidar com a dimensãoindividualdaconsciênciasocial,vocêsublinhaatensãoqueexperimentamossempre entre o individual e o social. Creio que uma educação crítica, umaeducaçãonosmoldesdoqueHenryGirouxchamadepedagogiaradical,deveconsiderarestatensãotrabalhando-aseriamente.

Tem-sequeaprenderalidarcomestarelação.Aoformularumateoriadaeducação,nãosedevenegarosocial,oobjetivo,oconcreto,omaterialnemacentuar apenas o desenvolvimento da consciência individual. Ao

Page 56: Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra

compreender o papel da objetividade, deve-se, igualmente, estimular odesenvolvimentodadimensãoindividual.

Voltemosaoprimeiromomentodesuapergunta,queenvolveigualmentetensão.Atensãoqueresultadoencontrooudesencontroentreomundodoeducadoreomundodoseducandos,nãoimportasesejamestesmeninosouadultos.

Se,deum lado, cometeriaumgrande erro,o educadorprogressistaque,emnomedorespeitoàcultura,àidentidadeculturaldoseducandos,reduzissesuapráticapolítico-educativaaumbasismo, sempremíope, aum focalismo,semprealienante,nãomenosmíopeealienanteseriaapráticaeducativaque,autoritária e arrogante, menosprezasse, como coisa imprestável, o saberpopular, a linguagempopular, os sonhosdopovo.Não épossível superar aingenuidade,osensocomum,sem“assumi-los”.Jádisseumavezevaleapenarepetir:ninguémchegalápartindodelá,masdaqui.

Macedo: A questão fundamental é como lidar com a consciênciaindividual,comoelaéenfatizadanaalfabetizaçãoemancipadora,quandoessaconsciênciapodeestaremcontraposiçãoàconsciênciasocialcoletiva.

Freire:Examinandoosváriosmodosdeviveredeser, legitimadosnumasociedade tão complexa como a dos Estados Unidos, encontra-se, porexemplo, um inegável gosto pelo individualismo. Porém, o gosto que cadapessoa demonstra pelo individualismo é a expressão particular de umaconsciênciasocialdessapessoa.

Macedo:Issoépartedaquestãoqueeuqueriapropor:comopodealguémdesenvolverumaconsciênciacríticasemcontemplaroconceitodarealidadedaconsciênciasocial?Ouseja,serápossívelevitaroembatepermanentequeexisteentreaconsciênciaindividualeaconsciênciacoletiva?

Freire: Se se tomar o tratamento individualista da dimensão social, umapráticaeducativatorna-secríticaquandoumeducador,comoHenryGirouxouStanleyAronowitz, ou você, temumdiálogo comos alunos e os desafiametodicamenteadescobrirqueumaposturacríticaimplicanecessariamenteoreconhecimentodarelaçãoentreobjetividadeesubjetividade.Euachamariade crítica, porque, em muitos casos, os indivíduos ainda não se terãopercebidocomosendosocialmentecondicionados.

Page 57: Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra

Quando desafiados por um educador crítico, os alunos começam acompreender que a dimensão mais profunda de sua liberdade encontra-seprecisamente no reconhecimento das coerções que podem ser superadas.Entãodescobrem,noprocessode se tornaremcada vezmais críticos, que éimpossívelnegaropoderconstitutivodesuaconsciêncianapráticasocialdeque participam. Por outro lado, percebem que, mediante sua consciência,ainda quenão seja ela a artíficie todo-poderosa de sua realidade social, elestranscendem a realidade estabelecida e a questionam. Essa diferença decomportamento levao indivíduoase tornarcadavezmaiscrítico; istoé,osalunosassumemumaposturacríticanamedidaemquecompreendemcomoeoqueconstituiaconsciênciadomundo.

Macedo: O pressuposto dessa postura crítica põe fim à tensão quediscutimosantes?

Freire: De modo algum. A tensão continua. Mas, para mim, umapedagogia perfeitamente definida pode acentuar a presença dessa tensão.Contudo,opapelmaisimportantedapedagogiacríticanãoéterminarcomastensões. O papel mais importante da pedagogia crítica é levar os alunos areconhecerasdiversas tensõesehabilitá-losa lidarcomelaseficientemente.Tentarnegaressastensõesacabapornegaroprópriopapeldasubjetividade.Anegaçãodatensãosignificaa ilusãodetersuperadoessastensõesquando,naverdade,elasestãoapenasocultas.

Nãopodemosexistirforadeumainteraçãodetensões.Mesmoaquelesquevivempassivamentenãoescapamacertadosedetensões.Frequentemente,háumarecusade tensões,masessas tensõesdevemser,deumlado,aceitas,deoutro, compreendidasna sua razãode ser.De fato, creioqueuma tarefadapedagogia radicaléesclareceranaturezadas tensõeseamaneirademelhorlidarcomelas.

Macedo: Um programa de alfabetização crítica, que papel podedesempenharnointer-relacionamentoentreodiscursoprodutivo,otextoeodiscursooral?

Freire: É impossível levar avante meu trabalho de alfabetização, oucompreenderaalfabetização(eaquitenhodemerepetir,poisnãotenhoummodo melhor de responder à sua pergunta), separando completamente aleitura da palavra da leitura do mundo. Ler a palavra e aprender como

Page 58: Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra

escreverapalavra,demodoquealguémpossalê-ladepois,sãoprecedidosdoaprender como “escrever” o mundo, isto é, ter a experiência de mudar omundoedeestaremcontatocomomundo.

Macedo:Comovocêdesenvolveespecificamenteaconsciênciadomundonoprocessodealfabetização?

Freire:Aconsciênciadomundoconstitui-senarelaçãocomomundo;nãoé parte do eu. Omundo, enquanto “outro” demim, possibilita que eumeconstitua como “eu” em relação a “você”. A transformação da realidadeobjetiva (o que chamo de “escrita” da realidade) representa exatamente opontoapartirdoqualoanimalquesetornouhumanocomeçoua“escrever”história.Issoteveinícionomomentoemqueasmãos,liberadas,começaramaserusadasdemaneiradiferente.Àmedidaqueessatransformaçãotinhalugar,a consciência do mundo “contatado” ia-se constituindo. Precisamente essaconsciênciadomundo,tocadoetransformado,équegeraaconsciênciadoeu.

Durantemuitotempo,essesseres,queestavamsefazendo,“escreveram”omundo mais do que falaram o mundo. Tocavam diretamente o mundo eagiamdiretamente sobre ele, antes de falarem a seu respeito.Algum tempomais tarde, no entanto, esses seres começaram a falar a respeito domundotransformando-se. E começaram a falar a respeito dessa transformação.Depoisdeoutro longoperíodode tempo, esses seres começarama registrargraficamenteafalaarespeitodatransformação.Aleituradomundoprecedemesmo a leitura da palavra. Os alfabetizandos precisam compreender omundo,oqueimplicafalararespeitodomundo.

Oexercíciodaoralidadeéfundamentalnapráticadaalfabetização,mesmoque ocorra numa cultura como a dos Estados Unidos, por exemplo, cujamemória é preponderantemente escrita, e não oral como a da África, oupreponderantemente oral, como a nossa. Considerando esses diversosmomentos,queocorreramnopassardemilênios,econsiderandotambémaexperiência moderna, não é viável separar o processo de alfabetização dosprocessoseducativosgerais.Nãoéviávelsepararaalfabetizaçãodoprocessoprodutivo da sociedade.O ideal é uma abordagem concomitante, emque aalfabetização evolua em diversos ambientes, tais como o local de trabalho.Porém, mesmo quando a alfabetização não pode ocorrer em diversos

Page 59: Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra

ambientes,julgoimpossíveldicotomizaroqueocorrenoprocessoeconômicodoquesediscutecomeseensinaaosalfabetizandos.

Finalmente, uma alfabetização crítica, sobretudo uma pós-alfabetização,nãopodedeixardeladoasrelaçõesentreoeconômico,ocultural,opolíticoeopedagógico.

Macedo: Por falar em produção cultural, gostaria de lhe perguntar arespeitodarelaçãoentreeducação,inclusivealfabetização,ecultura.Contudo,temos que levar em conta a existência de várias definições de cultura. Por“cultura” não quero dizer aquilo que é representativo dos elementosdominantes da elite, isto é, cultura com Cmaiúsculo. A cultura não é umsistema autônomo, mas sim um sistema caracterizado por estratificação etensões sociais. Para ser preciso, tenho emmente a definição de cultura deRichardJohnson,quecontémastrêspremissasprincipaisseguintes:

1. Os processos culturais estão intimamente ligados às relações sociais,especialmenteàsrelaçõesdeclasseeàsformaçõesdeclasse,comdivisõessexuais,comaestruturaçãoracialdasrelaçõessociaisecomasopressõesdaidadecomoformadedependência.

2. A cultura implica poder e contribui para produzir assimetrias nascapacidadesdo indivíduoedegrupos sociaisparadefinir e concretizarsuasnecessidades.

3. Aculturanãoéautônomanemumcampoexternamentedeterminado,masumlocaldediferençaselutassociais.45

Dadoolequedefatoresqueinteragemnaproduçãoereproduçãocultural,dequemodoumaalfabetizaçãoemancipadorapodetranscenderasbarreirasdeclasse socialpara tercontatocomtodosessesoutros fatores relacionadoscomacultura?Alémdisso,vocêpoderia falar tambémsobreaeducaçãoemgeraleaalfabetizaçãoemparticularcomofatoresdecultura?

Freire: A alfabetização e a educação, de modo geral, são expressõesculturais. Não se pode desenvolver um trabalho de alfabetização fora domundo da cultura, porque a educação é, por si mesma, uma dimensão dacultura. Parece-me fundamental, porém, na prática educativa, que oseducadoresnãoapenasreconheçamanaturezaculturaldoseuquefazer,mastambém desafiem os educandos a fazer o mesmo reconhecimento.

Page 60: Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra

Reconhecer,contudo,anaturezaculturaldaeducaçãonãosignificaabençoartodaexpressãocultural,masreconhecerqueapróprialutapelasuperaçãodoqueAmílcarCabral chamava “fraquezas da cultura” passa pela assunção daprópriafraqueza.Daíqueaeducaçãodevatomaraculturaqueaexplica,pelomenosemparte,comoobjetodeumacuidadosacompreensão,comoqueaeducaçãosequestionaasimesma.Equantomaissequestionanaculturaenasociedadeemquesedá,tantomaissevaitornandoclaroqueaculturaéumatotalidade atravessada por interesses de classe, por diferenças de classe, porgostosdeclasse.

Na sociedade brasileira, por exemplo, não se pode negar que existemdeterminadospadrõescomportamentaiscaracterísticosdocomportamentodediferentes classes sociais.Opaladar, por exemplo, que tambémé cultural, éfortementecondicionadopeloslimitesdeclassessociais.

Macedo:Nãofoiminhaintençãocentraraatençãoapenassobreasclassessociais na produção e reprodução culturais. Creio que se devem investigaroutrasinfluênciasculturaisnaeducação.

Freire:Mesmoquandoumapedagogiaprocura influenciaroutros fatoresque não podem ser explicados estritamente por uma teoria de classe, aindaassimsetemquelevaremcontaaquestãodasclassessociais.

Issoposto,devemosaindareconhecerqueasclassessociaisexistemequesuapresençaé contraditória.Ou seja, a existênciade classes sociaisprovocaumconflitodeinteresses.Provocaedáformaamodosculturaisdesere,porisso,geraexpressõescontraditóriasdecultura.

Emgeral,ossegmentosdominantesdequalquersociedadefalamdeseusinteresses particulares, de seus gostos, de seus estilos de vida, que encaramcomo expressões concretas da nacionalidade.Assim, os grupos subalternos,quepossuemseusprópriosgostoseestilosdevida,nãopodemfalardeseusgostos e estilos como expressões nacionais. Falta-lhes o poder político eeconômicoparafazê-lo.Sóosquetêmpoderpodemgeneralizareestabelecerque as características de seu grupo são representativas da cultura nacional.Assimestabelecendo,o grupodominantenecessariamentedeprecia todas ascaracterísticas pertencentes aos grupos subalternos, características que sedesviamdospadrõesestabelecidos.

Page 61: Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra

Isso é especialmente interessante quando se compreende a assimetriageradapelasinstituiçõessociaisequãoimportanteéopapeldosprogramasdealfabetizaçãocríticaparaadesmistificaçãodosparâmetrosartificiaisimpostosaopovo.Aalfabetizaçãocríticadeveexplicaravalidadedosdiversostiposdemúsica,depoesia,delinguagemedevisãodomundo.

Dessepontodevista, a classedominante,quepossuiopoderdedefinir,caracterizaredescreveromundo,começaadeclararquea falahabitualdosgrupossubalternoséumaformacorrompida,umabastardamentododiscursodominante. Nesse sentido é que os sociolinguistas estão dando umacontribuição considerável para a desmistificação dessas noções. O que elesmostram é que, cientificamente, todas as línguas são válidas, sistemáticas,sistemas normatizados, e que a distinção inferioridade/ superioridadeconstituiumfenômenosocial.Umalínguasedesenvolveatéopontoemqueatingedeterminadaestabilidadeemdeterminadaáreaenamedidaemqueéutilizadaparaacompreensãoeexpressãodomundopelosgruposqueausam.

Não se pode, pois, compreender e analisar uma linguagem sem umaanálisedeclasse.Muitoemborapossamos terdeultrapassaras fronteirasdeclasseparacompreenderdeterminadaspropriedadesuniversaisdalinguagem,não devemos nem reduzir a pesquisa da linguagem a uma compreensãomecânica nem reduzi-la apenas à análise de classes sociais.Mas temos quefazer comqueestaúltimaobtenhaumavisãoglobaldo sistema totalque seestejainvestigando.

Pensoquetodosnós,emúltimaanálise,falamosamesmalinguagem(nosentidoabstrato)eexpressamo-nosdemodosdiferentes.

Isso tem a ver com a pergunta que você me fez relativa aos diferentesdiscursos. Se se tomar o caso brasileiro, há o tipode linguagem faladopelaclassedominanteeoutrostiposfaladospelosoperários,camponesesegrupossemelhantes. Essas são parte da ideia abstrata que chamamos português doBrasil. Istonãoé línguacomoabstração,mas línguacomosistemaconcretofalado por diversos grupos. Por isso, é importante compreender essasdiferentes variedades de linguagem. Elas implicam gramáticas diversas erepresentações sintáticas e semânticas diversas, condicionadas e explicadaspelaspessoasemposiçõesdiferenciadasemrelaçãoàsforçasdeprodução.

Page 62: Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra

Alínguatambémécultura.Elaéaforçamediadoradoconhecimento;mastambém é, ela mesma, conhecimento. Creio que tudo isso passa tambématravés das classes sociais.Uma pedagogia crítica propõe essa compreensãocultural dinâmica e contraditória, e a natureza dinâmica e contraditória daeducação como um objeto permanente de curiosidade por parte doseducandos.Encontramos,emgeral,umaapreciaçãosimplistarelativamenteaesses fenômenos. É como se tudo já estivesse sabido e estabelecido pelosgrupos dominantes. Como se tudo que tem lugar no nível da cultura nãotenha nada a ver com outros discursos, tais como o discurso da produção.Uma pedagogia será tanto mais crítica e radical, quanto mais ela forinvestigativa e menos certa de “certezas”. Quanto mais “inquieta” for umapedagogia,maiscríticaelasetornará.

Umapedagogiapreocupadacomasincertezasqueseradicamnasquestõesque discutimos é, pela própria natureza, uma pedagogia que exigeinvestigação. Assim, essa pedagogia será muito mais uma pedagogia daperguntadoqueumapedagogiadaresposta.

Macedo: Falemos sobre a alfabetização como a “linguagem do possível”que torna possível que os educandos reconheçam e compreendam suasprópriasvozesemmeioaumamultidãodediscursoscomosquais têmquelidar.Comopodeumaalfabetizaçãoemancipadoragarantira legitimaçãododiscurso de alguém, o qual pode estar numa relação de tensão com outrosdiscursos? Isto é, se a alfabetização emancipadora requer que se louve odiscurso de alguém, haverá inevitavelmente discursos concorrentes, todoscomamesmametaemmente.Serápossívelquehajaespaçosuficientedentrode um esforço de alfabetização emancipadora que possibilite que oseducandos se apropriem de seus próprios discursos e, simultaneamente,avancemparaalémdeles,demodoadesenvolvercompetênciaedesenvolturaaolidarcomoutrosdiscursos?Quaisospapéisqueodiscursodonegronorte-americano, o discurso das mulheres e o discurso de grupos étnicosdesempenhamnoprocessodealfabetizaçãoemancipadora?

Freire:Essaquestãotranscendeaumacompreensãomecânicaeestritadoatodeler,istoé,oatodeaprenderapalavrademodoapoder,aseguir,lê-laeescrevê-la.Essaquestãotrazconsigoumsonhoquevaialémdaexpectativadeapenas aprender a ler a palavra. Sua pergunta implica uma compreensão

Page 63: Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra

profundado atode ler.Respeitarosdiferentesdiscursos epôr emprática acompreensãodepluralidade(aqualexigetantocríticaecriatividadenoatodedizer a palavra, quanto no ato de ler a palavra) exige uma transformaçãopolíticaesocial.

Suapergunta faz-me lembrardemeusonhodeumasociedadediferente,naqualdizerapalavrasejaumdireitofundamentalenãosimplesmenteumhábito,noqualdizerapalavrasejaodireitodetornar-separtícipedadecisãode transformar o mundo. Dessa perspectiva, ler a palavra que alguém dizpressupõe a reinvenção da sociedade atual. A reinvenção da sociedade, poroutro lado, exige a reinvenção do poder. Um projeto político que sonheapenascomatomadadopodereasubstituiçãodeumaclasseporoutranãoésuficiente.

Aquestão é o papel da subjetividadena transformaçãodahistória. Paramim, a transformação histórica, que é parte de sua pergunta, é maisimportantedoqueatomadadopoder.Nãodevemosestarpreocupadoscomo simples deslocamento do poder de um grupo para outro. É necessáriocompreenderque,aotomaropoder,éprecisotransformá-lo.Essarecriaçãoereinvençãodopoderpassanecessariamentepelareinvençãodoatoprodutivo.Eareinvençãodoatoprodutivotemlugarnamedidaemqueodiscursodopovoselegitimaemtermosdosdesejos,decisõesesonhosdaspessoas,enãomeramentedepalavrasvazias.

Odiscurso,comoatotransformador,começaaassumirumaparticipaçãoativaedecisivarelativamenteaoqueproduzireparaquem.Areinvençãodopoder que passa pela reinvenção da produção não pode ter lugar sem aamplificaçãodasvozesqueparticipamdoatoprodutivo.Emoutraspalavras,o povo, e não simplesmente uma minoria de especialistas, teria de decidirsobreoqueproduzir,combaseemnecessidadesreais,enãoemnecessidadesinventadasque,afinaldecontas,beneficiamapenasogrupodominante.

Areinvençãodaprodução,semaqualnãohaveriareinvençãodopoder,estimularia a reinvenção da cultura e, com a desta, necessariamente a dalinguagem.Porqueamaioriadopovoestá,atualmente,reduzidaaosilêncio?Porquetemdeabafarseuprópriodiscurso?Quandosãochamadosaler,porque leem apenas o discurso dominante?Os programas de alfabetização emgeral oferecem ao povo o acesso a um discurso predeterminado e

Page 64: Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra

preestabelecido, enquanto silenciam sua própria voz, a qual deve seramplificada na reinvenção da nova sociedade com a qual eu sonho. Areinvençãodopoder,quepassapelareinvençãodaprodução,trariaconsigoareinvençãodacultura,dentrodaqualsecriariamambientesparaincorporar,de maneira participativa, todos aqueles discursos que atualmente estãosufocadospelodiscursodominante.

Alegitimaçãodessesdiversosdiscursoslegitimariaapluralidadedevozesnareconstruçãodeumasociedadeverdadeiramentedemocrática.Então,nessasociedade imaginada, a compreensão do ato de ler e do ato de escreverforçosamentemudaria. A compreensão atual da alfabetização também teriaquemudar.Pordefinição,haveriaverdadeirorespeitoporaqueleseducandosque ainda não se acostumaram a dizer a palavra para lê-la. Esse respeitoimplica a compreensão e a apreciação dasmuitas contribuições que os quenãoleemdãoàsociedadeemgeral.

Vocêmedisse,Donaldo,quemuitas vezes se choca ao saberque algunspovosafricanos,porexemplo,quelutarammagnificamenteparareapropriar-se de sua cultura e expulsar os colonizadores, são depois depreciados pelasnovas lideranças, por não saberem ler a palavra. Qualquer povo que pode,corajosamente, romper os grilhões do colonialismo, pode também ler apalavra commuita facilidade, desde que a palavra lhe pertença. Seus novoslíderes erram por não reconhecer que, na luta pela libertação, esses povosestavam envolvidos num verdadeiro processo de “alfabetização”, pelo qualaprenderamalersuahistória,aqual,durantesualutapelalibertação,tambémescreveram.Esseéummodofundamentaldeescreverahistória,semescreverpalavras. É chocante que, muito embora tenham sido bem-sucedidos noaspecto mais difícil da “alfabetização”, “ler e escrever” o próprio mundo,foram menosprezados nesse aspecto muito mais fácil, que implica ler eescreverapalavra.Suaperguntaacentuaoaspectoprofundamentepolíticodaalfabetização, o queme leva a perceber que o que vocêmenciona como “alinguagemdopossível”devebasear-senorespeitoàspossibilidadesexistentes.

Outropontolevantadoporsuaperguntaéododireitoamúltiplasvozes.Tomando a América Latina como exemplo, pensemos nas chamadaspopulações indígenas. Essas populações estavam ali antes da chegada dosbrancos. Assim sendo, a população branca entrou em contato com uma

Page 65: Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra

civilizaçãotradicionalquejátinhasuaprópriavozouvozes.Essaspopulaçõestêmodireitoàsvozesqueforamsilenciadaspelainvasãohispano-portuguesa.Qualquer projeto de alfabetização para essas populações teria,necessariamente, de passar pela leitura da palavra em suas línguas nativas.Essaalfabetizaçãonãopodeexigirquealeituradapalavrasejafeitanalínguadoscolonizadores.

Seantevemosumapossível revoluçãonessas sociedades, temosqueabrirespaço para que a alfabetização do possível tenha lugar. Lembro-mevivamentedeumaconversacomFernandoCardenaleErnestoCardenal,naNicarágua,naqualambosexpressavamsentimentossemelhantesaosqueaquiexpomos. Falaram longamente sobre os índios mosquito. Ambosconsideravam que, em qualquer campanha de alfabetização, a culturamosquito devia ser plenamente respeitada. Julgavam, também, que a línguados mosquito teria que ser um elemento fundamental no processo dealfabetização.Umprogramadealfabetizaçãoquerejeitaapluralidadedevozesedediscursoséautoritário,antidemocrático.

Macedo:Vocêpodeseestendersobreasmaneirascomoassubjetividadesseconstituemnasescolas?Istoé,asmaneirascomoasescolas influenciamemoldamasideologias,aspersonalidadeseasnecessidadesdosalunos?

Freire:Emprimeiro lugar,eudiriaqueasescolas realmentenãocriamasubjetividade.Asubjetividadefuncionadentrodasescolas.Asescolaspodemreprimir,edefatoofazem,odesenvolvimentodasubjetividade,comonocasoda criatividade, por exemplo. Uma pedagogia crítica não deve reprimir acriatividadedosalunos(arepressãoàcriatividadevemsendoumaverdadenocorrerdetodaahistóriadaeducação).Acriatividadeprecisaserestimulada,não só no nível de individualidade do aluno,mas também no nível de suaindividualidade num contexto social. Em vez de sufocar esse ímpeto decuriosidade,oseducadoresdeveriamestimularoarriscar-se, semoqualnãoexistecriatividade.Emvezdereforçarasrepetiçõespuramentemecânicasdefrases e de listas de fatos ou acontecimentos, os educadores deveriamestimularosalunosaduvidar.

As escolas não deveriam jamais impor certezas absolutas aos alunos.Deveriam estimular a certeza de nunca estar certo o bastante, métodoessencialparaapedagogiacrítica.Oseducadoresdeveriamtambémestimular

Page 66: Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra

aspossibilidadesdeexpressão,acapacidadedecorrerrisco.Deveriamdesafiarosalunosadiscorrersobreomundo.Oseducadoresjamaisdeveriamnegaraimportânciadatecnologia,masnãodeveriamreduziraaprendizagemaumacompreensãotecnológicadomundo.

Podemos conceber, aqui, duas posições que são falsas. A primeira seriasimplificarounegaraimportânciadatecnologia,associartodososprocessostecnológicos a um concomitante processo desumanizador. Na verdade, atecnologia representa a criatividade humana, a expressão da necessidade dorisco.Poroutrolado,nãosedevecairnumanegaçãodohumanismo.

Omundonãoéfeitodecertezas.Mesmoquefosse,jamaissaberíamossealgoerarealmentecerto.Omundoéfeitodatensãoentreocertoeoincerto.O tipo de pedagogia crítica que eu defendo não é fácil de atingir-se numasociedade como a dos Estados Unidos, que conseguiu, historicamente, umextraordinário progresso em tecnologia e em produção de capital. Esseprogresso extraordináriodeuorigemauma sériedemitos, entreosquaisomitoda tecnologiaedaciência.Oseducadoresdevemassumirumaposiçãocientífica que não seja cientificista, uma posição tecnológica, que não sejatecnicista.

Macedo:Dequemodoessapedagogiacríticapodeestimularbasicamenteainfluênciadasubjetividadeemtermosdodesenvolvimentodacriatividade,da curiosidade e das necessidades dos alunos? Em sociedadestecnologicamente avançadas torna-semuitomais difícil evitar capitular aosmitos aque você se referiu,mitosquepodemdesencorajaropossível papeldassubjetividadesdosalunos.

Freire:Sim,masaomesmotempoessassociedadesestimulamopapeldaindividualidade, istoé,a individualidadedentrodeumquadrodereferência“individualista”.Estequadrodereferênciaindividualista,nofinaldascontas,também nega a subjetividade. Este é um fenômeno curioso, e precisamoscompreendê-lo dialeticamente. Pode parecer que uma posição que sejaprofundamente individualista acabaria por estimular e respeitar o papel daaçãohumana.Naverdade,negatodasasdimensõesdaaçãohumana.Porqueaposiçãoindividualistaacabaportrabalharcontraoverdadeiropapeldaaçãohumana?Porqueaúnicasubjetividaderealéaquelaqueenfrentasuarelaçãocontraditóriacomaobjetividade.

Page 67: Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra

Eoquedefendeaposiçãoindividualista?Eladicotomizaoindividualeosocial. Geralmente isso não se pode concretizar, uma vez que não é viávelfazê-lo.Nãoobstante,aideologiaindividualistaacabapornegarosinteressessociais,ousubmeteosinteressessociaisaosinteressesindividualistas.

A compreensão do social é sempre determinada pela compreensão doindividual.Nessesentido,aposiçãoindividualistaatuacontraacompreensãodo verdadeiro papel da ação humana. A ação humana só tem sentido eprospera quando se compreende a subjetividade em sua relação dialética,contraditóriaedinâmicacomaobjetividade,daqualelaprovém.

Isso levaaumenormeproblemaparaapedagogia crítica emsociedadestecnologicamente avançadas.Ummétodo que pode ser experimentado peloeducador crítico é o que você e eu estamos fazendo agora, empregando adiscussão como uma tentativa de nos desafiarmos, de modo a podermoscompreenderarelaçãoentresubjetividadeeobjetividadee,emúltimaanálise,podermoscompreenderoenormeeinegávelpapeldaciênciaedatecnologiae, também, podermos compreender o arriscar-se, inerente a uma vidahumanizada.Essetipodediscursoéummétodoqueoeducadorcríticopodeutilizarparadesmistificar todaumarededemitologia:omitodequenãosedeveperdertempo,porexemplo.Quesignificaperdertempo?Deve-seevitarperder tempo apenas para ganhar dinheiro? Ou significa que não se deveperdertempoganhandodinheiro?Queéperdertempoequeéganhartempo?Finalmente,otrabalhodeumeducadordeumaperspectivacríticaeradicaléotrabalhodedesvendarasdimensõesprofundasdarealidadequeseocultamsobessesmitos.

Macedo:Frequentementevocêmencionaopapelde sujeitoquedeve serassumido pelos alunos. Essa sua preocupação leva-nos àmaneira pela qualGirouxtratadoquechamade“açãohumana”.Oquevocêpensasobreopapelda ação humana na sociedade dominante com respeito à relação complexaentrecampanhasdealfabetizaçãoemparticulareeducandoemgeral?

Freire:Esseéumdostemascentraisdeumapedagogiaradical.Éumtemaque tem acompanhado a história do pensamento e dividido as diversasposiçõesconformeas respostasoferecidas.Paramim,esse temaémaisumaprofundaquestãoparaofinaldoséculo.

Page 68: Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra

SuaperguntamefazlembrardeumaafirmaçãodeMarx.Aomencionaraconstrução da história, ele diz que o homem faz a história com base nascondições concretas que encontra. Evidentemente, não é de um sonholegítimo que se deve libertar uma classe dominada, por exemplo. E dascondições concretas ou,mais precisamente, da relação entre o concreto e opossível.

Uma geração herda condições concretas numa dada sociedade. A partirdessa situaçãoconcreta,histórica, équeumageraçãoconsiderapossíveldarsequência à continuidade da história. Contudo, a geração atual tem quetrabalhareaperfeiçoarparaa transformaçãodasatuais condições concretas,porque, sem esse esforço, é impossível construir ofuturo. Se as condiçõesatuaissãofundamentais,opresentenãocontémemsiofuturo.

Poressarazão,opresenteésempreummomentodepossibilidade(comodiztãovigorosamenteGirouxemsuaintroduçãoaThePoliticsofEducation).CreioqueGirouxcompreendeperfeitamenteissoquandoafirmaqueforadopresenteé impossível fazerhistória. Istoé,aconstruçãodahistória temquetomaremconsideraçãoopresentequevemdeumdeterminadopassado,aslinhasbásicasdessepresentequedemarcamaconstruçãodahistória.QuandoGirouxdizqueopresenteé“possibilidade”,nãodeterminismo,estásituandoaaçãohumanadeummodoessencial,porquenarelaçãoentreasubjetividadeeaobjetividadedopresenteencontra-seoinegávelpapeldasubjetividade.

Seasubjetividade fossesempreoresultadode transformaçõeshistóricas,então, ironicamente, a objetividade se tornaria o sujeito da subjetividadetransformadora. Na medida em que Giroux diz que este presente é umpresente de possibilidade, ele está propondo a questão do papel da açãohumanaeissoéimportanteparaqualquerpedagogiacrítica,radical.

Macedo: Seguindo a exposição de Giroux sobre a expansão deoportunidadesdasesferaspúblicasparaocultivodosprincípiosdemocráticos,emquemedidavocêpensaquesepodeesperarqueáreastaiscomosindicatos,Igreja e movimentos sociais venham a desempenhar um papel compatívelcomosobjetivosdapedagogiacrítica?

Freire: Um educador que não se desenvolve, que não considera asreflexões e as exigências de Giroux, perdeu o contato com sua época. NoBrasiltenhoenfatizadoaperspectivadeGiroux,utilizandoumaterminologia

Page 69: Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra

aparentementeumpoucodiferente.Porexemplo,tenhoinsistidoemqueumaeducaçãoradical e críticadeveatentarparaoque seestápassando,hojeemdia, dentro dos diversos movimentos sociais e sindicatos. Os movimentosfemininos, os movimentos pacifistas e outros movimentos desse tipo, queexprimem resistência, geram, com suas práticas, uma pedagogia deresistência. Mostram-nos que é impossível pensar a educação reduzidaestritamenteaoambienteescolar.Nemsempresepodenegarapossibilidadedasescolas,mastemosquereconhecerque,historicamente,háépocasemqueoambienteescolarproporcionamaisoumenosoportunidades.

Eudiriaque,emvinteanosderegimemilitarnoBrasil,houvemomentosemquehaviagravesrepercussõessealguémrejeitasseaideologiadominante.Houvemomentosemqueasescolasestiveramtotalmentefechadasaqualquerformadepedagogiacrítica.Operíododosanos1970,quandoamaioriadospaíses latino-americanos (por exemplo, o Uruguai, o Chile, a Argentina)estava submetida a ditaduras militares, coincidiu com o surgimento dasteorias parisienses da reprodução, originárias da obra de Pierre Bourdieu.Essas teorias levaram inúmeros educadores latino-americanos a negar aspossibilidadesdautilizaçãodoambienteescolarparapromoverumaeducaçãoderesistência.

Nos últimos quatro anos, mais ou menos, com as mudanças sociais epolíticas na América Latina— a busca da redemocratização do Brasil, porexemplo,oualutapelalibertaçãodaNicarágua—temhavidocertasegurançaquanto ao restabelecimento do uso do espaço institucional para aexperimentaçãonodesenvolvimentodeumapedagogiacrítica.

Penso, contudo, que, mesmo hoje em dia, num momento em que autilizaçãodasescolasépossívelparacontrapor-seàintroduçãodasideologiasdominantes, é necessário reconhecer que os contextos não escolares sãoextremamenteimportantesparaaproduçãopedagógicaderesistênciapolíticaesocial.Comessehorizontedeesferasderesistência,agoraoseducadoresquebuscama transformação têmopções.Algunsescolherãoatuaremambientespúblicos fora das escolas. Outros preferirão atuar em seus camposespecializados,nasescolas.

Nãorejeitonenhumadasduasformas.Oidealseriaestabelecereavaliararelaçãoentreessasduasabordagens:aeducaçãomaistradicional,estruturada

Page 70: Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra

esistematizada,quetemlugarnasescolas,versusaabordagemmaisdinâmica,livre e contraditória (ainda que mais criativa) no interior dos movimentossociais. Uma questão que desenvolvi amplamente no livro que fiz comAntônioFaundezéadequeacompreensãodoseducadoressobreoquehojeocorrenessesmovimentossociaisenessasesferasdeaçãopúblicaéessencialpara a pedagogia crítica. As organizações políticas que não conseguiremaprender com os agentes desses movimentos populares também nãoconseguirãoalcançarressonânciahistóricaepolítica.Aprendercomeles,masaelesigualmentealgoensinar.

Concordo plenamente com a opinião de Giroux relativa ao papel dosmovimentossociaisnapromoçãodosprincípiosdemocráticos.Aapreciaçãocrítica feitaporGirouxdessesmovimentosestácentradanapercepçãodelascomo órgão de discussão. Dentro dessas esferas públicas é que, de fato, osmovimentosanti-hegemônicossegeraram.Paramim,oproblemabásicoparaoseducadoreseparaospolíticosquesonhamcomamudançaestáemcomoapreenderaluta,nosentidodegerarumanovahegemoniaqueevoluaapartirdasmanifestaçõeseexperiênciasdentrodessesmovimentos.

A tarefa de um educador crítico é aproximar-se do mundo real dessasesferaspúblicaseorganismossociais,paracolaborarcomeles.Acolaboraçãomais importantedeumeducador seria avaliar os elementos teóricosdentrodaspráticasdessesmovimentos.Oeducadorcríticodevefazersurgirateoriaimplícita nessas práticas, de modo que as pessoas possam apropriar-se dasteorias de sua própria prática. O papel do educador não é, pois, chegar aoníveldosmovimentossociaiscomteoriasaprioriparaexplicaraspráticasquealiocorrem,massimdescobriroselementosteóricosquebrotamdaprática.

Page 71: Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra

Nota45 RichardJohnson,“WhatisCulturalStudiesAnyway?”.Angistica,26,n.1e2,1983.

Page 72: Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra

2ALFABETIZAÇÃONAGUINÉ-BISSAU:UMREENCONTROMacedo:Porquevocêveioainteressar-sepeloproblemadoanalfabetismonaGuiné-Bissaue,depois,aenvolver-secomele?

Freire: Começo dizendo que, mesmo antes de interessar-me pelacampanha de alfabetização na Guiné-Bissau, já tinha um interesse muitogrande na luta pela libertação do povo africano em geral. Acompanhei deperto,comgrandecuriosidadeefelicidadeaindamaior,alutapelalibertaçãoemMoçambique,Angola,CaboVerde,SãoToméePríncipeeGuiné-Bissau,tendosempreemmenteanaturezadistintadessasváriaslutas.Asdiferençasentreessaslutaseramevidentementecondicionadaspelosdiversoscontextoshistóricos e geográficos. Assim, mesmo antes da independência da Guiné-Bissau,játinhaumapego—tantopolíticoquantoafetivo—poraquelepaíseseuheroicopovo.

Exatamenteessesvínculosculturais,políticoseafetivoscomaÁfricaéquefomentarammeu interessepelacampanhadealfabetizaçãodaGuiné-Bissau.Como nordestino, estava de certo modo culturalmente ligado à África,especialmenteàquelespaísesqueforamcolonizadosporPortugal,comofoioBrasil.

Em 1970, ou 1971, fizminha primeira viagem à África, à Tanzânia e àZâmbia.Após ter chegadonaZâmbia, enquanto esperavano aeroporto porumvoodoméstico queme levaria ao destino final, onde iria trabalhar comuma equipe educacional, chamaram-me pelo alto-falante, pedindo que medirigisseaobalcãode informações.Lámeencontreicomumcasaldenorte-americanosque representavamoMPLA(MovimentoPopulardeLibertaçãodeAngola),grupodequeparticipavaLara,figurapolíticaimportante,nãosóemAngola,comoemtodaaÁfrica.

Os norte-americanos traziam uma proposta dos líderes do MPLA, eindagavamseeunãopodiaalterarmeuvoodemodoapoderpassarumdia

Page 73: Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra

num encontro com alguns representantes do MPLA, que estavam muitointeressados em falar comigo. Aceitei imediatamente. Aguardava comansiedadeencontrar-mecomumgrupocujo trabalhopela libertaçãode seupovosempreadmiraraeacompanharadeperto.Fomosparaacasadosnorte-americanos,ondenosesperavamLaraemaiscincomilitantesdoMPLA.

Lara cumprimentou-me dizendo: “Camarada Paulo Freire, se vocêconhecessemeupaístantoquantoconheçosuaobra,vocêconheceriaAngolaextremamentebem!”Conversamosamaiorpartedatardesobreaguerraemandamento (àquela altura, a luta pela libertação na Angola sofria algunsreveses)e,maisimportantedoqueisso,discutimoslongamentesobreopapeldo trabalho de alfabetização na luta pela libertação. Discutimos, também,sobreasdificuldadesdealfabetizaçãoemMoçambiqueenaGuiné-Bissau.

(A propósito, oConselhoMundial de Igrejas, onde eu trabalhava, haviadado forteapoioamuitosmovimentosafricanosde libertaçãomesmoantesde minha participação. Não fui eu quem deu início ao envolvimento doConselhoMundialcomessesmovimentos.Oquefizfoiprocurarfortalecerasrelaçõesjáexistentes.)

Além das preocupações políticas e militares do momento, Lara e euanalisamosanaturezadonovoprocessoeducativoqueocorriadurantealuta,particularmentenasáreasqueiamsendolibertadas.Discutimosalutamesmacomoumapráticapedagógica.Ànoite,apósojantar,osmembrosdoMPLAmostraram-me filmes documentários sobre a luta de libertação e sobre aexperiênciapedagógicaocorridadurantealuta.Esseencontrocomlíderesdalibertaçãoafricanaantecedeumeuenvolvimento,eodaequipedeeducadorescom que trabalhava, na Guiné-Bissau. Sob certos aspectos, serviu-me depreparação para o que, posteriormente, viria a ser nossa contribuiçãoeducacionaltantoàGuiné-BissauquantoaAngola.

Depois de Zâmbia, fui para a Tanzânia. Testemunhei ali muitas dasmesmas coisas que já vira em Zâmbia. Na Universidade da Tanzânia, fuiabordado por um tanzaniano profundamente envolvido com a Frelimo(FrentedeLibertaçãodeMoçambique).Perguntou-meseaceitariaumconviteparaencontrar-mecomrepresentantesdaFrelimoemDar-es-Salaam.Aceitei.Entreospresentes,encontrava-seaviúvadeMondlame,olíderassassinadodaFrelimo.O entãoMinistro da Educação deMoçambique também estava lá.

Page 74: Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra

Como com o pessoal do MPLA, em Zâmbia, mantivemos conversas sobreeducação,seupapeleprocessosdurantealibertação.Depois,fuiconvidadoavisitarocampodetreinamentoqueopresidentedaTanzâniahaviainstaladoparaoscombatentesdaFrelimo.Dava-seformaçãointensivaaprofessoresdealfabetização que, depois, iriamparaMoçambique trabalhar nas campanhasde alfabetização que se realizavam ao mesmo tempo que a guerra delibertação. Importante destaque dessa formação era a ênfase sobre a nãodicotomização entre as lutas pela liberdade e a alfabetização.No campo detreinamento encontrei educadores, entre os quais muitos europeuscomprometidoscomalutadelibertação,queestavamláparaajudar.

Fiquei felizdeverqueo importanteparaos jovenseuropeuse africanoseraaforçaideológicaqueenformavaalutapararestauraroautorrespeitoeadignidade, que haviam sido usurpados por uma máquina colonial cruel ecorrompida. Ficou claro paramimque aqueles jovens europeus estavam aolado dasmassas populares deMoçambique, que lutavampor sua liberdade.Duranteaquelareuniãodiscutimosastécnicaseosmétodosdealfabetizaçãoqueestavamempregando.

A seguir, em janeiro de 1975, quando estava em Genebra, recebi umalongacartadeJoséMariaNunesPereira,professorbrasileirodaUniversidadeCatólica do Rio de Janeiro, na época trabalhando como coordenador doCentrodeEstudosAfricanos eAsiáticosnaUniversidadeCândidoMendes,também do Rio de Janeiro. O professor Pereira escreveu que, comocoordenador de Estudos Africanos e Asiáticos, voltara recentemente daGuiné-Bissau, ondemantivera longa reunião com oMinistro da Educação,Mário Cabral, e com o presidente da Guiné-Bissau, Luís Cabral, irmão deAmílcar Cabral, o fundador do PAIGC (Partido Africano para aIndependênciadaGuiné e doCaboVerde).Na carta, Pereira enfatizouquetantoopresidentequantooMinistrodaEducaçãohaviaminsistidocomeleparaquemeperguntasseseaceitariaumconviteparacoordenarumaequipedeeducadoresnacampanhadealfabetizaçãodaGuiné-Bissau.Essacampanhaestaria centrada na alfabetização de adultos, mas incluiria também outrasáreas da educação. Se eu estivesse interessado, deveria fazer contato comMárioCabral.

Page 75: Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra

Após receber a carta de Pereira, organizei uma reunião emminha casacomoutrosmembrosdo IDAC (InstitutodeAçãoCultural) paradiscutir acarta e a possibilidade de estabelecer um programa de colaboração com aGuiné-Bissau.TodososcompanheirosdoIDACmostraramgrandeinteresseem ajudar o programadaGuiné-Bissau.Nodia seguinte, discuti tambémoconvite comoConselhoMundial de Igrejas.Minha intenção era traçar umplano, segundo o qual o Conselho Mundial e o IDAC trabalhariam emconjunto,estudandoeplanejandomaneirasdemelhorcolaborareenfrentaros desafios de erradicar o analfabetismo na Guiné-Bissau. Tanto o IDACquantooConselhoMundial aceitaramminhaproposta e, ainda em janeiro,escreviaMárioCabral.Nasprimeiras linhasdeminhacarta,mencioneiquereceberaumaoutradealguémquehaviaestadonaGuiné-Bissau.PorquenãomencioneionomedoprofessorPereiranaquelacarta?Naquelaépoca,oBrasiltinhainstaladaumamáquinapolíticaextremamenterepressiva.Meupróprioexílioensinou-measerprudentequantoacitarnomesporque,sobaditadurabrasileira,poderiapôremperigoaposiçãoouatémesmoavidadaspessoas.

Em continuação, escrevi: “A pessoa que me escreveu do Brasil discutiucomosenhorecomopresidenteapossibilidadedeorganizarumaequipedeeducadores com a qual colaboraria para o programa de alfabetização deadultosasedesenvolvernaGuiné-Bissau.Sugeriu-mequelheescrevesseparainiciarosentendimentossobrecomocomeçar.”

Emabrilde1975,doismesesemeiodepoisdeescreveraMárioCabral,elemerespondeu.Emabril,escrevi-lheumasegundacarta,quecomeçaassim:

“Caro camaradaMárioCabral: acabo de receber sua carta, na qual vocêconfirmao interesse do governo emnossa colaboração.Achodesnecessárioestender-me a respeito de nossa satisfação ao receber essa confirmação,satisfação essa não só por parte dosmembros do IDAC como também doConselhoMundialdeIgrejas.”

Nessa segunda carta, propus algumas linhas de ação, entre as quais apossibilidadedesemandaralguémaGenebraparainiciardiscussõessobreasituaçãoeducacionalgeraldaGuiné-Bissau.PropuséramosqueMárioCabralfosseaGenebra.Agoramedoucontadequeeleprovavelmenteestariamuitoocupadoparaaceitarnossoconvite.

Page 76: Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra

Macedo: Você e sua equipe de educadores sustentaram, vocês mesmos,suasatividadeseducativasnaGuiné-Bissau?

Freire: Ao responder a essa pergunta, posso desmentir certas críticasmesquinhasquealgumaspessoastêmalimentadocontramim.TêmditoqueoferecidoaçõesenormesàGuiné-Bissaueassimcompreiminhaentradanopaís.Emoutraspalavras,aGuiné-Bissaunãoestavarealmenteinteressadaemnossacolaboraçãocomacampanhadealfabetização,masnãopodiarecusarodinheiro. Esse tipo de crítica ofende não só aqueles de nós que queríamosverdadeiramente contribuir para a reconstrução do sistema educacional,como também aqueles camaradas que lutaram heroicamente nas selvas daGuiné-Bissau para derrotar os colonialistas. Seria pouco provável quetivessemlutadodurantedozeanospara,nofim,venderemtãofacilmenteseusinteressesdiantedeumapequenaofertadeajudafinanceiraquepudéssemosterfeito.Masdeixemosdeladoessetipodecríticaetentemosresponderasuapergunta.

Como já disse, o ConselhoMundial de Igrejas desempenhou um papelimportante nos movimentos de libertação na África. O Conselho Mundialnuncadeixoudedarassistênciaàquelesmovimentosdelibertação,mesmoemmomentos difíceis no correr de suas lutas. Também tomou medidas nosentido de que as contribuições que oferecera durante a luta continuassemduranteareconstruçãodasnovassociedades,apóssetornaremindependentesdas potências coloniais. Certamente não foi inapropriado que o ConselhoMundial levantasse cerca de 500 mil dólares para ajudar a campanha dealfabetização na Nicarágua, por exemplo. Fiz parte de uma equipe deeducadoresqueparticipoudessacampanhanaNicarágua.

MasoConselhoMundial não limitou sua ajuda àNicarágua e àGuiné-Bissau.TambémofereceuenormequantiadeajudaaAngola,aMoçambiqueea outros países. Assim, quando o departamento em que eu trabalhava noConselhoMundial teve aoportunidadede contribuir comaGuiné-Bissau eassumiu um compromisso de proporcionar assistência técnica, aceitou,também,ocompromissofinanceirodissodecorrente.Ouseja,mesmotendopoucodinheiro,odepartamentopagoumeusaláriotodavezquefuiàGuiné-Bissau, como se eu estivesse em Genebra. O mesmo procedimento foiaplicado a minhas viagens a Angola, a São Tomé e a Cabo Verde. Mas o

Page 77: Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra

CCPD,umsetordoConselhoMundialquetratavadeprogramaseducativosede desenvolvimento, tinha os recursos financeiros necessários para apoiardeterminadosprojetoseprogramaseducativosnoTerceiroMundo.OCCPDestava interessado no projeto na Guiné-Bissau, e o IDAC apresentou umapropostabuscandooapoiofinanceirodoCCPD.

QuandofuipelaprimeiravezàGuiné-Bissau,minhasdespesasdeviagemforampagaspeloSetordeEducação.Orestodaequipequemeacompanhoufoi financiado pelo CCPD, ambos do Conselho Mundial de Igrejas. ApósreceberacartadePereira,escreviaMárioCabralnaGuiné-Bissau,dizendo-lhequeaceitariaseuconviteparareunirumaequipedeeducadoresafimdetrabalhar lá em alfabetização de adultos, mas que o governo não teria quepagar as despesas de viagem, salários e outros custos do grupo. Dadas ascondições econômicas da recém-independente Guiné-Bissau, sabíamos queissoteriasidoimpossível.Concordandoemoferecerassistênciatécnicaparaacampanha de alfabetização, queríamos tentar, o quanto possível, nãosobrecarregar financeiramente um país já com dificuldades econômicas.Assim, foi estabelecido que a equipe do IDAC que iria à Guiné-Bissaucontinuariaaserfinanciadaporoutrasorganizações.

O IDAC recebeu uma pequena doação para cobrir as despesas de umaviagem exploratória à Guiné-Bissau. Quando voltamos, falei bastante arespeitodotrabalhoqueláhavíamosdesenvolvido.AintroduçãoàsCartasàGuiné-Bissau é um relato metodológico de nosso trabalho durante essaviagem. Como você vê, os objetivos do programa de alfabetização foramestabelecidos naGuiné-Bissau, não emGenebra, e foram desenvolvidos emgrande parte por guineenses. Após delineado o programa, obtivemos maisapoiofinanceiro,demodoquepudéssemoscontinuarevitandosobrecarregaro governo da Guiné-Bissau. (A propósito, tive a mesma espécie de ajudafinanceiraquandofuiàNicarágua.Ogovernonicaraguensenãopagouminhaviagem.AmesmaespéciedeajustefoifeitaparaminhasviagensaAngolaeaSãoToméePríncipe.)

Macedo: Você mencionou que o projeto de alfabetização com quecolaborou, juntamente com outros membros do IDAC, dando assistênciatécnica, foi inteiramente desenvolvido na Guiné-Bissau e não em Genebra.Contudo,você temsidocriticadopor tentar implementarumplanoqueera

Page 78: Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra

idealistaepopulista,equeignoravaimportantesfatorespolíticos,econômicos,culturaiselinguísticosqueconformavamarealidadedaGuiné-Bissau.Vocêesua equipe do IDAC discutiram e avaliaram completamente a realidade dasociedadedaGuiné-Bissauantesdeexecutarseuplano?

Freire:Consideroessacríticacientificamenteinconsistente.Dequemodopoderíamos, a equipe do IDAC e eu, ter desenvolvido um projeto dealfabetização populista na Guiné-Bissau? Qual o significado de um estilopolíticoqueéchamadode“populista”?Osanalistaspolíticosdizemqueumestilo populista exige, necessariamente, o surgimento das massas popularesquecomeçamaquerer,quandomenos,terumaposiçãodiferentenahistóriasocial e política de sua sociedade. É como se, subitamente, os oprimidoscomeçassem a descobrir a possibilidade de se afastarem do estado desatisfaçãoemqueseencontram;começamaperceberapossibilidadedecorrerriscosdiferentes.Simbolicamente,podia-sedizerque,antes,emsuaimersão,osriscosestavampreponderantementeestagnados.Antes,haviariscosquesóenvolviam a sobrevivência em face da exploração. De certo modo, o papelsubalterno dos oprimidos era percebido como resultado de dificuldadesclimáticas (por exemplo: não há chuva; por isso, não temos trabalho nemcoisaalgumapara comer) enãocomoumaexploraçãocalculadapela classedominante. Durante a emergência dos oprimidos, eles começam a assumirriscos: o risco de dizer a palavra; os riscos sociais, históricos e políticosimplicadosnoprotesto.Nãohárazõesclarasparaissoqueemerge;talvezsejadevido a mudanças nas forças produtivas da sociedade, ou devido a umasituaçãoexacerbadapelosmembroslocaisdaclassedominante.

Essaspessoasemergemassumindoriscosnovosediferentes—oriscodeser preso na rua, de ir para a cadeia. Mas há também o contrarrisco: apossibilidade de ser ouvido. Isso provoca uma reação mediante um estilopolítico muitas vezes chamado de populismo. Assim, pode-se dizer que oestilopopulistadepolítica émaisuma respostadoqueumacausa.Nãoéoestilo populista que faz comque o povo oprimido se levante. É o fato de opovoselevantarquefazcomqueospolíticosmudemsuatáticaparamanter-senopoder.

Oqueaconteceentão?Essenovoestiloéchamadodepopulismo.Quandoos oprimidos se levantam e as classes dominantes precisam defender-se

Page 79: Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra

(reagirdefensivamenteaolevantamentodopovo,masconservandoopoder),aliderançachamadapopulistaassumeumaambiguidadequesemanifestanarelaçãoentreasmassasqueselevantameasclassesdominantes.Porumlado,paracontinuaraserpopulista,aliderançaprecisadoapoiodopovonasruas.Poroutrolado,precisaestabelecerlimitesquantoàaçãodessepovo,demodoquenãohaja rupturano estilo burguêsdepolítica e da sociedade emgeral.Esseslimitesdestinam-seaevitaratransformaçãodasociedade,demodoqueos oprimidos não se transformem em revolucionários. Assim, as classesdominantes criam obstáculos para evitar que as classes subalternastranscendamaprópriaclasseeadquiramconsciênciadeclasse.

Qual a natureza dessa ambiguidade? Ao restringir a presençareivindicativadopovo,pelaqualopovovai às ruas eprotestanaspraças, aliderançapopulistanãopodeimpedirqueopovoaprendacomousarasruaseos parques paramanifestar suas reivindicações. A liderança populista poderestringir sua reação às reivindicações do povo. Mas se proíbe o povo dereunir-se nas ruas, a liderança deixa de ser populista e se torna um regimefrancamente repressivo. Na medida em que restringe sua reação apenas adeterminadas reivindicações do povo (por exemplo, permitindomanifestaçõesapenas emáreaspredeterminadas), elapermitea continuaçãodasmanifestaçõespúblicas,quelevarãoinevitavelmenteaumprocessoaindamaior de descoberta pelo qual os oprimidos aprendem a como fazerreivindicações. O povo acaba por desenvolver-se e assumir as própriasreivindicações.Assim,opopulismoquemanipulasecontradiz,estimulandoademocracia.

Há um ponto em que a liderança política semantém oscilando entre amanipulaçãoeaexperiênciademocrática.Háumponto, também,emquealiderançapode inclinar-semaisparao ladodopovo.Umadimensãode suaambiguidade é o fato de que essa liderança dá um passo para a esquerda eoutroparaadireita,comumpénoladodasmassasoprimidaseooutronodaburguesia.Quandoessa liderançacomeçaa firmarambosospés,ouadaraimpressão de que pode fazê-lo, sobre o lado dasmassas, há dois caminhospossíveis. A sociedade pode entrar numa fase pré-revolucionária, com achamadaliderançapopulista,renunciandoaoestilopopulistaeassumindo-secomorevolucionária.Adireitaintervémcomumgolpeeinstauraumregimemilitarrígido.

Page 80: Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra

QueaspectospopulistasexistememnossaspropostasàGuiné-Bissauparaa reforma da educação em geral e para a alfabetização de adultos emparticular? Estávamos em contato com uma liderança política que haviapassado anos em luta contra os colonialistas portugueses nas selvas, semqualquertraçodepopulismo.

Qual a dimensão populista das cartas que escrevi aos educadores daGuiné-Bissau?Naterceiraenaquartacartas,porexemplo,ondeexaminoosaspectosmuitosériosde lidarcomosignificadodeumaeducaçãosocialista,revolucionária, ou onde discuto a relação entre educação e produção e oproblema da autonomia da classe operária, onde está o caráter populistanesses documentos publicados? Devo ser assim caracterizado por ter dadoumacontribuiçãoameupaíssobumregimepopulista?46

NoBrasil de hoje, por exemplo, começamos umanova fase histórica navida política. Muito embora eu pertença a um partido político que nãoparticipou do desenvolvimento desse novo governo, espero sinceramente,comobrasileiro, que esses avanços democráticos prossigam e que o sistemasofra as necessárias transformações em benefício da classe trabalhadora.Ninguémdirá,porém,queogovernodoBrasiléumregimerevolucionário.Muitos dos educadores que me criticam como populista estão atualmentedandosuacolaboraçãoaogovernobrasileiro.Seriainteressante,dentrodedezouvinteanos, ver seos estudantes elaborando suas teses,por exemplo, irãoconsiderar esses educadores populistas, já que estão colaborando com umgovernoqueestálongedeserrevolucionário.

Nãoseénecessariamentepopulistapordardeterminadacolaboraçãoaumregimeconsideradopopulista.Contudo,oquejulgoaindamaisestranhoéaafirmação de que as propostas que fiz à Guiné-Bissau, em conjunto com aequipe do IDAC, fossem populistas. Seria igualmente ridículo caracterizarcomopopulistasminhasdiscussõescomoseducadoresdeAngola.Hápessoasque chegam a afirmar que nada mais fiz do que transplantar minhaexperiênciabrasileiraparaaGuiné-Bissau.Issoéabsolutamentefalso.

Também fui acusado de ser indiferente a diversos grupos étnicos naGuiné-Bissau. Isso também é ridículo. Por que iria eu rejeitar a ideia deaprendermais?Examinandoeestudandoadiversidadeculturale linguísticadaGuiné-Bissau,fiqueiemmelhorposiçãoparacompreenderasnecessidades

Page 81: Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra

educacionais do país. O que eu não podia fazer na Guiné-Bissau eraultrapassaraslimitaçõespolíticasdomomento.Comoestrangeiro,nãopodiaimpor minhas propostas sobre a realidade da Guiné-Bissau e sobre asnecessidadescomoos líderespolíticosaspercebiam.Porexemplo,aquestãolinguística foi um dos limites que não consegui ultrapassar, embora tenhadiscutido longa e enfaticamente comos educadoresminhas preocupações arespeito de levar avante uma campanha de alfabetização na língua doscolonialistas. Contudo, a liderança considerava politicamente vantajosoadotar a língua portuguesa como veículo principal da campanha dealfabetização.

Macedo:ComoadmiradordeAmílcarCabral,vocênãopodiadesconhecersua análise detalhada do caráter cultural e linguístico da Guiné-Bissau. Opróprio Cabral demonstrou grande preocupação a respeito das prováveisdificuldades como processo de unificação nacional durante o período pós-independência,dadaaexistênciadetantosgruposétnicosdistintos.

Freire: Exatamente. Amílcar Cabral foi um pensador que pôs seupensamentoemprática.Foiumpensadorquelierelimuitasvezesedequemsempreobtivenovasperspectivas.

Umdemeussonhos,nãorealizado,erafazerumestudocompletodaobrade Amílcar Cabral. Tinha até o título para o livro que pretendia escrever:Amílcar Cabral, o pedagogo da revolução. Nesse livro, traçaria uma claradistinção entre “pedagogo revolucionário” e “pedagogo da revolução”.Existemalgunspedagogosrevolucionários;masnãohámuitospedagogosdarevolução.Amílcaréumdeles.

Paraconcretizaressesonho,porém,teriadepermanecerpelomenosseisouoitomesesnaGuiné-Bissaue, também, ir aoutrospaíses africanos.Nãotivenemosrecursosnemotemponecessáriosparacumpriressatarefa.Nãopoderia pedir ao governodaGuiné-Bissau que financiassemeuprojeto, emvista das enormesdificuldades financeiras enfrentadas por aquele país novocomareconstruçãodesuasociedadeapósaindependência.TambémreluteiempediraoConselhoMundialdeIgrejasofinanciamentodoprojeto.

Desenvolvialgunstrabalhospreliminares,comoarealizaçãodeentrevistascom líderes políticos importantes que trabalharam em estreita ligação comCabral. Entrevistei a liderança do PAIGC na Guiné-Bissau, por exemplo.

Page 82: Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra

Numa entrevista com o diretor político da época, disse que o projeto nãopodiaserrealizadoporumintelectualqueseconsiderasseobjetivoelivreparadizeroquepretendesse.MinhaideianãoerairparaaGuiné-Bissaurealizarapesquisae,depois,escreverumlivroemquedissesseoquequeriadizersobarubrica da suposta “autonomia acadêmica” ou “objetividade científica”. Souum intelectual militante. Nessa condição, queria fazer um estudo sério erigorososobreCabralcomoumpedagogodarevolução.

Mas primeiro teria de ter conseguido saber como o partido, que forafundado por Cabral e que lutara corajosamente para expulsar oscolonizadores,encaravameuplano.Haviacondiçõesqueeuqueriafixar.Seoprojetohouvesseprosperado, antesdepublicaro livro eu teria submetidoomanuscritoà revisãodopartido.Nãoo teriapublicado semaaprovaçãodopartido.

Talvezaliderançareagisseaminhascondiçõesindagandoporqueeueraum intelectual tão obediente. Eu lhes teria dito que não sou um intelectual“obediente”.Porexemplo,seoPAIGCmedissessequealgumasdascoisasqueeuafirmavanãoeramdointeressedareformapolítica,provavelmenteeuteriabrigado com o partido para defender minha posição. Mas também teriacompreendido as razões que levavam o partido a concluir que minhasafirmaçõessolapavamsuasmetas.

Apenas após esse processo teria eu submetido os originais à publicação.Todososdireitos autorais seriamdestinados a causaspolíticasque fizessemprogredirmaisajustiçahumanitáriaesocial,quelevassemtantoàcriaçãodopartido,emprimeirolugar,eàsubsequenterevolução.

Infelizmente, não tive condições de completar esse estudo. Realizeiaproximadamente dez entrevistas, a primeira das quais com oMinistro daEducação, Mário Cabral. Entrevistei também grupos de jovens militantesorganizados durante a luta pela libertação. Mas devido a dificuldades detempo e outros fatores, decidi não dar prosseguimento ao projeto. Minhaideia era realizar trezentas entrevistas. Apenas o trabalho envolvido nessasentrevistas,a transcriçãodas fitas,a seleçãoeediçãodas transcrições teriamlevado anos para se completar. Poderia fazer a transcrição e a edição naEuropa,masasentrevistasteriamqueserfeitasnaÁfrica,principalmentenaGuiné-Bissau.

Page 83: Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra

Aolhefalarsobreesseprojetointerrompido,vê-semaisnitidamentecomome comportei com respeito aos princípios da revolução. Respeitei aautonomiaculturalepolíticadopovodaGuiné-Bissau.Aceitocomoumfatoquando dizem que sou incompetente em muitas áreas. Contudo, jamaisprocurei obter êxito pormeio da crítica à incompetência deoutras pessoas.Isto é, se criticasse certas pessoas, essa crítica poderia dar-me visibilidade eprestígiointelectual.

Naverdade,nãomeincomodocomprestígio.Minhamaiorpreocupaçãoétrabalhar honesta e seriamente na direção do desenvolvimento de umasociedademelhoremaisjusta,comofiznaGuiné-Bissau.SeaspessoasleremCartas à Guiné-Bissau perceberãomeu compromisso com a transformaçãoeducacionaldaquelepaís.

Nolivroemque“falei”commeuamigochileno,fizaseguinteobservação.NoBrasil,duranteosanos1950,defendiaposiçãodequeoseducandos,nãoimportadequenível,deveriampermitir-seaexperiênciadetornar-sesujeitosdoatodeconhecer, implicadonaeducação.Agora,pergunto,comopoderiater agido diferentemente na Guiné-Bissau? Ademais, no contextorevolucionário,devoinsistirqueoseducandossetornemsujeitos,sujeitosdareinvençãodeseupaís.

Ondeopopulismodestepobreeducadorbrasileiro,educadorque,duranteseusencontroscomeducadoresguineenses,sempreinsistiuqueopovodeveandar em frente e assumir a história de seu país? Alguma vez você ouviualguma conversa populista a respeito dos direitos dos educandos de setornarem sujeitos e assumirem a própria história? Pergunte a FernandoCardenaleaErnestoCardenalsemeutrabalhoesugestõesparaaNicaráguaforam de natureza populista. Essas críticas revelam quão superficialmentemeus críticos têm abordadomeus trabalhos. Seu ferrete ideológico impedeque compreendam ou queiram compreender as propostas pedagógicas quetenhofeito.

Macedo: Como enfrentaria você o processo de emancipação pelaalfabetização numa sociedade caracterizada por dificuldades radicadas napresençademúltiplosdiscursos?Esseproblema torna-se infinitamentemaiscomplexoquandoasociedadesecaracterizapelaexistênciademuitaslínguasrivais,comonaGuiné-Bissau.

Page 84: Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra

Freire:Temosdetratar,emprimeirolugar,darelaçãoentrealfabetizaçãoeemancipação.Oconceitodealfabetização,nestecaso,devesertomadocomotranscendendo seu conteúdo etimológico. A alfabetização não pode serreduzida a experiências apenas um pouco criativas, que tratam dosfundamentosdasletrasedaspalavrascomoumaesferapuramentemecânica.

Aoresponderàsuapergunta,tentareiiralémdessacompreensãorígidadealfabetização e começar a entender alfabetização como a relação entre oseducandos e omundo,mediada pela prática transformadora dessemundo,que ocorre exatamente no meio social mais geral em que os educandostransitam, e mediada, também, pelo discurso oral que diz respeito a essapráticatransformadora.Essemododecompreenderaalfabetizaçãoleva-meàideiadeumaalfabetizaçãoabrangentequeénecessariamentepolítica.

Mesmonessesentidoglobal,aalfabetizaçãojamaisdevesercompreendidacomo sendo, por si só, a deflagradora da emancipação social das classessubalternas.Aalfabetizaçãoconduzaumasériedemecanismosdeflagradores,dos quais participa, os quais devem ser ativados para a transformaçãoindispensáveldeumasociedadecujarealidadeinjustadestróiamaiorpartedopovo. Neste sentido global, a alfabetização ocorre em sociedades onde asclassesoprimidasassumemaprópriahistória.OcasomaisrecentedessetipodealfabetizaçãoéodaNicarágua.

É interessante notar que a natureza desse processo é diferente do daemancipação.NocasodaNicarágua,aalfabetizaçãocomeçouaocorrerassimque o povo tomou sua história nas próprias mãos. Tomar a história naspróprias mãos antecede o começo do estudo do alfabeto. O processo dealfabetização émuitomais fácil do que o processo de tomar a história nasprópriasmãos,umavezqueissotrazconsigonecessariamenteo“reescrever”aprópriasociedade.NaNicarágua,opovoreescreveuasociedadeantesdelerapalavra.

Alémdisso,éinteressanteobservarque,nahistóriacultural,oserhumanoou,maisprecisamente,oanimalquesetornouhumanoeoserhumanoqueresultoudessa transformaçãoanterior, emprimeiro lugarmudaomundoe,muito mais tarde, se torna capaz de falar a respeito do mundo quetransformou.Muitomais tempo ainda se passa até que tenha condições deescreverarespeitodafalaoriginadadessatransformação.Aalfabetizaçãodeve

Page 85: Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra

ser entendida nesse sentido global. Uma vez que a leitura da palavra éprecedida da reescrita da sociedade, em sociedades que passam por umprocesso revolucionário é muito mais fácil executar campanhas dealfabetizaçãobem-sucedidas.

Toda essa discussão, porém, é muito mais geral, mais política e maishistóricadoqueopróprioprocessodealfabetização.Nãosepodeesqueceradimensãoespecíficadocódigolinguístico.NocasodaNicarágua,aúnicaáreaproblemática do código linguístico (com suas implicações necessariamenteideológicas, sociais epolíticas) é a situaçãodos índiosmosquito.Quanto aorestante, o grande problema relativo à língua espanhola são os múltiplosdiscursos de que você falou há pouco. A meu ver, esses discursos estãovinculados às diferenças entre as diversas classes sociais e só podemoscompreendê-losàluzdeanálisesdeclasse.

O grande problema que as campanhas de alfabetização enfrentam comrespeito aos múltiplos discursos é lidar com o processo de reescrita dasociedade.Emprincípio,essareescritarompeaordemhierárquicarígidadasclasses sociais e, com isso, transforma as estruturasmateriais da sociedade.Quero voltar a salientar um ponto: jamais devemos tomar a alfabetizaçãocomoadeflagradoradatransformaçãosocial.Aalfabetização,comoconceitoglobal,éapenaspartedomecanismodeflagradordatransformação.Háumadiferença qualitativa entre uma cruzada política e a experiência daalfabetização,atémesmonoBrasildehoje.Recordo-meque,naconferênciamundial de Persépolis, organizada pela Unesco, em 1975 — entre cujosparticipantes se encontravamaUniãoSoviética,osEstadosUnidos,Cuba, aCoreiadoNorte,Vietnã,Peru,BrasileinúmerospaísesdaEuropa—,umdostemas centrais foi a avaliação das campanhas de alfabetização por todo omundo.“ACartadePersépolis”,publicadapelaUnesco,afirma,entreoutrascoisas, que o relativo êxito das campanhas de alfabetização avaliadas pelaUnesco dependeu da relação que as campanhas tiveram com astransformaçõesrevolucionáriasdassociedadesemqueforamrealizadas.

Isso demonstra o papel extraordinário desempenhado pela leitura domundo e da realidade na reinvenção geral da educação e da sociedaderevolucionária. Mostra, também, que, mesmo em sociedades com grandeslimitaçõesdevidasasuaposturareacionária,porexemplo,emboraseesperem

Page 86: Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra

resultados de menor êxito, ainda assim uma campanha de alfabetizaçãopoderia ser bem-sucedida e ajudar outros fatores básicos a deflagrar atransformaçãodessasociedade.Contudo,éimpossíveledesaconselhávelqueseesqueçadaquestãolinguística.

FalemosagoradosgrandesproblemasquetivemosdeenfrentarnaGuiné-Bissau.

Macedo: Acho que você poderia começar discorrendo sobre os desafioslinguísticoscomquesedefrontounaGuiné-Bissau.

Freire: A Guiné-Bissau atendia à primeira condição básica que tornapossível o êxito de uma campanha de alfabetização: a transformaçãorevolucionária da sociedade. Completara uma prolongada e bela luta pelalibertação,soba liderança incontestadadoextraordináriopedagogoAmílcarCabral. (Nas Cartas à Guiné-Bissau, refiro-me muitas vezes ao aspectopedagógicodaliderançadeCabral,aossemináriosqueelerealizavadurantealuta,nãosóparaavaliarosêxitosmilitares,mastambémalutacultural.)

Emsuma,aGuiné-Bissautinhaoscontextospolítico,socialehistórico,asaber,a lutaporpartedeseupovopara libertar-se.MasaGuiné-Bissaunãoatendiaàsegundacondição,devidoasuadiversidadelinguística.Opaístemaproximadamente trinta línguas e dialetos distintos, falados por diversosgruposétnicos.Alémdisso,temocrioulo,quefuncionacomolínguafranca.Ocrioulo dá uma enorme vantagem à Guiné-Bissau, ao Cabo Verde e a SãoTomésobreAngolaeMoçambique,porexemplo.

O crioulo, criação linguística que associa as línguas africanas com oportuguês, desenvolveu-se gradativamente na Guiné-Bissau. O crioulo estáparaoportuguês,comooportuguês,oespanhol,ofrancêseoitalianoestãoparao latim:éumdescendente.Ocriouloé tãobelo, ricoeviávelquantooportuguês. Nenhuma expressão linguística ou língua já nasce pronta. Porexemplo, não é preciso que os portugueses, alemães ou espanhóis seenvergonhem de empregar uma palavra como estresse, tomada deempréstimo diretamente do inglês (stress). Não conheço, em português,qualquer outra palavra possível para dizer stress. O desenvolvimento dasforçasprodutivas,datecnologiaedaciênciatambémtemmuitoavercomodesenvolvimento linguístico. Temos que aceitar centenas de palavras assim,comoporexemploknow-how.

Page 87: Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra

Vemos produtos brasileiros, fabricados no Brasil, que se declaram, eminglês, Made in Brazil. Esses fraseados padrão internacionalizam acomunicação. Não me envergonho de empregar essas palavras. Assim,deveriam os falantes de crioulo envergonhar-se por tomar de empréstimocertos termos da língua portuguesa para expressar o desenvolvimentotecnológicodesuasociedade?

Nãosepodedecretarainviabilidadedessetipodedesenvolvimento.Efoimaisoumenosissoqueeudisseàcomissãodeeducação.Comoriscodesermal interpretado pelo corpo de segurança do presidente, pus as mãos nacabeçadeLuísCabralelhedisse:“SenhorPresidente,compreendobemqueosenhortenhadoresdecabeçaquandofalaportuguêspormuitotempo.Ofatoéquesuaestruturamentalnãoéportuguesa,emboraosenhorfaleportuguêsmuito bem. Sua estrutura de pensamento, que se ocupa do modo como osenhorfalaeseexpressa,nãoéportuguesa.”

Haviaum jornalguineense,oNoPintcha, quenaquela época costumavapublicar, em toda edição, um textodeAmílcarCabral.NoPintcha teve umpapel importante na disseminação das ideias de Cabral. Por estranhacoincidência,nodiaposterioràquelaminhafala,NoPintchapublicouoúnicotexto deAmílcarCabral do qual discordo.Dizia ele nesse texto que omaisbelopresentequeosportugueseshaviamdeixadoaosguineenseseraalínguaportuguesa. (Essa afirmaçãodeCabraldeve ser interpretadano contextodalutapelalibertação.Naverdade,soube,maistarde,quehouverazõespolíticasparaa afirmaçãodeCabral.Ele estava tentandoutilizar a línguaportuguesacomo uma força unificadora, para acalmar os atritos entre os gruposlinguísticoseétnicosrivaisnaGuiné-Bissau.)LiaqueletextodeCabralcomoumamensagem dirigida diretamente a mim: “Meu camarada Paulo Freire,gostamosmuitodevocê,masnãosemetanessenegóciodelínguaemnossopaís. O próprio Amílcar Cabral disse que a língua portuguesa foi um belopresentedoscolonizadores.”

Não obstante essa mensagem, continuei a lutar, juntamente com osmembros do IDAC, pelo papel da língua portuguesa na campanha dealfabetização. Um colega do IDAC,Marcos Arruda, lutou vigorosamente arespeito da questão da língua. Finalmente foi-nos possível trazer à Guiné-Bissaudoislinguistas(um,belga,ooutro,africano,tambémfinanciadospelo

Page 88: Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra

IDAC) para discutir e avaliar o dilema linguístico da Guiné-Bissau. Eramambosdo InstitutodeLínguadeDacar.Obelga era especialista em línguascrioulas; o africano, especialista em línguas africanas.Aomesmo tempo, fizcontatocomum linguistabrasileiroqueensinavaemLione era especialistaemlínguascrioulas.(Estavatrabalhandonumdicionárioenumagramáticadocrioulo da Guiné-Bissau.) Ele nunca foi à Guiné-Bissau, mas discutimoslongamenteasquestõesdalínguanaquelepaís.

Propusemos a Mário Cabral a realização, na Guiné-Bissau, de umseminário de que participariam os cinco países africanos que se haviamlibertadodocolonialismoportuguês.Oobjetivodoseminárioseriadiscutirapolíticadeplanejamentodalínguaedaalfabetizaçãonessespaíses.Queríamosassistiraumadiscussãogeralarespeitodepolíticadecultura,dentrodaqualseencontraapolíticadelíngua.

Foi nesse seminário que fiquei absolutamente convencido de que oportuguês jamais seriauma linguagemviávelnacampanhadealfabetização.Escrevi, então, uma carta a Mário Cabral (cf. Apêndice) na qual reiterei aimpossibilidadedecontinuarafazerotrabalhodealfabetizaçãoemportuguês.Nessacarta,analiseitambémasconsequênciasdeinsistirnousodoportuguêscomo único veículo de educação. Uma consequência, por exemplo, é que,enquanto o português funcionasse como língua oficial, teria de assumirtambémopapeldaslínguasnacionais.

Porquê?Aoseesperarqueumalínguacomostatusdeoficialsetorneaforça mediadora na educação da juventude, compreende-se que se estárequerendo que essa língua assuma o papel de língua nacional. Seriainconcebível esperar que o Brasil, por exemplo, adotasse o espanhol comoúnica língua da educação, caso o país passasse por um processorevolucionárioàmodacubana,ou,emoutroexemplo,quemelhoratenderiaaos interesses da burguesia brasileira, implementasse o inglês como a únicalínguadeinstruçãoedosnegócios.

EmminhacartaaMárioCabral,dissequeousoexclusivodoportuguêsnaeducaçãoresultarianumaestranhaexperiência,caracterizadapeloportuguêscomoumasuperestruturaqueiriadeflagrarumaexacerbaçãodasdivisõesdeclasse,eissonumasociedadequesesupunhaestarrecriandoasimesmapelasupressãodasclassessociais.

Page 89: Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra

ContinuarautilizaroportuguêsnaGuiné-Bissaucomoaforçamediadoranaeducaçãodajuventudeeprosseguircomapráticadeselecionarosalunoscombaseemseuconhecimentodoportuguêsfaladoeescritoiriagarantirqueapenasos filhosda elite tivessemcondiçõesdeprogredir educacionalmente,reproduzindo,dessemodo,umaclasseelitista,dominante.OpovodaGuiné-Bissau se veria novamente barrado no sistema educacional e nos escalõeseconômicos e políticos mais elevados. Por essas razões, propus umaalternativaparaousodoportuguêscomolínguadeinstrução.

Macedo:Porquevocênão incluiuemCartasàGuiné-BissauacartaquevocêescreveuaMárioCabralem1977,emqueapresentouessaspreocupaçõesarespeitodopapeldoportuguêsnacampanhadealfabetização?

Freire:Nãoincluíessacartapormotivospolíticos,entreoutrascoisas.Eusabia que naGuiné-Bissau, bem comonoCaboVerde, a questão da línguaportuguesa na educação não só era um problema, como também não eradiscutida abertamente. Tinha conhecimento do nível elevado de ideologiarelativamenteàquestãodalíngua.Issoerafácildeentender,umavezqueoscolonizadoresportuguesespassaramséculosconvencendoopovodaGuiné-Bissaudequesuaslínguaseramhorríveisequeoportuguêseramaisculto.

Os colonizadorespassaram séculos tentando impor sua língua. Fizeram-no por decreto, dando a impressão de que as línguas nacionais eramnaturalmente inferiores, que não passavam de dialetos tribais. O crioulotambémera encarado comoum jargãomisto e corrompido e, por isso, nãopodia ser considerado uma língua natural. Esse perfil foi traçado peloscolonizadores(sóosquedetêmopoderpodemdefiniroperfildosoutros)eimposto ao povo da Guiné-Bissau; e nunca foi repudiado, nem mesmoduranteaguerradelibertação.MuitoslíderesdaGuiné-Bissauestavamaindainfluenciados por esses mitos enquanto eram assimilados e colonizadoslinguisticamente.

Uma de minhas grandes lutas nessas ex-colônias portuguesas foi a deafirmaraviabilidadedaslínguasnacionais.Recordoumdebatenorádio,quetiveemSãoTomé,noqualoMinistrodaEducaçãoafirmouquea línguadeeducaçãoemSãoTométinhaqueseroportuguêsdeCamões.Lembro-medelheterrespondidodizendoque,hoje,nemmesmoemLisboasepodeensinar

Page 90: Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra

oportuguêsdeCamões,muitomenosemSãoTomé,ondeamaioriadopovosequerfalaoucompreendeoportuguês.

Até certo ponto, respeitei as divisões entre essas ex-colônias quanto aoplanejamento da língua, porque não sou um imperialista. Jamais, porém,deixei passar uma oportunidade de fazê-los saber de minhas verdadeiraspreocupaçõesarespeitodopapeldalínguaportuguesanaeducação.

NãopubliqueiacartaqueescreviaMárioCabralporque,comodisse,sentique o momento não era propício, levando em conta assuntos políticos demaior importância. Lembro-me de que, na última conversa que tive comopresidenteLuísCabral, antesque fossedeposto,eledisse: “CamaradaPaulo,entendobemacontrovérsiaqueexisteentrenósrelativaàquestãodalíngua.”Eu disse que compreendia as reações negativas de muitos dos líderes comrelaçãoàs línguasnacionais,masqueerapreciso tercoragem.De fato,disseainda,énecessáriodizeraomundoqueaGuinénãovai fazeraseuprópriopovoaquiloquenemmesmooscolonizadoresportuguesespuderamfazer.Ouseja,quenãovaitentarerradicaraslínguasnacionaiseimporoportuguês.Éprecisotomarumaatitudeeabandonaraideiadealfabetizaremportuguês.

Nãopoderia terdito essas coisas empúbliconaquela época.Hoje,possodizê-las.

Macedo:VocêseaborrecepornãotertomadoumaposiçãopúblicasobreaquestãolinguísticanaGuiné-Bissau?

Freire:Não,porquemuitasvezeshárazõesdecaráterpolíticoqueexigemque o intelectual silencie, mesmo que esse silêncio seja algumas vezes malinterpretado.Assumiessesilêncioehojeoquebroporacreditarqueagoraéomomento de falar sobre essas questões. Com ou sem Paulo Freire, foiimpossível realizar, naGuiné-Bissau, uma campanhade alfabetizaçãonumalínguaquenãofaziapartedapráticasocialdopovo.Meumétodonãofalhou,comoseanunciou.TambémnãofalhounoCaboVerdeouemSãoTomé.EmSãoToméeCaboVerdeháumahistóriadebilinguismo.EmuitoemboraobilinguismopredominassemenosnoCaboVerdedoqueemSãoTomé,aindaerapossívelensinaralgumacoisadeportuguês,comousemminhaajuda.

Essaquestãodeveseranalisadaemtermosdeseéviável,linguisticamente,realizarcampanhasdealfabetizaçãoemportuguêsemqualquerdessespaíses.

Page 91: Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra

Meu método é secundário para essa análise. Se não é viável fazê-lo, meumétodo ou qualquer outro certamente fracassará. A carta a Mário Cabral(incluídanoApêndice)analisaaviabilidadedalínguaportuguesa,bemcomoas consequências políticas e culturais, caso continuasse uma colonizaçãolinguísticanaquelanaçãorecém-libertada.

Macedo:Umproblemade alguns avaliadores ao apreciar suaobra équeeles propõem questões tecnocráticas, ignorando as dimensões políticas,culturaiseideológicastantodesuasteoriasquantodesuaspráticas.Podeserquedeemdemasiadaimportânciaàaquisiçãomecânicadaleitura,aomesmotempoque deixemde avaliar o desenvolvimento de uma atitude crítica porpartedoseducandos,ouseja,atéquepontooseducandos,emcampanhasdealfabetização, se tornam conscientes de suas responsabilidades cívicas epolíticas.Porexemplo,emquemedidaoseducandosadquiremumaatitudeanalítica em relação à autoridade em sua vida pessoal quotidiana? Não sedevemaplicarmeiosemétodosquantitativosparamedirresultadosque,pelapróprianatureza,sãoqualitativos.Vocêpoderiacomentarmaismiudamenteesseproblemadeavaliação?

Freire:Emprimeirolugar,emqualqueravaliaçãodenossoenvolvimentoecontribuição, a questão a propor não deve ser se vinte, trinta, cem,mil oumaispessoasaprenderammecanicamenteasoletraremlínguaportuguesa.Aocontrário, essa avaliação deve considerar até que ponto nós tambémaprendemos no processo de nosso envolvimento. Por exemplo, aprende-sequão difícil é refazer uma sociedade, quer por uma revolução, ou de outromodo;nãosepoderefazer,reinventaroureconstruirumasociedademedianteumatomecânico.Areinvençãodeumasociedadeéumatopolíticoquetemlugarnahistória.É importante,pois, indagardasdificuldadesdareinvençãoda sociedade da Guiné-Bissau. É importante, também, indagar se nossoenvolvimentotevealgumasignificaçãoparaoseducadoresdaGuiné-Bissau.

Uma vez mais, naquele livro que escrevi com Faundez, em que expusalgumasdessasquestõesecríticasarespeitodemeutrabalhonaGuiné-Bissau,disse que gostaria de um dia voltar lá e encontrar a mesma abertura,camaradagemedimensõespolíticasqueantes.GostariadevoltarefalarcomMárioCabral,quemerecebeudebraçosabertos.Gostariadefalarcomtodosaqueles camaradas com quem trabalhei. Eu lhes perguntaria se, em nossos

Page 92: Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra

antigos encontros e diálogos, algumas de nossas preocupações os haviamtocado.Perguntaria,também,seaquelaspreocupaçõestiveramalgumimpactosobreareformulaçãodoprocessoeducativodaGuiné-Bissau,poiscreioqueissosejaparteimportantedeminhaavaliação.

Falandodeavaliação,insistirianovamenteemqueochamadofracassodenosso trabalho na Guiné-Bissau não se deveu ao “método Freire”. Essefracassodemonstroucomtodaaclarezaainviabilidadedousodoportuguêscomoveículoúnicode instruçãonascampanhasdealfabetização.Esteéumpontofundamental.

Aimportânciadenossoenvolvimentodevesermedidadiantedeexemploscomo o que usei em minha carta a Mário Cabral. Uma equipe guineenserealizava uma avaliação do trabalho de produção na fazenda coletiva quehaviamcriado.Umdosparticipantesdisse,emsualínguanativa(quemefoitraduzida para o português): “Antes, não sabíamos que sabíamos. Agora,sabemos que sabíamos. Por saber hoje que sabíamos, podemos saber aindamais.”

Essaéumataldescoberta,umatalafirmação,quesetornaimediatamentepolíticaeexigeumaposturapolíticaporpartedessehomemnoprocessomaisgeral de reinvenção de seu país. Essa afirmação tem a ver com uma teoriacrítica do conhecimento, resultante da inviabilidade de soletrar em línguaportuguesa. Entre outras coisas, esse homemdescobriu que antes não sabiaquesabia,masque,agora,porquesabiaessarazão,descobriuquepodesabermuito mais. Tenhome perguntado o que pode ter mais valor do que issonuma avaliação geral de uma sociedade que começa a encontrar-se lutandocontraoscolonizadores.

Uma codificação rápida e mecânica da língua portuguesa não poderia,certamente,teromesmopesoqueaconsciênciapolíticaalcançadanocorrerdenossosdebatessobreoaprendizadodoportuguês.Odomíniodoalfabetoportuguês não pode ser comparado com a compreensão política eepistemológicadapresençadessehomemnomundo comoum serhumanoque, agora, pode saber por que se transforma. Sem negar a provávelnecessidade de dominar o português ou,melhor ainda, sua própria língua,nãopossosubestimarasignificaçãodasegundaordemdeconhecimentoqueessehomemadquiriu.

Page 93: Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra

E isso é verdade exatamente porque não há experiência pedagógica quenão seja política pela própria natureza. As afirmações desse homem são degrande importância, sejam elas avaliadas deumaperspectiva pedagógica oupolítica. Esquecer ou, mais manipulativamente, omitir da avaliação esseaspecto crítico ultrapassa os limites do “ba-be-bi-bo-bu”; a meradecodificaçãodassílabasnãotemsentidoalgumparaquemteveumenormepapelnareinvençãodesuasociedade.Atarefadesafiadoradereapropriar-sedaprópriaculturaedaprópriahistórianãopodesercumpridapormeiodalíngua que negava sua realidade e procurava erradicar seu própriomeio decomunicação.

Macedo:Você achapossível realizaruma campanhade alfabetização emportuguês no Cabo Verde, onde existe certo grau de bilinguismo emportuguêsecrioulo?

Freire:Dopontodevistapolítico,nãoéaconselhávelfazê-lo,pelasmuitasrazões que já expusemos. Do ponto de vista linguístico, ao contrário daGuiné-Bissau, onde o ensino em português não é possível, seria menosviolento fazê-lo no CaboVerde, particularmente nas áreas urbanas, onde apresença colonialista acarretouumacerta exposiçãoà línguaportuguesa eodesenvolvimentocapitalistaexigiuqueaspessoasaprendessemumpoucodeportuguês. Contudo, creio que o Cabo Verde também deveria optar pelocrioulocomolínguaoficialnacional.

Macedo:Não devemos perder de vista o perigo da reprodução daquelesvalores colonialistas que eram, e ainda são, inculcados pormeio do uso dalínguaportuguesa.Creioserimpossívelreafricanizaropovoutilizandoomeioque o desafricanizou. Ainda que, linguisticamente, isso fizesse sentido (epercebo claramente que não faz), em termos políticos, qualquer decisão decontinuar usando o português como língua oficial e único veículo deinstruçãonoCaboVerdesolapariagravementeasmetaspolíticasdeAmílcarCabral.

Freire: Então, a situação ideal seria suspender a alfabetização emportuguês, procurar acelerar odesenvolvimentodo crioulo, especialmente apadronizaçãode sua forma escrita, e começar a substituir gradativamente oportuguêspelocrioulocomolínguade instrução.Éevidenteque issonãosepodefazerdeumahoraparaoutra.Basta imaginarocapitalnecessáriopara

Page 94: Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra

mudartodoosistemaeducacionaldanoiteparaodia.OCaboVerdeteriaquetraduzir rapidamente para o crioulo todos os textos básicos exigidos pelocurrículo.Todosostextosdegeografia, leitura,matemáticaeciênciasteriamque ser traduzidos. Atémesmo a formação dos professores no crioulo nãoseria uma tarefa pequena. Porém, comonaTanzânia, poderia começar-se asubstituir lentamente o português, mediante um modelo bilíngue detransição,segundooqualocrioulopassariaadesempenharumpapelmaiornaeducação,enquantooportuguêsiriadiminuindoconsideravelmentecomocorrerdotempo.Ocrioulopoderiaserusadoefetivamente,porexemplo,nosprimeirosdezanosdeescolaridade.

Dessemodo,emdeterminadomomento,poderiasubstituir-seoportuguêspelocrioulonosprimeirosanosdeescolaridadee,gradativamente,ocriouloseriaintroduzido,emvolumecrescente,emtodasasáreasdocurrículo.FoioquefezaTanzânia,quandosubstituiuoinglêspelosuaíle.Nãotenhocertezase o suaíle é usado hoje em nível universitário na Tanzânia, mas tenho aimpressãodequeaeducaçãoprimáriaesecundáriasedá,emsuamaiorparte,emsuaíle.

Em todo caso, creio que a instrução em crioulo é necessária,mesmodaperspectiva daquelas forças produtivas que possam precisar da línguaportuguesa.E,naturalmente,opovodaGuiné-BissauedoCaboVerdepodecontinuar aprendendo o português como língua estrangeira.Mas dar comoestabelecido que o português é a língua nacional e o único veículo para aeducação é um absurdo total. EmSãoTomé, onde o graude bilinguismo émuitomaiselevadodoquenoCaboVerde,seriaalgomaisfácil.MesmonasáreasruraisdeSãoToméaspessoasparecemtermaisfacilidadeparafalaroportuguês.Issopodeseratribuídoaopequenotamanhodailha.

Macedo:AquestãodoensinodalínguaocultamilharesdeproblemasquelevaramàcriaçãodeumacampanhadealfabetizaçãoneocolonialistanoCaboVerdeenaGuiné-Bissau,apretextodeacabarcomoanalfabetismo.Mesmoquea alfabetização emportuguês fosse inteiramenteviável, éprecisoque seproponhaaquestãocrucialdeatéqueponto,comêxitoounão,autilizaçãocontinuadadoportuguêsdegradariaacampanhadealfabetização,bemcomoocapitalculturaldoscabo-verdianossubalternos.Odebatesobreaviabilidadedo português como veículo para alfabetização no Cabo Verde limita-se à

Page 95: Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra

questãotécnicadeseocrioulocabo-verdianoéumsistemaválidoequetemregras. Creio que a questão a propor deve ser infinitamente mais política.Precisamos questionar a resistência à alfabetização em crioulo baseada nasafirmações de que o crioulo carece de uma ortografia uniforme. Desculpasdessetiposãoempregadasparajustificarapolíticaatualdeusodoportuguêscomo únicomeio de instrução.Deve-se indagar por que os cabo-verdianosfalantes de português se apoiamno argumento comumde que o portuguêstemstatusinternacionale,porisso,asseguramobilidadeascendenteaoscabo-verdianosinstruídosdefalaportuguesa.Essaposição,aliás,implicaasupostasuperioridadedalínguaportuguesa.

Atristerealidadeéque,emboraoportuguêspossaofereceracessoacertospostosdepoderpolíticoeeconômicoparaosaltosescalõesdasociedadecabo-verdiana,elemantématrasadaamaioriadopovo,aquelesquenãoconseguemaprendersuficientementebemoportuguêsparaadquirironívelnecessáriodealfabetização para progredir social, política e economicamente.Na verdade,continuar a usar a língua do colonizador como único meio de instrução écontinuar a propiciar as estratégias manipulativas que sustentam amanutenção da dominação cultural. Assim, o que se oculta sob o debatetécnico relativo à língua de instrução cabo-verdiana é a resistência àreafricanização ou, talvez, uma sutil rejeição, por parte dos cabo-verdianosassimilados, a “cometer suicídio de classe”. Para que compreendamosplenamenteosfatorespolíticoseideológicossubjacentesàquestãodelíngua,devemosreorientarnossasperguntasdeumníveltécnicoparaumnívelmaispolítico. Você poderia avaliar as consequências políticas e ideológicas doensinoapenasemportuguêsnoCaboVerde?

Freire:Essaéumaquestãopolíticaradicadanaideologia.NumadasvezesemqueestivenoCaboVerde,opresidenteAristidesPereirafezumexcelentediscurso em que dizia: “Expulsamos os colonizadores portugueses de nossaterra; agora, precisamos descolonizar nossasmentes.” A descolonização dasmentes é muito mais difícil de executar do que a expulsão física docolonizador. Por vezes, os colonizadores são expulsos, mas permanecemculturalmente, porque foram assimilados pela mente das pessoas que alificaram.

Page 96: Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra

Essa terrível presença persegue o processo revolucionário e, em certoscasos,impedeomovimentodelibertação.Alínguanãodeixadeseratingida.Quanto mais essa presença colonialista assedia os espíritos assimilados dopovo colonizado,mais ele rejeitará a própria língua.Na verdade, a língua épartetãoimportantedaculturaque,aorejeitá-la,areapropriaçãodaprópriaculturatorna-seumailusãorevolucionária.

Os ex-colonizados continuam sendo, de muitas maneiras, colonizadosmental e culturalmente. Verbalmente, ou mediante sistemas de mensageminerentesàestruturacolonial,éditoaopovocolonizadoqueelenãodispõedeinstrumentosculturaiseficientespelosquaisseexpressar.Possuemumdialetohorrível, um abastardamento da língua bonita dos colonizadores. Essaimagem da língua imposta pelos colonizadores acaba por convencer aspessoasdequesualínguaera,defato,umsistemacorrompidoeinferior,nãomerecedordeumverdadeirostatuseducacional.

As pessoas acabam acreditando que o modo como falam é selvagem.Ficamenvergonhadasdefalarapróprialíngua,especialmentenapresençadoscolonizadores, queproclamampermanentemente a beleza e a superioridadeda língua deles. Os comportamentos e gostos dos colonizadores, entre osquais a língua, são os modelos impostos pela estrutura colonial duranteséculos de opressão. Em determinado momento, os ex-colonizadosinternalizamessesmitosesentem-seenvergonhados.

Lembro-medeumcasoquevocêmecontou,relativoaumcabo-verdianoque negava veementemente falar o crioulo, mas que, nas festas, semprecantava em crioulo. Posto diante do fato de que, se cantava tão bem emcrioulo,tambémdeviafalaressalíngua,afirmou,defendendo-se,quesósabiacantar,masnãofalaremcrioulo.Talvezelenãotivesseconsciênciadisso,masestava inteiramente assimilado pelo sistema de valores dos colonizadores.Estavaconvencidodequenãofalavasualínguanativa.Naverdade,vedava-seo uso da própria língua. Esse processo muitas vezes é inconsciente. É ofantasmadocolonizadorsussurrandoaseusouvidos:“Sualínguanãoéboa…éselvagem.”

Vocêestáabsolutamentecorretoemsuaanálisedasquestõesdalínguaempaísesantescolonizados.Sempredisse,emminhasconversascompessoasdaGuiné-Bissau, Cabo Verde, São Tomé, Angola e Moçambique, que a

Page 97: Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra

expressão “África portuguesa” é uma denominação imprópria. Quando osintelectuais desses países utilizam essa expressão, sempre lhes digo que nãoexiste uma África dos portugueses, nem dos franceses, nem dos ingleses.ExisteumaÁfricasobreaqualalínguaportuguesafoiimpostaemdetrimentodas línguas nacionais. Vista desta perspectiva, a ideia de uma Áfricaportuguesadissimulaaverdadeiraquestãolinguística.

Creio quepodemosdizer com segurança que, em casos excepcionais, oscabo-verdianosdevemestudaroportuguês,masapenascomosegundalíngua.

Page 98: Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra

Nota46 Oautorrefere-seao fatode tercoordenadooPlanodeAlfabetizaçãoNacionalnogovernode JoãoGoulart,em1963.[N.E.]

Page 99: Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra

3OANALFABETISMODAALFABETIZAÇÃONOSESTADOSUNIDOS

Macedo:Éumaironiaque,nosEstadosUnidos,paísqueseorgulhadeseroprimeiroemaisadiantadodospaísesdochamado“PrimeiroMundo”,maisde60milhões de pessoas sejam analfabetas ou funcionalmente analfabetas.Deacordocomo livro IlliterateAmerica (1985),de JonathanKozol,osEstadosUnidos são o quadragésimo nono dos 128 países das Nações Unidas, emtermos de taxa de alfabetização. Como pode um país que se considera ummodelodedemocraciatolerarumsistemaeducacionalquecontribuiparaumníveltãoelevadodeanalfabetismo?

Freire: A primeira reação a esses dados deve ser de espanto. Como épossívelisso?Masissoaindaseriaumareaçãononívelemocional.Pensemosum pouco sobre esse fenômeno. A primeira coisa a perguntar seria se essaenormeparceladapopulação,osanalfabetosoufuncionalmenteanalfabetos,alguma vez frequentaram a escola. Na América Latina, encontram-seinúmeraspessoasquesãoanalfabetasporestaremsocialmente impedidasdefrequentaraescola.Eháoutragrandepopulaçãodeanalfabetosqueforamàescola. Se esse amplo setor analfabeto da população jamais foi à escola, oespantoqueantesmencioneitorna-seaindamaior,dadaaimensacontradiçãoque implica, uma vez que os Estados Unidos possuem um alto nível demodernização.Alémdisso,devemosconsiderarseosanalfabetosestiveramnaescolaeestanãoproduziuefeitoalgumsobreelesapontodepermaneceremanalfabetos(aparentementenãoproduziuefeito,mas,naverdade,produziu),eseabandonaramaescolaouforamabandonadosporela.

Inclino-me a crer que essa ampla população de analfabetos dos EstadosUnidosestevenaescola e, a seguir, foi expulsa.Expulsa como?Pordecreto,pornãoaprendera lereaescrever?Creioqueaescolanãoatuademaneiratãoaberta.

Issonos levaaumpontoqueé,umavezmais,políticoe ideológicopelapróprianatureza.Enãonosesqueçamosdaquestãodopoderqueestásempre

Page 100: Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra

associadoàeducação.Nossasespeculaçõesdevemlevarosqueseencontramdentrodossistemaseducacionaisareagiràideiaquesesegue,comoabsurda,não rigorosa, e puramente ideológica. A ideia é: esse grande número depessoas que não sabem ler e escrever e que foram expulsas da escola nãorepresentaumfracassodaescolarização;suaexpulsãodemonstraavitóriadaescolarização.Defato,essainterpretaçãoerrôneaderesponsabilidaderefleteocurrículoocultodasescolas. (HenryGirouxescreveudemaneira esplêndidasobreesseassunto,einsistoemqueosleitoresconsultemsuaobra.)

O currículo, no sentido mais amplo, implica não apenas o conteúdoprogramático do sistema escolar, mas também, entre outros aspectos, oshorários,adisciplinaeastarefasdiáriasqueseexigemdosalunosnasescolas.Há,pois,nessecurrículo,umaqualidadeocultaequegradativamentefomentaarebeldiaporpartedascriançaseadolescentes.Suarebeldiaéumareaçãoaoselementos agressivos do currículo que atuam contra os alunos e seusinteresses.

As autoridades escolares que reprimem esses alunos podem argumentarqueestãoapenasreagindoàagressividadedeles.Naverdade,osalunosestãoreagindo a um currículo e a outras condições materiais das escolas queanulam suas histórias, culturas e experiências quotidianas. Os valores daescola atuam em sentido contrário aos interesses desses alunos e tendem aprecipitar sua expulsão da escola. É como se o sistema fosse instalado paragarantirqueelespassempelaescolaeaabandonemcomoanalfabetos.

Esse pensamento é típico demuitos educadores bem intencionados queainda não foram capazes de compreender os mecanismos internos daideologiadominantequeinfluemdessemodonaatmosferaescolar.Devidoàrebeldia das crianças e adolescentes que abandonam a escola, ou que sãovadios e se recusam a empenhar-se na atividade intelectual predeterminadapelo currículo, esses alunosacabampor recusar-se a compreender apalavra(nãoasuapalavra,éclaro,masapalavradocurrículo).Dessemodo,mantêm-seafastadosdapráticadaleitura.

Macedo: Vamos esclarecer o que você menciona como atividadeintelectualdopontodevistadominante,demodoanãodarcomoimpossívelaexistênciadeoutrasatividadesintelectuaisqueessesalunosgeramemantêmvivas. É preciso realçar que eles podem, e de fato o fazem, engajar-se em

Page 101: Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra

frequentesatividadesintelectuais,atividades,porém,quesãogeradasapartirdesuaperspectiva.Ouseja,elesdefinemasprópriasatividades.

Freire: É difícil compreender essas questões fora de uma análise dasrelaçõesdepoder.Porexemplo,apenasosquepossuempoderpodemdefiniroqueécorretoouincorreto.Apenasosquepossuempoderpodemdefiniroqueconstituiintelectualismo.Umavezfixadososparâmetrosintelectuais,osquequerem ser considerados intelectuais têmque atender aos requisitosdoperfilimpostopelaelite.Paraserintelectual,deve-sefazerexatamenteaquiloqueosquetêmpoderdefinemqueointelectualismofaz.

A atividade intelectual dos desprovidosde poder é sempre caracterizadacomonãointelectual.Creioqueessaquestãodeveserrealçada,nãosócomoumadimensãodapedagogia,mas tambémcomoumadimensãodapolítica.Isso é difícil fazer numa sociedade como a dos Estados Unidos, onde anatureza política da pedagogia é repudiada ideologicamente. É necessáriorepudiaranaturezapolíticadapedagogiaparadaraaparênciasuperficialdeque a educação atende a todo mundo, assegurando, desse modo, que elacontinueafuncionarnointeressedaclassedominante.

Essauniversalidademíticadaeducaçãoparamelhorserviràhumanidadefazcomquemuitosculpemosprópriosalunosquando“abandonam”aescola.Cabeaelesadecisãodesequeremounãopermanecereserbem-sucedidosnaescola.

Uma vez que se aceite a natureza política da educação, torna-se difícilaceitaraconclusãodaclassedominante:dequeosque“abandonam”aescolasãoosculpados.Quantomaissenegaanaturezapolíticadaeducação,maisseassume o potencial moral de culpar as vítimas. Isso é algo paradoxal. Osmuitos que passam pela escola e que saem analfabetos, por resistirem e serecusarem a ler a palavra dominante, são representantes da autoafirmação.Essaautoafirmaçãoé,deoutropontodevista,umprocessodealfabetizaçãono sentido normal, global da palavra. Ou seja, a recusa em ler a palavraescolhida pelo professor é a percepção, por parte do aluno, de que ele estátomandoadecisãodenãoaceitaroquevêcomoumaviolaçãodeseumundo.

Afinal,oqueseteméaseparaçãoentreprofessorealunosporfronteirasde classe.Muito embora se reconheça sermuitodifícil fazerumaanálisede

Page 102: Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra

classe numa sociedade complexa como a dos Estados Unidos, não se podenegarqueexisteumadivisãoemclasses.

Macedo:Geralmente,oseducadoresnorte-americanosatenuamaquestãoda classe social no que diz respeito à educação. Na verdade, amaioria dosestudosrelativosaonúmeroinaceitáveldeanalfabetosnosistemaescolartratado problema de uma perspectiva tecnocrática. E os remédios propostostendem a ser também tecnocráticos. Embora alguns educadores indiquemexistir uma possível correlação entre a alta evasão escolar e o baixo nívelsocioeconômicodosalunos,essacorrelaçãoficanoníveldescritivo.Émuitomais frequente que nos Estados Unidos os educadores, em geral, e osespecialistas em alfabetização, em particular, deixem de estabelecervinculaçõespolíticaseideológicasemseusestudosquepudessemesclareceranatureza reprodutiva das escolas nessa sociedade. Por exemplo, educadoresconservadores, como o Ministro da Educação William Bennett, dãopreferência a uma abordagem back-to-basics47 à medida que adotamcurrículosbaseadosnacompetência.Emboraarigidezdaabordagemback-to-basicspossabeneficiarosalunosbrancosdeclassealta,duvidoquedêsoluçãoao problema do analfabetismo que assola a maior parte dos grupossubalternosdosEstadosUnidos.Panaceiasdotipomaistempodecontatodosalunos com leitura e matemática e melhor salário para os professoresperpetuarão aqueles elementos ideológicos que rejeitam as experiências devidadosalunos.Emconsequência,osalunosreagemrecusando-sealeroqueocurrículoestabeleceuquedevemler.

Nãohágarantia algumadeque intensificar esse tipode abordagem,quebasicamente carece de equidade e sensibilidade em relação à cultura dosgrupossubalternos,irádiminuiraresistênciadosalunosquandoserecusamaler a palavra “escolhida”. Quando os planejadores de currículo ignoramvariáveis tão importantes quanto às diferenças de classe, quando ignoram aincorporação dos valores das culturas subalternas no currículo e quando serecusam a aceitar e a legitimar a linguagem dos alunos, sua ação vai nosentidodainflexibilidade,dainsensibilidadeedarigidezdeumcurrículoquefoiprevistoparabeneficiaraquelesqueoescreveram.

Concedendoaosprofessoresaumentosinsignificantesdesalário,oqueseestá é apaziguando amaioria deles, que se veem emposição de impotência

Page 103: Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra

cada vez maior, em confronto com um sistema reducionista que visa adesqualificá-los cada vezmais. Essas abordagens e suas propostas correlatastendemadescuidardascondiçõesmateriaiscomquelutamosprofessoresemseu esforço para sobreviver à tarefa esmagadora de ensinar coisas que sãopolítica e ideologicamente estranhas à realidade do aluno de classessubalternas.

Essasabordagensepropostasdeixamdeexaminarafaltadetempoqueosprofessorestêmparaexecutarumatarefaque,pelapróprianatureza,implicapensamentoereflexão.Maisainda,adimensãointelectualdoensinonuncaéreconhecidaporum sistema cujoobjetivoprincipal édesqualificar cadavezmais os professores, reduzindo-os a meros agentes técnicos destinados acaminhar irrefletidamente por entre um labirinto de procedimentos. Assimsendo,minhaperguntaésevocêcrêqueesseseducadoresestãocônsciosdeque as propostas que fazem exacerbarão o vácuo de equidade que já estávitimandograndenúmerodealunosde“minorias”.

Freire:Primeiro,vamosesclarecerotermo“minoria”.

Macedo: Emprego o termo no contexto dos Estados Unidos. Tenhoconsciência,também,desuanaturezacontraditória.

Freire: Exatamente. Você percebe o quanto o termo “minoria” estáimpregnado ideologicamente?Quando, no contexto dos EstadosUnidos, seemprega “minoria” para se referir àmaioria do povo que não faz parte daclassedominante,está-sealterandoseuvalorsemântico.Quandosemenciona“minoria”,está-sefalando,naverdade,da“maioria”queseencontraforadaesferadedominaçãopolíticaeeconômica.

Macedo: SeKozol está certo, os 60milhões de analfabetos e analfabetosfuncionaisque ele registra em IlliterateAmerica não constituemuma classeminoritária.Esses60milhõesnãodeviamseracrescentadosaoutrosgruposbastante grandes que aprendem a ler, mas que ainda não fazem parte dasesferaspolíticaseeconômicasdominantes.

Freire:Na realidade, comosedácommuitasoutraspalavras, aalteraçãosemânticadapalavra“minoria”serveparadissimularosmuitosmitosquesãopartedomecanismodesustentaçãodadominaçãocultural.

Page 104: Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra

Macedo: Passemos agora a nossa segunda pergunta. Creio ser damaiorimportância analisar de quemodo as culturas subalternas se produzem emsala de aula. Precisamos compreender as relações antagônicas entre asculturas subalternas e os valores dominantes do currículo. Tome-se, porexemplo, a resistência a falar o dialeto padrão exigido pelo currículo. Ocurrículodominantedestina-seprimordialmenteareproduziradesigualdadedas classes sociais, ao favorecer predominantemente os interesses de umaminoria de elite. Como poderão os educadores progressistas norte-americanos tirar partido dos elementos culturais antagônicos produzidospelos atos de resistência dos alunos subalternos, e como poderão oseducadores desencadear uma campanha de alfabetização que possibilite aosalunoscompreenderoprópriomundodemodoapoderlê-lodepois?Ouseja,serápossívelutilizararebeldiadosalunoscomoumaplataformaapartirdaqualpossamtranscenderanaturezamecânicadaalfabetizaçãoaelesimpostaporumcurrículoqueexigeapenasacodificaçãoedecodificaçãomecânicasdegrafemasefonemasparaformarpalavrasqueosalienamaindamais?

Freire: Sua pergunta é absolutamente fundamental. Teoricamente, arespostaaelavalenãoapenasnocontextodosEstadosUnidos,comotambémnocontextobrasileiro,bemcomoemoutrasáreasondehajadivisõesetensõesbemdefinidas.Adiferençamaisimportanteencontra-seemcomoprojetareimplementar programas que atendam às diferentes necessidades de cadacontexto.Achariamaisfácilresponderàsuaperguntanocontextobrasileiro.De qualquermodo, teoricamente, sua pergunta necessariamente nos leva àquestão importante de se é possível desenvolver, dentro de um espaçoinstitucional,umprogramadealfabetizaçãocríticaquecontrariaeneutralizaa tarefa fundamental exigida pelo poder dominante das escolas. Ou seja,precisamosdiscutirareproduçãodaideologiadominante,questãoimportanteque tem sido discutida muito clara e amplamente por Henry Giroux etambémporoutroseducadoresnorte-americanos.

As teorias da reprodução tendem a cair num exageromecânico, com oqualinterpretamofatorealeconcretodequeosistemaeducacionalreproduzaideologiadominante.Dentrodosistemaeducacional,contudo,existeoutratarefaaserexecutadapeloseducadoresconscientes, independentementedosdesejos da classe dominante. A tarefa educacional, da perspectiva da classedominante,éreproduzirsuaideologia.Masatarefaeducativaquecontrariao

Page 105: Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra

processoreprodutivonãopodeserlevadaacaboporquemquerqueoptepelostatusquo.Essatarefasópodeserlevadaacabopeloeducadorque,defato,serecuseamanteradesigualdadeinerenteaostatusquo.

O educadorprogressista rejeita os valores dominantes impostos à escolaporque possui um sonho diferente, porque quer transformar o status quo.Naturalmente,transformarostatusquoémuitomaisdifícildoquemantê-lo.Aquestãoquevocêpropôstemaverexatamentecomessateoria.Comodisse,o espaço educacional reproduz a ideologia dominante. Contudo é possível,dentro das instituições educacionais, atuar contrariamente aos valoresdominantesimpostos.

A reprodução da ideologia dominante implica necessariamente aocultaçãodeverdades.Odesvendamentodarealidadeestádentrodoespaçode mudança possível em que os educadores progressistas e politicamenteclarosdevematuar.Creioqueesse espaçodemudança, aindaquepequeno,sempreexiste.NosEstadosUnidos,ondeasociedadeémuitomaiscomplexadoquenoBrasil,atarefaderealçararealidadeémaisdifícil.Nessatarefa,énecessárioqueoseducadoresassumamumaposturapolíticaqueserecuseareconheceromitodaneutralidadepedagógica.

Esses educadores não podem limitar-se a ser meros especialistas emeducação.Nãopodemsereducadorespreocupadosapenascomasdimensõestécnicas do bilinguismo, por exemplo, sem uma compreensão global dasimplicaçõespolíticaseideológicasdobilinguismoedopluriculturalismonosEstadosUnidos.Oseducadoresdevem tornar-se indivíduosconscientesquevivempartedeseussonhosdentrodoespaçoeducacional.

Os educadores não terão êxito atuando sozinhos; têm de trabalhar emcolaboração a fim de serem bem-sucedidos na integração dos elementosculturais produzidos pelos alunos subalternos em seu processo educativo.Finalmente,esseseducadorestêmqueinventarecriarmétodoscomosquaisutilizem aomáximo o espaço limitado demudança possível que têm a seudispor. Precisamutilizar o universo cultural de seus alunos como ponto departida, fazendo com que eles sejam capazes de reconhecer-se comopossuidoresdeumaidentidadeculturalespecíficaeimportante.

Autilizaçãobem-sucedidadouniversoculturaldosalunosexigerespeitoelegitimaçãododiscursodeles,ou seja,de seuspróprios códigos linguísticos,

Page 106: Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra

que são diferentes mas nunca inferiores. Os educadores devem tambémrespeitar e compreender os sonhos e expectativas dos alunos. No caso dosnorte-americanos negros, por exemplo, os educadores devem respeitar alíngua inglesa dos negros. É possível codificar e decodificar o inglês negrocomamesmafacilidadequeo inglêsnorte-americanopadrão.Adiferençaéqueosnorte-americanosnegros acharão infinitamentemais fácil codificar edecodificar o dialeto de que eles próprios são os autores. A legitimação doinglês negro como uma ferramenta educativa não elimina, porém, anecessidade de adquirir proficiência no código linguístico do grupodominante.

Macedo: Além da questão do código linguístico, os educadores devemcompreenderasmaneiraspelasquaisosdiversosdialetoscodificamvisõesdemundodiversas.Ovalor semânticode itens léxicos específicospertencentesao inglês negro é, em alguns casos, radicalmente diferente da interpretaçãoderivadadodialetopadrão,dominante.Aprimeiraquestãoimportanteéqueocódigolinguísticodosnorte-americanosnegrosnãosórefletesuarealidade,como ainda sua experiência vivida num dadomomento histórico. Palavrasque contêm em si a cultura da droga, a alienação quotidiana, a luta pelasobrevivência nas condições inferiores e desumanas dos guetos — essasconstituemumdiscursoqueosnorte-americanosnegrosnãotêmdificuldadealgumaemutilizar.

Apartirdessarealidadecruaeàsvezescrueléqueosalunosnegrospodemcomeçar adesvendar a confusãoque caracteriza sua existêncianodia adia,dentro e fora das escolas. Por isso, sua linguagem constitui ferramentapoderosaparadesmistificararealidadedistorcidaantecipadamentepreparadapara eles pelo currículo dominante. Como vamos expor no último capítulodestelivro,alinguagemjamaisdevesercompreendidacomomeraferramentade comunicação. A linguagem vem de envolta com a ideologia e, por essarazão,tem-sequelhedarproeminênciaemqualquerpedagogiaradicalqueseproponhapropiciarespaçoparaaemancipaçãodoaluno.

Freire:Medianteousodetodasasdimensõesdalinguagem,dogostoetc.dosalunos,équeseserácapaz,comeles,dechegaraoconteúdoprogramáticooficial. Não se dirá aos que se encontram numa posição dependente eoprimidaquenãopodem,porexemplo,opinarquantoàsubstânciadoestudo

Page 107: Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra

de ciências, porque esse tipo de exigência curricular interessa apenas aosalunosdaclassedominante.Osalunos“subalternos”tambémtêmnecessidadedas habilidades adquiridas pelo estudo do currículo dominante. Contudo,essas habilidades jamais devem ser impostas com o sacrifício de umacompreensãoglobaldarealidadequepermitaqueosalunosdesenvolvamumaautoimagempositivaantesdeenfrentaremo tipodeconhecimentoqueestáforadeseumundoimediato.

Somente depois de se haverem apropriado firmemente de seu própriomundoéquepodemcomeçaraadquiriroutrosconhecimentos.Aaquisiçãodoseletoconhecimentocontidonocurrículodominantedeve serumametaatingidapelosalunos“subalternos”nodecorrerdoprocessodeempowermentindividual e grupal. Eles podem utilizar o conhecimento dominante comeficiênciaemsua lutaparamudarascondiçõesmateriaisehistóricasqueostêm escravizado. Não devem, porém, jamais, permitir que o conhecimentoque beneficia a classe dominante os domestique ou, como em alguns casosocorre,os transformeempequenosopressores.Ocurrículodominantedevegradativamente vir a ser dominado pelos alunos “dependentes”, demodo aajudá-losemsualutapelaequidadesocialepelajustiçasocial.

Essavisãoépolíticaenãomeramenteepistemológica.Ouseja,nocasodosnorte-americanosnegros,elesprecisamdominarplenamentealínguainglesapadrãoafimdelutarcomeficiênciapelaprópriapreservaçãoeporsuaplenaparticipação na sociedade. Isso não significa, porém, que o inglês norte-americanopadrãosejamaisbonitodoqueoinglêsnegro,ousuperioraele.Anoçãodesuperioridadelinguísticaéumacoisaimpostaartificialmente.

Macedo:Então,o inglêspadrãodeveservistocomoumaarmacontraasforças opressoras que utilizam esse dialeto dominante como um meio demanteraordemsocialatual.Deve-sesalientar,também,queodomíniocríticodo dialeto padrão jamais pode ser atingido plenamente, sem odesenvolvimentoda vozde cadaum, que está contidanodialeto social queconformaarealidadedesseindivíduo.

Freire: Exatamente. É isso que quero dizer quando falo nas necessáriasdimensõespolíticaseideológicasemqualquerpedagogiaqueseproponhasercrítica. A questão dos métodos está diretamente vinculada à capacidadecriativa e inventiva dos educadores políticos. A criatividade exige

Page 108: Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra

evidentemente correr riscos. As tarefas educativas de que temos falado atéagorapodemser executadasmedianteumacompreensãoglobaldanaturezapolítica e ideológica dos educadores e mediante uma disposição para sercriativoeparacorrerosriscosquepermitirãoqueessacriatividadeprospere.Em sociedades altamente modernizadas como os Estados Unidos, tenhoobservado que as pessoas trazem consigo uma longa experiência históricacapitalistaquecorroboraotemageraldeaexistênciahumanasempreevoluirdomedo—medo,porexemplo,denão terestabilidade,medoque fazcomque os educadores fiquem bem-comportados por muitos anos paraconseguirem estabilidade. Muitos anos mais tarde, se não conseguiramestabilidade, mantêm-se domesticados de medo de perder uma segundaoportunidade de estabilidade. Se a estabilidade lhes é recusada, só sepreocupam em tentar compreender qual terá sido a conduta errada que oslevouaternegadaaestabilidade.Sesãocontempladoscomaestabilidade,nãohá, naturalmente, razão alguma para alteraremo comportamento pelo quallhesfoiconcedidooprêmiodaestabilidade.

Macedo: Concordo com isso, mas julgo importante que se compreendaessemedo de correr riscos ou de ser inventivo, bem como osmecanismossociais que lhe dão origem. Em alguns casos, os educadores sacrificamprincípios educativos emoraispara ajudar amanterum statusquo por elesidentificadoscomonãocriativo,apenasparapoderemreceberarecompensadaestabilidadeoudoprogressosocialpessoal.Essecompromissoestáligadoauma falta de nitidez política, o que, a longo prazo, elimina qualquerpossibilidade de que esses educadores venham a engajar-se numa práxiseducativa que conduza à conscientização. Você não quer falar sobre esseproblema da nitidez política entre os educadores das sociedades altamentemodernizadas,comoosEstadosUnidos?

Freire:Antesdeestender-mesobreoquevocêchamade“nitidezpolítica”,vamos,primeiro,definiresseconceito.Vouprocurarexplicaroquealgumasvezestenhochamadode“nitidezpolíticaantesdeumaação”,algonecessárioaoprocessodeevoluçãodapráxispolítica.

Nossaprimeirapreocupaçãodizrespeitoaoadvérbioantesempregadonaexpressão“antesdeumaação”.Esseantesrefere-seaumadeterminadaação,digamosaaçãoA,aserrealizadacomotarefapolíticanoprocessodelutaede

Page 109: Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra

transformação. Esse antes não se refere a nenhuma forma de ação paraalcançar a nitidez na “leitura” da realidade. Sua compreensão exige queprolonguemosnossaexperiênciacríticaeradicalnomundo.Compreenderasensibilidade domundo não ocorre exteriormente a nossa prática, isto é, apráticavividaouapráticasobreaqualrefletimos.

Emúltimaanálise,oque tenhochamadode“nitidezouclarezapolítica”não seencontrana repetiçãomeramentemecânica,porexemplo,decríticasformais ao imperialismo norte-americano, ou na recitação (não menosmecânica)defrasesdeMarx.Essetipodeposturaintelectualnãotemnadaavercomminhaideiadenitidezpolítica.

A nitidez política é necessária para o engajamento mais profundo napráxis política e é realçada nessa prática. Essa concepção foi muito bemapanhadaporFreiBetto,emumlivroquehápoucotempo“falamos”juntosnoBrasil,Umaescola chamadavida. SegundoBetto,umapessoapolitizada,(que, mais, ou menos, possui nitidez política) é aquela que transcendeu apercepção da vida como mero processo biológico para chegar a umapercepçãodavidacomoprocessobiográfico,históricoecoletivo.

Nessemomento,essapessoaconceptualizaaquiloqueBettochamade“umvaral de informação”.No varal, podemos ter um fluxode informação e, noentanto,permanecerincapazesdeligarumapeçadeinformaçãoàoutra.Umapessoa politizada é aquela que pode classificar as peças diferentes, emuitasvezes fragmentadas, contidas no fluxo. Essa pessoa deve ser capaz deesquadrinhar o fluxo de informação e relacionar, por exemplo, Pinochet eReagan,oucompreenderoconteúdoideológicodaexpressão“combatentesdaliberdade”quandoaplicadaaosContras,empenhadosemsabotaroprocessorevolucionário da Nicarágua. Essa pessoa percebe a ideologia no conteúdo“terrorismo”quando aplicado à açãomilitar contra umaditadura cruel quemantémum esquadrão damorte extremamente eficientematandomilharesde mulheres, crianças e outros cidadãos inocentes. Noam Chomsky, porexemplo,analisasucintamenteapolíticanorte-americananaAméricaLatinaem Turning the Tide, chamando a atenção para as contradições naintervençãodosEstadosUnidos.

Anitidezpolíticaépossívelnamedidaemquesereflitacriticamentesobreosfatosdodiaadiaenamedidaemquesetranscendaàprópriasensibilidade

Page 110: Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra

(a capacidade de senti-los, ou de tomar conhecimento deles) demodo que,progressivamente, se consiga chegar a uma compreensãomais rigorosa dosfatos.Mesmoantesdisso,aindanoníveldasensibilidade,épossívelcomeçaratornar-senítidopoliticamente. Issosedánoprocessobiográfico,históricoecoletivodeBetto(acimamencionado).

Ameuver,umadaspossibilidadesquesetemaotrabalharcomumgrupodeintelectuais,alunos,porexemplo,édesafiá-losacompreenderarealidadesocial e histórica, não de um fato ocorrido, mas de um fato que estejaocorrendo.Arealidade,nessesentido,éoprocessodeviraser.

É preciso desafiar os alunos a compreender que, como sujeitoscognoscentes, a relação que se tem com objetos cognoscíveis não se podereduzir apenas aos objetos. É preciso atingir um nível de compreensão datotalidadecomplexaderelaçõesentreosobjetos.Ouseja,éprecisodesafiá-losatratarcriticamenteo“varaldeinformação”comqueestãotrabalhando.

Querseatueemníveldeuniversidade,ouemeducaçãodeadultos,querenvolvidosnamerasensibilidadedosfatos,ounabuscadeumacompreensãomais rigorosa destes, uma das dificuldades no tratamento crítico dasdiferentes“peças”deinformaçãodo“varal”éadequesempreháobstáculosqueofuscamanitidezpolítica.Nãofossemessesobstáculosideológicos,comoexplicarafacilidadecomqueseaceitamasdeclaraçõesdopresidenteReagandequeumpaíspobreefracocomoGrenadarepresentaumaameaçaàforçagigantescadosEstadosUnidos?

A nitidez política implica sempre uma compreensão dinâmica entre asensibilidademenos coerente domundo e uma compreensãomais coerentedo mundo. Mediante a prática política, a sensibilidade menos coerente domundo começa a ser superada e as buscas intelectuais mais rigorosas dãoorigem a uma compreensão mais coerente do mundo. Considero essatransição para uma sensibilidade mais coerente um dos momentosfundamentais em qualquer práxis educativa que procure ir além da meradescriçãodarealidade.

Éprecisohavernitidezpolíticaantesquesecompreendaaaçãopolíticadeerradicação do analfabetismo nos Estados Unidos ou em qualquer outrolugar. Educadores sem nitidez política podem, quando muito, ajudar osalunos a ler a palavra,mas são incapazes de ajudá-los a ler omundo.Uma

Page 111: Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra

campanhadealfabetizaçãoquetorneosalunoscapazesdeleromundoexigenitidezpolítica.

Macedo: Muitos educadores nos Estados Unidos têm tentado pôr empráticasuateoriadaalfabetização.Muitasvezeselessequeixamdequevocênãooferecenenhuma informaçãode“comofazer”parapôremprática suasideias teóricas e suas experiências em outras regiões do mundo,particularmente na África e na América Latina. Em primeiro lugar, vocêconsidera válidas essas críticas? Se não considera, poderia atender àsansiedades de muitos educadores bem-intencionados que, talvez, sintam-seaindaescravosdeumaculturaeducacionaldemanuaisde“comofazer”?

Freire: Essa pergunta tem duas partes. A primeira, refere-se a minhareservaemdizeraos educadoresoque fazer.A segundaocupa-sedeminhafaltadedireçãonasteoriasquetenhoproposto.

Vejamos a primeira parte. O que é que se origina de qualquer prática?Experiênciasepráticasnãopodemserexportadas,nemimportadas.Decorredaíqueéimpossívelsatisfazeropedidodequemquerquesejaparaimportarpráticas de outros contextos. De quemodo uma cultura com uma históriadiferente e num momento histórico diferente pode aprender com outracultura? Como pode uma sociedade aprender com a experiência de outra,umavezqueéimpossívelexportarouimportarpráticaseexperiências?

Ao fazer essas indagações, nãoquerodizer que seja impossível aprendercomaspráticasdeoutros.AmílcarCabral,queamavaaculturaafricana,disseque o respeito que se tem por ela não significa que se devam ignorar oselementos positivos de outras culturas, que podemmostrar-se essenciais aoseudesenvolvimento.Falandona impossibilidadedeseexportarempráticas,nãoestounegandoavalidadedepráticasestrangeiras.Nemestounegandoanecessidade de intercâmbio. O que estou dizendo é que elas devem serreinventadas.

Macedo: Explique concretamente de que modo se podem reinventar apráticaeaexperiênciadealguém.

Freire:Deve-sefazerumaabordagemcríticadapráticaedaexperiênciaaserreinventada.

Macedo:Oquevocêquerdizercomabordagemcrítica?

Page 112: Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra

Freire: Abordar criticamente as práticas e as experiências de outros écompreenderaimportânciadosfatoressociais,políticos,históricos,culturaise econômicos relacionados com a prática e a experiência a ser reinventada.Em outras palavras, a reinvenção exige a compreensão histórica, cultural,política,socialeeconômicadapráticaedaspropostasaseremreinventadas.

Esseprocessocríticoaplica-se, também,à leiturade livros.Porexemplo,comoaplicarasideiasdeLeninaocontextolatino-americano,semempenhar-seemterumacompreensãocrítica,políticaehistóricadomomentoemqueLeninescreveu?NãopossosimplesmentepassarporaltoumtextoescritodeLeninrelativoaumadeterminadaRússia,numdadomomentohistórico.Noprefácio de uma nova edição desse texto, Lenin chamou a atenção para anecessidadedeseterumacompreensãocríticadomomentoemqueescreverao texto. Em nosso caso, é necessário, também, compreender o momentohistórico, político, social, cultural e econômico, as condições concretas quelevaram Lenin a criar o texto pela primeira vez. Não posso, pois,simplesmente usar o texto de Lenin e aplicá-lo literalmente ao contextobrasileiro,semrevê-lo,semreinventá-lo.

Macedo:Emqueconsistiriaessareescritadotexto?

Freire:Namedida emque eu compreendoosparâmetrosda luta que setravava naRússia ao tempo de Lenin, posso começar a compreender o queestáacontecendonoBrasildehoje.Possocomeçaraperceberquãoválidossãocertos princípios gerais de modo que possam ser reinventados. Outrosprincípiospodemterqueseradaptadosanossocontexto.Creioserimpossívellerqualquertextosemumacompreensãocríticadocontextoaqueserefere.

Voltemos a sua pergunta sobre por que me recuso a dar as chamadasreceitas de “como fazer”. Quando um educador norte-americano lê minhaobraenãoconcordanecessariamentecomtudoquedigo(afinal,podeaténãoconcordarcomigoemnada),massente-setocadopeloqueescrevi,emvezdesimplesmenteme imitar, poderá começar a praticar tentando compreendercriticamente as condições contextuais de onde atuei. Esse educador podecompreender plenamente as condições econômicas, sociais, culturais ehistóricas que culminaram, por exemplo, no ato de escrever Pedagogia dooprimido.

Page 113: Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra

Os educadores devem também investigar todas essas condições em seuspróprioscontextos.QuandoalguémpensasobreocontextoquedeuorigemàPedagogiadooprimidoepensa,também,sobreseuprópriocontexto,poderácomeçararecriaraPedagogiadooprimido.Seoseducadoresforemfiéisaessareinvenção radical, compreenderãominha insistência em que os educandosdevam assumir o papel de sujeitos cognoscentes; ou seja, sujeitos queconhecem juntamente com o educador, que é também um sujeitocognoscente.Esseéoprincípioparaatomadadeumaatitudeepistemológica,filosófica,pedagógicaepolítica.

Umacoisaélerminhaobraafimdeidentificar-secomminhasposiçõesedecidirseelassãoválidas.Masnãosedevemfazerasmesmascoisasque fizemminhaprática.

Essencialmente, os educadores devem trabalhar muito para que oseducandos assumam o papel de sujeitos cognoscentes e possam viver essaexperiência de sujeitos. Educadores e educandos não precisam fazerexatamenteasmesmascoisasqueeufizparaquetenhamaexperiênciadeserumsujeito.Issoporqueasdiferençasculturais,históricas,sociais,econômicasepolíticasquecaracterizamdoisoumaiscontextoscomeçarãoadesempenharumpapelnadefiniçãodorelacionamento tensoentreeducadoreeducando,ou seja,os chamadosvaloresdeumadeterminada sociedade.Essa é a razãoporquemerecusoaescreverummanualde“comofazer”,ouaoferecerumareceitapassoapasso.

Nãopoderiadizer aos educadoresnorte-americanosoque fazer,mesmoqueeuquisesse.Nãoconheçooscontextoseascondiçõesmateriaisemqueoseducadoresnorte-americanosdevemtrabalhar.Nãoéqueeunãosaibacomodizer o que devem fazer. Ao contrário, não sei é o que dizer precisamente,porque minhas próprias opiniões foram moldadas pelos meus próprioscontextos.Nãonego que possa dar uma colaboração aos educadores norte-americanos. Creio que o tenho feito em visitas aos Estados Unidos e aoparticipar de discussões concretas com diversos grupos a respeito de seusrespectivos projetos. Nessas discussões, tenho sugerido que, dada minhaexperiência, tenhocondiçõesde facilitar-lheso trabalho.Nãoposso,porém,escreverumtextocompostodeconselhosesugestõesuniversais.

Page 114: Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra

Quando alguns educadores me criticam quanto a isso, revelam o quãoinfluenciadosestãopelaideologiadominantecontraaquallutamecomonãoconseguiramaindacompreenderasmaneirascomoareproduzem.

Certa vez, sugeri a um grupo de estudantes norte-americanos quepensassemnoseguinteparasuastesesdemestrado:quantostextoshavianosEstados Unidos em 1984, por exemplo, sobre como fazer amigos, comoconseguirumbomemprego,comodesenvolverhabilidades;istoé,textosqueprincipalmentedãoreceitas.Essestextosseexplicamemtermosnocontextogeralquelhesdáorigem.Hámuitoseducadoresquerecebembemessegênerode textos, que essencialmente contribuem para uma maior desqualificação.Recuso-me a escrever esse gênero de texto, porque minhas convicçõespolíticassãocontráriasàideologiaquealimentaessetipodedomesticaçãodamente.

Paramim, a tarefamais importante que tenho nos Estados Unidos, ouondequerqueseja,édizer:Olheaqui,minhaposiçãopolíticaéA,BeC.Essaposição política exige de mim que mantenha consistentes entre si meudiscurso e minha prática. Isso implica diminuir a distância entre eles.Diminuir a distância entre o discurso e a prática é o que denomino“coerência”.

Em qualquer contexto, falo a respeito deminha prática e, com base nareflexão, elaboro teoricamente minha prática. Daí para diante, tenho dedesafiar outros educadores, inclusive os de meu próprio país, a tomaremminhapráticaeminhasreflexõescomoobjetodesuasreflexõespessoaiseaanalisaremseuprópriocontextodemodoquepossamcomeçarareinventá-las na prática. Esse é meu papel como educador; e não pretender,arrogantemente,serumeducadordeeducadoresdosEstadosUnidos.

Macedo:Essafaltadecoerênciadequevocêfalouéumproblema.Muitoembora alguns educadores norte-americanos concordem com vocêteoricamente, na prática continuam ainda condicionados pela ideologiadominante.Podeserqueofatodenãoseconseguirestabelecerumaharmoniaentre teoria e prática conduza a uma colisão frontal com a coerêncianecessária paramanter uma visão sucinta do projeto político e pedagógicodisponível.Podeserque,semosaber,elesreproduzamelementosdaideologiadominantequecontrariaosprincípiosfundamentaisdesuateoria.

Page 115: Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra

Freire: Exatamente. E isso, é claro, não acontece apenas nos EstadosUnidos; acontece também no Brasil. É enorme a distância que existe, noBrasil,entreo“discursorevolucionário”decertoseducadoresesuaprática.Émuitocomumencontrarintelectuaisquediscutemautoritariamenteodireitode as classes subalternas se libertarem. O simples fato de falarem da classetrabalhadoracomoobjetodesuasreflexõescheiraaelitismoporpartedessesintelectuais. Só há um modo de superar esse elitismo que também éautoritário e implica inconsistência do discurso revolucionário dosintelectuais. Esses intelectuais deviam parar de falar sobre as classestrabalhadorasepassarafalarcomelas.Quandooseducadoresseexpõemàsclassestrabalhadoras,automaticamentesereeducam.

Macedo: Eles deviam também começar a compreender e a respeitar aproduçãoculturaldaclasse trabalhadora;porexemplo, suasdiversas formasderesistênciacomoaspectosconcretosdecultura.

Freire:Exatamente.

Macedo:Éimportantetambémsalientar,porexemplo,queacompreensãoda produção cultural dos grupos subalternos é indispensável em qualquertentativadedesenvolver algum tipode alfabetização emancipadora.Agir deoutro modo seria desenvolver estruturas pedagógicas disfarçadas de umapedagogia radical com metas ocultas de assimilação dos alunos a esferasideológicas da classe dominante. Na apreciação da cultura dos grupossubalternosécrucialoelementoderesistênciaedequemodoutilizá-locomoumaplataformaparapossibilitaraosalunossealfabetizarememsuaprópriahistóriaeemsuasexperiênciasvividas.

Freire:Vocêtocounumponto importantesobreoqualHenryGirouxseestendetãoexpressivamenteemsuaobra:oproblemadaresistência.Umadaslições que deviam aprender os educadores que se consideram progressistasdeveriaseracompreensãocríticadosdiversosníveisderesistênciaporpartedasclassessubalternas, istoé,osníveisdesuaresistênciadadososníveisdeconfrontoentreelaseasclassesdominantes.

A compreensão dessas formas de resistência conduz a uma apreciaçãomelhor de sua linguagem; e, na verdade, não se pode compreender suaresistência senão se captara essênciade sua linguagem.A linguagem torna

Page 116: Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra

explícitososmodospelosquaisaspessoasvêmresistindo.Emoutraspalavras,alinguagempermitevislumbraramaneiracomoaspessoassobrevivem.

Acompreensãodaresistêncialevaaquesepercebaa“astúcia”dasclassesoprimidas como ummodo de defesa contra as dominantes. Essa astúcia ésocial na medida em que faz parte da rede social da classe oprimida. Essasagacidadesemostraclaramentenousodesualinguagem,emsuaarte,desuamúsicaeatémesmodesuafilosofia.Ocorpodosoprimidosdesenvolveumaimunização para defender-se das duras condições a que é submetido. Nãofosseassim,seriaimpossívelexplicarcomomilhõesdelatino-americanosedeafricanos continuam sobrevivendo em condições subumanas. Em condiçõessemelhantes, você, ou eu, não duraria mais do que uma semana. Nossoscorpos nunca tiveram que desenvolver o sistema imunológico para lutarcontraessetipoderealidadedura.

Repetindo, compreender a realidade do oprimido, refletida nas diversasformas de produção cultural — linguagem, arte, música —, leva a umacompreensão melhor da expressão cultural mediante a qual as pessoasexprimem sua rebeldia contra os dominantes. Essas expressões culturaisrepresentam,também,oníveldelutapossívelcontraaopressão.

Porexemplo,hámuraisegrafitosextraordináriosnamaioriadascidadesdos Estados Unidos realizados por artistas desconhecidos, gentedesempregada, relegada. São expressões tanto culturais quanto políticas.VisiteiChicago comum artista que utilizava essas formas de arte, e elemefalousobreosartistasnegrosquepintamnasparedesdosprédioscenasdodiaa dia das classes oprimidas. Embora extremamente artísticas e, portanto,estáticas,elassãotambémumatopolítico.

Essas obras de arte constituemummétodo astuto utilizadopelas classesdominantesparadenunciaradominaçãoquasesempreviolentaquesofrem.Denunciampormeiodaexpressãoartísticae,àsvezes,dissimulamadenúnciasob a expressão artística. É esse contexto de opressão que ocasiona anecessidade das classes oprimidas de serem astutas e de resistirem. Girouxestácerto:todapedagogiaradicaldeve,primeiro,compreenderplenamenteadinâmica da resistência por parte dos educandos. No ano passado, porexemplo, foi publicado um livro interessante no Brasil: A festa do povo:pedagogia da resistência.48 O autor analisa diversas expressões culturais,

Page 117: Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra

diferentesmomentosfestivosdopovo,nãocomomerasexpressõesfolclóricas,mascomoexpressõesculturaispormeiodasquaisaspessoasexprimemsuaresistência.

Desse ponto de vista, a compreensão cultural é fundamental para oeducador radical. A diferença básica entre um educador reacionário e umradicaltemavercomasmanifestaçõesderesistência.Oeducadorreacionáriointeressa-seemconhecerosníveisderesistênciaeas formasqueelaassumedemodoapodersufocaressaresistência.Umeducadorradicalquerconhecerasformaseosmodoscomoresisteopovo,nãoparadissimularasrazõesdaresistência,masparaexplicarnonívelteóricoanaturezadessaresistência.

Macedo:Umeducadorradicalnãodeve ficarexclusivamentenoníveldateoria. Deve utilizar a resistência como uma ferramenta que possibilite aosalunossealfabetizarememsuaprópriacultura,tantoquantonoscódigosdasclassesdominantes.

Freire: A diferença entre os educadores reacionário e radical é que oreacionário quer saber sobre a resistência para dissimulá-la ou eliminá-la,enquantooradicalquersabersobrearesistênciaparacompreendermelhorodiscursoderesistência,parapropiciarestruturaspedagógicasquepossibilitemqueosalunosseemancipem.

Macedo: Você poderia falar agora sobre a segunda parte de minhapergunta:sobreafaltadedireçãodesuaspropostas?

Freire:Comoeducador,vocêsópodemanterumaatitudenãodiretiva,sevocêtentafazerumdiscursofalaz;istoé,umdiscursoapartirdaperspectivadaclassedominante.Somentenessediscursofalazumeducadorpodefalararespeitodeumafaltadedireção.Porquê?Creioqueissosedeveaquenãoháverdadeira educação sem uma diretriz. Na medida em que toda práticaeducativa transcende a simesma, supondo um objetivo a ser atingido, nãopodesernãodiretiva.Nãoexistepráticaeducacionalquenãoaponteparaumobjetivo;issoprovaqueanaturezadapráticaeducativatemumadireção.

Proponhoagoraumaquestãodeepistemologiaede filosofia.Anaturezadiretiva da prática educativa que conduz a determinado objetivo deve servivida pelos educadores e educandos. Em outras palavras, como pode secomportarumeducadornessapráticaeducativaemvistadanaturezadiretiva

Page 118: Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra

da educação? Em primeiro lugar, se esse educador defende, na prática, acélebreposiçãodaquelesque lavamasprópriasmãosquantoa taisquestões(algo como Pôncio Pilatos), ele lava as mãos e é como se dissesse: “Comorespeitoosalunosenãosoudiretivo,ecomoelessãoindivíduosquemerecemrespeito, devemdeterminar sua própria direção.”Esse educadornãonega anatureza diretiva da educação, que independe de sua própria subjetividade.Simplesmenterecusaasimesmoa tarefapedagógicaepolíticadeassumiropapeldesujeitodessapráticadiretiva.Recusa-seaconverterseuseducandosàquilo que considera correto. Esse educador, então, acaba por ajudar aestruturadepoder.

Que outros caminhos viáveis existem relativos à natureza diretiva daeducação? Outro caminho seria lutar contra a situação que acabo dedescrever, isto é, lutar contra o laissez-faire. O educador deve ajudar oseducandosaseenvolveremnoplanejamentodaeducação,ajudá-losacriaracapacidadecríticaparapensarsobreadireçãoeossonhosdaeducaçãoeparaparticipardessascoisas.

Oeducadorautoritárioestácerto,muitoemboranemsempreseexpliciteteoricamente, quando diz que não há educação que seja não diretiva. Nãodiscordodetalafirmação,masnãoaceitoqueadiretividadedaeducaçãofaçadoeducadornecessariamenteumautoritário.

A substantividadedemocrática, que é radical, se opõe ao espontaneísmolicenciosocomoàmanipulaçãoautoritária.

Naverdade,ocontráriopositivodoespontaneísmonãoéamanipulaçãocomoocontráriopositivodestanãoéoespontaneísmo.Ocontráriopositivodeamboséoquevenhochamandodesubstantividadedemocrática.Porissoéque,pornegarerecusaroautoritarismo,nãodevoserumeducadorlicenciosodamesmaformacomopornegarerecusaralicenciosidadenãodevoserumeducadorautoritário.

Emúltimaanálise,assumiradiretividadedaeducação,numaperspectivademocrática, implica, de um lado, jamais reduzir os educandos a merassombras, proibidas de voz, de outro, jamais anular a figura do educador,transformado,assim,numaausênciapresente.

Page 119: Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra

Notas47 Literalmente, poderia traduzir-se por algo como “volta ao fundamental”: significa a tendência, naeducação norte-americana, a dar ênfase ao ensino de habilidades como ler, escrever e contar, comdesprezoporoutrosobjetivospedagógicosdaescola.

48 JorgeCláudioNoelRibeiro,Afestadopovo:pedagogiadaresistência.Petrópolis:Vozes,1982.

Page 120: Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra

4ALFABETIZAÇÃOEPEDAGOGIACRÍTICA

Nos capítulos anteriores, desenvolvemos uma concepção da alfabetizaçãocomoformadepolíticacultural.Emnossaanálise,aalfabetizaçãotorna-seumconstrutosignificativoapontodeserencaradacomoumconjuntodepráticasqueatuamquerparaempower,querparadisempoweraspessoas.Nosentidomaisamplo,aalfabetizaçãoéanalisadaconformesirvaelaparareproduzirasformaçõessociaisexistentes,oucomoumconjuntodepráticasculturaisquepromovamamudançademocráticaeemancipadora.Nãosóoferecemosumateoria restaurada da alfabetização, como também análises concretas ehistóricasdecampanhasdealfabetizaçãoempaísescomooCaboVerde,SãoTomé e Príncipe, e Guiné-Bissau. Além disso, afirmamos que as línguasafricanas nativas desses países devem ser utilizadas nos programas dealfabetização, se se quiser que a alfabetização seja parte importante de umapedagogia emancipadora.Nos casos que analisamosminuciosamente, o usodoportuguês, em lugardas línguas africanasnativas,oudo crioulo, levouàreprodução de uma mentalidade elitista, neocolonialista. Neste capítulo,examinaremos com mais detalhe os programas de alfabetização à luz deteoriasdeproduçãoereproduçãocultural.Tambémsustentaremos,commaisvigor, a utilização da língua nativa como pré-requisito para odesenvolvimentodequalquercampanhadealfabetizaçãoquepretendaservircomoomeioparachegar-seaumaapropriaçãocríticadaprópriaculturaedaprópriahistória.

Nocorrerdosúltimosdezanos,aquestãodaalfabetizaçãoadquiriunovaimportânciaentreoseducadores.Infelizmente,odebatequesurgiuarespeitotende a ser uma reciclagem de velhos pressupostos e valores relativos aosignificado e à utilidade da alfabetização. A ideia de que a alfabetização équestão de aprender a língua padrão ainda permeia a enormemaioria dosprogramasdealfabetizaçãoemanifestasualógicanaênfaseque,novamente,sedáàleituratécnicaeàshabilidadesparaaescrita.

Page 121: Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra

Queremos reiterar, neste capítulo, que a alfabetização não pode serencarada simplesmente como o desenvolvimento de habilidades que vise àaquisiçãodalínguapadrãodominante.Essemododeversustentaumaideiadeideologiaque,sistematicamente,antesrejeitadoquetornasignificativasasexperiências culturais dos grupos linguísticos subalternos que são, demodogeral, o objeto de suas políticas. Para que a ideia de alfabetização ganhesignificado, deve ser situada dentro de uma teoria de produção cultural eencarada como parte integrante do modo pelo qual as pessoas produzem,transformame reproduzem significado.A alfabetizaçãodeve ser vista comoum meio que compõe e afirma os momentos históricos e existenciais daexperiênciavividaqueproduzemumacultura subalternaouvivida.Daí, serela um fenômeno eminentemente político e dever ser analisada dentro docontexto de uma teoria de relações de poder e de uma compreensão dareprodução e da produção social e cultural. Por “reprodução cultural”entendemos experiências coletivas que atuam no interesse dos gruposdominantes,enãonointeressedosgruposoprimidos,objetodesuaspolíticas.Empregamos“produçãocultural”paranosreferiradeterminadosgruposdepessoas que produzem, medeiam e confirmam os elementos ideológicoscomuns que emergem de suas experiências vividas diariamente e que asreafirmam. Neste caso, essas experiências originam-se nos interesses daautodeterminaçãoindividualecoletiva.

Essaposturateóricaestásubjacenteaoexamequefazemosdamaneirapelaqualossistemasdeensinopúblico,nasex-colôniasportuguesasdaÁfrica,têmdesenvolvido políticas educacionais visando a eliminar a taxa deanalfabetismo terrivelmente alta herdada do Portugal colonialista. Essaspolíticas destinam-se a erradicar o legado educacional colonial, que tinhacomo dogma principal a desafricanização total daqueles povos. A educaçãonaquelascolôniaseradiscriminatória,medíocreebaseadanoverbalismo.Nãopodia contribuir em nada para a reconstrução nacional, pois não foraconstituída com esse propósito. A escola era antidemocrática em seusmétodos, em seu conteúdo, em seus objetivos. Divorciada da realidade dopaís, era, por issomesmo, uma escola para umaminoria e, assim, contra amaioria.

Antes da independência desses países, em 1975, as escolas funcionavamcomo locais políticos em que as iniquidades de classe, sexo e raça eram

Page 122: Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra

produzidasereproduzidas.Emsuaessência,aestruturaeducacionalcolonialera utilizada para inculcar, nos nativos africanos,49 mitos e crenças queanulavamedepreciavamsuasexperiênciasvividas,suahistória,suaculturaesua língua. As escolas eram consideradas fontes purificadoras em que osafricanos podiam ser salvos de sua ignorância profundamente arraigada, desua cultura “selvagem” e de sua língua abastardada que, segundo algunsestudiososportugueses,eraumaformacorrompidadoportuguês“semregrasgramaticais(elasnãopodemsequerseraplicadas)”.50

Essesistemanãopodiafazeroutracoisasenãoreproduzir,nascriançasenosjovens,aimagemquedeleshaviacriadoaideologiacolonial,asaber,adeseresinferiores,semcapacidadeparanada.

Por um lado, a escola, nessas colônias, era usada com o propósito dedesenraizar os nativos de sua cultura; por outro lado, aculturava-os a ummodelo colonial preestabelecido. Escolas desse feitio funcionavam “comopartedeumaparatoideológicodoEstadodestinadoaassegurarareproduçãoideológica e social do capital e de suas instituições, cujos interesses sealicerçamnadinâmicadaacumulaçãodecapitalenareproduçãodaforçadetrabalho”.51 Essa força de trabalho instruída das ex-colônias portuguesascompunha-se principalmente de funcionários de nível inferior, cujas tarefasmaisimportanteseramapromoçãoeamanutençãodostatusquo.Seupapeladquiriu uma dimensão nova e importante quando foram utilizados comointermediários para, além disso, colonizar as possessões portuguesas naÁfrica.Assim,as escolas coloniais forambem-sucedidas,namedidaemquecriaram uma classe pequeno-burguesa de funcionários que haviaminternalizado a crença de que se haviam tornado “brancos”, ou “negros dealmabranca”e,porisso,eramsuperioresaoscamponesesafricanosqueaindapraticavamoqueseconsideravaumaculturabárbara.

Esse processo de assimilação penetrou até o nível mais profundo deconsciência, especialmente na classe burguesa. A respeito do tornar-se“branco”, lembramo-nos,porexemplo,docasodeumcabo-verdianonegro,tãopreocupadocomsuanegrura,quepagouaumrespeitávelcabo-verdianobranco para expedir um decreto proclamando-o branco. O homem,jocosamente,escreveuparaelenumpedaçodepapel“Dja’nbrancodja”,oquesignifica“Fui,pormeiodeste,declaradobranco”.

Page 123: Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra

Após a independência e na reconstrução de uma nova sociedade nessespaíses, as escolas assumiram, como tare-fa mais importante, a de“descolonizaçãodamentalidade”, comoadenominaAristidesPereira, equeAmílcarCabral chama de “reafricanização damentalidade”. É evidente quetantoPereiraquantoCabraltinhambemconsciênciadanecessidadedecriarumsistemadeensinoemqueseformulasseumanovamentalidadepurgadadetodososvestígiosdecolonialismo;sistemadeensinoquepermitissequeaspessoasseapropriassemdesuahistória,desuaculturaedesualíngua;sistemadeensinoemqueera imprescindível reformularosprogramasdegeografia,história e de língua portuguesa, mudando todos os textos de leitura queestavam tãovisceralmente impregnadosda ideologia colonialista.Constituíaprioridadeabsolutaqueosalunosestudassemsuaprópriageografia,enãoadePortugal,osbraçosdemarenãoorioTejo.Eraabsolutamentenecessárioque estudassem a própria história, a história da resistência de seu povo aoinvasor e da luta por sua libertação, que lhes devolveu o direito de fazer aprópriahistória—nãoahistóriadePortugaledasintrigasdacorte.

A proposta de incorporar às escolas uma pedagogia radical foi recebidacompoucoentusiasmonessespaíses.Queremosmostrarqueadesconfiançademuitoseducadoresafricanosestáprofundamenteenraizadanaquestãodalíngua (africana versus portuguesa) e levou à criação de uma campanha dealfabetizaçãoneocolonialistasobabandeirasuperficialmenteradicaldeacabarcomoanalfabetismonasnovas repúblicas.Asdificuldadesde reapropriaçãoda cultura africana foram aumentadas pelo fato de que o veículo utilizadoparaessalutafoialínguadocolonizador.Comosustentaremosnestecapítulo,aatualcampanhadealfabetizaçãonessespaísespreocupa-se,principalmente,com a criação de alfabetizados funcionais em língua portuguesa. Nãomaisfundamentada no capital cultural dos africanos subalternos, o programadeixou-se tomar por abordagens da alfabetização de caráter positivista einstrumental, preocupadas principalmente com a aquisição mecânica dehabilidadesnalínguaportuguesa.52

Antes de discutirmos a política de um programa de alfabetizaçãoemancipadora na África, ou alhures, gostaríamos de discutir diversasabordagensdaalfabetização.Emprimeiro lugar,discutiremosasabordagensfiliadas a uma escola positivista e vinculadas ao processo de reproduçãocultural.Aseguir,analisaremosopapeldalínguanoprocessodereprodução.

Page 124: Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra

Finalmente,mostraremosqueaúnicaabordagemdaalfabetizaçãocompatívelcomaconstruçãodeumasociedadeanticolonialnovaéaquesealicerçanadinâmicadaproduçãocultural equeéanimadaporumapedagogia radical.Ou seja, o programa de alfabetização de que se precisa é aquele que há derepresentarumaafirmaçãodopovooprimidoepermitir-lherecriaraprópriahistória, cultura e língua; aquele que, ao mesmo tempo, ajude a levar osindivíduos assimilados, que se sentem cativos da ideologia colonial, a“cometersuicídiodeclasse”.

ABORDAGENSDAALFABETIZAÇÃO

Quase sem exceção, as abordagens tradicionais da alfabetização estiveramprofundamente arraigadasnummétodopositivistadepesquisa.Comefeito,isso tem resultado numa postura epistemológica em que se exaltam o rigorcientíficoeorefinamentometodológico,enquanto“ateoriaeoconhecimentosão subordinados aos imperativos da eficiência e da mestria técnica, e ahistória,reduzidaaumamençãodemenorimportânciaentreasprioridadesdapesquisacientífica‘empírica’”.53Demodogeral,essaabordagemabstraiasquestões metodológicas dos respectivos contextos ideológicos e,consequentemente,ignoraainter-relaçãoentreasestruturassociopolíticasdeuma sociedade e o ato de ler. Em parte, a exclusão das dimensões social epolítica da prática da leitura dá origem a uma ideologia de reproduçãocultural,aquelaqueencaraosleitorescomo“objetos”.Écomoseseuscorposconscientesestivessemabsolutamentevazios,esperandoserpreenchidospelapalavra do professor. Embora seja importante analisar de que modo asideologias enformam as diversas tradições de leitura, limitaremos nossadiscussão, neste capítulo, a uma breve análise das mais importantesabordagens da alfabetização, vinculando-as ou à reprodução cultural, ou àproduçãocultural.

AABORDAGEMACADÊMICADALEITURA

Éduploopropósitoatribuídoà leiturana tradiçãoacadêmica.Emprimeirolugar, a base racional dessa abordagem “deriva das definições clássicas dohomem letrado—perfeitamenteversadonos clássicos, articuladono falar eno escrever e ativamente engajado em atividades intelectuais”.54 Essa

Page 125: Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra

abordagem da leitura tem servido primordialmente aos interesses da elite.Nestecaso,aleituraéencaradacomoaaquisiçãodeformaspreestabelecidasdeconhecimentoeorganiza-seemtornodoestudodolatimedogregoedodomínio das grandes obras clássicas. Em segundo lugar, uma vez que seriairrealistaesperarqueagrandemaioriadasociedadeatendesseapadrões tãoelevados,redefiniu-sealeituracomoaaquisiçãodehabilidadesdeleituraededecodificação, desenvolvimento de vocabulário, e assim por diante. Essesegundofundamentoracionalserviuparalegitimarumaduplaabordagemdaleitura: um nível para a classe dirigente, outro para amaioria despossuída.SegundoGiroux (Theory and Resistance in Education): “Esta segunda ideiaajusta-se principalmente aos alunos oriundos da classe trabalhadora, cujocapital cultural é considerado menos compatível e, portanto, inferior, emtermos de complexidade e valor, ao conhecimento e valores da classedominante.”

Essa dupla abordagem acadêmica da leitura é, por seu próprio caráter,inerentemente alienadora. Por um lado, ignora a experiência de vida, ahistóriaeapráticalinguísticadosalunos.Poroutro,dádemasiadaênfaseaodomínio e à compreensão da literatura clássica e à utilização de materialliterário como “veículos para exercícios de compreensão (literal einterpretativa),paraodesenvolvimentodevocabulárioeparaashabilidadesdeidentificaçãodepalavras”.55Assim,aalfabetização ficadespojadadesuasdimensõessociopolíticas;funciona,naverdade,parareproduzirosvaloreseosignificadodominantes.Nãocontribuidenenhummodosignificativoparaaapropriaçãodahistória,daculturaedalinguagemdaclassetrabalhadora.

AABORDAGEMUTILITARISTADALEITURA

Ameta principal da abordagemutilitarista é produzir leitores que atendamaosrequisitosbásicosde leituradasociedadecontemporânea.Adespeitodeseuatrativoprogressista,essaabordagemenfatizaoaprendizadomecânicodehabilidades de leitura, ao mesmo tempo que sacrifica a análise crítica daordem social e política quedáorigemànecessidadede leitura emprimeirolugar.Essaposiçãolevouaodesenvolvimentodos“alfabetizadosfuncionais”,treinados primordialmente para atender aos requisitos de nossa sociedadetecnológica cada vezmais complexa. Essemodo de ver não é característicoapenas dos países industrializados avançados do Ocidente; mesmo no

Page 126: Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra

TerceiroMundo,aalfabetizaçãoutilitaristatemsidodefendidacomoveículopara a melhoria econômica, acesso ao trabalho e aumento do nível deprodutividade.Como foi formuladoclaramentepelaUnesco, “osprogramasde alfabetização devem, preferencialmente, estar vinculados a prioridadeseconômicas. Devem transmitir não só leitura e escrita, como tambémconhecimento profissional e técnico, levando com isso a uma participaçãomaisplenadosadultosnavidaeconômica”.56

Essa ideiadealfabetização foi incorporadaentusiasticamentecomometada maior importância pelos defensores da abordagem back-to-basics daleitura.Contribuiu,também,paraodesenvolvimentodeprogramasdeleiturasob a clara forma de “pacotes”, apresentados como solução para asdificuldades que os alunos experimentam na leitura de formulários desolicitação de emprego, ou de impostos, textos de publicidade, catálogos devendas,rótulosecoisassemelhantes.Demodogeral,aabordagemutilitaristaencaraaalfabetizaçãocomoalgoqueatendeàsexigênciasbásicasdeleituradeumasociedadeindustrializada.ComoassinalaGiroux:

Aalfabetização,dentrodessaperspectiva,funcionabemparafazeradultosmais produtivos como trabalhadores e cidadãos numa dada sociedade. Adespeitodeseuapeloàmobilidadeeconômica,aalfabetizaçãofuncionalreduzo conceitode alfabetização, e apedagogia a que ele se ajusta, aos requisitospragmáticosdocapital;consequentemente,asnoçõesdepensamentocrítico,culturaepoderdesaparecemsobosimperativosdoprocessodetrabalhoedanecessidadedeacumulaçãodecapital.57

ABORDAGEMDALEITURADOPONTODEVISTADODESENVOLVIMENTOCOGNITIVO

Enquanto as abordagens acadêmica e utilitarista da leitura enfatizam odomínio das habilidades de leitura e encaram os leitores como “objetos”, omodelo de desenvolvimento cognitivo dá destaque à construção dosignificadopelo qual os leitores se envolvemnuma interaçãodialética entreeleseomundoobjetivo.Emboraaaquisiçãodehabilidadesdealfabetizaçãoseja encarada como tarefa importante nessa abordagem, a característicamarcante é omodo pelo qual as pessoas constroem o significadomedianteprocessosde soluçãodeproblemas.A compreensãodo texto fica relegada aposição de menor importância em benefício do desenvolvimento de novas

Page 127: Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra

estruturas cognitivas que podem capacitar os alunos a caminhar de tarefassimplesde leiturapara tarefasaltamentecomplexas.Esseprocessode leituraestáextremamente influenciadopelasprimeirasobrasdeJohnDewey,etemtomado forma em termos do desenvolvimento das estruturas cognitivaspiagetianas. Segundo o modelo de desenvolvimento cognitivo, a leitura éencarada como um processo intelectual, “mediante uma série de etapas dedesenvolvimentofixas,nãovalorativaseuniversais.58

Dessemodo, omodelo do desenvolvimento cognitivo evita a crítica dasvisõesacadêmicaeutilitaristadaleituraedeixadeconsideraroconteúdodoqueélido.Emlugardisso,dáênfaseaumprocessoquepermitequeosalunosanalisemecritiquemasquestõeslevantadasnotextocomumnívelcrescentede complexidade. Raramente, porém, essa abordagem se preocupa comquestõesdereproduçãocultural.Umavezqueocapitalculturaldosalunos—isto é, sua experiência de vida, sua história e sua linguagem— é ignorado,dificilmenteelesserãocapazesdeengajar-senumareflexãocríticacompleta,com respeito à própria experiência prática e aos fins que osmotivampara,finalmente,organizaremsuasdescobertase,dessemodo,substituíremameraopiniãoarespeitodosfatosporumacompreensãocadavezmaisrigorosadesuasignificação.

AABORDAGEMROMÂNTICADALEITURA

Como o modelo do desenvolvimento cognitivo, a abordagem românticabaseia-se numa abordagem interacionista centrada principalmente naconstrução do significado; contudo, a abordagem romântica encara osignificadocomosendogeradopeloleitorenãocomosedandonainteraçãoentre o leitor e o autor via texto. A modalidade romântica enfatizaenormemente o afetivo e encara a leitura como a satisfação do ego e comoumaexperiênciaprazerosa.Certoautorexaltou“o íntimoreavivardenovasvisõesdapersonalidadeedavidaimplícitonaobra(deliteratura);oprazereorelaxamentodastensõesquepodemfluirdeumaexperiênciacomoessa,[…]oaprofundamentoeaampliaçãodasensibilidadeparaaqualidadesensualeoimpactoemocionaldaexistênciaquotidiana”.59

Em sua essência, a abordagem romântica da leitura apresenta umcontrapontoàsmodalidadesautoritáriasdepedagogiaqueencaramosleitores

Page 128: Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra

como “objetos”. Contudo, essa abordagem aparentemente liberal daalfabetizaçãodeixadeproblematizaroconflitodeclasseeasdesigualdadesdesexo e de raça. Mais ainda, o modelo romântico ignora completamente ocapitalculturaldosgrupossubalternosesupõequetodasaspessoastêmigualacesso à leitura, ou que essa leitura faz parte do capital cultural de todas aspessoas. Como deixa de levantar questões de capital cultural e de diversasdesigualdades estruturais, isso significa que o modelo romântico tende areproduzir o capital cultural da classe dominante a que a leitura estáintimamente vinculada. É impertinente e ingênuo esperar queumalunodaclasse trabalhadora, confrontado e vitimado por infinitas desvantagens,encontrealegriaeautoafirmaçãoapenaspelaleitura.Maisimportante,porém,équeatradiçãoromânticadeixadevincularaleituraàsrelaçõesassimétricasde poder dentro da sociedade dominante, relações essas que não sóestabelecem e legitimam determinadas abordagens à leitura, mas tambémdisempowerdeterminadosgrupos,excluindo-osdesseprocesso.

Até este ponto, temos mostrado que todas essas abordagens daalfabetização têm deixado de proporcionar um modelo teórico paraempowering os agentes históricos com a lógica da autodeterminaçãoindividualecoletiva.Emboraessasabordagenspossamdivergirquantoaseuspressupostosbásicosarespeitodaalfabetização,todaselascompartilhamumtraçocomum:todaselasignoramopapeldalinguagemcomoforçadamaiorimportância na construção das subjetividades humanas. Isto é, ignoram omodo pelo qual a linguagem pode confirmar ou rejeitar as histórias e asexperiênciasdevidadaspessoasqueaempregam.Issosetornamaisevidenteemnossaanálisedopapeldalínguanosprogramasdealfabetização.

OPAPELDALÍNGUANAALFABETIZAÇÃO

Nesta seção, vamos recorrer, na maioria das vezes, a campanhas em ex-colôniasportuguesasnaÁfricadequeparticipamos,diretaouindiretamente,edasquais,posteriormente,acompanhamosodesenvolvimentonocorrerdosanos. Muito embora frequentemente venhamos a fazer referência a essasexperiências de alfabetização, acreditamos, contudo, que as questões quelevantamos a respeito do papel da língua na alfabetização podem sergeneralizadas para qualquer contexto linguístico em que existam relaçõesassimétricasdepoder.

Page 129: Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra

Osprogramasdealfabetizaçãonasex-colôniasportuguesasdaÁfricatêmsido perturbados pela permanente discussão a respeito de se a língua deinstrução deve ser a língua oficial portuguesa ou as línguas nativas. Essadiscussão,porém,ocultaquestõesdenaturezamaisgrave,queraramentesãolevantadas.IssoestádeacordocomaafirmaçãodeGramscideque:“Acadamomentoemque,deummodooudeoutro,aquestãodalínguapassaparaoprimeiroplano,istosignificaqueumasériedeoutrosproblemasestáprestesasurgir, a formação e ampliação da classe dominante, a necessidade deestabelecerrelaçõesmais‘íntimas’esegurasentreosgruposdominanteseasmassas populares nacionais, ou seja, a reorganização da hegemoniacultural.”60AafirmaçãodeGramsciiluminaaquestãosubjacenteaosdebatesarespeitodalínguanascampanhasdealfabetizaçãoquetemosdiscutidonestelivro,debatesemquenãoháaindaacordosobresealínguanativaérealmenteadequadaparaserumalínguadeensino.Esseseducadoresutilizam,repetidasvezes, a falta de uniformidade ortográfica das línguas africanas comoargumentoparajustificarsuaatualpolíticadeutilizaçãodoportuguêscomooúnicomeiodeensinodeleitura.Aquestãoquelevantaméadeemquedialetotal ortografia deveria basear-se.Contudo, o argumentomais comumé odeque a língua portuguesa possui status internacional e, por isso, assegura amobilidadeascendenteaosafricanosinstruídosemportuguês.

Atristerealidadeéque,emboraoensinoemportuguêspropicieoacessoapostos de poder político e econômico para o alto escalão da sociedadeafricana, ele seleciona negativamente a maior parte das massas, que nãoconsegue aprender o português suficientemente bem para adquirir aalfabetizaçãonecessáriaparaprogredirsocial,econômicaepoliticamente.Aooferecer um programa de alfabetização executado na língua doscolonizadores,visandoàreapropriaçãodaculturaafricana,esseseducadoresdesenvolveram,naverdade,novas estratégiasmanipulativasque alicerçamamanutençãodadominaçãoculturalportuguesa.Oqueseoculta,nessespaíses,sob o debate a respeito da língua é possivelmente uma resistência àreafricanização, ou, talvez, uma sutil recusa por parte dos africanosassimilados,a“cometersuicídiodeclasse”.

As implicaçõespedagógicasepolíticasdessesprogramasdealfabetizaçãosão de longo alcance e, contudo, amplamente ignoradas. Os programas deleitura contradizem, muitas vezes, um princípio fundamental da leitura, a

Page 130: Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra

saber, que os alunos aprendem a ler mais depressa e com melhorcompreensão quando ensinados em sua língua nativa. O reconhecimentoimediatodepalavraseexperiênciasfamiliaresacentuaodesenvolvimentodeumautoconceitopositivonascriançasquesãoalgoinsegurasquantoaostatusde sua língua e cultura. Por essa razão, e para ser coerente comoplanodeconstrução, nessas ex-colônias, de uma nova sociedade livre de vestígios decolonialismo,umprogramadealfabetizaçãodeveriatercomobaseracionalofatodequeumprogramadesse tipodeveestarenraizadonocapitalculturaldosafricanossubalternoseter,comopontodepartida,alínguanativa.

Os educadores devem desenvolver estruturas pedagógicas radicais quepropiciemaosalunosaoportunidadedeutilizarsuaprópriarealidadecomobase para a alfabetização. Isso inclui, evidentemente, a língua que trazemconsigopara a salade aula.Agirdeoutramaneira seránegar aos alunososdireitosqueestãonocernedanoçãodeumaalfabetizaçãoemancipadora.Senãoseconseguirbasearumprogramadealfabetizaçãona línguanativa, issosignificaqueforçascontráriaspodemneutralizarosesforçosdoseducadoresedos líderes políticos para conseguir a descolonização das mentes. Oseducadores e os líderes políticos devem reconhecer que “a língua é,inevitavelmente, uma das principais preocupações de uma sociedade que,libertando-se do colonialismo e recusando-se a ser arrastada para umneocolonialismo, busca a própria recriação. Na luta para recriar umasociedade, a reconquista, pelo povo, de seu próprio mundo torna-se fatorfundamental”.61Édamáximaimportânciaquesedêamaisaltaprioridadeàincorporação da língua dos alunos como língua principal de ensino naalfabetização.Pormeiodapróprialínguaéqueserãocapazesdereconstruiraprópriahistóriaeaprópriacultura.

Nesse sentido, a língua dos alunos é o único meio pelo qual podemdesenvolver sua própria voz, pré-requisito para o desenvolvimento de umsentimentopositivodoprópriovalor.ComoafirmaGirouxadmiravelmente,avozdosalunos“éomeiodiscursivoparaquese façam ‘ouvir’ eparaquesedefinam como autores ativos do próprio mundo”.62 A autoria do própriomundo, que também implicaria a própria língua, significa o que MikhailBakhtindefinecomo“recontarumahistóriaemsuasprópriaspalavras”.

Page 131: Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra

Emboraoconceitodevozseja fundamentalnodesenvolvimentodeumaalfabetização emancipadora, a meta nunca deve restringir os alunos aopróprioidiomalocal.Essarestriçãolinguísticaconduzinevitavelmenteaumgueto linguístico. Os educadores precisam compreender plenamente osignificadomaisamplodeempowermentdoaluno.Istoé,empowermentnãodeve jamais limitar-se ao que Aronowitz descreve como “o processo deapreciar-seeamar-seasimesmo”.63Alémdesseprocesso,empowermentdeveser também um meio de possibilitar que os alunos “examinem e,seletivamente,apropriem-sedaquelesaspectosdaculturadominantequelhesoferecerãoabaseparadefinir e transformaraordemsocialmais ampla, emvezde simplesmente servir a ela”.64 Isso significaqueoseducadoresdevementender o valor dedominar a línguapadrãodominanteda sociedademaisampla. Através da plena apropriação da língua padrão dominante é que osalunosseveemlinguisticamenteempoweredparaengajar-senodiálogocomosdiversossetoresdasociedademaisampla.Oquegostaríamosdereiteraréqueoseducadoresjamaisdevempermitirqueavozdosalunossejasilenciadapor uma legitimaçãodeformadada língua padrão.A voz dos alunos jamaisdevesersacrificada,umavezqueelaéoúnicomeiopeloqualelesdãosentidoàprópriaexperiêncianomundo.

A discussão sobre se as línguas africanas são menos adequadas comolínguas de ensino, se são línguas limitadas ou elaboradas, põe em foco aquestãodeseoportuguêsé,defato,umalínguasuperior.Maisimportanteéqueessascategoriaslinguísticasapoiam-senaquestãotécnicadeseaslínguasafricanassãosistemasválidosequetêmregras.Apesardaanálisesincrônicaediacrônicademuitasdessaslínguas,restaaindaofatodequeelascontinuamnuma posição estigmatizada e subalterna. Afirmamos que as línguas dosalunosdevemsercompreendidasdentrodoquadrodereferênciateóricoquelhes dá origem. Em outras palavras, o significado e o valor básicos dessaslínguas não serão encontrados pela determinação de quão sistemáticas egovernadasporregrassejamelas.Issojásabemos.Seuverdadeirosignificadodevesercompreendidopelospressupostosqueasorientam,eelasdevemsercompreendidas mediante as relações sociais, políticas e ideológicas quesugerem. De um modo geral, a questão de se são sistemáticas e eficazesescondemuitasvezesoverdadeiropapeldalínguanamanutençãodosvaloresedosinteressesdaclassedominante.Emoutraspalavras,aquestãodesesão

Page 132: Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra

sistemáticaseeficazestorna-seumamáscaraquedissimulaquestõesarespeitoda ordem social, política e ideológica dentro da qual existem as línguassubalternas.

Sesequiserdesenvolverumprogramadealfabetizaçãoemancipadoranasex-colôniasportuguesasdaÁfrica,ouemqualqueroutraparte,programaemque os leitores se tornem “sujeitos” e não “objetos”, os educadores devemcompreenderaqualidadeprodutivadalíngua.Nestesentido,

Entendoquealínguaéprodutivaenãorefletivadarealidadesocial.Issosignificaquestionaropressuposto de que nós, como sujeitos falantes, usamos a língua apenas para organizar eexpressar ideias e experiências. Ao contrário, a língua é uma das práticas sociais maisimportantes,medianteaqualsomoslevadosanossentircomosujeitos.Oqueestoucolocandoé que, uma vez que ultrapassemos a ideia de língua como não mais do que um meio decomunicação,mascomouminstrumentodisponível,demaneiraequitativaeneutra,atodasaspartes envolvidas em intercâmbios culturais, podemos, então, começar a examinar a línguatanto como uma prática de significação como também como um sitio para a luta cultural ecomoummecanismoqueproduzrelaçõesantagônicasentregrupossociaisdiferentes.65

À relação antagônica entre falantes africanos e portugueses é que agoranósqueremos voltar.Anatureza antagônicadas línguas africanasnunca foiplenamente explorada. Para discutir com mais clareza essa questão doantagonismo, utilizaremos a distinção nossa entre língua oprimida e línguareprimida.Usandonossascategorias,omodo“negativo”deproporaquestãodalínguaéencará-laemtermosdeopressão—ouseja,veralínguadosalunoscomo“carente”dascaracterísticasdalínguadominante,aqualhabitualmenteé utilizada como ponto de referência para discussão e/ou avaliação.Decididamente, as questões mais comuns relativas à língua dos alunos sãopropostas a partir da perspectiva da opressão.A visão alternativa da línguadosalunoséadequeelaéreprimidanalínguapadrãodominante.Segundoestavisão,alínguasubalterna,comolínguareprimida,poderia,sefossefalada,desafiarodomínio linguísticoprivilegiadoda línguapadrão.Os educadorestêmdeixadodereconhecerapromessa“positiva”eanaturezaantagônicadaslínguassubalternas.Exatamentenessasdimensõeséqueoseducadoresdevemdesmistificaropadrãodominanteeosvelhospressupostosarespeitodesuasuperioridade implícita.Oseducadoresdevemdesenvolverumprogramadealfabetizaçãoemancipadoraenformadoporumapedagogiaradical,demodoquealínguadosalunosdeixedeproporcionaraseusfalantesaexperiênciade

Page 133: Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra

subordinaçãoe,aindamais,possaserbrandidacomoumaarmaderesistênciaàdominaçãodalínguapadrão.

Comoafirmamosanteriormente,asquestõeslinguísticaslevantadasnestecapítuloeemtodoestelivronãoselimitamaospaísesemdesenvolvimentodaÁfricaedaAméricaLatina.Asrelaçõesassimétricasdepodercomreferênciaao uso da língua predominam também nas sociedades altamenteindustrializadas. Por exemplo, o Movimento pelo Inglês Norte-americano,nos Estados Unidos, encabeçado pelo ex-senador da Califórnia, S. I.Hayakawa, chama a atenção para uma cultura xenofóbica que rejeitacegamenteanaturezapluralistadasociedadedosEstadosUnidosefalsificaasprovas empíricas que fundamentam a educação bilíngue, como tem sidoamplamente documentado.66 Esses educadores, entre os quais o atualMinistrodaEducação,WilliamJ.Bennett,nãoconseguemcompreenderqueémediante osmúltiplos discursos que os alunos geram o significado de seuscontextossociaisdodiaadia.Semcompreenderosignificadodesuarealidadesocialimediata,émaisdifícilcompreenderasrelaçõesqueelesmantêmcomasociedademaisampla.

Demodogeral,osdefensoresdo inglêsdosEstadosUnidosbaseiamsuacrítica à educação bilíngue em resultados de avaliação quantitativa que são“produto de um determinado modelo de estrutura social que ajusta osconceitosteóricosàpragmáticadasociedadeque,primeiramente,delineouomodelodeavaliação”.67Ouseja,seosresultadossãoapresentadoscomofatosdeterminadosporumdadoquadrode referência ideológico, esses fatosnãopodem,porsisós,fazer-nosiralémdessequadrodereferência.68Prevenimosos educadores de que essesmodelos de avaliação podem oferecer respostasquesãocorretase,nãoobstante,despidasdeverdade.Umestudoqueconcluaqueosalunosprovenientesdeminorias linguísticasnosEstadosUnidostêmdesempenhoemlínguainglesa inferioraoutrosalunosdogrupodominanteestá correto; porém essa resposta nos diz muito pouco a respeito dascondiçõesmateriais com que esses alunos deminorias linguísticas e raciaisatuam na luta contra o racismo, a discriminação educacional e a rejeiçãosistemáticadesuashistórias.

O comentário de Bennett de que apenas o inglês “pode garantir que asescolasmunicipaisserãobem-sucedidasnoensinodoinglêsaalunosdefala

Page 134: Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra

não inglesa, de modo que eles [desfrutem] do acesso às oportunidades dasociedadenorte-americana”,sugereumapedagogiadeexclusãoqueencaraoensinodoinglêscomoaprópriaeducação.Aestaaltura,gostaríamosdefazerduasperguntasfundamentais:1.seoinglêséalínguadeensinomaiseficiente,comoexplicarquemaisde60milhõesdenorte-americanossejamanalfabetos,ou funcionalmenteanalfabetos?69 2. seunicamente o ensino em inglês podegarantir um futuromelhor àsminorias linguísticas, como asseguraBennett,porqueamaioriadosnorte-americanosnegros,cujosancestraisvêmfalandoinglêshámaisdeduzentosanos,encontram-seaindarelegadosaosguetos?

Cremosquearespostanãoestánasquestõestécnicasdeseoinglêséumalínguamais aperfeiçoada e viável para o ensino. Essa posição sugeriria umpressupostodequeoinglêsé,defato,umalínguasuperior.Queremossugerirque a resposta se encontra numa compreensão plena dos elementosideológicosquedãoorigemesustentaçãoàdiscriminaçãolinguística,racialesexual.

AlgunsdesseselementosideológicossãoexpostossucintamentenoestudodeLukas,de1985,sobredessegregaçãoescolarnasescolaspúblicasdeBoston(CommonGround).Porexemplo,elecitaumaviagemàescolasecundáriadeCharlestown,ondeumgrupodepaisnegrossentiuemprimeiramãoadurarealidadequeseusfilhosestavamdestinadosasuportar.Emboraodiretordaescola lhes garantisse que “não seriam toleradas violência, intimidação ouofensas raciais”, eles não puderam deixar de ver, nas paredes, os epítetosraciais: “Boas-vindas, negrada”, “negros veados”, “Poder Branco”, “KKK”,“Ônibus para os Zulu” e “Seja analfabeto; lute contra o transporteobrigatório”. Quando esses pais estavam entrando no ônibus, sofreramchacotas e vaias: “Dá o fora, negrada. Vão duma vez até a África!” Essaintolerância racial fez comqueumdos pais pensasse: “Deusmeu, para queespéciedeinfernoestoumandandomeusfilhos?”Oqueseusfilhospoderiamaprendernumaescolacomoessaanãoseródio?70Muitoemboraaintegraçãocompulsóriade escolas emBostonexacerbasse as tensões raciaisnas escolaspúblicas daquela cidade, não se devemenosprezar o arraigado racismo quepermeiatodososníveisdaestruturaescolar.SegundoLukas:

MesmodepoisdeElvira“Prixie”PaladinotersidoeleitaparaaComissãodeEnsinodeBoston,ouviu-sequandoresmungavaarespeitode“animaizinhosselvagens”ou“crioulinhos”.EJohn“Bigga” Kerrigan [também eleito para a Comissão de Ensino] orgulhava-se pelo ataque

Page 135: Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra

imoderadoque fazia (“vá láqueeusejaofensivo,maspelomenossoucoerentenasofensas”)especialmentedirigidoaosnegros(“selvagens”)eaosmeiosdecomunicaçãoliberais(“vermesfilhosdamãe”)eaLemTucker,correspondentenegrodaABCNews,queKerrigandescreviacomo“descendentediretodosquesebalançavamnosgalhosdasárvores”,observaçãoqueeleilustravaerguendoosbraçosecoçandoossovacos.71

Nessapaisagemderacismoviolentoperpetradocontraminoriasraciaise,também,contraminoriaslinguísticas,pode-secompreenderasrazõesdealtataxa de “evasão” das escolas públicas de Boston (cerca de 50%). Talvez oracismoeoutroselementosideológicosfaçampartedeumarealidadeescolarqueobrigaumaaltaporcentagemdealunosaabandonaraescolapara,depois,seremdescritos pelo próprio sistema comodesistentes, ou “alunos pobres esemmotivação”.

ALFABETIZAÇÃOEMANCIPADORA

Paramanter certa coerência com o plano revolucionário de reconstruirsociedadesnovasedemocráticas,oseducadoreseoslíderespolíticosprecisamcriar uma nova escola alicerçada em nova práxis educativa, que expresseconceitos diferentes de educação em consonância com o plano para asociedadecomoumtodo.Paraqueissosedê,oprimeiropassoéidentificarosobjetivos da educação dominante herdada. A seguir, é necessário analisarcomo funcionam os métodos utilizados pelas escolas dominantes, comolegitimam os valores e significados dominantes e como, ao mesmo tempo,rejeitam a história, a cultura e as práticas linguísticas damaioria de alunossubalternos.Aescolanova,afirma-se,deve tambémserenformadaporumapedagogia radical, aqual tornariaconcretosvalores taiscomosolidariedade,responsabilidade social, criatividade, disciplina a serviço do bem comum,vigilância e espírito crítico. Característica importante de um novo planoeducacional é o desenvolvimento de programas de alfabetização radicadosnumaideologiaemancipadora,emqueosleitoressetornem“sujeitos”enãosimples “objetos”. O novo programa de alfabetização precisa afastar-se dasabordagens tradicionais que realçam a aquisição de habilidades mecânicas,enquanto separam a leitura de seus contextos ideológicos e históricos. Natentativadeatingiressameta,eledeve,deliberadamente,rejeitarosprincípiosconservadoresqueimpregnamasabordagensdaalfabetizaçãoquediscutimosanteriormente. Infelizmente, muitos dos novos programas de alfabetizaçãomuitasvezesreproduzem,semosaber,umtraçocomumàquelasabordagens,

Page 136: Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra

ao ignorararelação importantequeexisteentrea línguaeocapitalculturaldaspessoasparaasquaissedestinaoprogramadealfabetização.Resultadaíuma campanha de alfabetização cujos pressupostos básicos não condizemcomoespíritorevolucionárioquealançou.

Osnovosprogramasdealfabetizaçãodevemfundamentar-seamplamentena ideia de alfabetização emancipadora, segundo a qual a alfabetização éencarada “como um dos veículos mais importantes pelos quais o povo‘oprimido’ é capaz de participar da transformação sócio-histórica de suasociedade”.72 Dessa perspectiva, os programas de alfabetização não devemestar ligadosapenasàaprendizagemmecânicadehabilidadede leitura,mas,adicionalmente, a uma compreensão crítica das metas mais gerais dareconstruçãonacional.Dessemodo, o desenvolvimento, pelo leitor, deumacompreensãocríticadotextoedocontextosócio-históricoaqueelesereferetorna-sefatorimportanteparanossaideiadealfabetização.Nestecaso,oatodeaprenderalereescreveréumatocriativoqueimplicaumacompreensãocrítica da realidade.O conhecimento de um conhecimento anterior, obtidopeloseducandoscomoresultadodaanálisedapráxisemseucontextosocial,abre para eles a possibilidade de um novo conhecimento. O novoconhecimento revela a razão de ser que se encontra por detrás dos fatos,desmitologizando,assim,as falsas interpretaçõesdessesmesmosfatos.Dessemodo, deixa de existir qualquer separação entre pensamento-linguagem erealidade objetiva.A leitura deum texto exige agora uma leitura dentrodocontextosocialaqueeleserefere.

Neste sentido, a alfabetização se alicerça numa reflexão crítica sobre ocapitalculturaldosoprimidos.Elasetornaumveículopeloqualosoprimidossão equipados com os instrumentos necessários para reapropriar-se de suahistória, de sua cultura e de suas práticas linguísticas. É, pois, ummododetornarosoprimidoscapazesdereivindicar“aquelasexperiênciashistóricaseexistenciaisquesãodesvalorizadasnavidaquotidianapelaculturadominante,a fim de que sejam, não só validadas, mas também compreendidascriticamente”.73

As teorias subjacentes à alfabetização emancipadora têm sido, emprincípio, abraçadas entusiasticamente por muitos educadores, em muitaspartes do mundo, particularmente na América Latina e nas ex-colônias

Page 137: Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra

portuguesasdaÁfrica.Contudo,éprecisoquesedigaque,naprática,aclassemédia assimilada, especialmente os professores formados nas escolascoloniais, não têm sido plenamente capazes de desempenhar um papelpedagógico radical. Esses educadores deixam, por vezes, de examinar ecompreender as maneiras pelas quais a classe dirigente usa a línguadominanteparamanteradivisãodeclasse,conservando,comisso,aspessoassubalternas emseudevido lugar.Por exemplo, lembramo-nosdeumamigonoCaboVerdeque,havendointelectualmenteabraçadoacausadarevolução,é incapaz de perceber que ainda continua emocionalmente “cativo” daideologia colonial. Porém, quando lhe perguntamos que língua usava maisfrequentementenotrabalho,respondeurapidamente:“Oportuguês,éclaro.Éoúnicomododemantermeussubordinadosemseulugar.Seeufalarcabo-verdiano,elesnãomerespeitam.”

EssavisãodalínguanoCaboVerdeéilustrativadeatéquepontooscabo-verdianos semantêm “cativos” da ideologia dominante, quedesvaloriza suaprópria língua. Não é de admirar que muitos educadores e líderesprogressistasnãoreconheçamnemcompreendamaimportânciadesualínguanativa no desenvolvimento de uma alfabetização emancipadora. Comomencionamos acima, os programas de alfabetização nas ex-colônias dePortugalsãorealizadosemportuguês,alínguadocolonizador.Amesmacoisasedáemnaçõesindustrializadas,comoosEstadosUnidos,ondea línguadeensino é sempre padrão, em prejuízo das línguas minoritárias e de menorprestígio. O uso permanente da língua padrão dominante como veículo daalfabetizaçãonadamaisfazdoqueassegurarqueosfuturosdirigentesserãoosfilhosefilhasdaclassedirigente.

Essencialmente, os educadores progressistas às vezes não só deixam dereconhecer o que há de positivo na língua dos alunos, como também,sistematicamente,solapamosprincípiosdeumaalfabetizaçãoemancipadoralevando a cabo programas da alfabetização na língua padrão da classedominante. O resultado é que o aprendizado de habilidades de leitura nalíngua padrão dominante não fará com que os alunos subalternos sejamcapazes de adquirir as ferramentas críticas “que os despertem e libertemdesua visãomistificada e distorcida de simesmos e do própriomundo”.74Oseducadores precisam compreender o papel totalmente abrangente que alíngua dominante tem desempenhado nesse processo de mistificação e de

Page 138: Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra

distorção. Precisam reconhecer, também, a natureza antagônica da línguasubalterna e o desafio potencial que ela representa à mistificação dasuperioridade da língua dominante. Finalmente, precisam desenvolver umprogramadealfabetizaçãobaseadonateoriadaproduçãocultural.Emoutraspalavras, os alunos subalternos devem tornar-se atores do processo dereconstruçãodeumanovasociedade.

Aalfabetizaçãosópodeseremancipadoraecríticanamedidaemquesejarealizada na língua do povo. É por meio da língua nativa que os alunos“nomeiamoprópriomundo”ecomeçamaestabelecerumarelaçãodialéticacomaclassedominantenoprocessodetransformaçãodasestruturassociaisepolíticasqueosconfinamemsua“culturadosilêncio”.Assim,umapessoaéalfabetizadanamedidaemquesejacapazdeusaralínguaparaareconstruçãosocial e política.75 O uso da língua dominante, apenas, nos programas dealfabetização reduz as possibilidades de os alunos subalternos entrarem emcontatos dialéticos com a classe dominante. A alfabetização realizada nalíngua padrão dominante empowers a classe dirigente pela manutenção dostatus quo. Sustenta a manutenção do modelo elitista de educação. Essemodelo elitista de educação cria intelectualistas e tecnocratas em vez deintelectuais e técnicos. Em suma, a alfabetização realizada na línguadominanteéalienadoraparaosalunossubalternos,umavezquenegaaelesasferramentasbásicasparaareflexão,opensamentocríticoeainteraçãosocial.Sem cultivar sua língua nativa, e privados da oportunidade de reflexão epensamento crítico, os alunos subalternos veem-se incapazes de recriar aprópria cultura e a própria história. Sem a reapropriação de seu capitalcultural, a reconstrução da nova sociedade imaginada pelos educadores elíderesprogressistasdificilmentesetornarárealidade.

DonaldoMacedo

Page 139: Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra

Notas49 Como termo“africanos”, referimo-nosaosnativosafricanospertencentesaospaísesdaÁfricaqueforam colonizados por Portugal. A bem da economia de palavras, selecionamos essa,mas queremosassinalarquetemosplenaconsciênciadagrandevariedadelinguísticaeculturalexistentenaÁfrica.

50 J.Caetano,BoletimdaSociedadedeGeografia,Lisboa,s/d,p.349.

51 H.A.Giroux,TheoryandResistanceinEducation:APedagogyforOpposition,p.87.

52 Pierre Bourdieu e Jean-Claude Passeron, Reproduction in Education, Society and Culture. BeverlyHills,Califórnia:Sage,1977.

53 H.A.Giroux,TheoryandResistanceinEducation.

54 SeanWalmsley,“OnthePurposeandContentofSecondaryReadingPrograms”.CurriculumInquiry,11,1981,p.78.

55 Id.,ibid.,p.80.

56 Unesco,AnAsianModelofEducationalDevelopment.Paris:Unesco,1966,p.97.

57 H.A.Giroux,TheoryandResistanceinEducation.

58 S.Walmsley,op.cit.,p.82.

59 LouiseRosenblatt,“TheEnrichingValuesofReading”,inWilliamS.Gray,(org.),ReadinginanAgeofMassCommunication.NovaYork:Appleton-Century-Crofts,1949,pp.37-8.

60 AntonioGramsci,apudJamesDonald,op.cit.

61 J.Kenneth,“TheSociologyofPierreBourdieu”.EducationalReview,25,1973.

62 H.A. Giroux e Peter McLaren, “Teacher Educational and the Politics of Engagement”. HarvardEducationalReview,agostode1986,p.235.

63 Op.cit.

64 Op.cit.

65 J.Donald,op.cit.

66 J.Cummings,“FunctionalLanguageProficiencyinContext”,inWilliamTikunoff(org.),SignificantInstructionalFeaturesinBilingualEducation.SãoFrancisco,Califórnia:FarWestLaboratory,1984.

67 RogerFowleretalii.,LanguageandControl.Londres:RoutledgeandKeganPaul,1979,p.192.

68 GregMyers, “Reality, Consensus, and Reform in the Rhetoric of Composition Teaching”.CollegeEnglish,48,n.2,fevereirode1986.

69 JonathanKozol,IlliterateAmerica.NovaYork:AnchorPress/Doubleday,1985,p.4.

70 J.AnthonyLukas,CommomGround.NovaYork:AlfredA.Knopf,1985,p.282.

71 Id.,ibid.,p.138.

72 S.Walmsley,op.cit.,p.84.

73 H.A.Giroux,TheoryandResistanceinEducation,p.226.

74 Id.,ibid.,p.226

Page 140: Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra

75 S.Walmsley,op.cit.,p.84.

Page 141: Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra

5REPENSANDOAPEDAGOGIACRÍTICA:UMDIÁLOGOCOMPAULOFREIRE

Macedo:Quaisosfatoresqueolevaramaessaconstantepreocupaçãocomaalfabetizaçãodeadultos,especialmenteaalfabetizaçãodosoprimidos?

Freire: Desde muito cedo, sempre estive extremamente ligado à práticaeducativa.Quandojovem,assumiocargodeprofessordeportuguêsnoentãochamadocursoginasial.Ensinareestudarasintaxeportuguesamefascinava.Naturalmente, nessa época, lecionava para jovens cujas famílias eramabastadas.

Meuinteresseeraoestudodalínguaportuguesa,especialmentedasintaxe,e ao mesmo tempo fiz certas leituras por conta própria nas áreas delinguística,filologiaefilosofiadalinguagem,quemelevaramàsteoriasgeraisda comunicação. Interessava-me especialmente pelos temas do significado,dos signos linguísticos e da necessidade real da inteligibilidade dos signoslinguísticos entre sujeitos conversando entre si para que ocorresse umaautêntica comunicação. Esses temas foram minha principal preocupaçãointelectual entre os 19 e 22 anos. Outra influência importante foi minhamulher,Elza.Elainfluenciou-meenormemente.

Assim,meusestudos linguísticosemeuencontrocomElzaconduziram-meàpedagogia.Comeceiadesenvolvercertasideiaspedagógicas,juntamentecom reflexões históricas, culturais e filosóficas. Enquanto desenvolvia essasideias, porém, tinha de enfrentar as realidades sociais muito dramáticas edesafiadoras de minha terra natal, o Nordeste. Tivera uma infância difícildevido à situação econômica de minha família. Agora, jovem, trabalhandocomoperários,camponesesepescadores,tomavaconsciência,maisumavez,dasdiferençasentreasclassessociais.

Notempodecriança,havia-meligadoacriançasdaclassetrabalhadoraeacamponeses. Agora, adulto, ligava-me, novamente, a adultos trabalhadores,camponeses e pescadores. Este novo confrontamento foi muito menos

Page 142: Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra

ingênuo e, mais do que qualquer livro, levou-me a compreender minhanecessidade pessoal de aprofundar-me mais na pesquisa pedagógica.Motivou-me, também,aaprendercomapráticadaeducaçãodeadultosemqueestavaenvolvido.

Consideravaqueaalfabetizaçãoeraotemamaisimportante,umavezqueoníveldeanalfabetismonoBrasilcontinuavasendoextremamentealto.Alémdisso, me parecia profunda injustiça haver homens e mulheres que nãosabiam lerou escrever.A injustiçaquepor si sóo analfabetismo representatemimplicaçõesmaisgraves,talcomoadeosanalfabetosseveremanuladospor sua incapacidade de tomar decisões sozinhos, votar e participar doprocessopolítico.Issomepareciaabsurdo.Seranalfabetonãoeliminaobom-sensoparaescolheroqueémelhorparasi,nemparaescolherosgovernantesmelhores(oumenosruins).

Lembro-me claramente de que essas injustiças costumavam atormentar-mee tomavamgrandepartedemeutempodedicadoàreflexãoeaoestudo.Depois de ter grande experiência no campo da alfabetização de adultos,mediante debates e discussões em torno das opiniões das pessoas sobre aprópria realidade (e não aminha opinião), certo dia comecei a desenvolveruma série de técnicas que envolviam as reuniões que costumava fazer compaiseprofessoresarespeitodaescolaedascrianças,aschamadasreuniõesdepais emestres.Durantemuito tempo,medediquei a aperfeiçoar as técnicasque desenvolvia nesses encontros; procurava encarar essas reuniões comofórunsdepensamentocríticoarespeitodorealedoconcreto.Continueiessetrabalhopormuito temposemescrevernadaa respeito (refletindo,assim,acaracterísticaoraldeminhacultura).Depois, comeceiaquestionar.Porquenão fazer alguma coisa que seguisse os mesmos princípios, a mesma visãocríticaeamesmapedagogiaquevinhautilizandoparadiscutirquestõescomodisciplina?Oque é disciplina?Qual a relação entre liberdade e autoridade?Qualarelaçãoentreaautoridadedopaiealiberdadedacriança?Porqueascrianças haveriamde começar a ler decorando, soletrandooABC?De fato,usando a frase como ponto de partida, começariam com a totalidade dapalavra,globalmente,enãocomapartemínimaqueéografema.Perguntei-me:porquenãoescreversobreosmesmostemasquevinhapondoempráticaquandofalavacommeusalunosadultos?Oqueésubdesenvolvimento?Oque

Page 143: Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra

é nacionalismo?O que é democracia? Por que não fazer amesma coisa aoensinaraspessoasalerpalavras?

Depois de formular essas questões, dediqueimuito tempo estudando-asaté encontrar um modo de ensinar. Foi importante você me fazer essaperguntaporquenãocreioqueoleitornorte-americanotenhatidoqualquerinformaçãorelativaaodesenvolvimentodemeupensamentopedagógico.

Macedo:Ao falarde seu reencontrocomoscamponeses,vocêenfatizaaideiadequetemosmuitoqueaprendercomoscamponeses.Vocêpodeexpormaisdetalhadamentesobreesseprocessodeaprendizagem?

Freire:Claroquetemosmuitoqueaprendercomoscamponeses.Quandome refiro aos camponeses, o que quero realçar é nossa necessidade deaprender com os outros, a necessidade que temos de aprender com oseducandos em geral. Costumo insistir em que devemos aprender com oscamponesesporqueosvejocomoeducandosnumdeterminadomomentodeminha prática educativa. Temos muito a aprender com os alunos a quemensinamos. Para que isso se dê, é preciso transcender o tradicionalismomonótono,arroganteeelitista,segundooqualoprofessortudosabeeoalunonão sabe nada. Evidentemente, é preciso também assinalar que, emborareconheçamosquetemosmuitoqueaprendercomnossosalunos(sejamelescamponeses, trabalhadores urbanos, ou estudantes de pós-graduação), issonãoquerdizerqueprofessoresealunossejamamesmacoisa.Nãocreioquesejam. Isto é, há uma diferença entre educador e estudante. Essa é umadiferençauniversal.Comumente,étambémumadiferençadegerações.

Mais uma vez, esta é uma questão política. Para mim, é tambémideológica. A diferença entre o educador e o aluno é um fenômeno queenvolvecertatensãopermanenteque,afinaldecontas,éamesmatensãoqueexisteentreteoriaeprática,entreautoridadeeliberdadee,talvez,entreontemehoje.

Quando os educadores têm consciência dessa tensão e dessa diferença,devem manter-se constantemente alerta para não permitir que essasdiferençassetornemantagônicas.Oquedevemosfazeréviverodiaadiacomoseducandoseenfrentaressatensãoqueexisteentrenós—amesmaqueháentreautoridadeeliberdade.Reconhecerestacontradiçãocomoconciliávele

Page 144: Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra

nãocomoantagônicaéoquenosqualificacomoeducadoresdemocráticos,enãoelitistaseautoritários.

Quantomaisvivemoscriticamente(istoéoqueeuchamariadepedagogiaradical no sentido de Giroux), mais internalizamos uma prática educativaradical e crítica e mais descobrimos ser impossível separar o ensinar doaprender. A prática mesma de ensinar implica aprendizagem por partedaquelesaquemseensina,bemcomoaprendizagem,oureaprendizagem,porpartedosqueensinam.

Assim,possosentirosoutrosnumaverdadeirasituaçãodeaprendizagem,emqueoobjetodeconhecimentoérealmenteumobjetocognoscível,emvezdeumacoisapossuída.Nessasituação,oobjetocognoscívelmedeiaossujeitoscognoscentes, os educadores e os educandos. É impossível sentir e apreciaralguémnessarelaçãoconcreta, seoeducadoreoeducandonadasabemumsobreooutro,esenãoseensinamumaooutro.

Acompanhandoessas linhasdepensamentoéquecostumoafirmar,edemaneira categórica, que devemos aprender com os camponeses. Se háprofessores que acreditam jamais precisar aprender com seus estudantes deuniversidade,imagineoquedirãoarespeitodeaprendercomumcamponês.A tal ponto seu elitismo os distancia dos camponeses e dos operários, quefrequentementeconsideramminhasopiniõessobreesseassuntodemagógicas.Masnãosão.Emsuma,creioquenumacompreensãorigorosadoprocessodeconhecimento, vendo-o como um processo social (e não meramente ummomento individual separado do processo total), é impossível separar oensinodaaprendizagem.

Macedo: Você é visto, muitas vezes, como um pensador que atuaexteriormente ao status quo. Você crê que afastar-se do sistema torna seupensamentomaiscriativoecrítico?

Freire: Tenho procurado pensar e ensinar mantendo um pé dentro dosistemaeoutrofora.Éclaroquenãopossoestarinteiramenteforadosistema,umavezqueosistemacontinuaaexistir.Sóestariatotalmenteforadeleseoprópriosistemativessesetransformado.Maselenãosetransformouporque,naverdade,continuasetransformando.Assim,paraatuar,nãopossoviveràmargem do sistema. Tenho que estar dentro dele. Naturalmente, isso geracerta ambiguidade,não sóparamim,masparapessoas comovocê,Giroux,

Page 145: Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra

Carnoy e Berthoff. Essa é uma ambiguidade da qual ninguém escapa,ambiguidadequefazpartedenossaexistênciacomoserespolíticos.

Qualanaturezadessaambiguidade?Emtermosdetática,todostemosumpédentrodo sistemae, estrategicamente, temosooutropé forado sistema.Ou seja, dopontode vistademeu sonho eobjetivo, estou estrategicamenteforadosistema,tentandopuxarmeuoutropéparafora!Ecomesseoutropé,naturalmente,estoudentrodosistema.

Essaambiguidademuitasvezesrepresentaumrisco.Porissoéquemuitaspessoas mantêm ambos os pés perfeitamente dentro do sistema. Conheçogenteque,porvezes,procurapôrdevagarinhoseupédireitopara fora,masimediatamente se deixa amedrontar. Vê outros que pisaram fora e forampunidos. Foi o caso de Giroux, a quem foi negada a estabilidade comoprofessor por ter pisado decididamente fora do sistema com seu pé direito.Nãoduvidodequemuitagentequeestavatentando(eatémesmodeclarava)estarforadosistema,tenhavoltadoatrásrapidamenteefincadoambosospésdentro do sistema, depois de saber da desagradável experiência de Giroux.Essas pessoas resolveram sua ambiguidade. Assumiram uma posturatradicional.GostomuitodeGirouxeoadmiroporcontinuarmantendoseupédireitodoladodefora!

Macedo:Você falou sobre a relação entre a subjetividade e a política daeducação.Poderiaestender-seumpoucomaissobreessetema?

Freire:Asquestõesrelativasàsubjetividadesãosemelhantesàsrelativasàteoria, à prática e à existência em geral. São questões referentes à reflexãofilosóficaemqualquer tempo.Decertomodo,essasquestões funcionamemtermosde como se encara a açãoda consciência sobre a objetividade.Há apossibilidadedecair-senumidealismoquepodeserpré-hegeliano,deacordocomoqual a consciência temopoderde criar a objetividade.Pode-se cair,também,numaposiçãooposta,emqueasubjetividadenãopassariadepuraabstração, uma cópia da objetividade. Ou seja, Marx deu um grande saltoquantoaessaspreocupaçõesidealistas.Creio,porém,quemuitagente,sobabandeira domarxismo, concorda com explicações puramentemecanicistas,contando comum fatalismoque às vezes chamo, jocosamente, de fatalismolibertador.Trata-sedeumalibertaçãoquesedeixaporcontadahistória,queviráporsimesma.Assim,nãoénecessáriofazeresforçoalgumparafazercom

Page 146: Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra

que a libertação aconteça.Deummodoououtro, ela virá. É claro quenãocreionessefatalismo.Nãomepermitocairemtipoalgumdedeterminismo:nemnaquelequereduzahistóriaaopoderdaconsciência,nemnooutroquechamodefatalismolibertador.

Possoestarcompletamenteerrado,masmesmodeumaperspectivacríticamarxista, o problema de compreender o papel da subjetividade na históriaconstitui um problema concreto, com que nos defrontaremos neste fim deséculo. Não me parece possível discutir a liberdade, a transformação domundo,arevolução,ademocracia,semumacompreensãocríticadopapeldasubjetividade,quenãoaveja,deumlado,comopuracópiadaobjetividade,deoutro,comoumaentidadetodo-poderosa.Aoladodesteproblema,odopapelda subjetividade na feitura da história, como um dos problemas teórico-práticos do fim deste século, juntaria um outro, de implicações tambémpolítico-pedagógicas—odoPoder.OdareinvençãodoPoder,diriamelhor.Semcairnumavisãoidealistaounumaexplicaçãomecânicadahistória,creioque a educação tem muito a ver com a reinvenção do poder. Pensadores,educadores e acadêmicos deste país, como Giroux, por exemplo, têm umafunção da maior importância a desempenhar. Mencionando Giroux, estousimbolicamenteincluindo,também,grandenúmerodeoutroseducadoresdageraçãodele,bemcomodeeconomistas, comoMartinCarnoy.Atualmente,Carnoycaminhacadavezmaisnadireçãodeposiçõessobreasquaisfaleiaoresponder a sua pergunta. Esses mesmos temas se encontram também noslivros de Agnes Heller, uma ex-discípula de Lukács. Com respeito a essestemas, não creio ter grande contribuição a dar, e digo isso não com falsamodéstia,mascomtristeza.Nãoobstante,continuareiprocurandocolaborarparaumacompreensãomaiordessestemas.

Macedo: Quais são algumas das consequências políticas de seupensamentoedesuapráticaeducativa?

Freire:Quando iniciei, ainda jovem,minhapráticaeducativa,nãoestavamuito seguro das consequências políticas potenciais. Pensava muito poucosobreasimplicaçõespolíticasemenosaindaarespeitodanaturezapolíticademeu pensamento e de minha prática. Contudo, a natureza política dessasreflexões era e éuma realidade.A feiçãopolíticada educação independedasubjetividadedoeducador;istoé,independedequeoeducadortenhaounão

Page 147: Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra

consciênciadessa feiçãopolítica,quenuncaéneutra.Quando, finalmente,oeducadorcompreendeisso,nuncamaispodefugiràsramificaçõespolíticas.Oeducadortemquesequestionararespeitodeopçõesquesãointrinsecamentepolíticas — ainda que muitas vezes se disfarcem de pedagógicas para setornaremaceitáveisdentrodaestruturavigente.Assim,fazeropçõesémuitoimportante.Os educadores devem indagar-se para quem e em benefício dequemestãotrabalhando.Quantomaisconscientesecomprometidosestejam,melhor compreenderão que seu papel como educadores exige que corramriscos, entreosquais atémesmoodeperder seus empregos.Oseducadoresque fazem seu trabalho de maneira não crítica, apenas para defender seusempregos,nãocaptaramaindaanaturezapolíticadaeducação.

Lembro-me deminha primeira noite após trabalhar na alfabetização deadultosnoRecife.Quandochegueiacasa,Elzameperguntou:“Comoéquefoi?”Eeulhedisse:“Elza,creioquecomoquevieexperimenteihoje,dentrodedoisoutrêsanosmuitagenteestarámeperguntando:‘Oqueéisso,Paulo?’Masébempossívelqueeusejapreso.Ecreioqueserpresoéomaisprovável.”Defato,nãotrês,masquatroanosdepois,fuipreso.

Durante aquele período, ainda não tinha totalmente clara para mim anatureza política da educação, e penso que meu primeiro livro, Educaçãocomopráticada liberdade, revela essa faltadenitidezpolítica.Por exemplo,sequerfuicapazdetocarempolíticanesseprimeirolivro.Contudo,continuoaestudaresselivro,umavezqueelerepresentaumdeterminadomomentodeminhaobra.(Naturalmente,nãosousimplesmenteoúltimolivroqueescrevi.Todos os meus livros representam pontos de desenvolvimento de meupensamento.)Mas esse livro contémpressupostos ingênuos que sintohaversuperadoemmeussegundoeterceirolivros.Todoomeupensamentoebuscafizeramefazem,realmente,partedeumquadrodereferênciapolítico,semoqualtodomeuempenhonãoteriasentido.

Macedo:Vocêmencionoutersidopreso.Quaisforamsuasexperiênciasnaprisão?

Freire:Estivepresoporpoucotempo,apósogolpede1964noBrasil.Naverdade, houve outras pessoas que estiverampresas pormuitomais tempo.Fuipresoduasvezes,antesdeserexilado,numtotaldesetentaecincodias.

Page 148: Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra

Foi uma experiência interessante para mim, mesmo não sendo eu ummasoquista.Nãogostariade tornar a suportar essa situação epor certonãome divertiria com isso. Mas procurei aproveitar o tempo na cadeia pararepensar as coisas.Aquelesdias foramumaexperiênciade aprendizagem.Éclaro que fui preso exatamente por causa da natureza política da educação.Você poderia dizer: “Paulo, havia outras pessoas envolvidas com aalfabetizaçãodeadultos,quenão forampresas.”Minha respostapoderia serque eles não eram políticos em sua atividade. Poderia dizer, também, queerampolíticos.Aúnicadiferençaéquesuapolíticafavoreciaosinteressesdaclassedominante.Estaéaverdadeiradiferença.Nãoháeducadoresneutros.Oquenós,educadores,precisamossaberéo tipodepolíticaaqueaderimoseem favor do interesse de quem estamos trabalhando. Felizmente, minhasideiaspolíticasnãobeneficiavamecontinuamnãobeneficiandoosinteressesdaclassedominante.

Macedo:Depoisdesetentaecincodiasvocêfoiexilado?

Freire:Depoisdaquelessetentaecincodiasdecadeia,fuilevadoparaoRiodeJaneiroparamaisinterrogatórios.Lá,fiqueisabendopelosjornaisqueiriaserpresonovamente.Meusamigoseminhafamíliaconvenceram-medequeseria insensato de minha parte permanecer no Brasil. Então, exilei-me noChile e, depois, vim para os EstadosUnidos.Daqui, fui para a Europa.Aotodo,estivecercadedezesseisanosnoexílio.

Macedo: Suas experiências no exílio tiveram alguma influência nodesenvolvimentoposteriordeseupensamentocríticoepedagógico?

Freire:Ninguémpassaincólumeporumexílio.Primeiro,ninguémseexilapor escolha própria. Depois, ninguém passa por um período de exílio semficar fortemente marcado por ele. O exílio nos atinge existencialmente.Envolve-nos como ser. Abala-nos física e emocionalmente. O exílio exaltanossasvirtudesenossosdefeitos.Foiissoqueoexíliofezcomigo.

Foiduranteoexílioquecompreendicomclarezaoquantosempreestiveverdadeiramente interessado em aprender.Oque aprendi no exílio é o querecomendaria a todos os leitores deste livro: esteja todo dia aberto para omundo,estejaprontoparapensar;estejatododiaprontoanãoaceitaroquesediz,simplesmenteporserdito;estejapredispostoareleroquefoilido;diaapós dia, investigue, questione e duvide. Creio que o mais necessário é

Page 149: Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra

duvidar. Creio ser sempre necessário não ter certeza, isto é, não estarexcessivamente certo de “certezas”. Meu exílio foi um longo período decontínuaaprendizagem.

Comodesdejovemsempreestiveinteressadoemaprender,assimquemeencontravadurantealgumtempodeexílioemdeterminadosespaços(LaPaz,Chile,Cambridge,Genebra), começava a pensar e a questionar-me, lidandoassimcomaquelesespaçosecomotempodeexíliocomograndesmestres.

Umadasprimeirasliçõesqueoexíliomeensinoufoiqueeunãopodiaenãodevia fazer julgamentosde valor sobreoutras culturas.Nós, brasileiros,temosumestilopeculiar:omododeandarmosnarua,omododevirarumaesquina,expressõestípicas,trejeitosfaciaiseassimpordiante.Claroestáquenossoestilonãoémelhornempiordoquequalqueroutro.

No Chile, aprendi que, como brasileiro, reagia de maneira diferente adeterminadassituações.

Desde jovem, estive aberto adiferentes culturas e esse sensode aberturaajudou-me a aprender muita coisa como professor e como educador, eajudou-meapensarea repensarminhasopiniões,quenãonecessariamentepodem ser transferíveis a outras culturas. Por exemplo, depois de meuprimeiro mês de trabalho no Chile, algumas coisas se tornaram bastanteóbvias. Os chilenos, e não eu, é que deviam planejar e implementar suaspróprias formas de educação. Em segundo lugar, eu tinha que ajudá-los oquanto pudesse. Terceiro, aprendi que só poderia ajudá-los se começasse acompreendê-los melhor. E não poderia compreendê-los melhor semcompreendersuaculturaesuahistória.

Essa foi uma grande experiência de aprendizagem para mim, que serepetiu,commaispazdeespíritoeumavisãomaiscrítica,naÁfrica,quandofui convidado aGuiné-Bissau,CaboVerde,Angola e SãoTomé e Príncipe.Não visitei esses lugares com uma modéstia pré-fabricada, mas com umamodéstiaprofundamente enraizada em sólidas convicções.Aprenderaque anaturezamesmademinhatarefaobrigavaaprenderarespeitodasculturasdosoutros de modo que eu lhes pudesse ensinar um pouco do que consideroválido.

Page 150: Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra

Quando você me pergunta se o exílio me ajudou a reexaminar minhasreflexões,eucitariaalgunsexemploscorriqueiros,não,porcerto,comosinaldeerudição,mascomoindicaçãodoquantoessasdiferençasculturaistiveraminfluênciadiretanoaprofundamentodemeudesenvolvimentointelectual.

DepoisdepertodetrêssemanasnoChile,estavaandandoporumaruadeSantiago com um amigo chileno e, num gesto tipicamente brasileiro, pusminhamãoemseuombro,enquantoandávamos.Derepente,elecomeçouasentir-seincomodado.Percebiseumal-estareeleafinalmedisse:“Paulo,aquientrenós,nãomesintobemcomumhomempondoamãonomeuombro.”Retireiamão,éclaro,eagradeciqueele tivesseditooquesentia.Aovoltarpara casa pensei: “Haverá algo de errado com uma cultura que recusa umgestodeafeição?”

Depois, anos mais tarde, visitei a Tanzânia, na África. Durante umintervalo entre aulas, um professor africano amigo meu convidou-me parapassearpelocampus.Enquantocaminhávamosderepentetomouminhamão,trançandoseusdedoscomosmeus,comosefôssemosnamoradospasseandopelos jardins da universidade. Senti-me terrivelmente incomodado. Comonordestino, oriundo de uma cultura profundamente machista, não poderiareagirdeoutramaneira.Nãopodiaadmitirqueestivessedemãosdadascomoutrohomem.Sótinhatidoessaexperiênciacommulheres.

Quando,porummomento, soltouminhamão,pusrapidamenteasduasmãosnosbolsos,commedodequeelevoltasseapegá-la.Maistarde,pensei:“Paulo,háalgodeerradocomtuacultura,querecusaumgestodeafeição?”

Esse tipo de coisas parece não ser muito significativo, mas gostaria dechamar a atenção dos leitores deste livro que incidentes triviais como essessão,defato,muitoimportantes,porqueenvolvemglobalmentenossasvidasenossas culturas, os traços distintivos que diferenciam o homem dos outrosanimais.Essesincidentestriviais,pois,provaramserfundamentaisparamim,equantomaisosexperimentei,maismeajudaramamanter-meemcontatocomigomesmo,enquantoaprendiaerefletia.

Uma coisapara terminar: vocênãopode imaginar comome tocaramasextraordinárias percepções de Amílcar Cabral sobre variadas culturas.Gramsci, também, influenciou-me profundamente com suas intuiçõespenetrantessobreoutrasculturas.

Page 151: Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra

Macedo:AofalardoCaboVerde,emseulivroCartasàGuiné-Bissau,vocêse referiu à ideia da reapropriação que alguém faz da própria cultura.Vocêjulga possível, como tem insistido Amílcar Cabral, reafricanizar o povo doCaboVerdeedaGuiné-Bissauutilizandooportuguês,línguadocolonizador?

Freire: Ao falar sobre a reafricanização dos cabo-verdianos, AmílcarCabralenfatizavaoqueelechamatambémdeidentidadecultural.Vocênãopode africanizar as pessoas dentro de sua própria cultura, que é suaidentidade, se sua cultura se encontra dilacerada. A língua é uma dasexpressõesmais imediatas,autênticaseconcretasdacultura.Assimsendo,areafricanização da Guiné-Bissau e do Cabo Verde implica, para mim, areapropriação total da cultura, o que inclui também sua língua. Digo“reapropriação”porquenuncadeixoude existiruma certa apropriaçãopelopovo. Não há colonizador que possa realmente castrar culturalmente umpovo, anão serpelo genocídio.Oprocesso colonial traz em simesmoumaação contrária incrível e dialética.Ou seja, não há intervenção colonial quenãoprovoqueumareaçãoporpartedopovocolonizado.Vejoesseproblemacomopolítico, ideológico,enãomeramente linguístico.Ele implicadecisõespolíticas por parte do governo e do partido. Mas essas decisões políticasimplicamtambémumasériedeconsequênciasadministrativaseeconômicas.

Emprimeirolugar,creioquevocêconcordaqueseriamuitoinsensatoqueagentedoCaboVerde,daGuiné-Bissau,deSãoToméePríncipeedeoutrospaísesrompessecompletamentecomalínguaportuguesa,apenasporelaseralínguadocolonizador.Renunciartotalmenteaosaspectospositivosdaculturaportuguesa (recusar-se a ler autores portugueses, por exemplo) não fazsentido algum. No processo de restabelecer o relacionamento com essespaíses, os ex-colonizadores deveriam ajudar a mostrar os benefícios que alínguaportuguesapodeoferecer.Aquestãoqueprecisasercolocadaécomoativar e formalizar o uso das línguas africanas nativas de modo que elaspossam,gradativamente,substituiralínguadoscolonizadoresemesferastaiscomoaeconomia,apolíticaeasfinanças.

Não creio que seja possível, da noite para o dia, traduzir para o crioulotodasasobrasnecessárias (livros, textos,documentos).Essespaísesnão têmbaseeconômicaparafazê-lo,seminterromperofluxobásicodebens.Assim,esses países têm de enfrentar essa ambiguidade. Esse é um dos maiores

Page 152: Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra

problemasrelativosàcultura,masnãopodeseratacadofrontalmentecomosacrifíciodeoutrasquestõesbásicas,essenciaisparaainfraestrutura.

Esses países precisam ser “crioulizados” em etapas, começando com osprimeirosanosda escolaprimária até chegar aocurso secundário,demodoqueaspessoas,portodaparte,sesintamlivresparaexprimir-seemsualínguanacional, sem temor e sem sentir qualquer restriçãodenatureza elitista.Naverdade,estarãobemconsigomesmasnamedidaemquefalaremsuapróprialínguaenãoa línguadocolonizador.Alémdisso,creioqueoriscoégrandequando países como o CaboVerde e a Guiné-Bissau escolhem uma línguanacional. Compreendo bem todas as dificuldades políticas enfrentadas poressespaísesnovos.Essasdificuldadessão,porém,muitomaioresemAngolaeMoçambique,ondenãoexisteocrioulo.ComoirãoosgovernosdeAngolaeMoçambiqueescolherumadaslínguasindígenascomolínguanacional?Fazê-losignificarápossivelmenteumrompimentoentreosdiversosgruposétnicosquepoderãosentir-seprivadosdeseusdireitoslinguísticos.Issopodeatépôremperigooprocessomesmodarevolução.Nãoobstante,essenãoéocasodaGuiné-Bissau e do Cabo Verde, onde existe o crioulo que permeia asdiferençasétnicas.

Oproblemaprincipaléqueessespaísesadotemoportuguêscomolínguaoficial para o pensamento técnico, científico e político. Há crianças cabo-verdianas que têm de aprender geografia, história, biologia, matemática eciênciassociaisemportuguês.Issodevesertarefaparaalínguanacionalenãoparaalíngua“oficial”.Écomoexigirquemeusfilhos,noBrasil,aprendamahistóriadoBrasileminglês.Pode-seimaginaroqueissorepresentariacomoviolação da estrutura do pensamento: uma disciplina estrangeira (como oinglês) imposta ao educando para estudar outra disciplina. Se uma criançacabo-verdiana tem dificuldades em aprender a língua portuguesa, pode-seimaginarcomoseriadifícilaprenderoutrasmatériasemportuguês.

Creioqueesse tipodepolítica teráde tornar-semais realistadentrodospróximos anos. Os políticos precisam ser claros com relação à língua.Precisam entender que a língua não é apenas um instrumento decomunicação, mas também uma estrutura de pensamento para o entenacional.Éumacultura.

Page 153: Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra

Creioque essa é tambémsuaopinião,Donaldo,peloque li doquevocêtemescrito.Seessespaísescontinuaremainsistirpormuitotemponousodoportuguês como língua oficial política e científica, essa questão viránovamentease tornarpolítica,porquea línguaportuguesa irádeterminaraformação histórica e científica, penetrando com sua ideologia dentro dopróprioserdaspessoas.Alémdisso,continuandoausaroportuguês,háaindaoutro perigo — o elitismo. Como foram educados pelo colonizador e,portanto, sãomuito fluentes emportuguês, apenasospolíticos e seus filhossão bilíngues. Apenas as famílias poderosas obtêm êxito no sistemaeducacional.Ascriançasdessasfamíliassãoasúnicasairbemnosexameseatirarboasnotas.Sãoasúnicasquetêmacessoàciênciaeàtecnologia.Assim,amaioria das crianças, filhos e filhas de camponeses, estarão excluídas. Eamanhã,anovageraçãonopoderserácompostaapenasdosfilhosefilhasdasfamíliasquehojeestãonopoder.

Issotambémestabeleceráumagrandedistânciasocialentreamaioriadopovo e essas crianças vindas de famílias hoje no poder, as que estarão nogovernoamanhã.Emúltimaanálise,apolíticalinguística,umadasdimensõesda política da cultura, acabará por aprofundar as diferenças entre as classessociais.

Macedo:Quevocêpensadaideiadocrioulocomoumaforçaantagônica?Isto é, de ser o crioulo uma força que ameaça a posição privilegiada edominantedalínguaportuguesa.

Freire: Creio que você tocou numa provável razão pela qual, em nívelsubconscientetalvez,muitagentesérianessespaísescontinuaserecusandoausar o crioulo. Isso é só uma das razões.Na verdade, há outra justificação,ideológica,paraessarecusa.

Durantemuitos anos, desde a infância até a adolescência, essasmesmaspessoas, que conseguiram realizar a libertação de seus compatriotas, forammarcadas por um processo de socialização em que os colonizadores nãoreconheciamo crioulo comouma línguaautônomaebela.Aocontrário, oscolonizadorestinhamdeconvenceraspessoasdequeaúnicalínguaeficazerao português. Sempre enfatizaramque o que os colonizados falavam era umdialetofeioeselvagem.Obviamente,opovocolonizadonãopodiaaculturarocolonizador,umavezque,namaioriadoscasos,eleseadaptavaàculturado

Page 154: Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra

colonizador. Os que estão no poder são os que fazem os outros entrar emforma. Os que não têm poder precisam primeiro consegui-lo antes quepossamcomeçaraincorporarosoutrosaseusistemaculturaldevalores.

Depoisdeouvirduranteséculosqueocriouloéfeioeineficaz,aspessoaspassam a acreditar nessemito.Ouvi demuitas pessoas instruídas naÁfricaqueocrioulonãoéumalíngua,equetinhamdemanteroportuguêsporeleserumalínguasuperior.Eusemprecostumavachamarsuaatençãoparaofatode que a avaliação que faziam do crioulo é uma forma de reproduzir aideologia dominante, a do colonizador, e que isso contraria a luta pelalibertação.

Essassãoasrazõessubconscienteseideológicasdaresistênciaaocrioulo.Omaisdasvezes,porém,essasrazõessãodissimuladas.Aspessoas insistemem que precisam progredir tecnológica e cientificamente porque, doutromodo, estarão comprometendo a luta pela libertação. É como se a línguacrioula não tivesse todas as precondições para realizar essas tarefas,especialmente na área das ciênciasmodernas. Nada disso é verdade e vocêmesmo,Donaldo,sabequeesseraciocínioéfalso.Emprimeirolugar,jamaishouve uma língua que surgisse completamente desenvolvida em todas asesferas das funções comunicativas. Uma língua só pode desenvolver-sequando é praticada em todas as esferas e tem a oportunidade de fazê-lo.QuandoestavanaÁfrica,eucostumavadizerquetudoissosupõeaforçadeproduçãodasociedade.Porexemplo,hojeemdia,aslínguaseuropeias,ditasbelas e avançadas, estão procurando meios para lidar com a terminologiatecnológica desenvolvida pelos norte-americanos. Quando não conseguemtraduzir esses termos, as línguas europeias se veem obrigadas a incorporartermos ingleses, como stress e input. No Brasil se diz que alguém estáestressado. IssonãoquerdizerqueoportuguêsdoBrasil,o francêseoutraslínguas, que incorporaram esses termos ingleses, sejam inferiores. Essaslínguasforamobrigadasatomaressestermosdeempréstimo.

Quando se editou pela primeira vez minha obra nos Estados Unidos,algumas pessoas insistiram em que usássemos uma expressão inglesacorrespondenteparanossoconceitodeconscientização.Recusei.Porquenãoaceitaresse termo?Eunãotinhadeaceitarstress,masaceitei.Porquevocêsnãoaceitamconscientização?

Page 155: Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra

Creioqueum sólidodomíniodanaturezada línguadesfaria essas falsasnoções a respeito do crioulo. O crioulo tem todas as possibilidades dedesenvolver-seeencontrarseuspróprioscaminhosparaaexpressãodeideiastecnológicasecientíficas.Aquestãoprincipalépermitirqueaspessoascriemedesenvolvamseuprópriocrioulo.Ocrioulosópodesersistematizadopelaspessoasqueofalamepormaisninguém.

Macedo: Existe uma ampla literatura em sociolinguística a respeito dasrelações entre línguas e sociedade, estudo sobreopapeldesempenhadopelalíngua na promoção e manutenção das diferenças entre os sexos, estudossobrelínguaeetnicidade,eassimpordiante.Dequemodoessasvariaçõesdalíngua podem ser utilizadas como força antagônica para desafiar a posiçãoprivilegiadadachamadalínguapadrão?

Freire:Numdeterminadomomentoda lutapelaautoafirmação,nenhumgrupoouclassesocial,subordinadoeexploradopelaclassedominante,enemmesmotodaumanaçãooupovo,poderãoempreendera lutapela libertaçãosemutilizaralíngua.

Em momento algum pode haver uma luta de libertação e deautoafirmação, sem a formação de uma identidade, uma identidade doindivíduo,dogrupo,daclassesocial,oudoquequerqueseja.Enamedidaemque o conflito aumenta, a experiência nos tem ensinado que os indivíduos,gruposeclassessociaisacabamconstruindomurospordetrásdosquais,emtemposdelutaoudepaz,abraçamsuaidentidadeeaprotegem.

Semumsentimentode identidade,não se sentenecessidadede lutar. Sócombatereivocêseestivermuitosegurodemimmesmo.Decididamente,nãosouvocê.Oprocessode raciocínioé semelhanteparagrupos, aindaqueemnívelsubconsciente.Nesseprocessosubconsciente,queapróprianaturezadoconflito pressupõe, nem sequer reconhecemos a significação de nossaelaboração de uma língua determinada, embora nos estejamos defendendoconscientemente na luta pela libertação. Essa é a razão por que o povocolonizadoprecisapreservarsualínguanativa.Equantomaiselaboradatornesua língua,melhor será para que o colonizador não a compreenda e, dessemodo,poderáusarsualínguaparadefender-secontraocolonizador.

Como exemplo, compartilho totalmente a magnífica luta das mulheres,muito embora não possa entrar nessa luta. Embora sendo homem, posso

Page 156: Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra

sentir-mecomomulherenãotemodizerisso.Masalibertaçãodasmulhereséa luta delas. Elas precisam criar sua própria língua. Têm de exaltar ascaracterísticasfemininasdesualíngua,apesardeteremsidosocializadasparadissimulá-laeparaencará-lacomofracaeindecisa.Noprocessodesualuta,têmqueusarsuaprópria línguaenãoa línguadoshomens.Creioqueessasvariações de língua (língua feminina, língua étnica, dialetos) estãointimamente interligadas com a identidade, coincidem com ela e são suaexpressão. Ajudam a preservar o senso de identidade e são absolutamentenecessáriasnoprocessodalutapelalibertação.

Macedo:Comovocêcaracterizariaasinter-relaçõesentrelíngua,culturaepensamento?

Freire: Pode haver épocas em que essas inter-relações não existam. Hácertarelaçãoentrepensamentoelinguagemcomoexpressãodoprocessorealdepensaredaconcretudedarealidadedaquelequefala,daquelequepensaefalaedaquelequefalaepensa.Podia-seaté inventarumnovoverbo,“falar-pensar”ou“pensar-falar”.

Numdeterminadocontextodeespaçotemporal,esseenteculturalcria-se,juntamente com outros entes, de maneira semelhante a como me tornocorrelativoàquiloquenãosoueu,aoprópriomundoquenãosoueu.Minhalinguagem e pensamento, creio, são uma unidade dialética. Estãoprofundamenteenraizadosemumcontexto.Assim,sehouverumamudançade contexto, não bastará difundir mecanicamente uma forma distinta depensar-falar;eladevesurgircomonecessidade.Creioqueumadastarefasdaeducação crítica e da pedagogia radical é ajudar que o processo crítico depensar-falarserecrienarecriaçãodeseucontexto.Emvezdesuporqueessarecriação tem lugar apenas num nível mecânico (isso nunca acontece), apedagogiadeveassumiropapeldeajudarareformularessepensamento.

Veja o Cabo Verde, por exemplo. O Cabo Verde tem mudadoradicalmente nos últimos seis anos, aproximadamente, porque não hámaisnenhum contexto objeto, como havia outrora muito definidamente, emrelação ao contexto sujeito, Portugal. O Cabo Verde cortou o falso cordãoumbilical. Portugal costumava pensar que havia um cordão umbilical, masnãohouve.Poisparahaverumverdadeirocordãoumbilicaléprecisoquehajauma conexão existencial histórica e, no caso do Cabo Verde, não havia

Page 157: Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra

nenhuma.Aconexãofoiimpostasobreoscabo-verdianospelosportugueses.Felizmente,porém,opovocortouocordão.

Oqueacontecedepoisdecortá-lo?OCaboVerdecomeçaaengatinharemsua experiência incipiente de ser ele mesmo. O Cabo Verde procuraencontrar-se.Oqueerapensamentolinguagemantesdaindependência,nãopode continuar a ser o mesmo: isso estaria por demais fora de sincronia.Contudo, tambémnão se podemudar artificialmente o contexto emmuitograndemedida.PorissoéqueadmiroopresidentedoCaboVerde,AristidesPereira.NumdiscursoquefezemPraia,elefezumaafirmaçãoquetemmuitoa ver com o de que estamos falando aqui: “Concluímos nossa libertação eexpulsamososcolonizadores.Agora,precisamosdescolonizarnossasmentes”.É exatamente isso.Precisamosdescolonizarnossasmentesporque, senãoofizermos, nosso pensamento estará em conflito com o novo contexto queevoluiuapartirdalutapelaliberdade.

Essenovocontextohistórico,queestáentrelaçadocomacultura,sópodeser novo na medida em que não seja mais colonizado. O Cabo Verde vêressurgir uma mentalidade diferente e uma cultura diferente. A culturanacional reprimida começa a ressurgir. Determinados padrões culturais decomportamento, proibidos pelos colonizadores, entre os quais a língua, asexpressões domundo, a poesia e amúsica, estão reaparecendo. As pessoascaminhamsemtermaisquesecurvar.Agora,caminhameretos,olhandoparacima. Há uma pedagogia do caminhar nesse novo comportamento, decaminhar livremente. Todas essas questões constituem um novo modo depensareumnovomododefalar.Pode-seperceberqueproblematerrívelseriase essenovopensamentonãopudesse coincidir coma línguaexistente.Umpensamentonovoexpressonalínguadocolonizadornãovaiapartealguma.

Macedo: A respeito de seu trabalho de alfabetização, uma preocupaçãoimportante nas chamadas nações desenvolvidas é que ele não parece seraplicável a outro contexto senão o do TerceiroMundo. Você poderia falarsobreessaquestãoe,possivelmente,sobreocontextodoTerceiroMundoquese encontra dentro do PrimeiroMundo, e de quemaneiras suas propostaseducacionaispodemseraplicadasaqui?

Freire: Desde minhas primeiras viagens pelo mundo, inclusive peloPrimeiro Mundo, essas questões fundamentais me têm sido formuladas.

Page 158: Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra

Creio,noentanto,que,nestesúltimosanos,essetipodequestionamentotemdiminuídoumpouco.Emprimeirolugar,falemossobreaquestãodoTerceiroMundoedoPrimeiroMundo.Deminhas experiênciasdevidanosEstadosUnidos(fuimuitofelizemCambridgeeaindamerecordodaBroadway,aruaemquemorei),descobriapresençadoTerceiroMundodentrodoPrimeiroMundo,comoporexemploosguetosnosEstadosUnidos.Descobritambémumaperversadiscriminaçãoracialeumchauvinismolinguístico,oqueéumaespéciederacismo.Descobrie,simultaneamente,viviessarealidade.Tambémfuidiscriminado(talveznãotantoquantooutrosestrangeiros,especialmenteimigrantes,porquemuitagentemeconheciaeconheciaminhaobra).Masàsvezes me sentia discriminado. Havia pessoas que pensavam que eu fosselatino-americanohispânicoequesetornavammaiscortesesquandolhesdiziaserbrasileiro.SuponhoqueissosedavapornãohavermuitosbrasileirosemCambridge!

DescobrindooTerceiroMundodentrodoPrimeiro,tomeiconsciênciadeumacoisaóbvia:apresençadoPrimeiroMundodentrodoTerceiro,aclassedominante. Aqui nos Estados Unidos, como em outras partes do PrimeiroMundo,asituaçãoémuitomaiscomplexa.UmavezqueosEstadosUnidosnão são unicamente Primeiro Mundo, e como certos educadores, não eu,dizemqueminhaabordagemda alfabetização só é aplicávelno contextodoTerceiro Mundo, deviam pelo menos aplicá-la a seu Terceiro Mundo,facilmenteidentificável.

O problema principal é que esses educadores estão tratando da questãoerrada,quandodizemqueaspropostasdeFreire, embora interessantes,nãotêmnadaavercomumasociedadecomplexa.Nestecaso,asquestõesdevemser definidas de maneira diferente. As propostas educativas que venhofazendoduranteanosprocedembasicamentededuasideiasbastanteóbviasenãosimplistas.

Emprimeirolugar,aeducaçãoéumatopolítico,quernauniversidade,nocurso secundário, na escola primária ou numa classe de alfabetização deadultos.Porquê?Porqueanaturezamesmadaeducaçãopossuiasqualidadesinerentes para ser política, como, na verdade, a política tem aspectoseducacionais. Em outras palavras, um ato educativo tem uma naturezapolíticaeumatopolíticotemumanaturezaeducativa.Seassimé,demaneira

Page 159: Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra

geral,seriaincorretodizerqueapenasaeducaçãolatino-americanatemumanatureza política. A educação no mundo todo é política por natureza. Emtermosmetafísicos,apolíticaéaalmadaeducação,seupróprioser,quernoPrimeiro Mundo, quer no Terceiro. Quando um professor estudadeterminado assunto (quando Giroux, por exemplo, analisa o currículooculto), todas as instâncias da educação se tornam atos políticos. Não hámodo algum pelo qual eu, ou quem quer que seja, possa contradizê-lo. Anaturezapolíticadaeducação,pois,nãoéumexotismodePauloFreirevindodoTerceiroMundo.

Emsegundolugar,noBrasil,ouondequerqueseja,quernotrabalhoemalfabetização,queremcursosdepós-graduação,aeducaçãoéumacertateoriadoconhecimentopostaemprática.Nãopodemosfugiraisso.Quervocê,aquiem Massachusetts, ou eu, no Brasil, não importa sobre o que estejamosfalando(linguística,noseucaso,relaçãoentreeducadoreeducando,nomeu),o que parecemais importante é o objeto de conhecimento proposto a nóscomo educadores. Uma vez envolvidos nessa prática educativa, estamostambémcomprometidos comumapráticade conhecimento.Podemos estarprocurando aprender um conhecimento predeterminado, já existente, oupodemos estar procurando criar um conhecimento que ainda não existe,como pesquisa. Todas essas práticas educativas implicam o processo deconhecer,emqualquerpartedomundo.

Aquestãoaserdefinidaagoraéquaissãonossasposturasnesseprocessode conhecer. Quais nossas posições na teoria do conhecimento? Comoabordamos o objeto do conhecimento? Somos donos dele? Trazemo-lo emnossasmaletas para distribuí-lo a nossos alunos?Utilizamos esse objeto deconhecimento para alimentar os alunos ou para estimulá-los aoconhecimento?Estimulamososalunosaassumiropapeldesujeitos,aoinvésdodepacienteserecipientesdenossoconhecimento?

Bem, essas não são questões apenas do Terceiro Mundo; são questõesuniversais. Porém, não quero dizer que não haja limitações impostas porculturas, políticas e ideologias diferentes. Há limites concretos à práticademocrática do conhecimento, neste país como em outros. Repito: aexperiênciaeducativacriativaecríticanãoconstituiumexotismodoTerceiroMundo.

Page 160: Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra

Na alfabetização, os educandos devem assumir o papel de sujeitos doprocessomesmodedomíniodaprópria língua.Osestudantesuniversitáriosdevem assumir o papel de sujeitos cognoscentes no intercâmbio entreestudantesqueconhecemeeducadoresquetambémconhecem.Éóbvioqueosprofessoresnãosãoosúnicossujeitosqueconhecem.

Opontodepartidadesseprocessode conhecer educadores e educandosconcentra-se nas expectativas e nos obstáculos com que defrontam oseducandos no processo de aprendizagem, e não nas expectativas e noconhecimento do educador. Devo insistir, uma vez mais, em que isso nãoconstituiumexotismodoTerceiroMundo.

Além desses argumentos, penso na coerência de uma posição políticadentro de uma perspectiva pedagógica, que é também política pela próprianatureza, e,por isso,nacoerênciadeumapostura teóricadentrodapráticadessateoria.

Oseducadoresseesquecem,porvezes,dereconhecerqueninguémpassadeumladodaruaparaooutrosematravessá-la!Ninguématingeooutroladopartindodessemesmolado.Nãosepodechegarlápartindodelá,masdecá.Onívelatualdemeuconhecimentoéooutroladoparameusalunos.Tenhode começar pelo lado oposto, o demeus alunos.Meu conhecimento é umarealidade minha, não deles. Então, tenho de começar a partir da realidadedelesparatrazê-losparadentrodeminharealidade.Umprofessorpodedizer:“Maisuma ingenuidaderomânticadePauloFreire!” Insisto,porém,emquenão há romantismo algum nessas ideias. O que se vê aí é uma coerênciaepistemológicacomumaperspectivapolítica.

ParecehaveragoramenosdúvidassobreavalidadedoquevenhodizendonoPrimeiroMundo,porque intelectuaiseeducadorescomprometidosdestemesmo mundo me vêm estudando com muita seriedade. Embora possamnem sempre concordar comigo,muitos deles percebem a viabilidade dessasideiasnocontextodoPrimeiroMundo.Nocampodoensinodoinglêscomosegunda língua, aqui nos Estados Unidos, há inúmeros professores epedagogos críticos que trabalham segundo as linhas gerais de meupensamento.AnnBerthoffeAidaShaw,também,incorporamminhasideias,tantoemsuasteoriasquantoemsuaspráticas.Cercadecincoanosatrás,umlivro interessante e volumoso, Aprendendo com Freire, foi publicado na

Page 161: Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra

Alemanha, envolvendo um experimento longitudinal sobre educação pré-escolar, que incorporava meus métodos. Em Pedagogia do oprimido e emCartasàGuiné-Bissau,salienteiqueminhasexperiênciasdeviamserrecriadasenãotransplantadas.Emsuma,meusexperimentoseducacionaisnoTerceiroMundo não devem ser transplantados para o Primeiro Mundo; devem sercriadosnovamente,deoutraforma.

Macedo: Numa exposição, algum tempo atrás, você mencionou quealgumas de suas teorias educacionais estão sendo estudadas por físicos. Demaneiraanáloga,RichardHorsley,professorde teologianaUniversidadedeMassachusetts,dissequecomeçouacompreendermelhoroNovoTestamentodepoisdeleraPedagogiadooprimido.Vocêpoderiacomentaroimpactoquesuateoriaeducacionaltemtidoemdiversoscamposdeestudo?

Freire: Durante toda minha vida, especialmente após a publicação dePedagogia do oprimido nos EstadosUnidos, e depois de viajar pelomundotodo,observeimuitaspráticaseducacionaisqueparecemtersido,dealgumaforma,influenciadaspormeupensamento.Diria,pois,queháumadimensãouniversal no que tenho andado escrevendo sobre educação. Tenho aimpressão de que a Pedagogia do oprimido brotou de uma experiêncialongamentevivida.Insistosobreaesferaafetivadascoisas,sobreasdimensõeshumanísticas e intuitivas do ato de conhecer. Jamais pus sentimentos eemoções entre parênteses. Apenas os reconheço àmedida que os expresso.Esse livro nasceu de um casamento entre mim e as muitas partes doconhecimento mundial que vivi e experimentei por onde vivi e por ondetrabalhei e ensinei com compromisso, sentimentos, medo, confiança ecoragem. Esse livro é radical, no sentido etimológico do termo. Vem dasprofundezas de fragmentos da história e da cultura latino-americana,especialmentedoBrasil.Esselivroestásaturadodetempo,históriaecultura.Efoiassim,creioeu,queesselivroadquiriuauniversalidadedequedesfruta.

Nãocreioqueouniversalsejapossívelsemumvibrantepontodepartidacomunal. Não generalizamos sem fundamentar nossas generalizações sobreparticularidades.Antesdesetornaruniversal,vocêéparticular.Nãosepodepartir do universal para chegar ao local. Para mim, qualquer que seja auniversalidadequehajaemPedagogiadooprimido,elaprovémdovigoredaforça de seu caráter local. Não tive qualquer pretensão ou sonhos de

Page 162: Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra

desenvolverumateoriauniversalcomesselivro.Aquestãoéque,noentanto,o livro contém determinados temas que preocupam universalmente aspessoas.Porexemplo,tenhorecebidocomentáriosdemuitaspessoasdaÁsiaedaÁfricadizendo:“Liseulivroeagoraentendomelhormeuprópriopaís.”Jamaismeesquecereideumacartaquerecebideumsul-coreanoquemedissequeestavalendomeulivrosecretamente.(Nemseicomoconseguiumandar-me aquela carta.) Ele me agradecia porque meu livro o estava ajudando acompreender melhor sua sociedade. Recebi cartas de outras pessoas doOrientequeme falavamcoisaparecida.Numadessascartas,umcuradordemuseu disse-me estar realmente influenciado pelo terceiro capítulo daPedagogiadooprimido.

Matemáticosefísicostambémmetêmditoquesofreramgrandeinfluênciademeu trabalho. Cerca de ano emeio atrás, fui convidado a participar dabancanumadefesade tesededoutoramentonoDepartamentodeFísicadaUniversidade de São Paulo. Disseram-me que estudavam minha obra commuita atenção (não como disciplina, naturalmente). E um estudante dodepartamentoapresentouumateseintitulada“Comoestudarciênciadeumaperspectivafreiriana”.

Demodogeral,tenhosidoestudadoporsociólogoseteólogosnosEstadosUnidos,EuropaeInglaterra.

Há temas na Pedagogia do oprimido que tocam esses vários campos doconhecimento. O que digo a respeito desses temas não necessariamentefornecerárespostas,maséprovocativo.Incitamumareflexãocríticaporpartedefísicos,matemáticos,antropólogos,artistas,músicoseoutros.

No decorrer de um seminário de uma semana que coordenei naUniversidadedeYork,na Inglaterra, umestudante aproximou-sedemimedisse: “Paulo, não estou matriculado neste seminário. Sou ex-aluno doDepartamentodeMúsicadestauniversidade.Soumúsicoecompositor.VimaquilhedizerqueliaPedagogiadooprimidoefiqueitãocomovidocomesselivro que compus uma versão musical da obra.” Eu me emocionei tãoprofundamente com o que ele disse que fiquei em silêncio, totalmentesurpreso. Daí, apertamos as mãos. Dei-lhe um abraço e simplesmente lhedisse:“Estoumuitofeliz.”QuandovolteiaGenebraeconteiissoameufilho,queéumviolinistaclássicomuitobom,eleperguntou:“Comoéquevocênão

Page 163: Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra

teve a ideia de pedir-lhe que me mandasse sua composição para que eupudessetocá-la?AdorariatocaraPedagogiadooprimido!”Tudoquepudelhedizerfoicomoestavasurpresoesempalavras.

Incidentesdessetipocontinuamacontecendo.Comomeusoutroslivros,aPedagogia do oprimido, num certo ponto de sua trajetória, deixou depertencer-me.Achoissomuitobonito,queoslivros,comoaspessoas,devamatingir sua autonomia. Agora, quando vejo Pedagogia do oprimido naslivrarias,porpouconãoocumprimento!

Macedo: Em sua teoria, como se pode falar a respeito da apropriaçãocríticadaculturadominantepelopovodominado?

Freire: Essa questão é muito crítica. Na contradição entre dominante edominado,háumconflitoculturaledeclasse.Esseconflitoédetalordemqueodominanteminaráas forçasdodominadoe faráde tudoparaanestesiaraautoconsciência do povo dominado, negando-lhe a essência de sua própriacultura como algo que existe em sua experiência e por meio da qual eletambémexiste.Cultura,aqui,éusadoemseusentidomaisamplo,indodesdeomodocomoalguémcaminha,atéoconhecimentodomundo,asexpressõesdesse conhecimento, e as expressões dessemundo pormeio damúsica, dadançaetc.

O dominante precisa inculcar no dominado uma atitude negativa emrelaçãoasuaprópriacultura.Aqueleestimulaesteúltimoarejeitaraprópriacultura,instilandoneleumafalsacompreensãodesuaculturacomoalgofeioeinferior.Alémdisso,odominanteimpõeaodominadoseumododeser,defalar,dedançar,seusgostos,atémesmoseumododecomer.Quantoacomer,aíodominante impõemenos,exatamentepornãoquererchamaraatençãoparaoquantoelecomemelhordoqueseusdominados.

Que acontece quando o povo dominado finalmente vêm a verificar quesuaculturanãoéfeia,comodizodominador?Quesucedequandovêqueseusvalores não são tão deploráveis, que sua presença no mundo não é tãodesprezível, como dizem os dominadores? Na verdade, os dominados sãosereshumanosquevêmsendoproibidosdeser.Sãoexplorados,ultrajados,eaelessenegaviolentamenteodireitodeexistireodireitodeexpressar-se.Issoéverdadeiro, quer esses dominados representem todo um povo, um grupo

Page 164: Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra

social (como os homossexuais), uma classe social, ou determinado gruposexual(comoasmulheres).

Num determinado momento, nessa relação entre dominadores edominados, alguma coisa se quebra. E à medida que outras coisas maistambém se vão quebrando, elas provocam amobilização. Inicialmente, essamobilizaçãoémínima.Masessamobilizaçãovai aumentandoàmedidaqueimportantesediferentesquestõesemergememcontextosdiferentes.Àsvezes,osdominadoressãomaisviolentos,intimidandoopovodominado,fazendo-osofrermais. Contudo, chega-se a um ponto limite, e esses pontos limite sesomam, aumentando de frequência, intensidade e qualidade. Todos essespontos limite são também, necessariamente,momentos de cultura. O povodominadojamaisaprenderiaalutarseissonãofosseumaexperiênciacultural.Nesse mesmo sentido, Amílcar Cabral percebeu nitidamente que osmovimentosdelibertaçãosão,porumlado,umfatoculturale,poroutro,umfatordecultura.Asexperiênciasdeunir-se,dedeflagrarumafaladiferenteeproibida,dedescobrirqueessafalaéválida(aindaqueproibida),deverqueessa fala é bonita (muito embora alguns digam que é feia) — essasexperiênciassãoculturaisepertencemàculturadopovodominado.Quantomaisopovodominadosemobilizadentrodesuacultura,tantomaisseunirá,cresceráesonhará(sonhartambémépartedacultura),etantomaisfantasiará(afantasiaéumapartedaculturaenvolvidanoatodeconhecer).Afantasia,realmente,antecipaoconhecimentodoamanhã.(Nãoseiporquetantagentesubestimaafantasianoprocessodeconhecer.)Emtodocaso,todosessesatosconstituemaculturadominadaquerendolibertar-se.

Eoqueacontececomaculturadominadaquandoelalutapelalibertação?Quando erameramente a cultura dominada, estava sujeita à doutrinação eestavadomesticada.Agora,porém,emboraaindadominada,elaquerlibertar-se. E, nesse processo de querer libertar-se, descobre também que a culturadominante, exatamente por ser dominante, foi obrigada a desenvolver umasérie de estratégias analíticas e científicas para alcançar seus propósitos. Acultura dominante desenvolve essas estratégias para analisar e explicar omundo com vistas a dominá-lo. Quando a cultura dominada percebe anecessidade de libertar-se, descobre que tem que tomar a iniciativa edesenvolve suas próprias estratégias, como também utiliza as da culturadominante.A cultura dominada faz isso, não simplesmente para ajustar-se,

Page 165: Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra

mas para lutar melhor contra a opressão. Então, num certo momento, aculturaelaboradaaserviçodosdominadoresdeixadeserassim,eumaculturaé recriada pelo povo antes dominado em proveito de uma libertaçãopermanente.

Estamepareceserumaperspectivahumanistanãoidealista,ouesperta,ouangélica.Recuso-mearejeitaressaposiçãohumanista.

Talvezvocêmetenhafeitoessaperguntaporque,emalgummomentonopassado(nãomerecordoonde),eudis-seque,noprocessoda libertação,osdominadospodemedevem incorporar criticamentealgumasdasdimensõesda cultura dominante para utilizá-las como instrumentos mesmos de suapróprialuta.

Macedo:Dequemodoosmovimentossociais (taiscomoode libertaçãofeminina, os movimentos pacifistas, os ambientalistas) criaram uma novamodalidadedediscursopelalibertação?

Freire:Creioqueessaperguntacompletaaquelaquevocêfezantes,sobreasubjetividade,temaqueconsideropoliticamenteimportanteparaofinaldesteséculo.

Lembro-me,porexemplo,deque,nocomeçodosanos1970,quandoeuestava na Europa, algumas pessoas falavam sobre os movimentos sociais,como o de liberação da mulher e o movimento da ecologia, exatamentequando estavam começando a se firmar. E recordo que algumas pessoas daesquerdademonstravammuitopoucorespeitoporessesmovimentos.Diziamque essesmovimentos não teriam qualquer significação política por não seidentificaremcomclasses sociais,mas apenas com indivíduosdentrodessasclasses. Creio que houve algo de ingênuo e de dogmático na crítica a essesmovimentoscomosendoinoperantes,oumerosdelírios,ou“escapismos”.

Lembro-medeumcasaldeamigosnossos,MiguelDarcyeRosiska,comquem trabalhei no Instituto de Ação Cultural (IDAC), que fundei emGenebra. Eles foram dos primeiros a salientar a importância dessesmovimentos, emconversasvivasque tivemosemGenebra.Edaquela épocapara cá, percebo que os movimentos sociais construíram sua próprialinguagemcomomomentosemovimentosdelibertação.

Page 166: Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra

Osecologistas,porexemplo,vieramparadefenderomeioambientenumalinguagem humana e poética. Ao defender o meio ambiente, estãodefendendocadaumdenós.Eucostumavadizer:“Maiscedooumaistarde,elesexplicitarãoapolítica latentequeestá implícitaemseumovimento.”Osmovimentos sociais nasceram já políticos, muito embora nem sempre suanaturezapolíticafossecompreendidapelaspessoasenvolvidas.Essadimensãopolítica(queultrapassademuitooobjetivoimediatodequalquermovimento)amplificaráosobjetivosealinguagemdalibertação.

Issomepareceumfenômenomundial.Contudo,meparecetambémquealgoaindanãoestácompletamentedefinidooudelineado.Essesmovimentossociais começarampor condenaro comportamento tradicionaldospartidospolíticos a tal ponto que os partidos políticos, em minha opinião, surgemcomo entidades desacreditadas para grande número de jovens. Ainda naEuropa,preocupei-mecomopapelpolíticodesempenhadopelosmovimentossociais e, ao mesmo tempo, pensei a respeito de suas limitações no nívelpolítico. Os movimentos sociais não devem parar na libertação pessoal eindividual. Contudo, pôr em prática um ato de libertação exige um ato dopoder.Eumatodepoder,repito,deveserreinventado, istoé,recriadoparaatuardentrodoespíritodessesmovimentos.

Julgava que os movimentos sociais não teriam recursos para atingir opoderformal.Seviessemasetornarpartidospolíticos,porexemplo,corriamo riscode se tornar também tradicionais.Assim, a questãoque se coloca é:como os partidos políticos podem aproximar-se de movimentos sociais edesenvolver a linguagem deles? Até que ponto esses partidos políticos nãosectários e não autoritários poderão aprender com essesmovimentos? Nãofalo dos partidos da direita (interesso-me em estudar os partidos da direta,mas não quero pertencer a eles), mas dos partidos populares da esquerda.Essespartidosprecisamaproximar-sedosmovimentossociais,semprocurardominá-los. Aproximando-se desses movimentos, os partidos de esquerdaestarão,emcertosentido,seelevandoesecompletando.

EssasforamalgumasideiasquetivenaEuropaequeviviintensamente,aoregressar ao Brasil. Lá, vi a força das organizações familiares e dascomunidadesdebasedentrodaIgrejaCatólica,quenosúltimosquinzeanostiveramrepercussãoextraordináriaedeflagraramreleiturasdosevangelhos.

Page 167: Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra

Naturalmente,háosquenãogostamdessasreleituras,encarando-ascomointervenções comunistas e demoníacas. Essas releituras não são nada disso.Envolvemumaperspectivacríticanaqualoevangelhoé relidodopontodevistadosquesofremenãodosquefazemosoutrossofrerem.Nessepedaçodahistória política do Brasil, fui testemunha de como um partido políticocomeça a surgir e a constituir-se dentro de ummovimento social. O novopartido político da classe trabalhadora brasileira pode desaparecer amanhã,masporenquantolutaparaencarnaresseespíritoredesperto,tãoimportantepara tratar das questões relativas ao final do século. Esse partido surgiu demovimentos sociais, edeles continuapróximoatéhoje, sem tentardominá-los.Naverdade,foiporissoquemetorneimembrodessepartido.

Não estou certo de que os movimentos sociais estejam, em âmbitomundial,criandoseuprópriodiscurso.(Emminhaopiniãodeveriamfazê-lo,jáquealinguagemprópriadesempenhaumpapelimportantenoprocessodelibertação.) O que sei é que esses movimentos estão sempre presentes nasdiversastentativaspararecriaralgumassociedades.

Por exemplo, o papel dos ecologistas na França é indiscutível. TiveramenormeinfluêncianasúltimaseleiçõesquelevaramàvitóriadeMiterrand.NaAlemanha,tambémsãomuitoimportantes.

Há, também,outrosexemplosquesurgem,vezporoutra,emsociedadescomplexascomoosEstadosUnidos,masesseslevamamarcadeumaespéciede escapismo. Esse escapismo pode ser oportuno, uma vez que é precisoprimeiroqueodesejo,anecessidadeeaangústiadeescaparestejampresentesparaqueessesmovimentosexistam.Sevocêtemummovimentoqueenvolvequinhentas mil pessoas, isso prova que existe alguma ansiedade básica pordetrás do escapismo.Mas naAmérica Latina não há em geralmovimentosescapistas. Na América Latina as pessoas precisam mudar, não “escapar”.Como já disse, considero a necessidade dosmovimentos escapistas (algunsdeles chegam a criar uma linguagemprópria, também escapista),mas essesmovimentostêmmuitopoucainfluência.

Nenhum educador que sonhe com uma sociedade diferente podedispensar os movimentos sociais. Uma de nossas tarefas é procurarcompreenderosmovimentossociaisevercomopodemostrabalharcomeles.

Page 168: Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra

Macedo: Numa conversa anterior com Judy Goleman e Neal Bruss [daUniversidadedeMassachusetts],foi-lhepedidoquedissesseoquevocêgostadefazer.Vocêpoderiafalarsobreissoagora?

Freire:QuandoNealmefezessapergunta,fiqueimuitoanimado,equeriamuitoresponder-lhe,masnãotiveo temponecessáriopara isso.Agora,vousimplesmentefalarsobreascoisasdequemaisgosto,masqueroacrescentarque o que vou dizer deve ser compreendido em termos intelectuais mastambémexistenciais.

Realmentegostodegostardeoutraspessoasedemesentirbemcomelas.Gostodeviver,deviveravidaintensamente.Soudotipodepessoaqueamaapaixonadamente a vida. Claro que vou morrer um dia, mas tenho aimpressão de que, quando morrer, também vou morrer com grandeintensidade. Vou morrer sentindo-me intensamente. Por essa razão, voumorrercomenormeanseioporviver,poisdessemodoéquetenhovivido.

Éassimtambémquetrabalhoempedagogia.Assiméquefaçoamizades,eéassimqueleioumlivro.Nãosei lerumlivrodesinteressadamente.Nãoseilerumlivroquenãometoqueounãomeemocione.Assim,aprimeiracoisaquetenhoadizersobreoquegostodefazeréquegostodeviver!

Para mim, a coisa fundamental na vida é trabalhar para criar umaexistênciaquetransbordedavida,umavidaquesejamuitobempensada,umavida criada e recriada, uma vida que seja feita e refeita nessa existência.Quanto mais faço alguma coisa, mais existo. E eu existo com muitaintensidade.

Muito embora goste de amar as pessoas e de viver intensamente, possonão tratar bem as pessoas todo o tempo. Podia-se esperar que, querendogostar tantodaspessoas, eu sempre as tratariabem.Épossívelque às vezesnãotrateosoutrostãobem.Devoadmitiressadeficiênciacomoumfatodoquererviver,doviver intensamente.Àsvezesminhapaixãodeviver,queseconfundecomapaixãodeconhecer,leva-meaagirmalcomosoutros.Masseajomal,issoéinvoluntário.

Agora, tendo emmente essa ideiade gostarde viver, gostode inúmerasoutras coisas. Gosto demais de bater papo. Conversando, varo a noite,recordando e revivendo com amigos experiências passadas que vivemos

Page 169: Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra

juntos.Hádoisou três anos,Elza e eu recebemosemnossa casaumavelhaamiga. Ela trabalhou comigo no Chile. É uma excelente socióloga, e gostomuitodela.Elatambéméumaamantedavida,comoeu.E,comoeu,adorapisco,bebidatípicadeseupaís.ElametrouxeumagarrafadoChile.Lembroque passamos a noite inteira conversando e bebendo pisco. Era o tipo deconversa emque falávamos de tudo e de coisa alguma, e tudo valia, nossasdúvidas,nossasrisadas,nossastristezas,nossasrecordações,nossafelicidade,nossacríticasobreoquefizemoseoquenãofizemos.Revivemospartedesuavida,quandoeramuito jovemnoChilee,depois,umapartedeminhavida,quandotrabalheinoChileeelafoiminhaassistente.

Gosto desse tipo de coisa, bater papo com amigos. Aqui, nos EstadosUnidos, faço isso com meus amigos sempre que possível. Lembro-me dasmuitas horas que passei, uns dois anos atrás, conversando comvocê e comHenryGiroux.AovirparaosEstadosUnidos,pareinoMéxicoepasseihorascomamigosdali, falandoe recordando.Nãosintoestarperdendo tempoaofazer isso.Aprendomuito comessesbate-papos.Paramim, essas conversassão tão ricas quanto um seminário programado, e podem resultar tãorigorosasquantoele.DevoltaaoBrasil,muitasvezes,depoisdeumaconversacomumamigo,vouparacasaeregistroalgunsdostópicosdenossaconversaereflitoarespeitodeles.Paramim,conversarcomduas,três,quatrooumaispessoaséummododeleromundo.

Gostodecomer.Nãoseisevocêconcorda,mascreioquehácertaconexãoentrecomer,gostardecomer,sensualidadeecriatividade.Devoconfessarquetenhoumpoucodemedodegentequemedizquenãogostadecomer.Ficoum pouco desconfiado (a não ser em caso de doença, naturalmente). Masdesconfio de alguémque simplesmente prefere pílulas ou comida plástica aumbomprato,comoumafeijoadabrasileira,umacatchupacabo-verdianaouumpratoportuguês.Agora,podeserquesetroquecomidaporpílulas,eissotambém seria cultura. Afinal de contas, o paladar é cultural. Mas vivointensamente e culturalmentepara saborearminha comida!Passei dezesseisanosexilado,comElzameajudandoasobreviverprocurandoportodaparteascoisasquetivessemosabordacozinhabrasileira.

Paramim,comeréumatosocial,comoconversar.Quandocomosozinho,não tenho prazer na comida, pormelhor que ela seja, porqueme sinto de

Page 170: Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra

certa forma limitado.Precisocomercomoutraspessoas.Acomida servedemediadorparaaconversa.Tambémgostodebeberumpouco.Nãosósucosde frutas, que adoro, mas também a cachaça brasileira, ou um bom vinhofrancês,chilenooucaliforniano.Eadoroumbomvinhoportuguês.

Gostotambémdetodotipodemúsica,nãosódachamadamúsicaclássica.Em casa, quando estou exausto por excesso de trabalho, uma boa peçamereanima.Vivaldi,ouVilla-Lobos.Villa-LobosmearrastaparaomistériodaAmazônia.Háumapoderosaforçadaterraemsuamúsicafantástica.Muitostiposdemúsicameenvolvememetrazempaz.Osbluesnorte-americanos,osamba brasileiro, a morna cabo-verdiana. A morna cabo-verdiana é amodinhabrasileira,popularnocomeçodoséculo.QuandofuiaoCaboVerdepela primeira vez e ouvi amorna, tive saudade do Brasil, especialmente dotempoemqueamodinhaerapopular, tempoque eupróprionãovivi,masconheço pelamúsica. Amúsica popular tambémme fascina,mas amúsicaclássicaéclássica,suponho,porquetembasepopular.

Gostomuitode ler.Egostomuitodeescrever,muitoemboranão tenhafacilidade para escrever. Paramim, escrever sempre foi um exercício difícilmasagradável.Gostotambémdeoutrascoisas,comoesportes,especialmenteo futebol.Amoomar,aspraias.Egostomuitodecaminharpelapraiaedetomar banho de sol sob o sol tropical. Gosto de caminhar pelas grandescidades.NovaYorkmedescansa.Gostodemeperdernocentrodegrandescidades.Àsvezesnãome sinto tãobemquandomepercoemcomunidadespequenas.

Gostomuitoderecebercartas.Recebomuitascartaseprocurorespondê-lastodas,comaajudadeumaboaamiga.Devezemquandopensoquedeviamandar uma carta para o mundo, pedindo que as pessoas não meescrevessem, porque nãome é fácil responder a todas as cartas que recebo.Masessaminhaamigasedispôsaajudar-meetemmeauxiliadomuito.

Amoascrianças.Possoestarenganado,mascreioqueascriançastambémgostammuitodemim.Nãosómeusnetos,queevidentementesabemquesouseuavô,masascriançasnarua.NaEuropa,costumavammechamardePapaiNoel,noBrasiltambém,porcausademinhabarbabranca.Elasvêmcorrendoparamimnasruas.Àsvezesmeperguntoporqueisso.Tomaraqueeunãoasassuste!

Page 171: Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra

Aos23anos,recém-casado,comeceiadescobrir,masaindanãoeracapazde expressá-lo com clareza, que o único modo de nos mantermos vivos,alertasedesermosverdadeirosfilósofosénuncadeixarmorreracriançaqueexiste dentro de nós. A sociedade nos pressiona para que matemos essacriança, mas devemos resistir, porque quando matamos a criança que hádentro de nós estamos nosmatando.Murchamos e envelhecemos antes dotempo.Tenhoagora62anos,masfrequentementemesintocomdezouvinte.Quandosubocinco lancesdeescadameucorpomefaz lembrara idadequetenho, mas o que há dentro de meu velho corpo está intensamente vivo,simplesmente porque preservo a criança que há dentro de mim. Creiotambémquemeucorpoéjovemetãovivoquantoessacriançaquefuioutroraequecontinuoaser,essacriançaquemelevaaamartantoavida.

Sinto-meinteriormenteincompleto,nosníveisbiológico,afetivo,críticoeintelectual,eessaincompletitudemeimpele,demaneiraconstante,curiosaeamorosa na direção das outras pessoas e do mundo, em busca desolidariedadeedetranscendênciadasolidão.Tudoissoimplicaquereramar,umacapacidadeparaamarqueaspessoastêmquecriardentrodesimesmas.Essacapacidadeaumentanamedidaemqueseama;diminui,quandosetemmedo de amar. Claro que em nossa sociedade não é fácil amar, porquetiramos da tristezamuito de nossa felicidade; isto é,muito frequentemente,paranossentirmosfelizes,éprecisoqueoutrosestejamtristes.Édifícilamaremtaiscircunstâncias,masénecessáriofazê-lo.

Amo as coisas simples, os lugares costumeiros, do dia a dia.Detesto osajuntamentos sofisticadoseesnobes,ondeaspessoasnãosabemoque fazercomasmãos:devopô-lasnobraçodacadeira,ficarbrincandocomagravata,comabarba?Quandoagentenãosabeoquefazercomasmãoséporquenãoestá à vontade. Detesto esse tipo de ajuntamento. Gosto de me sentir àvontade.

Amo saber que amo Elza. Estamos casados e sentindo nosso amorrecíprocoháquarentaanos.Gostodeestarcomelaecommeusfilhos.Gostodeserpai.Nuncaacheinadadeerradoemserpai.Quandojovem,eupensavaque viver e dormir com uma mulher (e, daí, vem mais gente, sem serchamada, e de quem depende o mundo) poderia interromper minha vidaintelectual.Seassimfosse,aindaprefeririaminhavidacomElzaecommeus

Page 172: Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra

filhos àminha vida intelectual.Como, porém, jamais achei queminha vidafamiliareminhavidaintelectualfossemincompatíveis,pudeterumafamíliaeescrever, ao mesmo tempo. Minha família não interfere em meu ato deescrever,eestenãointerferenoamorquetenhoporminhafamília.Porissoéqueescrevocomgrandeamorequeamoescrever.

Macedo:Queconselhofinalvocêdariaaosleitores?

Freire:Nãopossodarnenhumconselhoespecífico,maseisaquialgumassugestões fraternais. Em primeiro lugar, comece a reler este livro. Essasegundaleituradevesermaiscríticadoqueaprimeira.Estasugestãovalenãosóparaestelivro,comoparatodaleituraquevocêfizer.

Quer em relação a uma gota de chuva (uma gota que ia cair, mas quecongelou, gerandoum lindo sincelo), aumpássaroque canta, aumônibusquecorre,aumapessoaviolentanarua,aumafrasenojornal,aumdiscursopolítico, ao “fora” de umnamorado, ao que quer que seja, devemos adotarumaposição crítica, a da pessoa que questiona, queduvida, que investiga equequeriluminaravidamesmaquevivemos.

Oquesugiroéaprenderosentidodenossaalienaçãodiária,parasuperá-la,aalienaçãodenossarotina,darepetiçãoburocráticadascoisas,defazeramesmacoisatododiaàsdezhoras,porexemplo,porque“temqueserfeito”,semnuncaquestionarmosporquê.Devemostomaravidaemnossasprópriasmãos e começar a exercer controle.Devemos procurar enfrentar o tempo eescaparaseudomínio.

Nessas sociedades complexas vemo-nos, por vezes, vivendo muitosubmergidospelotempo,semumaapreciaçãocríticaedinâmicadahistória,como se a história estivesse flutuando sobre nós, comandando e regulandoincansavelmentenossasvidas.Issoéumfatalismoqueimobiliza,nossufocaefinalmentenosmata.Ahistórianãoénadadisso.Ahistórianãotempoder.ComodisseMarx, ahistórianãonoscomanda, ahistória é feitapornós.Ahistória nos faz enquanto a fazemos.Mais uma vez, minha sugestão é queprocuremos emergir dessa alienante rotina diária que se repeteinfindavelmente. Vamos compreender a vida, não necessariamente como arepetiçãodiáriadascoisas,mascomoumesforçoparacriarerecriar,ecomoum esforço de rebeldia, também.Vamos tomar nasmãos nossa alienação eperguntar: “Por quê?”, “Isso tem que ser desse modo?”. Creio que não.

Page 173: Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra

Precisamos ser sujeitos da história, ainda que não consigamos deixartotalmente de ser objetos da história. E, para sermos sujeitos, precisamosindiscutivelmenteexaminarahistóriacriticamente.Comoparticipantesativose verdadeiros sujeitos, podemos fazer a história apenas se continuamenteformoscríticosdenossasprópriasvidas.

Page 174: Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra

APÊNDICE

CARTAAMÁRIOCABRAL

CarocamaradaMárioCabral,

Desde o primeiromomento emque começamos o nosso diálogo, pormeiodas primeiras cartas que lhe fiz, diálogo que não apenas continuou e seaprofundou,masque também se vemestendendo a outros camaradas, umapreocupaçãoconstantenosacompanhou:ade jamaisnosvermos, emnossacolaboraçãoàGuinéeaoCaboVerde,como“expertos internacionais”,mas,pelo contrário, como militantes. Como camaradas, engajando-nos mais emais, no esforço comumde reconstrução nacional.O que quero dizer comisso ou reafirmar é que, para nós, não só individualmente, mas enquantoequipe, seria impossível um tipo de colaboração em que funcionássemoscomo“consultorestécnicos”,desapaixonadamente.Assimtambém,poroutrolado, é que vocês todos nos receberam. Assim também é que vocêsentenderam, desde o princípio, a nossa presença aí.Oque vocês queriam eesperavamdenóseraoquebuscávamosfazereser.

Não tivesse havido esta coincidência e, não raro, poderíamos ter sidotomadoscomoimpertinentes,numounoutromomentodenossotrabalhoemcomum,quandooquesemprenosmoveufoiecontinuaaseronossoespíritodemilitância.

É com este mesmo espírito que lhe escrevo mais esta carta. Carta que,emboraescritaeassinadapormim,sumariaaposiçãode todaaequipeeseconstitui numa espécie de relatório, mesmo incompleto, de nossa últimareuniãoemGenebra,emquetentamosumbalançodasatividadesaquetemosestadotãoligadosnaGuiné-Bissau.

Recordemos aqui, ainda que rapidamente, como necessidade didática,alguns dos pontos que, juntos, o Comissariado de Educação e nós vimosestabelecendocomofundamentais,desdeoscomeçosdetaisatividades:

a)aalfabetizaçãodeadultos,comotodaeducação,éumatopolítico,nãopodendo, por isso mesmo, ser reduzida ao puro aprendizado mecânico daleituraedaescrita;

Page 175: Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra

b)oaprendizadodaleituraedaescritadetextos,emcoerênciacomalinhapolíticadoPAIGC,comaqualconcordamos, implicaacompreensãocríticadocontextosocialaqueostextossereferem;demandaa“leitura”darealidadeatravésdaanálisedapráticasocialdosalfabetizandos,dequeoatoprodutivoéumadimensãobásica.Daíaimpossibilidadedeseparar-seaalfabetizaçãoeaeducaçãoemgeraldaproduçãoe,porextensãonecessária,dasaúde;

c) a introdução da palavra escrita em áreas onde a memória social éexclusiva ou preponderantemente oral pressupõe transformaçõesinfraestruturais capazes de tornar necessária a comunicação escrita. Daí anecessidadequesetevedeestabelecerasáreasprioritáriasparaaalfabetização,istoé,aquelasqueestivessemsofrendotaistransformaçõesouporsofrê-lasacurtoprazo.

Tomandoestesitenscomocampodereferênciaparaaanálisedoquefoipossível fazer neste ano e pouco de experiências, de que tanto temosaprendido,resultaóbvioqueopontocentral,oproblemamaioraserpensadoediscutido,éodalíngua.

Em várias oportunidades, não somente em cartas, mas também emreuniões de trabalho, aí, a questão da língua foi discutida. Debatemo-la noseiomesmo da ComissãoNacional, na sessão de sua instalação e, uma vezmais,naúltimadesuasreuniões,senãomeequivoco.Poucasnãoforam,poroutro lado, as vezes em que tratamos este problema com os membros daComissão Coordenadora, voltando a ele, aí, em junho passado, numa dasreuniões de estudos a que você presidiu e de que Mário de Andradeparticipou,juntamentecomcamaradasdeoutrossetoresdoComissariadodeEducação. Reunião em que Marcos Arruda76 propôs, num pequeno texto,algumas sugestões a propósito. Poderia, finalmente, citar ainda a últimaconversaquetivemoscomocamaradapresidente,cujonúcleoprincipalfoialíngua.

Há um ano e pouco, se não estamos interpretando mal a política dogoverno, se pensava que seria viável a alfabetização em língua portuguesa,mesmoreconhecendo-seocrioulocomolínguanacional.Arazãoradicalparaa alfabetização na língua estrangeira era a inexistência ainda da disciplinaescrita do crioulo. Enquanto esta disciplina não fosse alcançada, pensava-sequenãohaviaporquedeixaropovoiletrado.Osprópriosresultadosquese

Page 176: Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra

vinham obtendo com a alfabetização em português, no seio das FARPs,77reforçavamestahipótese.

Oqueaprática,porém,vemevidenciandoéqueoaprendizadodalínguaportuguesasedá,mesmocomdificuldades,noscasosemqueestalínguanãose acha totalmente estranha à prática social dos alfabetizandos, o que é, deresto,óbvio.Esteé,exatamente,ocasodasFARPs,comoodecertossetoresde atividades de centros urbanos como Bissau. Mas este não é o caso doscentros rurais do país, em que se encontra a maioria esmagadora dapopulação nacional, em cuja prática social a língua portuguesa inexiste.Naverdade,alínguaportuguesanãoéalínguadopovodaGuiné-Bissau.Nãoéporacasoqueocamaradapresidentesecansa,comonosafirmou,quandotemdefalar,porlongotempo,emportuguês.

O que se vem observando, nas zonas rurais, apesar do alto nível deinteresse e demotivação dos alfabetizandos e dos animadores culturais, é aimpossibilidadedoaprendizadodeumalínguaestrangeiracomoseelafossenacional.Deumalínguavirtualmentedesconhecida,poisqueaspopulações,duranteosséculosdepresençacolonial,lutandoporpreservarsuaidentidadecultural, resistiram a ser “tocadas” pela língua dominante, no que foram“ajudadas” pela maneira como os colonizadores se comportaram quanto àorganizaçãodasforçasprodutivasdopaís.Ousodesuaslínguasdevetersido,pormuito tempo, um dos únicos instrumentos de luta de que dispunham.Nãoédeestranhar,pois,queosprópriosanimadoresculturaisdestasmesmaszonasdominemprecariamenteoportuguês.De estranhar seriaque, em taiscircunstâncias,oaprendizadodalínguaportuguesaseestivessedando,mesmoqueapenasrazoavelmente.

Seháumaárea,porexemplo,decujoesforçodealfabetizaçãoeralegítimoesperar os melhores resultados, esta área é Có. O Centro Máximo Górki,integrando-secadavezmaisàvidadascomunidadesemtornodele,contandocomprofessores efetivos e estagiárias comaltonívelde consciênciapolítica,tinha todas as condiçõesnecessáriaspara tornar-seumnúcleode apoio aostrabalhosdealfabetização.Oqueseobservou,porém,aolongodaexperiênciae se comprovou em junho passado com a avaliação feita por Augusta78 eMarcosArruda équeos alfabetizandos,duranteos largosmesesde esforço,nãoconseguiramfazeroutracoisasenãoumacaminhadacansativaemtorno

Page 177: Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra

daspalavrasgeradoras.Marchavamdaprimeiraàquinta;naquinta,haviamesquecidoaterceira.Voltava-seàterceiraesepercebiaquehaviamolvidadoaprimeira e a segunda. Por outro lado, ao procurarem criar palavras com ascombinaçõessilábicasdequedispunham,raramenteofaziamemportuguês.Eu mesmo tive a oportunidade de ver palavras portuguesas, mas cujasignificação era outra, completamente, pois era em mancanha79 quepensavam.Porquê?Porquealínguaportuguesanãotemnadaavercomsuapráticasocial.Nasuaexperiênciacotidiana,nãoháumsómomento,sequer,emquealínguaportuguesasefaçanecessária.Nasconversasemfamília,nosencontrosdevizinhos,notrabalhoprodutivo,nascomprasnomercado,nasfestas tradicionais, ao ouvir o camarada presidente, nas lembranças dopassado.Nestas,oquedeveestarclaroéquea línguaportuguesaéa línguados“tugas”,dequesedefenderamdurantetodooperíodocolonial.

Poder-se-ia argumentar que esta dificuldade no aprendizado se deve àinexistênciademateriaisde suporte.Oquenosparece,porém,équea faltadessesmateriais,nosentidomaisamplopossível,quepoderiaser,emoutrascircunstâncias, a causaprincipal do fato, nesta é puramente adjetiva.Oquequero dizer é que, mesmo dispondo de um bom material de ajuda, comoteremos com oCaderno de educação popular, os resultados seriam apenaspoucomelhores.ÉqueoCaderno,enquantomaterialdesuporte,emsi,nãoécapazdesuperararazãofundamental,substantiva,dadificuldade:aausênciadalínguaportuguesanapráticasocialdopovo.Eestalínguaestrangeira—oportuguês—nãofazpartedapráticasocialdasgrandesmassaspopularesdaGuiné-Bissau, uma vez que não se insere em nenhum dos níveis daquelaprática. Nem no nível da luta pela produção, nem no dos conflitos deinteresses, nem no da atividade criadora do povo. O aprendizado de umalíngua estrangeira se impõe a pessoa ou a grupos sociais, como umanecessidade,quando,empelomenosnumdessesníveis,esteaprendizadosetornaimportante.

Insistir, pois, em nosso caso, no ensino do português, significa impor àpopulaçãoumesforçoinútileimpossíveldeseralcançado.

Não seria demasiado— pelo contrário, absolutamente indispensável—alongarumpoucomaisestasconsideraçõesemtornodalíngua,noquadrodareconstruçãonacional,dacriaçãodeumasociedadenovaemqueseeliminea

Page 178: Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra

exploraçãodeunsporoutros,de acordocomos ideaismaioresque sempreanimaram o PAIGC. Ideais com a encarnação dos quais o PAIGC se veioforjandocomovanguardaautênticadopovodaGuinéeCaboVerde.

Amanutenção,pormuitotempo,dalínguaportuguesa,mesmoqueselhechame,apenas,delínguaoficial,mascomprerrogativas,naprática,delínguanacional, pois que é através dela que se vem fazendo parte substancial daformação intelectual da infância e da juventude, trabalhará contra aconcretizaçãodaquelesideais.

Sublinhemos que não pretendemos dizer com isso que o partido e ogoverno devessem ter suspendido todas as atividades educativo-sistemáticasdopaís,enquantonãocontassemcomocriouloescrito.Issoétãoabsurdoquenãopodesequerserpensado.Enfatizamos,sim,éaurgênciadetaldisciplinaqueviabilizará,emtermosconcretos,ocrioulocomolínguanacional,dequeresultaráqueoportuguês,nosistemaeducacionaldopaís,assumirá,apoucoepouco,oseuestatutoreal—odelínguaestrangeirae,comotal,seráensinada.

Namedida,aocontrário,emqueoportuguêscontinuaraser,nosistemaeducacional,alínguaquemediatizagrandepartedaformaçãointelectualdoseducandos, será bastante difícil uma real democratização desta formação,apesar dos esforços indiscutíveis que se vêm fazendo e que se continuará afazerneste sentido.A línguaportuguesa terminaráporestabelecerumcortesocial no país, privilegiando uma pequena minoria urbana com relação àmaioria esmagadora da população. Será indubitavelmentemais fácil àquelaminoria,comacessoaoportuguêsporsuaprópriaposiçãosocial,avantajar-seà maioria na aquisição de certo tipo de conhecimento, bem como naexpressão oral e escrita, com que satisfaz um dos requisitos para a suapromoçãonosestudos,comnconsequênciasquepodemserprevistas.

Quefazercomorespostaaestedesafio,sobretudoquandosecontacomavantagem,quenem sempreocorre, da existênciadeuma línguadeunidadenacional, o crioulo?Que política de ação poderíamos adotar, adequada aosdadosconcretosdestarealidade?Nãotendoapretensãoderesponderaestasquestões, em sua complexidade, questões que envolvemapolítica cultural eeducacionaldopaís,nos limitamos, apenas, a algumas sugestões, a títulodecolaboraçãohumilde,quefazemosenquantocamaradas.

Page 179: Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra

Emprimeirolugar,nospareceurgenteconcretizaroquevocêeMáriodeAndradevêmpensando,eaquemereferiacima,istoé,adisciplinaescritadocrioulo,comoconcursodelinguistasquesejamigualmentemilitantes.

Enquanto este trabalho de disciplina do crioulo se estivesse fazendo,limitaríamos,nocampodaaçãocultural,aalfabetizaçãoemportuguês:

1. àáreadeBissau,ondeapopulação,dominandoperfeitamenteocrioulo,tem familiaridade com o português. Aí, sobretudo, a alfabetização emportuguês se faria nas frentes de trabalho, em que ler e escrever estalínguapodemsignificaralgoimportanteparaosqueaprendemeparaoesforçodereconstruçãonacional;

2. a certas áreas rurais, quando e se os programas de desenvolvimentoeconômico-social exigirem dos trabalhadores habilidades técnicas que,porsuavez,demandemaleituraeaescritadoportuguês.Nestecaso,seocrioulo não é falado fluentemente como se dá em Bissau, impõe-se,ainda, o reestudo dametodologia a ser usada para o ensino da línguaportuguesa.

Em qualquer dos casos, porém, se faria indispensável discutir com osalfabetizandos as razões que nos levam a realizar a alfabetização emportuguês.

Percebe-se,assim,quãolimitadaseriaaaçãonosetordaalfabetizaçãodeadultos. E que fazer com relação às populações que não se encontram nashipótesesreferidas?Engajá-las,apoucoepouco,emfunçãodaslimitaçõesdepessoal e dematerial, num esforço sério de animação ou ação cultural. Emoutraspalavras,na“leitura”,na“releitura”ena“escrita”darealidade,semaleituraeaescritadepalavras.

A ação cultural, enquanto ação político-pedagógica que inclui aalfabetização,nemsempre,porém,estáobrigadaagiraremtornodela.Muitasvezes é possível e, mais do que possível, necessário trabalhar comcomunidadesna“leitura”desuarealidade,associadaaprojetosdeaçãosobreela,comohortascoletivas,cooperativasdeprodução,emestreitaligaçãocomesforçosdeeducaçãosanitária,semque,porém,apopulaçãonecessitedeler

Page 180: Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra

palavras.Donde podemos afirmar que, se todo aprendizado da leitura e daescrita de palavras, numa visão política tal qual a do PAIGC e a nossa,pressupõe, necessariamente, a “leitura” e a “escrita” da realidade, isto é, oenvolvimentodapopulaçãoemprojetosdeaçãosobrearealidade,nemtodoprogramade ação sobre a realidade implica, inicialmente, o aprendizadodaleituraedaescritadepalavras.

Visando à mobilização das populações, à sua organização para que seengajem em projetos de ação transformadora de seu meio, a ação culturaldeve partir de um conhecimento preciso das condições deste meio; de umconhecimentodasnecessidadessentidasdaspopulações,dequearazãodesermaisprofundanemsemprejáfoipercebidaeclaramentedestacadaporelas.

A“leitura”darealidade,centradanacompreensãocríticadapráticasocial,lhesproporcionaestaclarificação.Nãofoiporacasoqueumparticipantedeexcelenteprogramadeaçãocultural,oudeanimaçãocultural,oudeeducaçãopopular,nãoimportaonomequeselhedê,deSedengal,afirmou:“Antes,nãosabíamosquesabíamos.Agora,sabemosquesabíamosequepodemossabermais.”

Pareceforadedúvidaqueestecamarada,quesevemapropriandodeumacompreensãocríticadoqueéoconhecimento,de sua fonte, ao fazeraquelaafirmação, não se referiu ao domínio precário que vinha exercendo,penosamente,sobreumaououtrapalavrageradoraemportuguês.Referia-se,sim,àsdimensõesdarealidadequeelevinhadesvelando,comosoutros,notrabalhoprodutivo,nahortacoletiva.

Umdos problemas que se colocam, nomomento, no caso específico deSedengal,éarespostaconcretaàúltimapartedodiscursodaquelecamarada,quedeveexpressaroníveldecuriosidadenãosódelemasdosdemais.Istoé,aresposta, traduzida em termos de ação e reflexão, ao que ele diz tãoclaramente: “Agora sabemosquepodemos sabermais.”Oque se impõe é adefinição com eles, do que deve constituir-se como “universo” deconhecimento apontado no “agora sabemos que podemos sabermais”. Emoutraspalavras,delimitaroquesepodesabermais.

Observe-se, por outro lado, o indiscutível nível de abstração teóricaexpressonodiscurso,independentementedenãoseroseuautoralfabetizado.Elepartedaafirmaçãodeque“antesnãosabiamquesabiam”.Aodescobrir,

Page 181: Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra

engajadosnaproduçãodecarátercoletivo,quesabiam,infere,corretamente,“que podem agora saber mais”, mesmo que não delimite o objeto a serconhecido.Ofundamental,emseudiscurso,nomomentoemqueofez,eraaafirmaçãogeralemtornodapossibilidaderealdeconhecermais.

Nãohádúvidadequeseriainteressanteseesforçosdeaçãoculturalcomoo de Sedengal, para falar só neste, pudessem já incluir, com êxito, aalfabetização.Independentementedela,contudo,Sedengalseafirma,cadavezmais, hoje, a nível nacional, na Guiné-Bissau. E se afirma não porque osparticipantesdosCírculosdeCulturativessemchegadoapoderescreverelerpequenas frases em língua portuguesa mas porque, em certo momento dainviável aprendizagem daquela língua, descobriam o possível: o trabalhocoletivo. E foi dando-se a esta formade trabalho, com a qual começaram a“reescrever” sua realidade e a “relê-la”, que tocaram e despertaram acomunidadetodae,tudoindica,poderãotornarSedengalumcasoexemplar.

Nenhum texto, nenhuma leitura mais correta poderiam ter sidoapresentadosnoencerramentodaprimeirafasedeatividadesdosCírculosdeCulturade Sedengal, de queo camaradaMárioCabral participou, doque ahorta coletiva, do que a presença atuante de uma população engajada noempenhodereconstruçãonacional.

Sedengalé jáumexemploconcreto, incontestável,domuitoquesepodefazer no país através da ação cultural sem a alfabetização; é uma fonteriquíssimadeaprendizagem,decapacitaçãodenovosquadros.

Parece-nos que em Có, onde se encontram, como se sabe, condiçõesaltamente favoráveis, sepoderia tentarumasegunda frentedeaçãocultural,integrando-sesaúdecomagricultura,mesmoquesepudesseter,comopontode partida, a saúde. Para isso, procuraríamos elaborar um manual sobreeducação sanitária, dirigido aos animadores e contendo as noções maiselementares sobre como pode a comunidade, pelo trabalho coletivo e pelatransformaçãodomeio,melhorarasuasaúdeeprevenirdoenças.

Umanteprojetodestemanual,elaboradoaquiemsuaslinhasgerais,serialevado em setembro aBissau, onde, se aceita anossaproposta, seria revistopelos especialistas nacionais e, em seguida, mimeografado. Em outubro, sefaria a capacitação dos animadores e se começaria o programa em seusprimeirosmomentos.

Page 182: Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra

O desenvolvimento da experiência, a ser bem acompanhada epermanentemente avaliada, serviria para aperfeiçoar a formação dosanimadores, testaremelhoraromanualedesafiara inventividadede todos,noquedizrespeitoàcriaçãodenovosmateriaisdeapoio.Denovasformasdelinguagem, adequada à realidade, com que a comunicação se faça maiseficientemente.

Sesetratassedeumaáreacujapopulaçãoseachassepoucotrabalhadadoponto de vista político, outro procedimento inicial teríamos de ter. Todossabemos, porém, o que vem representando a atuação do Centro MáximoGórkijuntoàspopulaçõesdastabancasdeCó,bemcomoopapelquejuntoaelastemjogado,também,ocomitêdopartido.

Destamaneira,deumlado,teríamosSedengalmarchando,desenvolvendonovos conteúdos programáticos de ação cultural, com a colaboração, hoje,cadavezmaior,doComissariadodeAgricultura,aqueodeSaúdesejuntará;deoutro,oprojetodeCóeambos, comodisseantes, constituindo-se comofontes de experiência e centros dinâmicos para a capacitação de quadros atrabalharemprogramasdeoutrasáreas.

Estas são, em linhas gerais, amigo e camarada Mário Cabral, asconsideraçõesquegostaríamosdefazerchegaravocê,ummêsantesdaidaaídeMiguel,RosiskaeClaudius.80

Comumabraço fraternodeElza emeuà camaradaBeatriz e a você, aoqualaequipetodajuntaoseutambém.

PauloFreireGenebra

15dejulhode1977

Page 183: Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra

Notas76 MembrodaequipedoIDAC,naépoca.

76 ForçasArmadasPopulares.

78 MembrodaequipedoComissariadodeEducação.

79 Umadaslínguasnacionais.

80 MiguelD’ArcydeOliveira,RosiskaD.deOliveiraeClaudiusCeccon(IDAC).

Page 184: Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra

BibliografiaBakhtin,Mikhail.The Dialogic Imagination: Four Essays. Apud Rosen, Harold. “The Importance of

Story”.LanguageArts,63,1986,p.234.

Bennett,William.NewYorkTimes,26e27/9/1985.

Bourdieu,Pierre;Passeron,Jean-Claude.ReproductioninEducation,Society,andCulture.BeverlyHills,Califórnia:Sage,1977.

Caetano,J.BoletimdaSociedadedeGeografia,3asérie.Lisboa:s/d.

Cummings,J.“FunctionalLanguageProficiencyinContext:ClassroomParticipationasanInteractiveProcess”, in Tikunoff, William (org.). Significant Instructional Features in Bilingual Education:ProceedingsofSymposiumatNABE1983.SãoFrancisco,Califórnia:FarWestLaboratory,1984.

Donald,James.“Language,Literacy,andSchooling”,inTheStateandPopularCulture.MiltonKeynes:OpenUniversity,U203PopularCultureUnit,1982.

Fowler,Rogeretalii.LanguageandControl.Londres:RoutledgeandKeganPaul,1979.

Freire,Paulo.PedagogyinProcess.NovaYork:SeaburyPress,1978.

Giroux,HenryA.Theory andResistance in Education:APedagogy for theOpposition. SouthHadley,Massachusetts:J.F.BerginPublishers,1983.

Giroux,HenryA.;McLaren,Peter.“TeacherEducationandthePoliticsofEngagement:TheCase forDemocraticSchooling”.HarvardEducationalReview,agostode1986.

Kenneth,J.“TheSociologyofPierreBourdieu”.EducationalReview,25,1973.

Lukas,J.Anthony.CommonGround.NovaYork:AlfredA.Knopf,1985.

Myers, Greg. “Reality, Consensus, and Reform in the Rhetoric of Composition Teaching”. CollegeEnglish,48,n.2,fevereirode1986.

Rosenblatt,Louise.“TheEnrichingValuesofReading”,inGray,WilliamS.(org.).ReadinginanAgeofMassCommunication.NovaYork:Appleton-Century-Crofts,1949.

Unesco.AnAsianModelofEducationalDevelopment:Perspectivesfor1965-1980.Paris:Unesco,1966.

Walmsley,Sean.“OnthePurposeandContentofSecondaryReadingPrograms:EducationalIdeologicalPerspectives”.CurriculumInquiry,11,1981.

Page 185: Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra

COORDENAÇÃOEDITORIALIzabelAleixo

PRODUÇÃOEDITORIALHugoLangone

REVISÃOLuciaSerra

MarianaOliveira

PROJETOGRÁFICOPriscilaCardoso

DIAGRAMAÇÃODAVERSÃOIMPRESSATrioStudio

Page 186: Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra

Estee-bookfoidesenvolvidoemformatoePubpelaDistribuidoraRecorddeServiçosdeImprensaS.A.