Alfred Marshall - Princípios de Economia Vol. 1

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OS ECONOMISTAS

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  • OS ECONOMISTAS

  • ALFRED MARSHALL

    PRINCPIOS DE ECONOMIA

    TRATADO INTRODUTRIO

    Natura Non Facit Saltum

    VOLUME I

    Introduo de Ottolmy Strauch

    Traduo revista de Rmulo Almeida e Ottolmy Strauch

  • FundadorVICTOR CIVITA

    (1907 - 1990)

    Editora Nova Cultural Ltda.

    Copyright desta edio 1996, Crculo do Livro Ltda.

    Rua Paes Leme, 524 - 10 andarCEP 05424-010 - So Paulo - SP

    Ttulo original:Principles of Economics: An Introductory Volume

    Direitos exclusivos sobre a Apresentao de autoriade Ottolmy Strauch, Editora Nova Cultural Ltda.

    Impresso e acabamento:DONNELLEY COCHRANE GRFICA E EDITORA BRASIL LTDA.

    DIVISO CRCULO - FONE (55 11) 4191-4633

    ISBN 85-351-0913-7

  • INTRODUO(Ensaio biobibliogrfico sobre Alfred Marshall)

    A verdade biogrfica indevassvel

    (Freud a Arnold Zweig)

    Marshall pertence, legitimamente, linhagem dos grandes mes-tres fundadores da Economia Poltica Clssica inglesa Adam Smith,Ricardo, J. S. Mill , corrente de pensamento das mais fecundas que,brotando da Revoluo Industrial, expandiu-se no sculo XIX e es-praiou-se at nossos dias por ramificaes e canais doutrinrios osmais diversos. Essa corrente teve trs pocas distintas: a Clssica pro-priamente dita, a Ricardiana e a Marshalliana ou Ricardiana-Refor-mada.1 Os Princpios de Economia de Marshall constituem, juntamentecom A Riqueza das Naes de Adam Smith, e os Princpios de Ricardo,um dos grandes divisores de guas no desenvolvimento das idias eco-nmicas,2 representando a transio da antiga para a moderna Eco-nomia. Na histria do pensamento econmico, Marshall tem um lugarproeminente, sendo considerado o chefe da chamada escola neoclssicade Cambridge; ttulo, alis, a que ele jamais se arrogou, embora fosseconsciente de sua posio hegemnica no mundo anglo-saxnico, o queexplica muito do que ele fez e do que se omitiu.

    Segundo a conhecida rvore Genealgica da Economia traadapor Samuelson,3 Adam Smith (1723-1790), gnio tutelar da escola cls-sica, gerou David Ricardo (1772-1883), o pai de todos, que gerou duas

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    1 SHOVE, G. F. The Place of Marshalls PRINCIPLES in the Development of EconomicTheory. In: Economic Thought An Historical Anthology. GHERITY, James A. (ed.).New York, Random House, 1965. p. 453 (publicado originalmente no Economic Journal.LII, 1942. p. 284-329).

    2 SHOVE. Loc. cit.3 Introduo Anlise Econmica. 8 ed., Rio de Janeiro, Agir Editora, 1975.

  • correntes opostas: uma, ortodoxa, personificada em John Stuart Mill(1806-1876) e nos neoclssicos Lon Walras (1834-1910), William Stan-ley Jevons (1835-1882), e Alfred Marshall (1842-1924), a qual gerouJohn Maynard Keynes (1883-1946), de quem provieram, por sua vez,os neo e os ps-keynesianos dos nossos dias; outra, heterodoxa,representada por Karl Marx (1818-1883) e seus descendentes socia-listas cientficos matizados de hoje. Esses dois ramos dspares, e seusrebentos de diferentes graus de legitimidade ou bastardia em relaoaos seus respectivos troncos histrico-doutrinrios, constituem a teoriae a prtica da Economia contempornea.

    A contribuio de Marshall ao progresso da cincia econmica ,sem dvida, de importncia histrica. Herdeiro da rica herana inte-lectual dos economistas e pensadores dos sculos XVIII e XIX, tantoda Gr-Bretanha quanto do resto do continente europeu, exmio ma-temtico, versado em Cincias Naturais, Filosofia, Histria e clssicosda Antiguidade greco-romana, Alfred Marshall sistematizou e quanti-ficou o material de Adam Smith e Ricardo, complementando-o e tor-nando seus princpios e conceitos operacionais, ou seja, na linguagemtecnolgica de hoje, reciclou-os, tornando-os computveis. Inovandoou simplesmente sistematizando em matria doutrinria e de metodo-logia da anlise econmica, procurou despojar a Economia Poltica or-todoxa de seu pretenso dogmatismo, universalidade e intemporalidade,submetendo seus postulados a um rigoroso tratamento cientfico, es-pecialmente diagramtico e matemtico, sendo considerado, a justottulo, um dos precursores, com Cournot e Walras, do que hoje cha-mamos de Econometria. Marshall contribuiu, tambm, e sobretudo,para reabilitar e humanizar a Economia Poltica que, no curso da Revo-luo Industrial, criara um mtico homo economicus, lobo de seu seme-lhante, movido exclusivamente pelo interesse pessoal na luta pela sobre-vivncia do mais forte, num darwinismo social impiedoso e incessante.

    Para Marshall, a Economia com suas anlises e leis no era umcorpo de dogmas imutveis e universais, e de verdade concreta, masuma mquina para a descoberta da verdade concreta. Keynes, seudiscpulo dileto em Cambridge e seu mais eminente bigrafo, refere-se sua descoberta de um completo sistema copernicano no qual todosos elementos do universo econmico so mantidos em seus lugares pormtuo contrapeso e interao.4 O prprio Marshall, alis, j exprimiaessa concepo das posies mutuamente dependentes dos fatores eco-nmicos, mesmo antes da publicao dos Princpios, comparando o uni-

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    4 "Alfred Marshall, 1842-1924". In: The Economic Journal. XXXIV, n 135, setembro de 1924,p. 350. Republicado em Memorials of Alfred Marshall, ed. por A. C. Pigou, 1925, e nosEssay in Biography, 1933, do prprio Keynes. Nesse estudo, a mais completa biografia deMarshall, considerado por Schumpeter uma das notveis obras-primas da literatura bio-grfica, baseia-se, em grande parte, o presente ensaio biobibliogrfico.

  • verso econmico ao sistema solar. Assim como o movimento de todocorpo no sistema solar afeta e afetado pelo movimento de todo outro,assim com os elementos do problema da Economia Poltica.5

    Ainda na opinio de Keynes, Marshall foi, como cientista, dentrode seu campo prprio, o maior do mundo por cem anos.6 SummaEconomica e compndio bsico para geraes sucessivas de estudantes,professores e economistas profissionais, seus Princpios seriam, segundoalguns, a nica obra a conter toda a cincia econmica de seu tempo.Est tudo em Marshall era voz corrente nos crculos acadmicosdos pases de lngua inglesa e de grande parte da Europa continental,onde sua influncia predominou, inquestionvel, at recentemente, ten-do atingido seu znite no primeiro quartel deste sculo, a chamadapoca marshalliana por excelncia.

    Sua sombra gigantesca projeta-se at hoje sobre ns, reconheceuSchumpeter,7 um dos seus mais lcidos e severos crticos. E essa sombras tende a crescer na medida em que, na crista da onda neoconserva-dora, a ortodoxia poltica refluir ortodoxia econmica. Ainda que sobessa inspirao a releitura dos clssicos da Economia Poltica, em buscadas fontes originais do fundamentalismo econmico, ser salutar e,para alguns, surpreendente. Ver-se-, por exemplo, que Adam Smithtinha opinies heterodoxas como a dos maus efeitos dos altos lucrossobre a elevao dos preos, que o lucro um deduo do produto dotrabalho, que o trabalhador o nico produtor de valor e o trabalho,portanto, a medida real do valor de troca de todas as mercadorias.Ricardo, por sua vez, fazia do trabalho o estalo e a fonte criadora deriqueza, alm de haver apontado, pela primeira vez, para a expropriaoda mais-valia da mo-de-obra. Stuart Mill foi mais alm, pois erapartidrio da interveno do Estado na economia para coibir os abusosdo laissez-faire no mercado e acabou proclamando-se socialista. Quantoao nosso Marshall, sua obra, sob o rigor da densa e sistemtica anliseeconmica, est impregnada da questo social, interrogando-se cons-tantemente sobre se realmente haveria necessidade de existirem pobrespara que houvessem ricos, considerando a suprema finalidade da eco-nomia Poltica elucidar essa questo crucial. E at mesmo Marx, noextremo oposto do espectro doutrinrio, relidos seus prprios escritosem confronto com a vulgata de seus supostos intrpretes, adeptos ouadversrios, cuja interpretao, como a dos telogos, passa por dogmaexclusivo, acaba-se concordando com o prprio em que, afinal, ele noera marxista...

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    5 Artigo de Marshall de crtica Political Economy de Jevons, publicado em The Academyem 1872, um dos dois nicos artigos de crtica que Marshall jamais publicou; o outro versasobre Mathematical Psychics de Edgeworth em 1881, apud Keynes, ibid.

    6 Loc. cit. p. 321.7 "Alfred Marshalls Principles: A Semi-Centennial Appraisal". In: Ten Great Economists

    from Marx to Keynes. Nova York, Oxford University Press, 1951. p. 91.

  • Um eminente vitoriano

    A biografia de Marshall, isto , a cronologia de sua vida, nadamais que a moldura de sua obra como, via de regra, s acontece comos grandes pensadores e artistas, com as raras e histricas exceesde todos conhecidas. No h em sua vida acontecimentos que tenhamsignificado prprio, seno em funo de sua obra. De resto, em si averdade biogrfica indevassvel (como escreveu Freud a ArnoldZweig). Sua vida transcorreu, mansa e tranqila, ao longo de duasvertentes pacato professor e economista inovador , a exemplo deAdam Smith; vertentes, alis, convergentes, j que ele tinha por hbitocomunicar a seus colegas e discpulos, muito antes de public-las, suascriaes no campo da economia, e, por outro lado, como economistasempre teve a preocupao didtica de explicar e ensinar.

    Alfred Marshall nasceu em 26 de julho de 1842 em Clapham um bairro ento aprazvel de Londres filho de William Marshall eRebeca Oliver, de classe mdia. Seus ascendentes pelo lado paternoeram principalmente clrigos, alguns dos quais tiveram certa notorie-dade, tanto pela peculiaridade de suas convices religiosas como, nocaso de um deles notadamente, pela descomunal fora fsica. Seu paino seguiu a tradio familiar, mas quis que o filho o fizesse, o queele acabou no fazendo, como comum acontecer. Esse trao anglicano,porm, severo, asctico e antifeminista, especialmente pronunciado nosr. William, marcou a formao do jovem Alfred, orientada, a princpio,para a ordenao clerical. Mas no s ele no se ordenou, como nemmesmo, por fim, manteve-se crente; e a vida reservou-lhe ainda a irnicasurpresa de lev-lo a casar-se com uma das primeiras mulheres daInglaterra a obter grau universitrio a que sempre se ops porquesto de princpio e que, ademais, foi professora de Economia esua ativa colaboradora intelectual.

    Seu pai, carter resoluto e dominador mas no cruel, em que arispidez era temperada pela afeio familiar, era um evangelista eantifeminista militante, autor j na velhice (morreu com 92 anos) deum panfleto significativamente intitulado Os Direitos do Homem eos Deveres da Mulher. Ocupando a posio de certo relevo de Caixado Banco da Inglaterra, proporcionou ao filho uma infncia de relativoconforto mas exerceu desptica influncia nos primeiros estgios desua educao, financiada, no entanto, at o fim por bolsas, auxliode parentes e aulas particulares. Obrigava Alfred a estudar, at altashoras da noite, hebraico (ento preparatrio para a carreira eclesis-tica), que ele detestava e proibia-o, terminantemente, de praticar suasrecreaes prediletas a Matemtica, e o xadrez, consideradas fri-volidades ociosas; proibies essas que, em relao primeira, o jovemdesobedecia sistemtica e secretamente mas que, quanto segunda,ele respeitou a vida inteira, exceto quanto leitura, j adulto, de pro-

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  • blemas de xadrez. Esse controle e represso paternal teve um efeitomarcante e duradouro sobre Marshall. Sua pronunciada tendncia paraa hipocondria, sua relutncia em comprometer-se inequivocamente empublicar sem reservas e restries maciamente documentadas, seutemor indolncia e a ociosidade, sua rejeio fundamental de ativi-dades de puro prazer" (tal como a Matemtica) tm suas razes nasexperincias de sua infncia e juventude" a observao de Corry.8A que Keynes acrescenta: A hereditariedade poderosa e Marshallno escapou de todo da influncia do molde paterno. Um senso enrai-zado de predomnio em relao ao gnero feminino lutava nele comuma profunda afeio e admirao que sentia por sua prpria mulher,e com um meio que o lanou em contato estreito com a educao e aliberao das mulheres.9 Bem, isso o quanto basta sobre os antece-dentes familiares de Marshall e a influncia sobre a sua personalidade.

    Aos nove anos de idade, fez seus estudos de letras e lnguasclssicas num reputado estabelecimento de ensino (Merchant TaylorsSchool), graas a uma bolsa que seu pai, percebendo sua capacidade,obteve de um diretor do Banco da Inglaterra. Pela distino com quefez esse curso, que abrangia a Matemtica at o nvel de clculo di-ferencial, teria Alfred direito a uma bolsa de estudos clssicos naUniversidade de Oxford, requisito bsico para a sua ordenao na IgrejaAnglicana, a que, como foi dito, estava destinado pelo pai. Ele, porm,rejeitou o desgnio paterno, rebelando-se no propriamente contra ateologia ortodoxa mas contra o prosseguimento de estudos clssicos, efoi fazer um curso superior de Matemtica no St. Johns College daUniversidade de Cambridge, com dinheiro emprestado por um tio, em-prstimo que, uma vez formado, pagou em um ou dois anos, dandoaulas particulares de Matemtica.

    Alis, esse instrumental cientfico foi a vida inteira seu violondIngres, pois, se conseguiu consagrar-se como emrito economista, foisempre, no entanto, basicamente um excelente e exemplar matemtico.Menino ainda j lia livros da matria, escondido do pai, que felizmente,dizia Marshall, nada entendia do assunto. Ele tinha um gnio paraa Matemtica, reconheceu um dos seus primeiros professores, na Mer-chant School. Em Cambridge foi um dos mais brilhantes estudantesda matria de sua gerao. Ele prprio recorda o jovem terico queem 1869, com 27 anos, portanto, costumava pensar em matemticamais facilmente do que em ingls.

    A Matemtica foi a sua vocao bsica, seu primeiro ganha-po,e j quando economista seu principal instrumento analtico e metodo-lgico, alm de ter sido seu caminho de acesso Economia. Foi graas

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    8 CORRY, Bernard. Marshall, Alfred. In: International Encyclopedia of the Social Sciences.SILLS, David S. (ed.) The Macmillan Company The Free Press, 1968. v. 10, p. 25.

    9 Ibid, p. 312.

  • a ela que conseguiu transformar o material de Adam Smith, DavidRicardo e Stuart Mill, em uma mquina moderna de pesquisa. Osalicerces e o arcabouo semi-oculto de sua obra so matemticos. Suadvida para com a Matemtica, seu grande aliado impessoal, imensae, segundo alguns, jamais resgatada, pois que nunca lhe foi suficien-temente reconhecido e grato. A verdade que sua atitude em face daMatemtica, ou melhor, do seu emprego na Economia, foi ambivalente,relegando-a, aparentemente, a um plano secundrio, confinando, emsuas obras, os diagramas a notas de rodap e as equaes a apndices.Mas sua concepo dos usos e abusos da Matemtica em Economia, oque hoje se chama Econometria, ser melhor explanada quando forabordada a sua obra como economista. Retomemos, enquanto isso, ocurso de sua vida.

    Uma vez concludo, com distino, o curso de Matemtica em1865, passou imediatamente a dar aulas dessa cincia como professortitular no Clifton College, por um breve perodo, e, em seguida, comopreparador (ou explicador) para os cursos regulares de Matemtica emCambridge, ao mesmo tempo que estudava Filosofia, especialmenteKant e Hegel. A, principalmente sob a influncia de alguns professoresuniversitrios que se preocupavam com os problemas sociais provocadospela Revoluo Industrial e que se reuniam informalmente numa So-ciedade de Debates (Grote Club), foi se afastando gradualmente daMetafsica, da tica e da Psicologia, que estavam ento nas fronteirasdas Cincias Sociais. Abandonou definitivamente a religio, tornando-seagnstico, embora perdurasse, por toda a vida, o substrato anglicanode sua formao. Foi por essa poca que se processou a laicizao doensino universitrio, j que s na segunda metade do sculo XIX que foram abolidos nas universidades inglesas, Cambridge inclusive,os exames de Teologia para todos os alunos, exceto os dos cursos dessamatria. Marshall passou ento a preocupar-se com a questo social,sendo levado percepo de que a pobreza estava na raiz de muitosmales sociais, o que acabou conduzindo-o ao estudo da Economia. Ma-tria para a qual, como muitos dos grandes economistas contempor-neos, nunca fez curso universitrio regular e especializado, j que napoca a matria no existia seno como complemento de outros cursos,tal qual como no Brasil de algumas dcadas atrs. Segundo a suaconvico, que manteve inalterada pela vida inteira, o problema dapobreza era no somente fundamental para a Economia como a suaprpria razo de ser. Como ele prprio viria mais tarde a dizer nosPrincpios: o estudo das causas da pobreza o estudo das causas dadegradao de uma grande parte da Humanidade.

    Tal como seu contemporneo Karl Marx, Marshall passou da Fi-losofia para a Economia, s que no seu caso foi pela via matemtica.Descrevendo sua passagem para a Economia, recordava ele j no finalda vida: Da Metafsica fui para a tica, e achei que a justificativa

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  • das condies existentes da sociedade no era fcil. Um amigo, comquem discutia questes sociais, retrucou-lhe um dia: Voc no diriaisso se soubesse Economia. Sua iniciao no campo econmico proces-sou-se, segundo ele prprio, da seguinte forma: Minha familiarizaocom a Economia comeou com a leitura de Mill, enquanto ainda estavaganhando minha vida ensinando Matemtica em Cambridge, e tradu-zindo suas concepes em equaes diferenciais at onde pudesse ir;e, em regra, rejeitando aquelas que a isso no se prestassem... Issofoi, principalmente, em 1867/68".10 Enquanto estava dando aulas par-ticulares de Matemtica, traduzi o quanto possvel os raciocnios deRicardo para a Matemtica e empenhei-me em torn-los mais gerais".11

    Em 1868, ainda com resqucios da fase metafsica, levado pelodesejo de poder ler Kant no original, foi aperfeioar seu conhecimentoda lngua na Alemanha, onde entrou em contato com economistas ale-mes, especialmente Roscher. Nessa mesma data cessou o professoradode Matemtica e passou a exercer a livre-docncia de uma nova cadeirano currculo de Cincias Morais, criada em St. Johns especialmentepara que ele pudesse dar aulas de Economia Poltica e Lgica. possvel ver que espcie de jovem era ele nessa poca; lembraalgum que o observou de perto brilhante matemtico, um jovemfilsofo carregando uma carga indigesta de Metafsica alem, Utilita-rismo e Darwinismo; um humanitarista com sentimentos religiosos massem credo, ansioso por aliviar o fardo da Humanidade mas moderadopelas barreiras reveladas pela Economia Poltica ricardiana v-seo substrato de um homem que se tornou para seus alunos sbio epastor tanto quanto um cientista, cujo ponto de vista cientfico e objetivoera dar Economia uma renovada postura pblica, cuja simpatia paracom a reforma social levava-o a querer derrotar os que a ela se opu-nham, cujas altas aptides deveriam ser zelosamente devotadas suaamante intelectual como as de um artista sua musa.12

    Durante os nove anos seguintes Marshall continuou em Cam-bridge lecionando Economia Poltica e Lgica e elaborando as basesde seu pensamento econmico. Costumava passar as frias nos Alpessuos, fortalecendo o corpo e o esprito, hbito que conservou a vidainteira, levando uma grande caixa de livros, dentre os quais a sra.Marshall lembra Goethe, Hegel, Kant e Herbert Spencer, quando aindaem sua fase filosfica. Mais tarde, j tendo ingressado no campo daEconomia, comeou a desenvolver nessas excurses suas teorias sobreComrcio Interno e Exterior. Ele fazia suas reflexes mais profundas

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    10 Memorials of Alfred Marshall. PIGOU, A. C. (ed.). Nova York, Kelley, 1966. p. 412.11 Carta a J. Bonar. In: Memorials. p. 374.12 HOMAN, P. T. Contemporary Economic Thought. p. 197-198. Apud GUILLEBAUD, G. W.

    Alfred Marshall Principles of Economics. 9 ed. (Variorum), Editorial Introduction, Lon-don, Macmillan, 1961.

  • nesses passeios solitrios nos Alpes, e perodos de Wanderjahre, comoos chamava a sra. Marshall, lembrando ainda que Marshall semprefez o seu melhor trabalho ao ar livre, mesmo quando em Cambridge.

    Em 1875 Marshall visitou os Estados Unidos por quatro mesescom o propsito de estudar o problema do Protecionismo em um pasnovo. Percorreu todo o leste e foi at San Francisco. Esteve nas Uni-versidades de Harvard e Yale, e manteve longas conversaes comeconomistas acadmicos e contatos com figuras proeminentes. Voltouentusiasmado com a vitalidade industrial do pas.

    J ento preocupava-se em dar ao ensino da Economia Polticamaior autonomia e status, colaborando nesse sentido com os professorestitulares Fawcett e Sidwig. A eles juntaram-se antigos alunos seus,tais como H. S. Foxwell e John Neville Keynes (pai do famoso econo-mista), os quais se tornaram, mais tarde, conferencistas em EconomiaPoltica na Universidade. Esses esforos acabaram por serem coroadosde xito, graas principalmente a Marshall, como se ver em seguida.

    Em 1877 casou-se com Mary Paley, sua antiga aluna de EconomiaPoltica e que mais tarde lecionaria a matria no colgio feminino deNewham em Cambridge. Admirvel figura humana uma das pri-meiras mulheres inglesas a obter grau universitrio , Mary Paleyfoi uma companheira exemplar para Marshall e sua ativa colaboradoraintelectual. Todos os professores e alunos que freqentavam a casados Marshall so unnimes em elogiar suas qualidades humanas eintelectuais. Mantinha-se, no entanto, em segundo plano pelo sensode devoo e o reconhecimento da superioridade do marido, dedican-do-se inteiramente quele que ela achava que tinha algo de mais im-portante a dizer e a escrever, e que, provavelmente, no o teria feitoto bem sem a sua inteligente e ativa colaborao durante os quarentae sete anos em que estiveram casados. Marshall, alis, no prefcio 8 edio dos Princpios reconhece expressamente que sua mulher oajudou e aconselhou nas sucessivas edies da obra.

    Segundo os regulamentos universitrios ento vigentes, Marshallao casar-se foi obrigado a abrir mo da posio que ocupava em St.Johns. Assim, deixou Cambridge e foi para Bristol como diretor doColgio Universitrio estabelecido pela Universidade de Oxford e pro-fessor de Economia Poltica. Dava aulas noite para jovens homensde negcios, enquanto sua mulher lecionava a mesma matria, de ma-nh, para turmas compostas principalmente de mulheres. Foi a, em1879, que publicou seu primeiro livro, Economics of Industry, em co-laborao com a sra. Marshall (e que , na verdade, mais dela do quedele), um pequeno compndio concebido como manual para uso no cursode extenso da Universidade de Oxford em Bristol. Antes, porm, masnesse mesmo ano, Henry Sidwick publicou, com permisso de Marshallpara circulao restrita, um folheto com alguns captulos, no conse-cutivos, de um tratado que Marshall pretendia escrever sobre a Theory

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  • of Foreign Trade, with some allied problems relating to the theory oflaissez-faire e que nunca foi publicado; mas suas partes mais impor-tantes foram incorporadas aos Princpios. Esteve empenhado nesse es-tudo de 1869 a 1877, abandonando-o para colaborar na feitura do Eco-nomics of Industry.13

    Em 1881 Marshall, por motivo de sade (clculo renal), deixouo cargo de Diretor do Colgio Universitrio em Bristol e foi recuperar-sena Itlia, onde permaneceu durante um ano e, no obstante, continuouseus trabalhos de Economia. Retornando a Bristol em 1882, onde aindaera professor de Economia Poltica, estava com a sade completamenterestaurada mas passou a manifestar uma acentuada tendncia hipo-condraca, considerando-se sempre beira da invalidez, embora se man-tivesse firme e intelectualmente ativo at os ltimos anos de sua vida.

    Graas amizade com o dr. Jowett, Diretor de Balliol, da Uni-versidade de Oxford, muito interessado em Economia e que costumavadiscutir assuntos econmicos quando se hospedava na casa de Marshallem Bristol, tornou-se, em 1883, livre-docente de Economia Poltica emBalliol, dando aulas para candidatos ao Servio Civil da ndia. Suacarreira em Oxford foi breve e brilhante atraa alunos dos maistalentosos e suas prelees pblicas eram assistidas por maiores emais entusisticas classes do que em qualquer outro perodo de suavida. Tomava parte em debates pblicos e adquiriu crescente prestgionos crculos universitrios.

    Em janeiro de 1885, no entanto, voltou para Cambridge comoprofessor titular de Economia Poltica, em substituio a Henry Faw-cett, que morrera no ano anterior, ctedra que at hoje est ligadaindissoluvelmente ao seu nome e que ocupou por vinte e trs anos ataposentar-se em 1908, para dedicar-se exclusivamente sua obra deeconomista. Tinha ento 66 anos e viveu ainda mais dezesseis anosem Balliol Croft, vivenda que construiu em Medingley Road (endereoque fecha o Prefcio 8 e definitiva edio dos seus Princpios) eonde morreu em 13 de julho de 1924, pouco antes de completar 82anos de idade. A casa, com a biblioteca, foi legada Universidade deCambridge, onde se encontram seus manuscritos e obras inditas, aindauma vez mais graas sua viva, que preservou a sua memria detodos os modos, fornecendo, inclusive, a Keynes notas e apontamentosde Marshall e dela prpria que lhe permitiram escrever a obra-primaque a biografia de seu antigo mestre e amigo, um monumento pereneao qual ele tanto devia.

    Marshall, tal como Samuelson hoje,14 gostava tanto de estudar

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    13 Alguns fragmentos do manuscrito original esto guardados na Biblioteca Marshall emCambridge. O folheto foi reimpresso em fac-smile pela London School of Economics em1930 como o n 1 de sua srie Reprints of Scarce Tracts in Economics and Politics.

    14 Newsweek. 24-12-80.

  • Economia quanto de ensin-la. Professor a vida inteira, mesmo quandoabandonou formalmente o ensino ao aposentar-se da ctedra, refletea preocupao didtica em suas obras, as quais pretendia que fossementendidas pelo maior nmero possvel de leitores, especialmente poressa figura mtica do homem comum de negcios. Da a linguagemclara e concisa, a preciso dos conceitos, a factualidade da exemplifi-cao, extrada, tanto quanto possvel, da vida corrente e evitando,sobretudo, o uso abusivo da Matemtica no curso da exposio.

    Tanto como professor universitrio quanto como economista,Marshall foi uma figura singular. Primeiro, pela imensa e hegemnicainfluncia que exerceu sobre geraes de economistas, alguns seus an-tigos discpulos, que adquiriram renome universal, dentre os quais,para s citar dois dos mais proeminentes, Pigou, que o substituiu emCambridge, e Keynes que, partindo de algumas idias bsicas de seuvelho mestre, revolucionou a teoria e a poltica econmicas na primeirametade de nosso sculo. Em segundo lugar, pela prpria singularidadede seus mtodos pedaggicos. Como no gostasse de lecionar para tur-mas grandes e possivelmente desinteressadas, procurava diminuir onmero de alunos que acorriam ao seu curso, reduzindo-o aos realmenteinteressados na matria, advertindo logo nas primeiras aulas que, seviessem apenas com a esperana de se prepararem para passar nosexames, desistissem prontamente porque ali no era o lugar para isso.Na verdade, Marshall no transmitia propriamente informaes, achan-do que isso era funo dos livros, mas obrigava os alunos a refletir econcluir, despertando-lhes, alm do gosto pela matria, a especulaoe a compreenso dos problemas. Nada de aulas magistrais, pronun-ciamentos dogmticos do tipo magister dixit mas, antes, provocando oesprito de anlise e crtica, a desconfiana das causas aparentes e,sobretudo, melodramticas, quase nunca verdadeiras. Seu mtodo deensino era algo maiutico: pela anlise e crtica alcanar a verdade,antes do que pelo processo de mera transmisso e assimilao de sim-ples informao. Era algo semelhante ao mtodo do prof. Tobins, recentePrmio Nobel de Economia: ajudar o aluno, por meio da proposio deteses e questes, a chegar a concluses corretas por seu prprio esforode raciocnio. Raramente levava apontamentos para as aulas e quasenunca os consultava, sendo suas prelees de certo modo assistemticase fragmentrias, dificultando ou mesmo impossibilitando os alunos detomarem notas e organizarem smulas. Preferia antes dissertar, oumelhor, divagar sobre temas e problemas diversos, nem sempre conexos,procurando analis-los com os alunos, demonstrando tanto a sua rea-lidade quanto a complexidade de suas causas e efeitos. Quando causase efeitos fazem combinaes melodramticas, os historiadores os ligam,suspeitem da conexo, dizia, conforme um dos seus discpulos, quelembra ainda: ele gostava de contrastar as causas supostas e reaisdos acontecimentos, realar a significao dos fatos ocultos ou ignorados

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  • a causa insuspeita, essa diminuta circunstncia, essa coincidncianegligenciada, mudou o curso da Histria. Embora no tivesse grandeamor pela Histria, suas generalizaes e interpretaes histricaseram de grande originalidade e interesse, e soube que ele pensou, certavez, em escrever um extenso tratado de Histria Econmica.15

    Rigoroso nos exames e na correo dos trabalhos escolares, fa-zendo comentrios crticos ou elogiosos entremeados de humor, foi, noentanto, amigo paternal de seus alunos, ajudando-os na escolha detemas e na elaborao de teses, emprestando-lhes livros, recebendo-osem sua casa para discusso ou simples conversa, e pagando de seuparco bolso os estudos dos mais carentes. Deixou em todos os que lhefreqentaram as aulas uma indelvel impresso, um sentimento deadmirao e amizade filial, e, sobretudo, a gratido no por lhes terensinado Economia mas por lhes ter incutido a viso da importncia,complexidade e unidade dos problemas econmicos, uma viso nova efecunda de que se aproveitariam para sempre.

    Quando ainda professor, Marshall teve atuao destacada emtrs importantes movimentos: 1) a fundao da Associao EconmicaBritnica, agora Royal Economic Society; 2) a controvertida questoda Graduao Universitria de Mulheres em Cambridge, que agitoue dividiu a Universidade, controvrsia na qual Marshall, no obstanteser em princpio favorvel emancipao feminina, ops-se, igualmentepor princpio, concesso de grau universitrio a mulheres, para grandedecepo de seu crculo de amigos liberais e progressistas, atitude ques pode ser explicada pelo seu ancestral e entranhado preconceito ma-chista. Tal atitude tanto mais estranhvel num homem de sua cul-tura e inteligncia quando ele tinha em casa lembremo-nos oexemplo de sua prpria mulher, de formao universitria e que tantoo ajudou intelectualmente, para no citar o caso de tantas outras mu-lheres que, na poca, se distinguiram em diversos campos de atividades,tais como as irms Bront, George Eliot, Florence Nightingale, HarrietBeecher Stowe, Mary Kingsley (antroploga e biloga que explorou africa Ocidental), James Barry (que, disfarada de homem, formou-seem Medicina em 1812 e, incgnita, tornou-se um dos mais hbeis ci-rurgies do Exrcito britnico); 3) criao da Escola de Economia deCambridge, tornando o ensino da Economia independente do currculode outros cursos (Cincias Morais e Histria), movimento de evoluogradual que s se completou em 1903, pelo que Marshall pode serconsiderado, legitimamente, o fundador dessa Faculdade (que no deveser confundida com a corrente doutrinria que dela derivou, a escolaneoclssica de Cambridge, de que ele foi, tambm, o fundador).

    Vejamos agora Marshall como o eminente economista. Cabe res-

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    15 BENIANS, E. A. In: Memorials. p. 78-80.

  • saltar, inicialmente, que a importncia histrica de sua obra contrastacom a sua relativa exigidade, considerando que sua atividade inte-lectual, sujeita naturalmente a hiatos peridicos mas breves, comeoucedo e estendeu-se praticamente at o fim de sua vida. As razes dessaparcimnia so tanto de ordem circunstancial quanto pessoal: absoro,a princpio, nas atividades de magistrio; duas ou trs interrupescurtas por motivo de doena, sendo que o problema de sade foi umadas razes por ele alegadas, no Prefcio presente obra, para alterarseus grandes projetos intelectuais; seu flego curto como tratadista,contrariamente a Adam Smith, por exemplo, fazendo-o vacilar por muitotempo sobre a melhor maneira de abordar um assunto se monogra-ficamente ou au grand complet, deixando algumas obras de maior flegoesboadas ou apenas idealizadas ; a extrema preocupao com a exa-tido e perfeio dos conceitos expressos; o hbito de fazer circularoralmente entre colegas e alunos suas produes intelectuais, algumasdas quais foram publicadas particular e fragmentariamente em crculosrestritos ou s incorporadas muitos anos mais tarde a seus escritos;a quase mrbida suscetibilidade crtica e controvrsia, o que ofazia espaar e retardar demasiadamente a publicao em forma de-finitiva de seus escritos tericos.

    A bibliografia completa dos trabalhos de Marshall16 compreende81 itens, dos quais apenas uns poucos podem ser considerados livros,constituda a grande maioria de folhetos, artigos e depoimentos perantergos governamentais. Os livros so os seguintes, em ordem cronol-gica de publicao: 1) The Economics of Industry (1879), em colaboraocom Mary P. Marshall, j mencionado anteriormente e que mais tardeMarshall retirou de circulao por motivos pessoais no muito claros,alegando que no se pode vender barato a verdade; 2) Principles ofEconomics (1890), que ser examinado, detalhadamente, mais adiante;3) Elements of Economics of Industry (1892), publicado como sendo oprimeiro volume de Elements of Economics (que no apareceu) e que,conforme o prprio autor, uma tentativa de adaptar o primeiro vo-lume dos meus Princpios de Economia necessidade de principiantes.Alguns trechos foram retirados do Economics of Industry; 4) Industryand Trade: A Study of Industry Technique and Business Organization,and of Their Influences on the Conditions of Various Classes and Na-tions (1919) , como diz Marshall no Prefcio 8 edio dos Princpios,uma continuao desta obra e substitui o prometido II volume quenunca veio luz. uma obra notvel, comparvel sob todos os aspectosaos Princpios, tanto na forma quanto no contedo; 5) Money, Creditand Commerce (1923), consubstanciando os primeiros estudos realiza-dos por Marshall e completados em 1875, sendo uma das duas principais

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    16 KEYNES, J. M. Bibliographical List on the Writings of Alfred Marshall. In: The EconomicsJournal. v. XXXIV, n 136, dezembro de 1924. p. 627-637. Republicada no Memorials.

  • fontes de referncia sobre a teoria monetria de Marshall; 6) OfficialPapers (1926), obra pstuma contendo trabalhos realizados entre 1886e 1903 e apresentados a rgos governamentais; a mais importantedas duas fontes de informao sobre as idias monetrias de Marshall.Cabe ainda mencionar Memorials of Alfred Marshall (1925), coletneade ensaios sobre Marshall editada por Pigou, alm da seleo de algunsde seus escritos avulsos mais importantes, republicando, ainda, a bi-bliografia elaborada por Keynes.

    Ao examinar a obra de Alfred Marshall deve-se ter em vista,naturalmente, as influncias predominantes na formao de seu pen-samento scio-econmico. Assim, sua condio familiar de pequeno-burgus e o molde tico-religioso que essa condio lhe imps desdecedo so fatores no negligenciveis na apreciao de suas concepes.H que considerar, igualmente, o contexto histrico-cultural de suapoca, a longa era vitoriana, pois, como bem observou Gillebaud,17o principal perodo formativo de sua vida coincidia com o apogeu daInglaterra Vitoriana, e sob muitos aspectos caractersticos ele era umeminente vitoriano" (segundo a expresso consagrada pelo conhecidolivro de Lytton Strachey). Quando ele nasceu, lembra o citado autor,Ricardo tinha morrido havia apenas dezenove anos e Malthus haviasomente oito; enquanto a primeira edio dos Princpios de EconomiaPoltica (de Mill) fora publicada em 1848, quando Marshall tinha seisanos de idade. Jevons era quase sete anos mais velho do que ele.Marshall foi, por conseguinte, contemporneo, ou quase contemporneo,dos mais famosos economistas do sculo XIX. Mas ele no foi um emi-nente vitoriano apenas pelas circunstncias da contemporaneidadecom figuras clebres da poca, mas tambm, e principalmente, porquesua mentalidade foi fortemente marcada pela ideologia predominantedurante o longo reinado da Rainha Vitria (1837-1901). Essa influnciatem muito a ver com a sua viso tico-social, como tambm, natural-mente, com a sua prpria concepo econmica. At certos modismosvitorianos, como por exemplo a tentativa pueril de restaurar as prticase o cdigo de honra da Cavalaria medieval (mera justificativa para aociosidade da aristocracia, cuja nica ocupao era caar perdizes eraposas) e a idealizao da civilizao helnica, encontraram nele certasimpatia. Diante do contedo tico-social de sua obra, que examina-remos oportunamente, algum disse que nela Calvino, a Igreja Angli-cana e o esprito vitoriano juntam-se numa simetria simbitica.

    Marshall veio da Filosofia para a Economia por preocupaestico-sociais, nico paralelo possvel entre a sua biografia intelectuale a do seu antpoda, Karl Marx. Comeou a estudar seriamente Eco-nomia em 1867, aos 25 anos portanto e, como informa Keynes, suas

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    17 Loc. cit.

  • doutrinas caractersticas estavam bastante desenvolvidas em 1875, sen-do que a partir de 1883 j assumiam sua forma final. Lembra aindaKeynes que a Political Economy de Mill apareceu em 1848, a 7 edio(a ltima revista pelo autor) de 1871 e Mill morreu em 1873. DasKapital de Marx apareceu em 1868; a Theory of Political Economy deJevons, em 1871; Grundstze der Volkswirtschaftslehre (Fundamentosda Economia Poltica) de Menger tambm em 1871; e os Leading Prin-ciples de Cairnes em 1874 assim, concluiu, quando Marshall comeou,Mill e Ricardo (e tambm Adam Smith, por que no?) ainda reinavamsupremos e indisputados.

    Cronologicamente, dentre as influncias de personalidades mar-cantes em sua vida, a primeira seria Kant, o qual, na fase metafsicado desenvolvimento intelectual de Marshall, foi seu guia e o nicohomem que jamais adorei, at que os problemas sociais vieram im-perceptivelmente frente diante da questo crucial: as oportunidadesda vida real devero ser reservadas a uns poucos? A essa altura ainfluncia dominante a do prof. Henry Sidwick e seu crculo intelectualem Cambridge, atravs do qual Marshall foi levado questo social.Sobre o papel desempenhado por Sidwick, o mais eminente de seuscontemporneos, lembra Marshall: Ainda que eu no fosse seu alunode fato, eu o fui substancialmente em Cincia Moral. Fui modeladopor ele. Foi, por assim dizer, meu pai e me espirituais: pois ia a elequando perplexo e para ser confortado quando perturbado; e nuncavoltei vazio. O convvio com ele me ajudou a viver. H, tambm, claro, Mill, a mais poderosa influncia sobre a intelectualidade jovemda poca (mais, alis, por seus escritos filosficos do que pelos econ-micos) e cujo Political Economy foi, como vimos, seu primeiro livro deleitura econmica e que muito o impressionou na poca. Mais tarde,j amadurecido, Marshall no tinha Mill em muito alta conta comoeconomista, considerando clssicos Petty, Hermann von Thnen e Je-vons, mas no Stuart Mill. Marx, alis, num dos seus costumeiroscomentrios acerbos, disse sobre Mill que sua proeminncia devidaem grande parte planura do terreno na poca. Reconhece, por outrolado, que deve muito a Hegel (e quem no lhe devedor?) e suaFilosofia da Histria mas, ao que parece, no apreendeu dele, almde um certo historicismo, o essencial, isto , a dialtica, de que noh vestgio em sua obra. Ainda no Prefcio 1 edio dos Princpios,diz-se credor de Herbert Spencer, Cournot e Von Thnen por diversascontribuies mencionadas na obra e que examinaremos oportunamen-te. Segundo notas autobiogrficas Marshall sentiu-se atrado, em certapoca, pelas novas concepes de Roscher (representante da escola his-trica alem) e outros economistas alemes, e at mesmo por Marx,Lassale e outros socialistas, com cujos ideais simpatizava em princpiomas no reconhecia validade em suas anlises e concluses concernen-tes engenharia social.

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  • Cabe ainda, neste quadro sumrio e esquemtico das razes dopensamento de Marshall, mencionar duas correntes de idias predo-minantes na poca. Uma o Utilitarismo de Bentham (1748-1832),doutrina que impregnou a sua concepo econmico-social, como tam-bm a de Mill em certa fase, tendo desempenhado importante papelna vida poltica da Inglaterra e podendo mesmo ser considerada umadas bases da ideologia burguesa do sculo XIX. A outra influnciadominante foi a das idias evolucionistas de Darwin (A Origem dasEspcies. 1859) e da um certo darwinismo social, adquirido atravsde Spencer, em que a competio (ou concorrncia) seria a fora motrizdo progresso econmico pela seleo dos mais aptos. No seu perfil in-telectual, convm lembrar, outrossim, a sua formao universitria,que no consistia exclusivamente da cincia matemtica, mas tambmdo estudo das letras e lnguas clssicas grego e latim como era,de resto, tradicional na formao universitria inglesa e europia demodo geral, e que at certa poca era praticamente o nico requisitointelectual exigido para o recrutamento da alta administrao britnica.Por fim, cabe ressaltar, em sua formao de economista, a sua fami-liaridade (de que se vem exemplos nos Princpios) com os principaisramos das indstrias, as prticas comerciais e a vida das classes ope-rrias, tendo tido inclusive contatos diretos com lderes sindicais emesmo com famlias de operrios.

    O rastreamento da formao e evoluo do pensamento econmicode Marshall e principalmente de suas contribuies especficas noscampos da doutrina e da metodologia da anlise econmica dificultadopelo fato de suas idias terem sido formuladas e expostas em aulas,conferncias e depoimentos perante rgos governamentais, ou veicu-ladas fragmentariamente em publicaes de circulao restrita, muitoantes de serem oficializadas em livros de forma sistemtica e defi-nitiva. Sabe-se, no obstante, como j foi mencionado, que ele comeoua estudar Teoria Econmica em 1867; seu pensamento na matria es-tava amadurecido por volta de 1875, tendo assumido forma definitivaem 1883. Entretanto, nenhuma parte de sua obra foi dada a pblicoem forma adequada seno em 1890 nos Princpios (no considerandoo manual de vulgarizao publicado em 1879 em co-autoria com suamulher). E a parte de matria em que primeiro trabalhou e que estavavirtualmente concluda em 1875 no foi publicada em livro seno cercade cinqenta anos depois, em 1923 (Money, Credit and Commerce).Esse hiato entre a elaborao e a publicao de suas inovaes con-ceituais e metodolgicas teve como conseqncia ensejar a que algumasdessas inovaes fossem divulgadas por outros, tirando delas, quandoenfim publicadas, a originalidade e o impacto da novidade. Da muitoseconomistas do mundo inteiro, que conheciam Marshall pelos seus tra-balhos publicados, julgarem um tanto exagerada a proeminncia quelhe atribuam seus contemporneos e sucessores ingleses.

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  • Assim, por exemplo, noo corrente, divulgada em aulas, com-pndios, enciclopdias e dicionrios de Economia, que o principal ttulode glria de Marshall na histria do pensamento econmico seria o deter feito a sntese dos postulados clssicos com a doutrina marginalistadevida a Jevons e chamada escola austraca (Menger, Bhm-Ba-werck). H quem prove, porm, como fez Shove,18 que ele nada devenem a um nem outra, tendo em vista a originalidade ou prioridadesubjetiva das suas idias, as datas de publicao das obras dos mar-ginalistas e as referncias e reconhecimentos de Marshall s principaisfontes de suas contribuies. Quanto contribuio dos clssicos, oque Marshall tentou fazer, segundo ele prprio, foi completar e gene-ralizar, por meio do aparato matemtico, os postulados de Smith eprincipalmente Ricardo, conforme expostos por Mill. Alis, quando eco-nomistas americanos acusaram-no de tentar reconciliar doutrinas di-vergentes, Marshall irritou-se com essa errnea e injusta interpretao.19

    J a contribuio de Marshall Economia Matemtica ou Ma-temtica Econmica, ou ainda, para ser mais preciso, metodologiadiagramtica, incontroversa. A noo da extenso da aplicao dosmtodos matemticos estava no ar, por assim dizer. J nessa pocaesboava-se nos crculos acadmicos uma tendncia a estender a apli-cao da Matemtica das Cincias ditas experimentais s ento cha-madas Cincias Morais, dentre as quais as Cincias Sociais; mas essatendncia nada produzira at ento de substancial e definitivo no campoda Economia. Ora, era natural que Marshall, por volta de 1867 amigodo grande professor de Matemtica W. K. Clifford e por ele treinado,ao voltar-se para a Economia, personificada em Ricardo, comeasse atrabalhar com diagramas e lgebra. Ele no foi, na verdade, o nicoe nem mesmo o primeiro dos economistas contemporneos a utilizaro instrumental matemtico para a anlise econmica. Cournot j ohavia feito (Recherches sur les Principes Mathmatiques de la Thoriedes Richesses. 1838), como tambm Walras (Elments dconomie Pure.1874-1887; La Thorie Mathmatique de la Richesse Sociale. 1873-1883). Marshall, porm, chegou Economia muito mais treinado doque Jevons e mesmo que Adam Smith, professor universitrio de grandecultura geral, e Ricardo, atilado homem de negcios da City, os quaisno ignoravam os fundamentos da matria, nem tampouco Mill (queusou exemplos matemticos), mas que no tinham como ele o domnatural e o treino cientfico dessa disciplina. Foi, por isso, o primeiroa empregar esse aparato analtico de forma sistemtica, construtiva eexemplar. E isso ele o fez com a prudncia da sua cincia.

    Falou-se na ambivalncia da atitude de Marshall em relao Matemtica, j que, mestre consumado da matria, restringiu o seu

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    18 Loc. cit.19 Carta a J. B. Clarck, de 24-03-1908. In: Memorials. p. 418.

  • emprego em Economia a estreitos limites, confinando os diagramas anotas de rodap e as equaes a apndices, em vez de, como Walras,por exemplo, alar-se em exerccios abstratos no curso da exposio.Essa sua atitude crtica, porm, diante dos usos e abusos dos mtodosmatemticos em Economia no fruto, evidentemente, de ignornciada matria, mas, antes, justamente devida ao seu profundo conhe-cimento de suas potencialidades e limitaes, considerando a Matem-tica um mtodo vlido de anlise em Economia, mas no de exposio,que deve ser em linguagem corrente e ter exemplificao com fatosreais. O seu comedimento no uso da Matemtica era devido tambm necessidade de comunicao, preocupado que estava em ser lido eentendido pelo maior nmero possvel de pessoas, inclusive pelos noversados na linguagem matemtica; mas a razo principal, segundoCorry, era o receio de que conjuntos de equaes omitem ou distorceminfluncias e consideraes relevantes.20 Ressalvando a utilidade doshbitos de raciocnio matemtico para clareza e preciso dos conceitos,e do emprego de diagramas, de entendimento geral, antes que de sm-bolos matemticos, diz ele prprio no Prefcio 1 edio dos Princpios:O principal uso da Matemtica pura em questes econmicas pareceser o de ajudar uma pessoa a anotar rapidamente, de uma forma sucintae exata, alguns dos seus pensamentos para seu prprio uso, alm deassegurar-se de que tem suficientes premissas, e somente o bastante,para as suas concluses (isto , que suas equaes no sejam em nmeromaior ou menor do que suas incgnitas). Mas quando um grande n-mero de sinais tiver que ser usado, isso se torna extremamente penosopara qualquer um, exceto para o prprio autor. Seu pensamento arespeito se torna ainda mais claro numa carta em que fala de suaexperincia pessoal: Um bom teorema matemtico relativo a hipteseseconmicas era altamente improvvel de ser boa Economia; e eu pros-segui, cada vez mais, segundo as regras: 1) Use Matemtica como umalinguagem estenogrfica, antes do que como um instrumento de inves-tigao; 2) empregue-a at que se obtenham resultados; 3) traduzapara o ingls; 4) ento ilustre com exemplos que tenham importnciana vida real; 5) queime a Matemtica; 6) se no teve xito em 4,queime 3. Isso tenho feito com freqncia.21 H ainda a considerarque sendo Marshall um grande matemtico que at pensara em em-brenhar-se na Fsica nuclear, s poderia sentir um certo desdm doponto de vista intelectual e esttico pelos triviais fragmentos de lgebraelementar, Geometria e Clculo diferencial que compem a MatemticaEconmica, diz Keynes, acrescentando: Contrariamente Fsica, porexemplo, as partes do esqueleto da teoria econmica que so exprimveisem forma matemtica so extremamente fceis comparadas inter-

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    20 Op. cit., p. 27.21 Carta a A. L. Bowley, de 27-02-1906. In: Memorials. p. 427.

  • pretao econmica dos fatos complexos e incompletamente conhecidosda experincia, e leva-nos muito pouco adiante no estabelecimento deresultados teis.22 O mtodo de trabalho marshalliano consistia, emsntese, na utilizao da Matemtica acessoriamente, como meio deinvestigao, e o raciocnio ordinrio, bem como os exemplos da vidareal, para a exposio. Essa orientao metodolgica impregnou a mo-derna teoria econmica inglesa, a partir da chamada escola de Cam-bridge, e foi seguida, entre outros, por Keynes, Hicks e Pigou.

    Os primeiros exerccios matemticos e diagramticos de Marshallem Economia faziam parte do estudo A Teoria do Comrcio Exterior,completado por volta de 1875/77 e foram divulgados, como era seuhbito, em crculos restritos, sendo mais tarde suas partes mais sig-nificativas incorporadas aos Princpios. Diz Keynes que eles eram detal carter em sua penetrao, abrangncia e exatido cientfica e foramto mais longe do que as brilhantes idias de seus predecessores, quepodemos proclam-lo, justamente, como o fundador da Economia dia-gramtica moderna esse elegante aparato que geralmente exerceuma poderosa atrao sobre principiantes inteligentes, que todos nsusamos como uma inspirao e um freio de nossas intuies, e comoum registro estenogrfico de nossos resultados, mas que geralmenterecua para um segundo plano medida que penetramos mais no magodo assunto.23 Assim Marshall, tendo comeado por criar os mtodosdiagramticos modernos, terminou por releg-los ao seu devido lugar.O aparato analtico-matemtico e seu prudente uso foi uma de suasprincipais contribuies ao desenvolvimento da moderna cincia eco-nmica. Outras foram as inovaes metodolgicas e conceituais contidasprincipalmente nos Princpios e, last but not least, sua teoria monetria.

    Deixando de lado, por enquanto, o acervo terico contido nosPrincpios, que ser exposto detalhadamente quando do exame da obra,vejamos agora a teoria monetria marshalliana. Houve quem dissesseque Marshall negligenciou a estrutura monetria e, mais genericamen-te, a agregativa em que sua teoria do valor atua. Nada mais errneo.No s o que concerne aos Princpios pressupe, subjacentemente, umaestrutura monetria, como ele trata explicitamente desse arcabouonoutros trabalhos. No h nenhuma parte da Economia, diz Keynes,em que a originalidade e a prioridade do pensamento de Marshallsejam mais marcantes do que aqui, ou onde sua superioridade de pe-netrao e de conhecimento sobre seus contemporneos tenha sidomaior. Dificilmente se encontrar algum aspecto importante da mo-derna Teoria da Moeda que no tenha sido conhecido por Marshallquarenta anos atrs.24 As duas principais fontes de referncia sobre

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    22 Loc. cit., p. 333.23 Loc. cit., p. 332-333.24 Ibid., p. 335.

  • suas idias nesse campo so os Official Papers, coletnea de memo-randos e depoimentos prestados a rgos governamentais, e Money,Credit and Commerce, publicado j na sua velhice mas contendo prin-cipalmente concepes elaboradas muitos anos antes.

    Os Official Papers contm a essncia da teoria monetria de Mar-shall. Em sntese, segundo Corry, os mais importantes elementos desua contribuio nessa rea so os seguintes: a chamada equao deCambridge e o seu desenvolvimento de um ciclo de crdito atravs deum desequilbrio entre taxas de juros reais e monetrias. Marshall considerado comumente o fundador da abordagem de Cambridge teo-ria monetria. Em essncia, essa teoria postula uma funo de procuraestvel da moeda, com a renda real (ou riqueza) como o principal ar-gumento da funo. Caeteris paribus, tal abordagem dar uma relaoproporcional entre mudanas na oferta da moeda e mudanas no nvelgeral de preos. Essa abordagem foi formalizada por Pigou (1917) emum famoso artigo, e elaborada por Keynes em seu Tract on MonetaryReform (1923). Marshall tornou absolutamente claro, no entanto, quemudanas em outros fatores no volume de atividade e na procurade moeda podem muito bem dominar a relao, especialmente emperodos de crise econmica. Sua outra contribuio nesse campo foielucidar o mecanismo de conexo das taxas reais de juros e as taxasmonetrias, por meio do qual as divergncias entre as duas geram umciclo de crdito.25 Mais especificamente, as mais importantes e carac-tersticas de suas contribuies originais a essa parte da Teoria Eco-nmica so:26

    1) A exposio da Teoria Quantitativa da Moeda como parte daTeoria Geral do Valor;

    2) a distino entre a taxa real de juro e a taxa monetria,e a importncia disso para o ciclo de crdito, quando o valor da moeda flutuante;

    3) a corrente causal pela qual, nos modernos sistemas de crdito,uma oferta adicional de moeda influencia os preos, e a parte desem-penhada pela taxa de desconto;

    4) o enunciado de Teoria da Paridade do Poder Aquisitivo comodeterminante da taxa de cmbio entre pases com moedas mutuamenteinconversveis;

    5) o mtodo de corrente de compilao de nmeros ndices;6) a proposta de papel-moeda para circulao (segundo as Pro-

    posals for an Economical and Secure Currency de Ricardo), lastreadoem ouro e prata (fundidos juntos) como padro;

    7) a proposta para um Padro Tabular oficial para uso opcionalno caso de contratos a longo prazo (algo assim como a nossa UPC).

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    25 Loc. cit., p. 32.26 KEYNES. Op. cit., p. 337-340.

  • Marshall pretendia, como plano de trabalho inicial e bsico, es-crever uma srie de monografias sobre problemas econmicos espec-ficos (Comrcio Exterior, Teoria Monetria etc.) e depois fundi-las numtratado geral de Economia, ao qual se seguiria um compndio maispopular. Por fora de circunstncias diversas, porm, viu-se obrigadoa alterar seu projeto original e comear pelo que seria o fecho de umalonga obra da os Princpios de Economia.

    Princpios de Economia Um moderno instrumento de pesquisa

    Os Princpios de Economia so a Magnum opus de Marshall, asntese de seu pensamento, obra que o consagrou definitiva e univer-salmente como grande economista. Seu aparecimento, em 1890, tevesucesso imediato, sendo saudado pelos economistas e pelas publicaesespecializadas como um acontecimento marcante na histria do pen-samento econmico o incio da idade moderna da Economia. Obteve,inclusive, uma certa popularidade, contribuindo para restabelecer naopinio pblica o prestgio e a credibilidade da Economia Poltica, aba-lados pelas verses desumanas e cruas dos postulados clssicos. Mar-shall pretendia, alis, que seu livro fosse lido pelos homens de negcios,polticos e profissionais liberais, talvez vencendo a natural averso daaristocracia dirigente pelos assuntos econmicos em geral e pelo mundodos negcios em particular.

    A importncia histrico-doutrinria dessa obra advm, principal-mente, do fato de que, alm das inovaes conceituais e metodolgicasnela contidas, apresentava, pela primeira vez, uma sntese dos postu-lados da Economia Poltica clssica e da doutrina marginalista numtodo coerente, slido e lcido, sendo que a sua sofisticada exposioda anlise marginalista , ainda hoje, considerada magistral, motivopelo qual seu autor apontado por alguns, um tanto equivocadamente,o papa do marginalismo. Era o primeiro grande tratado geral sobreos fundamentos da Economia, ainda que viesse a se chamar apenasintrodutrio, depois dos Princpios de Economia Poltica de Mill; e aleitura comparada de ambos esclarece e ressalta os superiores mritosde Marshall. Obra seminal, de grande valor terico e didtico, tornou-serapidamente livro de consulta obrigatria para os profissionais e com-pndio bsico do ensino de Economia no mundo anglo-saxnico e emgrande parte do continente europeu.

    Essa obra monumental no saiu assim de sbito, pronta e aca-bada, como da cabea de Juno. Marshall vinha estudando e ensinandoEconomia h muito tempo antes de sua elaborao, levou nove anosescrevendo-a e cerca de trinta, o resto de sua vida, revendo suas su-cessivas edies. Muitas das idias e conceitos sistematizados nos Prin-cpios j haviam sido antes concebidos e expostos fragmentariamentepor Marshall em aulas, conferncias, documentos oficiais e trabalhos

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  • diversos, alguns dos quais publicados.27 Os fundamentos da sua teoriageral, segundo ele prprio, j estavam mais ou menos estabelecidospor volta de 1870, vinte anos, portanto, antes da publicao da 1edio dos Princpios. A grande mudana que inquestionavelmenteteve lugar nas duas dcadas antes da publicao dos Princpios foi naprpria maneira de Marshall abordar a sua matria, e que assumiaa forma, sobretudo, de ampliao do seu equipamento no campo daEconomia aplicada.28 Essa obra fruto, portanto, da plena maturidadeintelectual de seu autor, e ele a reviu, refundiu e aperfeioou-a atpraticamente o final de sua vida.29

    O que impressiona logo primeira vista nos Princpios suaadmirvel arquitetura intelectual a ampla perspectiva, a firmezada construo interna, a articulao orgnica de suas partes, a solidezde seus alicerces. A forma em que se expressam conceitos complexose inovadores lmpida e precisa, no lhe faltando mesmo certa elegnciaestilstica e metforas literrias, marcas do bom escritor. Sob a rou-pagem da literatura a armadura da Matemtica disse seu contem-porneo Edgeworth a propsito da obra de Marshall em geral, comque este concordou, e que se aplica igualmente, e talvez com maisrazo, aos Princpios. Cabe assinalar, a propsito do magnfico aparatomatemtico de que se serviu com prudncia e destreza exemplares, aelegncia e a lucidez de suas equaes e diagramas. Mas, no que tangeainda s funes matemticas em que assenta a obra, advertia o autor,mais uma vez, que num tratado como este a Matemtica usadasomente para exprimir em uma linguagem tersa e mais precisa aquelesmtodos de anlise e raciocnio que as pessoas comuns adotam, maisou menos inconscientemente, nos negcios de todo dia da vida. Pre-tendendo abranger todo o campo da Economia de ento, queria faz-lo,

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    27 Alm do Economics of Industry e dos estudos sobre comrcio exterior e teoria monetria,partes dos quais foram incorporadas aos Princpios, so de interesse como backgrounddesta obra, segundo Guillebaud, o artigo de Marshall sobre Jevons, j citado, que contma essncia da teoria marshalliana da distribuio; outro em defesa de Mill, intitulado Mr.Mills Theory of Value (Fortnightly Review. Abril 1886), a aula magna de Marshall em1885 como professor de Economia Poltica em Cambridge e publicada sob o ttulo de ThePresent Position of Economics (Memorials. p. 152-174); The Graphic Method of Statistics,memria apresentada ao Congresso Estatstico Internacional em 1885 (Memorials. p. 175-187), cujos dois ltimos pargrafos contm a primeira referncia concepo marshallianada Elasticidade da Procura e expe o mtodo diagramtico de mensurao da elasticidadeem qualquer ponto da curva da procura, que ele usou posteriormente nos Princpios; Theo-ries and Facts about Wages (Cooperative Annual. O primeiro esboo da teoria da distribuiodesenvolvida nos Princpios).

    28 GUILLEBAUD. Ibid.29 Os Princpios pretendiam inicialmente abranger dois volumes, sendo a designao volume

    I eliminada a partir da 6 edio de 1910, quando foi acrescentado o subttulo TratadoIntrodutrio. As mais importantes alteraes efetuadas por Marshall esto na presenteedio, a 8 (1920) e definitiva. Da 5 8 edio no houve alteraes estruturais nosPrincpios. H, como j foi citada, uma 9 edio pstuma em dois volumes, mas apenasvariorum: o volume I fac-smile da 8 e o volume II reproduz as variantes das sucessivasedies. Para todos os efeitos prevalece a 8 edio, na qual baseia-se a presente traduo.

  • como disse, de forma acessvel a um mtico homem de negcios comum.Da a evidente preocupao didtica no s na conciso, clareza e rigorda exposio, como tambm nas constantes introdues, remisses enotas explicativas. Mas sob a superfcie desse polido globo de verdade,como foi chamado, h embutidos ricos veios e pepitas de puro ouro,que ao leitor atento e persistente valer a pena lavrar, como veremosadiante. Por isso costuma-se dizer que a aparente facilidade de sualeitura , at certo ponto, enganosa, pois a cada releitura fazem-senovas descobertas.

    No cabe aqui fazer um roteiro dos Princpios a ordem deleitura estabelecida pelo autor, seguindo suas prprias indicaesquanto s partes que podem ser ladeadas temporariamente e obser-vando as advertncias com que balizou o percurso. A preocupao di-dtica do antigo professor ainda uma vez manifesta ao resumir todaa obra num Sumrio cuja leitura, logo de incio, d uma viso pano-rmica de toda a matria abordada, alm de facilitar a consulta departes especficas.

    A concepo geral dos Princpios baseia-se numa viso microeco-nmica do regime capitalista de produo segundo um enfoque neo-clssico. A tese central da doutrina econmica a contida a de umatendncia natural para o equilbrio, uma tendncia de crescimento gra-dual, como resume Joan Robinson, aplicada aluna de Marshall: Asforas do mercado distribuam os recursos da melhor maneira possvelentre os diversos usos alternativos. Da o conceito de distribuio darenda baseado na justia natural. Isto , a contribuio dos trabalha-dores para a produo se refletiria nos salrios, enquanto a contribuiodo capital para a produo estaria nos lucros. Isso seria justo, direitoe natural.30

    Convm relembrar que o arcabouo analtico ou a espinha dorsaldessa obra nada mais que uma complementao e generalizao, pormeio do aparato matemtico, da teoria do valor e da distribuio deRicardo, como foi exposta por Mill.31 O cerne e a pedra de toque dosPrincpios onde se assenta o seu arcabouo so o Livro Quinto cujaorigem remonta a 1873, quando o autor estava reformulando suas ilus-traes diagramticas de problemas econmicos. Desse cerne, relem-bra Marshall, o presente volume foi estendido gradualmente para afrente e para trs, at atingir a forma em que foi publicado em 1890".Essa parte do tratado, confessadamente a sua preferida, embora de-dicasse igual ateno e cuidado ao conjunto da obra, contm o ncleo

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    30 "Os Problemas da Economia Moderna". In: Cadernos de Opinio. n 15, Dez. 79/Agosto 80.p. 8-12.

    31 SHOVE. Op. cit., p. 433. Uma exposio minuciosa da matria contida em cada livro dosPrincpios pode ser encontrada em TAYLOR, Overton H., A History of Economic Thought.Nova York, McGraw Hill Books Co., 1960. Cap. 13, p. 337-379.

  • de seu trabalho analtico, a obra-prima clssica dessa anlise parcialto admirada por uns e to criticada por outros".32 Ainda sobre essaparte do tratado, Marshall acrescenta: Para mim, pessoalmente, oprincipal interesse do volume centra-se no Livro Quinto: ele contmmais do trabalho de minha vida do que qualquer outra parte; l,mais do que em qualquer outra parte, que eu tentei enfrentar as ques-tes pendentes da cincia.33 E continua dizendo que o grande problemageral da distribuio econmica dos recursos o piv do principal ar-gumento da matria mais importante do Livro Quinto e mesmo deuma grande parte de toda a obra. (Livro Quarto. Cap. III, 8. Notasobre a lei do rendimento decrescente.)

    Vejamos, agora, especificamente, as principais contribuies deMarshall no campo da doutrina e anlise econmicas contidas nos Prin-cpios, que , como j se disse, a suma do seu pensamento. Justamentenuma poca em que a controvertida teoria do valor dividia os econo-mistas em posies irreconciliveis, Marshall conseguiu, graas prin-cipalmente introduo do elemento tempo como fator na anlise,reconciliar o princpio clssico do custo de produo com o princpioda utilidade marginal, atribudo escola austraca (Menger), Walrase Jevons, mas que, diz Marshall, lhe foi inspirado por Von Thnen.Ao introduzir o fator tempo na anlise econmica pela distino entrecurtos e longos perodos, ele procurou, com efeito, determinar o papeldo custo objetivo de produo (longos perodos) e o da utilidade marginal(perodos curtos) na determinao do valor dos bens e servios.34 Exis-tem alguns autores, porm, como Corry,35 que consideram a elaboraoda rigorosa Economia do estado estacionrio a contribuio terica cen-tral de Marshall.

    O mtodo de anlise parcial ou anlise de equilbrio parcial,tambm chamado de abordagem Ceteris paribus (iguais s demais coi-sas, isto , sem que haja modificao de outras caractersticas ou cir-cunstncias) das mais famosas e, hlas, controvertidas contribuiesde Marshall. Consiste, essencialmente, em compartimentar a economiade modo que os principais efeitos de uma mudana de parmetro numdeterminado minimercado possam ser ressaltados sem considerar osefeitos colaterais em outros mercados, inclusive as reaes, ou feedbackdestes. Justificando o seu modelo analtico esttico, diz Marshall, ini-cialmente, que a funo da anlise e da deduo em Economia no forjar longas cadeias de raciocnio, mas forjar seguramente muitas pe-quenas cadeias e simples elos de ligao, acrescentando ento que:O elemento tempo uma das primeiras causas daquelas dificuldades

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    32 SCHUMPETER. Histria da Anlise Econmica. Partes IV-V, p. 109.33 Prefcio 2 edio.34 Cf. Robert, 2.35 Loc. cit., p. 28.

  • nas investigaes econmicas que tornam necessrio ao homem, comsuas limitadas faculdades, avanar seno passo a passo; decompondouma questo complexa, estudando um aspecto de cada vez para, final-mente, combinar as solues parciais numa soluo mais ou menoscompleta do problema total. Decompondo-o, separa provisoriamente,debaixo da condio Ceteris paribus, as causas perturbadoras... Quantomais a questo assim reduzida, mais exatamente pode-se trat-la...Cada tratamento exato e seguro de uma reduzida questo ajudamais a elucidar os problemas maiores... do que seria possvel deoutra forma. A cada passo, mais coisas podem ser consideradas, asdiscusses tericas se podem tornar menos abstratas, as discussesprticas menos inexatas do que era possvel numa fase anterior.(Livro Quinto. Cap. V, 2.)

    Outras formulaes doutrinrias e metodolgicas incorporadasaos Princpios tais como a elasticidade da procura, economias ex-ternas e internas, quase-renda, firma representativa, organizao em-presarial etc. desempenharam importante papel no desenvolvimentosubseqente da Economia e fazem parte hoje do instrumental tericoe analtico do economista moderno.

    Valendo-se de notas e observaes do prof. Edgeworth, que foidos primeiros renomados economistas a proclamar a importncia danova obra de Marshall, Keynes assim resume as principais contribui-es que nela se contm (algumas das quais, como foi dito, j esboadasde uma forma ou outra em Economics of Industry).36

    1) O esclarecimento completo e definitivo dos papis desempe-nhados respectivamente pela Procura e pelo Custo de Produo nadeterminao do valor.

    2) a idia geral, subjacente proposio de que o Valor de-terminado no ponto de equilbrio da Procura e da Oferta, foi estendidaat a descoberta de um verdadeiro sistema copernicano, pelo qual todosos elementos do universo econmico so mantidos em seus lugares pormtuas reaes e contrapesos. A teoria geral do equilbrio econmicopor duas poderosas concepes subsidirias a Margem e a Substi-tuio. A noo de Margem foi estendida alm da Utilidade para des-crever o ponto de equilbrio em dadas condies de qualquer fator eco-nmico que possa ser considerado capaz de pequenas variaes emtorno de um valor dado, ou em sua relao funcional a um dado valor.A noo de Substituio foi introduzida para descrever o processo peloqual o Equilbrio restaurado ou estabelecido. Em particular, a idiade Substituio na Margem, no somente entre objetivos alternativosde consumo, mas tambm entre os fatores de produo, foi extraordi-nariamente frutuosa em resultados;

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    36 Loc. cit., p. 349-354.

  • 3) a explcita introduo do elemento Tempo como um fator naanlise econmica, bem como as concepes de perodos longos e cur-tos tinha como um dos seus objetivos traar um encadeamento con-tnuo atravessando e conectando as aplicaes da teoria geral de equi-lbrio da procura e da oferta a diferentes perodos de tempo. H outrasdistines conexas a essas que agora consideramos essenciais a umraciocnio claro e que foram explicitadas pela primeira vez por Marshall especialmente entre economias externas e internas, custo pri-mrio e suplementar. Desses pares, o primeiro Keynes considerauma completa novidade quando apareceram os Princpios; o ltimo,no entanto, j existia no vocabulrio da indstria, se no no da anliseeconmica. Por meio da distino entre perodos longos e curtos, osignificado de normal tornou-se mais preciso; e com a ajuda de duasoutras concepes caracteristicamente marshallianas Quase-Rendae Firma Representativa a doutrina do Lucro Normal foi desenvol-vida. Todas estas so idias inovadoras que ningum que procurepensar claramente pode dispensar, diz Keynes, ressalvando, porm,que essa a rea em que, em sua opinio, a anlise de Marshall menos completa e satisfatria, e onde resta muito a fazer. ReconheceMarshall, no Prefcio 1 edio da obra, que o elemento tempo ocentro da principal dificuldade de quase todo problema econmico";

    4) a concepo especial de Excedente do Consumidor, desenvol-vimento natural das idias de Jevons, no se revelou, na prtica, toproveitosa como parecera a princpio. Mas, lembra Keynes, ningumpode desprez-la como parte do aparato de pensamento, e particu-larmente importante nos Princpios por causa do seu uso nas pa-lavras do prof. Edgeworth para mostrar que, laissez-faire, o mximode vantagem alcanada pela concorrncia irrestrita, no necessaria-mente a maior vantagem possvel que possa alcanar. A prova, apre-sentada por Marshall, de que o laissez-faire teoricamente entra empane sob certas condies e no apenas praticamente, considerado umprincpio de vantagem social mxima, foi de grande importncia filo-sfica. Marshall no levou essa argumentao muito longe,37 e a ex-plorao mais avanada desse campo foi deixada ao seu discpulo diletoe sucessor, Pigou, que demonstrou que mquina poderosa para abrircaminho numa regio embaraada e difcil oferece a anlise de Marshallnas mos de quem tenha sido educado para compreend-la bem;

    5) a anlise do monoplio feita por Marshall deve ser mencionada,bem como, a propsito, sua anlise do rendimento crescente, especial-mente onde existem economias externas.

    As concluses tericas de Marshall nesse campo e sua simpatiapara com as idias (ideais, seria mais exato) socialistas eram compa-

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    37 Industry and Trade gira parcialmente em torno desse ponto.

  • tveis, no entanto, com uma velha crena na resistncia das foras daconcorrncia. Diz o prof. Edgeworth: Posso me lembrar da viva im-presso da primeira vez que encontrei Marshall l pelos anos oitenta,creio por sua forte expresso da convico de que a Concorrnciadominaria por muito tempo como a principal determinante do valor.Estas no foram as suas palavras, mas elas se encaixam no pensamentoexpresso em seu artigo sobre The Old Generation of Economists andthe New:38 Quando uma pessoa est disposta a vender uma coisapor um preo pelo qual uma outra est disposta a pagar, os dois ar-ranjam por se encontrarem a despeito de proibies do Rei, do Parla-mento ou dos funcionrios de um Truste ou Sindicato Operrio;

    6) a introduo explcita da idia de elasticidade o maiorservio prestado por Marshall aos economistas na proviso de termi-nologia e equipamento para apurar o pensamento. A apresentao dadefinio de Elasticidade da Procura virtualmente o primeiro tratadode uma concepo sem cuja ajuda a teoria avanada do valor e daDistribuio teria feito algum progresso. A noo de que a procurapode responder a uma alterao de preo numa extenso que pode sermais ou menos do que proporcional era, naturalmente, familiar desdeas discusses no comeo do sculo XIX sobre a relao entre a ofertae o preo do trigo. De fato, algo surpreendente que essa noo notenha sido mais claramente elucidada por Mill ou Jevons. Mas assimno o foi. E o conceito

    e = dxx

    dyy

    inteiramente de Marshall. A maneira com que Marshall introduz aElasticidade sem nenhuma sugesto de que a idia nova, notvele caracterstica. O campo de investigao por esse instrumento de pen-samento outro em que os frutos completos foram colhidos pelo prof.Pigou antes do que pelo prprio Marshall".

    De outro ponto de vista que no o estritamente tcnico-econmicomas sob a ptica tico-social, os Princpios revelam, numa leitura aten-ta, aquelas pepitas que se disse estarem subjacentes sob a polidasuperfcie deste globo da verdade. Da a observao de alguns de quea sua leitura aparentemente fcil, mas torna-se complexa se sujeita reflexo. Ao garimpar as prescries sociais, os preceitos morais eas recomendaes sobre diretrizes governamentais, que constituem amensagem de poltica econmica e social de Marshall, verifiquei queo veio aurfero mais rico j havia sido explorado por Theodore Levitt,um dos atuais economistas que consideram monumental os Princpiosnum ensaio sobre Marshall em que ressalta a sua relevncia vitoriana

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    38 Quarterly Journal of Economics. 1896. v. XI. Republicado no Memorials.

  • para a Economia moderna.39 Logo no incio dos Princpios, Marshall,lembra Levitt, tornou claro o que iria enfrentar: ...a pouca atenoque se tem dado relao entre a Economia e o superior bem-estardo homem (Livro Primeiro. Cap. 1, 3). Ele no cairia na armadilha,como alguns dos seus predecessores, em desculpas implcitas pelos ex-cessos da atual ordem econmica. Disse ele, com evidente desaprova-o, que no passado o perodo no qual a livre iniciativa se apresentavanuma forma brbara e desnaturada foi, na verdade, quando os econo-mistas foram mais prdigos em louv-la (Livro Primeiro. Cap. I, 5).Marshall no repetiria esse erro", diz Levitt. Ele estava determinadoseriamente a investigar se necessrio de todo haver as ditas classesbaixas, isto , se preciso haver um grande nmero de pessoas con-denadas desde o bero ao rude trabalho a fim de prover os requisitosde uma vida refinada e culta para os outros, enquanto elas prpriasso impedidas por sua pobreza e labuta de ter qualquer quota ou par-ticipao nessa vida (Livro Primeiro. Cap. I, 2).

    No prosseguimento dessa investigao, diz ainda o citado autor,Marshall propunha deixar sua anlise seguir seu prprio curso: Assim,quanto menos nos preocuparmos com discusses escolsticas sobre aquesto de saber se tal ou qual assunto pertence ao campo da economia,melhor ser (Livro Primeiro. Cap. II, 7). Alm do mais, disse eleno incio que as foras ticas esto entre as que o economista deveconsiderar. Tem-se tentado, na verdade, construir uma cincia abstratacom respeito s aes de um homem econmico... Mas essas tentativasno tm sido coroadas de xito, nem tampouco realizadas integralmen-te (Prefcio 1 edio). Ele no ignorar as altrusticas, desinte-ressadas e sacrificadas continuidades e motivaes dos membrosde um grupo industrial. Refere-se a estas como foras ticas, dizendono prlogo que: Se este livro tem alguma peculiaridade , talvez, ade dar proeminncia a esta e outras aplicaes do princpio de Conti-nuidade (Prefcio 1 edio).

    Marshall era francamente favorvel doutrina de que o bem-estar do povo em geral deve ser o objetivo ltimo de todos os esforosprivados e de todos os programas polticos (Livro Primeiro. Cap. IV, 6). J quase no fim do volume, advertindo em sua maneira cautelosasobre a necessidade de se estar de guarda contra a tentao de exageraros males econmicos de nossa prpria poca, declara-se finalmenteem favor de um firme compromisso para estimular os outros, bemcomo a ns prprios, a uma disposio de no mais permitir que osmales atuais continuem a existir (Livro Sexto. Cap. XIII, 15). Pormeio de todo o vasto tratado esses males so revelados e profligados,acentua Levitt, que acrescenta: Ainda que Marshall tivesse muito que

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    39 LEVITT, Theodore. Alfred Marshall: Victorian Relevance for Modern Economics. In: Quar-terly Journal of economics. XC (3), agosto de 1976. p. 425-443.

  • dizer sobre sua atenuao ou extino em outros escritos e cartas pu-blicadas, a incluso nos Princpios de tantas censuras morais, pre-ceitos ticos, propostas intervencionistas, reflexes utpicas, e tantarepulso reprimida que torna a obra to original.

    So variados e numerosos os pronunciamentos extra-econmicose ticos de Marshall, contrastando com o carter tcnico e cientficode suas anlises e postulados econmicos do que pretendia ele fosseuma mquina para pesquisa da verdade. O ordenamento por Levittdesses pronunciamentos algo arbitrrio, mas no h vantagem prticaem alter-lo. Sigamo-lo, pois.

    A economia da infncia e a da famlia

    Marshall sentia-se intensamente perturbado com a terrvel in-justia com que a livre-empresa pressionava os filhos da pobreza. Suasoluo parcial era equip-los com o poder de evitar ou escapar disso.Sendo sua crena de que o conhecimento a nossa mais potente m-quina de produo (Livro Quarto. Cap. I, 1), disse ele: Poucos pro-blemas prticos interessam mais diretamente ao economista do queos que se referem aos princpios segundo os quais deveriam ser divididosentre o Estado e os pais as despesas da educao das crianas (LivroQuarto, Cap. VI, 7)... do ponto de vista nacional, o investimento deriqueza no filho do trabalhador to produtivo quanto o seu investi-mento em cavalos ou maquinaria (Livro Quarto. Cap. VII, 10). Eainda: O mais valioso de todos os capitais o que se investe em sereshumanos, e desse capital a parte mais preciosa resulta do cuidado eda influncia da me, tanto quanto esta conserve os seus instintos deternura e abnegao, e no se tenha empedernido pelo esforo e fadigado trabalho no feminino (Livro Sexto. Cap. IV, 3). Assim, temosnessa ltima citao, observa Levitt, no somente a noo de capitalhumano, mas tambm um dos preceitos vitorianos sobre o lugar, de-veres e sensibilidades da me num Estado industrial. Os sentimentosde Marshall refletiam simplesmente a idealizao intelectual prevale-cente da mulher. Eles eram parte essencial das noes marshallianasde como o capital humano criado: ...ao avaliar o custo de produode trabalho eficiente devemos freqentemente tomar como unidade afamlia. De qualquer forma, alis, no podemos tratar o custo daproduo de homens eficientes como um problema isolado. Devemostom-lo como parte do problema mais amplo do custo de produode homens eficientes, juntamente com as mulheres aptas a tornaros seus lares felizes e a criar os seus filhos vigorosos em corpo eesprito, amigos da verdade e da limpeza, corteses e corajosos (LivroSexto. Cap. IV, 3).

    Segundo a implcita diviso de trabalho de Marshall, mulhercaberia a tarefa natural e principal de cuidar da famlia. Duvidava,portanto, do benefcio automtico da mo invisvel ao afastar do lar

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  • as mulheres com a tentao de altos salrios, que estariam se elevandorelativamente mais depressa do que os dos homens, o que, se por umlado, desenvolve as suas faculdades, , por outro lado, um mal namedida em que leva as mulheres a negligenciarem os seus deveresdomsticos e a no investirem seus esforos na formao de um ver-dadeiro lar e na educao dos filhos, que representa um capital pessoal(Livro Sexto. Cap. XII, 10). Os maridos devem, tambm, ter umacerta presena domstica, sendo que a sociedade como um todo teminteresse direto na reduo de horas extravagantemente longas de tra-balho que os mantm fora de casa (Livro Sexto. Cap. XIII, 14). Quantoaos efeitos sobre os jovens da renda familiar e comportamento dospais, achava ele que o investimento de capital na criao e educaodos filhos para o trabalho limitado na Inglaterra pelos recursos dospais (Livro Sexto. Cap. IV, 2), e isso nas classes mais baixas umgrande mal. Muitos dos filhos das classes trabalhadoras so insatis-fatoriamente alimentados e vestidos, recebem educao insuficiente,tm poucas oportunidades de obter uma melhor viso da vida ou com-preenso da natureza do trabalho mais elevado dos negcios, da cinciaou da arte, enfrentando muito cedo trabalho duro e exaustivo, e porfim vo para o tmulo levando consigo talentos e capacidades nodesenvolvidas, mal este que cumulativo (idem). Em contraste, aquelesque nascem nos altos estratos da sociedade levam de sada a vantagemde um melhor comeo de vida, graas a seus pais (Livro Sexto. Cap.IV, 3). bvio, diz ele, que o filho de algum j estabelecido nosnegcios comea com uma grande vantagem, aprende quase que in-conscientemente sobre os homens e costumes, comea com maior capitalmaterial e tem a vantagem adicional de relaes comerciais j esta-belecidas (Livro Quarto. Cap. XII, 6).

    A correo desse males redunda, felizmente, no bem pblicopor meio da produo de melhor capital humano e a extino danegligncia anti-econmica em seu desenvolvimento. Em apoio desua tese, afirma Marshall que s habilidades dos filhos das classestrabalhadoras pode ser atribuda a maior parte do sucesso das cidadeslivres da Idade Mdia e da Esccia em tempos recentes. Mesmo naprpria Inglaterra o progresso mais rpido naquelas partes do pasem que a maioria dos lderes da indstria constituda de filhos detrabalhadores, uma vez que as velhas famlias estabelecidas tm ca-recido da flexibilidade e juventude de esprito que nenhuma vantagemsocial pode suprir e que provm somente de dons naturais. Esse espritode casta e essa deficincia de sangue novo entre os lderes da indstriase sustentam mutuamente, e no so poucas as cidades do sul daInglaterra cuja decadncia pode ser atribuda em grande parte a essacausa (Livro Quarto. Cap. VI, 5). Assim, pois, ele atribua uma grandeparte da misria existente e do entorpecimento econmico a causasestruturais hereditrias barreiras de casta impostas aos filhos pela

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  • pobreza de seus pais. Mas no achava que a pobreza fosse a explicaode tudo. Pronta ao, disse ele, necessria com respeito ao granderesduo de pessoas que so fsica, mental ou moralmente incapazesde um bom dia de trabalho com que ganhar um bom salrio dirio. Ocaso daqueles que so responsveis por crianas exigiria maior gastode fundos pblicos e mais estrita subordinao da liberdade pessoal necessidade pblica. O mais urgente entre os primeiros passos insistirna freqncia regular escola com roupa decente, corpos limpos e bemalimentados. Em caso de omisso, os pais devem ser advertidos e acon-selhados; e como ltimo recurso os lares poderiam ser dissolvidos ouregulados com alguma limitao da liberdade dos pais (Livro Sexto.Cap. XIII, 12). Evidentemente Marshall estava advogando, com me-didas severas, uma forma de instruo pblica compulsria, mas comroupa decente e corpos limpos.

    A significao dessa incluso nos Princpios, observa Levitt, que Marshall advertiria de incio que tais matrias (como trustes,manobras da Bolsa, controle de mercados), no podem ser apropria-damente discutidas num volume sobre Fundamentos: elas cabem numvolume que trate de alguma parte da Superestrutura (Prefcio 8edio). Assim, estranha com razo o citado autor, trustes que produzembens e servios so Superestrutura; famlias que produzem capital hu-mano no o so. Controle de mercados" Superestrutura; controle depessoas no o . Quando convinha aos seus preceitos, conclui Levitt,todas as matrias tornavam-se legitimamente o campo de um volumede Fundamentos.

    Admitindo que os ganhos dos pobres possam aumentar, Mar-shall ressalvava, no entanto, que eles poderiam us-los incorreta-mente, de maneira tal que pouco ou nada contribuem para tornar-lhes a vida mais nobre ou verdadeiramente mais feliz (Livro Sexto.Cap. XIII, 14). Para isso ele tinha uma soluo: o progresso podeser apressado... atravs da aplicao de princpios eugnicos me-lhoria da raa, suprida de contingentes populacionais pelas camadasmais altas antes do que pelas mais baixas (Livro Quarto. Cap.VIII, 5). Esta, de certo modo, a soluo final porque, comoobserva Levitt, afinal o que Marshall pregava no era tanto de na-tureza econmica mas o aperfeioamento moral e esttico. Era paraisso, finalmente, acrescenta ainda o citado autor, mais do que porsua contribuio para a riqueza nacional ou para a reduo da po-breza que a instruo das camadas mais baixas deveria ser esti-pendiada: elevar o tnus da vida humana. O mestre-escola deveaprender que o seu dever principal no distribuir conhecimentos,pois alguns xelins compraro mais cincia impressa do que o crebrode um homem pode conter, mas educar o carter, as faculdades eatividades... Para esta finalidade, o dinheiro pblico deve fluir li-vremente (Livro Sexto. Cap. XIII, 13). Como mestre-escola de

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  • geraes de economistas, diz Levitt, Marshall tinha clara conscinciadessa alta obrigao.

    Teorias do salrio e da distribuio

    Se casta e pobreza hereditria explicam o ciclo da pobreza, o queexplicaria a pobreza em si, pergunta-se Levitt, que responde: tudo oque Marshall pode afinal dizer depois de trinta anos de reviso dosPrincpios que a pobreza em si derivava de baixos salrios e quebaixos salrios nada tinham virtualmente a ver com a produtividade,mas, sim, inteiramente com a existncia do que Marx chamou de exr-cito de reserva industrial massas de desempregados rebaixando opreo do trabalho, desesperadamente prontos a furar a greve daquelesque, em busca de melhoria, recusam-se a trabalhar. Isso especial-mente verdadeiro em relao aos trabalhadores no-qualificados, emparte porque os seus salrios oferecem muito pouca margem para pou-pana, em parte porque quando qualquer grupo deles suspende o tra-balho, h um grande nmero pronto a preencher os seus lugares (LivroSexto. Cap. IV, 8).

    Ainda que se preocupasse seriamente com a teoria da distribuioe a teoria dos salrios que tanto fascinaram Ricardo e seus seguidores e particularmente Karl Marx inquestionvel que Marshall ne-gava totalmente a utilidade delas na questo da pobreza: ...os salriosde toda classe de trabalho tendem a ser iguais ao produto lquido dotrabalho adicional do trabalhador marginal dessa classe... Essa dou-trina tem sido apresentada s vezes como uma teoria dos salrios.Mas no h fundamento vlido para tal pretenso. A doutrina... notem por si mesma significao real, uma vez que para avaliar o produtolquido temos que tomar como fixas todas as despesas de produo damercadoria em que o homem trabalha, fora o prprio salrio. Contudo,a doutrina traz luz uma das causas que regulam os salrios (LivroSexto. Cap. I, 7).

    Por fim, logicamente, diz levitt, foi ao exrcito de reserva indus-trial que Marshall teve que retornar, porque afinal o preo do trabalhoera ele prprio um dos determinantes do preo de mercado de seuproduto. E ele considerava a principal influncia sobre o preo do tra-balhador a extenso da concorrncia das reservas de mo-de-obra nosportes de um grande empregador, ou de empregadores agindo de co-mum acordo. Tem-se agora certeza de que o problema da distribuio muito mais difcil do que o julgavam os antigos economistas... Nasua maior parte, as antigas tentativas para dar uma soluo fcil aoproblema foram na realidade respostas a questes imaginrias quepoderiam ter surgido em outros mundos que no o nosso, nos quaisas condies de vida fossem muito simples (Livro Sexto. Cap. I, 2).Noutra passagem anterior ele j havia expressado a mesma idia aodizer que a cativante elegncia da teoria da distribuio deixava muito

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  • a desejar quando estendida da mercadoria ao trabalho: As exceesso raras e sem importncia nos mercados de mercadorias (commodi-ties), mas nos mercados de trabalho so freqentes e importantes. Quan-do um trabalhador teme a fome, sua necessidade de dinheiro (a utili-dade marginal deste para ele) muito grande. Se no incio o trabalhadorleva a pior na negociao e se emprega a salrio baixo, a necessidadecontinuar grande, e ele continuar vendendo sua fora de trabalho abaixo preo. Isso mais provvel porque enquanto a vantagem danegociao, a respeito de mercadorias, tende naturalmente a ser bemdividida entre os dois lados, num mercado de trabalho muito comumque esteja mais dos lados dos compradores do que dos vendedores(Livro Quinto. Cap. II, 3). certo, todavia, que os trabalhadoresmanuais, como classe, esto em desvantagem na negociao e que adesvantagem, onde quer que exista, provvel ser cumulativa em seusefeitos (Livro Sexto. Cap. IV, 6).

    To convicto estava Marshall da desigualdade da relao entreo comprador e o vendedor de trabalho que, s vezes, parecia rejeitarquase completamente a doutrina econmica convencional nessa ques-to, pois chegava a dizer que os salrios no so determinados pelopreo de procura nem pelo preo de oferta, mas pelo conjunto total decausas que determinam a oferta e a procura (Livro Sexto. Cap. II, 3). Ele tinha franco desprezo pelos sofismas que procuravam reduzirtodos os recursos e troca ao que Marx chamava de nexo pecunirio seres humanos livres no so conduzidos no trabalho sob os mesmosprincpios que uma mquina, um cavalo ou um escravo (Livro Sexto.Cap. I, 1). E reclamava dos pais que mandam seus filhos trabalharemcomo pessoas preguiosas e mesquinhas, com muito pouco amor-prprioe iniciativa (Livro Quarto. Cap. IV, 6). Contudo: Se em qualquertempo (a oferta e a procura de trabalho) se faz sentir sobre quaisquerindivduos ou classes, os efeitos diretos do mal so claros. Mas os so-frimentos que da resultam so de