Alguma poesia

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Alguma Poesia (Carlos Drummond de Andrade ) I. Comentários críticos A poesia de Drummond pode ser abordada a partir da dialética “eu x mundo”: 1. Eu maior que o mundo – marcada pela poesia irônica. O poeta vê os conflitos de uma posição de eqüidistância e não-envolvimento: daí o humor, os poemas-piada e a ironia. O poeta fotografa a província, a família. É sarcástico, de uma irreverência incontida, mas de um sentimento contido, o que vem a produzir um texto objetivo, seco, versos curtos e descarnados, sem transbordamento emocional. É o que ocorre em Alguma Poesia e Brejo das Almas. 2. Eu menor que o mundo – marcada pela poesia social, tomando como temas a política, a guerra e o sofrimento do homem. Desabrocha o sentimento do mundo, marcado pela solidão, pela impotência do homem, diante de um mundo frio e mecânico, que o reduz a objeto. É o que ocorre em Sentimento do Mundo, José e especialmente em A Rosa do Povo. Os poemas Mãos Dadas, Os Ombros Suportam o Mundo e Confidência do Itabirano também incluem-se nessa fase. 3. Eu igual ao mundo – abrange a poesia metafísica, de Claro Enigma onde a escavação do real, mediante um processo de interrogações e negações, conduz ao vazio que espreita o homem e ao desencanto, e a “poesia objetual”, de Lição de Coisas, onde a palavra se faz coisa, objeto,, e é pesquisada, trabalhada, desintegrada e refundida no espaço da página. II. A Obra Como se sabe, Alguma Poesia (1930), o primeiro livro de Carlos Drummond de Andrade, marca o início da segunda fase do Modernismo brasileiro, continuando as experiências da geração anterior, sobretudo de Mário de Andrade, Oswald de Andrade e Manuel Bandeira. Os aspectos mais evidentes da herança modernista em Alguma Poesia são o versilibrismo, a orali-dade, o prosaísmo, a supressão da pontuação convencional, a paródia, o humor, a linguagem telegráfica, a justaposição de frases nominais, a visão prismática do cotidiano: a cidade grande, a província, a fazenda. Todos esses procedimentos estilísticos e essas matérias acham-se sistematizados pelos primeiros modernistas, mas constituem também o modo de ser do livro inaugural de Drummond, cuja formação foi visceralmente marcada pela experiência da vanguarda dos anos 20. De fato, as propriedades apresentadas acima aparecem tanto em Drummond quanto em qualquer modernista da primeira fase. Mas o que, especificamente, diferencia Alguma Poesia da poética de 22? Qual é a particularidade desse livro? O que o torna um livro singular? Sua particularidade decorre, sobretudo, de dois traços, ambos suficientes para lhe atribuir personalidade literária, autonomia artística e independência de concepção: 1. repetição exaustiva de vocábulos, associada à visualidade expressiva do poema; 2. recusa da abstração apriorística e valorização da experiência particular e concreta. 1

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Alguma Poesia (Carlos Drummond de Andrade )

I. Comentários críticos

      A poesia de Drummond pode ser abordada a partir da dialética “eu x mundo”:

      1. Eu maior que o mundo – marcada pela poesia irônica. O poeta vê os conflitos de uma posição de

eqüidistância e não-envolvimento: daí o humor, os poemas-piada e a ironia. O poeta fotografa a província, a família.

É sarcástico, de uma irreverência incontida, mas de um sentimento contido, o que vem a produzir um texto objetivo,

seco, versos curtos e descarnados, sem transbordamento emocional. É o que ocorre em Alguma Poesia e Brejo das

Almas.

      2. Eu menor que o mundo – marcada pela poesia social, tomando como temas a política, a guerra e o

sofrimento do homem. Desabrocha o sentimento do mundo, marcado pela solidão, pela impotência do homem,

diante de um mundo frio e mecânico, que o reduz a objeto. É o que ocorre em Sentimento do Mundo, José e

especialmente em A Rosa do Povo.

      Os poemas Mãos Dadas, Os Ombros Suportam o Mundo e Confidência do Itabirano também incluem-se nessa

fase.

      3. Eu igual ao mundo – abrange a poesia metafísica, de Claro Enigma onde a escavação do real, mediante um

processo de interrogações e negações, conduz ao vazio que espreita o homem e ao desencanto, e a “poesia

objetual”, de Lição de Coisas, onde a palavra se faz coisa, objeto,, e é pesquisada, trabalhada, desintegrada e

refundida no espaço da página.

     

II. A Obra

Como se sabe, Alguma Poesia (1930), o primeiro livro de Carlos Drummond de Andrade, marca o início da

segunda fase do Modernismo brasileiro, continuando as experiências da geração anterior, sobretudo de Mário de

Andrade, Oswald de Andrade e Manuel Bandeira.

Os aspectos mais evidentes da herança modernista em Alguma Poesia são o versilibrismo, a orali-dade, o

prosaísmo, a supressão da pontuação convencional, a paródia, o humor, a linguagem telegráfica, a justaposição de

frases nominais, a visão prismática do cotidiano: a cidade grande, a província, a fazenda.

Todos esses procedimentos estilísticos e essas matérias acham-se sistematizados pelos primeiros modernistas,

mas constituem também o modo de ser do livro inaugural de Drummond, cuja formação foi visceralmente marcada

pela experiência da vanguarda dos anos 20.

De fato, as propriedades apresentadas acima aparecem tanto em Drummond quanto em qualquer modernista da

primeira fase.

Mas o que, especificamente, diferencia Alguma Poesia da poética de 22? Qual é a particularidade desse livro? O

que o torna um livro singular?

Sua particularidade decorre, sobretudo, de dois traços, ambos suficientes para lhe atribuir personalidade literária,

autonomia artística e independência de concepção:

      1. repetição exaustiva de vocábulos, associada à visualidade expressiva do poema;

      2. recusa da abstração apriorística e valorização da experiência particular e concreta.

      1. Repetição e visualidade

Drummond foi o primeiro poeta brasileiro a sistematizar o uso da tautologia ostensiva: empregou como nenhum

outro as reiterações, de modo a produzir o efeito de desrazão ou absurdo, como é o caso dos célebres poemas

"No Meio do Caminho", "Quadrilha", "Política Literária", "Sinal de Apito" e "Cidadezinha Qualquer".

Além da redundância, Drummond aplica a esses poemas o que se poderia chamar de disposição gráfica

expressiva, notada sobretudo nos dois primeiros desta série.

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Embora a redundância e a disposição gráfica expressiva, de origem cubo-futurista, surjam aqui e ali nos

primeiros modernistas, nenhum deles adotou esses procedimentos de maneira tão sistemática e explícita quanto

Drummond.

Trata-se de um formalismo que vai além do experimento gráfico ou do jogo de significantes entendidos como

procedimentos auto-suficientes, pois resulta em investigações da existência, com implicações metafísicas e sociais.

Excedendo os limites do jogo vocabular, tais poemas mimetizam a incoerência de certas situações.

Nesse sentido, a forma (tautologia, grafismo) harmoniza-se com a matéria, faz parte da própria constituição do

poema: pertencem à sua ontologia, a seu modo de ser e de significar.

Examine-se o mais famoso dos poemas tautológicos de Drummond:

      No Meio do Caminho

     “ No meio do caminho tinha uma pedra

      tinha uma pedra no meio do caminho

      tinha uma pedra

      no meio do caminho tinha uma pedra.

      Nunca me esquecerei desse acontecimento

      na vida de minhas retinas tão fatigadas.

      Nunca me esquecerei que no meio do caminho

      tinha uma pedra

      tinha uma pedra no meio do caminho

      no meio do caminho tinha uma pedra.”

      Nel Mezzo del Camin (Olavo Bilac)

      “Cheguei. Chegaste. Vinhas fatigada

      E triste, e triste e fatigado eu vinha.

      Tinhas a alma de sonhos povoada,

      E a alma de sonhos povoada eu tinha...

      E paramos de súbito na estrada

      Da vida: longos anos, presa à minha

      A tua mão, a vista deslumbrada

      Tive da luz que teu olhar continha.

      Hoje, segues de novo... Na partida

      Nem o pranto os teus olhos umedece,

      Nem te comove a dor da despedida.

      E eu, solitário, volto a face, e tremo,

      Vendo o teu vulto que desaparece

      Na extrema curva do caminho extremo.”

Além do título, que remete não só a Bilac, mas também a Dante Alighieri (o primeiro verso da Divina Comédia é

"Nel mezzo del caminn de nostra vita"), Drummond imitou o esquema retórico do soneto bila-quiano, isto é, em vez

de parodiar o significado, promoveu um tipo especial de paródia: empenhou-se na imitação irônica da estrutura,

reproduzindo apenas o quiasmo (repetição invertida) do texto, sem deixar de aludir rapidamente à imagem dos

olhos, no centro do poema.

Perceber que "No Meio do Caminho" se baseia na reiteração irônica de uma figura da retórica clássica é já

captar parte de seu significado, que decorre da intenção de acusar o cansaço da tradição.

Além disso, Drummond atribui dimensão alegórica ao vocábulo pedra, que pode ser entendido como símbolo

dos obstáculos que a gente encontra na vida, conforme sugeriu Antônio Cândido.

     

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2. Elogio da experiência

Em Alguma Poesia, não há texto que parta de uma abstração, de um sentimento geral, de uma sensação

difusa, de um desejo vago ou de uma pretensão conceitual.

O poeta lida com coisas e situações concretas, extraídas da observação irônica dos fatos.

Trata-se de uma espécie de poética do empirismo.

Todavia, pouquíssimas vezes os textos se esgotam no particular.

Em quase todos, há uma conclusão generalizante, que resulta num conceito ou numa síntese conclusiva sobre

a vida.

Observe-se o poema "Lagoa". Nele, o poeta afirma não se importar com o mar, porque nunca o viu.

Preocupa-se com a lagoa, que faz parte de sua experiência.

Por isso, a descreve com as tintas sensuais (quase femininas), quando o sol evidencia suas cores:

      “Eu não vi o mar. / Não sei se o mar é bonito, / Não sei se ele é bravo. / O mar não me importa.

      Eu vi a lagoa. / A lagoa, sim. / A lagoa é grande / E calma também.

      Na chuva de cores / da tarde que explode / a lagoa brilha / a lagoa se pinta

      de todas as cores. / Eu não vi o mar. / Eu vi a lagoa... “

Qual será o sentido dos vocábulos mar e lagoa no poema?

Como em Minas (tópica mitificada na poesia drummondiana) não há mar, o vocábulo no poema representa uma

abstração, um conceito longínquo, assim como a lagoa significa a experiência, o dado vivenciado.

É desse último que se faz o poema, o qual resulta numa generalidade filosófica abstraído do concreto.

Em última análise, esse poema glosa o princípio de que para falar do mundo deve-se falar da própria terra.

É assim com Alguma Poesia. Mário e Oswald preocupam-se com o Brasil.

Drummond limita-se a Minas.

No o poema "Coração Numeroso", estando no Rio de Janeiro, ao longo do mar, o eu-lírico afirma que a

promessa do oceano se tornara calor sufocante, logo atenuado por um vento que vinha de Minas.

Assim a segunda grande característica tipicamente drummondiana em Alguma Poesia é o culto do particular,

uma espécie de respeito à autenticidade da experiência.

Na série "Lanterna Mágica", o poeta compõe pequenos mosaicos sobre algumas cidades de seu convívio (Belo

Horizonte, Sabará, Caeté, Itabira, São João Del-Rei, Nova Friburgo, Rio de Janeiro).

Ao abordar a Bahia, escreve simplesmente:

     “ É preciso fazer um poema sobre a Bahia... / Mas eu nunca fui lá.”

No conjunto dos textos agrupados sob o título de "Lanterna Mágica", esta unidade, a última das imagens que

brilham na memória como os raios de uma lanterna mágica (antigo instrumento de projeção), funciona também

como um elogio à experiência: isto é, a poesia deve partir da relação com as coisas, com os lugares e com as

pessoas, jamais de sentimentos indefinidos.

III. Temas drummondianos

      em Alguma Poesia

      1. O indivíduo: Poema de Sete Faces

      2. Terra natal: Cidadezinha Qualquer/ Romaria

      3. A família: Infância

      4. Amigos: nenhum poema

      5. O choque social: Coração numeroso

      6. Conhecimento amoroso: Quadrilha

      7. A própria poesia: nenhum poema

      8. Exercícios lúdicos: Sinal de Apito e Política Literária

      9. Uma visão, ou tentativa de exploração e de interpretação de estar no mundo: No Meio do Caminho

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     IV. Outros textos

      Poema de Sete Faces

     “Quando nasci, um anjo torto / desses que vivem na sombra

      disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida. / As casas espiam os homens

      que correm atrás de mulheres. / A tarde talvez fosse azul,

      não houvesse tantos desejos. / O bonde passa cheio de pernas:

      pernas brancas pretas amarelas. / Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração.

      Porém meus olhos / não perguntam nada.

      O homem atrás do bigode / é sério, simples e forte. / Quase não conversa.

      Tem poucos , raros amigos / o homem atrás dos óculos e do bigode.

      Meu Deus, por que me abandonaste / se sabias que eu não era Deus / se sabias que eu era fraco.

      Mundo mundo vasto mundo / se eu me chamasse Raimundo, / seria uma rima, não seria uma solução.

      Mundo mundo vasto mundo, / mais vasto é meu coração.

      Eu não devia te dizer / mas essa lua / mas esse conhaque / botam a gente comovido como o diabo.”

      Gauche: termo francês, quer dizer torto, desajeitado.

Diante do impasse homem-mundo, a poesia primeiro tende a se concentrar no homem, sem entretanto optar

pelo lirismo escapista, comovido pela “lua” e pelo “conhaque”, parece querer tomar conta do sujeito poético.

O poeta reage, lançando mão de suas armas já conhecidas: a ironia sarcástica, o humor que não faz rir.

Assim contida, represada, a emoção pode resvalar para o seu alvo maior, o seu desafio duradouro: “o Mundo

vasto mundo”, cujos obstáculos, impedimentos e armadilhas não são escamoteados.

Abre o livro, com sete estrofes que parecem desconexas, numa montagem como a da pintura cubista.

      Cota zero

      “Stop. / A vida parou / ou foi o automóvel?”

Poema-piada, que incorpora a concisão e a não-discursividade propostas pelas Vanguardas Européias, em

especial o Futurismo, ao mesmo tempo que faz a crítica irônica de seus pressupostos ideológicos.

Em vez da euforia pelo progresso, da adesão às máquinas, o texto os coloca como formas de escravidão

humana, num bom exemplo da postura antropofágica defendida por Oswald de Andrade.

      José

“E agora, José? / A festa acabou, / a luz apagou, / o povo sumiu, / a noite esfriou, / e agora, José?

e agora, Você? / Você que é sem nome, / que zomba dos outros, / Você que faz versos, / que ama, protesta?

e agora, José? / Está sem mulher, / está sem discurso, / está sem carinho, / já não pode beber, / já não pode fumar,

cuspir já não pode, / a noite esfriou, / o dia não veio, / o bonde não veio, / o riso não veio, / não veio a utopia

e tudo acabou / e tudo fugiu / e tudo mofou, / e agora, José? / E agora, José? / sua doce palavra,

seu instante de febre, / sua gula e jejum, / sua biblioteca, / sua lavra de ouro, / seu terno de vidro, / sua incoerência,

seu ódio, - e agora? / Com a chave na mão / quer abrir a porta, / não existe porta; / quer morrer no mar,

mas o mar secou; / quer ir para Minas, / Minas não há mais. / José, e agora?/ Se você gritasse, / se você gemesse,

se você tocasse, / a valsa vienense, / se você dormisse, / se você cansasse, / se você morresse....

Mas você não morre, / você é duro, José! / Sozinho no escuro / qual bicho-do-mato, / sem teogonia,

sem parede nua / para se encostar, / sem cavalo preto / que fuja do galope, / você marcha, José! /  José, para

onde?”

Esse beco sem saída é o real degradado, caracterizado pela ausência de sentido, que sem dúvida corresponde

à Modernidade: sem os deuses, sem a utopia, sem a porta para abrir, sem a crença em qualquer tipo de fuga, José,

o homem comum, que poderia ser confundido com qualquer outro, continua inexoravelmente a sua caminhada, nos

versos do poeta: “você marcha, José! /  José, para onde?”

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A consciência da solidão e da falta de opções marca a segunda fase da travessia poética de Drummond: o

coração que se julgava maior que o mundo, iguala-se a ele; ambos se equivalem, porque para o poeta a rima, isto é,

a mera capacidade de criar poesia, não se confunde com a solução.

É preciso unir poesia e vida, “re-unir” o homem e o mundo, o sonho e a realidade, sem deixar de perceber a

“pedra no meio do caminho”.

Este constitui o desafio maior do poeta, que jamais se permite escapar do real, ao mesmo tempo que jamais

deixa de ser poeta.

      Cidadezinha qualquer

“Casas entre bananeiras / mulheres entre laranjeiras / pomar amor cantar

Um homem vai devagar. / Um cachorro vai devagar. / Um burro vai devagar.

Devagar... as janelas olham. / Eta vida besta, meu Deus.”

Poema de tom irônico sobre a sociedade de pequenas cidades interioranas.

      Balada do amor através das idades

“Eu te gosto, você me gosta / desde tempos imemoriais. / Eu era grego, você troiana, / troiana mas não Helena.

Saí do cavalo de pau / para matar seu irmão. / Matei, brigamos, morremos. / Virei soldado romano,

perseguidor de cristãos. / Na porta da catacumba / encontrei-te novamente. / Mas quando vi você nua

caída na areia do circo / e o leão que vinha vindo, / dei um pulo desesperado / e o leão comeu nós dois.

Depois fui pirata mouro, / flagelo da Tripolitânia. / Toquei fogo na fragata / onde você se escondia

da fúria de meu bergantim. / Mas quando ia te pegar / e te fazer minha escrava, / você fez o sinal-da-cruz

e rasgou o peito a punhal... / Me suicidei também.

Depois (tempos mais amenos) / fui cortesão de Versailles, / espirituoso e devasso.

Você cismou de ser freira... / Pulei muro de convento / mas complicações políticas / nos levaram à guilhotina.

Hoje sou moço moderno, / remo, pulo, danço, boxo, / tenho dinheiro no banco.

Você é uma loura notável, / boxa, dança, pula, rema. / Seu pai é que não faz gosto.

Mas depois de mil peripécias, / eu, herói da Paramount, / te abraço, beijo e casamos.”

Poema narrativo sobre o amor.

   Infância

“Meu pai montava a cavalo, ia para o campo. / Minha mãe ficava sentada cosendo. / Meu irmão pequeno dormia.

Eu sozinho menino entre mangueiras / lia a história de Robinson Crusoé, / comprida história que não acaba mais.

No meio dia branco de luz uma voz que aprendeu / a ninar nos longes da senzala - e nunca se esqueceu

chamava para o café. / Café preto que nem a preta velha / café gostoso / café bom.

Minha mãe ficava sentada cosendo / olhando para mim: / - Psiu... Não acorde o menino.

Para o berço onde pousou um mosquito. / E dava um suspiro... que fundo! / Lá longe meu pai campeava

no mato sem fim da fazenda. / E eu não sabia que minha história / era mais bonita que a de Robinson Crusoé.”

Uma das constantes temáticas de Drummond é a família, sua vivência interiorana em Minas Gerais, a paisagem

que marca sua memória.

Contrariando o lugar-comum, ao invés de se referir à família como algo que lhe foi atribuído por Deus, o poeta

coloca um "que me dei" a analisa suas relações pessoais, consciente de que se assentam na perspectiva pessoal.

De modo muito individual, retrata o escoar do tempo,

      Itabira

“Cada um de nós tem seu pedaço no pico do Cauê / Na cidade toda de ferro / as ferraduras batem como sinos.

Os meninos seguem para a escola. / Os homens olham para o chão. / Os ingleses compram a mina.

Só, na porta da venda, Tutu caramujo cisma na derrota incomparável.’

Poema em tom de lamentação sobre a terra natal.

    

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  Poema do jornal

“O fato ainda não acabou de acontecer / e já a mão nervosa do repórter / o transforma em notícia.

O marido está matando a mulher. / A mulher ensangüentada grita. / Ladrões arrombam o cofre.

A polícia dissolve o meeting. / A pena escreve. / Vem da sala de linotipos a doce música mecânica.”

Ironia à linguagem fria e mecânica do jornalismo.

      Poema que aconteceu

“Nenhum desejo neste domingo / nenhum problema nesta vida / o mundo parou de repente

os homens ficaram calados / domingo sem fim nem começo. / A mão que escreve este poema

não sabe o que está escrevendo / mas é possível que se soubesse / nem ligasse. “

Poema metalingüístico, em que o poeta “narra” em tom descompromissado o surgimento da poesia.

      Política literária

“O poeta municipal / discute com o poeta estadual / qual deles é capaz de bater o poeta federal.

Enquanto isso o poeta federal / tira ouro do nariz. “

O tema desse poema é a política entre literatos, a competição entre poetas, que é ironizada pelo autor.

      Quadrilha

“João amava Teresa que amava Raimundo / que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili

que não amava ninguém. / João foi para o Estados Unidos, Teresa para o convento,

Raimundo morreu de desastre, Maria ficou para tia, / Joaquim suicidou-se e Lili casou com J. Pinto Fernandes

que não tinha entrado na história. “

Poema em prosa, em tom irônico sobre o amor e crítica à sociedade burguesa.

Nele, o "amor natural" se opõe ao casamento burguês (o de Lili e J. Pinto Fernandes, único nomeado pelos

sobrenomes).

      QUERO ME CASAR

“Quero me casar / na noite na rua / no mar ou no céu / quero me casar.

Procuro uma noiva / loura morena / preta ou azul / uma noiva verde / uma noiva no ar / como um passarinho.

Depressa, que o amor / não pode esperar! “

Negação da idéia platônica do amor romântico, a concepção apresentada no poema é a do amor carnal.

O eu-lírico expressa, em tom enfático, sua necessidade de concretizar o ato amoroso, sem idealizações.

Não há preocupação de selecionar a figura feminina, colocando a mulher num patamar mais humano.

      Sociedade

“O homem disse para o amigo: / - Breve irei a tua casa / e levarei minha mulher.

O amigo enfeitou a casa / e quando o homem chegou com a mulher, / soltou uma dúzia de foguetes.

O homem comeu e bebeu. / A mulher bebeu e cantou. / Os dois dançaram. / O amigo estava muito satisfeito.

Quando foi hora de sair, / o amigo disse para o homem: / - Breve irei a tua casa. / E apertou a mão dos dois.

No caminho o homem resmunga: / - Ora essa, era o que faltava. / E a mulher ajunta: - Que idiota.

- A casa é um ninho de pulgas. / - Reparaste o bife queimado? / O piano ruim e a comida pouca.

E todas as quintas-feiras / eles voltam à casa do amigo / que ainda não pôde retribuir a visita. “

Crítico do universo em que se insere, o poeta vê o mundo com imensa angústia de impotente que em nada

pode modificá-lo.

Anedota búlgara

“Era uma vez um czar naturalista que caçava homens.Quando lhe disseram que também se caçavam borboletas e

andorinhas , ficou muito espantado , e achou uma barbaridade.”

Tudo o que é comum a nós, é visto como normal, aquilo que não é comum é visto como barbárie.

Para o czar caçar homens era normal, enquanto que caçar borboletas e andorinhas era anormal.

Isso demonstra que cada um de nós tem seu ponto de vista, cada um vê com olhos diferentes a mesma coisa.

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