Algumas Contribuições Do Psicodrama Na Psicoterapia Com Mães Enlutadas

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    19 CONGRESSO BRASILEIRO DE PSICODRAMA

    A Humanidade no sculo 21

    ALGUMAS CONTRIBUIES DO PSICODRAMA NA PSICOTERAPIA COM MES ENLUTADAS

    EVANDIR BUENO BARASUOL

    RESUMO

    Este artigo apresenta um estudo realizado com mes que perderam filhos (as) e objetiva investigar as contribuies do psicodrama para a ressignificao de situaes de perdas e identificar as tcnicas do mtodo psicodramtico mais apropriadas para trabalhar com mes enlutadas. Conclusivamente apareceu a tcnica tomada de papel/inverso de papel, como uma das mais efetivas. Atravs da ao dramtica, as mes puderam expressar a dor e ressignificar as vivncias de perda e luto.

    INTRODUO

    Nada para sempre, dizemos, mas h momentos que parecem ficar suspensos,pairando sobre o fluir inexorvel do tempo.Jos Saramago

    A morte ainda um tabu. Existe a tendncia a mant-la ocultada, isolada e impronuncivel, pois provoca certo mal-estar quando abordada nos grupos sociais. Conforme descreve Kovcs (2007, p. 218) A sociedade atual condena a manifestao de sentimentos como se estes fossem sinais de fraqueza. Os rituais de nosso tempo clamam pela rapidez e ocultao para que se tenha a ideia de que a morte no ocorreu.

    Refletir acerca da morte implica necessariamente buscar compreender os sentimentos e percepes nas vivncias do luto. Luto e perda, uma dade que faz emergir sentimentos dolorosos de abandono, desamparo, medo, vazio e culpa. O processo do luto um fenmeno complexo e vivenciado de formas diferentes. O tempo de vivncia do luto varia de um indivduo para outro. Estudos apontam que em casos de mes enlutadas, o processo de luto mais longo e, em algumas situaes, jamais elaborado.

    O presente estudo, iniciado no processo de luto da autora pela perda de um filho, culmina etapa conclusiva de sua formao como psicoterapeuta. Kovcs (2007, p. 217) afirmaque luto o processo de elaborao diante de uma perda de uma pessoa com quem vnculos foram estabelecidos. (...) um vnculo que se rompe de forma irreversvel, quando se trata de morte concreta.

    O caminho para a elaborao do luto desvela um movimento singular em cada indivduo, me ou famlia, levando, por vezes, ao surgimento de doenas fsicas e mentais. Perder gera desconforto e, na maior parte das vezes, sofrimento. Em mes

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    que perdem filhos (as), o sofrimento intenso e desesperador, parecendo interminvel e inconsolvel, urgindo a necessidade de acolhimento e uma escuta singularizada que utilize mtodos apropriados.

    Partindo do pressuposto que a morte inerente vida e o sofrimento tambm faz parte desse processo, a busca por alternativas de minimizao da dor torna-se imprescindvel. Segundo Macieira (2001, p. 52) Contemplar a prpria morte, pensar sobre tua morte pode ser o caminho para comear um amplo processo de crescimento pessoal, alm de tornar o indivduo mais atento, mais acordado no seu presente. Um processo psicoterpico oferece este espao.Pela eficcia do psicodrama enquanto mtodo teraputico, a proposta de realizar um estudo com mes que perderam filhos, buscando uma compreenso e reflexo acerca do processo de luto e a identificao das tcnicas mais apropriadas para este trabalho tornou-se primaz.

    O PSICODRAMA: REVENDO OS CONCEITOS

    Jacob Levy Moreno, criador do psicodrama, sempre acreditou na postura ativa e confiante do homem, e, conforme Echenique (2008), tem uma viso otimista do homem. Enfatiza que cada um de ns carrega uma centelha divina, e que todo o ser humano um gnio em potencial. Para Moreno (2006), o homem nasce espontneo e deixa de s-lo devido a fatores desfavorveis do meio ambiente. A revoluo moreniana a proposta de recuperar a espontaneidade e a criatividade, rompendo padres de comportamento cristalizados, pr-conceitos e formas de vida social que levam ao engessamento do ser humano, chamados de conserva cultural (GONALVES, 1988).

    O movimento que o ser humano faz em busca de mudanas para determinada situao, ou desejo de encontrar respostas novas para antigas vivncias considerado como um ato criador, necessitando de uma dose de espontaneidade. Aqui, o conceito de espontaneidade se entrelaa com o de momento e ambos so indissociveis da criatividade.

    Uma situao pr-estabelecida pode ser mudada, desde que se possibilite liberar o estado de espontaneidade que nasce com o ser humano. esse fator que ir possibilitar a emergncia do ato criativo. Porm, tal ato pode ser cristalizado pelas conservas culturais. Compreende-se Conserva Cultural como tudo que faz parte da cultura, incluindo livros, as obras de arte, comportamentos, usos e costumes (GONALVES, 1988).

    VNCULOS

    Refletir e escrever sobre vnculos implica, necessariamente, resgatar a teoria dos papis. Uma definio moreniana para papel a forma de funcionamento que um indivduo assume no momento especfico em que reage a uma situao especfica, na qual outras pessoas ou objetos esto envolvidos (MORENO,1974, p. 209). Os papis so a maneira de funcionamento da pessoa em relao ao meio em que vive. Os exemplos a seguir possibilitam um melhor discernimento: Quando uma pessoa se dispe a cuidar estar desempenhando o papel de cuidador; o papel de confidente quando escuta; o papel de filho quando complementa o de me.

    a partir da complementao de papis entre os indivduos que a existncia humana se descreve. No dizer de Nery (2003), as cenas da vida so incrementadas pelos papis nos seus vnculos. Para a autora, o fenmeno Tele o responsvel pela formao dos vnculos e o promotor da criao coletiva, ou da co-criao, da

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    criatividade e da liberao das potencialidades dos envolvidos. Ser capaz de perceber e ser percebido pelo outro, em sua essncia, o que possibilita a vivncia de relacionamentos marcantes que levam a transformaes profundas. Essa uma experincia fugaz, que ocorre em um determinado momento, em um instante, o qual se poderia chamar de encontro. Esse encontro profundo entre duas pessoas, essa experincia nica pode ser denominada de relao tlica, que levou Gonalves (1988, p. 53) referir-se a Moreno como o poeta que sugere o significado de Tele como mtua disponibilidade de duas pessoas capazes de se colocarem uma no lugar da outra.

    Os vnculos estabelecidos ao longo da vida despertaro para a experincia emocional neles contida, o que ir possibilitar o aquecimento para que se efetivem (NERY, 2003). Nery refere Moreno, que aborda o conceito de expansividade afetiva, afirmando ser a energia que possibilita ao indivduo que retenha o afeto de outras pessoas durante um determinado perodo de tempo. Logo, a afetividade o que movimenta o comportamento e mobiliza para o desempenho de um determinado papel em um contexto.

    Se na matriz de identidade que se inicia a constituio da identidade, nessa mesma matriz que se forma a identidade dos vnculos. Como esclarece Nery (2003, p. 21). O aprendizado emocional resulta, pois, na nossa modalidade vincular afetiva com o mundo e constituir o modo peculiar de desempenho dos papis em cada vnculo estabelecido em cada indivduo. Assim, cada papel se relaciona com os papis complementares de outras pessoas atravs de vnculos.

    TEORIA DOS PAPIS

    Moreno (2006, p. 25) enfatiza que O desempenho dos papis anterior ao surgimento do eu. Os papis no emergem do eu; o eu quem, todavia, emerge dos papis. Portanto, no interior da matriz de identidade, durante o desenvolvimento da criana, que ocorre o surgimento dos papis. A Matriz de Identidade considerada a base para todos os desempenhos de papis.

    no mundo indiferenciado da matriz de identidade que o beb vivencia suas primeiras experincias, logo aps sua chegada ao mundo. O papel, portanto, surge a partir da interao me-beb, com base na complementaridade entre ambos e vai existir em funo do seu complementar o contra-papel. Nessa inter-relao, o vnculo se constituir, sendo papel e contra-papel constitutivos um do outro.

    A forma com que uma pessoa se comporta, com que lida com a vida, decorrente dos papis que complementar ao longo da existncia e, depender igualmente das respostas recebidas na interao com outros papis no interior dos tomos sociais. Portanto, a construo de um papel vai ocorrer numa sucesso de experincias interpessoais, onde vrios sujeitos vivenciam situaes diversas, construindo sua identidade.

    PSICODRAMA TERAPUTICO e BIPESSOAL

    O Psicodrama rene em sua base terica elementos do teatro, psiquiatria, religio e filosofia, tendo como recurso de ao a dramatizao. J o Psicodrama Teraputico resultou da unio, realizada por Moreno (2006), do trabalho clnico de consultrio com sua atividade enquanto diretor do que ele nomeou de Teatro Espontneo, constitudo pela representao de peas teatrais sem texto previamente estabelecido. Com sua viso clnica, percebe que a representao dramtica, sem texto prvio, tem a capacidade de criar mudanas no comportamento dos atores. Essa

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    descoberta impulsiona Moreno (2006)a desenvolver um mtodo de psicoterapia, cuja essncia a dramatizao espontnea. Em consequncia desenvolve toda uma teoria psicolgica que embasar sua prtica.

    Uma das modalidades do Psicodrama Teraputico o Bipessoal, na qual no h a utilizao de egos-auxiliares e atende somente um cliente durante a sesso, configurando-se, portanto, numa situao de relao bipessoal, com a presena somente do paciente e do psicoterapeuta (CUKIER, 1992). Cukier enfatiza que a condio de ser um indivduo precede a condio de ser um elemento no grupo, da a necessidade de compreender esse indivduo em todo seu ser imprescindvel para qualquer procedimento teraputico. Para a autora, a ateno focal, a continncia e aceitao que o psicodrama bipessoal garante, repete o modelo relacional me-beb, cuja importncia j foi suficientemente reconhecida por todas as abordagens psicolgicas.

    O mtodo psicodramtico desenvolve-se a partir do seguinte trip: contextos, etapas e instrumentos. No Psicodrama Bipessoal, o contexto dramtico constitudo pela realidade dramtica no como se, pelo tempo e espao fenomenolgico, virtual, construdo sobre o espao concreto, demarcado. trabalhado o presente, o passado e o futuro a um s tempo. As etapas, aquecimento, dramatizao e compartilhar so desenvolvidas conforme o mtodo original e, os instrumentos - que so os meios utilizados para o desenvolvimento do mtodo e das tcnicas psicodramticas utilizados so: Diretor, Protagonista, Ego-auxiliar e Cenrio.

    TCNICAS

    Tcnica, do grego tkne, originariamente significa arte manual, exerccio de um ofcio, profisso, arte, habilidade para fazer alguma coisa, etc. As tcnicas so processos de uma arte ou jeito de fazer algo. No psicodrama, as tcnicas so formas de agir e esto relacionadas arte teatral, dramatizao. So usadas em sesses grupais ou bipessoais e variam conforme o momento vivido pelo protagonista/cliente.

    As tcnicas bsicas do psicodrama so embasadas nas fases do desenvolvimento na Matriz de Identidade. Iniciando pelo estgio de identidade total, em que a criana e a me inserem-se num todo inseparvel e a criana, para sobreviver, vai necessitar de algum que a apoie/auxilie. Esse outro/algum, que vai ajudar a criana naquilo que ela no consegue fazer por si mesma, vai ser chamado de duplo. Moreno (2006) denominou esse estgio de fase do duplo. Portanto, a tcnica que est fundamentada nesse estgio a tcnica do duplo. Outro estgio referido por Moreno (2006), o estgio do reconhecimento do eu, em que a criana tem sua ateno voltada para outra pessoa e se espanta com o que v, sente um estranhamento em relao a si mesmo. Essa foi denominada de fase do espelho. Tem-se aqui a tcnica do espelho, cujo fundamento est relacionado a essa vivncia infantil. O terceiro estgio o estgio do reconhecimento do outro, em que a criana consegue sair de si mesma e tem condies de reconhecer o outro, ou seja, consegue desempenhar os papis que observa e a seguir compreender o desempenho de seu papel por outra pessoa. Esse estgio levou Moreno (2006) a criar a tcnica da inverso de papis. Quando o protagonista troca de papel, desempenhando o papel de algum a quem est se referindo, real ou imaginrio, o que se est usando uma variao da tcnica de apresentao de papis, em que ele toma o papel do outro, expressando o modo pelo qual o v. O que prope essa tcnica se colocar no lugar do outro, poder sentir na pele o que pensa e sente esse outro.

    VIVENCIANDO AS DORES DA PERDA

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    De acordo com Viorst (2005), as experincias de perdas vivenciadas ao longo da vida esto relacionadas com a perda original, conhecida como a conexo me-filho. Antes de viver a experincia das separaes inevitveis do dia a dia, o individuo vivencia um estado de profunda identificao com a me, tambm chamado de estado sem limites, de fuso total, uma espcie de simbiose, uma ligao umbilical, a identificao biolgica no tero.Abandonar esse estado de relao, apesar da dor produzida, necessrio para o desenvolvimento. Trata-se da dor do crescimento, a dor do existir - perder para crescer. No simples aceitar que perder condio para a manuteno da vida e que o caminho do desenvolvimento/crescimento marcado por renncias. As experincias de perda na infncia iro delinear a maneira de cada um lidar com as vivncias de perda na vida adulta.

    Dentre todas as perdas, acredita-se que perder as pessoas amadas a maior delas, a mais aterradora, aquela que tira o tapete, que paralisa; que faz emergir um sofrimento, o qual as palavras no conseguem nomear.

    Observa-se que a forma com que se vivenciam as perdas no percurso da vida vai influenciar a maneira de lidar com as experincias de perdas. Muitos autores referem que a reao perda o processo de luto. Os componentes essenciais do luto so a experincia de perda e uma reao de anseio intenso pelo objeto perdido (ansiedade de separao). Se alguns desses elementos no estiverem presentes, no se pode dizer que a pessoa esteja realmente em processo de luto (PARKES, 2009, p. 42).

    Frente a uma situao de perda faz-se necessrio o trabalho de ressignificao, que chamado de elaborao do luto. O luto um processo importante em ocorrncias de perdas, a fim de que se coloquem outros objetos no lugar daquele que foi perdido e, tambm, para que outros investimentos possam ser realizados. uma vivncia rdua, que exige grande esforo, uma grande dose de energia na busca de novas possibilidades e novos sentidos no viver.

    LUTO PELA MORTE DE UM/A FILHO/A

    A morte no poupa ningum e uma constante na vida de todos. uma constatao difcil de aceitar, principalmente na sociedade ocidental, onde a morte tende a permanecer no no dito, no no falado. Mant-la escondida para no agourar a vida o que se percebe na maioria das famlias da cultura ocidental. sabido que a morte inevitvel, porm um saber nem sempre consciente, surgindo a um paradoxo da morte (in)esperada.

    Muitas vezes, a morte se torna to invasora que passa a fazer parte da vida. Naturalizar a perda e evitar a dor podem ser maneiras de negar os sentimentos provocados pela morte, para evitar sofrimentos. Poder externar os sentimentos nesses momentos extremamente importante para possibilitar o processo de luto (KOVCS, 1992). Em Bromberg (1996, p. 100) encontramos: o luto, de uma forma ou de outra, est na vida de todos ns e nos atinge em aspectos pessoais e relacionais.

    A vivncia do processo de luto permeada por um conjunto de reaes frente a uma perda. Bowlby (2004) aponta quatro fases do luto: Fase do choque, que pode durar horas ou semanas. Nessa fase podem se manifestar sintomas de desespero e raiva. Fase de busca da pessoa que morreu; que pode durar alguns meses e at anos, seguida pela fase de desespero e desorganizao, e finalmente, a fase em que aparece certa organizao.

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    A maioria dos estudos sobre o luto mostra que a primeira reao perda, morte de uma pessoa querida o choque, que fica mais evidente em situaes de perdas inesperadas. comum o surgimento de uma mistura de emoes, queixas, dvidas e lamentos: como possvel sobreviver tamanha dor? Ser que vou conseguir viver com esse pesar? Todavia necessrio fazer os arranjos, encaminhar rituais, que variam conforme a cultura e a tradio dos familiares. Nessa fase, a presena de familiares, amigos e vizinhana formam uma rede de apoio ao enlutado.

    medida que as pessoas seguem seu curso de vida e vo se afastando, o enlutado tende a procurar formas de lidar com a situao e ento parte para a busca da pessoa perdida. Uma defesa considerada universal e pode durar muito tempo. como se o enlutado precisasse encontrar em cada espao, em cada cmodo da casa, a presena da pessoa que partiu. Mesmo que parea um comportamento ilgico e irracional o enlutado continua buscando seu morto em momentos de desespero, desolao e em sonhos. Com o passar do tempo, quando a dor ameniza, essa busca tende a se transformar numa descoberta de um sentido de presena da pessoa que morreu (PINKUS, 1989).

    Bowlby (2004), ao relatar pesquisas mais recentes sobre a fase de busca da pessoa perdida, enumera os componentes dessa sequncia, dizendo que o enlutado tende a:Movimentar-se inquietantemente e esquadrinhar o meio ambiente; pensar intensamente na pessoa perdida; perceber e prestar ateno a quaisquer estmulos que evidenciem a presena da pessoa; dirigir a ateno para locais do meio ambiente onde haveria a possibilidade de a pessoa estar e chamar a pessoa que morreu (BOWLBY, 2004, p. 95).

    O autor esclarece que esses componentes esto presentes em qualquer pessoa que perdeu um familiar/amigo (a) muito querido e que algumas pessoas enlutadas podem estar conscientes desse impulso de busca. Enfatiza, ainda, que o choro e a raiva so reaes que fazem parte desse impulso de busca (BOWLBY, 2004).

    Kovcs (1992), em suas pesquisas sobre a morte e o luto, faz uma referncia sobre as fases do luto e pontua que na fase do choque, a pessoa pode at parecer desligada, mas se mostra tensa e podem aparecer ataques de pnico e raiva. Na segunda fase, quando aparece o desejo da presena e busca da pessoa perdida, podem surgir raiva, desespero, inquietao, insnia e preocupao. Aparecem sentimentos contraditrios, por um lado a realidade da perda e por outro lado a esperana de um possvel reencontro.

    A presena da raiva de forma persistente sugere que a perda ainda no foi aceita e que ainda existe alguma esperana. Na fase do desespero aparece uma tristeza profunda e a sensao de que nada mais tem sentido, nada tem valor, nada mais vale a pena. So momentos em que podem surgir atuaes, como se desfazer de todos os pertences do morto, ou ento a tentativa de guardar tudo que lembre os momentos felizes. So movimentos ambguos e por vezes concomitantes. A fase de reorganizao inicia com um processo de aceitao da perda definitiva e a percepo de que um recomeo precisa acontecer.

    A raiva uma reao que mobiliza: Por que comigo? Por que agora? Por que essa inverso, tinha que ser eu e no ele! So perguntas que surgem de familiares e de mes que perderam filhos. Sentimentos que nem sempre so compreendidos pelas pessoas/familiares com quem convivem.

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    Quando se tenta delimitar as fases do luto numa sequncia sistemtica, verifica-se que no existem limites, linhas demarcatrias de incio e fim de cada fase. Ou seja, os sintomas que surgem nas diversas fases do luto podem surgir todo o tempo e haver recadas. Podem aparecer quadros somticos, doenas graves, depresso, distrbios no sono, na alimentao.

    O luto no tem um tempo para terminar, varivel, pode durar anos ou at mesmo nunca terminar (KOVCS, 1992). Os sintomas e sensaes podem impossibilitar o desempenho dos papis de maneira satisfatria. Para que o luto se realize, alguns fatores precisam se fazer presentes: Uma desidentificao e um desligamento dos sentimentos em relao pessoa perdida, a aceitao da inevitabilidade da morte e, na medida do possvel, buscar um substituto para a libido desinvestida (RAIMBAULT, 1979 citado por KOVCS, 1992, p. 158).

    Isso exige um tempo para a reorganizao interna e finalizao do processo de luto que comea a aparecer quando a pessoa percebe a presena de uma paz interior e se abre para novos investimentos e possibilidades. quando consegue lidar melhor com as recordaes, quando se depara com o lbum de fotografias e se permite sentir a presena de uma ausncia.

    O tipo de vnculo que existia entre o enlutado e a pessoa que morreu tambm deve ser considerado. Se os laos afetivos eram muito fortes, maior ser a quantidade de energia necessria para o enfrentamento, para o desligamento. Parkes (1998) e Bromberg (1998) concordam que o luto materno um tipo de luto difcil de ser elaborado, sendo duradouro e causador de imenso sofrimento.

    A elaborao do luto ocorre com a aceitao da modificao do mundo externo relacionada perda e, como consequncia, uma alterao do mundo interno e um movimento no planejamento da vida e das relaes. A intensidade e frequncia de tristeza, falta de sentido, reaes de defesa, como evitao da dor intensa, caracterizam um luto no elaborado ou um luto complicado. Kovcs (2007) pontua que o luto complicado uma rea de estudos recente e sugere o uso do termo fatores complicadores do luto, visto ser uma abordagem mais fidedigna, porque no responsabiliza a pessoa por seu sofrimento e sintomas.

    MORTE

    Vida e morte podem parecer termos opostos, dades. Outrossim, pesquisas nas mais diversas reas do conhecimento (psicologia, sociologia, antropologia, etc.) mostram que vida e morte esto imbricadas, enredadas, fusionadas, ou seja, uma no existe sem a outra. A morte, mesmo considerada terrificante, aterradora na sociedade ocidental, j foi inspiradora de poetas e artistas, j foi cantada, declamada, encenada, dramatizada em todos os tempos, em vrias culturas. Desde o tempo do homem das cavernas h inmeros registros sobre a morte como perda, ruptura, desintegrao, degenerao, mas tambm, como fascnio, seduo, entrega, descanso ou alvio (KOVCS, 1992, p. 2).

    Dentre todos os seres que habitam o planeta, o ser humano o nico que tem conscincia de sua finitude, de sua morte. Mesmo detendo esse saber, age como se a morte estivesse longe de si, mas fosse uma possibilidade para os outros. generalizado o desejo de protelar a vida, de no pensar sobre a morte. Como descreve Kovcs (1992, p. 29) A crena na imortalidade sempre acompanhou o homem. Ento se torna mais cmodo, menos sofrido, deixar a morte em suspenso, fazer de conta que ela no chegar to cedo ou, ento, viver como se fosse imortal.

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    Sair desse lugar de imortal, implica buscar um sentido para a vida e tambm para a morte.

    O PAPEL DE ME E O VNCULO COM O/A FILHO/A

    Ao longo da histria o valor dado ao relacionamento me-criana nem sempre foi o mesmo, sendo que as variaes que as concepes e prticas relacionadas maternagem apresentam so produzidas por uma srie de agenciamentos sociais, dentre os quais, os discursos e prticas cientficas assumem um importante papel (MOURA; ARAUJO, 2004).

    Badinter (1985) sugere que a supervalorizao do amor materno fato bastante recente na histria da civilizao ocidental. Um vnculo tido como algo j pronto e natural, foi sendo transformado em um mito pelos discursos filosficos, mdico e poltico, a partir do sculo XVIII.Tais reflexes remetem ao papel de me, papel esse construdo e consolidado numa sociedade permeada por conservas culturais, onde as normas ditam e naturalizam o amor materno e, como boas seguidoras de tais conservas, no restam alternativas s mes, seno seguir os padres impostos pela cultura.

    Pode-se pensar, portanto, que o tipo de vnculo construdo na infncia, o comportamento de apego desenvolvido pelo recm-nascido e sua me, ir influenciar na forma com que a pessoa adulta ir lidar com as perdas e, tambm, como ir vivenciar o processo de luto.

    Bowlby (2002) realizou extensos estudos sobre o comportamento de apego em vrias espcies animais e comparou-os ao comportamento na espcie humana. Apego, para o autor, seriam as relaes afetivas que as pessoas estabelecem com outras no decorrer da vida. Em relao ao comportamento de apego da me, ou seja, a forma com que a me vivencia esse comportamento e suas reaes, suas respostas s solicitaes da criana influenciaro e serviro de base para as futuras construes dos vnculos nas relaes que essa criana ir experienciar no decorrer de sua vida.

    Bustos (2001), falando sobre os modelos relacionais que o indivduo vivencia ao longo da vida, diz que tais modelos so incorporados e integrados nas dimenses familiares e sociais, envolvendo experincias de natureza materna, paterna e fraterna. Para o autor essas mesmas experincias se tornam o alicerce que moldar futuros vnculos, imprimindo a estes caractersticas de funcionamento dos vnculos primrios (BUSTOS, 2001, p. 355). O autor resgata o primeiro vnculo vivenciado pela criana com a figura materna, chamando-o de cluster 1 ou materno, referindo que a criana aprende a partir do papel complementar desempenhado por sua me, e absorve o vis emocional inserido no vnculo. Ter sido amada e cuidada ir despertar o desejo de acalentar, proteger, cuidar e amar. Para o autor essas mesmas experincias se tornam o alicerce que moldar futuros vnculos, imprimindo a estes caractersticas de funcionamento dos vnculos primrios (BUSTOS, 2001, p. 357).

    Portanto, o modelo de vnculo que a criana construiu com sua me na tenra idade, desde beb, ser internalizado, apropriado e ela reviver esse vnculo em suas futuras relaes na vida adulta. A fora desse vnculo construdo na infncia se perpetuar na vida adulta e ser base para laos afetivos em todos os contextos sociais com outras pessoas.

    METODOLOGIA

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    O presente estudo uma pesquisa de natureza aplicada, de orientao fenomenolgica, de abordagem qualitativa atravs da pesquisa-ao. Foi realizado estudo de caso, que se caracteriza como um estudo mais aprofundado que engloba um ou poucos objetos, possibilitando um maior detalhamento do conhecimento. Participaram trs mes que perderam filhos nos ltimos cinco anos, residentes em dois municpios da Regio Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul. O processo de escolha foi atravs de convite s mes que vivenciaram a perda de um(a) filho(a), dentro da rede sociomtrica da pesquisadora. A seleo das participantes ocorreu conforme os seguintes critrios: de haver perdido filho(a) nos ltimos cinco anos e participao voluntria. Aps explicitao do objetivo geral da investigao, foi apresentado o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, conforme previsto na Resoluo n 196/1996 do Conselho Nacional de Sade. Os encontros foram realizados em espao/sala previamente preparado para o desenvolvimento de abordagens psicodramticas.

    UMA ESCUTA PSICODRAMTICA

    Aps uma breve identificao de cada sujeito sero apresentados poucos recortes das sesses dirigidas para esta pesquisa, buscando a argumentao e a ilustrao da tese, bem como a demonstrao e comprovao do que ocorreu durante o processo teraputico com a utilizao do mtodo psicodramtico. Os nomes dos sujeitos de pesquisa foram substitudos para preservar suas identidades reais.

    Caso 1: Bia, 39 anos, ensino mdio, trabalhadora em indstria do setor metalmecnico, casada, me de um filho (falecido), religio catlica. Perdeu o filho nico de 17 anos em acidente de bicicleta, no ano de 2011.

    Na segunda sesso com Bia, ela chegou falando da dor da saudade. Como uma forma de aquecer, solicitei que fechasse os olhos, relaxasse e entrasse em contato com sua dor, buscasse os pensamentos que mais se faziam presentes em sua mente, tipos de pensamento e quais sentimentos esses pensamentos provocavam, o que esses pensamentos mobilizavam. Poucos minutos se passaram e Bia emocionada falou de uma conversa que teve com o filho antes do acidente que o matou. Sugeri que montasse o cenrio e trouxesse/dramatizasse a cena. Conforme Rodrigues (2007), cenrio o espao onde ocorre a ao dramtica. O cenrio pode ser realista ou simblico ou ainda pode convencionar-se que nesse espao exista um objeto que ningum v.

    Estando o protagonista e diretor devidamente aquecidos iniciado o processo de dramatizao. Nada est pronto, no existe um script, tudo vai sendo construdo no aqui - agora pelo protagonista, auxiliado pelo diretor. imprescindvel que o protagonista descreva detalhadamente o espao, pois isso o levar a entrar em sintonia com as memrias e emoes relacionadas com esse espao. A seguir, o recorte de uma sesso realizada com Bia, em que pode ser visualizado o cenrio, ego-auxiliar, a dramatizao e o compartilhar:

    Bia: [monta a cena, coloca uma almofada para representar o filho em cima do sof] Eu estava aqui, passando roupa [coloca uma almofada para representar a mesa de passar roupa] e ele estava deitado no sof, adorava deitar naquele sof.

    Bia: [passando roupa, comea a falar com o filho] Filho! Tu podias mudar o trajeto que fazes para ir ao trabalho, aquele caminho eu acho perigoso, muita lombada, muita subida e descida, podes cair, se machucar.

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    Bia: [no lugar do filho]: Hiiii me (sorrindo), no precisa te preocupar, o caminho mais perto.

    Bia: Mas eu me preocupo, tu precisa me ouvir filho, se acontece qualquer coisa eu vou me sentir culpada, e ainda com essa bicicleta que eu no queria que tu comprasses...

    T: [toma o lugar do filho] Me, fique tranquila, se acontecer qualquer coisa porque tinha que acontecer, no precisa se sentir culpada, a vida assim, ns no temos o controle sobre ela.

    Bia: [chorando] Filho... Filho [abraa o filho]

    T: [espera um pouco... logo a seguir sai do papel de filho]

    Bia: Isso! Era exatamente isso que ele iria me dizer, com o mesmo sorriso, como pode? Ele era muito maduro, dizia as coisas na hora certa!

    T: Como est se sentindo?

    Bia: Como pode? Mas isso aqui pareceu real, eu realmente vivi com muita intensidade tudo isso, eu revivi tudo, senti exatamente o que estava sentindo naquele dia. Sinto-me mais aliviada, menos culpada, mais em paz.

    Compartilhar o momento final do processo psicodramtico, em que o protagonista convidado pelo diretor a compartilhar seus sentimentos e emoes surgidos durante a dramatizao. O compartilhar de Bia mostrou sua implicao no processo teraputico e o quanto esteve presente no aqui-agora da dramatizao.

    A seguir, apresento o recorte de outra sesso com Bia, onde foi utilizada a tcnica, tomada de papel.

    Bia: Estou com uma preocupao, eu e meu marido, ns trabalhamos na mesma empresa. Meu marido disse que se ele ganhar as contas e for demitido, a gente pega e vai embora de cidade. Imagine s ir embora e deixar ele, deixar ele sozinho, nosso filho, o tmulo dele vai ficar abandonado l no cemitrio [chora muito], di muito. Sei que meu marido no vai conseguir outro emprego aqui na cidade que ele ganhe a mesma coisa que ele est ganhando, eu concordo com ele, mas eu fico muito dividida... Ir e abandonar meu filho... eu imagino que seria muito triste para meu filho...

    Propus para Bia trazer o filho na sesso, no como se. A me prontamente aceitou e montou a cena.

    Bia: [chorando] Filho, eu quero saber como tu ests a?

    Bia: [Toma o lugar do filho] Me, eu estou bem, eu sei que difcil vocs ficarem sem mim, pois era s eu de filho. Eu preciso te dizer uma coisa me... se um dia vocs sarem desse trabalho, se precisarem ir embora e arrumar outro trabalho, podem ir, pois eu estou noutra dimenso, eu j morri. Vocs me ensinaram, quando eu era criana, que as pessoas que

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    morrem vo pra junto de Jesus, ficam com os anjos, e eu estou aqui rodeado de anjos, com Deus. Eu tinha muitos amigos e se vocs no puderem ir ao cemitrio, meus amigos iro. Eu estou liberando vocs, podem procurar outro trabalho sem culpa. Estou bem!

    T: Como est se sentindo agora?

    Bia: [de volta ao seu papel] Bem aliviada, sem peso, sem culpa. Senti meu filho aqui falando comigo, me liberando para viver com mais paz.

    Bia: chega sesso seguinte e fala sobre a sesso anterior, dizendo que refletiu muito sobre o que aconteceu: agora j estou mais tranquila, se precisar sair da empresa e tocar a vida em outro lugar, no vou abandonar meu filho no cemitrio... como a Sra. falou, levarei a memria de meu filho, e isso me deixou menos ansiosa e meu marido tambm. Aquela tcnica que a Sra. fez foi transformadora, senti realmente que estava falando com meu filho, nunca imaginei que existisse um tratamento, uma terapia que fizesse acalmar, reduzir essa dor que a gente sente quando perde um filho, a Sra. entende, n?.

    Como o processo psicodramtico ocorreu de forma bipessoal, a psicoterapeuta foi tambm ego-auxiliar. O ego-auxiliar desempenha trs funes: ator, auxiliar do protagonista e observador social. Enquanto ator ir desempenhar papis, colaborando na manuteno do aquecimento. Como participa diretamente das emoes trazidas no aqui - agora, ajuda na facilitao da catarse. Tambm, no desempenho do papel complementar, colabora na produo de insights por parte do protagonista (GONALVES, 1988).Na abordagem teraputica bipessoal, no presente estudo, a tomada de papis (terapeuta no papel de filho) evidenciou-se como uma forma adequada para trabalhar o luto de Bia.

    Caso 2: Ana, 56 anos, formao superior, professora, casada (segundo casamento), trs filhas, uma neta de 4 anos, religio catlica. A filha do meio, de 28 anos, era casada e tinha uma filha de 4 anos, morreu por um trgico acidente de carro em janeiro de 2011.

    Ana chega sesso cheia de coragem, dizendo que no podia chorar para preservar a neta, pois tinha que mostrar coragem para a neta que ficou sem me, a qual tambm ajudava a cuidar nos momentos em que o pai estava trabalhando. Eu no tive tempo de chorar, tambm no podia, pois tive que fazer tudo... ... acho que essa questo do luto no ocorreu comigo. Eu no fiz terapia, fiquei doente e tomei medicamento receitado pela psiquiatra, at hoje. Sabe que eu nunca imaginei que poderia perder uma de minhas filhas, j perdi minha me, meu pai, mas perder filho muita dor. Acho que pressenti... no dia do acidente eu estava muito mal. No sei por que... tinha um aperto no peito, uma angstia... s 18h30 disse para minha filha menor, que no estava muito bem, que iria tomar um paracetamol - estava com muita dor de cabea e iria deitar um pouco. Quando deitei senti um tremor em todo o corpo, um terrvel mal estar, coisa que nunca senti antes... naquele instante minha filha morria... A voz embargada de Ana ao resgatar o dia e hora do acidente que tirou a vida de sua filha, mostra que esse foi um momento tlico vivenciado por Ana. Perguntei qual foi o pior momento daquele dia e Ana disse: foi ver minha filha deitada no asfalto, morta.

    Propus para a me trazermos essa cena para a sesso, ela aceitou.

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    T: Respire fundo, vamos caminhar pela sala... Visualize a cena... o momento...olhe em volta...o que est acontecendo...

    Ana: Preciso retomar o que aconteceu at chegar l...

    T: Sim, pense alto...

    Ana: Chove muito, sinto um mal estar... tardinha... recebo um telefonema de meu genro, est chorando... pergunto o que aconteceu... ele pediu para eu ir l casa dele... vou rpido. (silncio)... quando chego ele diz: a L t morta, um acidente... foi um choque... no esperei, sa s pressas, teria que ver para acreditar...

    (Para a me foi difcil se colocar no presente, sempre relatava no passado... ela estava j coberta quando cheguei, era muita gente, estava chovendo... Eu insisti que a cena estava sendo revivida no aqui-agora, como se estivesse acontecendo no momento.)

    T: Monte a cena, podes utilizar almofadas, objetos da sala para representar...

    Ana: Ela est aqui no asfalto, coberta...

    Ana: Se ajoelha (chora muito), olha para a filha... Retira a coberta... no estou acreditando, no pode estar acontecendo isso comigo... no consigo falar... uma espcie de paralisia (silncio)

    T: (fao o duplo da me) to grande o sofrimento de te que ver a minha filha, morta, no asfalto, no tenho palavras para nomear tamanho desespero, estou paralisada...

    Ana: ... isso... estou paralisada, no acredito, no quero aceitar... demais essa cena pra mim... no aguento... (a me tem um certo mal estar, sente-se mal)...

    T: Compreendo... muito dolorido perder uma filha e ainda dessa forma (abrao a me, que chora muito).

    Ana: (agora mais calma) Parece que estou vivendo esse momento...

    T: Que tem vontade de fazer?

    Ana: Falar com ela... preciso dizer alguma coisa... nem sei o qu...

    T: Fale com sua filha...

    Ana: (chorando) Filha querida... isso no pode estar acontecendo... me diz que no verdade... vim correndo aqui, pois no acreditei quando ouvia as pessoas falando que tu estava morta... e ainda desse jeito... um acidente...

    T: Troque de lugar com sua filha

    Ana: Como assim?

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    T: Seja sua filha, aqui possvel, no como se... Troque de lugar

    Ana: (ergue-se e deita no lugar da filha) Me... aconteceu sim, estou morta... verdade... eu morri....

    Ana: No pode ser... no... no... eu falei contigo hoje... e agora isso... muito trgico... (chora muito)... se tu pudesse me ouvir.

    Ana: (no lugar da filha) Me, eu estou te ouvindo... vai ser difcil sim, eu sei, mas tu vai ficar com tua netinha, minha filha... eu estou bem me... tu sempre disse que quando as pessoas morrem, se elas fossem boas, iriam pro paraso, um lugar lindo, florido... ento... eu fui uma pessoa boa... estou indo pro paraso....

    Ana: (mais calma, sem choro) minha filha... eu sempre falei no paraso desde que vocs eram crianas... parecia to distante... e agora tu me mostra ele to perto... preciso pensar assim... pra suportar....

    T: Podemos parar aqui?

    Ana: Sim.

    T: Como est se sentindo?

    Ana: Que sensao incrvel, parece que foi real, um peso foi jogado pra fora... como eu consegui carregar esse peso por tanto tempo?

    T: s corajosa, continuamos na prxima sesso?

    A tcnica tomada de papel/inverso de papel foi considerada a mais mobilizadora pelos sujeitos de pesquisa. Gonalves (1998) refere que a tcnica inverso de papel s ocorre quando as pessoas envolvidas esto de fato presentes. Quando o protagonista troca de papel, desempenhando o papel de algum a quem est se referindo, real ou imaginrio, o que se est usando uma variao da tcnica de apresentao de papis, em que ele toma o papel do outro, expressando o modo pelo qual o v. O que prope essa tcnica se colocar no lugar do outro, poder sentir na pele o que pensa e sente esse outro. Nessa sesso realizada com Ana, em que ela revive a morte da filha e sente dificuldade em acreditar que ela est morta, proponho que a me tome o papel da filha.

    A tcnica, tomada de papel (inverso de papel), [Ana no lugar da filha morta], levou a me a se imaginar no lugar da filha, refazendo uma vivncia interna e rememorando um passado em que passava crenas acerca da transcendncia e da f para as filhas, quando crianas. Relembrar tais vivncias passadas possibilitou me certo consolo.

    Se o psicodrama (...) uma proposta de liberar fantasmas, (...) a morte, como parte essencial deste Drama, e como seu fantasma principal, ter que surgir necessariamente desalienada e inscrita indelevelmente na vida e na histria de cada um de ns (PERAZZO,1986, p.112 -113). O choque provocado pela notcia trgica, o no acreditar e no aceitar a morte da filha levou Ana a uma reao de paralisia, de emudecimento. Reao essa que foi sendo transformada pela ao dramtica. Como diz o autor, uma atitude distanciada diante da morte, reforada cada vez mais em nossa cultura, ou uma real impossibilidade de entrar em contato com ela, perpetuam

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    sua negao (PERAZZO, 1989, p. 114). Atravs das tcnicas psicodramticas, buscou-se tecer outros fios com a vida.

    Quando Ana refere, no compartilhar, tenho que aceitar ser me de uma filha morta, pode-se pensar aqui na mudana do papel social de Ana, de me de uma filha viva para me de uma filha morta. Rubini (2010, p. 09 ), nos estudos que desenvolveu sobre papel, refere que: considerando-se a origem dos papis sociais, estes constituem as conservas culturais a partir do momento em que so criados em cada cultura. Mas ao serem desempenhados trazem a marca individual de quem os desempenha, representando sua dimenso psicolgica.

    Ana internalizou ao longo dos anos esse papel social, ficou estabelecido na conserva cultural um papel de me de filha viva. Internalizou esse papel que foi constituindo seu mundo interno e tambm influenciando em sua identidade de me. Sair de um papel social que traz bem estar, para entrar em outro que gera sofrimento, implica em um enorme dispndio de energia, alm de mobilizar aspectos relacionados com a identidade. Pode-se pensar aqui, tambm no trabalho de luto, ou seja, a transio de um papel a outro requer um trabalho de luto. preciso elaborar o luto do papel de me de uma filha viva para o papel de me de uma filha morta. E a inverso proporcionou isto.

    Caso 3: Maria, 49 anos, ensino mdio, casada, dona de casa, religio catlica, me de uma filha (falecida). Mora com o marido no interior do municpio, onde possuem terra e vivem da agricultura. Perdeu a filha nica, de 27 anos, em trgico acidente de carro, em 2010.

    Maria chegou sesso olhando para os lados, para todo o ambiente, parecendo querer encontrar algo. Olhou para uma mesa que havia em um canto da sala e disse aquele anjo, anjinho sentado ali... tenho a sensao que minha filha... vejo ela como um anjo... se eu pudesse falar com ela... - Era um pequeno anjo (vestida de forma feminina) que ganhei de presente e tenho sobre uma mesa de vidro. Digo para a me que nesse espao, no aqui-agora, podemos no como se trazer sua filha e proponho que o anjo seja sua filha. A me aceita. Coloco o anjo em cima de uma banqueta, na frente da me.

    T: O que tens vontade de falar para sua filha? Podes falar...

    Maria: minha querida, sofro... sinto tanto tua falta, se voc soubesse... (chora muito)... nem consigo falar... quero falar... no consigo...

    T: (fao o duplo da me) Meu sofrimento to gigantesco, to imenso, que abafa minha fala, no deixa sair minha voz... mas eu tenho muito para te falar... (silncio...)

    Maria: (emocionada, canta a msica do Roberto Carlos) Eu tenho tanto pra te falar... e com palavra no sei dizer... como grande o meu amor por voc...

    Maria: Por favor, me ajuda a cantar essa msica pra minha filha...

    T: Sim, vamos cantar...

    Ambas cantamos a msica. Aps cantarmos, Maria chorou muito, me abraou.

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    Maria: (no lugar da filha, anjo) Que lindo, obrigada me! Imagine eu aqui no paraso ouvindo minha me cantar a msica do Roberto Carlos... demais...eu estou bem me, estou com Deus...sei que tu sentes minha falta...mas lembre que nada eterno. Teu sofrimento no vai durar para sempre...tu s uma pessoa to religiosa...vai l, pega as minhas coisas e doa...faz uma caridade...faz um passeio, visita uma dessas instituies que abrigam crianas abandonadas...elas precisam tanto de mes... de pais...

    Maria: (enquanto me) Sim minha filha, tens razo, todos os dias eu peo fora para continuar meu caminho aqui na terra... tu sabes que no fcil, sem voc, mas tu tambm me d foras pra eu no desistir... olhe agora... cheguei at a cantar pra ti...

    T: Ento, podemos parar aqui? Como est se sentindo?

    Maria: Meu Deus! Que alvio! O mais incrvel que realmente eu me senti falando com minha filha, como se ela estivesse aqui.

    Para Moreno (2006, p. 59), espontaneidade tinha um carter to especial que o levava a dizer que o fator que faz parecerem novos, frescos e flexveis, todos os fenmenos psquicos. o fator que lhes confere a qualidade de momentaneidade. Percebe-se, portanto, que espontaneidade tem uma estreita relao com o momento. Vive-se a cada instante, a cada segundo, situaes diferentes, inusitadas, novas, por vezes adversas, que podem provocar os mais diversos sentimentos e emoes. So nesses momentos da vida que se pode perceber o quo adequado se para responder aos estmulos/demandas externas.

    Maria, no espao psicodramtico, deixa fluir sua espontaneidade. o que se verificou no recorte da cena acima descrita, mostrando a espontaneidade se entrelaando com o momento, e fazendo emergir a criatividade. Uma situao dada, ou pr-estabelecida, pode ser mudada, desde que se possibilite liberar o estado de espontaneidade que nasce com o ser humano. esse fator que ir possibilitar a emergncia do ato criativo. Porm, tal ato pode ser cristalizado pelas conservas culturais. A tcnica da inverso/tomada de papis permite isso.

    CONSIDERAES FINAIS

    O percurso realizado ao longo desse trabalho, cujo objetivo foi investigar a contribuio do psicodrama - por meio de tcnicas psicodramticas - para ressignificar situaes de perdas foi gratificante e realizador.

    A partir da minha prpria vivncia, foi possvel constatar sua eficcia e perceber que no se restringia a minha prpria vivncia. A eficcia do Psicodrama foi para muito alm da minha prpria dor.Sem dvida, esta pesquisa no teria sido possvel sem a disponibilidade destas pessoas que to gentilmente me concederam suas histrias e dores para a realizao da mesma. Felizmente ganhamos todas: Ganharam elas, pela minimizao de suas dores, ganhei eu pelo meu crescimento, quer seja como pessoa que tambm perdeu, quer seja como diretora de psicodrama e, finalmente, ganhou a cincia pelos resultados que esta pesquisa nos concede.

    A partir dos ricos relatos, histrias e sesses, muitas outras hipteses de estudos nos suscitaram e novas pesquisas podem ser realizadas, Estamos falando de um estudo comparativo com as perdas masculinas, dos pais, em relao aos seus

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    filhos. Seria igualmente eficaz? Alguma outra tcnica seria mais apropriada? Mais tempo? Menos tempo? E se fossem avaliadas as perdas dos filhos em relao s suas mes, haveria significativas diferenas? E se utilizssemos a modalidade de terapia grupal, o tempo seria maior? Menor? Em que seria diferente? Como as presenas de outras pessoas interfeririam no processo? E se pensarmos outros tipos de perdas, tais como empregos significativos, casamentos, condio social, liberdade, finanas etc... As mesmas tcnicas teriam os mesmo efeitos? Enfim, inmeras perguntas cujas respostas esto por a, a espera de um pesquisador para captur-las.

    O presente estudo confirma que o psicodrama pode contribuir para minimizar o sofrimento de mes que perderam filhos e levar ao resgate do bem-estar, do sentido da vida dessas mes que sofreram tais perdas.

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