Algumas Falhas no Leviatã
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Algumas falhas no Leviatã
por
Ian Nascimento
O objetivo deste trabalho é comentar algumas passagens do
conhecido texto O Leviatã, de Thomas Hobbes. Uma leitura
crítica desse importante texto revela alguns aparentes problemas
dentro da teoria exposta pelo inglês. Escolhi portanto cinco dessas
idéias problemáticas e teci comentários acerca delas. Não me
preocupei em explicar minuciosamente a teoria de Hobbes, e
suponho que o leitor já esteja familiarizado com as idéias
principais do texto. Inicio fazendo antes uma observação acerca
de algo curioso do que uma crítica propriamente dita:
“A sexta [causa de conclusões absurdas], é o uso de metáforas, trocadilhos e outras figuras retóricas, ao invés de palavras normais. Porque apesar de permitido na fala comum, esse tipo de discurso não deve ser admitido no raciocínio e na busca da verdade.”1
A capa do Leviatã traz a figura de um grande rei que
se ergue sobre a terra. Ao analisarmos seu corpo, notamos
que é composto de centenas de outros homens minúsculos.
Quando entendemos a teoria de Hobbes, percebemos que é
exatamente assim que ele imagina ser o estado; um homem
artificial composto por todo o povo, que se comporta como
1 HOBBES, Thomas, p. 34
um homem natural, porém em maior escala. Na introdução,
Hobbes demonstra isso claramente:
“Por arte é criado esse grande Leviatã, chamado de Estado, que não passa de um homem artificial. (...) A Soberania é uma alma artificial; Igualdade e Leis, Razão e Vontade artificiais; Concórdia, Saúde; Sedição, Doença; Guerra Civil, Morte.” 2
É estranho, portanto, que um autor que se utilize de
metáforas e alegorias tão abertamente venha a condenar sua
utilização, como ele faz em algumas passagens do texto,
dentre as quais:
“A esses usos do discurso, correspondem também quatro abusos (...) O Segundo é quando as pessoas usam as palavras metaforicamente, ou seja, em outro sentido que não aquele para a qual foram cunhadas.”3
Dessa forma, Hobbes parece estar condenando a si
próprio. Não pretendo aqui invalidar seus argumentos
metafóricos, nem acusá-lo de contradição; quero somente
apontar uma curiosidade. É notável a semelhança de
algumas passagens quando o inglês trata do discurso com o
Tractatus Logico-Philosophicus de Ludwig Wittgenstein.
Os abusos de linguagem apontados por Hobbes podem
quase ser resumidos na sétima proposição do trabalho do
austríaco: “Sobre o que não se pode falar, deve-se calar.”
Pode-se inclusive comparar a aparente contradição
cometida por Hobbes ao condenar as metáforas e usá-las à
atitude de Wittgenstein ao caracterizar certas proposições
como contra-sensos e escrever seu livro utilizando
proposições dessa natureza. Mas se Hobbes, assim como o
outro, tinha a intenção de que suas metáforas fossem vistas
2 HOBBES, Thomas, p. 93 HOBBES, Thomas, p. 26
como uma escada a ser jogada fora depois de escalada é
impossível dizer
***
“Novamente, os homens não têm prazer (mas, ao contrário, muito desprazer) na companhia uns dos outros quando não há um poder capaz de subjugar a todos.”4
Um dos pilares de sustentação da teoria de Hobbes é a idéia
de que o homem está sozinho no estado de natureza. Em várias
oportunidades ele salienta a inimizade entre os homens, a
impossibilidade de confiança e a vida solitária do homem pré-
civilização. Ora, tal idéia é essencial para o desenvolvimento da
teoria do Leviatã. Como o objetivo dessa teoria é justificar o
estado absolutista, é necessário mostrar que as alternativas a ele
são piores. Para que seus leitores contemporâneos aceitassem
intelectualmente à idéia de que não têm absolutamente nenhum
direito, mas que uma pessoa detém todos, era preciso oferecer
motivos. E o principal motivo, a terrível guerra de todos contra
todos, se baseia quase que totalmente na concepção de que o
homem é solitário no estado de natureza.
Essa concepção, entretanto, apresenta graves problemas. O
primeiro deles é a falta de embasamento histórico. Não se tem
notícia de dados arqueológicos que apontem para indivíduos que
vivessem isolados. Pelo contrário, pequenas aglomerações
humanas parecem existir desde tempos imemoriais. É verdade que
Hobbes chega a afirmar que não tem pretensões de que seu estado
de natureza tenha de fato existido, mas que ele é só um
experimento de raciocínio. O problema é que essa suposição é 4 HOBBES, Thomas, p. 88
usada para justificar algo de concreto no mundo, o poder absoluto.
Sem a idéia do homem isolado não existe a idéia da guerra de
todos contra todos, sem essa idéia Hobbes não tem uma imagem
muito forte para oferecer como alternativa ao estado que propõe.
O pacto que forma o Leviatã simplesmente não faz sentido se o
estado de natureza não for bastante ruim.
Para que alguém se comprometa a trocar o seu livre
arbítrio por segurança é porque, provavelmente, a alternativa era a
morte. É essa a situação vivida pelos povos conquistados em
guerras e que são tomados como escravos. Sacrifício de todos os
seus direitos ou morte. E é essa mesma situação que Hobbes
imagina no momento do pacto fundador do estado. Um homem
artificial formado por escravos. Só se justifica algo assim quando
a alternativa é ainda pior.
Podemos perceber, portanto, que a idéia da solidão original
do homem, longe de ser uma concepção fundamentada, é na
verdade uma ferramenta utilizada pelo filósofo para fundamentar
sua teoria. É muito pouco provável que tal condição jamais tenha
ocorrido, e o próprio autor admite, mas ela é essencial para toda a
argumentação do livro.
O segundo problema que essa idéia apresenta é uma
aparente contradição interna. Hobbes propõe que os homens não
podem cooperar entre si no estado de natureza e que todos vivem
em permanente estado de guerra. Parece bastante estranho,
portanto, imaginar um pacto sendo feito nessas condições. Se eu
vivo isolado, com medo que meus semelhantes venham a me
matar para roubar meus bens, como será possível que eu venha a
aceitar transferir todos os direitos que possuo para um desses
indivíduos? O soberano escolhido poderia muito bem ordenar que
os outros me matassem na mesma hora, e isso não infringiria
nenhum termo do pacto. Não me parece plausível que alguém
aceitaria seguir um inimigo incondicionalmente.
***
“Através dessa igualdade de habilidades surge a igualdade de esperança de atingir nossos objetivos. E portanto, se dois homens desejam a mesma coisa, que conseqüentemente não podem ambos possuir, tornam-se inimigos; e no caminho para a conquista de seus objetivos (que é principalmente sua própria conservação e deleite) tentam destruir ou subjugar um ao outro.” 5
Aceitemos por um momento o estado de natureza proposto
por Hobbes, que pode ser resumido nas seguintes premissas:
1. Os homens vivem isolados
2. Eles têm consciência da igualdade média de força e
inteligência à qual todos estão submetidos.
3. O maior temor de cada homem é a morte violenta.
São basicamente essas as premissas das quais
Hobbes conclui a guerra de todos contra todos, a essência
de seu estado de natureza. Essa pérola da argumentação do
inglês surge a partir do seguinte raciocínio: Os homens
vivem isolados e são relativamente iguais, inclusive em
seus desejos e necessidades. Portanto haverá competição
pela posse e usufruto de recursos naturais. Já que não há
um poder para ‘mediar’ essa competição, já que não há
5 HOBBES, Thomas, p. 87
justiça, vale tudo no estado de natureza. Dessa forma, o que
temos é a ‘bellum omnium contra omnes’ esse conceito tão
caro à filosofia que sucedeu Hobbes.
O que desejo mostrar é que Hobbes parece não ter
medido exatamente o peso da terceira premissa. O medo
tem um papel importantíssimo ao longo de sua obra. O
estado de natureza é um estado onde o medo predomina, é
por medo que os homens criam o pacto e é por medo que
obedecem ao soberano. Apesar disso, o medo pode de
alguma forma impedir que estado da guerra de todos contra
todos venha a ocorrer, creio eu.
O medo da morte, o instinto de auto-preservação
fariam com que o homem só entre em conflito como um
último recurso. Sabendo-se mediamente igual a seu
inimigo, o homem considera que as chances de ganhar ou
perder são relativamente parecidas. A não ser portanto que
as chances de vitória fossem grandes ou que o conflito
fosse de fato muito importante, os homens o evitariam.
Assim, a disputa por recursos naturais só ocorreria,
provavelmente, quando estes fossem escassos. Caso a
obtenção de bananas, por exemplo, fosse relativamente
fácil, pode-se supor que nenhum homem preferiria roubar
as bananas de outrem, já que isso poderia levar à sua morte.
Seria mais sensato, inclusive de acordo com as leis naturais
defendidas pelo próprio Hobbes, que dizem que o homem
naturalmente procura a paz, que o indivíduo em questão
fosse procurar bananas em outro lugar.
Há outros tipos de disputa que não pela posse de
recursos, é evidente. Brigas por ofensa ou honra, por
exemplo. Mas conflitos dessa natureza ferem a primeira
premissa do estado de natureza, pois pressupõem interação
entre os homens. Como ofender alguém que evito e que me
evita? Que tipo de honrarias existem que não envolvam o
reconhecimento de outros? Dessa forma, devemos
reconhecer que disputas dessa natureza, se é que existem,
são bastante raras.
E chegamos assim à conclusão do raciocínio. Vimos
que, em nome da auto-preservação, os homens não entram
em conflito sem motivos, e que esses motivos, para alguém
que vive isolado, só podem envolver a posse de recursos
naturais. Sendo assim, a guerra só existirá quando esses
recursos forem escassos. A probabilidade do surgimento de
um Leviatã como descrito por Hobbes pode ser grande em
um deserto, nem tanto num país como a Inglaterra.
***
“A Natureza fez os homens tão iguais no que concerne às faculdades do corpo e da mente que, apesar de encontrarmos homens manifestamente mais fortes ou mais inteligentes que outro, quando juntamos tudo a diferença entre os homens não é tão considerável a ponto de alguém poder requerer algum benefício para si mesmo que outro não possa igualmente almejar.”6
6 HOBBES, Thomas, p. 87
A idéia da igualdade média entre os homens no
estado de natureza é essencial. É essa igualdade de poder e
inteligência que leva ao medo generalizado característico
da teoria de Hobbes.
Entretanto, depois do pacto, um dos homens será
muito mais poderoso que todos os outros.
Desproporcionalmente poderoso. O soberano tem poder, os
súditos liberdade. Liberdades no sentido físico da palavra,
ausência de impedimentos. O plebeu é livre para andar por
onde quiser até que um guarda lhe barre o caminho. O
soberano é o único que tem poder para colocar
impedimentos. Aos vassalos, só resta andar por onde o
caminho não esteja bloqueado e torcer para não esbarrar em
alguma barreira.
Como justificar, no entanto, a escolha da pessoa do
soberano? Se existe uma espécie de igualdade entre os
homens e ninguém é tão mais forte ou tão mais inteligente,
como justificar que um dos iguais se torne tão mais
poderoso? Qual critério seria usado para fazer a escolha?
Pode-se argumentar, em defesa de Hobbes, que a
partir do momento do pacto, o indivíduo que aceitou
tornar-se soberano deixa de existir e passa a ser, ele
mesmo, o Estado. Apesar de esteticamente bela, essa frase
não consegue esconder o fato que, sendo ele mesmo o
Estado ou não, o rei é um ser humano. Um ser humano que
é igual em força e inteligência aos seus súditos, um ser
humano que não participa dos desígnios divinos. E como
tal está sujeito a erros de julgamento e a todos os vícios que
acometem a raça. Por que então, escolher um homem e
confiar a ele absolutamente TUDO?
É certo que Hobbes admite a possibilidade de, ao
invés de um só homem, uma assembléia deles se
encarregue do posto. Mas essa assembléia, enquanto
composta de seres humanos e constituindo uma ínfima
parte da população apenas, dificilmente será melhor que o
rei. Pois o problema não reside na quantidade de pessoas,
mas na quantidade de poder. A assembléia ainda teria tanto
poder quanto o rei, e seus súditos continuariam a ter
nenhum.
Hobbes, um homem letrado que viveu no
Renascimento, com certeza tinha conhecimento da
democracia participativa de Atenas. Sabia que existiam
alternativas à concentração absoluta de poder. Se o objetivo
do pacto é a preservação da vida, é a garantia da segurança
dos súditos, é ainda mais natural que esse poder seja
dividido, pois dessa forma as vidas dos cidadãos ficam
menos sujeitas a arbitrariedades, a decisões errôneas do
soberano. Um rei absolutista poderia legalmente ordenar
“Matem fulano.” Numa democracia, ou mesmo que
houvesse uma assembléia, essa decisão teria que ser
ratificada por um maior número de pessoas, e as chances da
vida de Fulano ser preservada são maiores.
Uma última palavra acerca do tópico. Hobbes diz
que, no momento do pacto, todos transferem seus direitos
naturais ao futuro soberano, que recebe todos e soma-os
aritmeticamente. Tudo que os indivíduos transferem ao
soberano são seus direitos. A inteligência do governo
continua sendo a de um único homem. Numa democracia
direta, pode-se dizer que não só o poder, mas a inteligência
de todos é somadas ao governo, o que criaria um homem
artificial muitas vezes mais inteligente do que um homem
natural.
***
“A única forma de erigir tal poder comum, que possa defendê-los da invasão de inimigos, e das injúrias uns dos outros, e dessa forma garantir que, através de sua própria indústria e dos frutos da terra eles possam se nutrir e viver em paz, é conferir todo o poder e força a um único homem, ou a uma assembléia de homens.”7
O tema central do Leviatã é o poder. Toda a
discussão gira em torno de como ele se origina, como se
transfere, como se justifica, qual deve ser sua finalidade.
Percebemos ao longo da história que o homem arranjou
diversas formas de organizar o poder, nas mais diversas
formas de sociedade. Existem no dicionário pelo menos 28
palavras terminadas em cracia ou arquia. Mesmo numa
análise a priori do tema, explicitadas algumas premissas
básicas, uma inteligência média poderia supor diversas
formas de distribuição do poder como sendo possíveis.
Hobbes entretanto tenta mostrar que uma dessas
formas é a organização social por excelência, uma
conseqüência lógica do estado de natureza e a que melhor
7 HOBBES, Thomas, p. 12
se presta a cumprir os objetivos de um Estado, a segurança
pública segundo ele.
Se o pacto social é conseqüência do estado de
natureza que faz com que os homens se reúnam em busca
de paz, os termos do pacto não parecem refletir essa busca.
Seria natural pensar que, em nome de sua segurança, os
homens transferissem a alguém o poder necessário para
mantê-la, e não o poder para fazer absolutamente qualquer
coisa, inclusive matá-lo. Esse é talvez um dos maiores
paradoxos na obra de Hobbes. Eu faço um pacto no qual
transfiro todos os meus direitos a uma pessoa, e em troca
ela me garante segurança. Entretanto, eu também transferi a
essa pessoa o direito de me matar. O soberano de Hobbes
pode matar qualquer cidadão legalmente sem nenhum
motivo, cidadãos esses que assinaram um contrato que lhes
garantia segurança. Mas, como o próprio Hobbes afirma,
“pactos sem a espada são apenas palavras” e não há
espada alguma acima do soberano.
Mesmo se aceitarmos toda a construção do estado de
natureza proposto pelo filósofo, e aceitarmos que homens
solitários aceitariam pactuar com seus inimigos em busca
da paz, é muito provável que o pacto resultante fosse
bastante diferente daquele proposto por Hobbes. Esperaria
encontrar um contrato no qual os homens transferissem
apenas alguns poderes ao rei, a saber, somente aqueles que
de fato garantem o cumprimento dos termos do trato, ou
seja, aqueles necessários para que a vida seja preservada.
É evidente que Hobbes na verdade já começou a
escrever o Leviatã tendo em mente a defesa do estado
absolutista. Ele não concluiu, com base em suas reflexões e
seus experimentos de raciocínio, que esse é o estado que
logicamente decorre do estado de natureza. Ao invés disso,
ele construiu um estado de natureza e um pacto que
justificassem o atual Estado. Mesmo tendo cometido várias
falhas ao longo do caminho, incorrendo em paradoxos,
contradições e suposições pouco prováveis, o trabalho de
Hobbes é surpreendente. Não é, afinal, tarefa fácil
demonstrar, com pretensos rigores matemáticos, que a
concentração absoluta de poder na figura do rei é uma
conseqüência lógica de leis naturais que regem todos os
homens, e convencer as pessoas que se o soberano te
condena à forca, é na verdade você o autor dessa
condenação.
Referência Bibliográfica
HOBBES, Thomas. Leviathan. Cambridge : Cambridge University Press,
1991.