Algumas Falhas no Leviatã

19
Algumas falhas no Leviatã por Ian Nascimento O objetivo deste trabalho é comentar algumas passagens do conhecido texto O Leviatã, de Thomas Hobbes. Uma leitura crítica desse importante texto revela alguns aparentes problemas dentro da teoria exposta pelo inglês. Escolhi portanto cinco dessas idéias problemáticas e teci comentários acerca delas. Não me preocupei em explicar minuciosamente a teoria de Hobbes, e suponho que o leitor já esteja familiarizado com as idéias principais do texto. Inicio fazendo antes uma observação acerca de algo curioso do que uma crítica propriamente dita: “A sexta [causa de conclusões absurdas], é o uso de metáforas, trocadilhos e outras figuras retóricas, ao invés de palavras normais. Porque apesar de permitido na fala comum, esse tipo de discurso não deve ser admitido no raciocínio e na busca da verdade.” 1 1 HOBBES, Thomas, p. 34

description

Uma leitura crítica de Hobbes

Transcript of Algumas Falhas no Leviatã

Page 1: Algumas Falhas no Leviatã

Algumas falhas no Leviatã

por

Ian Nascimento

O objetivo deste trabalho é comentar algumas passagens do

conhecido texto O Leviatã, de Thomas Hobbes. Uma leitura

crítica desse importante texto revela alguns aparentes problemas

dentro da teoria exposta pelo inglês. Escolhi portanto cinco dessas

idéias problemáticas e teci comentários acerca delas. Não me

preocupei em explicar minuciosamente a teoria de Hobbes, e

suponho que o leitor já esteja familiarizado com as idéias

principais do texto. Inicio fazendo antes uma observação acerca

de algo curioso do que uma crítica propriamente dita:

“A sexta [causa de conclusões absurdas], é o uso de metáforas, trocadilhos e outras figuras retóricas, ao invés de palavras normais. Porque apesar de permitido na fala comum, esse tipo de discurso não deve ser admitido no raciocínio e na busca da verdade.”1

A capa do Leviatã traz a figura de um grande rei que

se ergue sobre a terra. Ao analisarmos seu corpo, notamos

que é composto de centenas de outros homens minúsculos.

Quando entendemos a teoria de Hobbes, percebemos que é

exatamente assim que ele imagina ser o estado; um homem

artificial composto por todo o povo, que se comporta como

1 HOBBES, Thomas, p. 34

Page 2: Algumas Falhas no Leviatã

um homem natural, porém em maior escala. Na introdução,

Hobbes demonstra isso claramente:

“Por arte é criado esse grande Leviatã, chamado de Estado, que não passa de um homem artificial. (...) A Soberania é uma alma artificial; Igualdade e Leis, Razão e Vontade artificiais; Concórdia, Saúde; Sedição, Doença; Guerra Civil, Morte.” 2

É estranho, portanto, que um autor que se utilize de

metáforas e alegorias tão abertamente venha a condenar sua

utilização, como ele faz em algumas passagens do texto,

dentre as quais:

“A esses usos do discurso, correspondem também quatro abusos (...) O Segundo é quando as pessoas usam as palavras metaforicamente, ou seja, em outro sentido que não aquele para a qual foram cunhadas.”3

Dessa forma, Hobbes parece estar condenando a si

próprio. Não pretendo aqui invalidar seus argumentos

metafóricos, nem acusá-lo de contradição; quero somente

apontar uma curiosidade. É notável a semelhança de

algumas passagens quando o inglês trata do discurso com o

Tractatus Logico-Philosophicus de Ludwig Wittgenstein.

Os abusos de linguagem apontados por Hobbes podem

quase ser resumidos na sétima proposição do trabalho do

austríaco: “Sobre o que não se pode falar, deve-se calar.”

Pode-se inclusive comparar a aparente contradição

cometida por Hobbes ao condenar as metáforas e usá-las à

atitude de Wittgenstein ao caracterizar certas proposições

como contra-sensos e escrever seu livro utilizando

proposições dessa natureza. Mas se Hobbes, assim como o

outro, tinha a intenção de que suas metáforas fossem vistas

2 HOBBES, Thomas, p. 93 HOBBES, Thomas, p. 26

Page 3: Algumas Falhas no Leviatã

como uma escada a ser jogada fora depois de escalada é

impossível dizer

***

“Novamente, os homens não têm prazer (mas, ao contrário, muito desprazer) na companhia uns dos outros quando não há um poder capaz de subjugar a todos.”4

Um dos pilares de sustentação da teoria de Hobbes é a idéia

de que o homem está sozinho no estado de natureza. Em várias

oportunidades ele salienta a inimizade entre os homens, a

impossibilidade de confiança e a vida solitária do homem pré-

civilização. Ora, tal idéia é essencial para o desenvolvimento da

teoria do Leviatã. Como o objetivo dessa teoria é justificar o

estado absolutista, é necessário mostrar que as alternativas a ele

são piores. Para que seus leitores contemporâneos aceitassem

intelectualmente à idéia de que não têm absolutamente nenhum

direito, mas que uma pessoa detém todos, era preciso oferecer

motivos. E o principal motivo, a terrível guerra de todos contra

todos, se baseia quase que totalmente na concepção de que o

homem é solitário no estado de natureza.

Essa concepção, entretanto, apresenta graves problemas. O

primeiro deles é a falta de embasamento histórico. Não se tem

notícia de dados arqueológicos que apontem para indivíduos que

vivessem isolados. Pelo contrário, pequenas aglomerações

humanas parecem existir desde tempos imemoriais. É verdade que

Hobbes chega a afirmar que não tem pretensões de que seu estado

de natureza tenha de fato existido, mas que ele é só um

experimento de raciocínio. O problema é que essa suposição é 4 HOBBES, Thomas, p. 88

Page 4: Algumas Falhas no Leviatã

usada para justificar algo de concreto no mundo, o poder absoluto.

Sem a idéia do homem isolado não existe a idéia da guerra de

todos contra todos, sem essa idéia Hobbes não tem uma imagem

muito forte para oferecer como alternativa ao estado que propõe.

O pacto que forma o Leviatã simplesmente não faz sentido se o

estado de natureza não for bastante ruim.

Para que alguém se comprometa a trocar o seu livre

arbítrio por segurança é porque, provavelmente, a alternativa era a

morte. É essa a situação vivida pelos povos conquistados em

guerras e que são tomados como escravos. Sacrifício de todos os

seus direitos ou morte. E é essa mesma situação que Hobbes

imagina no momento do pacto fundador do estado. Um homem

artificial formado por escravos. Só se justifica algo assim quando

a alternativa é ainda pior.

Podemos perceber, portanto, que a idéia da solidão original

do homem, longe de ser uma concepção fundamentada, é na

verdade uma ferramenta utilizada pelo filósofo para fundamentar

sua teoria. É muito pouco provável que tal condição jamais tenha

ocorrido, e o próprio autor admite, mas ela é essencial para toda a

argumentação do livro.

O segundo problema que essa idéia apresenta é uma

aparente contradição interna. Hobbes propõe que os homens não

podem cooperar entre si no estado de natureza e que todos vivem

em permanente estado de guerra. Parece bastante estranho,

portanto, imaginar um pacto sendo feito nessas condições. Se eu

vivo isolado, com medo que meus semelhantes venham a me

matar para roubar meus bens, como será possível que eu venha a

aceitar transferir todos os direitos que possuo para um desses

indivíduos? O soberano escolhido poderia muito bem ordenar que

Page 5: Algumas Falhas no Leviatã

os outros me matassem na mesma hora, e isso não infringiria

nenhum termo do pacto. Não me parece plausível que alguém

aceitaria seguir um inimigo incondicionalmente.

***

“Através dessa igualdade de habilidades surge a igualdade de esperança de atingir nossos objetivos. E portanto, se dois homens desejam a mesma coisa, que conseqüentemente não podem ambos possuir, tornam-se inimigos; e no caminho para a conquista de seus objetivos (que é principalmente sua própria conservação e deleite) tentam destruir ou subjugar um ao outro.” 5

Aceitemos por um momento o estado de natureza proposto

por Hobbes, que pode ser resumido nas seguintes premissas:

1. Os homens vivem isolados

2. Eles têm consciência da igualdade média de força e

inteligência à qual todos estão submetidos.

3. O maior temor de cada homem é a morte violenta.

São basicamente essas as premissas das quais

Hobbes conclui a guerra de todos contra todos, a essência

de seu estado de natureza. Essa pérola da argumentação do

inglês surge a partir do seguinte raciocínio: Os homens

vivem isolados e são relativamente iguais, inclusive em

seus desejos e necessidades. Portanto haverá competição

pela posse e usufruto de recursos naturais. Já que não há

um poder para ‘mediar’ essa competição, já que não há

5 HOBBES, Thomas, p. 87

Page 6: Algumas Falhas no Leviatã

justiça, vale tudo no estado de natureza. Dessa forma, o que

temos é a ‘bellum omnium contra omnes’ esse conceito tão

caro à filosofia que sucedeu Hobbes.

O que desejo mostrar é que Hobbes parece não ter

medido exatamente o peso da terceira premissa. O medo

tem um papel importantíssimo ao longo de sua obra. O

estado de natureza é um estado onde o medo predomina, é

por medo que os homens criam o pacto e é por medo que

obedecem ao soberano. Apesar disso, o medo pode de

alguma forma impedir que estado da guerra de todos contra

todos venha a ocorrer, creio eu.

O medo da morte, o instinto de auto-preservação

fariam com que o homem só entre em conflito como um

último recurso. Sabendo-se mediamente igual a seu

inimigo, o homem considera que as chances de ganhar ou

perder são relativamente parecidas. A não ser portanto que

as chances de vitória fossem grandes ou que o conflito

fosse de fato muito importante, os homens o evitariam.

Assim, a disputa por recursos naturais só ocorreria,

provavelmente, quando estes fossem escassos. Caso a

obtenção de bananas, por exemplo, fosse relativamente

fácil, pode-se supor que nenhum homem preferiria roubar

as bananas de outrem, já que isso poderia levar à sua morte.

Seria mais sensato, inclusive de acordo com as leis naturais

defendidas pelo próprio Hobbes, que dizem que o homem

naturalmente procura a paz, que o indivíduo em questão

fosse procurar bananas em outro lugar.

Há outros tipos de disputa que não pela posse de

recursos, é evidente. Brigas por ofensa ou honra, por

Page 7: Algumas Falhas no Leviatã

exemplo. Mas conflitos dessa natureza ferem a primeira

premissa do estado de natureza, pois pressupõem interação

entre os homens. Como ofender alguém que evito e que me

evita? Que tipo de honrarias existem que não envolvam o

reconhecimento de outros? Dessa forma, devemos

reconhecer que disputas dessa natureza, se é que existem,

são bastante raras.

E chegamos assim à conclusão do raciocínio. Vimos

que, em nome da auto-preservação, os homens não entram

em conflito sem motivos, e que esses motivos, para alguém

que vive isolado, só podem envolver a posse de recursos

naturais. Sendo assim, a guerra só existirá quando esses

recursos forem escassos. A probabilidade do surgimento de

um Leviatã como descrito por Hobbes pode ser grande em

um deserto, nem tanto num país como a Inglaterra.

***

“A Natureza fez os homens tão iguais no que concerne às faculdades do corpo e da mente que, apesar de encontrarmos homens manifestamente mais fortes ou mais inteligentes que outro, quando juntamos tudo a diferença entre os homens não é tão considerável a ponto de alguém poder requerer algum benefício para si mesmo que outro não possa igualmente almejar.”6

6 HOBBES, Thomas, p. 87

Page 8: Algumas Falhas no Leviatã

A idéia da igualdade média entre os homens no

estado de natureza é essencial. É essa igualdade de poder e

inteligência que leva ao medo generalizado característico

da teoria de Hobbes.

Entretanto, depois do pacto, um dos homens será

muito mais poderoso que todos os outros.

Desproporcionalmente poderoso. O soberano tem poder, os

súditos liberdade. Liberdades no sentido físico da palavra,

ausência de impedimentos. O plebeu é livre para andar por

onde quiser até que um guarda lhe barre o caminho. O

soberano é o único que tem poder para colocar

impedimentos. Aos vassalos, só resta andar por onde o

caminho não esteja bloqueado e torcer para não esbarrar em

alguma barreira.

Como justificar, no entanto, a escolha da pessoa do

soberano? Se existe uma espécie de igualdade entre os

homens e ninguém é tão mais forte ou tão mais inteligente,

como justificar que um dos iguais se torne tão mais

poderoso? Qual critério seria usado para fazer a escolha?

Pode-se argumentar, em defesa de Hobbes, que a

partir do momento do pacto, o indivíduo que aceitou

tornar-se soberano deixa de existir e passa a ser, ele

mesmo, o Estado. Apesar de esteticamente bela, essa frase

não consegue esconder o fato que, sendo ele mesmo o

Estado ou não, o rei é um ser humano. Um ser humano que

é igual em força e inteligência aos seus súditos, um ser

humano que não participa dos desígnios divinos. E como

tal está sujeito a erros de julgamento e a todos os vícios que

Page 9: Algumas Falhas no Leviatã

acometem a raça. Por que então, escolher um homem e

confiar a ele absolutamente TUDO?

É certo que Hobbes admite a possibilidade de, ao

invés de um só homem, uma assembléia deles se

encarregue do posto. Mas essa assembléia, enquanto

composta de seres humanos e constituindo uma ínfima

parte da população apenas, dificilmente será melhor que o

rei. Pois o problema não reside na quantidade de pessoas,

mas na quantidade de poder. A assembléia ainda teria tanto

poder quanto o rei, e seus súditos continuariam a ter

nenhum.

Hobbes, um homem letrado que viveu no

Renascimento, com certeza tinha conhecimento da

democracia participativa de Atenas. Sabia que existiam

alternativas à concentração absoluta de poder. Se o objetivo

do pacto é a preservação da vida, é a garantia da segurança

dos súditos, é ainda mais natural que esse poder seja

dividido, pois dessa forma as vidas dos cidadãos ficam

menos sujeitas a arbitrariedades, a decisões errôneas do

soberano. Um rei absolutista poderia legalmente ordenar

“Matem fulano.” Numa democracia, ou mesmo que

houvesse uma assembléia, essa decisão teria que ser

ratificada por um maior número de pessoas, e as chances da

vida de Fulano ser preservada são maiores.

Uma última palavra acerca do tópico. Hobbes diz

que, no momento do pacto, todos transferem seus direitos

naturais ao futuro soberano, que recebe todos e soma-os

aritmeticamente. Tudo que os indivíduos transferem ao

soberano são seus direitos. A inteligência do governo

Page 10: Algumas Falhas no Leviatã

continua sendo a de um único homem. Numa democracia

direta, pode-se dizer que não só o poder, mas a inteligência

de todos é somadas ao governo, o que criaria um homem

artificial muitas vezes mais inteligente do que um homem

natural.

***

“A única forma de erigir tal poder comum, que possa defendê-los da invasão de inimigos, e das injúrias uns dos outros, e dessa forma garantir que, através de sua própria indústria e dos frutos da terra eles possam se nutrir e viver em paz, é conferir todo o poder e força a um único homem, ou a uma assembléia de homens.”7

O tema central do Leviatã é o poder. Toda a

discussão gira em torno de como ele se origina, como se

transfere, como se justifica, qual deve ser sua finalidade.

Percebemos ao longo da história que o homem arranjou

diversas formas de organizar o poder, nas mais diversas

formas de sociedade. Existem no dicionário pelo menos 28

palavras terminadas em cracia ou arquia. Mesmo numa

análise a priori do tema, explicitadas algumas premissas

básicas, uma inteligência média poderia supor diversas

formas de distribuição do poder como sendo possíveis.

Hobbes entretanto tenta mostrar que uma dessas

formas é a organização social por excelência, uma

conseqüência lógica do estado de natureza e a que melhor

7 HOBBES, Thomas, p. 12

Page 11: Algumas Falhas no Leviatã

se presta a cumprir os objetivos de um Estado, a segurança

pública segundo ele.

Se o pacto social é conseqüência do estado de

natureza que faz com que os homens se reúnam em busca

de paz, os termos do pacto não parecem refletir essa busca.

Seria natural pensar que, em nome de sua segurança, os

homens transferissem a alguém o poder necessário para

mantê-la, e não o poder para fazer absolutamente qualquer

coisa, inclusive matá-lo. Esse é talvez um dos maiores

paradoxos na obra de Hobbes. Eu faço um pacto no qual

transfiro todos os meus direitos a uma pessoa, e em troca

ela me garante segurança. Entretanto, eu também transferi a

essa pessoa o direito de me matar. O soberano de Hobbes

pode matar qualquer cidadão legalmente sem nenhum

motivo, cidadãos esses que assinaram um contrato que lhes

garantia segurança. Mas, como o próprio Hobbes afirma,

“pactos sem a espada são apenas palavras” e não há

espada alguma acima do soberano.

Mesmo se aceitarmos toda a construção do estado de

natureza proposto pelo filósofo, e aceitarmos que homens

solitários aceitariam pactuar com seus inimigos em busca

da paz, é muito provável que o pacto resultante fosse

bastante diferente daquele proposto por Hobbes. Esperaria

encontrar um contrato no qual os homens transferissem

apenas alguns poderes ao rei, a saber, somente aqueles que

de fato garantem o cumprimento dos termos do trato, ou

seja, aqueles necessários para que a vida seja preservada.

É evidente que Hobbes na verdade já começou a

escrever o Leviatã tendo em mente a defesa do estado

Page 12: Algumas Falhas no Leviatã

absolutista. Ele não concluiu, com base em suas reflexões e

seus experimentos de raciocínio, que esse é o estado que

logicamente decorre do estado de natureza. Ao invés disso,

ele construiu um estado de natureza e um pacto que

justificassem o atual Estado. Mesmo tendo cometido várias

falhas ao longo do caminho, incorrendo em paradoxos,

contradições e suposições pouco prováveis, o trabalho de

Hobbes é surpreendente. Não é, afinal, tarefa fácil

demonstrar, com pretensos rigores matemáticos, que a

concentração absoluta de poder na figura do rei é uma

conseqüência lógica de leis naturais que regem todos os

homens, e convencer as pessoas que se o soberano te

condena à forca, é na verdade você o autor dessa

condenação.

Referência Bibliográfica

HOBBES, Thomas. Leviathan. Cambridge : Cambridge University Press,

1991.