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Algumas mulheres de Autran Dourado
Ivonete DIAS1
Letycia Fossatti TESTA2
Marcos Hidemi de LIMA3
Resumo
Este estudo visa analisar algumas personagens femininas de três romances de Autran
Dourado: Ópera dos Mortos (1965), Lucas Procópio (1985) e Um Cavalheiro de
Antigamente (1992), focando nos padrões e comportamentos que a mulher da época
colonial brasileira, branca e de outra etnia, deveria desempenhar. Diante disso, verificar-
se-á a presença da ordem patriarcal, que subjugava as mulheres ao poder do homem,
assim como, serão relacionadas as definições de núcleo e nebulosa, propostas por
Roberto Reis em A Permanência do Círculo (1987), que servirão para situar os
personagens, sendo o homem, figura do núcleo e a mulher, considerada até então
inferior ao homem, pertencente à nebulosa. Essas considerações levarão a compreender
como a mulher era um ser silenciado, circunscrito ao poder do homem e preconizada
pela sociedade em que vivia.
Palavras-chave: Personagens femininas; Ordem patriarcal; Núcleo e nebulosa.
Abstract
This study aims at analyzing some female characters of three novels of Autran
Dourado: Ópera dos Mortos (1965), Lucas Procópio (1985) and Um Cavalheiro de
Antigamente (1992), focusing on the patterns and behaviors that women from the
Brazilian colonial period, white or of another ethnicity, should have. Therefore, the
presence of the patriarchal order that subjugated the women to the power of the man
will be verified, as well as the definitions of “núcleo” (nucleus) and nebulosa
1 Graduada em Licenciatura em Letras Português-Inglês. Universidade Tecnológica Federal do Paraná,
Campus de Pato Branco, CEP: 85503-390, Pato Branco, Paraná. E-mail: [email protected].
2 Graduada em Licenciatura em Letras Português-Inglês. Universidade Tecnológica Federal do Paraná,
Campus de Pato Branco, CEP: 85503-390, Pato Branco, Paraná. E-mail: [email protected].
3 Professor Orientador Doutor em Letras pela Universidade Estadual de Londrina, CEP: 86057-970,
Londrina, Paraná. E-mail: [email protected].
(nebulosus), proposed by Roberto Reis in A Permanência do Círculo (1987), which
served to place the characters. The man is the figure of “núcleo” and the woman, until
then considered inferior to men, belonging to “nebulosi”. These considerations lead to
understanding how the woman was a silenced being, limited to the power of the man
and advocated by the society in which they lived.
Keywords: Female characters; Patriarchal order; Núcleo and nebulosa.
1. Considerações iniciais
O presente artigo tem por objetivo analisar a representação do papel feminino
imposto pela sociedade em três romances de Autran Dourado (1926-2012): Ópera dos
Mortos (1965), Lucas Procópio (1985) e Um Cavalheiro de Antigamente (1992). Sendo
o foco desta pesquisa, a representação do papel feminino das personagens Isaltina,
Joana, Adélia, Genuína, Quiquina e Rosalina.
As obras a serem analisadas tratam da saga da família mineira Honório Cota,
iniciando-se no romance Ópera dos Mortos (1965), que embora seja o primeiro da
trilogia, nele a personagem principal é a última geração desse clã. Este romance narra a
história de Rosalina, filha de João Capistrano Honório Cota e neta de Lucas Procópio
Honório Cota. A segunda obra, de acordo com a sequência proposta pelo escritor, é
Lucas Procópio (1985), e centra-se na história da primeira geração Honório Cota, nas
viagens e nos problemas enfrentados para conseguir manter a grandeza e a honra do
nome da família. O terceiro e último livro, Um Cavalheiro de Antigamente (1992),
retrata a história do filho de Lucas Procópio e pai de Rosalina, João Capistrano Honório
Cota, além de sua mãe, Isaltina. Vale ressaltar que o autor define uma sequência de
leitura, como já mencionado, intercalando as três histórias. Todavia, a análise será
realizada dividindo as personagens entre mulheres brancas: Isaltina, Genuína e Rosalina
e mulheres negras: Joana, Adélia e Quiquina.
Essa trilogia, como fonte de pesquisa sobre a condição e a representação da
mulher na época colonial brasileira, fornece um importante campo de análise,
principalmente com relação à ordem patriarcal, tão marcante no período histórico
retratado pelas obras. Além disso, é possível verificar a condição da mulher, branca e de
outras etnias, e o papel de sujeição por elas desempenhado, fruto de ideologias presentes
nas famílias e na sociedade do momento em que transcorrem as narrativas, definindo o
espaço que cabia à mulher ocupar e as atitudes ideologicamente corretas que deviam
desempenhar, como esposa, mãe, filha, escrava etc. Com isso, será analisado também
como esta figura submissa buscou, de diversas formas, “escapar” dessa condição
inferior e de dominação em que se encontrava.
Na abordagem dos romances acima, serão empregados dois termos de Roberto
Reis, presentes em A permanência do círculo (1987): núcleo, no qual se concentram a
força e o poder de decisão (espaço masculino), e nebulosa, que se refere à margem ou à
periferia. Além disso, este artigo se vale das discussões sobre a ordem patriarcal
empreendidas por Gilberto Freyre, em Casa-grande & senzala (1933). Na esteira da
ótica de Freyre, também se utiliza nesta análise duas definições cunhadas em O
canibalismo amoroso (1984), de Affonso Romano de Sant’Anna: mulher esposável e
mulher comível, bem como outras leituras que complementarão as observações
concentradas nos três autores acima listados.
1.1 Algumas definições
Os termos núcleo e nebulosa relacionam-se a uma sistematização de
personagens observada por Reis. O objetivo do autor é mostrar, sobretudo na narrativa
oitocentista, espraiando-se, porém, pela literatura produzida no século XX, o modelo
hierárquico senhor-escravo, branco-índio, fazendeiro-sertanejo, homem-mulher, pai-
filho, masculino-feminino, predominante nos textos literários.
Reis afirma que a sociedade obedece a uma constituição hierárquica,
predominantemente masculina, que se manifesta no binômio
patriarcalismo/paternalismo. Dessa forma, o ensaísta estabelece uma tipologia de
personagens por meio das terminologias núcleo e nebulosa, correspondentes aos que
detêm o poder e aos despossuídos. De acordo com esse autor, “No centro - núcleo -,
dominando, o senhor/o homem/o pai/o branco/o fazendeiro; na periferia – nebulosa -
dominado, o escravo/a mulher/o filho/o índio/o sertanejo (e poderia incluir o gaúcho, o
jagunço)” (REIS, 1987, p. 44, grifos do autor).
Esse questionamento à ordem patriarcal será o esteio sobre o qual se
fundamenta a análise dos romances de Autran Dourado, visto que tais obras encaixam-
se na linha de raciocínio proposta por Reis, uma vez que enfatizam a vertente
memorialística enquanto reação de seus autores à bancarrota do mundo patriarcal.
Aproveitados nessa pesquisa, as três obras recebem leitura em clave diferente, já que a
tese sustentada é a de o relacionamento afetivo entre elementos pertencentes a classes
sociais diferentes – do núcleo e da nebulosa – não se realiza plenamente.
Ainda conforme o raciocínio de Reis, “Nesse quadro senhorial e patriarcal,
trespassado pela hierarquia, caberia situar a mulher, o mais das vezes sujeitada ao
homem, visto ser esta sociedade, focalizada pela Literatura, eminentemente masculina”
(REIS, 1987, p. 32), noutras palavras, mesmo pertencendo à classe senhorial, núcleo, a
mulher tinha papel subserviente ao senhor, permitindo inferir que ela, de certa forma,
pertença à nebulosa.
Poder-se-ia mesmo afirmar que, nas obras analisadas, ainda persistem as
figuras do senhor ou patriarca, enquanto representações do núcleo. Vale lembrar que
Reis utiliza com frequência, no lugar da metáfora do núcleo, o vocábulo centro como
um sinônimo. Tal ideia de espaço central pressupõe também que esse poder é emanado
de dentro, ao passo que a nebulosa é algo que vem de fora. Obviamente, a velha ordem
patriarcal fundada na incontestável figura masculina procurou remodelar-se com um
pouco do verniz modernizante da sociedade. Entretanto, por detrás dessa aparente
modernidade, continuavam a existir homens ainda afeitos aos velhos códigos da
prepotência, do mandonismo e da violência.
Verifica-se que os integrantes da nebulosa possuem características exógenas e
são claramente identificados como estrangeiros ou estranhos em relação aos ocupantes
do núcleo. Portanto, é possível verificar que as personagens periféricas dos romances
aqui estudados de Autran Dourado buscam distinguir-se dessa condição servil,
aproximando-se dos representantes do poder, visto que “a vizinhança do centro
dominante eleva socialmente, ao passo que a distância inferioriza” (REIS, 1987, p. 33,
grifo do autor).
Seguindo este mesmo raciocínio, é possível relacionar algumas considerações e
termos desenvolvidos por Affonso Romano de Sant’Anna, em O canibalismo amoroso
(1984), sobre mulher esposável e mulher comível. A primeira remete à mulher branca,
com uma boa educação, de condições sociais similares ao do patriarca, silenciada, que
dará um status social ao seu esposo e que servirá primordialmente para a procriação. Do
outro lado, há a mulher comível, configuração de um ser inferiorizado, vivendo a
condição aviltante de cativa, circunscrita ao espaço do pecado, que é devorada
sexualmente pelo seu senhor, que julga que ela serve para satisfazer seus desejos,
fazendo do corpo dela o que melhor lhe aprouver. Tanto a mulher esposável quanto a
mulher comível pertencem à nebulosa, porém a primeira, por ser branca, considerada
mais “distinta” e habitante da casa-grande, junto com a figura do patriarca, está próxima
do núcleo, e a negra ou mulata só consegue essa aproximação, de certa forma, ao
relacionar-se com seu senhor, figura pertencente ao centro ou núcleo.
Era na casa-grande que a ordem patriarcal se estabelecia, ambiente em que a
figura central masculina vivia, ditava suas ordens e empregava seu domínio. Segundo
Freyre (2013, p. 38), a casa-grande e seus arredores, da qual faz parte a senzala também,
foi o espaço da concretização do poder masculino, pois “A força concentrou-se nas
mãos dos senhores rurais. Donos das terras. Donos dos homens. Donos das mulheres.
Suas casas representam esse imenso poderio feudal.” É por meio desse poder que o
homem, como figura suprema da família, exercia o patriarcalismo e com isso, subjugava
as mulheres (sejam elas de que etnia fossem), escravos, agregados, homens livres
pobres, entre outros que giravam em torno do poderio desses homens, que figuravam no
centro da família e da sociedade da época.
2. Mulheres brancas: Isaltina, Genuína e Rosalina
Isaltina
A personagem Isaltina de Almeida Sales é retratada em Lucas Procópio (2002)
e em Um Cavalheiro de Antigamente (2001). No primeiro romance, ela é representada
como a filha caçula de Cristino de Almeida Sales, o Barão das Datas, que, após sua
saída da política e a má administração de suas terras, leva a família à ruína financeira.
Em virtude disso, o pai, na condição de patriarca, negocia o casamento da filha com o
bruto Lucas Procópio, com o objetivo de buscar amenizar a falência familiar. Podemos
afirmar que a mulher branca era inicialmente submetida aos poderes do pai e depois era
transformada numa moeda de troca ou num negócio realizado entre dois homens: o pai e
o futuro marido.
Em Lucas Procópio (2002) descreve-se que Isaltina “teve a melhor educação
que se podia dar a uma moça que ia frequentar o paço imperial e os melhores salões do
Rio de Janeiro” (DOURADO, 2002, p.103). Além de sua educação literária, teve
também a musical, travando conhecimento com composições de Mozart e Schumann.
Assim como as protagonistas de obras românticas, ela utilizava da literatura para
escapar da realidade e conhecer um mundo novo, mas mesmo estas viagens literárias
eram carregadas da culpa impregnada pela sociedade patriarcal.
Nunca porém o coração de Isaltina bateu tão forte como quando leu o
romance de Flaubert. Quantas horas maravilhosas, quantas emoções
sublimes. Chorou como poucas vezes com a infelicidade de Ema (sic)
Bovary, sofreu com ela precocemente as dores do amor malcontrariado. Se
enrubesceu de ardências e repuxões no ventre com a cena de amor dentro de
um fiacre, em Ruão. Teve, por conta própria, de se confessar e fazer muitas
penitências, toda hora lhe vinha imperioso o calor úmido (DOURADO, 2002,
p.104).
Isaltina era uma mulher branca, estudada e, embora sua família estivesse em
uma ruína financeira, o nome, em especial do patriarca da família, Barão das Datas, era
muito respeitado, e isso auxiliaria em arrumar um bom casamento. Todavia, antes de ser
esposada por Lucas Procópio, ela sofreu duas decepções amorosas, uma com Alberto,
Visconde de Bauru, com quem mantivera um relacionamento através de cartas que
foram cada vez menos constantes até desaparecem por completo, e outro com Miguel,
que acabou casando-se com sua irmã Lucinda. Foi após estas decepções que apareceu
um cavaleiro em Diamantina, que segundo ela, era velho e feio, mas o pai insistia em
que o conhecesse, por este ser um homem rico e eles estarem vivendo uma situação
financeira difícil (DOURADO, 2002, p. 117).
Pode-se observar a partir do surgimento do cavaleiro Lucas Procópio o que
bem afirmam Castello Branco e Brandão (1989) sobre as figuras femininas:
... só tem possibilidade de ocupar um espaço dentro da sociedade em que
vivem: aquele que lhes é reservado pela expectativa criada por uma ideologia
autoritária e patriarcal. A nenhuma delas é possível sair de seu espaço
fechado para investir seu desejo num mundo mais amplo do trabalho e da
realização pessoal (CASTELLO BRANCO e BRANDÃO, 1989, p. 55-56).
No caso de Isaltina, essa ideologia autoritária chegou ao extremo quando o pai
apontou uma arma para a filha, obrigando-a a casar com Lucas Procópio:
Ela voltou para sala, deu de cara com o pai. O cabelo desgrenhado, o olhar
frio e duro, nunca o vira tão transtornado. Quando os olhos dela baixaram,
viu na mão do pai um revólver. Isaltina hesitou, não sabia qual a melhor
decisão. O estranho é que não tinha medo, olhava friamente a arma agora
apontada para ela. Tudo nela era raciocínio lógico, fatal; silogismos difíceis
do coração aceitar. Num átimo ela variava de silogismo a silogismo.
Premissa maior, premissa menor, logo – devia ceder; variava as premissas,
logo – devia morrer. E lhe passavam pela mente, na velocidade de um raio, as
palavras honra, dignidade, morte. (DOURADO, 2002, p.123).
O patriarcalismo neste romance possui uma raiz tão profunda na mulher, que
mesmo após ser ameaçada pelo pai, ela continua amando-o sem nenhuma mágoa, fato
este, que comprova o que Carla Bassanezi Pinsky (2012) afirma sobre a criação das
mulheres no Brasil, sendo estas ensinadas a viverem para constituir família, tornando
vocação prioritária a maternidade e a vida doméstica, marcas estas indicadoras de sua
feminilidade (PINSKY, 2012, p. 608-609).
Em alguns fragmentos de Lucas Procópio (2002) é possível perceber em
Isaltina uma mulher amedrontada, o que reflete sua condição de submissão à figura do
patriarca, representada tanto pelo pai como pelo marido. De acordo com Gilberto
Freyre, “as meninas criadas em ambiente rigorosamente patriarcal (...) viveram sob a
mais dura tirania dos pais – depois substituída pela tirania dos maridos.” (FREYRE,
2013, p. 510). Exemplo disso ocorre logo após a festa de casamento da personagem, em
sua temida lua de mel: “No escuro, era um bicho trevoso, enrolado sobre si mesmo. Na
posição fetal, se protegia de braços, de forças invisíveis e destruidoras.” (DOURADO,
2002, p. 126).
Outro momento que marca a obra e revela o preconceito contra a mulher está
no nascimento da primeira filha do casal, fato que não agradou nem um pouco Lucas
Procópio, que esperava um filho homem, sendo que já tinha até nome para o suposto
filho: – “O rebento se chamaria João Capistrano, um nome másculo, sonoro.”
(DOURADO, 2002, p. 137) –. Com isso, houve o distanciamento e a antipatia em
relação à mulher e à filha: “Se tivesse sido homem o rebento, é capaz de que as coisas
teriam vindo a ser outras” (DOURADO, 2002, p. 138). Tanto o medo excessivo citado
no parágrafo anterior quanto esta antipatia criada por Lucas Procópio evidenciam alguns
dos aspectos gerados pelo patriarcalismo nesta família.
No decorrer da obra, surge um envolvimento entre Isaltina com o padre
Agostinho, uma mistura de dois seres frágeis, sujeitos portanto pertencentes à nebulosa
de que trata Reis. Ela, jovem, carente, sonhando com o príncipe dos romances lidos e
ele, repleto de curiosidade e encantado com a beleza e sensibilidade dela. O romance
entre eles, embora Lucas Procópio só suspeitasse, resultou em uma surra no padre e sua
fuga, sem se despedir de Isaltina.
Esse envolvimento com o padre da comunidade só foi possível porque às
mulheres da época era permitida uma relação mais próxima com padres e representantes
religiosos, haja vista que da mulher branca esperava-se que fosse um exemplo ideal de
religiosidade. A visita dos padres também era permitida e frequente nas casas-grandes
da época, por isso, em sua solidão e descontentamento com o casamento, foi com o
padre Agostinho que Isaltina pôde desabafar e falar sobre literatura, música e assuntos
que não interessavam ao rude marido. Dessa amizade, surgiu um relacionamento quase
idealizado, que gerava culpa à esposa devido à quebra dos padrões esperados pela
sociedade, mas que ao mesmo tempo, fazia-a feliz por encontrar um outro modo de
viver a vida, um relacionamento parecido com os dos romances que lia.
Este fato ressurge em Um Cavalheiro de Antigamente (2001), quando João
Capistrano, já homem feito, casado, recebe uma carta em casa falando do romance entre
o padre Agostinho e sua mãe, o que resulta em uma busca obsessiva pela verdade,
demonstrando, mesmo muito tempo depois, a sua grande luta interna para manter o
nome da família e a honra de sua mãe, como mulher, intactos.
Genuína
Aludida na obra Um cavalheiro de antigamente (2001) como Genuína e em
Ópera dos Mortos (1972) como Dona Genu, essa é uma das personagens que poucas
vezes aparece na trama, retratada como a esposa de João Capistrano Honório Cota.
Genuína é a representação da mulher branca, adequada aos padrões da sua época: “Ela
não é só uma moça muito bonita e educada, disse Isaltina, mas de uma família distinta”
(DOURADO, 2001, p. 39).
Esta personagem reflete a mulher silenciada, consciente e submissa em sua
condição inferior ao homem no poder de decisão, segundo Castello Branco e Brandão
(1989), heroína literária que acaba se tornando um exemplo a seguir, pois é totalmente
subjugada ao poder do marido, patriarca da família. Sua submissão perante o marido é
muito nítida quando, após João Capistrano receber a carta de acusação contra sua mãe, e
se mostrar totalmente depressivo, ao invés de ela conversar com o marido, busca ajuda
da sogra e de um médico:
Vá de noite lá em casa, disse Genuína. Mas não diga que fui eu que convidei.
A senhora também, dona Isaltina. Eu irei com o Sílvio, disse Isaltina. Com
ele não, por favor, disse Genuína. Conte a ele o que se passou, mas diga que a
presença dele pode irritar João. Seria muita gente, a senhora sabe como ele é.
(DOURADO, 2001, p. 44).
Como se pode depreender da discussão acima, ela serve como exemplo de
mulher esposável, conforme definição de Sant’Anna (1984), que serviu para dar certo
status ao marido, para a procriação e para cuidar da família.
Embora o homem fosse o patriarca, o status que ele possuía dependia das
mulheres que estavam a sua volta, sua esposa, mãe, irmã, tia e até mesmo as serviçais,
pois, a imagem do homem público era o resultado do cuidado dessas mulheres. Este
dever de cuidar, que era exigido da mulher, também era reforçado pelos médicos, que
incentivavam os afazeres domésticos ao invés do ócio.
Considerada base moral da sociedade, a mulher de elite, a esposa e mãe de
família burguesa deveria adotar regras castas no encontro sexual com o
marido, vigiar a castidade das filhas, constituir uma descendência saudável e
cuidar do comportamento da prole. (D’INCAO, 2012, p. 230).
Além do cuidado com o marido, a educação e o comportamento da prole
também eram de responsabilidade da mulher, e por isso Genuína tentou moldar
Rosalina e transmitir a ela alguns dotes femininos, como a confecção de flores em
tecido e papel e aulas de piano, habilidades que seriam úteis para um possível
casamento:
Foi Dona Genu, fez questão que ela aprendesse. Um japonês Seu Tamura, ela
nunca tinha visto um japonês na sua vida, quem ensinou. Ele ficou pouco
tempo na cidade, um mês só. Mas deu tempo de aprender, tinha que aprender
depressa. Mamãe tinha dessas coisas. Queria que ela fosse prendada, pensava
que ela ia se casar. O piano – nunca mais tocou piano desde que sua mãe
morreu, desde que tudo aquilo começou a acontecer – as lições de piano com
dona Olímpia, as flores de pano. (DOURADO, 1972, p. 29-30).
Percebe-se que Genuína possuía todos os atributos necessários para uma
mulher branca da época, que também foram transmitidos de alguma forma à Rosalina,
sua filha.
Rosalina
Em Ópera dos Mortos (1972), a personagem principal é Rosalina, filha de João
Capistrano e neta do perverso Lucas Procópio. Nesse livro, é narrada, em partes, a triste
história da tradicional família Honório Cota, que viveu em uma época de grande
decadência em Minas Gerais, o que influenciará diretamente a vida e o destino da
família.
Rosalina é a última da geração Honório Cota, sendo também a única filha que
vingou do casamento de João Capistrano Honório Cota e de Dona Genu: “Nem de
longe dona Genu e o coronel Honório se permitiam pensar que podia ser um menino-
homem, varão, para continuar aquela linhagem, que era o que ele mais queria.”
(DOURADO, 1972, p. 18). A menina recebeu uma boa educação, porém conservou os
mesmos traços das famílias senhoriais da época e acabou carregando para si o mesmo
ressentimento do pai – por questões da política local – contra o restante da cidade. Após
a morte dos pais, Rosalina se trancou no sobrado da família junto com sua ama
Quiquina – escrava muda que ajudou a criar a menina – e nunca mais saiu. Ocupava seu
tempo fazendo flores de papel e de pano, que “dona Genu, fez questão que ela
aprendesse.” (DOURADO, 1972, p. 29), pois esses eram alguns dos poucos ofícios que
as mulheres podiam desempenhar. Com a solidão da personagem, o sobrado adquire no
seu silêncio e sua imponência um aspecto de templo sagrado, onde não circulam a gente
da pequena cidade.
Nesse sentido, pode ser constatado que a filha educada, submetida aos
costumes e padrões ditados pela família e pela sociedade da época, vive trancafiada em
casa, que era o espaço privado prioritariamente da família, que cabia as mulheres
respeitáveis ocuparem. Ao ocupar-se da importância da questão espacial nesse
romance, Reis (1987, p. 110) observa que “O sobrado seria um templo, onde se procura
preservar a exemplaridade dos modelos ancestrais (...), ao passo que a cidade se
configura como mudança, lugar do social”. Assim, evidencia-se que o confinamento de
Rosalina resulta de certa coerência à ordem patriarcal, ao sistema de dominação
masculina e a uma postura hierática da jovem, tornando impossível que a moça se
desprendesse desse impasse e deixasse de seguir o que o pai considerava correto,
mesmo que ele e seus ideais já estivessem mortos.
Além disso, percebe-se no decorrer da leitura da obra que – em conformidade
com a educação que recebera e as expectativas de seu meio – ela possuía um desejo
íntimo de subir ao altar, já que “o casamento, porta de entrada para a realização
feminina, era tido como ‘o objetivo’ de vida de todas as jovens solteiras” (PINSKY,
2012, p. 610). Esse também era o desejo de qualquer pai, como patriarca, que tinha uma
filha, pois essa era tida como um estorvo, capaz de arruinar a reputação de uma família
se não seguisse a ordem estabelecida pelo patriarcalismo. Na trama Ópera dos mortos
(1972), Rosalina nutre um desejo idealizado de casar-se com Emanuel, um jovem pelo
qual o pai possuía admiração, filho de Quincas Ciríaco, amigo seu. Em vários
momentos da obra, Rosalina mostra arrependimento por não ter se casado com o moço.
Logo após a morte de seu pai, ela reflete sobre isso em seu quarto:
Engraçado eu casar. Por que engraçado? eu bem que podia casar. Emanuel
bem que quis. Não agora, antes, quando nada ainda tinha acontecido. Papai
fazia planos pra mim. Depois me esqueceu, se entregou àquela maluqueira
(DOURADO, 1972, p. 30).
Noutra cena, enquanto aguardava impaciente por Quiquina, que havia saído
para vender flores, Rosalina lembrava-se como havia sido sua primeira comunhão. Por
meio dessas reminiscências, ela estabelecia uma relação com a possibilidade de
matrimônio entre ela e o filho de Quincas Ciríaco: “Uma noivinha, parece mesmo uma
noivinha. Emanuel bem que quis, ela não era uma enjeitada” (DOURADO, 1972, p.32).
Entretanto, por se trancar para tudo, Rosalina não realiza esse anseio e, no auge
de sua solidão, acaba envolvendo-se com uma pessoa de classe inferior a dela, Juca
Passarinho, um aventureiro e viajante que perambulava cidades sem destino algum, que
foi recebido no sobrado como um mero empregado e vai acabar desfrutando
sexualmente da última descendente dos Honório Cota. Essa ação nos leva a
compreender que mesmo a personagem sendo uma mulher educada dentro dos moldes
esperados, que a levam a ser considerada uma mulher esposável, figura, em alguns
momentos, como uma mulher que tem desejos sexuais e que busca satisfazê-los,
características da mulher comível, descrita por Sant’Anna (1984).
Diante disso, verifica-se que nesse relacionamento entre Rosalina e Juca
Passarinho, que é “o falador que vem de fora, que pertence a outro grupo social, que não
é da família, oriundo do profano” (REIS, 1987, p. 112), há uma fragmentação da
personagem feminina, pois esta, representante do sagrado, como mulher branca e bem
educada, funde-se com o profano. Da mesma forma, há uma grande dualidade de
características da personagem ao relacionar-se com um ser de classe inferior a dela, pois
era “De noite Rosalina, de dia dona Rosalina. Não buscava mais unir no mesmo ser as
duas figuras, juntar as duas metades.” (DOURADO, 1972, p. 165). Assim, durante o dia
“era mesmo uma menina, uma menina pura e inocente.” (DOURADO, 1995, p. 165) e a
noite virava a mulher que se realizava sexualmente com Juca Passarinho.
Percebe-se que a personagem mulher, talvez por não ter a figura do patriarca ao
seu lado e por buscar preservar a honra da família, não assume seu relacionamento com
um ser de classe inferior a dela, como faziam os senhores do engenho que
relacionavam-se com suas escravas. Além disso, mesmo buscando esconder este
relacionamento, que em nenhum momento aparenta ser afetivo, a personagem quebra os
padrões da época e representa, junto com a deterioração do sobrado, a decadência das
famílias senhorias da época.
3. Mulheres negras: Joana, Adélia e Quiquina
Joana
A escrava Joana é retratada nas obras Lucas Procópio (2002) e Um Cavalheiro
de Antigamente (2001). Isaltina ganhou-a de presente quando nasceu e, como perdeu
sua mãe cedo, foi praticamente criada pela negra (DOURADO, 2002, p.104). Esta
personagem representa “A figura boa da ama negra que, nos tempos patriarcais, criava o
menino lhe dando de mamar, que lhe embalava a rede ou o berço, que lhe ensinava as
primeiras de português errado” (FREYRE, 2013, p. 419). Agindo de acordo com o
esperado dos ocupantes da nebulosa, Joana era o tipo de pessoa que simplesmente
aceitava a sua condição servil, mesmo com a oportunidade de ser alforriada. Em uma
discussão entre Lucas Procópio e Isaltina, na qual essa tentava alforriar todos os negros
da fazenda, houve o seguinte diálogo entre as duas mulheres:
Joana, estou aqui dizendo para o coronel que vou alforriar você. Pra quê,
Nhanhá? Na minha idade, o que eu vou fazer com alforria. Teria de sair por
aí catando emprego e passando pior do que passo aqui. Alforria, só se for pra
eu ficar trabalhando aqui com Nhanhá. Pois eu vou lhe alforriar, disse
Isaltina. Vai continuar na mesma, Nhanhá, vou ser sempre cativa de vosmecê
(DOURADO, 2002, p.133).
Justamente por estar próxima ao centro irradiador do poder e viver uma vida
cheia de privilégios em relação aos demais escravos que viviam na senzala, a escrava
Joana não encontra vantagens em ser livre, haja vista que além da idade avançada, o
negro na época, não dispunha de espaço e nem de oportunidades de trabalho fora do
ambiente da casa-grande.
Como já mencionado, Joana é uma personagem que, mesmo sendo negra, está
próxima ao núcleo, pois neste período os serviços mais íntimos da família eram
delegados a escravos escolhidos “a dedo”, que subiam da senzala para a casa-grande e
eram considerados “Indivíduos cujo lugar na família ficava sendo não o de escravos
mas o de pessoas da casa.” (FREYRE, 2013, p. 435). Ademais, Joana possui um
relacionamento muito conexo e até mesmo afetivo com Isaltina, o que a faz receber
alforria, ganhar presentes e participar de momentos decisivos na vida de sua senhora,
como quando a auxiliou ao esconder o envolvimento da sua sinhá com o padre
Agostinho: “Depois Joana perguntou o que Isaltina queria dela. Silêncio, disse Isaltina,
boca presa. E por acaso Nhanhá acreditou que eu ia falar?! Pensou isso de mim?! Quem
acha que eu sou?!” (DOURADO, 2002, p.172), ou quando auxiliou na reaproximação
de João Capistrano e sua mãe, indo visitá-lo na cadeia e defendendo sua Nhanhá para o
filho.
Adélia
A mulata Adélia, retratada principalmente no romance Lucas Procópio (2002),
é o tipo de mulher que Sant’Anna (1984, p. 22-23) define como a mulher para ser
comida, que servirá, além do trabalho escravo, para satisfazer os desejos eróticos de seu
senhor. Essa mulher, nos padrões estabelecidos do período, “diverge bastante da virgem
assexuada, da irmã e do anjo loiro, que são as representativas de inúmeras mulheres
brancas” (SANT’ANNA, 1984, p. 27), ou seja, as mulheres esposáveis.
Após o nascimento da primeira filha de Lucas Procópio e Isaltina, ou seja, da
primeira “decepção” com a esposa, ele voltou a procurar e se relacionar com a escrava,
com quem tinha um relacionamento ainda antes do seu casamento, mas que por conta
do matrimônio, distanciou-se da mulata. Segundo o personagem, Adélia “...não possuía
nenhuma sutileza ou elaboração amorosa, mas lhe dava tudo o que pedia a sua natureza
bruta de homem. Era uma mulata quente, fogosa e arteira como poucas.” (DOURADO,
2002, p. 138). Adélia é uma escrava alforriada de Lucas Procópio, com quem ele
mantém uma relação de satisfação sexual, porém, ao contrário do que se imagina, a
mulata se encontra “‘feliz’ dentro do sistema de dominação” (SANT’ANNA, 1984, p.
44), já que seu “corpo passa a ser moeda de ascensão social” (SANT’ANNA, 1984, p.
44). Dessa forma, ao incitar e satisfazer os desejos e anseios sexuais de seu senhor e/ ou
feitor, ela conseguiu sua liberdade e vive uma vida boa na cidade, sendo sustentada por
ele.
Estigmatizada e aviltada, ela representa a personagem que tem o corpo como
seu único objeto de ascensão social e é tida como sedutora, pois, conforme observa
Sant’Anna, ela utiliza seu corpo para seduzir seu senhor e, assim, ter certos privilégios
diante dos que pertencem à mesma situação hierárquica que ela. Isso se explica quando
Sant’Anna afirma que a mulata “enquanto for faceira e brejeira conseguirá, através da
docilidade, transformar-se de escrava em rainha. E aí a sujeição e a sedução se
mesclam.” (SANT’ANNA, 1984, p. 41, grifos do autor).
Quando Isaltina voltou a perceber a aproximação entre Lucas Procópio e
Adélia, em um momento de discussão entre o casal, ela demonstrou o seu lado
preconceituoso, como mulher branca e educada dentro dos princípios da época,
colocando a mulata e um animal no mesmo patamar :“Entendendo a muda semáfora, ele
disse está bem, estive com outra, quer saber o nome? Ela então falou, foi cortante, uma
navalha afiada. Eu por acaso alguma vez procurei saber o nome de algum dos seus
animais?” (DOURADO, 2002, p. 140).
Essa atitude agressiva de Isaltina era comum até então, pois como as mulheres
brancas não conseguiam exercer poder sobre os homens, acabavam descontando seus
desgostos e as traições do marido nas escravas, e isso segundo Freyre (2013), era feito
de diversas formas, algumas mulheres brancas mandavam arrancar os dentes das negras,
outras mandavam surrar, perfuravam os olhos ou queimavam-nas, entre outras inúmeras
formas de castigos.
Essas escravas, por sua vez, sofriam caladas já que, além de mulheres, eram
negras, ou seja, de uma etnia considerada inferior.
Quiquina
Quiquina, escrava muda do romance Ópera dos Mortos (1972), começou
trabalhar na casa-grande para Dona Genu antes da Rosalina nascer. É a escrava
escolhida que subiu da senzala à casa-grande, para servir a família do patriarca.
Acompanhou toda a luta da Dona Genu e os filhos que não sobreviviam:
lá ia o preto Damião, seguido da menina Quiquina, levar para o cemitério,
sem nenhum outro acompanhamento, a miuçalha perdida, os frutos pecos do
ventre de dona Genu. Que graça podia achar Quiquina naqueles enterros de
anjinhos mal nascidos? (DOURADO, 1972, p. 18).
Após a morte de Dona Genu e João Capistrano, restaram somente Quiquina e
Rosalina no antigo e tradicional sobrado da família Honório Cota. Elas faziam flores de
pano e papel que eram vendidos por Quiquina, já que Rosalina, como uma mulher
distinta, que não se interessa por negócios, nem se expõe ao espaço público à toa, não
saia do sobrado. “Quiquina cuidava da venda das flores. Quem contratava, marcava os
preços. Sabia fazer preços. Pra igreja era mais barato, nada de graça porém. Quem é que
ia deixar de pagar a pobre da Quiquina” (DOURADO, 1972, p. 31).
Embora fosse negra, Quiquina mostra-se muito próxima do núcleo, como já se
observou ao ser analisada a figura da escrava Joana. Sua importância e proximidade ao
núcleo nessa trama podem ser observadas em determinados momentos nos quais ela
dispõe do poder de decidir como agir: “Ela não se envolvia, deixava tudo por conta de
Quiquina. Onde é que Quiquina arranjava tanta freguesia?” (DOURADO, 1972, p. 31).
Esta figura retrata a negra que conseguiu certas regalias ao alcançar
proximidade com os integrantes do núcleo, já que era uma pessoa que sabia e
presenciou tudo a respeito da família Honório Cota.
4. Considerações finais
Entre as personagens femininas das três obras podemos observar semelhanças e
diferenças, como por exemplo, com Isaltina e Adélia, em que ambas representam a
relação de poder entre homem-mulher e a condição de submissão em relação ao senhor
e patriarca, que detém o poder, ou seja, configura-se na situação dessas personagens a
nítida relação hierárquica do núcleo e da nebulosa.
Além disso, é plausível afirmar que a mulher branca (esposável) tinha algumas
regalias em relação à mulher negra (comível), porém, ambas eram mulheres silenciadas,
oprimidas, humilhadas e sem direito algum, incluindo-se aí o direito de poder dispor do
próprio corpo. À mulher branca, aqui representada por Isaltina, Genuína e Rosalina, era
permitido estudar normalmente, aprender os dotes dignos (música, pintura, bordados
etc.) para uma moça, que agradariam o futuro marido. Além disso, na esfera da ordem
senhorial e patriarcal, mulheres brancas normalmente possuíam boas condições de vida,
no sentido econômico. Todavia, tais prerrogativas dependiam do cego respeito ao
marido, à submissão total a ele, aceitando tudo que ele fizesse ou determinasse.
Diferente, porém, nessa esfera senhorial, o tratamento dispensando à mulher branca e à
negra:
se da mulher branca se exigia uma série de “atributos femininos”, que assim
definidos serviam para circunscrevê-la no espaço do ócio e não do negócio,
no que se refere a mulher de cor a situação se repete com agravantes. Além
de mulher, ela é preta. Quer dizer: escrava, subordinada duas vezes
(SANT’ANNA, 1984, p. 42).
Para melhor exemplificar, a negra, por ser escrava e mulher, torna-se mais
submetida ainda aos poderes masculinos, já que servia além dos interesses econômicos
do seu senhor, sendo seu objeto sexual. Outra característica importante das personagens
negras ou mulatas da trilogia, como Quiquina, era que essas personagens se encontrava
na condição de escrava, mas representava quase uma mãe para Rosalina, no caso ainda
de Quinquina. Ademais, cuidava dos afazeres domésticos, da cozinha, das compras
para a casa e da venda das flores feitas pela sua senhora. Dessa forma:
Mesmo no seu silêncio Quiquina fazia falta. A presença de Quiquina
mexendo pela casa, ocupada na cozinha, na horta, ajudava nas flores, era um
sinal de vida, de tempo. Quiquina para ela queria dizer que a vida continuava,
não estava morta, toda a sua vida não era um pesadelo de que nunca mais
conseguia acordar (DOURADO, 1972, p. 36).
Diante desse trecho, percebemos como a personagem Rosalina era dependente
da escrava e como esta conseguiu um espaço maior e de poder dentro da casa-grande,
que era o sobrado da família Honório Cota. Com o objetivo de exemplificar, é
importante o destaque aos termos núcleo e nebulosa. Reis assinala que “No centro ou
núcleo está a figura do senhor e patriarca, junto com os que habitam a casa-grande. Na
nebulosa ou periferia, a bem dizer, todos os restantes. [...] Efetivamente, os figurantes
do núcleo senhorial exercem domínio sobre os da nebulosa.” (1987, p. 32, grifos do
autor).
Dessa maneira, compreende-se que Rosalina encontra-se no núcleo, e quanto
mais próximo o indivíduo ocupante da nebulosa estiver do núcleo, melhor será a sua
posição social. Aí se explica o fato da servidão exagerada de Quiquina com a sua
senhora, e como ela acreditava estar em uma posição hierárquica muito mais alta em
relação aos demais escravos que viviam na cidade. Isso acontece também com a
mucama de Isaltina, Joana, que trocou sua liberdade (alforria) para continuar dentro da
casa-grande, como já foi mencionado nessa análise.
Com as amantes de Lucas Procópio, acontece o mesmo, principalmente com
Adélia, que, ao relacionar-se com o seu senhor encontra-se mais próxima ao núcleo ou
centro e consequentemente “envida seus melhores esforços para afastar-se do escravo
(no último degrau da escala social), para distinguir-se dele.” (REIS, 1987, p. 33).
Portanto, pode-se afirmar que a família Honório Cota viveu os dois extremos
da magnanimidade. Por um lado, a ambição e o orgulho podem ser vistos no coronel
Lucas Procópio e mais tarde em Rosalina, e o seu excesso resultou em seu fracasso. Por
outro lado, a pusilanimidade pode ser vista em João Capistrano e Isaltina.
Nesses romances de Dourado, percebe-se que a identidade feminina construída
a partir da sociedade patriarcal tenta forçar o encaixe da mulher na sociedade através de
um discurso ideológico cultural, o qual era empregado em sermões nas igrejas, depois
foi utilizado pelas mães com o intuito de auxiliar as filhas a conquistar um bom
casamento e continua sendo utilizado até os dias atuais.
Acrescenta-se às observações acima o fato de poder observar-se nas três obras
analisadas esta visão de identidade feminina sob a forma de pressão social do patriarcal
sobre as mulheres – consideradas como espectadoras comuns, sempre à margem, na
periferia, na nebulosa enfim –, sendo que a força e o poder de decisão concentram-se
no núcleo (espaço masculino). Ao núcleo, corresponde a casa-grande como símbolo
desse poder, de acordo com a síntese oferecida por Freyre: “donos das terras. Donos dos
homens. Donos das mulheres. Suas casas representam esse imenso poderio feudal.”
(2013, p. 38). Além disso, nesse espaço privado era onde o senhor, na condição de
patriarca, detinha seu poder e enclausurava sua esposa ou filha, já que o espaço público,
da rua, era destinado à circulação dos homens e das mulheres negras, somente.
Enfim, nesses romances, quando as mulheres são retratadas de forma diferente
do que era o padrão imposto pela sociedade patriarcal, esta alteração resulta no
sofrimento das figuras femininas, que acabam arcando com as consequências de seus
presumidos atos impróprios, que servem de exemplo para as leitoras femininas. Isso
acontece com a personagem Rosalina, que ao final da obra, aparece enlouquecida, pois
rompeu com os padrões ideologicamente corretos classificados para as mulheres de um
momento histórico brasileiro, quando as marcas da ordem patriarcal ainda estavam
excessivamente presentes. Evidencia-se, portanto, que esse fim trágico pode revelar de
certa forma a intenção do autor em retratar a mulher brasileira de fins do século XIX e
os primeiros decênios do século XX, bem como as condições a que eram submetidas,
deixando claro a decadência que a classe senhorial enfrentava no período retratado nas
obras e afirmando, de certa forma, a permanência de padrões que regem e preconizam o
comportamento da mulher até hoje.
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