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Algumas mulheres de Autran Dourado Ivonete DIAS 1 Letycia Fossatti TESTA 2 Marcos Hidemi de LIMA 3 Resumo Este estudo visa analisar algumas personagens femininas de três romances de Autran Dourado: Ópera dos Mortos (1965), Lucas Procópio (1985) e Um Cavalheiro de Antigamente (1992), focando nos padrões e comportamentos que a mulher da época colonial brasileira, branca e de outra etnia, deveria desempenhar. Diante disso, verificar- se-á a presença da ordem patriarcal, que subjugava as mulheres ao poder do homem, assim como, serão relacionadas as definições de núcleo e nebulosa, propostas por Roberto Reis em A Permanência do Círculo (1987), que servirão para situar os personagens, sendo o homem, figura do núcleo e a mulher, considerada até então inferior ao homem, pertencente à nebulosa. Essas considerações levarão a compreender como a mulher era um ser silenciado, circunscrito ao poder do homem e preconizada pela sociedade em que vivia. Palavras-chave: Personagens femininas; Ordem patriarcal; Núcleo e nebulosa. Abstract This study aims at analyzing some female characters of three novels of Autran Dourado: Ópera dos Mortos (1965), Lucas Procópio (1985) and Um Cavalheiro de Antigamente (1992), focusing on the patterns and behaviors that women from the Brazilian colonial period, white or of another ethnicity, should have. Therefore, the presence of the patriarchal order that subjugated the women to the power of the man will be verified, as well as the definitions of “núcleo” (nucleus) and nebulosa 1 Graduada em Licenciatura em Letras Português-Inglês. Universidade Tecnológica Federal do Paraná, Campus de Pato Branco, CEP: 85503-390, Pato Branco, Paraná. E-mail: [email protected]. 2 Graduada em Licenciatura em Letras Português-Inglês. Universidade Tecnológica Federal do Paraná, Campus de Pato Branco, CEP: 85503-390, Pato Branco, Paraná. E-mail: [email protected]. 3 Professor Orientador Doutor em Letras pela Universidade Estadual de Londrina, CEP: 86057-970, Londrina, Paraná. E-mail: [email protected].

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Algumas mulheres de Autran Dourado

Ivonete DIAS1

Letycia Fossatti TESTA2

Marcos Hidemi de LIMA3

Resumo

Este estudo visa analisar algumas personagens femininas de três romances de Autran

Dourado: Ópera dos Mortos (1965), Lucas Procópio (1985) e Um Cavalheiro de

Antigamente (1992), focando nos padrões e comportamentos que a mulher da época

colonial brasileira, branca e de outra etnia, deveria desempenhar. Diante disso, verificar-

se-á a presença da ordem patriarcal, que subjugava as mulheres ao poder do homem,

assim como, serão relacionadas as definições de núcleo e nebulosa, propostas por

Roberto Reis em A Permanência do Círculo (1987), que servirão para situar os

personagens, sendo o homem, figura do núcleo e a mulher, considerada até então

inferior ao homem, pertencente à nebulosa. Essas considerações levarão a compreender

como a mulher era um ser silenciado, circunscrito ao poder do homem e preconizada

pela sociedade em que vivia.

Palavras-chave: Personagens femininas; Ordem patriarcal; Núcleo e nebulosa.

Abstract

This study aims at analyzing some female characters of three novels of Autran

Dourado: Ópera dos Mortos (1965), Lucas Procópio (1985) and Um Cavalheiro de

Antigamente (1992), focusing on the patterns and behaviors that women from the

Brazilian colonial period, white or of another ethnicity, should have. Therefore, the

presence of the patriarchal order that subjugated the women to the power of the man

will be verified, as well as the definitions of “núcleo” (nucleus) and nebulosa

1 Graduada em Licenciatura em Letras Português-Inglês. Universidade Tecnológica Federal do Paraná,

Campus de Pato Branco, CEP: 85503-390, Pato Branco, Paraná. E-mail: [email protected].

2 Graduada em Licenciatura em Letras Português-Inglês. Universidade Tecnológica Federal do Paraná,

Campus de Pato Branco, CEP: 85503-390, Pato Branco, Paraná. E-mail: [email protected].

3 Professor Orientador Doutor em Letras pela Universidade Estadual de Londrina, CEP: 86057-970,

Londrina, Paraná. E-mail: [email protected].

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(nebulosus), proposed by Roberto Reis in A Permanência do Círculo (1987), which

served to place the characters. The man is the figure of “núcleo” and the woman, until

then considered inferior to men, belonging to “nebulosi”. These considerations lead to

understanding how the woman was a silenced being, limited to the power of the man

and advocated by the society in which they lived.

Keywords: Female characters; Patriarchal order; Núcleo and nebulosa.

1. Considerações iniciais

O presente artigo tem por objetivo analisar a representação do papel feminino

imposto pela sociedade em três romances de Autran Dourado (1926-2012): Ópera dos

Mortos (1965), Lucas Procópio (1985) e Um Cavalheiro de Antigamente (1992). Sendo

o foco desta pesquisa, a representação do papel feminino das personagens Isaltina,

Joana, Adélia, Genuína, Quiquina e Rosalina.

As obras a serem analisadas tratam da saga da família mineira Honório Cota,

iniciando-se no romance Ópera dos Mortos (1965), que embora seja o primeiro da

trilogia, nele a personagem principal é a última geração desse clã. Este romance narra a

história de Rosalina, filha de João Capistrano Honório Cota e neta de Lucas Procópio

Honório Cota. A segunda obra, de acordo com a sequência proposta pelo escritor, é

Lucas Procópio (1985), e centra-se na história da primeira geração Honório Cota, nas

viagens e nos problemas enfrentados para conseguir manter a grandeza e a honra do

nome da família. O terceiro e último livro, Um Cavalheiro de Antigamente (1992),

retrata a história do filho de Lucas Procópio e pai de Rosalina, João Capistrano Honório

Cota, além de sua mãe, Isaltina. Vale ressaltar que o autor define uma sequência de

leitura, como já mencionado, intercalando as três histórias. Todavia, a análise será

realizada dividindo as personagens entre mulheres brancas: Isaltina, Genuína e Rosalina

e mulheres negras: Joana, Adélia e Quiquina.

Essa trilogia, como fonte de pesquisa sobre a condição e a representação da

mulher na época colonial brasileira, fornece um importante campo de análise,

principalmente com relação à ordem patriarcal, tão marcante no período histórico

retratado pelas obras. Além disso, é possível verificar a condição da mulher, branca e de

outras etnias, e o papel de sujeição por elas desempenhado, fruto de ideologias presentes

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nas famílias e na sociedade do momento em que transcorrem as narrativas, definindo o

espaço que cabia à mulher ocupar e as atitudes ideologicamente corretas que deviam

desempenhar, como esposa, mãe, filha, escrava etc. Com isso, será analisado também

como esta figura submissa buscou, de diversas formas, “escapar” dessa condição

inferior e de dominação em que se encontrava.

Na abordagem dos romances acima, serão empregados dois termos de Roberto

Reis, presentes em A permanência do círculo (1987): núcleo, no qual se concentram a

força e o poder de decisão (espaço masculino), e nebulosa, que se refere à margem ou à

periferia. Além disso, este artigo se vale das discussões sobre a ordem patriarcal

empreendidas por Gilberto Freyre, em Casa-grande & senzala (1933). Na esteira da

ótica de Freyre, também se utiliza nesta análise duas definições cunhadas em O

canibalismo amoroso (1984), de Affonso Romano de Sant’Anna: mulher esposável e

mulher comível, bem como outras leituras que complementarão as observações

concentradas nos três autores acima listados.

1.1 Algumas definições

Os termos núcleo e nebulosa relacionam-se a uma sistematização de

personagens observada por Reis. O objetivo do autor é mostrar, sobretudo na narrativa

oitocentista, espraiando-se, porém, pela literatura produzida no século XX, o modelo

hierárquico senhor-escravo, branco-índio, fazendeiro-sertanejo, homem-mulher, pai-

filho, masculino-feminino, predominante nos textos literários.

Reis afirma que a sociedade obedece a uma constituição hierárquica,

predominantemente masculina, que se manifesta no binômio

patriarcalismo/paternalismo. Dessa forma, o ensaísta estabelece uma tipologia de

personagens por meio das terminologias núcleo e nebulosa, correspondentes aos que

detêm o poder e aos despossuídos. De acordo com esse autor, “No centro - núcleo -,

dominando, o senhor/o homem/o pai/o branco/o fazendeiro; na periferia – nebulosa -

dominado, o escravo/a mulher/o filho/o índio/o sertanejo (e poderia incluir o gaúcho, o

jagunço)” (REIS, 1987, p. 44, grifos do autor).

Esse questionamento à ordem patriarcal será o esteio sobre o qual se

fundamenta a análise dos romances de Autran Dourado, visto que tais obras encaixam-

se na linha de raciocínio proposta por Reis, uma vez que enfatizam a vertente

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memorialística enquanto reação de seus autores à bancarrota do mundo patriarcal.

Aproveitados nessa pesquisa, as três obras recebem leitura em clave diferente, já que a

tese sustentada é a de o relacionamento afetivo entre elementos pertencentes a classes

sociais diferentes – do núcleo e da nebulosa – não se realiza plenamente.

Ainda conforme o raciocínio de Reis, “Nesse quadro senhorial e patriarcal,

trespassado pela hierarquia, caberia situar a mulher, o mais das vezes sujeitada ao

homem, visto ser esta sociedade, focalizada pela Literatura, eminentemente masculina”

(REIS, 1987, p. 32), noutras palavras, mesmo pertencendo à classe senhorial, núcleo, a

mulher tinha papel subserviente ao senhor, permitindo inferir que ela, de certa forma,

pertença à nebulosa.

Poder-se-ia mesmo afirmar que, nas obras analisadas, ainda persistem as

figuras do senhor ou patriarca, enquanto representações do núcleo. Vale lembrar que

Reis utiliza com frequência, no lugar da metáfora do núcleo, o vocábulo centro como

um sinônimo. Tal ideia de espaço central pressupõe também que esse poder é emanado

de dentro, ao passo que a nebulosa é algo que vem de fora. Obviamente, a velha ordem

patriarcal fundada na incontestável figura masculina procurou remodelar-se com um

pouco do verniz modernizante da sociedade. Entretanto, por detrás dessa aparente

modernidade, continuavam a existir homens ainda afeitos aos velhos códigos da

prepotência, do mandonismo e da violência.

Verifica-se que os integrantes da nebulosa possuem características exógenas e

são claramente identificados como estrangeiros ou estranhos em relação aos ocupantes

do núcleo. Portanto, é possível verificar que as personagens periféricas dos romances

aqui estudados de Autran Dourado buscam distinguir-se dessa condição servil,

aproximando-se dos representantes do poder, visto que “a vizinhança do centro

dominante eleva socialmente, ao passo que a distância inferioriza” (REIS, 1987, p. 33,

grifo do autor).

Seguindo este mesmo raciocínio, é possível relacionar algumas considerações e

termos desenvolvidos por Affonso Romano de Sant’Anna, em O canibalismo amoroso

(1984), sobre mulher esposável e mulher comível. A primeira remete à mulher branca,

com uma boa educação, de condições sociais similares ao do patriarca, silenciada, que

dará um status social ao seu esposo e que servirá primordialmente para a procriação. Do

outro lado, há a mulher comível, configuração de um ser inferiorizado, vivendo a

condição aviltante de cativa, circunscrita ao espaço do pecado, que é devorada

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sexualmente pelo seu senhor, que julga que ela serve para satisfazer seus desejos,

fazendo do corpo dela o que melhor lhe aprouver. Tanto a mulher esposável quanto a

mulher comível pertencem à nebulosa, porém a primeira, por ser branca, considerada

mais “distinta” e habitante da casa-grande, junto com a figura do patriarca, está próxima

do núcleo, e a negra ou mulata só consegue essa aproximação, de certa forma, ao

relacionar-se com seu senhor, figura pertencente ao centro ou núcleo.

Era na casa-grande que a ordem patriarcal se estabelecia, ambiente em que a

figura central masculina vivia, ditava suas ordens e empregava seu domínio. Segundo

Freyre (2013, p. 38), a casa-grande e seus arredores, da qual faz parte a senzala também,

foi o espaço da concretização do poder masculino, pois “A força concentrou-se nas

mãos dos senhores rurais. Donos das terras. Donos dos homens. Donos das mulheres.

Suas casas representam esse imenso poderio feudal.” É por meio desse poder que o

homem, como figura suprema da família, exercia o patriarcalismo e com isso, subjugava

as mulheres (sejam elas de que etnia fossem), escravos, agregados, homens livres

pobres, entre outros que giravam em torno do poderio desses homens, que figuravam no

centro da família e da sociedade da época.

2. Mulheres brancas: Isaltina, Genuína e Rosalina

Isaltina

A personagem Isaltina de Almeida Sales é retratada em Lucas Procópio (2002)

e em Um Cavalheiro de Antigamente (2001). No primeiro romance, ela é representada

como a filha caçula de Cristino de Almeida Sales, o Barão das Datas, que, após sua

saída da política e a má administração de suas terras, leva a família à ruína financeira.

Em virtude disso, o pai, na condição de patriarca, negocia o casamento da filha com o

bruto Lucas Procópio, com o objetivo de buscar amenizar a falência familiar. Podemos

afirmar que a mulher branca era inicialmente submetida aos poderes do pai e depois era

transformada numa moeda de troca ou num negócio realizado entre dois homens: o pai e

o futuro marido.

Em Lucas Procópio (2002) descreve-se que Isaltina “teve a melhor educação

que se podia dar a uma moça que ia frequentar o paço imperial e os melhores salões do

Rio de Janeiro” (DOURADO, 2002, p.103). Além de sua educação literária, teve

também a musical, travando conhecimento com composições de Mozart e Schumann.

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Assim como as protagonistas de obras românticas, ela utilizava da literatura para

escapar da realidade e conhecer um mundo novo, mas mesmo estas viagens literárias

eram carregadas da culpa impregnada pela sociedade patriarcal.

Nunca porém o coração de Isaltina bateu tão forte como quando leu o

romance de Flaubert. Quantas horas maravilhosas, quantas emoções

sublimes. Chorou como poucas vezes com a infelicidade de Ema (sic)

Bovary, sofreu com ela precocemente as dores do amor malcontrariado. Se

enrubesceu de ardências e repuxões no ventre com a cena de amor dentro de

um fiacre, em Ruão. Teve, por conta própria, de se confessar e fazer muitas

penitências, toda hora lhe vinha imperioso o calor úmido (DOURADO, 2002,

p.104).

Isaltina era uma mulher branca, estudada e, embora sua família estivesse em

uma ruína financeira, o nome, em especial do patriarca da família, Barão das Datas, era

muito respeitado, e isso auxiliaria em arrumar um bom casamento. Todavia, antes de ser

esposada por Lucas Procópio, ela sofreu duas decepções amorosas, uma com Alberto,

Visconde de Bauru, com quem mantivera um relacionamento através de cartas que

foram cada vez menos constantes até desaparecem por completo, e outro com Miguel,

que acabou casando-se com sua irmã Lucinda. Foi após estas decepções que apareceu

um cavaleiro em Diamantina, que segundo ela, era velho e feio, mas o pai insistia em

que o conhecesse, por este ser um homem rico e eles estarem vivendo uma situação

financeira difícil (DOURADO, 2002, p. 117).

Pode-se observar a partir do surgimento do cavaleiro Lucas Procópio o que

bem afirmam Castello Branco e Brandão (1989) sobre as figuras femininas:

... só tem possibilidade de ocupar um espaço dentro da sociedade em que

vivem: aquele que lhes é reservado pela expectativa criada por uma ideologia

autoritária e patriarcal. A nenhuma delas é possível sair de seu espaço

fechado para investir seu desejo num mundo mais amplo do trabalho e da

realização pessoal (CASTELLO BRANCO e BRANDÃO, 1989, p. 55-56).

No caso de Isaltina, essa ideologia autoritária chegou ao extremo quando o pai

apontou uma arma para a filha, obrigando-a a casar com Lucas Procópio:

Ela voltou para sala, deu de cara com o pai. O cabelo desgrenhado, o olhar

frio e duro, nunca o vira tão transtornado. Quando os olhos dela baixaram,

viu na mão do pai um revólver. Isaltina hesitou, não sabia qual a melhor

decisão. O estranho é que não tinha medo, olhava friamente a arma agora

apontada para ela. Tudo nela era raciocínio lógico, fatal; silogismos difíceis

do coração aceitar. Num átimo ela variava de silogismo a silogismo.

Premissa maior, premissa menor, logo – devia ceder; variava as premissas,

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logo – devia morrer. E lhe passavam pela mente, na velocidade de um raio, as

palavras honra, dignidade, morte. (DOURADO, 2002, p.123).

O patriarcalismo neste romance possui uma raiz tão profunda na mulher, que

mesmo após ser ameaçada pelo pai, ela continua amando-o sem nenhuma mágoa, fato

este, que comprova o que Carla Bassanezi Pinsky (2012) afirma sobre a criação das

mulheres no Brasil, sendo estas ensinadas a viverem para constituir família, tornando

vocação prioritária a maternidade e a vida doméstica, marcas estas indicadoras de sua

feminilidade (PINSKY, 2012, p. 608-609).

Em alguns fragmentos de Lucas Procópio (2002) é possível perceber em

Isaltina uma mulher amedrontada, o que reflete sua condição de submissão à figura do

patriarca, representada tanto pelo pai como pelo marido. De acordo com Gilberto

Freyre, “as meninas criadas em ambiente rigorosamente patriarcal (...) viveram sob a

mais dura tirania dos pais – depois substituída pela tirania dos maridos.” (FREYRE,

2013, p. 510). Exemplo disso ocorre logo após a festa de casamento da personagem, em

sua temida lua de mel: “No escuro, era um bicho trevoso, enrolado sobre si mesmo. Na

posição fetal, se protegia de braços, de forças invisíveis e destruidoras.” (DOURADO,

2002, p. 126).

Outro momento que marca a obra e revela o preconceito contra a mulher está

no nascimento da primeira filha do casal, fato que não agradou nem um pouco Lucas

Procópio, que esperava um filho homem, sendo que já tinha até nome para o suposto

filho: – “O rebento se chamaria João Capistrano, um nome másculo, sonoro.”

(DOURADO, 2002, p. 137) –. Com isso, houve o distanciamento e a antipatia em

relação à mulher e à filha: “Se tivesse sido homem o rebento, é capaz de que as coisas

teriam vindo a ser outras” (DOURADO, 2002, p. 138). Tanto o medo excessivo citado

no parágrafo anterior quanto esta antipatia criada por Lucas Procópio evidenciam alguns

dos aspectos gerados pelo patriarcalismo nesta família.

No decorrer da obra, surge um envolvimento entre Isaltina com o padre

Agostinho, uma mistura de dois seres frágeis, sujeitos portanto pertencentes à nebulosa

de que trata Reis. Ela, jovem, carente, sonhando com o príncipe dos romances lidos e

ele, repleto de curiosidade e encantado com a beleza e sensibilidade dela. O romance

entre eles, embora Lucas Procópio só suspeitasse, resultou em uma surra no padre e sua

fuga, sem se despedir de Isaltina.

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Esse envolvimento com o padre da comunidade só foi possível porque às

mulheres da época era permitida uma relação mais próxima com padres e representantes

religiosos, haja vista que da mulher branca esperava-se que fosse um exemplo ideal de

religiosidade. A visita dos padres também era permitida e frequente nas casas-grandes

da época, por isso, em sua solidão e descontentamento com o casamento, foi com o

padre Agostinho que Isaltina pôde desabafar e falar sobre literatura, música e assuntos

que não interessavam ao rude marido. Dessa amizade, surgiu um relacionamento quase

idealizado, que gerava culpa à esposa devido à quebra dos padrões esperados pela

sociedade, mas que ao mesmo tempo, fazia-a feliz por encontrar um outro modo de

viver a vida, um relacionamento parecido com os dos romances que lia.

Este fato ressurge em Um Cavalheiro de Antigamente (2001), quando João

Capistrano, já homem feito, casado, recebe uma carta em casa falando do romance entre

o padre Agostinho e sua mãe, o que resulta em uma busca obsessiva pela verdade,

demonstrando, mesmo muito tempo depois, a sua grande luta interna para manter o

nome da família e a honra de sua mãe, como mulher, intactos.

Genuína

Aludida na obra Um cavalheiro de antigamente (2001) como Genuína e em

Ópera dos Mortos (1972) como Dona Genu, essa é uma das personagens que poucas

vezes aparece na trama, retratada como a esposa de João Capistrano Honório Cota.

Genuína é a representação da mulher branca, adequada aos padrões da sua época: “Ela

não é só uma moça muito bonita e educada, disse Isaltina, mas de uma família distinta”

(DOURADO, 2001, p. 39).

Esta personagem reflete a mulher silenciada, consciente e submissa em sua

condição inferior ao homem no poder de decisão, segundo Castello Branco e Brandão

(1989), heroína literária que acaba se tornando um exemplo a seguir, pois é totalmente

subjugada ao poder do marido, patriarca da família. Sua submissão perante o marido é

muito nítida quando, após João Capistrano receber a carta de acusação contra sua mãe, e

se mostrar totalmente depressivo, ao invés de ela conversar com o marido, busca ajuda

da sogra e de um médico:

Vá de noite lá em casa, disse Genuína. Mas não diga que fui eu que convidei.

A senhora também, dona Isaltina. Eu irei com o Sílvio, disse Isaltina. Com

ele não, por favor, disse Genuína. Conte a ele o que se passou, mas diga que a

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presença dele pode irritar João. Seria muita gente, a senhora sabe como ele é.

(DOURADO, 2001, p. 44).

Como se pode depreender da discussão acima, ela serve como exemplo de

mulher esposável, conforme definição de Sant’Anna (1984), que serviu para dar certo

status ao marido, para a procriação e para cuidar da família.

Embora o homem fosse o patriarca, o status que ele possuía dependia das

mulheres que estavam a sua volta, sua esposa, mãe, irmã, tia e até mesmo as serviçais,

pois, a imagem do homem público era o resultado do cuidado dessas mulheres. Este

dever de cuidar, que era exigido da mulher, também era reforçado pelos médicos, que

incentivavam os afazeres domésticos ao invés do ócio.

Considerada base moral da sociedade, a mulher de elite, a esposa e mãe de

família burguesa deveria adotar regras castas no encontro sexual com o

marido, vigiar a castidade das filhas, constituir uma descendência saudável e

cuidar do comportamento da prole. (D’INCAO, 2012, p. 230).

Além do cuidado com o marido, a educação e o comportamento da prole

também eram de responsabilidade da mulher, e por isso Genuína tentou moldar

Rosalina e transmitir a ela alguns dotes femininos, como a confecção de flores em

tecido e papel e aulas de piano, habilidades que seriam úteis para um possível

casamento:

Foi Dona Genu, fez questão que ela aprendesse. Um japonês Seu Tamura, ela

nunca tinha visto um japonês na sua vida, quem ensinou. Ele ficou pouco

tempo na cidade, um mês só. Mas deu tempo de aprender, tinha que aprender

depressa. Mamãe tinha dessas coisas. Queria que ela fosse prendada, pensava

que ela ia se casar. O piano – nunca mais tocou piano desde que sua mãe

morreu, desde que tudo aquilo começou a acontecer – as lições de piano com

dona Olímpia, as flores de pano. (DOURADO, 1972, p. 29-30).

Percebe-se que Genuína possuía todos os atributos necessários para uma

mulher branca da época, que também foram transmitidos de alguma forma à Rosalina,

sua filha.

Rosalina

Em Ópera dos Mortos (1972), a personagem principal é Rosalina, filha de João

Capistrano e neta do perverso Lucas Procópio. Nesse livro, é narrada, em partes, a triste

história da tradicional família Honório Cota, que viveu em uma época de grande

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decadência em Minas Gerais, o que influenciará diretamente a vida e o destino da

família.

Rosalina é a última da geração Honório Cota, sendo também a única filha que

vingou do casamento de João Capistrano Honório Cota e de Dona Genu: “Nem de

longe dona Genu e o coronel Honório se permitiam pensar que podia ser um menino-

homem, varão, para continuar aquela linhagem, que era o que ele mais queria.”

(DOURADO, 1972, p. 18). A menina recebeu uma boa educação, porém conservou os

mesmos traços das famílias senhoriais da época e acabou carregando para si o mesmo

ressentimento do pai – por questões da política local – contra o restante da cidade. Após

a morte dos pais, Rosalina se trancou no sobrado da família junto com sua ama

Quiquina – escrava muda que ajudou a criar a menina – e nunca mais saiu. Ocupava seu

tempo fazendo flores de papel e de pano, que “dona Genu, fez questão que ela

aprendesse.” (DOURADO, 1972, p. 29), pois esses eram alguns dos poucos ofícios que

as mulheres podiam desempenhar. Com a solidão da personagem, o sobrado adquire no

seu silêncio e sua imponência um aspecto de templo sagrado, onde não circulam a gente

da pequena cidade.

Nesse sentido, pode ser constatado que a filha educada, submetida aos

costumes e padrões ditados pela família e pela sociedade da época, vive trancafiada em

casa, que era o espaço privado prioritariamente da família, que cabia as mulheres

respeitáveis ocuparem. Ao ocupar-se da importância da questão espacial nesse

romance, Reis (1987, p. 110) observa que “O sobrado seria um templo, onde se procura

preservar a exemplaridade dos modelos ancestrais (...), ao passo que a cidade se

configura como mudança, lugar do social”. Assim, evidencia-se que o confinamento de

Rosalina resulta de certa coerência à ordem patriarcal, ao sistema de dominação

masculina e a uma postura hierática da jovem, tornando impossível que a moça se

desprendesse desse impasse e deixasse de seguir o que o pai considerava correto,

mesmo que ele e seus ideais já estivessem mortos.

Além disso, percebe-se no decorrer da leitura da obra que – em conformidade

com a educação que recebera e as expectativas de seu meio – ela possuía um desejo

íntimo de subir ao altar, já que “o casamento, porta de entrada para a realização

feminina, era tido como ‘o objetivo’ de vida de todas as jovens solteiras” (PINSKY,

2012, p. 610). Esse também era o desejo de qualquer pai, como patriarca, que tinha uma

filha, pois essa era tida como um estorvo, capaz de arruinar a reputação de uma família

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se não seguisse a ordem estabelecida pelo patriarcalismo. Na trama Ópera dos mortos

(1972), Rosalina nutre um desejo idealizado de casar-se com Emanuel, um jovem pelo

qual o pai possuía admiração, filho de Quincas Ciríaco, amigo seu. Em vários

momentos da obra, Rosalina mostra arrependimento por não ter se casado com o moço.

Logo após a morte de seu pai, ela reflete sobre isso em seu quarto:

Engraçado eu casar. Por que engraçado? eu bem que podia casar. Emanuel

bem que quis. Não agora, antes, quando nada ainda tinha acontecido. Papai

fazia planos pra mim. Depois me esqueceu, se entregou àquela maluqueira

(DOURADO, 1972, p. 30).

Noutra cena, enquanto aguardava impaciente por Quiquina, que havia saído

para vender flores, Rosalina lembrava-se como havia sido sua primeira comunhão. Por

meio dessas reminiscências, ela estabelecia uma relação com a possibilidade de

matrimônio entre ela e o filho de Quincas Ciríaco: “Uma noivinha, parece mesmo uma

noivinha. Emanuel bem que quis, ela não era uma enjeitada” (DOURADO, 1972, p.32).

Entretanto, por se trancar para tudo, Rosalina não realiza esse anseio e, no auge

de sua solidão, acaba envolvendo-se com uma pessoa de classe inferior a dela, Juca

Passarinho, um aventureiro e viajante que perambulava cidades sem destino algum, que

foi recebido no sobrado como um mero empregado e vai acabar desfrutando

sexualmente da última descendente dos Honório Cota. Essa ação nos leva a

compreender que mesmo a personagem sendo uma mulher educada dentro dos moldes

esperados, que a levam a ser considerada uma mulher esposável, figura, em alguns

momentos, como uma mulher que tem desejos sexuais e que busca satisfazê-los,

características da mulher comível, descrita por Sant’Anna (1984).

Diante disso, verifica-se que nesse relacionamento entre Rosalina e Juca

Passarinho, que é “o falador que vem de fora, que pertence a outro grupo social, que não

é da família, oriundo do profano” (REIS, 1987, p. 112), há uma fragmentação da

personagem feminina, pois esta, representante do sagrado, como mulher branca e bem

educada, funde-se com o profano. Da mesma forma, há uma grande dualidade de

características da personagem ao relacionar-se com um ser de classe inferior a dela, pois

era “De noite Rosalina, de dia dona Rosalina. Não buscava mais unir no mesmo ser as

duas figuras, juntar as duas metades.” (DOURADO, 1972, p. 165). Assim, durante o dia

“era mesmo uma menina, uma menina pura e inocente.” (DOURADO, 1995, p. 165) e a

noite virava a mulher que se realizava sexualmente com Juca Passarinho.

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Percebe-se que a personagem mulher, talvez por não ter a figura do patriarca ao

seu lado e por buscar preservar a honra da família, não assume seu relacionamento com

um ser de classe inferior a dela, como faziam os senhores do engenho que

relacionavam-se com suas escravas. Além disso, mesmo buscando esconder este

relacionamento, que em nenhum momento aparenta ser afetivo, a personagem quebra os

padrões da época e representa, junto com a deterioração do sobrado, a decadência das

famílias senhorias da época.

3. Mulheres negras: Joana, Adélia e Quiquina

Joana

A escrava Joana é retratada nas obras Lucas Procópio (2002) e Um Cavalheiro

de Antigamente (2001). Isaltina ganhou-a de presente quando nasceu e, como perdeu

sua mãe cedo, foi praticamente criada pela negra (DOURADO, 2002, p.104). Esta

personagem representa “A figura boa da ama negra que, nos tempos patriarcais, criava o

menino lhe dando de mamar, que lhe embalava a rede ou o berço, que lhe ensinava as

primeiras de português errado” (FREYRE, 2013, p. 419). Agindo de acordo com o

esperado dos ocupantes da nebulosa, Joana era o tipo de pessoa que simplesmente

aceitava a sua condição servil, mesmo com a oportunidade de ser alforriada. Em uma

discussão entre Lucas Procópio e Isaltina, na qual essa tentava alforriar todos os negros

da fazenda, houve o seguinte diálogo entre as duas mulheres:

Joana, estou aqui dizendo para o coronel que vou alforriar você. Pra quê,

Nhanhá? Na minha idade, o que eu vou fazer com alforria. Teria de sair por

aí catando emprego e passando pior do que passo aqui. Alforria, só se for pra

eu ficar trabalhando aqui com Nhanhá. Pois eu vou lhe alforriar, disse

Isaltina. Vai continuar na mesma, Nhanhá, vou ser sempre cativa de vosmecê

(DOURADO, 2002, p.133).

Justamente por estar próxima ao centro irradiador do poder e viver uma vida

cheia de privilégios em relação aos demais escravos que viviam na senzala, a escrava

Joana não encontra vantagens em ser livre, haja vista que além da idade avançada, o

negro na época, não dispunha de espaço e nem de oportunidades de trabalho fora do

ambiente da casa-grande.

Como já mencionado, Joana é uma personagem que, mesmo sendo negra, está

próxima ao núcleo, pois neste período os serviços mais íntimos da família eram

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delegados a escravos escolhidos “a dedo”, que subiam da senzala para a casa-grande e

eram considerados “Indivíduos cujo lugar na família ficava sendo não o de escravos

mas o de pessoas da casa.” (FREYRE, 2013, p. 435). Ademais, Joana possui um

relacionamento muito conexo e até mesmo afetivo com Isaltina, o que a faz receber

alforria, ganhar presentes e participar de momentos decisivos na vida de sua senhora,

como quando a auxiliou ao esconder o envolvimento da sua sinhá com o padre

Agostinho: “Depois Joana perguntou o que Isaltina queria dela. Silêncio, disse Isaltina,

boca presa. E por acaso Nhanhá acreditou que eu ia falar?! Pensou isso de mim?! Quem

acha que eu sou?!” (DOURADO, 2002, p.172), ou quando auxiliou na reaproximação

de João Capistrano e sua mãe, indo visitá-lo na cadeia e defendendo sua Nhanhá para o

filho.

Adélia

A mulata Adélia, retratada principalmente no romance Lucas Procópio (2002),

é o tipo de mulher que Sant’Anna (1984, p. 22-23) define como a mulher para ser

comida, que servirá, além do trabalho escravo, para satisfazer os desejos eróticos de seu

senhor. Essa mulher, nos padrões estabelecidos do período, “diverge bastante da virgem

assexuada, da irmã e do anjo loiro, que são as representativas de inúmeras mulheres

brancas” (SANT’ANNA, 1984, p. 27), ou seja, as mulheres esposáveis.

Após o nascimento da primeira filha de Lucas Procópio e Isaltina, ou seja, da

primeira “decepção” com a esposa, ele voltou a procurar e se relacionar com a escrava,

com quem tinha um relacionamento ainda antes do seu casamento, mas que por conta

do matrimônio, distanciou-se da mulata. Segundo o personagem, Adélia “...não possuía

nenhuma sutileza ou elaboração amorosa, mas lhe dava tudo o que pedia a sua natureza

bruta de homem. Era uma mulata quente, fogosa e arteira como poucas.” (DOURADO,

2002, p. 138). Adélia é uma escrava alforriada de Lucas Procópio, com quem ele

mantém uma relação de satisfação sexual, porém, ao contrário do que se imagina, a

mulata se encontra “‘feliz’ dentro do sistema de dominação” (SANT’ANNA, 1984, p.

44), já que seu “corpo passa a ser moeda de ascensão social” (SANT’ANNA, 1984, p.

44). Dessa forma, ao incitar e satisfazer os desejos e anseios sexuais de seu senhor e/ ou

feitor, ela conseguiu sua liberdade e vive uma vida boa na cidade, sendo sustentada por

ele.

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Estigmatizada e aviltada, ela representa a personagem que tem o corpo como

seu único objeto de ascensão social e é tida como sedutora, pois, conforme observa

Sant’Anna, ela utiliza seu corpo para seduzir seu senhor e, assim, ter certos privilégios

diante dos que pertencem à mesma situação hierárquica que ela. Isso se explica quando

Sant’Anna afirma que a mulata “enquanto for faceira e brejeira conseguirá, através da

docilidade, transformar-se de escrava em rainha. E aí a sujeição e a sedução se

mesclam.” (SANT’ANNA, 1984, p. 41, grifos do autor).

Quando Isaltina voltou a perceber a aproximação entre Lucas Procópio e

Adélia, em um momento de discussão entre o casal, ela demonstrou o seu lado

preconceituoso, como mulher branca e educada dentro dos princípios da época,

colocando a mulata e um animal no mesmo patamar :“Entendendo a muda semáfora, ele

disse está bem, estive com outra, quer saber o nome? Ela então falou, foi cortante, uma

navalha afiada. Eu por acaso alguma vez procurei saber o nome de algum dos seus

animais?” (DOURADO, 2002, p. 140).

Essa atitude agressiva de Isaltina era comum até então, pois como as mulheres

brancas não conseguiam exercer poder sobre os homens, acabavam descontando seus

desgostos e as traições do marido nas escravas, e isso segundo Freyre (2013), era feito

de diversas formas, algumas mulheres brancas mandavam arrancar os dentes das negras,

outras mandavam surrar, perfuravam os olhos ou queimavam-nas, entre outras inúmeras

formas de castigos.

Essas escravas, por sua vez, sofriam caladas já que, além de mulheres, eram

negras, ou seja, de uma etnia considerada inferior.

Quiquina

Quiquina, escrava muda do romance Ópera dos Mortos (1972), começou

trabalhar na casa-grande para Dona Genu antes da Rosalina nascer. É a escrava

escolhida que subiu da senzala à casa-grande, para servir a família do patriarca.

Acompanhou toda a luta da Dona Genu e os filhos que não sobreviviam:

lá ia o preto Damião, seguido da menina Quiquina, levar para o cemitério,

sem nenhum outro acompanhamento, a miuçalha perdida, os frutos pecos do

ventre de dona Genu. Que graça podia achar Quiquina naqueles enterros de

anjinhos mal nascidos? (DOURADO, 1972, p. 18).

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Após a morte de Dona Genu e João Capistrano, restaram somente Quiquina e

Rosalina no antigo e tradicional sobrado da família Honório Cota. Elas faziam flores de

pano e papel que eram vendidos por Quiquina, já que Rosalina, como uma mulher

distinta, que não se interessa por negócios, nem se expõe ao espaço público à toa, não

saia do sobrado. “Quiquina cuidava da venda das flores. Quem contratava, marcava os

preços. Sabia fazer preços. Pra igreja era mais barato, nada de graça porém. Quem é que

ia deixar de pagar a pobre da Quiquina” (DOURADO, 1972, p. 31).

Embora fosse negra, Quiquina mostra-se muito próxima do núcleo, como já se

observou ao ser analisada a figura da escrava Joana. Sua importância e proximidade ao

núcleo nessa trama podem ser observadas em determinados momentos nos quais ela

dispõe do poder de decidir como agir: “Ela não se envolvia, deixava tudo por conta de

Quiquina. Onde é que Quiquina arranjava tanta freguesia?” (DOURADO, 1972, p. 31).

Esta figura retrata a negra que conseguiu certas regalias ao alcançar

proximidade com os integrantes do núcleo, já que era uma pessoa que sabia e

presenciou tudo a respeito da família Honório Cota.

4. Considerações finais

Entre as personagens femininas das três obras podemos observar semelhanças e

diferenças, como por exemplo, com Isaltina e Adélia, em que ambas representam a

relação de poder entre homem-mulher e a condição de submissão em relação ao senhor

e patriarca, que detém o poder, ou seja, configura-se na situação dessas personagens a

nítida relação hierárquica do núcleo e da nebulosa.

Além disso, é plausível afirmar que a mulher branca (esposável) tinha algumas

regalias em relação à mulher negra (comível), porém, ambas eram mulheres silenciadas,

oprimidas, humilhadas e sem direito algum, incluindo-se aí o direito de poder dispor do

próprio corpo. À mulher branca, aqui representada por Isaltina, Genuína e Rosalina, era

permitido estudar normalmente, aprender os dotes dignos (música, pintura, bordados

etc.) para uma moça, que agradariam o futuro marido. Além disso, na esfera da ordem

senhorial e patriarcal, mulheres brancas normalmente possuíam boas condições de vida,

no sentido econômico. Todavia, tais prerrogativas dependiam do cego respeito ao

marido, à submissão total a ele, aceitando tudo que ele fizesse ou determinasse.

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Diferente, porém, nessa esfera senhorial, o tratamento dispensando à mulher branca e à

negra:

se da mulher branca se exigia uma série de “atributos femininos”, que assim

definidos serviam para circunscrevê-la no espaço do ócio e não do negócio,

no que se refere a mulher de cor a situação se repete com agravantes. Além

de mulher, ela é preta. Quer dizer: escrava, subordinada duas vezes

(SANT’ANNA, 1984, p. 42).

Para melhor exemplificar, a negra, por ser escrava e mulher, torna-se mais

submetida ainda aos poderes masculinos, já que servia além dos interesses econômicos

do seu senhor, sendo seu objeto sexual. Outra característica importante das personagens

negras ou mulatas da trilogia, como Quiquina, era que essas personagens se encontrava

na condição de escrava, mas representava quase uma mãe para Rosalina, no caso ainda

de Quinquina. Ademais, cuidava dos afazeres domésticos, da cozinha, das compras

para a casa e da venda das flores feitas pela sua senhora. Dessa forma:

Mesmo no seu silêncio Quiquina fazia falta. A presença de Quiquina

mexendo pela casa, ocupada na cozinha, na horta, ajudava nas flores, era um

sinal de vida, de tempo. Quiquina para ela queria dizer que a vida continuava,

não estava morta, toda a sua vida não era um pesadelo de que nunca mais

conseguia acordar (DOURADO, 1972, p. 36).

Diante desse trecho, percebemos como a personagem Rosalina era dependente

da escrava e como esta conseguiu um espaço maior e de poder dentro da casa-grande,

que era o sobrado da família Honório Cota. Com o objetivo de exemplificar, é

importante o destaque aos termos núcleo e nebulosa. Reis assinala que “No centro ou

núcleo está a figura do senhor e patriarca, junto com os que habitam a casa-grande. Na

nebulosa ou periferia, a bem dizer, todos os restantes. [...] Efetivamente, os figurantes

do núcleo senhorial exercem domínio sobre os da nebulosa.” (1987, p. 32, grifos do

autor).

Dessa maneira, compreende-se que Rosalina encontra-se no núcleo, e quanto

mais próximo o indivíduo ocupante da nebulosa estiver do núcleo, melhor será a sua

posição social. Aí se explica o fato da servidão exagerada de Quiquina com a sua

senhora, e como ela acreditava estar em uma posição hierárquica muito mais alta em

relação aos demais escravos que viviam na cidade. Isso acontece também com a

mucama de Isaltina, Joana, que trocou sua liberdade (alforria) para continuar dentro da

casa-grande, como já foi mencionado nessa análise.

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Com as amantes de Lucas Procópio, acontece o mesmo, principalmente com

Adélia, que, ao relacionar-se com o seu senhor encontra-se mais próxima ao núcleo ou

centro e consequentemente “envida seus melhores esforços para afastar-se do escravo

(no último degrau da escala social), para distinguir-se dele.” (REIS, 1987, p. 33).

Portanto, pode-se afirmar que a família Honório Cota viveu os dois extremos

da magnanimidade. Por um lado, a ambição e o orgulho podem ser vistos no coronel

Lucas Procópio e mais tarde em Rosalina, e o seu excesso resultou em seu fracasso. Por

outro lado, a pusilanimidade pode ser vista em João Capistrano e Isaltina.

Nesses romances de Dourado, percebe-se que a identidade feminina construída

a partir da sociedade patriarcal tenta forçar o encaixe da mulher na sociedade através de

um discurso ideológico cultural, o qual era empregado em sermões nas igrejas, depois

foi utilizado pelas mães com o intuito de auxiliar as filhas a conquistar um bom

casamento e continua sendo utilizado até os dias atuais.

Acrescenta-se às observações acima o fato de poder observar-se nas três obras

analisadas esta visão de identidade feminina sob a forma de pressão social do patriarcal

sobre as mulheres – consideradas como espectadoras comuns, sempre à margem, na

periferia, na nebulosa enfim –, sendo que a força e o poder de decisão concentram-se

no núcleo (espaço masculino). Ao núcleo, corresponde a casa-grande como símbolo

desse poder, de acordo com a síntese oferecida por Freyre: “donos das terras. Donos dos

homens. Donos das mulheres. Suas casas representam esse imenso poderio feudal.”

(2013, p. 38). Além disso, nesse espaço privado era onde o senhor, na condição de

patriarca, detinha seu poder e enclausurava sua esposa ou filha, já que o espaço público,

da rua, era destinado à circulação dos homens e das mulheres negras, somente.

Enfim, nesses romances, quando as mulheres são retratadas de forma diferente

do que era o padrão imposto pela sociedade patriarcal, esta alteração resulta no

sofrimento das figuras femininas, que acabam arcando com as consequências de seus

presumidos atos impróprios, que servem de exemplo para as leitoras femininas. Isso

acontece com a personagem Rosalina, que ao final da obra, aparece enlouquecida, pois

rompeu com os padrões ideologicamente corretos classificados para as mulheres de um

momento histórico brasileiro, quando as marcas da ordem patriarcal ainda estavam

excessivamente presentes. Evidencia-se, portanto, que esse fim trágico pode revelar de

certa forma a intenção do autor em retratar a mulher brasileira de fins do século XIX e

os primeiros decênios do século XX, bem como as condições a que eram submetidas,

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deixando claro a decadência que a classe senhorial enfrentava no período retratado nas

obras e afirmando, de certa forma, a permanência de padrões que regem e preconizam o

comportamento da mulher até hoje.

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