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ALGUNS PROBLEMAS DE PROJETO OU DE ENSINO DE ARQUITETURA. Maria Lucia Malard O título que escolhi para este texto pode, de saída, receber algumas objeções. A primeira delas, eu imagino que seja a de que eu estaria sugerindo que o ensino de arquitetura se resume ao ensino de projeto. Alegariam que eu estou subordinando o ensino de arquitetura, que é uma atividade a cargo de profissionais de diversas áreas de conhecimento e detentores de variados saberes, aos problemas do projeto de arquitetura, que é uma atividade restrita aos arquitetos e urbanistas. A segunda objeção poderia ser, sem sombra de dúvida, a de que eu estou me propondo a falar tão somente do edifício, uma vez que omito a palavra urbanismo. Diriam, nesse caso, que estou ignorando o urbano ou, na melhor das hipóteses, que eu tenho uma visão limitada do nosso campo de conhecimento e ação. A terceira objeção certamente seria a de que eu estou negligenciando a tecnologia, uma vez que o título não contempla um único vocábulo que lhe lembre a existência. E isso é uma falta grave, diriam alguns. Por último — mas não por ser menos importante — seria trazida a objeção de que não se pode falar de arquitetura a partir dos problemas de projeto, sem tecer considerações sobre os problemas da história e da teoria do objeto arquitetônico. Aceito todas essas objeções, por antecipação. Agindo assim, livro-me de justificativas mal fundamentadas ou querelas corporativistas. Nem pretendo, tão pouco, ocupar o tempo dos leitores com discussões semânticas. Das figuras de linguagem ficarei apenas com as metáforas e as alegorias. Ambas para falar de arquitetura, em que pesem as objeções supostamente apresentadas e antecipadamente aceitas. Entretanto, reservo-me o direito de expor o meu ponto de vista sobre aquilo que chamo de problemas de projeto e de ensino de arquitetura, aí incluídas as respostas às possíveis objeções mencionadas. Eu as aceito para poder, em seguida, confrontá-las com alguns argumentos. Vamos a eles. Arquitetura e Urbanismo.

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ALGUNS PROBLEMAS DE PROJETO OU DE ENSINO DE ARQUITETURA.

Maria Lucia Malard

O título que escolhi para este texto pode, de saída, receber algumas objeções. A primeira

delas, eu imagino que seja a de que eu estaria sugerindo que o ensino de arquitetura se

resume ao ensino de projeto. Alegariam que eu estou subordinando o ensino de

arquitetura, que é uma atividade a cargo de profissionais de diversas áreas de

conhecimento e detentores de variados saberes, aos problemas do projeto de arquitetura,

que é uma atividade restrita aos arquitetos e urbanistas. A segunda objeção poderia ser,

sem sombra de dúvida, a de que eu estou me propondo a falar tão somente do edifício,

uma vez que omito a palavra urbanismo. Diriam, nesse caso, que estou ignorando o

urbano ou, na melhor das hipóteses, que eu tenho uma visão limitada do nosso campo de

conhecimento e ação. A terceira objeção certamente seria a de que eu estou

negligenciando a tecnologia, uma vez que o título não contempla um único vocábulo que

lhe lembre a existência. E isso é uma falta grave, diriam alguns. Por último — mas não

por ser menos importante — seria trazida a objeção de que não se pode falar de

arquitetura a partir dos problemas de projeto, sem tecer considerações sobre os problemas

da história e da teoria do objeto arquitetônico.

Aceito todas essas objeções, por antecipação. Agindo assim, livro-me de justificativas

mal fundamentadas ou querelas corporativistas. Nem pretendo, tão pouco, ocupar o

tempo dos leitores com discussões semânticas. Das figuras de linguagem ficarei apenas

com as metáforas e as alegorias. Ambas para falar de arquitetura, em que pesem as

objeções supostamente apresentadas e antecipadamente aceitas. Entretanto, reservo-me o

direito de expor o meu ponto de vista sobre aquilo que chamo de problemas de projeto e

de ensino de arquitetura, aí incluídas as respostas às possíveis objeções mencionadas. Eu

as aceito para poder, em seguida, confrontá-las com alguns argumentos. Vamos a eles.

Arquitetura e Urbanismo.

A literatura técnica é pródiga em dizeres do tipo "arquitetura e urbanismo são

indissociáveis" e "um edifício não pode ser compreendido fora do contexto urbano",

quase todos de caráter doutrinário, mas de pouca valia para o fazer. Andando em paralelo

com a doutrinação há uma prática — tanto urbanística quanto arquitetônica, seja na

produção ou no ensino — que é intensamente criticada por conter uma dissociação entre

a cidade e o edifício, entre o urbano e o arquitetônico. Critica-se o profissional que

projeta edificações por fazê-lo ignorando o urbano. Critica-se o profissional que atua no

planejamento e gestão urbanos, por fazê-lo desconsiderando o edifício. Para avaliarmos a

pertinência dessas críticas, temos que examinar o contexto em que elas ocorrem e tentar

entender os seus objetos.

Quando falamos em projeto arquitetônico sabe-se muito bem que estamos falando em

plantas, cortes, elevações, detalhes construtivos e volumetria, isto é, em elementos

gráficos representativos de um objeto que se quer edificar. Sabe-se, também, que os

projetos complementares ao projeto de arquitetura — necessários para viabilizar a

edificação — constituem-se do cálculo estrutural, dos projetos das instalações hidráulico-

sanitárias, dos projetos das instalações elétricas e de telecomunicações, dos projetos de

proteção contra sinistros e dos projetos especiais (climatização de ambientes, exaustão de

gases, condicionamento acústico e outros). Uma vez concluído, o projeto arquitetônico

pode ser construído, transformando-se numa edificação, que é um objeto a ser ocupado

para fins diversos. O mesmo raciocínio se aplica quando falamos em projeto de

urbanização de uma área. Vê-se logo uma planta dos arruamentos e do parcelamento da

área em lotes, os perfis altimétricos das ruas e seus respectivos detalhes construtivos.

Pensa-se, também, na infra-estrutura de suprimento (água, energia elétrica, gás,

telecomunicações) e esgotamento (efluentes líquidos e resíduos sólidos), com os

elementos e detalhes construtivos pertinentes. Uma vez concluído, esse projeto de

urbanização também pode ser construído, transformando-se em loteamento com ruas,

praças, passeios, sarjetas, posteamento, arborização, etc. Torna-se uma área urbanizada, a

ser ocupadas por diversas edificações. O projeto arquitetônico, que virou edifício

obedece, no seu fazer, a procedimentos metodológicos similares ao projeto de

urbanização que virou loteamento. Ambos geram produtos físicos: os espaços construídos

que vão mediar relações sociais; espaços onde o urbano vai acontecer. Os projetos desses

espaços — urbanos e arquitetônicos — são antecipações de suas existências reais. Essas

antecipações são formuladas através de desenhos projetivos e outros meios de

representação. Uma vez edificados, tanto o edifício como o loteamento passam a ter

existência própria, independentemente de estarem ou não ocupados ou habitados.

Independentemente de terem se transformado em cidade. Os edifícios e os espaços

urbanizados podem, portanto, ser pensados como objetos autônomos, com relação aos

eventos que neles ocorrem. Tanto isso é fato, que há a pré-fabricação e o projeto-padrão,

que pode ser reproduzido em diferentes contextos espaciais, para diferentes usuários. O

urbano, ao contrário, não existe apartado das pessoas e dos eventos. É um sistema

complexo de relações e que não pode ser fielmente reproduzido a partir de um projeto. As

relações complexas, que envolvem pessoas, não são passíveis de serem replicadas.

Assim, não me parece apropriado falarmos em projeto do urbano, pois estaríamos falando

da antecipação de um sistema complexo de relações. Essa antecipação haveria de ser —

necessariamente — uma simulação, um modelo (no sentido matemático do termo), uma

teoria. Jamais um projeto nos moldes em que são feitos os projetos arquitetônicos ou

urbanísticos. Os procedimentos metodológicos para a abordagem do fenômeno urbano

são, portanto, de natureza completamente diversa daqueles adotados em projeto de

arquitetura e urbanismo. O fenômeno urbano, que é um fenômeno complexo, não pode

ser compreendido parcelarmente, sob uma ótica disciplinar ou multidisciplinar, mesmo

que admita recortes disciplinares em diversas das suas manifestações.

Voltando à questão levantada no início desta seção — se arquitetura e urbanismo são

indissociáveis — poderíamos dizer que sim e que não. É possível pensarmos o edifício

como um objeto autônomo, isto é, um objeto que tem uma independência lógica com

relação ao seu uso e ao sítio no qual se assenta; também é possível pensarmos o

assentamento da mesma maneira, como demonstramos. O projeto de Belo Horizonte, de

Aarão Reis e Francisco Bicalho, é um exemplo disso. Não só ele, mas qualquer outro

projeto urbanístico de cidades e bairros.

O leitor há de entender, entretanto, que não estou fazendo a defesa desse argumento, isto

é, de que os objetos arquitetônicos e urbanísticos devam ser pensados apartados de suas

interações com os demais fatores intervenientes na cidade e na dinâmica da vida urbana.

Estou apenas argumentando que isso é possível e apontando que, tanto é possível, que

tem sido feito. Por outro lado, esse tipo de fazer tem sido severamente criticado por

arquitetos, urbanistas e planejadores urbanos, como mencionei anteriormente. Em que

pese a dura crítica, a abordagem parcelar persiste, reforçando a fragmentação do

ambiente construído contemporâneo. Creio que a melhor maneira de fazermos avançar a

abordagem metodológica no âmbito da criação dos objetos arquitetônicos e urbanísticos,

livrando-a do vício disciplinar, é nos livrarmos, também, dos enunciados falsos, do tipo

"arquitetura e urbanismo são indissociáveis" e "um edifício não pode ser compreendido

fora do contexto urbano", ou ainda "um edifício só pode ser compreendido na sua

interação com os usuários". Tomando tais enunciados como falsos, proponho que a

questão seja tratada de outra forma. Se conseguirmos clarear as conseqüências — ou

inconveniências — de se projetar um edifício como um objeto autônomo, confinado às

suas relações com os requisitos programáticos, estéticos e tecnológicos, estaremos

problematizando a questão. Caracterizado o problema, ele pode ser debulhado e

resolvido. A qualidade da solução dependerá do grau de problematização que

conseguirmos alcançar, da nossa habilidade em formular hipóteses de solução e da nossa

capacidade de avaliação crítica, no sentido de corrigir eventuais erros. Aí residem os

talentos dos arquitetos.

A arquitetura, o seu fazer e o conhecimento sobre ambos.

Apenas para efeito de análise, poderíamos considerar 3 recortes básicos no campo da

arquitetura e urbanismo:

Recorte 1 — Seria constituído dos objetos arquitetônicos e urbanísticos, que são as

edificações e os assentamentos que habitamos e que se oferecem ao nosso uso e fruição.

Esses objetos mediam as relações sociais, juntamente com os demais objetos visuais,

feitos pelo homem 1 Nem sempre são feitos por arquitetos e, na maioria dos casos, não

são mediados pelo saber arquitetônico. Tais objetos podem ter interesse para inúmeros

campos de saber, inclusive para o nosso.

Recorte 2 — Seria constituído da produção dos objetos do recorte 1, a qual se compõe de

todas atividades relacionadas ao planejamento, projeto e construção dos espaços

edificados. Essa produção é um trabalho profissional que envolve diversos saberes e

habilidades. É, portanto, um vasto campo de aplicação de conhecimentos que, pela sua

própria dinâmica, também gera os conhecimentos de que precisa para evoluir ou

tranformar-se. A produção dos objetos de arquitetura e urbanismo é uma atividade

produtiva material ou intelectual, como outras quaisquer.

Recorte 3 — Seria constituído da produção de conhecimentos sobre (1) e sobre (2). Este é

o recorte que possui mais interesse para a pesquisa acadêmica, como veremos adiante.

A pesquisa em arquitetura

A recente proliferação de programas de mestrado e doutorado em arquitetura e urbanismo

trouxe à tona a questão da pesquisa em nossa área. Essa proliferação tem se dado em

resposta à demanda, cada vez maior, de arquitetos e outros profissionais que desejam se

qualificar para lecionarem nos cursos de arquitetura e urbanismo que também têm

proliferado por todo o país. Como as dissertações e teses implicam no desenvolvimento

de um projeto de pesquisa, a discussão sobre o que seja uma pesquisa em arquitetura e

urbanismo tem surgido com força. O fato de nosso campo não ter uma tradição científica

torna essa discussão difícil e, por vezes, estéril. É como se estivéssemos conversando

numa língua que nenhum de nós domina. Assim, confundimos o vocabulário e

tropeçamos no significado das palavras, não conseguindo dar sentido aos nossos

enunciados. Isso, no entanto, não nos desmerece nem desqualifica, pois somos formados

para o exercício profissional, isto é, para fazermos projetos e planos. Até há bem pouco

tempo, a docência em arquitetura — principalmente na área de projeto — era diletante:

exercíamos a nossa prática profissional nos nossos escritórios ou no setor público (o caso

do urbanismo) e íamos às faculdades transmitir a experiência adquirida nessa prática. E

assim a reproduzimos durante anos. Como a arquitetura erudita brasileira (a arquitetura

dos grandes projetos e dos arquitetos de renome) goza de prestígio aqui e alhures, esse

modelo referenciado no exercício prático profissional tem sobrevivido.

Os professores da área de teoria e história, ao contrário dos professores de projeto,

adotaram a atividade de ensino como profissão e alguns deles se tornaram grandes

pesquisadores. Não é de se estranhar, portanto, que sejam nessa área os nossos melhores

trabalhos acadêmicos, tanto no Brasil como no exterior. A explicação da discrepância

entre as atitudes de professores de projeto e professores de teoria e história pode estar no

fato de que o ensino da história e da teoria não pode prescindir de uma atividade

intelectual intensa, que lhe dê suporte. Já a aula de projeto é, por natureza, uma análise

crítica do trabalho do estudante ou, para usar a terminologia que criamos, uma aula de

orientação. Para orientar o estudante na solução dos problemas do projeto, os professores

de projeto geralmente argumentam que a prática profissional lhes basta. Não penso assim,

embora reconheça que a prática profissional ajuda. Entretanto, a habilidade de analisar e

articular críticas é essencial num professor de projeto e precisa ser desenvolvida para

além das análises e das críticas que têm lugar na relação cliente/arquiteto. No caso do

urbanismo, este sempre teve muita afinidade metodológica com as ciências sociais,

devido ao planejamento urbano, onde o diagnóstico é peça importante na produção de

conhecimentos. Em urbanismo, conhecer quase sempre significa diagnosticar. Os

professores de urbanismo assentaram, assim, uma tradição de pesquisa onde o

conhecimento e a análise do dado se constituem num dos principais objetos da atividade

de pesquisa em urbanismo. O problema maior de falta de tradição científica é na área de

projeto. Para nós, projetistas, é muito difícil conceituar o que seja uma pesquisa que

possa ser conduzida tendo em vista a elaboração de uma dissertação de mestrado ou de

uma tese de doutorado na área de projeto. Não podemos adotar a tradição do

planejamento urbano porque, na elaboração de um projeto — não importa de que

tamanho ou complexidade — o conhecimento e a análise dos dados não são, por si só, um

produto, ou melhor dizendo, não são um produto que possa frutificar; são apenas uma

etapa indispensável ao processo de criação, à atividade projetual e só tem significado se o

projeto lhe dá seqüência.

Essa fase de conhecimento e análise dos dados para a elaboração de um projeto técnico

que é, sem dúvida, uma atividade de pesquisa, pode ser considerada, também, como a

produção de conhecimentos sobre o objeto que se projeta. Daí a confusão entre o que seja

elaboração de um projeto e desenvolvimento de uma pesquisa em projeto. Tal confusão

se estabelece porque a elaboração de um projeto técnico (para a construção de um objeto)

implica também na produção de conhecimentos relevantes e que podem ser generalizados

para além do objeto projetado. Como vemos, a linha que diferencia um projeto técnico de

uma pesquisa em projeto é extremamente tênue, podendo até passar despercebida. Mas

estabelecer tal demarcação nos parece fundamental, se o nosso propósito é o de

desenvolver conhecimentos no âmbito do projeto. Devemos assumir que existe uma

dificuldade real em se diferenciar entre o que seja uma pesquisa para se fazer um projeto

e o que seja uma pesquisa para se desenvolver conhecimento na área de projeto, pois em

ambos os casos pode ocorrer a produção de conhecimento.

A nossa visão é de que qualquer projeto de arquitetura implica necessariamente num

processo de pesquisa, independentemente de sua complexidade conceitual, funcional,

tecnológica ou plástica. O projeto começa com a existência de um problema de

arquitetura. Partimos de um problema (ou situação problema) que precisa de uma solução

arquitetônica; elaboramos hipóteses de projeto (tentativas de solução); eliminamos

aquelas que não resolvem o problema (considerados todos os seus aspectos estéticos,

tecnológicos e funcionais) e escolhemos aquela que nos parece ser a melhor. Para a

eliminação das soluções ruins (ou dos erros) nós usamos a crítica. Fazemos arquitetura

por tentativa e eliminação de erros, tal qual um cientista faz ciência 2.

Antes de elaborarmos as hipóteses de solução precisamos conhecer mais e melhor o

problema, analisando as informações sobre ele disponíveis. Ora, para analisar qualquer

informação temos, antes de mais nada, de obtê-la. E para obtê-la temos que procurá-la,

realizando uma pesquisa. Podemos então considerar que o processo de projeto é também

um processo de aquisição (ou produção) de conhecimento sobre o objeto que se projeta.

É aquisição de conhecimentos quando os dados sobre o objeto a ser projetado já são

conhecidos e disponíveis; nesse caso vamos apenas utilizá-los. É um processo de

produção de conhecimento quando o objeto ainda não foi projetado e precisa ser criado

em todos os seus contornos técnico-construtivos e funcionais; aí temos que descobrir,

antes, quais são esses contornos para podermos elaborar o projeto. Em qualquer uma das

duas situações partimos de um problema e conduzimos algum tipo de pesquisa: fazemos

levantamentos, observações, medições, ensaios e assim por diante. Entretanto, apenas

produzimos conhecimento no segundo caso, quando descobrimos, revelamos ou criamos

dados e informações até então desconhecidos e que podem ser replicados ao aplicados a

outras situações sem que se incorra em plágio. Por exemplo, se desenvolvo um sistema

construtivo para um determinado conjunto habitacional e que pode ser empregado por

outros arquitetos em outros projetos, estarei fazendo um trabalho que se enquadraria

como pesquisa e desenvolvimento tecnológico; o conjunto habitacional seria apenas um

estudo de caso a partir do qual o sistema foi concebido e no qual foi testado. Sua

replicabilidade é que o caracteriza como um produto de pesquisa e desenvolvimento. Do

contrário, seria meramente um projeto para um conjunto habitacional, um produto da

prática profissional.

O critério da replicabilidade me parece bastante adequado para diferenciar um projeto

que poderia ser aceito como objeto de pesquisa acadêmica de um projeto que seria objeto

da prática profissional e, portanto, sem interesse para a pesquisa acadêmica. Se o

conhecimento gerado pela pesquisa pode ser aplicado (ou estendido) a outros objetos

arquitetônicos (em proveito de sua qualidade técnica, estética ou utilitária), trata-se de

uma pesquisa para desenvolver conhecimento em arquitetura, ainda que ela tenha se

baseado em um estudo de caso. Se o conhecimento gerado por uma pesquisa é para

aplicação ou solução de um problema específico e único, estaremos diante de um projeto

técnico de arquitetura, uma vez que a aplicação (ou extensão) dos resultados a outros

objetos arquitetônicos estaria incorrendo em plágio.

Há de se ressaltar, no entanto, que ambos, pesquisa e prática profissional, são do interesse

do ensino de projeto: um, como produção de conhecimento; o outro, como aplicação

prática de conhecimentos produzidos.

A produção de conhecimento no âmbito do projeto de arquitetura implica

necessariamente num processo de pesquisa, pois não se produz conhecimento sem se

pesquisar. Também, a exemplo do projeto, haverá de partir de um problema, seja ele

metodológico, tecnológico, teórico, estético ou o que for.

O critério de demarcação que proponho não nos salva porém (nós, os cursos de pós-

graduação stricto sensu) de pesquisas estéreis e até inúteis para o progresso do

conhecimento no nosso âmbito. Salva-nos ainda menos de monografias temáticas,

discursos vazios, estudos de caso sem importância, análises comparativas irrelevantes,

metodologias que só se aplicam ao caso específico estudado, e inúmeros outros

equívocos que por vezes encontramos sob o nome de Dissertação ou Tese. E digo mais:

esse não é um privilégio da área de projeto. O mesmo ocorre com o urbanismo, a teoria

da arquitetura e a tecnologia que se aplica ao nosso campo. Menos com a história, talvez.

Isso porque a história, mesmo quando é mero registro de eventos, permite que um dia

esse registro aponte para algum problema relevante, sobre o qual um pesquisador criativo

se debruce.

Dissemos que qualquer projeto implica em algum nível de pesquisa e que nem toda

pesquisa leva à produção de conhecimento ou à evolução do campo. Só levará nos casos

em que se propuser a resolver um problema. Entretanto não depende somente que ela vise

à solução de um problema, mas que esse problema seja relevante para o progresso do

campo. A sua relevância pode ser social, econômica, estética, tecnológica ou

epistemológica.

Resta-nos, então, discutir quais são as possíveis maneiras de se fazer evoluir a pesquisa

em arquitetura para que ela não se debruce sobre questões triviais e que realmente se

torne capaz de respaldar a evolução do nosso campo profissional.

Para isso será preciso identificar quais são os problemas que o nosso campo de

conhecimento coloca e quais as questões que suscitam.

Sendo a arquitetura um campo de aplicação, o nosso objetivo como pesquisadores deverá

ser o de gerar conhecimentos que os arquitetos possam aplicar para fazerem melhores

projetos. Esses conhecimentos certamente estarão em muitos campos disciplinares:

metodologias e tecnologias de projeto, estética, tecnologia de construções, física aplicada,

etc. Não vejo nenhum sentido em se desenvolver, nos mestrados e doutorados, a nossa

habilidade em projetar. Isso é papel da graduação e da prática profissional. Se

acreditarmos que uma dissertação ou tese pode ser um projeto, estaremos acreditando que

o projeto de arquitetura é tão somente uma técnica e, como tal, pode ser masterizada. Por

outro lado, se acreditarmos que o projeto de arquitetura é um produto intelectual,

estaremos falando em ciência. Estaremos falando no método científico. E este começa

com problemas. Um problema é sempre anterior a qualquer observação ou percepção dos

sentidos. A observação e a percepção auxiliam na formulação das hipóteses de solução,

nas conjecturas. A eliminação dos erros se faz pelo método crítico. A ciência nasce

quando o espírito crítico se desenvolve, através da discussão. O progresso científico

consiste no fato de que as teorias são suplantadas e substituídas por outras, mais

abrangentes. Karl Popper nos mostra com clareza que as novas teorias resolvem os

problemas que as antigas resolviam e ainda resolvem novos problemas que não eram

contemplados pelas antigas. Quando conseguimos provar que uma teoria é falsa, nós

aprendemos muito. Aprendemos não somente que ela é falsa, mas a razão pela qual é

falsa. Aí nós temos um novo problema, que será um ponto de partida para um novo

desenvolvimento científico.

É assim em arquitetura, urbanismo, construção civil, química, física, biologia…

Mas, em projeto de arquitetura e urbanismo, qual é a área estruturada de problemas? Em

que tradição nos inscrevemos?

As idéias e as formas.

Um dos grandes problemas da arquitetura reside na transposição de conceitos formulados

numa linguagem verbal para situações técnico-construtivas, ou conceitos arquiteturais.

Expressar arquitetonicamente um lugar aconchegante é, antes de mais nada, um exercício

de interpretação. Se a tradução arquitetônica de aconchegante fosse, por exemplo,

madeira + pedra + almofadas + lareira, qualquer recinto construído e equipado com esses

elementos seria aconchegante, independentemente de sua forma, dimensões e proporções.

Se acrescentarmos à receita esses dados quantitativos, mesmo assim não teríamos a

garantia de estar projetando um lugar aconchegante, pois dependeríamos de sua

configuração formal, de sua relação com outros lugares, dos fluxos nele existentes, de sua

relação com o exterior e da interação entre todos os seus elementos constitutivos. Mesmo

após interpretar corretamente todos esses requisitos, não estaria assegurado que o lugar

fosse aconchegante se eu não cuidasse de dosar a iluminação e as temperaturas. Após

realizar com sucesso todas as etapas, eu ainda dependeria de uma variável sobre a qual eu

jamais teria controle: o comportamento das pessoas que utilizarão aquele lugar. De resto,

duas ou três crianças cheias de energia conseguem liquidar com o aconchego de qualquer

lugar, caso resolvam correr de um lado para outro, perseguindo umas às outras.

O arquiteto, por mais que ele queira, não tem controle sobre o uso dos espaços que

projeta. E é bom que assim seja pois, do contrário, acabaríamos por querer controlar a

própria vida das pessoas, dirigindo suas práticas no espaço. As abordagens cuja pretensão

seja a de impregnar os projetos com as intenções do arquiteto são, pois, inócuas pela

própria natureza e, portanto, ingênuas, se examinadas objetivamente. Mas, se somos

ingênuos ao buscar o inatingível, podemos nos tornar nocivos, ao preconizá-lo. Intenções

não têm formas visuais. O modo com que percebemos o espaço nos é ensinado pela

cultura, pela prática social. No seio de uma cultura — ou de um estrato social de uma

cultura — as atividades da vida cotidiana são desenvolvidas de modo semelhante e quase

ritualístico, constituindo-se em padrões: cozinhar, dormir, ver TV, ler, datilografar,

costurar, e assim por diante. A cada padrão corresponde uma forma arquitetônica: sala de

jantar, cozinha, quarto de dormir, sala de TV, espaço de leitura, escritório, quarto de

costura, etc. Isso quer dizer que os ambientes são especificidades culturais e são

coerentes com a organização social da cultura que os edifica. Assim, espacializações e

lugares são fortemente conexos: os eventos que ocorrem num certo lugar são aqueles que

o lugar consegue acolher. Os lugares, por sua vez, afetam a relação social, na medida em

que eles acolhem, facilitam, ou impedem, pela ausência ou inadequação, os

acontecimentos. Entretanto, os lugares não são capazes de promover acontecimentos. A

simples existência de espaços adequados à manifestação política não assegura que ela se

dê, mas a inexistência — ou interdição — deles pode impedi-la. Os eventos humanos e os

espaços arquitetônicos caminham juntos: para espacializar suas atividades, o homem cria

lugares (lugares arquitetônicos) ordenando as coisas e moldando formas. A ordenação de

objetos (coisas) é o processo que imprime significado aos espaços, uma vez que ele é

orientado por algum propósito. Os espaços influenciam, de volta, as formas sociais. Há,

aí, um movimento interativo, uma dialética que só pode ser compreendida através do

estudo da história. E é por isso que devemos dar importância ao estudo da História da

Arquitetura.

O estudo da História da Arquitetura só faz sentido se acreditamos que, com ele, iremos

aprender um pouco mais da nossa própria história, do percurso da humanidade no mundo,

das interações entre os diversos grupos sociais, de suas práticas e de seus conflitos. Sob o

pretexto de estar estudando a história — ou a teoria— discutem-se as intenções deste ou

daquele arquiteto ao conceber esta ou aquela forma, o que é irrelevante e não nos ajudará

a compreendê-la. Não nos ajudará, sequer, a entender a razão de ser daquela obra e, por

via de conseqüência, a razão de ser das obras que fazemos. A história da arquitetura só

tem importância se compreendida como a história das espacializações das formas sociais.

Assim, ela nos ensinará que, se quisermos transformar a organização espacial, teremos

que atuar na organização social e transformar as idéias e as práticas que a sustentam.

Idéias e formas são indissociáveis e constitutivas das espacializações. Entretanto, não é

raro encontrarmos textos que abordam a História da Arquitetura como um

desencadeamento temporal e autônomo de configurações espaciais e estilos artísticos. A

própria maneira de se ensinar história nos cursos de arquitetura incorpora essa

compreensão e reforça o equívoco: estudamos a seqüência temporal das ocorrências

arquitetônicas e as peculiaridades de suas características visuais. Talvez, por isso,

achamos legítimos os revivalismos e as citações ou referências estilísticas, às quais

chamamos, erroneamente, de históricas. O tempo se inscreve no espaço de outra maneira:

no cotidiano vivido. Para que um evento ocorra, além de espaço é preciso haver

disponibilidade de tempo: tempo para trabalhar, tempo para almoçar, tempo para o café,

tempo para o lazer e assim por diante. Quando alguém diz que precisa de tempo para ler

ou tempo para visitar amigos, não está falando do tempo linear, quantificável e dividido

em sucessão de dias, horas e minutos. Está falando do tempo vivido no dia a dia, da

experiência do tempo onde se combinam as seqüências dos eventos naturais com as

seqüências dos eventos culturais. Essa noção de tempo vivido é fundamental para que se

compreenda o papel do tempo nas espacializações humanas. Sem ele os eventos não

podem ser concebidos. Para clarear esse argumento, imaginemos a seguinte situação: o

planejamento físico de uma escola secundária contempla a construção de um campo de

futebol. Entretanto, o currículo escolar não abrange as atividades esportivas e o horário

das aulas não prevê a recreação dos estudantes. Nessa situação é fácil imaginar que as

chances de ocorrer um jogo de futebol são nulas, embora os estudantes gostem de jogar

bola e haja espaço disponível para o futebol. Poderíamos enumerar muitas outras

situações onde esse mesmo tipo de fenômeno ocorre: a falta de tempo impedindo a

ocorrência de eventos. A organização do tempo do cotidiano não apenas afeta, mas

efetivamente controla as espacializações, permitindo ou impedindo que elas ocorram. Em

suma, tempo/espaço/eventos são fortemente conexos e não podem ser considerados

separadamente quando se projeta o ambiente construído, isto é, quando se faz arquitetura.

Sempre que o tempo do cotidiano não for levado em consideração, os espaços não serão

adequadamente apropriados.

Os aspectos visuais.

É falacioso o argumento de que, em arquitetura, a dimensão estética não é relevante ou

que uma boa arquitetura não é aquilatada pela excelência de seus aspectos visuais.

Admito que há uma grande dificuldade em se valorar, esteticamente, uma obra de

arquitetura. Não creio, no entanto, que um juízo de valor positivo sobre uma edificação

possa ser emitido sem se levar em consideração os seus atributos visuais. Por não ser

apenas um objeto de fruição, a arquitetura difere, na sua prática projetual, das artes

plásticas. Por não ser primordialmente um objeto tecnológico, diferencia-se da mera

construção. Por não ser um simples abrigo de atividades, também não se confina às

determinações utilitárias. A tríade vitruviana (firmitas, utilitas e venustas) que interpreto

como sendo as dimensões tecnológica, funcional e simbólica da arquitetura, sempre se

apresenta como uma totalidade complexa, cuja compreensão transcende qualquer uma

das suas partes constitutivas. Eu diria que a construção que se revela ao nosso

conhecimento, acolhe o nosso uso e torna-se arquitetura pelos nosso olhos. Talvez, por

isso, entende-se que, para ser arquitetura, a edificação tem que ser bela. A nossa grande

dificuldade, de arquitetos, professores e estudantes de arquitetura é compreender a

demarcação entre arquitetura e construção. Uma edificação qualquer — uma construção

— é capaz de acolher usos (funções) e implica no emprego de alguma tecnologia para

acontecer. O fato de seu desempenho na acolhida dos usos (na parte funcional) ser

perfeito e o fato de ser edificada dentro do maior rigor técnico não lhe asseguram o

atributo de boa arquitetura. Este vem dos aspectos visuais, mesmo que não saibamos

como apartá-los da técnica e do contexto de uso. Por outro lado, às vezes reconhecemos

como boa arquitetura edificações que nos seduzem pelos aspectos visuais, mas que não

apresentam bom desempenho técnico e funcional. Por que isso? Só pode haver uma

explicação: os aspectos visuais encerram os atributos de beleza de uma obra arquitetônica

e a definem como tal. Por isso eles são tão importantes para nós, arquitetos e eu proponho

que eles não sejam negligenciados ou negados.

Negando-se a importância da beleza do edifício, da forma acabada, nega-se também a

beleza da paisagem urbana, o interior da cidade, que é formado pelo conjunto de edifícios

e que é um outro nível de forma acabada. Outro equívoco é a busca da beleza no objeto

sentido, vivido, apropriado e não no objeto visto. Existiria essa possibilidade? 3 Seria

possível perceber o espaço arquitetônico, vivê-lo, senti-lo e apropriá-lo, sem dar atenção

ao que é visto? Um espaço que não é criado para ser visto, pode ser neutro em relação aos

eventos que ali ocorrem? A beleza seria desnecessária à arquitetura? Para quem acha que

sim, a construção bastaria. E se a construção bastasse, bastaria a técnica para que a

arquitetura se realizasse. Ora, essa conclusão, embora lógica, é desprovida de sentido,

absurda até. O argumento de que a boa arquitetura independe de seus aspectos visuais ou

a eles não se subordina é perigoso e falso. Perigoso, porque induz à crença de que é

possível haver boa arquitetura dentro dos limites de seus atributos tecnológicos e de uso.

Falso, porque aponta para a possibilidade de se reconhecer a boa arquitetura sem que seja

preciso vê-la, o que é inconcebível. Seria como apreciar um vinho sem ao menos prová-

lo.

Os aspectos visuais da arquitetura são essenciais, mas não são — e nunca foram —

autônomos relativamente à tecnologia e às possibilidades de uso. Também não são meros

resultados de articulações de materiais, técnicas construtivas e demandas funcionais,

como alguns autores nos fazem crer, embora já tenha sido assim. Na antiguidade, por

exemplo, os aspectos visuais dos edifícios eram resultado das articulações técnicas e

construtivas possíveis de serem realizadas com a pedra, a madeira e o barro. As

decorações — pinturas e relevos — eram introduzidas como revestimentos, externos ou

internos, para enfeitar a edificação. As pirâmides são, sem sombra de dúvida, resultados

tecnológicos. O estágio tecnológico de então não permitiria a construção de grandes

edificações que não fossem piramidais. Era a forma possível e não a forma desejada,

inventada. A evidência disso é que as edificações piramidais floresceram na África, no

Oriente e na América pré-Colombiana, como processos de criação coletiva. As catedrais

góticas são testemunho de um outro estágio: a invenção da forma. Nesse momento a

tecnologia construtiva é desenvolvida para possibilitar a forma imaginada. É uma

mudança crucial no destino da arquitetura. A partir dela, a invenção da construção passou

a ser incorporada ao processo de criação do edifício. No Renascimento, ressalvado o caso

das cúpulas, os aspectos visuais da arquitetura voltam a se subordinar às técnicas

disponíveis. As formas triviais são decoradas com os elementos inspirados nas

edificações da antiguidade clássica. No modernismo a forma volta a ser imaginada,

colocando a técnica ao seu serviço. E esse processo continua até os dias de hoje, embora

uma onda revivalista — o pós-modernismo — tenha contra ele conspirado. Os aspectos

visuais da arquitetura pertencem ao âmbito da arte e de seus poderes de sedução. São

gerados pela sensibilidade do arquiteto e capturados pela sensibilidade do usuário/fruidor.

Mesmo residindo no âmbito da sensibilidade, são objetos do conhecimento tanto como a

técnica e o uso. Podem, portanto, ser objetos de pesquisa científica.

O ensino de projeto e suas dificuldades.

O ensino de projeto geralmente é centrado na solução de problemas: formula-se um

problema arquitetônico e urbanístico e incumbe-se o estudante de encontrar uma solução.

Em alguns casos avança-se um pouco mais: apresentam-se os contornos de uma situação-

problema e solicita-se ao estudante que a problematize e proponha soluções. É

exatamente nisso — no desenvolvimento da habilidade de problematizar situações e

solucionar problemas — que reside a maior qualidade do ensino de projeto arquitetura e

urbanismo, pois estimula o potencial criador do estudante, desenvolvendo suas

habilidades na formulação de conceitos e na aplicação dos conhecimentos técnicos.

Durante o processo em que lida com o problema na tentativa de solucioná-lo, o estudante

recebe orientações dos professores quanto aos rumos metodológicos a serem explorados,

quanto às questões teóricas e conceituais que o problema suscita e os aspectos funcionais

ali implicados e sobre a tecnologia que poderia dar suporte às tentativas de solução. As

questões estéticas — ou de aparências visuais — são abordadas por meio de

exemplificações, que na maioria das vezes constam da apresentação e discussão de

projetos bem sucedidos, consagrados pela crítica e pelas revistas especializadas.

Exemplos de boas soluções ocorridas em outros períodos históricos também costumam

ser trazidos à sala de aula, como fonte de dados funcionais e técnicos ou como referencial

de qualidade. Dado o problema, o estudante elabora as suas hipóteses (estudos) de projeto

e as traz ao exame e apreciação do orientador. O orientador, por sua vez, critica as

hipóteses que lhe são apresentadas, aponta as questões mal resolvidas, oferece

informações e sugestões, elucida dúvidas técnicas e funcionais e às vezes tece

considerações sobre a volumetria e as aparências que se vislumbram nesses estudos

preliminares.

Em linhas gerais é assim que se desenrola o ensino de projeto, não só na Escola de

Arquitetura da UFMG — onde sou professora de projeto — como na grande maioria dos

bons cursos de arquitetura e urbanismo do país e no exterior. Nas escolas em que a etapa

de formulação do problema (problematização de uma dada situação arquitetônica e

urbanística) é também levada a cabo pelo estudante, o processo ensino/aprendizagem se

enriquece ainda mais, pois irá contribuir para o desenvolvimento da habilidade de

problematizar situações o que é, sem dúvida, necessário no exercício profissional da

arquitetura e urbanismo.

O ensino de projeto é, pois, por sua própria natureza, personalizado, na medida em que o

professor se dedica à orientação de cada projeto específico, seja ele elaborado

individualmente ou em grupo. Para compreender a idéia arquitetônica e urbanística que

lhe é apresentada — e então poder analisá-la e criticá-la — o professor precisa

estabelecer intenso diálogo com o estudante, o que acaba por aproximá-los numa relação

mais pessoal, que pode ser de afeto ou desafeto, dependendo do sucesso do diálogo

conseguido. Pode parecer paradoxal, mas os principais problemas do ensino de projeto

decorrem, precisamente, de sua maior qualidade, que é a interação direta professor/aluno,

pois é nesse contexto que ocorre a avaliação. Avaliar é conhecer, interpretar e julgar.

Interpretar é também julgar. A interpretação pressupõe a compreensão e esta só se dá a

partir de certas referências, que se constituem nos nossos pressupostos. Só

compreendemos, portanto, aquilo que conhecemos. Tendemos, pois, a recusar as soluções

que realmente são diferentes ou originais. Só julgamos a partir dos nossos pressupostos, o

que certamente nos leva a avaliar negativamente o que não estabelece correspondência

com eles. E é por aí que começam as dificuldades de quem avalia o fruto de um processo

criador, seja ele intelectual, técnico, científico ou artístico. Durante o processo de projeto,

o professor orientador avalia todo o tempo: ao sugerir um determinado caminho

metodológico terá avaliado e rejeitado o caminho proposto pelo aluno; ao apontar um

problema construtivo, terá verificado aquela carência de conhecimento ou aquele erro; ao

incentivar a exploração de uma hipótese projetual, terá julgado positivamente a idéia

proposta e assim por diante. Entretanto, a avaliação — que é inerente ao processo de

orientação/criação — só é consubstanciada em conceito (ou nota) no produto final ou nas

suas etapas de execução. Daí o estranhamento do aluno quando não lhe é atribuído um

bom conceito.

O certo e o errado em projeto.

Um problema do tipo (a) "João tinha três laranjas e ganhou mais duas; com quantas

laranjas João ficou?" supostamente admite apenas uma solução: 5 laranjas. Haveria a

possibilidade de se argüir que, se nada acontecesse de entremeio, João realmente ficaria

com 5 laranjas mas, se uma das laranjas apodrecesse, João ficaria com apenas quatro.

Poderíamos então contra argumentar que esse não era um dado do problema. Que seja.

Aceitemos que a única resposta certa para o problema (a) é 5 laranjas. As outras estariam

erradas e, numa avaliação, não teríamos nenhuma dificuldade em atribuir os pontos totais

a quem tivesse respondido 5 e nenhum ponto a quem tivesse respondido um número

diferente de 5. Esse caso é o que geralmente chamamos de avaliação objetiva: os pontos

totais a quem acertou e zero pontos a quem errou. A avaliação objetiva só é possível,

entretanto, no contexto de problemas do tipo (a), onde há apenas uma solução e uma

única resposta certa.

Por outro lado, um problema do tipo (b) "projetar uma casa para uma família de 5 pessoas

(o casal, uma menina de 7 anos, outra de 9 e um menino de 12), cuja renda é de 20 SM; o

terreno é plano, de 360 m2, fica na rua "A", número 15, com frente para o sul", pode ter

inúmeras soluções e certamente não terá, dentre elas, uma da qual possamos dizer que é a

certa ou que é errada. Como avaliamos então? Não existe outra saída: avaliamos de

acordo com os nossos pressupostos, nossa visão de mundo, nossa visão de arquitetura,

nosso conhecimento técnico específico, nossos conceitos de adequação, beleza,

funcionalidade, habitabilidade, etc. Para resumir, avaliamos dentro de uma tradição.

Quando se trata de um problema do tipo "b", que admite mais de uma solução correta (ou

adequada, ou aceitável) não há a possibilidade de uma avaliação objetiva, imparcial ou

isenta. Não há, também, possibilidade de se estabelecerem critérios objetivos para se

avaliar o resultado desse tipo de problema onde não há a dicotomia certo/errado. Nesses

casos os critérios serão sempre subjetivos, pois são ditados pelos pressupostos dos

avaliadores; e esses pressupostos são modelados pela vivência de cada um. As diversas

vivências determinam gostos, crenças, emoções, prioridades e sentimentos diversos — e

por vezes divergentes — determinam entendimentos diferentes e, portanto, distintos

juízos.

Como o ensino/aprendizado de projeto de arquitetura e urbanismo será medido pela

avaliação; como a avaliação será feita a partir do que consideramos um bom resultado; se

esse bom resultado é medido em função do que consideramos uma boa arquitetura, é

pertinente, então, esclarecermos esta questão preliminar: quais são os nossos pressupostos

com relação à uma boa arquitetura? Há alguma homogeneidade entre nós? Será possível

haver? Será possível ao menos pactuarmos em torno de uma idéia do que seja uma boa

arquitetura, para efeito de avaliação, abrindo mão de uma série de convicções pessoais

em benefício de um entendimento coletivo? Se o debate sobre essa questão desaguar

numa resposta positiva, poderemos então falar de critérios equânimes. Do contrário, será

melhor falarmos em critérios pessoais, que variam de indivíduo para indivíduo e que

serão sempre polêmicos. Se conseguirmos elaborar critérios com referência aos

pressupostos estabelecidos coletivamente, e se conseguirmos aplicá-los respectivamente a

esses pressupostos, estaremos lidando com uma probabilidade grande de não cometermos

desvios excessivos na avaliação. Teremos certamente avançado muito na direção de uma

avaliação adequada. Mas seria isso factível?

O momento do ensino/aprendizado.

Muito se fala na necessidade de se realizar um ensino conexo à prática profissional, com

estágios obrigatórios, aprendizado em ambiente profissional e coisas do tipo. Quero

levantar algumas objeções a isso e tentar fundamentá-las em argumentos consistentes.

Não vejo nenhuma vantagem em trazer para a academia um momento que não lhe é

peculiar: o exercício profissional. Dirigir o ensino para o exercício profissional está mais

próximo do adestramento (ou treinamento) do que da formação. Esse me parece ser um

duplo equívoco: o primeiro, é que arquitetura não é uma técnica na qual se possa treinar

alguém; é uma produção da imaginação criadora. O segundo é que um treinamento se dá

pela repetição do conhecido, o que certamente não leva a uma prática arquitetural

inovadora.

O ensino de arquitetura não deve se preocupar em propiciar aos estudantes treinamento

em serviço pois, sob o ponto de vista da formação isso é irrelevante. O desenvolvimento

da capacidade crítica para sintetizar conhecimentos na prática projetual me parece bem

mais relevante — e urgente — do que o treinamento de práticas profissionais que, muitas

vezes, são subordinadas aos ditames do mercado ou às necessidades prementes de

determinadas conjunturas profissionais. Um estudante treinado nesse contexto correrá o

risco de não desenvolver sua capacidade crítica e, como conseqüência, atrofiar sua

imaginação criadora. O momento da academia não deve se assemelhar ao que ficou para

trás — no ensino médio — ou antecipar o que vem adiante, no mercado. Deve ser um

momento único, no qual o passado escolar é potencializado e o futuro profissional

sonhado.

Na minha visão, os exercícios de aplicação que são feitos na escola — os trabalhos

práticos das disciplinas de projeto de arquitetura e urbanismo — devem ser referenciados

nos problemas de arquitetura e urbanismo que se evidenciam no nosso ambiente

construído. Não vejo sentido em se buscar, para esses problemas, o mesmo tipo de

solução que o mercado (o ambiente profissional) tem encontrado. Às escolas cabe fazer

prospeções audaciosas, ao invés de reproduzir soluções já conhecidas. Estas devem

retornar à escola como conhecimento assente e não como possibilidades de prospeções.

O "treinamento em serviço", a "inserção na prática profissional", o "estágio

profissionalizante" ou outro nome qualquer que se dê à interação escola/mercado, é uma

idéia que tem suas raízes na pedagogia do adestramento e no ensino de projeto diletante,

ao qual me referi anteriormente. Em suma, é uma idéia atrasada, sob a roupagem de

grande novidade. Por que isso? Atrevo-me a oferecer uma explicação.

Quando não tínhamos a institucionalização da pesquisa em arquitetura e urbanismo, o

objetivo das escolas e cursos era reproduzir o conhecimento e as habilidades

desenvolvidos nos escritórios, nas empresas e no setor público. Os professores eram

recrutados nesse mercado, dentre aqueles que gostavam de ensinar. Salvo uma ou outra

exceção, a docência não era a ocupação principal desses mestres. Aos engenheiros cabia

o ensino da topografia, da matemática, da física aplicada, da geometria descritiva, das

disciplinas de estrutura, das técnicas construtivas, das instalações prediais e do

saneamento básico. Aos arquitetos eram destinadas as disciplinas de história, teoria,

desenho, projeto de edificações e urbanismo. Ambos os segmentos reproduziam, em sala

de aula, os conhecimentos desenvolvidos no mercado profissional. Assim foi o meu

curso, na década de 60, na UFMG. Assim eram quase todos os outros cursos de

arquitetura e urbanismo do país. Nós, os estudantes, reclamávamos desse ensino

reprodutivista e alienado dos problemas cruciais da maioria da população, que eram

moradia, infra-estrutura urbana, escolas, creches, etc. Reclamávamos, também, da falta

da pesquisa acadêmica que se debruçasse sobre esses problemas e da qual pudéssemos

participar. Havia, é justo que se diga, uns poucos abnegados grupos de pesquisa aqui e

ali, mas nada que se assemelhasse ao sistema que temos hoje.

A institucionalização da pesquisa nas universidades se deu, de fato, a partir da criação do

regime de dedicação integral (para os docentes) e da pós-graduação. A arquitetura e

urbanismo custou a ingressar nessa nova era. A grande maioria das escolas permaneceu

no modelo reprodutivista até meados dos anos 80. Hoje em dia, o cenário se modificou,

principalmente nas instituições que desenvolvem pesquisa e pós-graduação. Nestas, os

professores são, em sua maioria, de dedicação integral e, portanto, distanciados da prática

profissional. Assim sendo, não se vêem em condições de trazer para a sala de aula as

questões que emergem do exercício profissional. Os estudantes, por outro lado, sentem-se

distanciados do mundo profissional, que tanta curiosidade lhes provoca. As propostas

sobre experiência prática em ambiente profissional surgem nesse contexto e as partes

envolvidas — estudantes e professores — não se dão conta de que estão promovendo um

retrocesso e abrindo mão da formação, em prol do treinamento.

Mas, o que seria um ensino de arquitetura voltado para a formação? Esta é uma pergunta

que eu não saberia responder, embora esteja disposta a enfrentá-la. Comecemos por um

argumento no sentido inverso. Em arquitetura e urbanismo, a "experiência prática em

ambiente profissional" 4 significa o estágio em escritórios ou empresas de arquitetura e

urbanismo, ou em órgãos da administração pública que trabalham na área. Isso quer dizer

que deve ser uma experiência prática nas áreas que são de atribuição profissional do

arquiteto e urbanista, primordialmente. Podemos inferir, então, que tal experiência diz

respeito, principalmente, ao projeto de arquitetura e urbanismo, pois não faria sentido

falarmos em "experiência prática em ambiente profissional" na área de teoria e história,

de estudos sociais ou de instalações mecânicas. No caso de considerarmos que a

experiência prática no ambiente profissional é realmente necessária, teremos que admitir

que ela tem o objetivo complementar à prática projetual que se dá na escola. Esse

raciocínio levaria ao entendimento de que a escola deve dirigir seus conteúdos e suas

preocupações pedagógicas para o mercado, e este determinar o que a escola ensina.

Assim ficaria estabelecida uma circularidade reprodutiva entre escola/ambiente

profissional/escola que poderia ser extremamente nociva, pois, como já mencionei,

impediria a crítica e a renovação de procedimentos e soluções. A arquitetura, aí sim,

entraria numa crise sem saída. Qualquer círculo, nós sabemos, é fechado.

Se recusarmos a prática arquitetural reprodutivista, haveremos de recusar, também, o

ensino que lhe é correlato. O ensino de arquitetura deve visar a formação para a prática e,

portanto, deve ter um caráter crítico e prospectivo. Esses dois papéis — o da crítica e o da

prospeção — são muito bem desempenhados pela academia. Esta, sim, deve aprimorá-

los, para propiciar uma prática inovadora.

NOTAS 1. A paisagem natural não é um meio para as relações sociais. Ao contrário, para exercer

suas atividades o homem constrói, transformando o sitio natural em ambiente construído. 2. Referindo-se à criação em ciências naturais e em ciências sociais, Karl Popper diz que

elas partem sempre de problemas e, para resolvê-los, elas usam o método de tentativa e

erro, que é o mesmo utilizado pelo bom senso: temos um problema, construímos soluções

e descartamos, uma após outra, aquelas que não o resolvem bem; ficamos com a que

resolve. Nesse processo desenvolvemos o nosso aprendizado sobre o problema, seus

elementos constitutivos, suas principais dificuldades. Temos então três níveis:

— o problema (ou situação-problema);

— as tentativas de solução (hipóteses, conjecturas, teorias);

— a eliminação das soluções erradas (avaliação crítica).

Essas idéias de Popper podem ser encontradas em vários de seus livros, dos quais o mais

conhecido é A lógica da Pesquisa Científica. São Paulo: Editora Cultrix, 1974 e 3. Obviamente os cegos percebem e se apropriam do espaço através de outros sentidos,

que não a visão. Refiro-me, aqui, às pessoa que possuem visão. Para estas, a arquitetura é

um objeto visual. 4. Esta é a expressão que consta no Manual de Avaliação do curso de Arquitetura e

Urbanismo do DAES/INEP/MEC.