alinhamento na República Velha

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Artigo sobre alinhamentos de política externa na República Velha.Autor: Felipe Antunes de Oliveira

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O espelho do norte: americanismo e anti-

americanismo no pensamento social da

República Velha

Felipe Antunes de Oliveira 2009

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Introdução

Entre as mudanças mais significativas associadas à Proclamação da República,

em 1889, está uma alteração no eixo da política externa brasileira. Durante o Império, e,

principalmente, no curso do Segundo Reinado, tentou-se desenvolver uma política

externa universalista, que buscava estabelecer relações com os mais diversos Estados do

mundo. Exemplo dessa orientação é o tratado assinado em 3 de Outubro de 1881 com a

China, estabelecendo relações diplomáticas com esse distante país, que, de acordo com

os negociadores brasileiros Eduardo Callado e Arthur Silveira da Mota, poderia vir a se

tornar uma importante fonte de imigrantes para as lavouras de café. É verdade que as

monarquias européias continuavam a ser o centro dos esforços diplomáticos do

Ministério dos Negócios Estrangeiros, com destaque evidente para a Inglaterra, que até

o início do século XX permanecia a principal fonte de investimentos externos no país.

Embora se prezasse o apoio financeiro e político de Londres, principalmente nas

disputas na região do Prata, o governo Imperial procurava manter certa autonomia em

relação ao imperialismo britânico e evitava um alinhamento automático com a

monarquia inglesa, havendo inclusive um desentendimento grave que levou ao

rompimento das relações diplomáticas entre Brasil e Inglaterra – a questão Christie, em

1863.

Com a deposição de dom Pedro II, no entanto, e sobretudo após a chegada do

Barão do Rio Branco à Chancelaria, em 1902, o Brasil passou a desenvolver uma

política externa com um viés claramente americanista, alinhando-se com o vizinho do

norte, que exercia, ao mesmo tempo, fascínio por suas conquistas e certo temor por sua

força e suas práticas imperialistas no continente americano. Sem jamais ousar desafiar

frontalmente os Estados Unidos, o Brasil criou sua própria versão do panamericanismo

e da doutrina Monroe, utilizando-os em seu próprio benefício, como uma defesa contra

as pretensões de potências européias no continente. Assim, por exemplo, com a ameaça

francesa de usar a força para garantir suas posses no Amapá, o Barão do Rio Branco

recorreu à solidariedade monroísta e conseguiu convencer a França a resolver a disputa

por arbitramento internacional, que acabou sendo favorável ao Brasil. Para Amado

Cervo e grande parte dos historiadores da política externa brasileira, Rio Branco

percebia o crescente poder dos Estados Unidos no cenário mundial, e buscava uma

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aproximação em bases pragmáticas, procurando preservar da melhor maneira os

interesses nacionais:

“A visão realista de Rio Branco permitiu-lhe perceber, como outros de seu tempo, o

peso dos Estados Unidos na nova distribuição do poder mundial e o fato de que a

América Latina estava em sua área de influência. Dir-se-ia que o Brasil não tinha

alternativa ao estreitamento das relações com os Estados Unidos, descartando a

possibilidade de uma aproximação com alguma potência européia.”1

Por mais pragmáticas que tenham sido as bases do alinhamento com os Estados

Unidos a partir das primeiras décadas da República, ela não dispensava, no plano

interno, uma construção ideológica, que aliás já vinha sendo gestada nos últimos anos

do Império. O Manifesto Republicano, de 1870, afirmava o americanismo, criticando o

regime monárquico brasileiro em um continente de repúblicas. Mesmo parte dos

monarquistas admirava o desenvolvimento dos Estados Unidos e a inventividade do seu

povo, identificado com a “capacidade superior” dos anglo-saxões, em um momento em

que o darwinismo social começava a se difundir entre os letrados. A constituição e as

organizações políticas americanas eram vistas como exemplo, o que se revela de modo

claro no nome oficial assumido pela república brasileira, Estados Unidos do Brasil, e na

constituição de 1891, que seguiu um modelo federativo e liberal.

Em 1909, a Revista Americana viria a assumir um papel fundamental na

sustentação ideológica da nova tendência americanista da política externa brasileira. Em

suas páginas, letrados e diplomatas construíam a interpretação brasileira dos ideais

moroístas e panamericanistas, procurando estabelecer o papel do Brasil no concerto

americano e defendendo a orientação do governo. Os artigos de Joaquim Nabuco,

Tristão de Alencar Araripe Junior, João Dunshee de Abrantes, Manoel de Oliveira

Lima, Helio Lobo, Heitor Lyra e do próprio Barão do Rio Branco são exemplos do

pensamento americanista brasileiro no período, refletindo, ao mesmo tempo, a imagem

dos Estados Unidos no Brasil da primeira república e a imagem que o Brasil procurava

passar de si próprio no contexto internacional, pois muitos desses artigos eram

traduzidos para o inglês e o espanhol e circulavam nos meios acadêmicos e

diplomáticos estrangeiros.

1 CERVO, Amado. História da política exterior do Brasil. Brasília: EdUNB. 2008. P.185

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Evidentemente a mudança de orientação na política externa brasileira encontrou

resistências internas. Parte dos letrados brasileiros, em especial os monarquistas, como

Eduardo Prado, não via com bons olhos a aproximação com os Estados Unidos,

entendida como prejudicial aos interesses nacionais. Em A ilusão americana, o autor faz

duras críticas ao americanismo e à posição subalterna do Brasil com relação aos norte-

americanos, defendendo as antigas relações com as potências européias. Outros, como

Serzedelo Correia, propunham um modelo autonomista, de acordo com o qual o Brasil

não deveria se alinhar com país algum, e sim perseguir um desenvolvimento próprio.

O objetivo desse pequeno ensaio é contrapor as visões americanistas da primeira

república – expressas na Revista Americana – às críticas de Eduardo Prado e Serzedelo

Correia, apresentadas, respectivamente, em A ilusão americana e O problema

econômico do Brasil. Mais do que uma discussão restrita à orientação da política

externa brasileira, creio que esse debate pode ajudar a compreender alguns dos

diferentes projetos de país propostos por pensadores sociais na passagem do século XIX

para o século XX..

O americanismo e a Revista Americana

Publicada pela primeira vez em outubro de 1909, sob as bênçãos do Barão do

Rio Branco, a Revista Americana contava com artigos em português, em espanhol e,

mais raramente, em francês. Além de temas diplomáticos, históricos, políticos e

geográficos, suas páginas davam espaço também para uma ampla gama de temas

culturais, como no artigo “Quadro da evolução da literatura brasileira”, escrito por

Silvio Romero e publicado em 1910, ou o texto “A minha primeira entrevista e o meu

primeiro pedido”, publicado por João do Rio, em 1913. Entre os autores que escreveram

na Revista Americana destacam-se grandes nomes do jornalismo, da literatura e do

pensamento social brasileiro na República Velha, como Euclides da Cunha, Aluisio

Azevedo, José Veríssimo, Felix Pacheco, Oliveira Lima, Farias Brito, Lima Barreto,

Olavo Bilac, Rocha Pombo, Miguel Couto e Ruy Barbosa.

Mesmo abarcando tantos temas, e contando com colaboradores tão diversos, é

possível discernir um claro viés americanista – tanto do ponto de vista político quanto

ideológico – nos textos da Revista Americana, sobretudo aqueles escritos por

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diplomatas ou políticos ligados ao governo republicano. Esse americanismo se revela,

principalmente, nos editoriais e nos artigos políticos, como os escritos por Joaquim

Nabuco, Helio Lobo e o Barão do Rio Branco. Esse último, no texto “O Brasil, os

Estados Unidos e o Monroísmo”, faz uma clara defesa da aproximação com os Estados

Unidos e da doutrina Monroe, afirmando as virtudes da política externa do governo

contra as críticas de Eduardo Prado. O sonho do panamericanismo envolvia,

pragmaticamente, a defesa do Brasil contra pretensões européias e o acesso aos

mercados dos Estados Unidos, e ideologicamente, a construção de uma civilização

americana próspera e poderosa, seguindo o modelo republicano. De acordo com o

editorial da primeira edição, “[a] Revista Americana se esforçará por transmudar este

sonho em realidade calorosa e fecunda. Trabalhará pela aproximação política, pelo

congraçamento intelectual, pelo engrandecimento moral das nações americanas.”2

Interessante notar, contudo, que o americanismo da Revista Americana não era

exclusivamente um norte-americanismo, deixando grandes espaços para a cooperação

intelectual com autores latino-americanos, principalmente argentinos. A grande

participação de escritores portenhos na revista reflete o breve período de afinidade entre

Brasil e Argentina após a proclamação da república, rompido precocemente em função

do alinhamento da política externa brasileira aos Estados Unidos, incluindo uma plena

aceitação da Doutrina Monroe, e o alinhamento da política externa argentina à

Inglaterra, com a conseqüente rejeição da proposta de “América para os americanos”,

substituída pela proposta retórica de uma “América para a humanidade”.

Um dos focos principais dos textos políticos da Revista Americana era

justamente a Doutrina Monroe, defendida, entre outros, por Tristão de Alencar Araripe

Junior, João Dunshee de Abranches e Heitor Lyra. De acordo com esse último, as

formulações de Monroe se equiparavam às idéias de Bolívar e de José Bonifácio,

portanto não haveria nenhum motivo pára rejeitá-las, pois elas expressariam

simplesmente a solidariedade panamericana3. Araripe Junior reconhece que há

resistências e mal-entendidos com relação ao monroísmo no Brasil. Para ele “Em

grande parte devemos esse resultado ao prestigio de um livro sensacional – A ilusão

americana – escrito por um parisiense nascido na terra dos Andradas.”4 Após denunciar

ironicamente o europeísmo de Eduardo Prado, Araripe Junior o acusa de escrever de 2 Editorial da primeira edição da Revista Americana, publicado originalmente em outubro de 1909 e reproduzido em Revista Americana: uma iniciativa pioneira de cooperação intelectual – edição fac-simile. Brasília: Funag. 2001 p.213 LYRA, Heitor. “O panamericanismo no Brasil antes da declaração de Monroe” in: Revista Americana: uma iniciativa pioneira de cooperação intelectual – edição fac-simile. Brasília: Funag. 2001 p. 208

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modo sensacionalista, induzindo seus leitores a uma percepção errada da Doutrina

Monroe: “...os leitores de Eduardo Prado foram guiados por um lado único da

documentação histórica.”5 De acordo com Araripe Junior, a Doutrina Monroe em si não

encerra um plano único e consistente, cujo objetivo final seria a conquista de todo

continente americano pelos Estados Unidos, como dizem seus críticos. Para ele, a

Doutrina Monroe é, no seu sentido mais amplo, uma afirmação da autonomia de toda a

América frente à Europa - “Pertenço à classe dos que a supõem inevitável e benéfica.

Ela consiste em um capítulo da história do progresso extra-europeu, que os nossos

filhos hão de escrever um dia.”6 Já João Dunshee Abranches atribui as resistências a

Doutrina Monroe às competições comerciais entre os Estados Unidos e a Europa, que

não aceita perder sua primazia econômica sobre o continente. Para ele, os autores

europeus, e sobretudo os franceses, associam o monroísmo a uma tentativa de

imperialismo norte-americano em função dos seus próprios interesses imperialistas no

continente.

A defesa mais consistente do monroísmo e do alinhamento do Brasil aos Estados

Unidos é feita, como se podia esperar, pelo Barão do Rio Branco, o chanceler brasileiro

entre 1902 e 1912. Combinando uma análise histórica das relações Brasil - Estados

Unidos com considerações pragmáticas dos interesses comerciais do país, ele nega que

a República tenha imprimido uma mudança de curso nas relações exteriores do Brasil,

alegando que a amizade com os Estados Unidos vem desde os tempos da independência.

Para Rio Branco, “o ilustre autor do conhecido livro A ilusão americana” andava “mal

informado” quando escreveu que os Estados Unidos não deram provas de boa vontade

por ocasião da independência do Brasil, pois, segundo o chanceler, teriam sido eles os

primeiros a reconhecê-la, antes mesmo que Portugal o fizesse, em 1824. Também a

aceitação do monroísmo pelo Brasil teria suas origens no período imperial, a partir das

conversações entre o enviado brasileiro a Washington e o Secretário de Estado norte-

americano:

“ Qual o governo, neste nosso continente, que primeiro aceitou a chamada doutrina

de Monroe?

Pode responder-se sem hesitação: - o governo Imperial do Brasil.”7

4 JUNIOR, Araripe. “A Doutrina Monroe” in: Revista Americana: uma iniciativa pioneira de cooperação intelectual – edição fac-simile. Brasília: Funag. 2001 p.555 Idem. P.566 Idem. P.72

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Além de não ser uma novidade da política externa republicana, as relações

privilegiadas entre Brasil e Estados Unidos correspondem, na visão do Barão do Rio

Branco, aos mais altos interesses brasileiros. Isso porque garantem a segurança do país

contra os interesses imperialistas das potências européias, e impedem que outras

repúblicas latino-americanas incitem o poderoso exército americano contra o Brasil,

como já tentaram fazer:

“ Basta lembrar que se a ocupação militar francesa de 1836 em Amapá cessou no ano

de 1840, para isso concorreram as representações do governo dos Estados Unidos

apoiando em Paris as do Brasil e Inglaterra.

(...)

Todas as manobras empreendidas contra este país em Washington, desde 1823 até

hoje, encontraram sempre uma barreira invencível na velha amizade que felizmente une

o Brasil e os Estados Unidos, e que é dever da geração atual cultivar com o mesmo

empenho e ardor com que cultivaram os nossos maiores.”8

Joaquim Nabuco, um dos mais entusiastas defensores da orientação americanista

da política externa e primeiro representante do Brasil em Washington com status de

embaixador, reforça o argumento de que a Doutrina Monroe representava um fator de

estabilidade e paz no continente americano e no mundo como um todo:

“ A pressão em favor da paz da América sobre a Europa é a maior pressão que pesa no

mundo para conter a guerra. A América, graças a doutrina Monroe, é o continente da

paz, e esta colossal unidade de paz, interessando profundamente outras regiões da Terra

– o Pacífico inteiro, pode-se dizer, - forma um Hemisfério Neutro e equilibra o outro

Hemisfério, que poderíamos chamar de Hemisfério Beligerante.”9

Outro motivo lembrado brevemente pelo chanceler brasileiro para privilegiar as

relações com os Estados Unidos era o fato de que o país representava o principal

mercado para o café brasileiro. Embora Rio Branco não insista muito nesse argumento

no artigo publicado na Revista Americana em 1912, é provável que ele tivesse enorme

7 PARANHOS, José Maria da Silva (Barão do Rio Branco). “O Brasil, os Estados Unidos e o Monroísmo”, in: Revista Americana: uma iniciativa pioneira de cooperação intelectual – edição fac-simile. Brasília: Funag. 2001 p.1258 Idem, pp.137-140. 9 NABUCO, Joaquim. “A parte da América na civilização” in: Revista Americana: uma iniciativa pioneira de cooperação intelectual – edição fac-simile. Brasília: Funag. 2001 p.27

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importância nas considerações estratégicas do Ministério dos Negócios Estrangeiros,

pois a exportação de café era, como se sabe, a principal atividade econômica brasileira

no período da República Velha.

Apesar das negativas do Barão do Rio Branco, adequadas aliás ao discurso

diplomático, que tradicionalmente afirma a continuidade da orientação da política

externa, a maior parte dos analisas atuais considera que houve de fato uma inflexão

importante na política externa brasileira com a passagem do Império para a República.

Essa inflexão correspondeu, de um lado, aos interesses pragmáticos do Brasil, como a

garantia de suas fronteiras e do mercado americano para os seus produtos de exportação,

mas também representou uma identificação ideológica com a “Grande Nação do Norte”.

Os Estados Unidos se converteram em um espelho no qual os líderes republicanos

buscavam enxergar o futuro do Brasil, desviando o olhar do velho e decadente mundo

europeu. Joaquim Nabuco, sempre menos contido em seus escritos do que o Barão do

Rio Branco, revela esse pensamento com clareza em um artigo publicado no primeiro

número da Revista Americana: “... nunca pensaremos em esconder o nosso grande

orgulho em reconhecer nos filhos de Washington os modeladores da nossa civilização

americana.”10

O anti-americanismo e A ilusão americana

O livro de Eduardo Prado, publicado originalmente em 1893 e recolhido em

seguida pela polícia, aparentemente teve enorme repercussão entre os letrados da

República, a ponto de o próprio chanceler se dar ao trabalho de contestá-lo, anos depois,

nas páginas da Revista Americana. Identificando a tendência americanista do novo

governo brasileiro ao republicanismo, e assumindo claramente uma postura

monarquista, pela restauração do Império, o autor contesta a Doutrina Monroe e nega os

ganhos que o Brasil teria por meio do alinhamento com os Estados Unidos, postura

identificada com a subserviência e o mimetismo. Para Eduardo Prado, o Brasil deveria

buscar uma aproximação com a Europa, principalmente com a Inglaterra, vista como o

país mais avançado do mundo.

É preciso notar, contudo, que as críticas feitas pelo autor ao americanismo da

política externa brasileira não negam a grandeza, a prosperidade e a importância

10 Idem, p.36

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internacional dos Estados Unidos na passagem do século XIX para o XX. Observa-se,

aliás, uma clara admiração pela energia e inventividade do povo americano, assim como

pelo progresso material daquele país: “O solo mais rico do mundo, habitado pela raça

mais enérgica da espécie humana – eis o que são os Estados Unidos.”11 A ilusão

americana denuncia, sobretudo, a idéia de que as instituições norte-americanas – isso é,

o republicanismo – devam ser copiadas por outros povos, pois a prosperidade daquele

país não adviria de suas instituições, e sim do seu povo e das suas condições naturais.

Eduardo Prado se contrapõe, portanto, à tendência de vários letrados brasileiros, entre

eles Joaquim Nabuco e outros futuros colaboradores da Revista Americana, em buscar

inspiração na constituição americana para o processo de construção do Estado

Republicano no Brasil:

“ [A] escola fatal dos imitadores de instituições não atende ao contra-senso do seu

sistema, nem aos funestos resultados que produzem as leis transplantadas

arbitrariamente de um país para outro. (...) Copiemos, copiemos, pensam os insensatos,

copiemos e seremos grandes!”12

Eduardo Prado duvida que a solidariedade americana expressa na Doutrina

Monroe signifique alguma coisa substantiva. Para ele, as iniciativas dos Estados Unidos,

incluindo o congresso pan-americano de 1889, são apenas tentativas norte-americanas

de consolidar seu poder e sua influência na região. O governo dos Estados Unidos

jamais agiria de forma a contrariar seus próprios interesses, mesmo quando evoca a

fraternidade pan-americana. Nesse sentido, estariam enganados os líderes da América

Lática que pretendem fazer da Doutrina Monroe um instrumento de sua proteção, pois

“[a] independência das nações latinas da América em nada foi protegida pelos Estados

Unidos.”13 Sempre que houve conflito entre os interesses de países latino-americanos e

o interesse dos Estados Unidos, esses últimos não hesitaram em recorrer ao

intervencionismo e até à força para impor suas determinações sobre Estados mais

fracos. Em vez de defender a “América para os americanos”, a Doutrina Monroe, de

acordo com essa visão, defendia a “América para os americanos do norte”.

Também no campo comercial, a aproximação entre Brasil e Estados Unidos é

contestada por Eduardo Prado. Embora não ignore que o país represente o principal

11 PRADO, Eduardo. A ilusão americana. São Paulo: IBRASA 1980. p.16712 Idem. p.168 13 Idem. p. 24.

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mercado para o café brasileiro, o autor afirma que esse comércio atende principalmente

aos interesses dos Estados Unidos, e questiona os tratados comerciais assinados por

ambos os países, concedendo benefícios alfandegários em setores específicos:

“ Os americanos não compram café por amizade, nem por filantropia. Compram

porque querem bebê-lo, e, não o tendo em casa, procuram-no onde encontram, e o país

produtor que mais lhes convém é o Brasil. Mas, ainda em relação ao café, é força

confessar que a feição dos mercados europeus é mais favorável ao Brasil do que o

mercado de Nova Iorque. Seja pelo que for o motivo, a tendência constante dos

mercados europeus é para alta e Nova Iorque é para baixa.”14

Esse trecho revela um dos aspectos mais interessantes da crítica ao

americanismo da política externa brasileira feita em A ilusão americana. O autor

claramente vê nos europeus – principalmente na Inglaterra – parceiros comerciais e

políticos mais adequados para o Brasil, não advogando, portanto, uma postura

independente, centrada no desenvolvimento do próprio mercado interno brasileiro,

como fará Serzedelo Correia. Em certos momentos, Eduardo Prado defende

apaixonadamente os benefícios que as potências européias teriam trazido ao Brasil, em

contraste com os minguados investimentos norte-americanos, que visariam apenas o

lucro próprio:

“ Nunca dos Estados Unidos veio o mínimo auxílio para as nossas indústrias, para a

nossa lavoura ou para a nossa viação férrea. Há perto de quatrocentos mil contos de réis

da Inglaterra empregados no Brasil (...) E o povo inglês é tão superior que, em 1865,

estando o Brasil de relações rotas com a Inglaterra, por motivos da questão Christie (...)

conseguiu levantar em Londres um empréstimo, na ocasião em que iniciávamos uma

guerra terrível.”15

Cabe perguntar, considerando a apreço do autor pela Inglaterra, se Eduardo

Prado sobreviveria à crítica contundente que ele mesmo faz aos seus adversários

republicanos no que toca ao mimetismo das instituições políticas e ao alinhamento da

política externa. Afinal, a monarquia também não seria uma instituição “importada”?

Não estaria o autor buscando inspiração no modelo das monarquias européias para a

14 Idem. p.16515 Idem. p.162

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formação das instituições brasileiras? Seriam os europeus parceiros tão melhores para o

desenvolvimento do Brasil do que os norte-americanos?

A ilusão americana sem dúvida propõe um modelo de política externa e

organização institucional radicalmente diferente do defendido nos artigos da Revista

Americana, mas, curiosamente, esses dois pólos se aproximam quando consideramos

que ambos advogam em favor de uma postura de alinhamento com as grandes potências

do fim do século XIX e início do século XX, variando apenas com relação a qual

potência deve ser definida como central para os interesses brasileiros – os Estados

Unidos ou a Inglaterra. A perspectiva de um desenvolvimento independente sequer é

aventada com seriedade, pois o mercado interno brasileiro é visto como débil, e o povo

como despreparado e incapaz. Eduardo Prado, portanto, desvia o olhar do espelho norte-

americano, mas faz dos ingleses o seu exemplo de sociedade e civilização.

O sonho do desenvolvimento independente – O problema econômico no Brasil

Uma voz dissonante no debate entre americanismo e europeísmo nos primeiros

anos da República Velha é a de Serzedelo Correia, autor de O problema econômico no

Brasil, publicado originalmente em 1903. Diferente de Eduardo Prado e dos

colaboradores da Revista Americana, Serzedelo defende a ruptura total dos laços

“coloniais” entre o Brasil e as potências estrangeiras, vistas, em geral, como

exploradoras e contrárias aos interesses nacionais. Sua análise enfoca o caráter frágil da

economia brasileira, essencialmente dependente dos capitais estrangeiros, o que

acabaria provocando a miséria do Brasil e a riqueza de capitalistas europeus e

americanos.

O autor distingue a independência política da independência econômica, e

afirma que enquanto a segunda não for conquistada, o país continuará sendo equivalente

a uma colônia no cenário internacional. De acordo com ele, a maior parte da riqueza

nacional sairia do país sob fora de lucros e remessas feitas para o exterior, o que

impediria o desenvolvimento dos empreendimentos brasileiros. Nesse contexto, os

planos de valorização do café feitos pelo governo conseguiriam apenas adiar a solução

da dependência estrutural do país, sem resolver realmente as bases dessa dependência.

O problema fundamental da economia brasileira estaria, portanto, na falta de capacidade

de reter os excedentes gerados internamente, pois a maior parte dos capitais investidos

Page 12: alinhamento na República Velha

teria origem estrangeira. Para Serzedelo, a única forma de lidar adequadamente com

esse problema seria por meio da limitação das remessas de lucros para o estrangeiro:

“ A solução dada à crise do café, ou, em sentido mais geral, à crise da lavoura, é

parcial e não terá o alcance desejado se não adotarmos uma política econômica que

defenda os interesses de nossa produção, que incremente e avigore as nossas indústrias,

que desenvolva a navegação nacional, que ampare o comércio brasileiro, que, enfim,

faça com que fiquem no país uma grande parte dos lucros, dos proveitos de toda

atividade econômica.”16

A nacionalização e a imposição de altas tarifas alfandegárias para a defesa da

produção nacional também são apresentadas como meios para favorecer a emancipação

econômica e diminuir a dependência com relação às potências estrangeiras. Serzedelo

vê na política liberal de manter a economia aberta aos produtos estrangeiros uma das

raízes das dificuldades econômicas do país, e cita como exemplo as altas tarifas

praticadas na Europa e os Estados Unidos em proteção a setores sensíveis da economia.

O desenvolvimento nacional passaria, assim, por um afastamento tanto da Europa

quanto dos Estados Unidos, que deveriam ter seus produtos manufaturados

gradativamente substituídos por produtos de fabricação nacional.

“ O que quero, o que desejo, o que entendo que devemos fazer é a nacionalização

lenta e segura de todas essas forças; é a incorporação contínua de todos esses elementos,

que nos vem do exterior, por um conjunto de medidas que criem óbices à remessa para

fora do país de todas as nossas economias, e que tenham o poder de ir aclimatando aqui

parte dos lucros, que, por sua atividade, estrangeiros e portugueses tem sabido criar.”17

Na análise de Serzedelo, a relação subordinação do Brasil às potências

estrangeiras adviria menos do alinhamento político com esse ou aquele país – como

visto na controvérsia entre A ilusão americana e a Revista Americana – e mais da

dependência estrutural da economia brasileira dos capitais estrangeiros, que remetem

para fora do país as riquezas aqui geradas. Nesse sentido, pouco importa se os

investidores são americanos, ingleses, alemães ou argentinos, eles estabeleceriam

relações desfavoráveis para o Brasil de qualquer forma. Tendo isso em vista, a

16 CORREIA, Serzedello. O problema econômico no Brasil. Brasília: Senado Federal, 1980. p.2117 Idem. p.72.

Page 13: alinhamento na República Velha

prioridade do país deveria ser a criação de uma economia independente, que não se

limitasse a exportar produtos agrícolas, de baixo valor, para o mercado internacional e

importar em contrapartida bens de valor mais alto. O conceito de “colonização

econômica” proposto pelo autor diz respeito exatamente ao desequilíbrio na balança

comercial brasileira, que teria saldo negativo com uma série de países:

“Quebramos as cadeias com a metrópole mas continuamos colônia de Portugal e o

somos da Inglaterra, da Alemanha, dos Estados Unidos, da Itália e até da República

Argentina e do Uruguai, comercialmente falando.”18

A proposta de Serzedelo, portanto, é essencialmente negativa, ou seja, o autor

aponta mais aquilo que não se deve fazer do que aquilo que precisa ser feito, e apresenta

poucas saídas concretas para a situação de dependência estrutural da economia

brasileira. Nem americanismo nem europeísmo ou anglicismo, a melhor alternativa para

o Brasil não estaria no alinhamento a qualquer potência estrangeira, mas si na busca de

uma linha própria de desenvolvimento, uma “política nacionalista”, nas palavras de

Serzedelo. Embora a Inglaterra e os Estados Unidos possam servir como exemplos,

principalmente no que diz respeito à capacidade desses países de defenderem e

estimularem suas próprias economias, nenhum deles deveria ser privilegiado em suas

relações com o Brasil. Na análise do autor, entretanto, não fica claro de onde viriam os

recursos para o auto-financiamento do capitalismo brasileiro, ou seja, a proposta

nacionalista de Serzedelo é muito menos pragmática e objetiva do que as propostas

americanista da Revista Americana e a proposta europeísta de Eduardo Prado.

O modelo de desenvolvimento nacional não-alinhado apresentado em O

problema econômico no Brasil só encontraria condições para ser colocado em prática

sessenta anos após a publicação desse livro, no período da chamada Política externa

independente, defendida e implementada pelo chanceler San Tiago Dantas, durante o

governo de João Goulart. No contexto da República Velha, infelizmente a proposta de

Serzedelo refletia mais um sonho de desenvolvimento independente do que uma

alternativa viável para o país, dividido entre o alinhamento aos Estados Unidos ou à

Europa.

18 Idem. p.23

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Conclusão – a vitória do modelo americanista

Olhando em perspectiva histórica o debate entre americanismo e anti-

americanismo na passagem do século XIX para o século XX, percebemos uma clara

supremacia da primeira tendência durante a República Velha, e mesmo após a revolução

de 1930. Apesar da grande repercussão do livro A ilusão americana, a burocracia estatal

encarregada dos negócios estrangeiros não abandonou a sua estratégia de aproximação

com os países da América. De fato, o americanismo norteou a política externa brasileira

até meados do século XX, perdendo progressivamente o seu caráter de pan-

americanismo e se convertendo em um alinhamento efetivo aos Estados Unidos, que

receberam tratamento comercial favorecido em uma série de tratados e contaram com o

apoio do Brasil nas duas Guerras Mundiais.

Além das evidentes conseqüências que essa tendência provocou na condução da

política externa brasileira, o americanismo que se desenhava nas páginas da Revista

Americana nas primeiras duas décadas do século XX teve um aspecto ideológico que

não pode ser esquecido. Esse aspecto é diretamente relacionado à feição que tomaram as

instituições brasileiras após a derrubada do Império, usando as instituições norte-

americanas como exemplo. Mais do que um parceiro prioritário nas relações exteriores,

os Estados Unidos foram um espelho para a República brasileira, como se percebe nos

artigos de Joaquim Nabuco e de outros americanistas do período.

O europeísmo de Eduardo Prado encontrou cada vez menos ressonância à

medida que a República se consolidou, e perdeu completamente o seu apelo no Brasil

após a Primeira Guerra Mundial, quando os Estados Unidos despontaram

definitivamente como a grande potência mundial do século XX. Na carta da Liga das

Nações, assinada pelo Brasil logo depois da guerra, o artigo 24 reconhece

expressamente a validade da Doutrina Monroe, e afirma que a Liga não se envolverá

nas disputas americanas. Apenas a Argentina continuaria contestando a hegemonia

norte-americana no continente, em grande parte por causa de sua persistente aliança

com a Inglaterra.

Apenas em 1962, ou seja, cinqüenta e nove anos após a publicação de O

problema econômico no Brasil, o Ministério das Relações exteriores do Brasil assumiria

uma linha de ação claramente independente, visando o favorecimento das empresas

brasileiras em detrimento de alianças estratégicas com as grandes potências mundiais. A

célebre máxima de San Tiago Dantas com relação aos Estados Unidos – “nem inimigos,

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nem caudatários servis” – tem evidente afinidade com as idéias de Serzedelo Correia,

que, como vimos, defendia um projeto nacional autônomo, se distanciando da disputa

entre americanismo e anti-americanismo das primeiras décadas da República.

Entre as propostas políticas e econômicas analisadas, portanto, o americanismo

foi a que conseguiu se impor, servindo como paradigma para a ação externa e para a

construção das instituições republicanas brasileiras. Imagem bastante distorcida do

espelho americano, a realidade brasileira continuaria a desafiar as perspectivas dos

americanistas, teimando em não se adequar ao modelo exterior que lhe era imposto. O

Brasil nunca conseguiria se tornar verdadeiramente um novo Estados Unidos, frustrando

as esperanças dos mais fervorosos colaboradores da Revista Americana.

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Referências:

CERVO, Amado. História da política exterior do Brasil. Brasília: EdUNB. 2008

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