Alma Improvavelmente Dolorosa · 2016-07-28 · temperatura que se fazia para lá da minha porta, e...

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Alma Improvavelmente

Dolorosa

Andreia Silva

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A chuva bate violentamente no vidro. Nem sequer pede permissão para

o fazer. Chega, bate, molha e vai embora escorregando por entre as partículas

antes feitas de areia e agora todas afeiçoadas num único material chamado

vidro. O tempo já andava há muito tempo a fazer ameaças, o céu já tinha

expressado na sua cor carregada de negro que iria desabar a qualquer

momento. Só não acreditou quem não quis. Nós, os humanos ou pessoas,

como lhe quiserem chamar, temos a mania de não acreditar. Não acreditamos

que vai chover. Não acreditamos que vai ficar frio. Nem acreditamos, quase

nunca, que vamos perder as pessoas que mais amamos, as pessoas de quem

nunca nos queríamos separar. Não acreditamos que a morte chega sempre.

Não queremos acreditar que as nossas linhas vitais não foram feitas de tinta

permanente, mas sim de lápis mole, facilmente apagado por uma borracha

qualquer. Eu também não acreditava. Quando via assim, as nuvens num

estado de tal enamoramento umas com as outras que nos tapavam toda a

luminosidade solar, nunca acreditava que poderia chover, apesar de a chuva

me contrariar sempre a crença. Mas depois de a morte me ter convencido que

apesar de não ser visível, anda sempre por aí, hoje olhei para o céu e acreditei

que choveria.

Passou um ano. Exatamente trezentos e sessenta e cinco dias em que

vi pela última vez os teus olhos, mas não o teu olhar. Exatamente trezentos e

sessenta e cinco dias que vi pela última vez as tuas mãos, mas não o teu

toque. A recordação é longínqua. Longínqua mas presente e dolorosa. Ainda

hoje me custa lembrar do dia. Não o de há trezentos e sessenta e cinco dias

atrás, mas o outro, o mais distante. E a memória é traidora ao ponto de não se

esquecer, apesar de lhe doer. É masoquista. E hoje, quando passou um ano e

a chuva bate de uma maneira feroz no vidro da janela, dá chicotadas nela

própria. Sangra, dói, mas as lembranças balançam entre as conexões do meu

cérebro e eu visualizo tudo. Tudo como se fosse hoje.

Estava sol. Estava calor. O Verão tinha chegado em força. Não entrou

com pezinhos de lã, entrou com botas ruidosas para mostrar que chegou e que

quer ser visto. Visto e sentido. E isso chateava-me. Sempre detestei o calor, o

suor que se instala nos corpos, a humidade que não deixa nos mexermos. O

calor que nos maça, que nos enjoa e que nos deturpa a visão. Nunca gostei do

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calor, e ainda menos quando ele vinha acoplado ao Verão. Saía o menos

possível de casa, apenas naquelas horas em que o Sol ia resistindo à chegada

da Lua, apenas quando a minha pele já se ressentia por não apanhar ar e luz

natural. As janelas permaneciam fechadas os dias inteiros. A minha alma ia-se

vampirizando à medida que os dias sudoríferos se iam alastrado pelo

calendário.

Houve um dia que uma súbita dor me fez esquecer a intensa

temperatura que se fazia para lá da minha porta, e me fez ir até ao hospital. Eu

sabia o que era, sabia porque toda a minha vida vivi com ela, mas naquele dia

parecia uma dor diferente, que me estava a dizer algo que eu ainda não sabia

sobre ela. Eu sabia do que era. A minha vida sempre foi condicionada por

aquela dor, mas naquele dia não estava a doer da mesma forma. Sabia que me

iam dizer que era normal, que não podiam fazer nada contra aquela dor, que

era psicológico, que ainda não tinham inventado um químico eficaz contra

aquela patologia, que o melhor era ir para casa e esperar que passasse. Eu

sabia que me diriam isso. A mim o que me dói e sempre me doeu tem um

nome abstrato. Não se vê, não se toca, não se trata. Alma. É o que me

incomoda desde que sou pequenina. A minha mãe achava que eu era maluca.

O meu pai chorou todo o dinheiro que gastou, procurando uma cura para

aquela dor intensa que passei a infância a chamar para que parasse. E eu

continuei com ela. Deixei de me queixar, até àquele dia. Faz hoje precisamente

trezentos e sessenta e cinco dias.

O hospital, onde todos me conheciam, ficava apenas a cinco minutos a

pé da minha casa, mas demorei os cinco minutos apenas a transpor a porta

que me desligava do Verão quente lá de fora. Quando cheguei à porta do

espaço clínico, a dor não tinha diminuído de intensidade. Continuava lá, forte,

marcando a sua presença. Eu sabia sempre que ela passava, nunca sabia é

quanto tempo isso demoraria a acontecer. Não me dirigi a nenhum lado.

Sentei-me cá fora, naquilo que chamam sala de espera, nos bancos onde as

pessoas aguardam por notícias, onde se chora ou se ri, onde se espera ou se

desespera. Sentei-me com as pernas cruzadas como se fosse uma criança de

cinco anos com medo por ter perdido o urso de peluche. Sentei-me assim e

esperei que a dor abrandasse. Era mais forte do que o normal, mas não

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adiantaria clamar por ajuda. Eu já sabia o que me diriam e não me queria

mexer. Estava demasiado calor.

Foi aí que tu entraste. Tinha escutado de longe a sirene que durante

tantos anos fez parte da minha lista musical. Não me assustava. Ouvia-a com

uma intensidade crescente, aproximando-se cada vez mais do meu banco. A

minha dor continuava lá, continuava a pedir atenção, a mostrar que apesar de

por vezes não se manifestar, ela estava lá. O estado de latência não a mata e

tenho a sensação, que por vezes a fortalece. Mas deixei de lhe prestar

atenção, deixei de escutar o seu latejar, o chamamento tão característico das

dores. Apenas olhei para ti. Eras mesmo tu. Pensei, na minha incrível

inocência, que nunca mais te iria ver, que os meus olhos nunca mais veriam os

teus, que as minhas pupilas nunca mais se dilatariam de tal modo a sair das

órbitas só por ver as tuas. Mas tu não me viste. Tu não reparaste sequer na

minha singela aparência de criança assustada, muito menos na minha

aparência de mulher lotada de saudades de ti. Não reparaste nem podias

reparar. Estavas em coma. E nem em ti próprio poderias reparar.

Saltei para fora da cadeira, esquecendo-me da minha dor. Ela que

doesse, que me matasse e que me deixasse sem respiração. Não queria

saber. Corri atrás de ti. Lancei os meus pés e as minhas pernas pelo corredor

branco ladeado de paredes brancas, onde só o ar é que era negro. Corri mas

não me deixaram seguir. Fui barrada por braços e por mãos que me impediram

de te ver. E a minha dor também não me deu forças extra para combater todos

aqueles membros apertados contra mim. Pelo contrário, diminuíram aquelas

que ainda me restavam e eu deixei-me deslizar pela parede até ao chão. E lá

fiquei. Fiquei encostada ao branco tão puro que me fez pensar que estava

entre as nuvens. Lembrei-me do dia em que nos conhecemos.

O teu sorriso foi uma constante naquele dia. Tínhamos combinado

encontrarmo-nos depois de vários dias entre teclas. Durante esses dias a

minha dor não deu sinais de vida. Pensei que o que ela precisava era de amor.

Ela só dói de fome. Fome de amor. Quando está bem alimentada não dói. Não

se manifesta. E nesses dias não se manifestou. Muito menos quando pus o

meu olhar no teu. Muito menos quando senti as tuas mãos em mim. Amei-te ao

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primeiro segundo em que te vi diante de mim. Foi um daqueles dias em que as

horas parecem segundos, em que achamos que o relógio se avariou e está a

saltar os minutos de dois em dois, em que o tempo, que achamos que parou,

afinal avança qual atleta de competição. E o dia chegou ao fim. Chegou ao fim

e eu nunca mais te vi. A minha dor voltou nos dias seguintes aos bocadinhos,

aos poucos e pouco foi aumentando e eu voltei a ser a mesma de sempre.

Triste, dolorida e carente de ti. Nunca mais tive notícias tuas. Desapareceste

no piscar de olhos que dei num milésimo de segundo e nunca mais te vi.

Fiquei encostada ao chão tanto tempo que não sentia nada quando abri

os olhos e me apercebi onde estava. Estava fria, gélida, mas não tremia.

Estagnei por segundos e esperei. Lá estava ela. A dor a mostrar que nunca foi

irreal, que não foi nunca ilusória e que precisa de nutrição. Mas ela ia passar,

eu sabia que ia passar! Geralmente, dou-lhe engano, alimento-a de comida

para a comida enganar o estômago. E ela acalma. Acalma mas fica lá e

magoa. Menos, mas magoa. Lembrei-me de ti. De ti deitado na maca alheado

de tudo o que se passa à tua volta. Então corri! Corri novamente pelo corredor

à procura de ti. Desta vez ninguém me prendeu. Desta vez não houve

restrições aos meus passos acelerados nem à minha respiração ofegante.

Corri como se o corredor fosse uma pista de atletismo onde não se avista a

meta, onde o tiro da última volta não é disparado, onde não há fim. Mas

cheguei lá, à meta. A porta entreabriu-se livremente. Não tinha trancas, não

tinha calços que a impedissem de fechar. Mas não me atrevi a entrar. Eu

queria, mas os meus pés ficaram presos ao chão branco como se as suas

partículas tivessem ímanes que se atraíssem. Os médicos e as enfermeiras

estavam sérios, assustados e carrancudos. Estavas a dar muito trabalho. Olhei

lá para dentro. Não parecia que estivesses a sofrer. A tua face estava tranquila,

os teus músculos não estavam contraídos. Não estavam porque conheço os

teus músculos. Já os vi contraírem-se naquele dia, quando te perguntei o que

achavas da palavra futuro. Não sorriste. Não falaste. Mas as fibras musculares

do teu rosto aconchegaram-se umas nas outras como se fossem aquecer-se.

Mas quando olhei para ti, da porta que não fechava (que ironia, a porta

convidava mas os meus pés recusaram o convite), vi que as tuas fibras

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musculares também deviam estar assustadas e por isso nem se juntavam.

Estavam todas separadas. E a tua cara estava serena.

Será que ainda te lembras de mim? Já passou tanto tempo e ao mesmo

tempo tão pouco. Foi apenas um dia, eu sei. Foram apenas 24 horas, eu sei.

Mas foram como anos. Lembro-me exatamente dos teus olhos, da cor, do

formato, da amplitude e da distância que os separava dos meus. Lembro-me

exatamente do teu sorriso, da abertura que me deixou visualizar os teus dentes

brancos e direitos como uma régua. Lembro-me da cor dos lábios e do sabor

que ficou nos meus. Foi só um beijo, eu sei, mas foi como se tivessem sido mil.

Será que ainda te lembras de mim?

Fui empurrada por uma enfermeira que deu comigo especada em frente

à porta e me disse que não podia estar ali. Nem resisti. Deixei-me ser levada

como se fosse um fantoche, deixei que ela me guiasse os passos. Perguntou-

me se me sentia bem. Disse que não. Que tinha uma dor e apontei com o meu

dedo em direção ao peito. Ela levantou-se num ápice, pronta para alertar o

serviço de cardiologia. Eu disse-lhe que não valia a pena, que já passava. Que

não era o coração como órgão físico que me latejava no peito, era a alma. Ela

não se moveu. Deve ter pensado em mudar o número da cardiologia que tinha

marcado no seu pager e chamar a psiquiatria. Mas depois viu-me frágil e

indefesa como uma cria de ave, caída do ninho, e desistiu de mim. Deixou-me

na mesma cadeira onde estava antes de te ver. A cadeira ainda estava morna,

ainda continha lá o calor do meu corpo, resquícios de mim. Senti-me

aconchegada, sentada em cima de algo que era meu e me pertencia.

Tive a sensação que tinha adormecido. Era de tarde e eu tinha-me

alienado do mundo e tinha dormido. Não me lembrava do sono me chegar às

pálpebras. Deve ter chegado como uma flecha, como uma bala e eu devo ter

adormecido de imediato. Ou então, era a minha memória a trair-me. Senti-me

entorpecida, levantei-me para esticar os músculos e mal me estiquei veio ela, a

dor, que durante o sono não se manifestou. Deixou-me dormir qual raptor deixa

descansar o seu refém. Mas agora tinha voltado. E doía. Doía menos do que

na hora que me fez rumar para lá. Se calhar foi isso. Doeu tanto para me fazer

ir ao hospital, para te encontrar. Tu tens a capacidade de a nutrir e de a

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acalmar. É uma dor inteligente esta que carrego comigo. São muitos anos de

convivência e já lhe conheço as manhas. Tinha fome. Mas não me queria

separar daquela cadeira. E se quando voltasse ela estivesse ocupada? Teria

de me sentar numa fria, impessoal, sem nada de mim. E eu não queria. Avistei

uma máquina de distribuição de comida a uns passos dos bancos da sala de

espera. Fui até ela, de costas, com um olho na cadeira e outro no chão que

pisava para não me estatelar. Meti uma moeda que trazia no bolso de trás das

calças e tirei de lá um chocolate. Podia ser que um doce acalmasse a minha

dor, depois corri até à cadeira. Vi um senhor idoso ir na direção dela, mas os

meus passos eram mais rápidos e mais eficazes e cheguei primeiro. Lembras-

te do chocolate que partilhamos naquele dia? Em que eu disse que tinha

demasiadas calorias mas que aquele dia era muito especial e por isso merecia

um mimo? Tu não quiseste, foi logo a seguir a ver os teus músculos contraídos

e o chocolate foi uma tentativa de separar as tuas fibras musculares.

Amenizou, mas não o suficiente para te ver como te tinha visto, deitado na

maca. Completamente sereno.

Precisava de te ver. Precisava de saber notícias. Quaisquer notícias,

boas ou más notícias. Por vezes o silêncio mói mais do que muitas palavras

juntas. Levantei-me. Nem sequer me preocupei com a cadeira. Percorri o

corredor, desta vez não em passo de corrida, mas devagar. Era uma lentidão

aparente e superficial. Internamente os meus pés andavam a galope mas

externamente andavam a passo de caracol. Espreitei pela porta da sala onde

antes estavas. Antes. Já não te encontravas lá. A sala estava vazia, o silêncio

reinava. Já nem a porta balançava com as entradas e saídas repentinas. A dor

aumentou e eu sabia porquê. Precisava de saber de ti. E agora não sabia onde

te procurar. Não sabia e não tinha qualquer pista, qualquer vestígio que

pudesse seguir. Mudei de corredor. A velocidade dos meus passos aumentou

consideravelmente. Estavam diretamente proporcionais ao tamanho da minha

dor. Não sabia para onde ia. Não vi se era restrito a estranhos ou não. Mas eu

já não podia ser considerada uma estranha. Passei a minha infância em

hospitais. Não sabia cortar, colar ou cozer, mas conhecia os espaços. E quem

conhece os espaços não pode ser considerado estranho. Vagueei por aqueles

labirintos durante tempos indetermináveis até te encontrar em algum canto,

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alguma sala, em algum sítio. Mas não te achei. Subi de piso. Não quis saber da

cadeira. Deixei-a para outros corpos a ocuparem. Sempre fui assim. Deixo tudo

para outros corpos ocuparem. E depois fico sempre sem nada. A cadeira era

só mais uma. Subi as escadas uma a uma. Sabia que se não estavas em

baixo, já não eras um caso urgente. E a urgência dizia sempre que algo era

grave, mas que existia. E a não urgência poderia significar que já não existias.

A medo continuei a subir. Os pisos eram iguais. As cadeiras de espera

estavam no mesmo sítio. As portas eram iguais. O chão e as paredes eram do

mesmo tipo de branco. E os corredores feitos do mesmo material labiríntico.

Entrei num. Era ladeado por portas que davam para quartos. Mas não quartos

banais. Quarto com máquinas em todo o lado e só o espaço livre para uma

cama. Olhei para as janelas das portas. Estas portas já não eram livres.

Tinham fechadura. Fechavam. Olhei para todas e não te encontrei em

nenhuma. Até à última.

Quando espreitei, encontrei-te. Senti a minha dor diminuir linearmente.

Para não me doer deveria diminuir exponencialmente, mas só diminuiu

linearmente. Estavas ligado a uma máquina, ou seriam várias? Continuavas

com o mesmo semblante sereno, calmo, tranquilo. Ali, a um passo de mim. A

tentação foi mais forte e chegou às minhas mãos que chegaram ao puxador da

porta que o fizeram rodar na direção da abertura. Nem sequer me lembrei de

que poderia estar fechada. Nem me passou pela cabeça essa hipótese. Estava

aberta. Foi tão fácil, naquele momento, chegar a ti. Estavas a centímetros,

apesar de não reparares sequer no bater do teu coração, quanto mais no bater

do meu. A dor continuava pequena. Sempre manifestante, mas menos efusiva.

Fiquei parada entre o caminho da porta e o teu repouso. Não sabia onde

pousar as mãos, não sabia onde deixar o olhar. Não sabia o que sentir, sequer.

Queria poder falar contigo, queria poder dizer coisas mas também queria que

conseguisses ouvir. E naquela altura não era possível. Fiquei apenas parada.

Visualizei, em flash, o nosso dia, aquele dia de há muito tempo atrás, em que

pude falar-te, ouvir-te e tocar-te. Quis tocar-te mas tive medo de todos aqueles

fios, de todos os tubos que saíam e entravam em ti, do barulho constante que

marcava o teu ritmo cardíaco. Estava frio na sala, senti um arrepio que me

trespassou a espinha e me atingiu o tutano. Deveria ser um aviso que não

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deveria estar ali. Não era suposto eu estar naquele sítio. Mas por outro lado

não tive culpa de as circunstâncias vitais nos juntarem no mesmo local. Local

que eu conhecia tão bem, mas que tu raramente visitavas. As probabilidades

de isto acontecer eram daquelas que contêm muitos zeros e que, apesar de

prováveis, nos parecem sempre impossíveis. Mas eu sempre tive esta mania

de contrariar todas as probabilidades. Qual a probabilidade de uma criança

nascer com uma dor crónica na alma? Uma dor que se alimenta de amor, de

paixão e de desejo? Probabilidades são os meus dias. E as minhas noites são

contraídas em cima de acasos. Eu estava ali, tu estavas ali, e fosse lá o que

nos tinha juntado naquele dia, no mesmo sítio, eu não pude ignorar.

Falei contigo, disse tudo o que a minha garganta em comunhão com o

coração e a cabeça não podiam guardar mais. Mas não se ouviu a minha voz.

Eu queria. Abri a boca, mas o som que (não) saiu era mudo. Falei tudo, mas

mentalmente. Não sei se te apercebeste da minha presença, mas não quis

perder a oportunidade de te falar, mesmo sem usar os fonemas necessários à

compreensão oral. Depois deixei-te. Ainda hesitei, ainda parei na porta, de

costas voltadas para ti, ansiando esperançosamente que sussurrasses o meu

nome, ainda que fosse com pouca amplitude. Esperei uns segundos, talvez

tivessem sido minutos, mas nada disseste. Rodei a cabeça na tua direção e

continuavas na mesma posição. Olhos fechados. Tranquilamente. E eu saí.

Saí do quarto onde estavas, mas fiquei no corredor. Sentei-me no chão

ao lado da porta. Não era por ti que eu lá estava. Era por mim. Pela minha dor.

Perto de ti quase não a sentia e isso era tão raro no decorrer dos meus dias

que fiquei ali, a aproveitar a sensação de liberdade. Podia respirar sem que me

encurtassem os pulmões, podia inspirar e expirar sem que os batimentos do

meu coração acelerassem repentinamente. Era uma sensação tão boa e tão

inédita que tive de ficar lá. Poucas vezes tinha sentido aquela liberdade.

Sempre me lembro da dor viver comigo. Só uma vez em que o meu pai me

abraçou e me disse que gostava de mim da maneira que eu era e depois,

quando estive contigo, é que a senti. Depois, o tempo foi passando, o meu pai

viu que não valera a pena os cuidados para comigo, porque esta dor é

intratável, medicamente falando. Depois, o tempo foi passando e eu nunca

mais te vi. E a dor voltou às suas manifestações. Até àquele dia.

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Nos minutos seguintes tentei abstrair-me de tudo o que fazia parte do

mundo. Tentei imaginar-me longe de tudo o que era material, físico e virtual e

tentei chegar ao lugar mais longínquo, metaforicamente falando. Tentei, por

momentos, visualizar-me no paraíso, entre nuvens brancas, silêncios absolutos

e sobretudo paz. Paz. Leveza total. Estava num estado completo de transe,

devendo aparentar um aspeto fúnebre, porque quando senti um dedo chegar à

minha face, estremeci, com o toque e com a cara gélida da dona do dedo.

Perguntou-me se me estava a sentir bem, se estava perdida ou se precisava

de alguma coisa. Eu, nada disse. Apenas me levantei e comecei a caminhar na

direção oposta do teu quarto. Ela ficou com cara de incompreensão para mim.

Ai, como eu conhecia aquela cara. Não a cara em si, mas a reação, mas o

modo como as linhas todas da face se organizam para obtermos aquele

resultado. Eu era criança e perguntavam-me onde me doía. Eu respondia

sempre com as mesmas frases, com as vírgulas e os pontos sempre nos

mesmos lugares: “dói-me a alma, mas está tudo bem, já passa”. E as pessoas

ficavam com aquela cara que a dona do dedo demonstrou. E desta vez nem

tive de dizer nada. Fui-me embora dali, daquele corredor onde tu estavas. E a

minha dor voltou a bater fortemente, como se estivesse enclausurada e

precisasse de sair. Cheguei ao fim do corredor sem saber para onde me dirigir,

sem saber porque é que eu estava ali. Pela primeira vez tive vontade de me ir

embora, tive vontade de te deixar. Deixar de vez. Deixar-te ali estendido,

parado e inconsciente. Nunca irias saber que tinha estado lá contigo e que,

embora não te tendo dito nada, falei-te de tudo. Tive vontade de te largar de

vez. Tive vontade, mas não lhe obedeci.

Contornei as cadeiras da sala de espera daquele piso, procurando

alguma coisa que me puxasse para alguma delas. Eu estava a ficar louca. E

precisava de me sentar. Escolhi uma ao acaso. E lá estavam eles. Os acasos.

E depois contrariei outra probabilidade. Sentei-me com os pés a quererem fugir

do chão e reparei que do meu repouso via a porta do teu quarto. Quereria dizer

alguma coisa? Quereria o destino que eu ficasse ali, de vigia, de sentinela? Se

eu nunca soube o que ele quis para mim, como poderia saber naquele

momento? Passei a minha vida toda tentando arranjar uma explicação para ser

portadora desta maleita, de quem nunca ninguém ouviu falar, e que não me

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deixa viver em normalidade. Passei a vida que vivi a perguntar porquê a minha

pessoa. De certeza que há uma razão, só ainda não a consegui decifrar entre

as minhas vivências. Em todas aquelas épocas importantes da vida de cada

um de nós, onde conhecemos as pessoas mais significativas da nossa

existência, não descobri a razão. Em nenhuma delas. Nunca contei a ninguém

o que carrego comigo. Sempre que a dor me impedia de sair de casa, dizia que

estava indisposta. E toda a gente acreditava. Estar indisposta é normal

acredita-se. Ter uma dor crónica de alma não é normal e não se acredita. É

simples.

Queria apenas saber verdadeiramente como tu estavas, a tarde estava a

chegar ao fim e eu não podia ficar ali eternamente. Por muito que a dor

condicionasse a minha vida, na maior parte das vezes eu mandava nela. Ela

era um parasita, vivia de mim e em mim, mas só vivia por mim. Se eu deixasse

de ser ela não mais existiria. Por muito que a dor gostasse de estar perto de ti,

eu não podia ficar ali. Apenas precisava de saber como estavas e ia-me

embora. Levantei-me da cadeira, mais uma onde deixei a minha marca. Pé

ante pé, fui até à porta onde tu te encontravas. Não estavas sozinho. Estavas,

pelo contrário, muito bem acompanhado. E eu conhecia quem estava do teu

lado. Era a dona do dedo que me acordou e me trouxe do paraíso e a dona da

face aterrorizada com o meu apático e pálido semblante. Estava do teu lado,

segurava na tua mão como eu há um tempo atrás também tinha querido

segurar, mas faltou-me coragem. Falava sussurradamente, perto do teu ouvido,

na esperança ínfima, talvez, de te chegar ao coração. Nem para isso eu tinha

tido coragem. Nem falar consegui fazer, nem contigo ali, a centímetros do meu

corpo. Tive medo. Sou fraca. E é esta dor quem mais se aproveita disso.

Chorava baixinho, as lágrimas iam escorrendo, quase como, deslizando pela

pele abaixo, mas sem qualquer barulho. Não havia atrito e escorregavam. Não

estava em pranto. Devia ter medo que te assustasses, se acordasses. Porque

ambas partilhávamos, apesar de não o sabermos na altura, a esperança de

acordares daquele teu estado de inconsciência. Eu observava tudo de cá de

fora e dei-me conta que não tinha chorado. Não pela dor, porque por ela os

meus olhos já não gastavam sais, mas por ti. Ainda não tinha demonstrado

sentimento através do choro. Nem tinha vontade. Estava imóvel, à espera que

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alguma coisa em concreto me chegasse aos ouvidos para sair dali. Foi quando

um médico entrou no quarto, não reparando sequer na minha presença, que

soube o que te tinha acontecido. Ias sozinho, no teu carro, ou melhor, o teu

carro era a tua melhor companhia, e um doido perdido no mundo e mais

precisamente naquela estrada, embateu contra o teu carro, primeiro, e depois

contra ti, e deixou-te assim. Longe do mundo. Longe de ti.

O médico ia dizendo que as tuas hipóteses de sobrevivência eram

mínimas, quase a roçar no zero. A mulher que estava contigo, continuava com

o seu choro miudinho, que se ia agigantando à medida que o médico soletrava

a palavra morte. Morte cerebral. Que não adiantava o teu coração ainda bater,

o teu coração estava a trabalhar em vão porque o teu corpo não obedecia

porque não tinha a quem obedecer. O grande patrão estava morto. Tu ias

morrer. Para mim tu ainda vivias. Se o coração batia, então estavas vivo. De

que adianta uma pessoa ter o cérebro funcionalmente vivo se não tiver

coração? Mentalmente ia pensando, mas fisicamente continuava imóvel. Quem

me tivesse visto e reparado em mim, teria achado que eu estava congelada ou

alguma coisa semelhante, tal era o meu estado de imobilidade. Tinha vontade

de entrar. Sentia que era a última oportunidade de te ver, de tocar, de te falar.

Mas não entrei. Continuei à porta até o médico se retirar, para, pelo que ouvi

do discurso, ela se despedir de ti. Despedir. Era isso que eu queria. Apenas.

Despedir-me de ti e ir embora. Matar as saudades de tal forma que não

pudessem ser ressuscitadas e fugir. Correr dali para fora.

O médico saiu e olhou, desta vez reparando em mim. Disse-me que se

quisesse poderia entrar para me despedir também. Foi quando a mulher olhou

para mim. Ficou admirada por me ver ali, eu que ainda há pouco tempo atrás

tinha sido resgatada do paraíso por ela. Perguntou-me se te conhecia. E eu

não resisti e entrei. Entrei e toquei com os meus dedos frios na tua pele. Era

macia, suave ao toque. Disse que sim, que te conheci, em tempos e tinha

gostado muito de ti. Perguntei-lhe quem ela era. Ela não percebeu o porquê da

pergunta. Fez vincos na face. Vincos de desconfiança. Mas disse que era tua

namorada. Namorada de longa data. Namorada incluindo no dia em que

estiveste comigo. E então percebi que tu nunca foste verdadeiramente meu,

nunca me pertenceste na totalidade. Só pertenceste à minha dor. Ela gostava

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de ti, dos nutrientes que lhe davas. Mas a minha dor não pode reclamar mais

por ti, não pode e não tem esse direito. Tu não és meu e não vais voltar.

Estava envolvida nestes pensamentos quando ela me disse que ias morrer,

que na realidade já estavas morto porque o teu cérebro já não fazia nada,

apesar de a máquina continuar a registar o teu batimento cardíaco. Que só

esperaria pelos teus familiares para desligarem todas as máquinas. Como se a

vida humana dependesse de um botão. E neste caso não era permitido voltar

atrás, voltar a ligar. Eu assenti com a cabeça a todas as descrições que ela me

fazia do que seriam os próximos procedimentos. E saí. Saí da tua beira e

proferi a palavra “adeus”. Fui retida perto da porta por aquela mulher.

Perguntou-me se quereria saber da data e local do teu funeral. Disse-lhe que

não. A minha raiz que me unia ao teu solo foi cortada ali. Naquele adeus. Na

última vez que vi os teus olhos, na última vez que vi as tuas mãos. E saí do

quarto.

Estava quase a anoitecer. Desci as escadas e não tinha vontade de

correr para casa. Ficar longe de ti, sim. Já tinha feito as minhas despedidas,

não me restava mais nada. Mas para casa, para a solidão, não. A dor ia

ficando mais proeminente à medida que aumentava a distância de ti, mas tinha

de ser. Ela tinha de se habituar. Vi a cadeira que antes e durante momentos foi

minha. E fui lá sentar-me. O calor que se fizera durante o dia tinha acalmado e

já se estava melhor naquele piso.

Passaram-se, provavelmente, horas desde que me tinha sentado. Já era

de noite escura quando vi a mulher, a tua namorada com pessoas. Pessoas

que sofriam em conjunto. O sofrimento partilhado torna-se mais pequenino e

pesa menos no coração. Deduzi quem eram. Deduzi a causa de todo aquele

sofrimento. Deduzi que já tinhas morrido. Foi a minha deixa. Já não fazia nada

naquele lugar. Lá fora, já não havia o calor infernal que tanto me incomodava e

tu já não te encontravas presente fisicamente. E nunca mais te irias encontrar.

Talvez espiritualmente, talvez a tua alma estivesse, naquele preciso momento,

a olhar para todos nós e por todos nós. Mas eu não via e por isso não sei se

naquele momento tu estavas ali. Naquele não estavas, mas estarias mais

tarde. Dessa vez, eu tenho certeza. Foi a minha deixa e saí do hospital.

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Estava uma noite agradável que convidava a ficar com ela e desfrutar da

sua hospitalidade. Era como se me tivesse feito mesmo um apelo e me

puxasse desesperadamente para dentro dela. Não fiz nada. Não me mexi. Não

me desloquei. Apenas respirava. Havia apenas o movimento de gases que eu

inspirava e expelia e que se movimentavam pelos meus órgãos. De resto a

imobilidade era constante entre todas as minhas vísceras. A dor doía. Como se

isso fosse algo inesperado. É claro que doía. Havia alturas que nem dava pela

presença dela. Ela ardia, mas o meu corpo tinha criado hábito que o doer já

fazia parte do seu funcionamento habitual. Até que desapareceu.

Ainda hoje, passados trezentos e sessenta e cinco dias, não percebo na

totalidade o desaparecimento da minha fiel companheira de toda a minha vida,

naquele instante. Eu sei porque é que ela se foi embora no momento em que

me imobilizei na noite quente de há trezentos e sessenta e cinco dias atrás. Eu

senti-te. Passaste por mim com uma brisa de vento que me agitou os cabelos.

Passaste por mim e a minha dor teve sumiço no mesmo instante.

Coincidência? Não. Eu sei muito bem como são os acasos e as probabilidades

na minha vida e aquilo não foi uma contradição de uma probabilidade. Mas

perceber, ainda não percebi. Afinal sentiste a minha presença ali, mesmo

estando alienado de tudo o que estava a passar e principalmente de tudo o que

te tinha acontecido. Afinal percebeste que eu estava lá e vieste à minha

procura para me mostrar que não me esqueceste. E depois foste embora.

Seguiste a luz de que toda a gente fala que se vê quando se morre, apesar de

que quem está vivo, nunca a poder ter visto. E a minha dor de alma voltou.

Voltou e permanece hoje comigo. Nunca mais acalmou. Nestes últimos

trezentos e sessenta e cinco dias esperei sempre por um abrandamento, uma

calmaria, um baixar de armas, mas isso nunca aconteceu. O que quer dizer

que nunca mais voltaste.

Passados trezentos e sessenta e cinco dias, quando a chuva insiste em

fustigar o vidro, enchendo-o com gotas e mais gotas de água, penso na minha

real existência. Não seria mais feliz ao pé de ti? Eu não sei onde te encontras,

exatamente, porque vivemos em mundos diferentes, mas sei o caminho para a

entrada do teu mundo. Ao pé de ti, não tinha esta dor insistentemente

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esfomeada, não a tinha a latejar dentro da minha caixa torácica. Não se

poderia chamar suicídio, não me estou a matar. Estou a fazer-me nascer de

novo. E viver de novo, não é o que todos queremos?

É incrível pensar que estes comprimidos todos juntos, tão pequenos e

com um ar tão inofensivo me possam levar até ti. Mas podem. E eu vou ter

contigo, dar de comer à minha dor e viver sem o palpitar acelerado dos meus

órgãos.

Daqui a nada estou aí contigo. Daqui a nada.