Almanaque Histórico

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almanaque histórico A Luta pelos Direitos Humanos ACOMPANHA GUIA DO PROFESSOR

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a l m a n a q u eh i s t ó r i c o

A Luta pelos Direitos Humanos

ACOMPANHA

GUIA D

O

PROFESSOR

Page 2: Almanaque Histórico

A Luta pelos Direitos Humanos

Page 3: Almanaque Histórico

Almanaque Histórico

João Cândido – A luta pelos Direitos Humanos

Coordenação Geral

Elizabete Braga

Coordenação de Produção

Flávia Diab

Assessoria de Produção

Stanley Whibbe

Coordenação de Administração

Ruy Godinho

Textos

Paulo Corrêa Barbosa

Schuma Schumaher

Consultoria de Conteúdos e

Finalização de Texto

Marco Morel

Equipe de Pesquisa

Coordenadores

Marco Morel

Tânia Bessone

Auxiliares

Gabriel Labanca

Rodrigo Cardoso

Silvia Capanema

Revisão de Textos

Adriane Lorenzon

Projeto Gráfico e Diagramação

Miriam Lerner

Editorial

Flávia Diab

Capa

Lula Ricardi – XYZ Design

Produção

Abravídeo

Fundação Banco do Brasil

Presidente

Jacques de Oliveira Pena

Diretores Executivos

Elenelson Honorato Marques

Jorge Alfredo Streit

Gerente de Educação e Cultura

Marcos Fadanelli Ramos

Assessor

Claudio Alves Ribeiro Brennand

Petrobras

Presidente

José Sergio Gabrielli

Gerente Executivo de Comunicação Institucional

Wilson Santarosa

Gerente de Responsabilidade Social

Luis Fernando Nery

Gerente de Patrocínios

Eliane Costa

Gerente de Patocínios Culturais

Tais Wohlmuth Reis

Coordenador de Tecnologias Sociais

Lenart Nascimento

Associação Cultural do Arquivo Nacional (ACAN)

Diretoria Executiva

Licio Ramos de Araujo (Presidente)

Oscar Boëchat Filho (Vice-presidente)

Fernando João Abelha Salles

Jose Gomes de Almeida Netto

Presidente do Conselho Fiscal

Wanderlei Pinto de Medeiros

Presidente do Conselho Consultivo

Hans Jürgen Fernando Dohmann

Page 4: Almanaque Histórico

SumárioApresentação, 5

I. Primeiros passos

1. Dos pampas para o mar, 7

2. Do mar para o mundo, 10

II. Adulto, contra a chibata

3. Explode a revolta no mar, 17

4. Explode a repressão em terra, 35

III. A longa vida de um homem do povo

5. Um pescador artesanal, 41

6. João Cândido vive nas memórias, 57

Bibliografia básica, 63

Cronologia, 64

Page 5: Almanaque Histórico
Page 6: Almanaque Histórico

5João Cândido – A Luta pelos Direitos Humanos

Em sua 11ª edição, o Pro-

jeto Memória apresenta

a você, professor(a), a traje-

tória do marinheiro negro

João Cândido, que esteve à

frente de importante episó-

dio de nossa história na defe-

sa dos Direitos Humanos. Em

22 de novembro de 1910,

cerca de 2.300 marujos –

homens pobres, entre os

quais muitos negros e pardos

– rebelaram-se, tomaram à

força os mais possantes na-

vios de guerra da Marinha

brasileira e exigiram o fim dos

castigos corporais que so-

friam (chibatadas). Se não

fossem atendidos, bombar-

deariam o Rio de Janeiro, en-

tão capital do país. Gritavam

vivas à liberdade. Saíram vi-

toriosos em suas reivindica-

ções e, assim, mudaram para

melhor a sociedade ainda

marcada pela escravidão, ex-

tinta apenas 22 anos antes.

Logo depois, os mesmos re-

beldes sofreriam duras re-

pressões: demissões injustas,

prisões arbitrárias, torturas e

até assassinatos. Porém, não

Durante 15 anos navegou

pelas águas doces e salgadas

de todo o Brasil, percorreu

quatro continentes, aprendeu

técnicas e ofícios, foi instru-

tor de marujos iniciantes,

encharcou-se das paisagens

exuberantes, das realidades

sociais e suas contradições,

acompanhou personagens e

episódios políticos importan-

tes – até ser expulso da cor-

poração, por causa da rebelião

em que participou com desta-

que, defendendo a dignidade

da condição humana.

A partir daí, João Cândido

viveu por quatro décadas co-

mo pescador artesanal, na

mesma condição de milhões

de trabalhadores pobres: lu-

tando com dificuldade e criati-

vidade para ganhar o pão de

cada dia, sentindo na carne a

“chibata” do transporte precá-

rio, do preconceito racial, da

moradia sem saneamento bá-

sico, das escolas com poucos

recursos para os filhos e da

falta de assistência médica de

qualidade, enfim, dos Direitos

Humanos básicos. No fim da

se apagou a página da histó-

ria que eles escreveram com

seus próprios corpos, pala-

vras e gestos.

Criado em 1997, o Projeto

Memória (iniciativa da Fun-

dação Banco do Brasil em

parceria com a Petrobras)

consolidou uma trajetória de

valorização da cultura e da

história do país, homena-

geando personagens que

colaboraram para a transfor-

mação social e construção de

nossa identidade – contri-

buindo, assim, para o fortale-

cimento da cidadania e das

liberdades.

Mas quem foi mesmo João

Cândido Felisberto, reconhe-

cido como principal líder da

Revolta da Chibata? Filho de

escravos, nasceu em 1880

(nove anos depois da chama-

da lei do Ventre Livre, que

não considerava cativos os

filhos de escravos nascidos a

partir dali) numa fazenda em

Encruzilhada do Sul, interior

gaúcho. Entrou para a Ma-

rinha de Guerra aos 14 anos,

onde teve carreira exemplar.

Apresentação

Page 7: Almanaque Histórico

Projeto Memória6

longa vida, voltou a ser reco-

nhecido por seus feitos, rece-

beu homenagens e faleceu

pobre e altivo, aos 89 anos.

João Cândido e seus com-

panheiros de revolta foram

anistiados em 1910, mas o go-

verno desrespeitou o perdão

que concedera, violando os

direitos de cidadãos brasilei-

ros. Somente agora, quase

um século (1910–2008) de-

pois, receberam anistia pós-

tuma: o governo atual reco-

nhece os valores de dignida-

de e justiça pelos quais os

rebeldes lutaram. Ainda as-

sim, esta nova anistia é par-

cial, pois ficaram de fora as

promoções e indenizações

que seriam recebidas por

seus descendentes.

Este conjunto pedagógico,

distribuído a quase 18 mil es-

colas públicas em

todo o Brasil, é

composto por:

um Almana-

que Histórico,

um Guia do

Professor e

um DVD–ROM

que inclui todas

as outras peças do

Projeto Memória – um

vídeo documentário, um livro

fotobiográfico, uma expo-

sição e um site. Todas unifica-

das sob o mesmo tema: João

Cândido e a luta pelos Direi-

tos Humanos. É um convite

para conhecer as possibilida-

des de abordar, em sala de

aula, o episódio da Revolta da

Chibata, suas conseqüências

e significados atuais, ligando-

o com outras histórias e si-

tuações, ao cotidiano de seus

alunos, às atitudes, perspecti-

vas e projetos de vida que

construímos a cada dia, sem-

pre a partir de variadas áreas

do conhecimento.

Além disso, no endereço

eletrônico www.fundacao-

bancodobrasil.org.br (Pro-

gramas e Ações/ Educação/

Projeto Memória) você en-

contra mais informações so-

bre João Cândido que po-

derão ser úteis no desenvol-

vimento de seu trabalho –

além da oportunidade de co-

nhecer os homenageados em

edições anteriores do Projeto

Memória. Sua opinião e ava-

liação sobre o material são

muito importantes e você po-

derá fazê-las chegar até nós.

Repare que também está

recebendo uma ficha de ava-

liação, no formato de carta-

resposta. Basta colocá-la no

Correio, pois já está selada.

É responsabilidade coleti-

va garantir que os Direitos

Humanos sejam realidade pa-

ra todos, independentemente

de posição social, nível de

instrução, sexo, gênero, reli-

gião, cor da pele e opção po-

lítica. Nesse campo, o papel

da escola é importante. A vi-

da de João Cândido traz mui-

tas lições para aprendermos

e ensinarmos.

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Page 8: Almanaque Histórico

entre os cativos no Sul do país.

Apesar dos limites e controles,

os escravos tropeiros tinham

maior possibilidade de loco-

moção e certa autonomia na-

quela sociedade opressora.

João Cândido, então menino,

acompanhava o pai, percor-

rendo os pampas largos e lon-

gínquos, com sua típica vege-

tação rasteira e ondulante,

embalado pelo mugido dos

animais e coberto pelo vasto

7João Cândido – A Luta pelos Direitos Humanos

Omundo, na época em que

João Cândido nasceu (na

fazenda Coxilha Bonita, En-

cruzilhada do Sul, RS, a 24 de

junho de 1880), apresentava

muitos desafios e passava por

importantes transformações.

No caso do Brasil, sociedade

fundada em mais de três sé-

culos de escravidão, justa-

mente o escravismo estava

em crise, mas teimava em per-

manecer, enraizado.

Álbum de famíliaJoão Cândido (um dos sete

filhos de Inácia e João Cân-

dido Velho, escravos da fa-

zenda da família de Vicente

Simões Pereira) veio ao mun-

do numa choupana em que

seus pais moravam, nas pro-

ximidades da casa-grande,

mas fora da senzala. No pe-

ríodo de infância (os “causos”

contados mais tarde por Jo-

ão Cândido a sua filha Zee-

lândia1), ele sentia forte o mi-

nuano, vento típico do Sul do

país. Inácia, sua mãe, honesta

e severa, tinha muitos sabe-

res: parteira conhecida na re-

gião, fazia nascer também fo-

lhas e frutas, conhecedora de

ervas e plantas medicinais.

Além dos próprios filhos (três

meninos e quatro meninas),

vários foram “os de peito”,

como considerava aqueles a

quem amamentou e ajudou

a criar, fertilizando a vida a

seu redor.

Sobre João Cândido Velho,

o pai, de quem o futuro maru-

jo herdou o nome, sabemos

que lutara na sangrenta Guerra

do Paraguai (1864–1870) e era

tropeiro, isto é, conduzia tro-

pas de gado, atividade comum

Parte IPrimeiros passos

o minuano é um vento frio que

tem origem em uma massa de ar

que vem do pólo Sul? Ele chega

ao Brasil pelo Rio Grande do Sul

e, algumas vezes, consegue até

mesmo atingir os estados da

Amazônia e Nordeste. Em meio a

este vento, vivia o menino João

Cândido: ajudava os pais nos

trabalhos da fazenda. E, ele

mesmo recordou: quando criança

era um “potro bravio”. Corria

pelos campos, nadava em rios,

subia em árvores, conhecia ani-

mais e aves e aprontava traqui-

nagens comuns na sua idade.

voce sabia que...ˆ

1 Entrevista concedida por Zeelândia Cân-

dido de Andrade, em 2002, a Carla Araújo e

Cláudio Estevam, por ocasião da pesquisa

Personalidades e Imagens da Baixada Flu-

minense.

1. DOS PAMPAS PARA O MAR

Page 9: Almanaque Histórico

Projeto Memória8

céu, alimentando-se de char-

que e arroz-de-carreteiro, mo-

vimentando-se com agilidade

entre os pesados animais,

repetindo as cantigas de tra-

balho que alimentavam a soli-

dão dos descampados.

O chão muda de nome

O local de nascimento de

João Cândido mudou de no-

me várias vezes, mas foi e é

sempre o mesmo: ainda hoje

existem restos da choupana.

A origem desse território é o

município de Rio Pardo, cida-

de principal da região e que o

marujo considerava como seu

berço natal, por ter passado

boa parte da infância ali, sua

primeira porta para transpor

os limites locais. Aliás, em mui-

tos lugares do Brasil aconte-

ceu coisa parecida. Milhões

de brasileiros vivem em cida-

des e estados que já altera-

ram o nome, fazendo com

que os mapas em que estuda-

mos não sejam eternos e ne-

cessitem de atualização.

O território de Rio Pardo,

inicialmente o maior município

do Rio Grande do Sul ao ser

criado em 1809, foi dividido e

subdividido ao longo do tem-

po: existem hoje mais de 300

municípios em sua área origi-

nal. Em todo o Brasil surgiu

uma tendência à municipaliza-

ção, ou seja, criação de novas

administrações locais. Desse

modo, quando João Cândido

nasceu, a fazenda Coxilha Bo-

nita não ficava mais em Rio

Pardo e, sim, em Encruzilhada

do Sul, emancipada desde

1849. Logo, ele era na realida-

de um encruzilhadense, em-

bora rio-pardense de criação e

coração. Hoje, após nova divi-

são, a mesma choupana da

fazenda encontra-se no mu-

nicípio de Dom Feliciano, cria-

do em 1963. Assim é a vida,

como a história e a ocupação

Por dentroda história

�“(...) até a idade de doze

anos as crianças (...) apenas

limpam os feijões e outros

cereais destinados à ali-

mentação dos escravos ou

cuidam dos animais e exe-

cutam pequeninos traba-

lhos domésticos. Mais tar-

de, as moças e os rapazes

são encaminhados para os

campos. Quando um me-

nino mostra disposições

especiais para determinado

ofício, é-lhe este ensinado,

a fim de que o pratique na

próxima fazenda”.

(Rugendas, pintor alemão que

esteve no Brasil entre 1821 e 1825,

sobre as crianças escravas nas

grandes plantações) RUGEN-

DAS, J. M. Viagem pitoresca atra-

vés do Brasil. 7. ed. São Paulo/

Brasília: Martins/INL, 1976.

Igreja Matriz em Rio Pardo, RS

A cidade de DomFeliciano, RS

Roberto Jesinski

Page 10: Almanaque Histórico

9João Cândido – A Luta pelos Direitos Humanos

humana das áreas: dinâmica,

com mudanças. Se até os ter-

ritórios alteram suas identida-

des e registros, vale uma inda-

gação para pensarmos: os

problemas sociais, que tam-

bém parecem imutáveis e

eternos, não podem se trans-

formar pela ação humana?

Contadores de histórias

Contar histórias para crianças

é muito bom e importante:

deixa lembranças pela vida

toda. Os “causos” escutados

nesse começo da vida por

João Cândido traziam uma

literatura oral tão importante

quanto a escrita. E alguns de

arrepiar os cabelos, alimen-

tando a imaginação e vindas

da tradição regional: a mu-

lher enorme, com um vestido

branco bem comprido, que

assombrava os acendedores

de lampião, saindo da fortale-

za e andando para a ponte

sobre o rio; do escravo morto

pelo dono, condenado por

uma doença, logo após o

enterro do baú com toda a

fortuna na praça Barão de

Santo Ângelo; do Homem da

Capa Preta; da Carroça e de

Nossa Senhora do Rosário;

do Lobisomem, da Mula-sem-

cabeça, e assim por diante.

De todas, porém, a preferida

de João Cândido era a do

Negrinho do Pastoreio que

muitos anos depois contava

aos filhos e filhas.

Nascimento, novos

tempos

Na época em que João Cân-

dido nasceu, a escravidão

estava morrendo.

Se em 1660 o Brasil tinha

uma população estimada de

184.000 habitantes (dos quais

74.000 brancos e índios em

contato com estes e 110.000

escravos), em 1890, dois anos

Negrinho do Pastoreio é uma lenda tradicional do Rio Grande do Sul? De

origem africana, fala de um estancieiro que mandou castigar seu escravo,

um menino, porque havia deixado fugir um de seus cavalos. Após a surra,

teve de sair à noite pelos campos para encontrar o animal. Enfrentou a

escuridão com um toco de vela e uns pavios de fogo. Retornou para a

fazenda sem o animal e após ser novamente espancado, foi atirado, por

ordem do fazendeiro, dentro de um formigueiro. No dia seguinte, para sur-

presa de todos, o menino estava bem, vivo e feliz ao lado do animal per-

dido. Desde então, ficou sendo o “achador de coisas”. Basta fazer o pedi-

do e acender um toquinho de vela. (Adaptado de Mitos e Lendas do Rio Grande do Sul de Antonio Augusto Fagundes.Porto Alegre: Martins Livreiro Editor, 1996. Capturado em http://www.paginadogau-cho.com.br/lend/negr.htm)

voce sabia que...ˆ

Por dentroda história

�O primeiro Censo Demo-

gráfico realizado no Brasil,

em 1872, contou 10 milhões

de habitantes, incluindo es-

cravos e escravas. O analfa-

betismo estava presente

em cerca de 80% da popu-

lação. Mas isso não signi-

ficava falta de cultura ou de-

sinformação generalizada: a

transmissão pela oralidade

atravessava todos os seto-

res sociais e as identidades

culturais, mesmo quando

não reconhecidas como tais,

permitiam estratégias de

resistência e sobrevivência.

Jakare

d

Page 11: Almanaque Histórico

Projeto Memória10

depois da proclamação da

República (João Cândido es-

tava na primeira década de

vida), a população total já

ultrapassava 14 milhões. E o

perfil dos brasileiros mudou

muito nesses 200 anos. Os

dois principais grupos da

população eram os chama-

dos pardos e brancos (se é

possível falar de tantos bran-

cos numa sociedade mestiça

como a brasileira), o que in-

cluía os imigrantes europeus

e seus descendentes que che-

gavam em levas crescentes e

iam para as lavouras de café.

Apesar do escravismo ter

sido a relação social marcan-

te durante três séculos, des-

de meados do século XVIII o

Brasil já não estava mais divi-

dido apenas entre um punha-

do de senhores brancos e

uma multidão de escravos ne-

gros. A mestiçagem sempre

foi uma realidade, embora

não eliminasse o racismo, a

violência e as desigualdades

sociais. Tanto que no começo

do século XIX calcula-se que

um terço da população na-

cional era composta pelos

chamados pardos livres. Mui-

tos negros haviam conquis-

tado alforria (liberdade) e

seus descendentes imediatos

atuavam nos diversos traba-

lhos artesanais, nas irmanda-

des religiosas, em milícias

(tropas militares não regula-

res) e alguns poucos até

integravam as elites políticas,

como o senador e visconde

de Jequitinhonha (Francisco

Gê Acaiaba Montezuma,

1794–1870) e o advogado e

deputado Antonio Pereira

Rebouças (1798–1880), am-

bos baianos.

Abolição feita por

muitas mãos

Os homens e mulheres escra-

vizados sofreram muito e

enfrentaram desafios duros,

mas não foram apenas víti-

mas. Como agentes históricos,

participavam e interferiam,

dentro de suas possibilidades,

nos rumos da sociedade e em

seus próprios destinos. Vale

chamar atenção para um pon-

to: a Abolição, oficializada

pela Lei Áurea em 13 de maio

de 1888, não se realizou ape-

nas “por cima”, isto é, pela ini-

ciativa das elites parlamenta-

res, de abolicionistas ilustres,

dos proprietários “esclareci-

dos” e da Coroa Imperial (ou

mais simplesmente da prince-

sa Isabel). Foi, na verdade, um

longo e penoso processo de

embates no qual participaram,

também, setores variados da

população, como as camadas

médias, pobres livres, libertos

e os próprios cativos. De for-

ma direta ou indireta, as ações

individuais ou coletivas dos

escravos ajudaram a minar o

sistema escravista, por meio

de pequenos e grandes qui-

Page 12: Almanaque Histórico

11João Cândido – A Luta pelos Direitos Humanos

lombos, fugas coletivas ou

individuais, cometendo violên-

cias contra a violência opres-

sora, enfim, com variadas ati-

tudes de resistência.

Além do enfrentamento

direto, muitos cativos opta-

vam por sobreviver abrindo

espaços de negociação com

seus senhores ou com a so-

ciedade da época, buscan-

do – e às vezes conseguindo

– melhor qualidade de vida

no interior de um sistema

injusto. Eram freqüentes,

aliás, os exemplos de cati-

vos que, conseguindo a li-

berdade, tornavam-se eles

próprios donos de escravos.

Era a lógica de uma estrutu-

ra que predominou durante

muito tempo.

escravas prostituídas pelos

donos (ou donas) como forma

de rendimento.

No meio rural, a maioria era

de escravos do eito, isto é,

que trabalhavam nas grandes

plantações, em geral em con-

dições desumanas, com gran-

de índice de mortalidade. Mas

existiam nas fazendas escra-

vos artesãos, domésticos e

também capatazes, que vigia-

vam o serviço dos demais.

A grande agricultura mo-

nocultora e exportadora, ba-

seada nos trabalhadores es-

cravizados, deu a tônica no

país por mais de três séculos

e deixa suas marcas ainda

hoje. Porém, havia brechas,

As diferentes faces dos

escravos

Não é possível falar de um

tipo único de escravo. A con-

dição do cativeiro era bem

variada. Havia os escravizados

urbanos e os rurais. No meio

urbano, alguns ficavam no ser-

viço doméstico no interior das

residências. Outros, os chama-

dos escravos de ganho, traba-

lhavam para fora e davam

renda a seus senhores, não

raro recebendo remuneração

(jornal, ou pagamento por jor-

nada). Atuavam em ofícios

artesanais (ferreiro, marcenei-

ro, sapateiro, alfaiate, etc.) ou

no comércio (como quitandei-

ras, doceiras, vendedores am-

bulantes, prestadores de ser-

viço, entre outros), sem contar

Na primeira Constituição brasi-

leira, de 1824, não havia sequer

referência aos escravos e aos

índios, embora se falasse de

passagem nos libertos (ex-cati-

vos)? A categoria indígena só foi

incluída na Constituição de 1988

e no Censo Demográfico de 1991,

mesmo que a investigação da cor

estivesse presente desde o pri-

meiro recenseamento. O Censo

mais recente, de 2000, leva em

conta a autoproclamação (como

cada um se declara) étnica e

divide a população em cinco

categorias: branco, preto, amare-

lo, pardo e indígena.

voce sabia que...ˆ

Alguns escravos atuavam em ofícios artesanais ou no comércio

Page 13: Almanaque Histórico

Projeto Memória12

contradições e espaços diver-

sos por onde a população ca-

tiva transitava. Nas pequenas

propriedades rurais, que fo-

ram se acentuando no Brasil a

partir do século XVIII, em geral

pela economia de subsistência

e abastecimento de alimentos,

os cativos também trabalha-

vam duro, mas não havia ca-

sa-grande e há inúmeros tes-

temunhas, como o viajante

inglês Henry Koster e o fran-

cês Auguste de Saint-Hilaire,

que presenciaram pequenos

proprietários e escravos mo-

rando na mesma habitação.

Antes de ocorrer a Aboli-

ção oficial, o panorama da

escravidão no Brasil já estava

bem mudado. Encerrado o

tráfico atlântico (os escravos

que vinham da África) em

1850, acentuou-se depois o

tráfico interprovincial, ou se-

ja, venda de escravos entre as

províncias. Isso causou um

crescimento da mão-de-obra

cativa nas grandes áreas es-

cravistas exportadoras do

principal produto, o café (com

destaque para São Paulo, Rio

de Janeiro e Minas Gerais) e,

ao mesmo tempo, um dese-

quilíbrio nas áreas periféricas

desta região do poder eco-

nômico e político.

As Abolições e suas

conseqüências

Tal situação permitiu o surgi-

mento de movimentos aboli-

cionistas regionais. Assim, no

Ceará, em março de 1884, foi

decretada oficialmente a

Abolição da escravidão, de-

pois de uma luta de três anos

envolvendo jangadeiros, pes-

cadores, homens negros li-

vres e libertos, ao lado de

Por dentroda história

�Viajantes

Centenas de pesquisadores

estrangeiros percorreram o

Brasil ao longo do século XIX

fazendo levantamentos, de-

senhos e publicando livros

sobre os mais diferentes as-

pectos da sociedade. Eram os

viajantes naturalistas, a van-

guarda científica da época.

Um destes foi Charles Darwin

(1809–1882), que elaborou a

teoria da evolução das espé-

cies. Numa viagem para os

lados de Cabo Frio (RJ), em

1832, Darwin vivenciou episó-

dio que lhe impressionou. Es-

tava numa canoa conduzida

por um negro escravo alto e

corpulento quando, numa

tentativa de comunicar-se

com o cativo, o inglês come-

çou a gesticular e falar com

ênfase. Foi o bastante para

que o canoeiro se encolhesse

apavorado, supondo que se-

ria espancado pelo viajante.

Darwin ficou chocado com a

postura de submissão de uma

pessoa muito mais forte que

ele e desabafou em seu diá-

rio: “Esse homem havia sido

treinado para suportar uma

degradação mais abjeta do

que a escravidão do animal

mais indefeso”.

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O jangadeiro José Nascimento, apelidado Dragão do Mar, lutou pela liberdade

Page 14: Almanaque Histórico

13João Cândido – A Luta pelos Direitos Humanos

mulheres pobres e, também,

com expressiva presença fe-

minina das camadas médias,

além da adesão de setores

das elites locais. Também no

Rio Grande do Sul, em 1884,

foi proclamada a Abolição

em Porto Alegre, todo o lito-

ral gaúcho e alguns municí-

pios do interior. Do mesmo

modo e época, no Amazonas.

A Lei Áurea, tardia, foi ante-

cedida de tais iniciativas. E se

a escravidão foi extinta sem

indenizar os proprietários,

como estes reivindicavam,

também não se criaram con-

dições de inserir os ex-cati-

vos na sociedade: não houve,

apesar das demandas, distri-

buição de terras nem outras

formas de apoio ou assistên-

cia que poderiam dar um

novo rumo ao Brasil.

Dessa forma, na província

em que João Cândido nasceu,

a escravidão estava abalada.

Em sua infância e mocidade,

o marujo pode perceber, ao

lado dos demais habitantes

C omo resultado da Abolição com tais característi-cas, apesar de avanços que podem ser percebi-

dos, as desigualdades ainda persistem. Segundo oestudo Desigualdade Racial no Brasil, elaborado pelo

economista Mario Theodoro, do Instituto de PesquisaEconômica Aplicada (IPEA) e divulgado na data dos 120

anos da Abolição (13 de maio de 2008), sobre escolaridade, rendae pobreza da população negra, que inclui negros e pardos (confor-me a classificação do IBGE), registram-se melhoras entre 1996 e2006, mas as condições de vida continuaram inferiores quan-do comparadas às da população não classificada como negra.

Cuba (em 1886) e Brasil foram osdois últimos países das Américas aacabar com a escravidão? Que SãoDomingos, colônia francesa noCaribe, foi a primeira nas Américas aabolir a escravidão (1794) e a segun-da a proclamar a Independência(1804), tornando-se o Haiti? O casohaitiano apresentou Abolição eIndependência originais. Pela únicavez na história da humanidade umarebelião de escravos chegou ao po-der: transformou-se em revolução e,após guerras sangrentas, eliminou aescravidão, exterminaram-se os do-nos de escravos e a dominação co-lonial, formando uma nação, aindaque com paradoxos e injustiçasque se acentuaram nos dias atuais.O principal líder e símbolo da Revo-lução do Haitifoi o ex-cati-vo ToussaintLouver ture ,chamado deN a p o l e ã oNegro.

voce sabia que...ˆPor dentroda história

A vida de hoje

Recebido com música, e da boa!

Por ocasião do nascimento

de João Cândido, década de

1880, surgiam nos botequins

e quintais dos subúrbios do

Rio de Janeiro os primeiros

conjuntos de “chorões” que

se reuniam para tocar “de

ouvido”, já que não sabiam

ler as partituras vindas da

Europa. Considerado por

muitos como a primeira mú-

sica brasileira tipicamente

urbana, o choro ou chorinho,

como é carinhosamente cha-

mado, tem fortes influências

africanas e mistura elemen-

tos das danças de salão

européias e da música popu-

lar portuguesa. Dentre seus

mais famosos compositores

estavam Ernesto Nazareth,

Pixinguinha, Zequinha de

Abreu, Jacob do Bandolim,

Anacleto de Medeiros, Joa-

quim Callado e Patápio Silva.

Destacava-se entre eles uma

mulher: Chiquinha Gonzaga.

Filha de uma negra e de um

oficial do Exército Imperial

sofreu vários preconceitos.

Foi autora da primeira mar-

cha carnavalesca (Ô Abre

Alas, 1899) e também a pri-

meira mulher, no Brasil, a re-

ger uma orquestra.(Acessado em

http://pt.wikipedia.org/wiki/Orquestra)

Page 15: Almanaque Histórico

Projeto Memória14

gaúchos, que a dominação

escravista não era in-questio-

nável nem eterna. Esse foi o

berço histórico do futuro líder

da Revolta da Chibata.

A economia baseava-se

principalmente na exporta-

ção de açúcar, algodão, cou-

ros, borracha, cacau, mate,

fumo e, sobretudo, café. Suas

lavouras foram responsáveis

pelo deslocamento do centro

financeiro do país, das áreas

agrícolas do Nordeste para o

Centro-Sul e, também, pelo

grande fluxo de imigrantes

europeus que vieram para o

Brasil em busca de melhores

condições de vida. Ao mes-

mo tempo, nessas áreas mais

desenvolvidas, surgiam con-

tingentes expressivos de

classes trabalhadoras. Nas

duas primeiras décadas do

século XX proliferaram mo-

vimentos operários, por meio

de associações e sindicatos,

com grande presença do

anarquismo. Ocorreram, en-

tão, greves locais e mesmo

greves gerais que afetaram

parcialmente a vida urbana e

a produção industrial que se

desenvolvia, movimentos que

vinham dos primeiros anos

do século e se acentuaram

depois da Revolução Sovié-

tica (1917). Saíam de cena os

últimos escravos e entravam

os primeiros operários.

Dois jornalistas e escritores famosos e decisivos na cam-panha abolicionista nasceram escravos? José dePatrocínio (1854–1905) e Luis Gama (1830–1882), filhos decativas com seus senhores, foram alforriados aindacrianças. Publicaram livros, manifestos, redigiram e diri-giram importantes jornais engajados na luta contra oescravismo, criaram entidades e participaram de açõesdiretas para libertar escravizados. Tornaram-se figurasdestacadas entre as elites culturais e políticas.

voce sabia que...ˆ

Os meios de comunicação sempre tiveram atuação política no Brasil? Isso

ocorreu desde os primeiros jornais impressos no país, a partir de 1808 (ano

da chegada da Corte portuguesa), como a Gazeta do Rio de Janeiro e o

Correio Braziliense (editado em Londres). Os meios de comunicação não são

inocentes e têm a tradição de interferir no destino de todos. Parte da impren-

sa desempenhou importante papel no processo de Independência, mas outros

jornais eram contra. Na Abolição ocorreu o mesmo: jornais apoiavam a escra-

vidão, outros o combatiam. Nos anos 1830 surgiram pequenos periódicos que

discutiam a questão racial, entre eles O Homem de Cor, considerados precur-

sores dos jornais abolicionistas que surgiram meio século depois.

voce sabia que...ˆ

Imigrantes chegam ao Brasil no iníciodo século XIX

José de

Patrocínio

Page 16: Almanaque Histórico

15João Cândido – A Luta pelos Direitos Humanos

A difícil conquista da

liberdade

Com respaldo legal, a popula-

ção negra e parda, por inter-

médio das irmandades religio-

sas (existentes desde o século

XVII e se expandindo no sécu-

lo seguinte), passou a arreca-

dar fundos para comprar a

libertação dos escravizados.

Essa ação antiescravista con-

sentida conquistou, aos pou-

cos, adesão de outros seg-

mentos sociais. Tais grupos

eram estimulados pelas auto-

ridades como espaço de asso-

ciação ao catolicismo pela

população negra. A maioria

das irmandades acabou ser-

vindo como espaço de resis-

tência e sobrevivência das

populações de origem africa-

na, muitas vezes praticando o

sincretismo cultural. De cará-

ter beneficente, prestavam

auxílio aos enfermos e fune-

rais, bem como assistência

jurídica. Entre as irmandades

que se espalhavam por várias

localidades do país, construin-

do suas próprias igrejas, esta-

vam as devotas de Nossa Se-

nhora do Rosário, Santa Ifi-

gênia e São Benedito.

Quilombos por

todo o país

Enquanto existiu a escravi-

dão, existiram quilombos.

O centenário de aboliçãodo cativeiro foi tema dosamba-enredo do GrêmioRecreativo Escola de Sam-ba Estação Primeira deMangueira, do Rio de Janei-ro, no carnaval de 1998. 100

Anos de Liberdade – Reali-

dade ou Ilusão?, pergunta-vam os compositores.

Por dentroda história

�Quilombo dos Palmares

Localizado na Serra da

Barriga, em Alagoas. For-

mado por escravos fugi-

dos, principalmente, dos

engenhos de açúcar per-

nambucanos, contava com

inúmeros mocambos (abri-

gos de fugitivos, habitação

rústica): Andalaquituche,

Subupira, Dambrabanga,

Zumbi, Tabocas, Arotirene,

Aqualtene, Amaro e Maca-

co – que acabou tornando-

se uma espécie de capital.

Considerado como um “es-

tado africano no Brasil”,

surgiu em fins do século

XVI e sobreviveu até 1694,

quando foi destruído pelas

tropas enviadas pela Coroa

portuguesa. Zumbi, seu

principal líder, conseguiu

escapar. Capturado um

ano depois, foi esquarteja-

do e sua cabeça exposta

na cidade de

Olinda.

por dentro da história João Cândido nos Palmares

Mendes Fradique (pseudônimo de José Madeira de Freitas,

1893–1944), um dos mais famosos humoristas do Brasil no início

do século XX, em sua História do Brasil pelo Método Confuso

(1920), ao abordar a organização militar do Quilombo dos Pal-

mares confunde propositalmente as épocas e afirma: “As forças

do mar eram comandadas por João Cândido”. Fazia, assim, a li-

gação simbólica entre os dois momentos históricos.

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O que cantaa história

Page 17: Almanaque Histórico

Projeto Memória16

Desde o grande Quilombo dos

Palmares, que por um século

desafiou o sistema dominante,

até os milhares de pequenos e

médios quilombos que se es-

palharam por todo o Brasil du-

rante o século XIX.

No século XIX, vários qui-

lombos trocavam ou vendiam

mercadorias nas cidades pró-

ximas. Nas últimas décadas,

tornaram-se comuns aqueles

constituídos por escravos de

uma mesma fazenda, não

raro instalados em terras do

próprio senhor. Após a Aboli-

ção, muitos quilombolas per-

maneceram nos mesmos lo-

cais – um solo pelo qual ainda

hoje lutam seus descenden-

tes para garantir a regulariza-

ção, enfrentando especula-

ção imobiliária e invasores.

Em meio àquela sociedade

onde as mudanças conviviam

com injustiças que permane-

ciam, João Cândido viveu mo-

mento importante em sua vi-

da. Superada a escravidão no

país, o jovem gaúcho saiu da

área rural e, em Porto Alegre,

alistou-se na Marinha. Nave-

gando pelos mares e rios, ele

descobriria um grande mundo.

voce sabia que...ˆE m 2007 existiam 3.524 comunidades quilombolasidentificadas no Brasil. Segundo dados divulgados

pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvol-vimento (PNUD), quase 91% dos descendentes de qui-

lombos viviam em domicílios com renda familiar inferior aR$ 424,00 por mês e, 57,5%, em lares com renda inferior a R$

207,00. Apenas 3,2% das crianças moravam em residências com esgo-to, enquanto 28,9% dispunham de acesso à fossa higiênica2. Somenteno Rio Grande do Sul de João Cândido existem 37 comunidades járeconhecidas oficialmente como remanescentes de quilombos.

A vida de hoje

Na ponta da língua

Charqueada era o nome das es-tâncias (fazendas) gaúchas onde,escravos e também homens livres,preparavam o charque? Emborasejam todos de carne bovina,existem diferenças para a elabo-ração do charque, da carne secae da carne de sol? A carne de sol,que necessita de um clima muitoseco, é típica do Nordeste. Depoisde cortada, e ligeiramente salga-da, é colocada em locais cobertose bem ventilados. A secagem érápida e cria um tipo de cascaprotetora que conserva macia aparte interna. A carne seca, tam-bém conhecida como jabá, recebemaior quantidade de sal sendoempilhada em lugares secos edepois estendida em varais, aosol. O charque, típico da regiãoSul, é preparado de modo pareci-do ao da carne seca. A diferençaé que recebe ainda mais sal e aexposição ao sol, que lhe garanteuma maior durabilidade.

(Adaptado de http://www.sic.org.br/pergun-

tasfrequentes.asp)

A cidade de Porto Alegre noinício do século XX

Quilombo dos Palmares

2 http://www.pnud.org.br/raca/reportagens/index.php?id01=2736&lay=rac

Dentre as possíveis origens dapalavra gaúcho (quem nasce noRio Grande do Sul), destaca-se aque teria vindo do árabe Chaouch(tropeiro) e na Espanha se adap-tado para “Chaucho”, até ganharno Brasil a forma como aconhecemos. Sua origempode ser ainda,Guahú, que querdizer “canto dosíndios”.

Page 18: Almanaque Histórico

17João Cândido – A Luta pelos Direitos Humanos

A os 13 anos, João Cân-

dido foi alistado à força

e lutou numa guerra que pro-

vavelmente mal conhecia o

motivo. Esteve nas tropas

governistas que reprimiram a

Revolta Federalista no Rio

Grande do Sul, em 1893. Esta

é uma realidade presente no

Brasil de hoje, sobretudo nas

grandes cidades: crianças e

adolescentes envolvidos com

armas e violência, inclusive

nas áreas mais pobres.

Alistado em seguida no

Arsenal de Guerra do Exér-

cito, em Porto Alegre (1894),

em janeiro do ano seguinte

João Cândido foi transferido,

como aluno, para a Escola de

Aprendizes de Marinheiros,

também em Porto Alegre. Aí

permaneceu 11 meses. Devido

à falta de pessoal pela expul-

são de muitos marinheiros

após a Revolta da Armada

(1893–1894), João Cândido foi

enviado em janeiro de 1895

para o Rio de Janeiro, tornan-

do-se grumete (iniciante) da

16ª Companhia da Marinha. A

partir de então, passou a levar

vida de marinheiro, sobre as

águas do Brasil e de outras

partes do mundo.

A entrada para a Marinha e

as viagens consecutivas re-

presentaram para João Cân-

dido, a explosão definitiva do

2. DO MAR PARA O MUNDO

Aí fui nascendo, fui crescendo, fui crescendoaté que o milho deu a espiga desejada.

João Cândido, depoimento ao Museu da Imagem e do Som, 1968

“ “

Pinheiro Machado, comandante daprimeira tropa servida por João

Cândido, quando tinha apenas 13 anos.

Grumetes (ao centro) na porta da Igreja Candelária, no Rio de Janeiro

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Page 19: Almanaque Histórico

Projeto Memória18

mundo rural e escravista em

que nasceu. Segundo suas

palavras: “Eu entrei na Mari-

nha com 14 anos e entrei

bisonho. Toda luz que me

iluminou, que me ilumina,

graças a Deus, que é pouca,

foi adquirida, posso dizer, na

Marinha”. Bisonho, não cus-

ta lembrar, significa pouco

adestrado, novato, recruta

inexperiente.

João Cândido percorreu

todo o litoral brasileiro, as

principais bacias hidrográfi-

cas (Prata e Amazônica) e

navegou por quatro conti-

nentes (África, Europa, Amé-

rica do Norte e América do

Sul). Conheceu e presenciou

personagens e eventos histó-

ricos. Instruiu-se e instruiu

nas artes militares; recebeu

elogios, promoções, rebaixa-

OS SABERES DE UM TRABALHADOR

Cada ser humano, em seu traba-lho, possui saberes e técnicas.João Cândido, nascido “embaixo”na hierarquia social, acumuloumuitos conhecimentos. Na Mari-nha, foi instrutor na Escola Naval(RJ), na Escola de Aprendizes deMarinheiros de Recife (PE) e naDivisão de Instrução dos navios-escola Benjamin Constant e Pri-meiro de Março. Exerceu, ainda,as seguintes funções a bordodas embarcações em que serviu:

Artilheiro – Marinheiro da arti-lharia (conjunto de canhões eoutras bocas-de-fogo para lan-çar projéteis à grande distância).Faroleiro – Encarregado do farol,lanterneiro a bordo de uma em-barcação.Gajeiro – Marinheiro que tem aseu cargo um dos mastros, zelapor ele e dirige os trabalhos quenele se executam, e a quem ou-trora competia, também, subir aocesto de gávea, nas proximida-des de terra, a fim de procuraravistá-la antes dos demais ele-mentos da tripulação.Maquinista – Aquele que operaas máquinas do navio.Sinaleiro – Indivíduo incumbidode dar sinais a bordo.Timoneiro – Aquele que governao timão da embarcação; o homemdo leme.

João Cândido sofria de tuberculose pulmonar, a forma mais comum da doença, queé típica de países pobres? No Brasil, ela mata cerca de seis mil pessoas por ano.O tratamento é feito gratuitamente por meio do Sistema Único de Saúde (SUS), nospostos e hospitais. Contudo, por ser longo, acaba muitas vezes sendo abandonadopelo paciente, com sérios riscos à sua saúde, pois os sintomas da doença dimi-nuem, mas ela continua se alastrando. O dia 24 de março, mesma data em que omédico alemão Robert Koch descobriu, em 1882, o bacilo da tuberculose, foi insti-tuído como o Dia Mundial de Luta Contra a Tuberculose. Para mais informaçõessobre essa e outras doenças presentes no país, o Ministério da Saúde disponibi-liza o telefone do DISQUE SAÚDE: 0800 61 1997.

voce sabia que...ˆ

Na ponta da língua

Page 20: Almanaque Histórico

19João Cândido – A Luta pelos Direitos Humanos

Por dentroda história

�Amazônia e escravidão

O contato com a Bacia

Amazônica (que percorreu

durante sete meses, ocasião

em que viajou por rios do

Amazonas até o Acre) mar-

cou profundamente João

Cândido. Em depoimento já

no fim da vida ao Museu de

Imagem e do Som ele diria:

“Eu conheci o Amazonas

em criança e é a mesma

coisa de hoje, escravatura,

escravidão aqui na mão

dos seringueiros”. Impres-

sionou-se ainda, ao presen-

ciar em 1903, no Acre, a luta

do gaúcho Plácido de Cas-

tro, que mesmo não sendo

militar ou contando com o

apoio do governo brasileiro,

organizou um exército im-

provisado para defender a

permanência dessa parte do

território ao Brasil, obtendo

sucesso na iniciativa.

mentos e punições. Aprendi-

zados múltiplos, marcados

pela presença das águas, pre-

sença soberana do mar.

Em 1906 João Cândido

partiria para outras longitu-

des: esteve em Cabo Verde,

no continente de seus ances-

trais africanos, no dia 1º de

junho. Nessa viagem, conhe-

ceu os canais de Kiel (Ale-

manha) e da Mancha, os

mares do Norte e Báltico e

várias cidades, como São

Petersburgo (Rússia).

Em julho de 1909 o maru-

jo gaúcho partiria em outro

itinerário europeu, dessa

vez para acompanhar o fim

da construção e compor a

tripulação do encouraçado

Minas Gerais, em Newcastle-

on-Tyle, Inglaterra. Viajou por

terra de Marselha até Paris,

Cidade Luz, no esplendor da

O mar é meu amigoJoão Cândido, depoimento ao Museu da Imagem e do Som, 1968“ “

Em suas viagens João Cândidopôde conhecer as mais diferentes

realidades pelo mundo.Nas fotos, França e Cabo Verde,países que o marinheiro passou

Page 21: Almanaque Histórico

Projeto Memória20

dentro de suas convicções e

peculiaridades. O corpo de

Nabuco seria sugestivamente

seguido pelos marinheiros

que, nove meses depois, aca-

bariam com a chibata na Ma-

rinha, um dos resquícios do

escravismo no Brasil.

A revolta dos marinheiros russos

em 1905, contra as condições de

vida nas embarcações impostas

pelo governo do czar Nicolau II e

no âmbito do “ensaio geral” da

Revolução Soviética (1917), foi

tema em 1925 do filme O Encou-

raçado Potemkin, de Sergei Ei-

seinstein, e tornou-se um clássi-

co do cinema mundial? João Cân-

dido esteve nos mares russos um

ano após esta rebelião.

voce sabia que...ˆ

Joaquim Nabuco (1849–1910) além de político, diplomata, his-

toriador, jurista, jornalista, foi um dos fundadores da

Academia Brasileira de Letras? Além de sua intensa cam-

panha contra a escravidão nas tribunas parlamentares e

na imprensa, fundou, em 1878, a Sociedade Brasileira

Antiescravidão. Ao falecer, era diplomata em Washington.

voce sabia que...ˆ

O encouraçado Minas Gerais

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Belle Époque . Em feverei-

ro de 1910, o Minas Gerais

faria sua viagem inaugural

até Hampton Roads, EUA,

para acompanhar o traslado

ao Brasil dos restos mortais

de Joaquim Nabuco, um dos

grandes líderes abolicionistas,

Page 22: Almanaque Histórico

21João Cândido – A Luta pelos Direitos Humanos

P ara João Cândido, o mar era umamigo. Mas nós somos amigos

do mar? E do planeta?João Cândido amou o mar, por toda a vida! Nelecresceu, fez amigos, conheceu o mundo, fez históriae se fez homem. Mais tarde, expulso da Marinha,dele continuou sustentando a família.

A humanidade e os oceanos caminham juntos hámilhões de anos. A vida terrestre veio de lá, comoresultado do processo de evolução pelo qual passa-ram as espécies no planeta. Planeta chamado Terra,mas que é conhecido como planeta azul, justamentepor causa das águas que lhe formam 3/4 do total dasuperfície – das quais, 97% são salgadas.

Pois é. Apesar da imensidão, as águas dos ocea-nos vêm sofrendo com a poluição que produzimos eque já atinge o Ártico e a Antártida, onde já é possí-vel perceber sinais de degradação.

Mares e oceanos vêm, há tempos, sendo utiliza-dos como depósitos de detritos o que, combinado

com a poluição do ar, causada pela espécie huma-na, provoca mudanças climáticas na atmosfera co-mo o degelo dos pólos, com o conseqüente aumen-to do nível do mar. Se medidas urgentes não foremtomadas, segundo o relatório In Dead Water (EmÁguas Mortas), elaborado por cientistas do Pro-grama da ONU Para o Meio Ambiente (Pnuma), empoucas décadas a vida marinha, em grande parteresponsável pela alimentação e sustento de mi-lhões de pessoas em todo o mundo, poderá sofrerextinção em massa. Algumas espécies já estãoameaçadas e outras desapareceram.

O mar de João Cândido e de todos nós pede socor-ro! O meio ambiente como um todo também! Me-didas já estão sendo adotadas por países que enten-dem que não apenas a destruição do mar, mas tam-bém das florestas, da fauna e dos recursos hídricos(água) representa nossa destruição enquanto espécie.Entretanto, na contramão dessa luta, algumas naçõesainda insistem em desafiar os limites da Terra.

A vida de hoje

E o caso era este. Nós que vínhamos da Eu-ropa, em contato com outras Marinhas, nãopodíamos admitir que na Marinha do Brasilainda o homem tirasse a camisa para ser chiba-teado por outro homem.

João Cândido, depoimento ao Museu da Imagem e do Som, 1968

Salvar oceanos, preservar vidas

Page 23: Almanaque Histórico

Projeto Memória22

Adegradação ambiental passou

a chamar atenção e exigir

cuidado, principalmente a partir do

século XIX. A natureza não acompanhava mais o

ritmo de destruição que nossa espécie causava

ao meio ambiente. Era possível perceber que,

mantida a superexploração dos recursos naturais

e o contínuo crescimento da população, as gera-

ções do futuro enfrentariam sérios problemas de

sobrevivência.

Era o preço do progresso, defendiam alguns! A

desigualdade torna-se visível: poucas regiões com

uma população desfrutando de conforto, sanea-

mento, saúde, alimentação e educação enquanto

outras, a maior parte do mundo, convivendo com a

miséria e a destruição e poluição do meio ambien-

te. Crescimento econômico e melhoria de vida da

população não andam necessariamente juntos. Afi-

nal, muitas nações se desenvolveram e grande par-

te do povo permaneceu em condições precárias. Era

preciso repensar a questão, investir em propostas

que permitissem um desenvolvimento regional sus-

tentável, ou seja, crescer economicamente sem

destruir as culturas locais, o meio ambiente e o

futuro. Não tem sido fácil, mas aos poucos esta ten-

dência vem se fortalecendo e aumentando.

A ECO 92, ocorrida no Rio de Janeiro, no ano

de 1992, foi um desses momentos em que mui-

tos se reuniram. Eram pessoas de todas as par-

tes do mundo, movimentos sociais organizados e

representantes de governos de 175 países. Um

dos principais resultados desse encontro foi a

criação da Agenda 21, documento que estabele-

ceu a importância de que cada país se compro-

meta a refletir, global e localmente, sobre a

forma pela qual governos, empresas, organiza-

ções não governamentais e todos os setores da

sociedade podem cooperar no estudo de solu-

ções para os problemas socioambientais.

A Agenda 21 foi adotada pelo governo brasi-

leiro e incorporada como um dos programas

do Plano Plurianual (PPA) para os períodos

2004–2007 e 2008–2011. O PPA é o instrumen-

to onde são estabelecidos objetivos, diretrizes e

metas do governo e, por sua importância, define

o destino de toda uma geração. Entre nós, é im-

portante a participação da sociedade na discus-

são da Agenda 21, na qual se encontra a indica-

ção de políticas públicas. Ainda há muito para

fazer e monitorar!

A vida de hoje

Da preocupação do século XIX, uma Agenda 21 desde o século XX

Page 24: Almanaque Histórico

23João Cândido – A Luta pelos Direitos Humanos

Em que situação surgiu

a Revolta da Chibata?

O que levou milhares de

marinheiros, até então anô-

nimos, ignorados pela im-

rança de João Cândido no

meio deles?

A nova esquadra brasileira,

fabricada na Inglaterra, ficou

pronta em 1910. O mais pos-

sante era o encouraçado Minas

Gerais, com seus 34 canhões,

recebido em clima festivo por

milhares de lenços brancos

acenados pela multidão que se

espremia no cais do Rio de

Janeiro. Nos meses seguintes

vieram o encouraçado São

Paulo (também de grande

porte) e o cruzador-ligeiro

Bahia. Proporcional ao tama-

prensa e desprezados pelo

governo, a se tornarem

os principais protagonistas

da História naquele mo-

mento? Como surge a lide-

3. EXPLODE A REVOLTA DO MAR

Parte IIAdulto, contra a chibata

por dentro da história A República recuou

Inicialmente, o governo da República aboliu os castigos físicos na

Marinha em 17 de novembro de 1889, dois dias depois da sua

Proclamação. Mas logo tratou de reintroduzi-los, em 1890, tornan-

do-os novamente legais. Junto ao enorme poderio bélico e da

modernização tecnológica do Brasil pelos mares, o código disci-

plinar de bordo tinha origem nos tempos coloniais, com o uso da

chibata e outras punições, como prisão solitária, diminuição da

comida e ficar “a ferros” (acorrentado).

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O cais Pharoux (hoje Praça XV, no Rio deJaneiro) era um porto estratégico

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Page 25: Almanaque Histórico

Projeto Memória24

nho das embarcações, foi o

valor da dívida contraída junto

aos bancos internacionais.

Com a nomeação do en-

genheiro Pereira Passos para

Capital vem do latim, capitale,

relativo a cabeça? O Rio de Ja-

neiro, como capital colonial, Im-

perial e republicana (desde 1763

até 1960) do Brasil, era a “cabe-

ça” de uma sociedade multiface-

tada, complexa, autoritária e cen-

tralizadora. Por um lado, expres-

sava de modo intenso as desi-

gualdades sociais, misturando,

num mesmo espaço urbano, luxo,

riqueza e pobreza. Por outro,

além de sediar os poderes polí-

ticos e econômicos dominantes,

apresentava também uma espé-

cie de síntese das várias faces

do país, do ponto de vista cultu-

ral, étnico e político. Assim, no

Rio capital, sentia-se de modo

agudo a miséria e as injustiças,

como também se presenciava de

forma mais evidente a presença

das classes pobres e o espetá-

culo do progresso tecnológico.

voce sabia que...ˆ

a prefeitura do Rio de Janei-

ro, iniciou-se o que a popu-

lação chamou de política do

bota abaixo: ampliação do

porto, remoção de morros,

O Rio de Janeiro modernizava-se. Na imagem a atual Avenida Rio Branco

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Page 26: Almanaque Histórico

25João Cândido – A Luta pelos Direitos Humanos

abertura de praças, demoli-

ção de antigos quarteirões

com seus cortiços e sobra-

dos, alargamento de ruas e

abertura de novas avenidas,

entre elas a avenida Central,

atual avenida Rio Branco, com-

parada à avenida Champs-

Elysées, em Paris (França).

Empurrada para fora do

Centro da cidade, a popula-

ção pobre começou a subir

os morros, surgindo as pri-

meiras favelas.

A palavra República significa“coisa pública” e tem origem nolatim? A primeira Constituiçãobrasileira republicana é de 1891. Apartir dela se instituiu a eleiçãodireta para Presidente da Repú-blica. Embora tenha acabado coma exigência de uma renda mínimapara direito ao voto – o chamadovoto pecuniário –, manteve a proi-bição às mulheres, mendigos esoldados. Só podiam votar oshomens a partir de 21 anos. Entre-tanto, por excluir também os anal-fabetos, deixava fora do processoeleitoral grande parte da popula-ção masculina, sobretudo aquelacomposta por negros e pobres.Como resultado, sabe-se que, em1910, cerca de 3% da população,apenas, puderam comparecer àsurnas. Na Constituição de 1988 éque se deu direito de voto aosanalfabetos – e aos jovens, a par-tir de 16 anos, se cadastrarem co-mo eleitores.

voce sabia que...ˆ

Inspirada na Campanha deOswaldo Cruz para erradi-car a peste bubônica, trans-mitida pelos ratos e fazendovítimas fatais, os cantoresCasemiro Rocha e Manuelda Costa gravaram o grandesucesso do carnaval do Riode Janeiro, em 1904: “Rato,Rato... por que motivo turoeste meu baú?...”

O que cantaa história

Mulheres elegantespasseiam pelo Rio deJaneiro urbanizado

por dentro da história Considerada a primeira favela carioca, o Morro da Favela, nas

proximidades da Estação Central do Brasil, ainda existe e

chama-se Morro da Providência. Faz parte de um conjunto de

favelas que hoje se espalha por todos os bairros do Rio de Ja-

neiro. Nas grandes e médias cidades do Brasil também a

situação de miséria e pobreza leva ao crescimento de favelas.

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Page 27: Almanaque Histórico

Projeto Memória26

1910, o ano em que o

açoite terminou

Os marujos conspiraram em

encontros secretos, organi-

zando um Comitê Revolucio-

nário que se reunia nas áreas

pobres da cidade, como os

bairros de Saúde, Santo Cristo

e Gamboa. Alguns desses en-

contros aconteceram em ca-

sas de cômodo, ou cortiços,

típica habitação popular urba-

na daquele momento.

Na madrugada, um

grito de dor

No fundo da Guanabara,

ainda madrugada do dia 21

de novembro de 1910, Mar-

celino Rodrigues Menezes,

marinheiro, recebia no con-

Marinheiros rebelados do navio Bahiaesperam momento de arriar a

bandeira vermelha

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Page 28: Almanaque Histórico

27João Cândido – A Luta pelos Direitos Humanos

vés do Minas Gerais, 250 chi-

batadas na frente de toda a

tripulação. Castigo que con-

tinuou, apesar do desfaleci-

mento da vítima. Foi a gota

d’água que faltava! Ou, me-

lhor, a gota de sangue! Tanto

Apicuim como Alípio, apeli-

dado de O Carrasco do Minas

Gerais, eram velhos conheci-

dos da marujada. O primeiro

era famoso por sua meticulo-

sidade na elaboração do ins-

trumento de tortura, que pre-

parava com agulhas de aço.

exigiram o fim dos castigos

corporais vigentes na Marinha.

O movimento, que ficaria co-

nhecido por Revolta da Chi-

bata, trouxe para a cena públi-

Cerca de 2.300 marinhei-

ros, entre os dias 22 e 27 de

novembro de 1910, tomaram

cinco possantes navios de

guerra (Minas Gerais, São Pau-

lo, Bahia, Timbira e Deodoro)

e, apontando os canhões so-

bre a então capital do Brasil,

Segundo o Programa Habitat, da Organização dasNações Unidas (ONU), criado em 1976, e que tem

como missão promover social e ambientalmente o de-senvolvimento sustentável dos assentamentos huma-

nos, no ano de 2005, cerca de 52,3 milhões de brasileirosviviam em favelas (28% da população)? A informação está pre-

sente no documento O estado das cidades do mundo 2006–2007.(Fonte: http://diariodonordeste.globo.com/materia.asp?codigo=386537)

A vida de hoje

O uso de açoite em réus escravosfoi proibido por lei em 1886? Por-tanto, quando João Cândido tinhaapenas seis anos de vida – e 24anos antes da Revolta da Chibata.

voce sabia que...ˆ

“Ninguém será submetidoà tortura, nem

a tratamento oucastigo cruel, desumano oudegradante.”Artigo 5º da Declaração

Universal dos Direitos

Humanos, Assembléia Geral das

Nações Unidas – ONU, 1948

Marcelino Rodrigues Menezes foi oúltimo marinheiro a ser castigado

antes do levante

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Marinheiros do cruzador Bahia mobilizados na revolta

Page 29: Almanaque Histórico

Projeto Memória28

bela caligrafia, apresentavam-

se como “cidadãos brasilei-

ros e republicanos” e exigiam:

“desapareça a chibata”. Caso

não fossem atendidos, esta-

vam dispostos a bombardear

a capital do país e as embar-

cações que os hostilizassem.

Castigos, violenta tradição brasileira

Ao lado: Marinheiros exigiam o fimdos castigos

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ca setores oprimidos da popu-

lação, como agentes históri-

cos transformadores.

Os marujos enviaram um

manifesto em forma de carta

e vários telegramas ao gover-

no com suas reivindicações.

No manifesto, manuscrito em

por dentro da história “Pensamos no dia 15 de novembro. Acontece que caiu forte tempo-

ral sobre a parada militar e o desfile naval. A marujada ficou cansada

e muitos rapazes tiveram permissão para ir a terra. Ficou combina-

do então que a revolta seria entre 24 e 25. Mas o castigo de 250 chi-

batadas no Marcelino precipitou tudo. O Comitê Geral resolveu, por

unanimidade, deflagrar o movimento no dia 22. O sinal seria a cor-

neta das 22 horas (...) Às 22h50, quando cessou a luta no convés,

mandei disparar um tiro de canhão, sinal combinado para chamar à

fala os navios comprometidos.”

(João Cândido em relato ao jornalista Edmar Morel, publicado no livro A Revolta da

Chibata, 4ª edição, Rio de Janeiro: Graal/Paz & Terra, 1986).

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Page 30: Almanaque Histórico

29João Cândido – A Luta pelos Direitos Humanos

Além das atitudes e das falas,

é importante verificar que os

marujos se expressaram tam-

bém por escrito, colocando

no papel seus propósitos.

Uma parte da população fu-

giu, apavorada com a possibili-

dade da cidade ser bombar-

deada. O então famoso jorna-

Por dentroda história

�Trecho da carta dos

marinheiros da Revolta

da Chibata

“Ilmo. Exmo. Sr. Presidente

da República brasileira.

Cumpre-nos, comunicar a

V. Excia. como chefe da

Nação Brasileira: Nós, mari-

nheiros, cidadãos brasilei-

ros e republicanos, não

podendo mais suportar a

escravidão na Marinha Bra-

sileira, a falta de proteção

que a Pátria nos dá; e até

então não nos chegou;

rompemos o negro véu,

que nos cobria aos olhos

do patriótico e enganado

povo(...)”.

(Trecho da carta enviada

pelos rebeldes ao presidente

da República)

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lista Gilberto Amado registrou

no jornal O Paiz: “Na minha rua

quase não ficou ninguém; hou-

ve lágrimas, ataques, soluços

ruidosos e o berreiro alarmado

das crianças, que viam na face

A bandeira vermelha (mastro àdireita) manteve-se hasteada no São

Paulo e nas demais embarcações.

Abaixo: Marinheiros, com as armasnas mãos, conseguem dar fim à

chibata ma Marinha

Page 31: Almanaque Histórico

Projeto Memória30

por dentro da história Surge uma liderança

O marinheiro de 1ª classe João Cândido, da 16ª Companhia da Marinha nacio-

nal foi, sem dúvida, o principal líder da Revolta da Chibata, seja pela ativida-

de que exerceu durante a rebelião, seja pelo reconhecimento de seus com-

panheiros da Armada que o aclamaram como chefe. Também oficiais, gover-

no, parlamentares, imprensa e a população em geral o viam nessa condição,

ainda na época do episódio. Foi escolhido pelos companheiros por vários

motivos: era um dos mais velhos e com mais tempo de serviço, considerado

um excelente marinheiro, bem-visto por marujos e oficiais, construiu ao

longo dos anos uma liderança sólida em sua posição de marujo. Intitulado

Almirante-em-chefe da esquadra rebelde, logo a população e os jornais da

época o apelidaram de Almirante Negro.

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Vale é saber que as carnes de um servidor dapátria só serão cortadas pelas armas dos inimi-gos, mas nunca pela chibata de seus irmãos. A chibata avilta.

João Cândido, em entrevista ao Correio da Manhã durante a rebelião em 1910

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Jornal O Malho publica charge ilustrando a fuga de parte da população.Já alguns cariocas preferiram admirar aevolução dos navios no cais

fim do mundo”. Outras pes-

soas, em vez de se afastarem,

foram para a beira do cais, cu-

riosas, assistir à movimenta-

ção dos navios – e não faltou

quem aplaudisse.

materna a consternação e o

pasmo. Vez em vez, atulhados

de bagagens e de pessoas,

automóveis fuzilavam nervosa-

mente numa velocidade im-

prevista. Era o pavor; parecia o

Page 32: Almanaque Histórico

Por dentroda história

�Surgem várias lideranças

Dentre os 2.300 marujos re-

belados, formou-se uma

“oficialidade rebelde” para

comandar as embarcações

durante a revolta, composta

por 28 homens. No navio

São Paulo destacaram-se o

cabo Gregório do Nasci-

mento, músico e cozinheiro,

e o cabo André Avelino San-

tana, baiano. No Bahia, o co-

mandante rebelde foi o ma-

rinheiro cearense Francisco

Dias Martins, ao lado de

Ricardo Freitas e Adalberto

Ribas. A bordo do Deodoro

a liderança ficou com os ma-

rujos Antonio Alves Lessa e

José Alves de Sousa.

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31João Cândido – A Luta pelos Direitos Humanos

placáveis ódios, vinganças e

difamações que o acompa-

nhariam por toda vida. Ates-

tam isso a quantidade de fo-

tos, charges e artigos publica-

dos em destaque nos princi-

pais jornais, os discursos na

Câmara Federal e no Senado,

diálogos registrados nas ruas,

casas e cafés.

“E combinaram / uma revol-ta na surdina / se lançaram /nessa sina e saíram triunfan-tes. / Por ser o líder / que as-sume, que ensina / os maru-jos com estima / lhe fizeramalmirante.”

(Música Nobre Almirante, da peçateatral do Grupo Mambembe, en-cenada em 1983, durante a ditadu-ra civil-militar no Brasil)

O que cantaa história

Em cinco dias o marujo

gaúcho transformou-se, de

ilustre desconhecido, na

maior celebridade do Brasil

naquele momento, atraindo

sobre ele não só entusiasmo e

admiração, mas também im-

Page 33: Almanaque Histórico

Projeto Memória32

Anistia vem do grego Amnistia esignifica esquecimento. Segundoo Dicionário Aurélio é o “ato peloqual o poder público declaraimpuníveis, por motivo de utili-dade social, todos quanto, atécerto dia, perpetraram determi-nados delitos, em geral, políti-cos, seja fazendo cessar as dili-gências persecutórias, seja tor-nando nulas e de nenhum efeitoas condenações”.

Na ponta da língua

O que canta a história: “Notempo da revolta / João Can-dido era almirante / Avelinoimediato / E Gregório co-mandante. / João Cândidoalmirante / ainda deve selembrar / que tem seu nomegravado / no barco MinasGerais...”

(Canção entoada por marinheirose relatada por Zeelândia Cândido,em entrevista à Silvia Capanema P.de Almeida, em 2002)

O que cantaa história

É bem doloroso para um país forte ealtivo ter de sujeitar-se às imposiçõesde 700 ou 800 negros e pardos que,senhores dos canhões, ameaçaram aCapital da República.

Fanfulla, jornal de São Paulo, em 1910

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A notícia correu o mundo,

transformou-se em manchete

nos principais jornais brasilei-

ros (e, também, argentinos,

uruguaios, parisienses, italia-

nos, alemães e ingleses, entre

outros) que enfatizavam a

“rendição” das lideranças go-

vernamentais brasileiras. Po-

líticos, membros do governo

Page 34: Almanaque Histórico

33João Cândido – A Luta pelos Direitos Humanos

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Manifesto dos marinheiros: contra a“Escravidão na Marinha”

Page 35: Almanaque Histórico

Projeto Memória34

e, sobretudo, os altos oficiais

da Marinha sentiram-se pro-

fundamente irritados com o

desfecho do episódio.

Além de exigirem o fim da

chibata os rebeldes pediam,

também, anistia. O governo

do marechal Hermes da Fon-

seca (empossado há uma se-

mana como oitavo Presi-

dente da República no Brasil)

e o Congresso Nacional, acua-

dos, aceitaram rapidamente

todas as condições.

Jornal O Malho divulga foto em que João Cândido discute o texto da anistia com o comandante Pereira Leite

Abaixo: Na charge de oposição à Revolta dos marinheiros, o marechal Hermes da Fonseca assina a anistia

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Page 36: Almanaque Histórico

35João Cândido – A Luta pelos Direitos Humanos

A nistiados, os marinhei-

ros devolveram os na-

vios e largaram as armas em

27 de novembro de 1910.

Doze dias depois, ocorre ou-

tra rebelião, dessa vez envol-

vendo as guarnições do Ba-

talhão Naval (na Ilha das Co-

bras) e do cruzador-ligeiro

Rio Grande do Sul. Os com-

bates foram rápidos, porém

mais violentos do que na

insurreição de novembro,

pois o governo partia para

esmagar os rebeldes, dos

quais 24 foram mortos, além

do falecimento de soldados

do Exército fiéis ao governo

aquartelados no mosteiro de

São Bento e de oito civis

(entre os quais um monge

beneditino) atingidos por dis-

paros na cidade, que levaram

132 feridos aos hospitais. Os

navios com os marujos da

4. EXPLODE A REPRESSÃO EM TERRA

Revolta da Chibata não tive-

ram qualquer participação

nesse segundo episódio. Mas

o governo se aproveitou do

pretexto para fazer uma per-

seguição das mais violentas.

O saldo final da repressão:

1.216 expulsões da Marinha

(dados oficiais), ou seja, nú-

mero equivalente a quase

metade dos participantes da

Revolta da Chibata; seiscen-

tas pessoas presas, inclusive

os líderes do movimento (que

sofreram maus-tratos); de-

gredo e trabalho escravo para

centenas. E número ainda não

contabilizado de assassinatos,

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Page 37: Almanaque Histórico

Projeto Memória36

dos quais cerca de 30 são

conhecidos os nomes e o

modo como foram mortos.

João Cândido preso

Acusado de participar da

nova rebelião, João Cândido

foi preso no dia 24 de

dezembro, véspera de Natal

de 1910, e conduzido à Ilha

das Cobras, onde ficava o

Batalhão Naval. Sob pretex-

to de que todas as cadeias

da cidade estavam

lotadas, foi o pri-

meiro a ser jo-

gado numa

cela solitá-

ria, encrava-

da na rocha,

úmida, de as-

pecto tenebroso e

apertada. Apesar da

denominação do local – soli-

tária – foram a seguir colo-

cados na “jaula” (expressão

do carcereiro) mais 17 maru-

jos. Na “solitária” ao lado

ficaram outros 13 marinhei-

ros. Ao todo, 31 detidos, des-

pidos, num espaço onde mal

cabiam duas pessoas. Eram

os considerados “elementos

perigosos”, no linguajar ofi-

cial. Ocorreu aí uma das vio-

lências mais fortes. Os deti-

dos ficaram assim, amontoa-

dos e sem poderem se me-

xer direito ou mesmo respi-

rar durante quatro dias, sem

receber água ou alimentos.

Ao abrirem as portas, havia

18 mortos lá dentro, alguns

já inchados e apodrecendo.

João Cândido foi um dos

que sobreviveram.

A população carcerária no Brasil

é composta por 440 mil pessoas?

Os dados constam do relatório da

Comissão Parlamentar de Inqué-

rito (CPI) do Sistema Carcerário e

tem por base levantamento do

Departamento Penitenciário Na-

cional (Depen), do Ministério da

Justiça. A preocupação com os

Direitos Humanos inclui ainda, a

necessidade, segundo a Secreta-

ria de Educação Continuada, Alfa-

betização e Diversidade (Secad),

do Ministério da Educação, de

implementação do Plano Nacional

de Educação no Sistema Pri-

sional. Atualmente, cerca de 22

mil presos são analfabetos, 56 mil

apenas alfabetizados, e 145 mil

têm somente o ensino fundamen-

tal completo.

(Adaptado de

http://www.agenciabrasil.gov.br/noti-

cias/2008/06/20/materia.2008-06-

20.4618774042/view e

http://noticias.terra.com.br/brasil/inter-

na/0,,OI2044669-EI306,00.html de 03/11/2007)

voce sabia que...ˆCentenas de marinheiros (inclusive os anistiados) foram detidos

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Fundação Biblioteca

Nacional

Page 38: Almanaque Histórico

O controle psiquiátrico

Diante das brutalidades sofri-

das e presenciadas na Ilha

das Cobras, João Cândido,

nos primeiros momentos,

ficou traumatizado e tinha

visões dos companheiros

dos, no bairro da Urca, próxi-

mo à praia Vermelha (hoje no

prédio oitocentista funciona

um campus da Universidade

mortos, que reapareciam em

sua memória gritando e ago-

nizando, deformados e so-

frendo. Examinado por uma

junta médica, rapidamente

concluíram que estava louco

e resolveram enviá-lo para o

Hospital Nacional dos Aliena-

Por dentroda história

�O navio da morte

Também na véspera de

Natal de 1910 foram embar-

cados no navio mercante

Satélite, do Lóide brasileiro,

com destino ao desterro na

Amazônia, 441 presos as-

sim qualificados em relató-

rio oficial: 105 ex-marinhei-

ros, 292 vagabundos e 44

mulheres. O grupo ia escol-

tado por tropas do Exército.

No trajeto, 14 marinheiros

foram fuzilados, a pretexto

de que tentaram promover

uma rebelião, e os corpos

jogados ao mar. Entre estes,

vários participantes da

Revolta da Chibata, como

Vitalino José Ferreira, que

presidira o Comitê Revo-

lucionário. Ao chegarem na

Amazônia, os presos foram

entregues aos donos dos

seringais para trabalhos for-

çados. Sabe-se de poucos

sobreviventes.

Na primeira metade do século XIX existiram no Brasil os navios-prisões,

chamados de presigangas? Eram centros de detenção flutuantes onde

ficavam soldados estrangeiros prisioneiros de guerra, soldados brasileiros

punidos por alguma falta, escravos condenados, índios destribalizados,

presos políticos e outros detidos por crimes variados. Nessas embarca-

ções havia constantes maus-tratos, torturas e não raro os presos morriam

a bordo. Tais navios foram trazidos por D. João VI ao Brasil e serviram no

reinado de D. Pedro I (1822–1831) e durante as Regências (1831 – 1840). O

jornalista Cipriano Barata que esteve preso numa dessas embarcações

escreveu, em 1829, uma longa denúncia sobre as torturas.

voce sabia que...ˆ

37João Cândido – A Luta pelos Direitos Humanos

Ficha de João Cândido no HospitalNacional dos Alienados

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Page 39: Almanaque Histórico

sumida foi publicada em 12 arti-

gos na Gazeta de Notícias

entre dezembro de 1912 e janei-

ro de 1913. Os textos vinham

assinados pelo autor, com

alguma intervenção de jornalis-

tas do periódico, entre eles o

famoso Paulo Barreto (João do

Rio) e hoje fazem parte do

acervo da Biblioteca Mário de

Andrade, em São Paulo.

A Biblioteca Mário de Andrade

tem o segundo maior acervo do

Brasil, atrás apenas da Biblio-

teca Nacional (RJ)? Seu nome é

uma homenagem ao escritor Má-

rio Raul de Morais Andrade

(1893–1945), nome destacado no

Movimento Modernista brasileiro

que se inaugurou com a Semana

de Arte Moderna em 1922. Um de

seus principais livros é Macu-

naíma (1928), romance que utili-

za mitos indígenas, lendas, pro-

vérbios e registra alguns aspec-

tos da cultura do país até então

pouco conhecidos, na busca de

traçar o “caráter” (identidade)

nacional. Para saber mais sobre

o autor e a biblioteca acesse

http://www.prefeitura.sp.gov.br/c

idade/secretarias/cultura/bma/.

voce sabia que...ˆEm 1990, o Brasil assinou a Declaração de Caracascomprometendo-se a reestruturar a assistência aos

portadores de necessidades especiais na área da psi-quiatria? A atual Política de Saúde Mental originou-se na

Lei Federal 10.216, de 2001. Tem como objetivo substituiras internações de longa permanência (nas quais o paciente é isolado doconvívio familiar e social) por meio da desativação dos antigos manicô-mios, substituindo-os pela implantação dos Centros de AtendimentoPsicossocial (CAPS) e utilização de leitos em hospitais gerais. Dados doMinistério da Saúde indicam que, em 2007, havia 841 CAPS em todo opaís. Contudo, ainda existiam 228 hospitais psiquiátricos tradicionais.Apesar das mudanças, o novo tipo de atendimento ainda é insuficien-te. A demora para marcar consultas é um dos obstáculos na execuçãoda política de desinternação, segundo conclusões apresentadas duran-te o XXV Congresso Brasileiro de Psiquiatria, realizado em outubro de2007, em Porto Alegre (RS).

A vida de hoje

João Cândido tem alta do hospital. Os psquiatras concluiram que não

estava louco.

Projeto Memória38

Durante a estada no hospi-

tal, João Cândido resolveu co-

locar no papel suas memórias,

com destaque para os recentes

acontecimentos. O manuscrito

desse livro, que ele intitulara

A vida de João Cândido ou O

Sonho da Liberdade, está desa-

parecido. Mas uma versão re-

Federal do Rio de Janeiro). En-

tretanto, os médicos logo

constataram que João Cândi-

do apresentava “perfeita orien-

tação autopsíquica”. O marujo

ficou quase dois meses inter-

nado, ocasião em que pode se

refazer dos maus-tratos que

sofrera na Ilha das Cobras.

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Page 40: Almanaque Histórico

39João Cândido – A Luta pelos Direitos Humanos

Julgamento e liberdade

Ao ter alta do hospital, João

Cândido foi novamente preso

e assim ficou por quase dois

anos, até ser julgado pelo

Conselho de Guerra em fins

de 1912, ao lado de mais nove

marujos que haviam partici-

pado da Revolta da Chibata.

Eram acusados de atuação

no segundo levante, ocorrido

em dezembro de 1910. Os

advogados de defesa foram

chamados pela Irmandade de

Nossa Senhora do Rosário

dos Homens Pretos, antiga

agremiação criada por escra-

vos alforriados e que se ca-

racterizou por abrigar e pro-

teger cativos na época da

escravidão. Evaristo de Mo-

raes, Caio Monteiro de Barros

A tualmente, apesar das conquistas e da pro-mulgação em maio de 1990 do Estatuto da

Criança e do Adolescente, a sociedade brasileira aindaprecisa garantir a cidadania desses futuros cidadãos,

combatendo a falta de escolarização, exploração sexual,violência e o trabalho infantil. Segundo a Organização Interna-cional do Trabalho (OIT), 11% das crianças brasileiras são usadascomo mão-de-obra nas cidades e no campo.

A vida de hoje

João Cândido sai do carro-prisão para ser julgado no Conselho de Guerra.Abaixo: Charge de O Malho retrata o marinheiro como um bandido

João Cândido absolvido, ainda évigiado por um guarda

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e Jerônimo José de Carvalho

aceitaram com entusiasmo a

causa e se recusaram a rece-

ber qualquer honorário.

Monteiro de Barros, apon-

tando a vingança executada

pelo governo, chamou aten-

ção para a situação de um

dos presos, o grumete Al-

fredo Maia: “(...) conta 16 anos;

Page 41: Almanaque Histórico

Projeto Memória40

com essa idade (...) essa crian-

ça, foi bárbara e impiedosa-

mente encerrada em mas-

morras terríveis, imundas,

onde cumprem penas crimi-

nosos da pior espécie”.

A juventude está cada vez mais atenta aos proble-mas atuais da sociedade brasileira, como educa-

ção, meio ambiente, violência, trabalho e doençassexualmente transmissíveis, dentre vários outros. E,

mais que isso, envolvida e buscando formas de participar.As conclusões estão na pesquisa Adolescentes e jovens do Brasil: par-ticipação social e política, publicada pelo Unicef3, em 2007. Ao todoforam entrevistados 3.010 jovens, entre 15 e 19 anos, residentes nascapitais e interior de todas as regiões do país. Um grupo complemen-tar formado por 210 jovens adolescentes indígenas de 15 municípios,também foi entrevistado para que se pudesse apontar as peculiarida-des dessa população. A pesquisa deu continuidade ao estudo A Voz dosAdolescentes, lançado em 2002, pelo Unicef.

A vida de hoje

Tem aumentado a mortalidade

entre os jovens brasileiros de 15

a 29 anos, não-brancos, homens

e pouco escolarizados? Isso

ocorre principalmente pelo uso

de armas de fogo e acidentes de

trânsito entre os moradores das

áreas mais pobres das grandes

cidades. Os dados estão presen-

tes no 15º Boletim de Políticas

Sociais, publicado pelo Instituto

de Pesquisa Econômica Aplicada

(IPEA), em 21/05/08.

(Acessado em

http://www.ipea.gov.br/003/00301009.jsp?t

tCD_CHAVE=4653)

voce sabia que...ˆ

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Ao final do julgamento, veio

a sentença: absolvidos por

unanimidade. Pela primeira

vez desde que fora preso, Jo-

ão Cândido chorou, de emo-

ção, enquanto os demais co-

memoravam efusivamente.

Page 42: Almanaque Histórico

41João Cândido – A Luta pelos Direitos Humanos

A o sair da prisão em 30

de dezembro de 1912,

João Cândido, sentindo o

gosto da liberdade, teve notí-

cia ruim (embora não sur-

preendente): acabava de ser

excluído dos quadros da

Marinha de Guerra do Brasil.

Foi o último dia em que usou

a farda. Surgia assim mais um

trabalhador civil, desempre-

gado naquele momento.

Menos de um mês

após ser solto,

João Cândido,

que passara

por verdadei-

ro círculo de

horrores, pre-

senciou ex-

pressiva home-

nagem, assim noti-

ciada por O

Paíz: “Circo Spi-

nelli – Compa-

nhia Eqüestre

Nacional da Capital Federal –

Grandiosa função em benefí-

cio do ex-marinheiro nacional

João Cândido com um pro-

grama cheio de novidades e

atrações.” Tratava-se do gru-

po circense do famoso palha-

ço negro, Benjamim de Oli-

veira, que empolgava e fazia

rir as multidões.

Um cineasta pioneiro no

Brasil, Alberto Botelho, este-

ve a bordo do encouraçado

Minas Gerais durante a Revol-

ta da Chibata e captou ima-

gens de João Cândido e de

outros marujos. Em

janeiro de 1912,

uma sala de ci-

nema na rua

Marechal Flo-

riano, Centro

do Rio de Ja-

neiro, espalhou

cartazes pela ci-

dade anunciando a

estréia de A vi-

da de João Cân-

dido, dirigido

por Botelho. Mas

o chefe da polícia, Belizário

Távora, censurou a fita, proi-

bindo a exibição e até apre-

endendo os cartazes de pro-

5. UM PESCADOR ARTESANAL

Parte IIIA longa vida de um homem do povo

Benjamin Chaves (1870–1954),

depois conhecido como Benja-

min de Oliveira, nasceu em Pará

de Minas, no estado de Minas

Gerais? Escravo, como a mãe

Leandra, fugiu com um circo aos

12 anos. É considerado o primei-

ro palhaço negro do Brasil e,

segundo o pesquisador Brício de

Abreu, o primeiro palhaço negro

do mundo. Ao longo da vida

atuou ainda como ator teatral,

cantor, instrumentista, composi-

tor e foi um dos principais atores

do cinema brasileiro que surgia.

Apresentava-se com o rosto pin-

tado de branco. Sua trajetória de

vida será enredo do carnaval da

Escola de Samba São Clemente,

do Rio de Janeiro, em 2009.

(Adaptado de http://www.acordacultura.org.br)

voce sabia que...ˆ

João Cândido, que aqui lê a anistia concedida, é expulso

da Marinha

Car

et

a/

Fundação Biblioteca Nacional

Page 43: Almanaque Histórico

Projeto Memória42

por dentro da história “Os circos chegavam em lombos de burro e carros de boi, de

tempos em tempos, passavam pela minha aldeia, Pará de Minas

(MG), naquele tempo não era mais que uma aldeia. E a única atra-

ção que existia para a imaginação das crianças

eram precisamente aqueles circos que vinham

de longe em longe, com palhaços que per-

corriam as estradas, de costas, em cavalos

enfeitados, berrando: ‘Hoje tem espetáculo?

Tem, sim sinhô! O palhaço, o

que é? É ladrão de mulher!’”

(Benjamim de Oliveira, depoi-

mento para Brício de Abreu,

Esses populares tão desconheci-

dos, Rio de Janeiro, Editora R.

Carneiro, 1963)

� �O cinema foi inventado pelos

irmãos Auguste e Louis Lumière e

a primeira sessão pública ocor-

reu em Paris, em 28 de dezembro

de 1895? Cerca de seis meses

depois já acontecia a exibição

cinematográfica (chamado de

cinematographo) inaugural no

Brasil, por meio do projetor

omniographo, no Salão Paris, rua

do Ouvidor, Centro do Rio de

Janeiro, em 8 de julho de 1896.

Nas primeiras décadas o cinema

era mudo, isto é, sem som – e as

salas de exibição providencia-

vam música (ao vivo ou em gra-

mofones) para acompanhar as

imagens. A partir de 1927, come-

çaram a ser feitos os “filmes fa-

lados”. O cinema tornou-se rapi-

damente um veículo de massas,

p e r d e n d o

uma parte do

público com

o advento da

televisão nos

anos 1950.

voce sabia que...ˆ

Depois da revolta caí na penúria, no ódio. Quandohouve a epidemia espanhola [que causou 50 milhõesde mortes em todo o mundo], em 1919, estive a serviçodos navios ingleses que estavam aqui, no momento dalimpeza, desinfecção, enterrando ingleses.

João Cândido, em entrevista ao Correio da Manhã durante a rebelião em 1910

paganda. Esse material pas-

sou décadas esquecido e,

antes que o assunto voltasse

a chamar atenção, a única

cópia da película foi destruí-

da num incêndio na Filmo-

teca do Museu de Arte Mo-

derna, São Paulo, em 1957.

Nos primeiros tempos de-

pois de sair da prisão, João

Cândido morou na rua Ipi-

ranga, no então bucólico

bairro de Laranjeiras, Zona

Sul carioca. Foi abrigado pe-

lo carpinteiro naval Freitas,

que lhe ofereceu um quarto.

Por essa época, o ex-marujo

ainda conseguia emprego na

Marinha Mercante e em bar-

cos particulares. Trabalhou

Page 44: Almanaque Histórico

43João Cândido – A Luta pelos Direitos Humanos

pressão de oficiais da Marinha

sobre os patrões. A persegui-

ção continuava, implacável.

Foi então que, em 1919, jun-

tando o dinheiro que restava,

o líder da Revolta da Chibata

comprou o modesto caíque

Três Marias para pescaperto

dali, no mercado do cais

Pharoux (Praça XV). Em con-

dição de pobreza, mas perto

dos elementos entre os quais

ficava mais à vontade (cais,

navios, marinheiros, o mar) e

no meio de sua gente, viveu

por quatro décadas, sem salá-

rio fixo e garantias sociais,

como os demais pescadores

pobres em todo o Brasil.

Em 1930, às vésperas do

movimento que levaria Getulio

sucessivamente em diversos

navios, voltando a percorrer

as águas. O trabalho excessi-

vo e pesado na carga acabou

por prejudicar sua saúde e

teve que baixar hospital. Sem

esquecer que, de todos esses

empregos, foi demitido por

Honestidade, a viga mestra

de João Cândido. Apesar

das necessidades que pas-

sava com a família, diante

da dificuldade para conse-

guir trabalho, João Cândi-

do, coerente com os princí-

pios de liberdade e justiça

que manteve ao longo da

vida, prosseguiu buscando

biscates e vendendo peixes

na praça XV. Ele recusou

convite para integrar os

Cravos Vermelhos, apeli-

do da polícia de repressão

política na ditadura Vargas

(1937–1945), perseguindo

aqueles que eram contra o

governo – conforme narrou

ao jornalista Edmar Morel.

Manifesto do Movimento dos Pescadores contra aPrivatização do Mar e dos Rios

“Não aceitamos o discurso de inviabilidade da pescaartesanal como argumento para legitimar um investi-

mento maciço em aqüicultura de grande escala. De fatoexiste uma diminuição nos estoques pesqueiros nas áreas utilizadaspelos pescadores artesanais. Contudo, a pergunta que não quer calaré: porque estes estoques estão diminuindo? Identificamos comocausas desta diminuição de pescado um modelo de desenvolvimen-to insustentável, que despreza a cultura das populações tradicionais,concentra renda e território, é marcado pelo racismo ambiental edesrespeita a legislação.”

(Fonte: MOPEBA, 1/8/2008 http://www.politicaspublicasbahia.org.br/spip.php?article176)

A vida de hoje

Retratos de uma vida

Após sua expulsão da Marinha, JoãoCândido trabalhou como pescador nocais Pharoux (Praça XV, no Rio deJaneiro)A

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Page 45: Almanaque Histórico

Projeto Memória44

Vargas ao poder, João Cân-

dido foi detido pela polícia,

acusado de conspirar com

os integrantes da Aliança Li-

beral (formada por grupos

que apoiavam a candidatura

Vargas). Tal acusação era in-

fundada, fruto da imagina-

ção de um delegado. Mas o

calejado marujo percebeu

que estava por demais mar-

cado e qualquer pretexto

seria válido para importuná-

lo, 20 anos depois da Re-

volta da Chibata.

Após essa prisão extempo-

rânea, João Cândido mudou-

se para São João de Meriti, na

Baixada Fluminense – em

busca de um local mais retira-

do para preservar a ele e seus

filhos das perseguições, mas

também por dificuldades fi-

nanceiras, já que longe do

Centro a moradia era mais

barata. Passou a sair de casa

por volta das 23 horas para

pegar o trem da Central e

encarar o batente no entre-

posto de pesca de madruga-

da, enfrentando a cada dia

uma longa e penosa trajetória

de ida e volta. Morava num

local sem luz elétrica e calça-

mento e não tinha assistência

de saúde constante.

Deste modo, na vida do

ex-marujo, a batalha agora

era outra – semelhante a que

era (ainda é) encarada por

milhões de trabalhadores po-

bres. Desafios hoje enfrenta-

dos na sociedade brasileira,

como: trabalhadores sem vín-

culo empregatício formal,

sem direitos trabalhistas e

previdenciários, sistema de

transporte coletivo descon-

fortável e demorado, falta de

apoio sistemático à terceira

idade, moradias urbanas nas

periferias afastadas do local

de trabalho, precariedade de

saneamento (falta de energia

elétrica regularizada, esgoto,

água encanada e calçamen-

to), ausência de atendimento

de saúde adequado. Nessa

luta cotidiana e anônima, o

líder da Revolta da Chibata

também mostrou fôlego, efi-

ciência e capacidade de resis-

São João de Meriti, com 449.476

mil moradores (IBGE, 2000) é a

cidade com mais habitantes por

metro quadrado da América La-

tina? São 12.897,81 pessoas por

km2. Localizada na região do

Grande Rio e considerada “cida-

de dormitório”, fica na Baixada

Fluminense (RJ), distante 20 km

da capital do estado.

voce sabia que...ˆ

A situação dos 400 mil pescadores artesanais nopaís ainda hoje é difícil, devido à baixa renda,

pouca estabilidade, concorrência da pesca industrial degrande escala e degradação do meio ambiente. Em 2008

foi aprovado na Câmara dos Deputados projeto que conce-de direitos aos pescadores artesanais, como o de receber seguro-desemprego nas temporadas de interdição de pesca para preservaçãode pescados. Também tais pescadores começam a receber títulos decessão de uso das águas da União. A transformação da Secretaria daPesca em Ministério, em 2008, aponta a preocupação do governo emtratar da questão e expressa as lutas dos pescadores artesanais.

A vida de hoje

João Cândido passou a sobreviver da pesca

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Page 46: Almanaque Histórico

45João Cândido – A Luta pelos Direitos Humanos

tência. As formas de domina-

ção e desigualdade que ele

enfrentou na rebelião e na so-

brevivência podem ter mu-

dado, mas não desapareceram

e em boa dose permanecem

ainda hoje, apesar das con-

quistas e avanços de direitos

humanos e garantias sociais.

Mesmo depois da Revolta

da Chibata, João Cândido

não ficou totalmente afasta-

do das lutas políticas. Duran-

te o longo governo Vargas

(1930–1945), o ex-marujo te-

ve contato com as principais

correntes políticas, mas optou

nitidamente por uma, o inte-

gralismo. João Cândido en-

controu-se várias vezes com

Plínio Salgado, o líder

máximo dessa ten-

dência: vestiu a ca-

misa verde que ca-

racterizava o gru-

po, repetia a sau-

dação “Anauê!”

com o braço er-

guido. Tal opção

de João Cân-

dido era coe-

rente com as-

pectos de sua

O integralismo foi um movimento

de inspiração fascista criado no

Brasil sob a liderança do escri-

tor Plínio Salgado, em 1932, por

intermédio da Ação Integralista

Brasileira (AIB)? Extinguiu-se

após uma fracassada tentativa

de golpe armado contra o gover-

no Vargas seis anos depois.

Calcula-se que chegou a contar

entre seiscentos mil e um

milhão de adeptos de variados

segmentos sociais.

voce sabia que...ˆPor dentroda história

�Aliança Nacional Liberta-

dora (ANL) foi criada em

janeiro de 1935 sob hege-

monia do Partido Comu-

nista Brasileiro (PCB). Abri-

gava socialistas indepen-

dentes, democratas, cris-

tãos e nacionalistas de es-

querda, além de variados

setores sociais, chegando a

ser um movimento de mas-

sas de âmbito nacional,

com participação em sindi-

catos, em associações civis,

estudantes e militares. Ti-

nha um programa de refor-

mas profundas na socieda-

de, como reforma agrária e

controle do capital estran-

geiro. Foi colocada na ile-

galidade em julho e esteve

à frente do fracassado le-

vante de novembro do

mesmo ano, sob a liderança

de Luiz Carlos Prestes.

Plínio Salgado e a propaganda

integralista

Luiz Carlos Prestes

Page 47: Almanaque Histórico

Projeto Memória46

vida: seja pela formação tra-

dicional militar e até militaris-

ta (que incluía a valorização

de uma autoridade forte),

seja pela presença massiva

de integrantes da Marinha

que o atraíam neste movi-

mento (sobretudo oficiais,

mas também marujos, além

de soldados e operários). O

líder da rebelião de 1910 par-

ticipou, em 1º de novembro

de 1937, da marcha integralis-

ta coordenada pelo escritor

Gustavo Barroso, com cerca

de 50 mil pessoas (inspirada

na Marcha sobre Roma co-

mandada por Benito Mus-

solini). Acabou decepcionan-

do-se pela “falta de iniciativa

e coragem” dos líderes inte-

gralistas e pela predominân-

cia de oficiais entre eles. Na

verdade, João Cândido teve

atuação periférica nestes

episódios.

Antes de aderir ao inte-

gralismo, João Cândido che-

gou a freqüentar de modo

esparso a Aliança Nacional

Libertadora, apenas assistin-

do a alguns comícios. Guar-

dou, sobretudo, a ligação

com Octávio Brandão, um

dos principais teóricos mar-

xistas da época, que escre-

veu sobre a Revolta da Chi-

Através do samba 2000 –

Trabalhadores do Brasil: a

época de Getulio Vargas, oGrêmio Recreativo Escolade Samba Portela, do Rio deJaneiro, abordou o períodoem que Getulio Vargas este-ve no poder. A censura, aindustrialização, os traba-lhadores e a era do rádio fo-ram tratados pelos composi-tores. As contradições dapaixão que despertou Getu-lio, também estão presentesna melodia.

O que cantaa história

Fascismo... Regime político instau-rado por Benito Mussolini na Itália,entre 1922 e 1943. Caracterizou-sepela ditadura e totalitarismo, ondehá subordinação dos indivíduosaos interesses do Estado, que pre-tende ter poderes absolutos sobrea vida política, social, cultural,religiosa e econômica do país, comperseguição aos opositores.

Nazismo... Regime político instau-rado em 1934, na Alemanha, porAdolf Hitler. Além das característi-cas fascistas, prometia prosperida-de ao povo alemão, a quem exalta-va a superioridade diante dos de-mais povos. Defendia também o an-ti-semitismo (ódio aos judeus) e oracismo e foi responsável pela mor-te de milhões de pessoas, sobre-tudo nos campos de concentração.

Comunismo... O comunismo tem vá-rias tendências e definições, maspode ser compreendido por umconjunto de propostas sociais, po-líticas e econômicas para a im-plantação de uma sociedade semclasses sociais. Indústrias, terras emeios de produção deixariam deser privados – ter um dono –,transformando-se em bens públi-cos. No campo político, o comunis-mo defende, como objetivo final, aausência do Estado. Entretanto, associedades que se organizarambaseadas nessa ideologia, no sé-culo XX, caracterizaram-se por terum Estado forte.

Na ponta da língua

Marcha integralista, em 1937, reúnecerca de 50 mil pessoas

Page 48: Almanaque Histórico

47João Cândido – A Luta pelos Direitos Humanos

bata em seu livro O Caminho

(1950). No campo das es-

querdas surgiram outras ini-

ciativas de se escrever a his-

tória da rebelião dos ma-

rujos. O médico Adão Pe-

reira Nunes, militante comu-

nista, publicou clandestino,

sob pseudônimo de Bene-

dito de Paulo, o livreto A

revolta de João Cândido, em

1934, apreendido pela polícia.

Ainda em 1934, no mês de

outubro, o humorista Apa-

rício Torelly, conhecido por

Barão de Itararé, publica em

seu jornal de orientação co-

munista, Folha do Povo, uma

série de pelo menos dez ca-

pítulos do folhetim intitula-

romper a produção. E seria

por esse motivo que colocou

na porta da redação do jornal

a placa: “Entre sem bater”.

Fora da Marinha, João

Cândido buscou estruturar

família. Foi casado três vezes

e ficou viúvo nos dois primei-

ros matrimônios (com Ma-

rieta e Maria Dolores). Teve 11

filhos, dos quais dois são

vivos e moram no Rio de Ja-

neiro, Arnaldo e Adalberto

(Candinho), ambos da tercei-

ra esposa, Ana do Nasci-

mento. Ela foi a mais longa

ligação afetiva do marujo:

foram casados durante 39

anos, até o falecimento dele.

Durante muitas décadas

não era fácil escrever sobre

João Cândido. Alguns jornais

e revistas publicavam de vez

em quando matérias sobre

do A insurreição dos mari-

nheiros de 1910, valorizando

a atitude dos rebeldes. O

humorista foi seqüestrado e

espancado por oficiais da

Marinha, tendo que inter-

PERSEGUIÇÃO

Hélio Silva: Nos arquivos da Marinha não consta absolutamen-

te o nome de João Cândido, como se ele não tivesse existido.

João Cândido: Foi sonegado, foi sonegado mesmo.

HS: Mas pelo fato da sua exclusão ou por um outro fato?

JC: Pelo fato de haver tomado a posição que tomara na revol-

ta, pelo ódio. Muitos oficiais da Marinha não conseguiram

comandar o Minas Geraes, e eu tive o sobejo poder de dominá-

lo, fazer o que ele jamais faria na baía do Rio de Janeiro.

(Revista de História da Biblioteca Nacional – 01/04/06.

Trecho de entrevista com João Cândido feita em 1968.

http://www.revistadehistoria.com.br/v2/home/?go=detalhe&id=962&pagina=4)

João Cândido com filhos e sua terceira esposa, Ana do Nascimento, em São João de Meriti, RJ.

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nal

Page 49: Almanaque Histórico

Projeto Memória48

ele. Porém, o ex-marujo saíra

de evidência e vivia na po-

breza e no ostracismo: as

décadas iam passando e a

constante perseguição de

oficiais da Marinha contra

quem escrevesse ou valori-

zasse o tema criou um véu de

silêncio em torno do persona-

gem. Mesmo que presentes na

memória coletiva de setores

da população, as lembranças

iam se diluindo. Salvo alguns

marinheiros, jornalistas, mili-

tantes políticos e amigos pes-

soais, poucas pessoas ainda

lembrariam de seus feitos,

praticamente desconhecidos

das novas gerações.

O adeus a velhos amigos

De seus companheiros de

revolta, que jamais o aban-

donaram, despediu-se em

1946, quando faleceu Fran-

cisco Dias Martins e, em

1954, de Marcelino Rodri-

gues, o das 250 chibatadas.

Em 1953, foi a hora de despe-

dir-se do encouraçado Minas

Gerais. João Cândido soube

pelos jornais que, depois de

43 anos e algumas reformas,

seria vendido como sucata,

já despojado de todos os

seus equipamentos.

Sobre o adeus, contou o

jornalista Aor Ribeiro: numa

João Belchior Marques Goulart,conhecido como Jango, nasceuem 1919 no Rio Grande do Sul, efoi o único presidente brasileiroa morrer no exílio, em 1976, noUruguai, impedido de retornar aoBrasil? Com a renúncia de JânioQuadros, Goulart, que era vice-presidente, assumiu o governoem 1961. Em janeiro de 1964,Jango assinou lei que limitava aremessa dos lucros das empre-sas estrangeiras para fora dopaís. Em 13 de março, participoude um comício que reuniu 200mil pessoas na Central do Brasil,em frente ao então ministério daGuerra, no Rio de Janeiro. Naocasião anunciou medidas parainiciar a reforma agrária, desa-gradando os grandes proprietá-rios de terras, além de anunciara estatização das refinarias depetróleo. Em 31 de março de 1964,por meio de um golpe de Estado,grupos civis e militares depuse-ram o governo eleito e assumi-ram o comando do país. A dita-dura civil militar durou de 1964 a1985: foi implantada a censuraaos meios de comunicação emuitos brasileiros resultaramcomo perseguidos, exilados, pre-sos e mortos. As eleições diretaspara presidente só foram resta-belecidas em 1989.

voce sabia que...ˆPor dentroda história

�O Almanhaque – O gaúcho

Aparício Torelly (1895–1871)

foi um dos mais famosos e

combativos humoristas do

Brasil no século XX. Publi-

cou em 1949 e 1955 o seu

Almanhaque (almanaque

da manha, sátira a essas

tradicionais publicações)

que se apresentava com o

patrocínio da Sociedade

Gráfica Ltda., cuja abrevia-

ção era SOGRA. O material

foi escrito, segundo o au-

tor, “sob a carinhosa e per-

manente vigilância das

exmas. autoridades fede-

rais e internacionais da or-

dem política e social”. Entre

seus “títulos” militares esta-

va o de Marechal, Almirante

e Brigadeiro do Ar-Condi-

cionado. O Barão de Itararé

(a batalha que não houve,

no Movimento de 1930)

definia a ditadura varguista

do Estado Novo como “o

estado a que chegamos”.

Page 50: Almanaque Histórico

49João Cândido – A Luta pelos Direitos Humanos

madrugada de março, sur-

preendeu João Cândido su-

bindo em um pequeno bar-

co, no cais do mercado e

rumando para o ancoradouro

onde estava parado o antigo

gigante. Beijou orgulhosa-

mente o casco enferrujado e

não conteve as lágrimas en-

quanto o acariciava.

sou por algumas mudanças.

O tema, abafado durante dé-

cadas, causava inquietação e

curiosidade – e o autor, Edmar

Morel, era jornalista conheci-

do, com o nome presente

desde a década anterior nos

principais meios de comuni-

cação. Daí que centenas de

notícias e críticas literárias

saíram em jornais e revistas

Homenagens em vida

Com a publicação do livro A

Revolta da Chibata, Editora

Irmãos Pongetti, em 1959, a

vida de João Cândido pas-

A luta pelos direitos de

cidadão acompanhou João

Cândido por toda a vida.

Certa vez comprou um

coco na quitanda e ao che-

gar em casa percebeu que

estava estragado. Voltou

para trocá-lo, o que foi re-

cusado pelo dono do esta-

belecimento. Inconforma-

do, avisou que ia à delega-

cia reclamar e dirigiu-se ao

ponto para pegar um ôni-

bus. Foi então atendido e

conseguiu trocar o artigo.

Naquela época, João Cân-

dido não podia contar com

o Código de Defesa do

Consumidor, aprovado em

1990. Atualmente, em to-

dos os estados existe o

Procon, órgão responsável

pela coordenação e execu-

ção da política de prote-

ção, amparo e defesa do

consumidor.

Retratos de uma vida

Edmar Morel e João Cândidoautografam A Revolta da Chibata paragráficos e trabalhadores queproduziram o livro

Primeira edição de A Revolta da Chibata

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Page 51: Almanaque Histórico

Projeto Memória50

de todo o país, colocando o

ex-marujo no foco das aten-

ções, algo que só havia ocor-

rido na época da rebelião,

quase meio século antes.

A segunda edição de A

Revolta da Chibata foi lança-

da em 1963, em pleno gover-

no João Goulart. Entre 1958 e

1964, o Brasil viveu clima de

liberdade democrática que

possibilitou a ampliação de

manifestações em vários se-

tores da sociedade. João

Cândido, que continuava a

vender peixes na praça XV,

recebera diversas vezes

Edmar Morel, prestara de-

poimentos e esclarecimen-

tos. Agora o Almirante Negro

considerava o livro como

“minha história” e literalmen-

te assinou embaixo, partici-

O ministério da Previdência Social lançou em abrilde 2008 a cartilha Idoso – Cidadão Brasileiro:

informações sobre serviços e direitos – Destinada aosaposentados com mais de 60 anos, apresenta os serviços

e políticas do governo voltados à terceira idade. Como JoãoCândido, (ainda que por razões diferentes) muitos brasileiros aindaenvelhecem sem direito à aposentadoria. E muitos trabalharam duro avida inteira. Entretanto, por atuarem por conta própria, ou não teremsido registrados pelos patrões, acabaram ficando excluídos. A situaçãocomeçou a mudar a partir da Constituição de 1988, quando todos, dacidade e do campo, acima de 65 anos e que não tinham nenhuma fontede aposentadoria, passaram a ter direito a receber mensalmente dogoverno federal um salário mínimo, por intermédio do Benefício dePrestação Continuada de Assistência Social (BPC). Para mais informa-ções sobre a Cartilha do Idoso e aposentadorias, o governo federal dis-ponibiliza o telefone 135 ou o site www.previdencia.gov.br.

A vida de hoje

Edmar Morel e João Cândido autografam a 2a edição de A Revolta da Chibata, no IV Festival do Escritor Brasileiro. Abaixo à esquerda, João Cândido, ao lado deseu filho Adalberto Nascimento Cândido (Candinho), faz sua única viagem aérea

para receber uma homenagem

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51João Cândido – A Luta pelos Direitos Humanos

pando de sessões de autó-

grafos junto com o autor. Na

noite de autógrafos dessa

edição, no IV Festival do Es-

critor Brasileiro, o velho ma-

rujo foi cumprimentado por

escritores como Jorge Ama-

do, Clarice Lispector, Vinicius

de Morais, Rubem Braga e

Manuel Bandeira.

Na mesma noite, quando

autografava livros, o líder da

Revolta da Chibata viu che-

gar um grupo barulhento e

empolgado de jovens mari-

nheiros fardados que, can-

tando o Cisne Branco, joga-

ram os gorros para o alto gri-

tando o seu nome.

Mesmo voltando a ser re-

conhecido por sua história,

João Cândido não estava

livre de sentir na pele o pre-

conceito. Como a noite de

autógrafos em 1963 foi até

tarde, o velho marujo resol-

onde foi recebido pelo prefei-

to, vereadores e autoridades

locais, o mesmo ocorrendo em

Cachoeira do Sul. A Assem-

bléia Legislativa gaúcha con-

cedeu-lhe pensão de um salá-

rio mínimo, com apoio do en-

tão governador Leonel Brizola

(PTB) que, entretanto, cance-

lou o encontro que teria com o

marujo, em virtude dos protes-

tos de oficiais da Marinha.

Logo a seguir, o governadorveu pernoitar perto dali, no

Centro da cidade: passou por

dez hotéis e em todos foi re-

cusado, sob pretexto de falta

de vaga. O impiedoso racis-

mo continuava presente na

sociedade brasileira. Depois

das tentativas, foi aceito no

pequeno Hotel Globo, na rua

Riachuelo.

Entre as homenagens que

recebeu, o marujo gaúcho foi

ao Rio Grande do Sul, em sua

única viagem aérea, para uma

sessão promovida pela Socie-

dade Floresta Aurora. Na oca-

sião, retornou a Rio Pardo

João Cândido passou os últimosanos de sua vida em sua casa, emSão João de Meriti

por dentro da história A censura prévia esteve imposta a todos os jornais, rádios, esta-

ções de tevê, bem como ao teatro, música e cinema, até 1977.

Deste ano até o fim da ditadura em 1985, ainda vigorou a perse-

guição (oficial ou oficiosa) às expressões culturais, cujos autores

ou produtores poderiam sofrer processo e prisão. Sem contar os

atentados à bomba praticados por grupos paramilitares contra

entidades políticas e culturais (como Associação Brasileira de

Imprensa –(ABI) e Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e con-

tra bancas de jornais entre fins dos anos 1970 e início dos 1980.

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Page 53: Almanaque Histórico

Projeto Memória52

O hábito de leitura

João Cândido, pobre, perse-

guido e filho de escravos nu-

ma sociedade desigual, sem-

pre demonstrou interesse pela

leitura. Era leitor ávido e aten-

to: sabia escrever, falava bem

espanhol e grego, além de ter

noções de inglês e francês. O

escritor João do Rio, depois

de entrevistá-lo, ficou bem

impressionado: “É um homem

imensamente inteligente, com

Quantos são os leitores no Brasil?

É comum a referência ao pouco hábito de leitura noBrasil. Existem dados diferentes sobre o assunto.

Para a Câmara Brasileira do Livro (CBL), cada brasileiro liaem média 1,8 livros por ano em 2007. Quantidade conside-

rada baixa para a média de outras localidades: cinco livros por habitan-te nos EUA e, de cinco a oito na Europa, variando em cada país. Dos189 milhões de brasileiros, 26 milhões (14%) são considerados leitoresativos (mais de três títulos por ano), sobrando, portanto, 163 milhões(86%) sem esse hábito.

Já a pesquisa Retratos da Leitura no Brasil – encomendada aoInstituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística (IBOPE) peloInstituto Pró-Livro do Ministério da Cultura (MINC) em 2008 – chegouà conclusão de que o brasileiro lê, em média, 4,7 livros por ano.Segundo esses dados, 55 % da população são leitores, enquanto 45 %foram classificados como não-leitores. Porém, ambas as pesquisasapontam que a leitura vem aumentando no Brasil, em comparação alevantamentos anteriores.

A vida de hoje

João Cândio lê à luz do lampião

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do estado do Rio de Janeiro,

Roberto Silveira (PTB), rece-

beu João Cândido e entregou-

lhe um auxílio financeiro para

que pudesse terminar a cons-

trução de sua nova casa, em

Coelho da Rocha, também em

São João de Meriti.

Em 1959, ao completar 79

anos de idade (dos quais 40

como pescador artesanal),

com os filhos criados, João

Cândido enfim parou de tra-

balhar e desejou passar os úl-

timos anos usufruindo de sua

modesta casa que ficara pron-

ta, ainda que no alto de um

barranco, sem calçamento e

luz elétrica. Foi procurado por

emissoras de televisão: conce-

deu entrevistas e compareceu

aos estúdios de gravação.

Page 54: Almanaque Histórico

53João Cândido – A Luta pelos Direitos Humanos

uma inteligência muito supe-

rior à de vários sujeitos que

passam por notabilidade”.

Surgiram referências ao

líder da Revolta da Chibata

como iletrado: sem instrução,

analfabeto, semi-analfabeto,

entre outros. Seja por seus

adversários, do ponto de vis-

ta conservador, para desqua-

lificá-lo, seja, ao contrário,

por seus admiradores para

valorizar a autenticidade de

sua condição popular.

As supostas provas de seu

analfabetismo são discutíveis.

O fato de ser negro no perío-

do Pós-Abolição não o colo-

ca automaticamente na con-

dição de analfabeto, o que

seria repetição de surrados

preconceitos. Sua dificuldade

na escrita se explica pela

amputação da falangeta de

seu dedo indicador direito,

durante o serviço na Marinha.

O jornalista Edmar Morel tes-

temunhou que a caligrafia do

marujo era ruim e que o trau-

ma no dedo o atrapalhava.

Mas ainda assim, João Cân-

dido participou ao lado do

escritor de várias noites de

lançamento e um de seus au-

tógrafos está guardado na

Fundação Biblioteca Nacio-

nal (RJ). Há muitos registros

de que João Cândido escre-

cionando-se a respeito. Esteve

na redação da Gazeta de

Notícias, em 1913, para fazer

uma correção na publicação

de suas memórias, do mesmo

modo que em entrevista ao

jornal O Dia, em 1959, criticaria

com clareza autores como

Vivaldo Coaracy e o almirante

Luis Autran de Alencastro

Graça que investiam contra

ele. Anote-se, ainda, que ne-

nhum de seus filhos ficou sem

alfabetização, como assinalou

a filha Zeelândia.

veu bilhetes e cartas e não

consta que tenha pedido

ajuda para tal.

Quanto à leitura, as referên-

cias são numerosas: desde a

foto em que aparece lendo o

decreto de anistia no Diário

Oficial, durante a revolta, às

anotações de sua ficha no

Hospital dos Alienados sobre a

leitura diária de três jornais,

hábito, aliás, que manteria nos

últimos anos de vida, quando

lia diariamente, na Baixada

Fluminense, o Correio da

Manhã. Em sua mesa de cabe-

ceira sempre havia livros, em

geral emprestados por ami-

gos: romances policiais, a

Bíblia e obras do nacionalismo.

João Cândido sabia de tudo

que se escrevia sobre ele, posi-

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Até o fim de sua vida,João Cândidodedicou-se à leitura.Na imagem, detalheda cômoda em seuquarto, com livros ejornais

Page 55: Almanaque Histórico

Projeto Memória54

Ditadura rima com

censura

Com a ditadura civil-militar

implantada a partir de 1964, o

nome de João Cândido não fi-

cou mais em evidência, ao

contrário, era perigoso men-

cioná-lo. Tanto que ele conce-

deria de forma clandestina o

depoimento ao Museu da

Imagem e do Som, em

1968. Edmar Morel

teve seus direitos

políticos cassados e

não pode mais so-

breviver da profissão

de jornalista devido,

sobretudo, à perse-

guição de oficiais da

Marinha.

Últimos momentos

Sempre morando na casa

nova (arejada, limpa, orde-

nada e com uma varanda

onde gostava de ficar), em

rua de terra batida, cercado

de filhos e netos, o líder da

Revolta da Chibata tornou-se

evangélico e freqüentava re-

gularmente os cultos na Igreja

Metodista do Brasil, em São

João de Meriti. Em sua mesa

de cabeceira acumulavam-se

livros, papéis, recortes de jor-

nais e outros materiais que ele

constantemente lia.

Os pulmões, enfraquecidos

pela antiga tuberculose e pelo

hábito de fumar, levaram o ex-

marujo a ser internado às pres-

sas num precário hospital pú-

blico. Diagnosticaram câncer

em estado avançado e, nesta

mesma noite, 6 de dezembro

de 1969, falecia o líder da Re-

volta da Chibata, aos 89 anos.

Ainda assim, não deixaram seu

corpo em paz. Apesar de ser

uma típica “morte de causa

natural”, enviaram-no para

autópsia. A morte foi noticiada

nos principais jornais, mas ao

enterro compareceram poucas

pessoas. Vivia-se um dos pe-

Estou no fim da vida. Pobre e doente. Masrepetiria tudo que fiz, se a Marinha, mais umavez, precisasse de mim.

João Cândido em entrevista ao jornal O Dia, 21/12/1958

““

João Cândido em suacasa, em São João deMeriti.

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Page 56: Almanaque Histórico

55João Cândido – A Luta pelos Direitos Humanos

ríodos mais violentos da dita-

dura, com perseguições, pri-

sões e assassinatos.

O medo pairava no ar. No

sepultamento estavam apenas

familiares, o pastor Lucas

Manzon da Igreja Metodista e

um pequeno grupo de jornalis-

tas dirigentes da ABI. Chovia

Almirante Negro, por Aurora,

esposa de Edmar Morel, foram

carregadas pelo temporal. Um

grupo de policiais à paisana

vigiava o local e fotografava

ostensivamente os presentes.

O autor do livro A Revolta da

Chibata pronunciou apenas

uma frase à beira do túmulo:

“Adeus, João Cândido, você

dignificou a espécie humana”.

torrencialmente; no céu, espo-

cavam relâmpagos, a lama do

cemitério grudava nos sapa-

tos, as águas encharcavam a

todos. As chuvas do verão ca-

rioca, que ainda hoje paralisam

a cidade, acentuavam a deso-

lação do momento. As únicas

flores levadas no enterro do

À frente, segurando o caixão, o filhocaçula Adalberto Cândido e ojornalista Gumercindo Cabral (depaletó) e, atrás deste, parcialmenteencoberto, Edmar Morel

Em meio de todas as tristezas de sua vida humilde e traba-lhosa, das perseguições e dos tormentos que passou, teve JoãoCândido pelo menos o consolo de uma longa vida, que lhe per-mitiu, já octogenário, ver que há no Brasil de hoje quem o vejacom outros olhos, com alguma simpatia e compreensão.

Historiador, jornalista e teatrólogo Raimundo Magalhães Jr., em artigo no Diário Carioca, 13/9/1963

Edmar Morel, biógrafo de JoãoCândidoA

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Projeto Memória56

Os compositores João Bosco e Aldir Blanc transfor-

maram em música, em 1975, a saga de João Cândi-

do e companheiros da Revolta da Chibata. Cantada

por Elis Regina, a letra sofreu várias modificações

impostas pela censura, o que não impediu que a

canção fizesse grande sucesso, até hoje. Comparan-

do as duas letras, percebemos as mudanças sofridas:

O Almirante Negro

(Letra original antes da censura)

João Bosco e Aldir Blanc

Há muito tempo nas águas da Guanabara

O dragão do mar reapareceu

Na figura de um bravo marinheiro

A quem a história não esqueceu

Conhecido como almirante negro

Tinha a dignidade de um mestre-sala

E ao acenar pelo mar, na alegria das regatas

Foi saudado no porto

Pelas mocinhas francesas

Jovens polacas e por batalhões de mulatas

Rubras cascatas

Jorravam das costas dos nneeggrrooss

Entre cantos e chibatas

Inundando o coração

De toda tripulação

Que a exemplo do mmaarriinnhheeiirroo gritava: não!

Glória aos piratas, às mulatas, às sereias!

Glória à farofa, à cachaça, às baleias!

Glória a todas as lutas inglórias

Que através da nossa História

.........................................Não esquecemos jamais...

Salve oo aallmmiirraannttee negro

Que tem por monumento

As pedras pisadas do cais

(Mas, salve ...)

Salve o aallmmiirraannttee nneeggrroo

Que tem por monumento

As pedras pisadas do cais!

O Mestre-Sala dos Mares

(letra censurada e divulgada)

João Bosco e Aldir Blanc

Há muito tempo nas águas da Guanabara

O dragão do mar reapareceu

Na figura de um bravo ffeeiittiicceeiirroo

A quem a história não esqueceu

Conhecido como navegante negro

Tinha a dignidade de um mestre-sala

E ao acenar pelo mar, na alegria das regatas Foi sau-

dado no porto

Pelas mocinhas francesas

Jovens polacas e por batalhões de mulatas

Rubras cascatas

Jorravam das costas dos ssaannttooss

Entre cantos e chibatas

Inundando o coração

Do pessoal do porão

Que a exemplo do ffeeiittiicceeiirroo gritava, então:

Glória aos piratas, às mulatas, às sereias!

Glória à farofa, à cachaça, às baleias!

Glória a todas as lutas inglórias

Que através da nossa História

.........................................Não esquecemos jamais...

Salve o nnaavveeggaannttee negro

Que tem por monumento

As pedras pisadas do cais

(Mas, salve ...)

Salve o navegante negro

Que tem por monumento

As pedras pisadas do cais

O que canta a história

Page 58: Almanaque Histórico

57João Cândido – A Luta pelos Direitos Humanos

A memória de João Cân-

dido se mantém viva e

palpitante. Aproximando-se o

centenário da Revolta da

Chibata (2010), ampliam-se o

interesse e as manifestações

de pessoas e grupos que

reconhecem, na figura dele, a

imagem de suas próprias lu-

tas e esperanças. Ele tornou-

se um típico herói da plebe,

esquecido, atacado ou ques-

tionado por grupos mais con-

servadores e admirado pelos

movimentos sociais e outros

setores da sociedade que

buscam um país mais justo.

Relembrar João Cândido

hoje significa compreender

que seus gestos trazem à

tona problemas ainda inquie-

tantes para a sociedade bra-

sileira, como o racismo, a

desigualdade social, a violên-

cia cotidiana do Estado sobre

as camadas pobres da popu-

lação e a democratização das

Forças Armadas – sem es-

quecer o mito de que existe

uma tradição ordeira e pacífi-

ca na história do Brasil.

Movimentos contra a desi-

gualdade racial e em defesa

da consciência negra fazem

constantes referências ao lí-

6. JOÃO CÂNDIDO VIVE NAS MEMÓRIAS

C erca de mil marinheiros expulsos da corporação,presos ou perseguidos durante a ditadura civil-

militar (1964–1985), organizados em duas entidades,consideram João Cândido como Patrono dos Marinheiros

do Brasil. A Unidade de Mobilização Nacional pela Anistia(UMNA, criada em 1983) e o Movimento Democrático pela Anistia eCidadania (MODAC, criado em 2002 por ex-integrantes da UMNA), aomesmo tempo em que lutam para conseguir os direitos de seus asso-ciados a uma reparação justa pelas arbitrariedades que sofreram,fazem o mesmo em relação a João Cândido e sua memória. Promovemdiversos atos nesse sentido, sendo os principais responsáveis pelainauguração da estátua do marujo nos jardins do Palácio do Catete.Alguns integrantes dessas associações conheceram pessoalmente JoãoCândido e o homenagearam em vida.

A vida de hoje

João Cândido recebe título postmortem de cidadão honorário

de São João de Meriti

der da Revolta da Chibata.

Seu rosto aparece reproduzi-

do em faixas, camisetas, li-

vros, agendas e pôsteres.

Uma exposição de fotos so-

bre a Revolta da Chibata foi

organizada por integrantes

desses movimentos e da Se-

cretaria Municipal de Cultura

do Rio de Janeiro, no saguão

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Projeto Memória58

da Central do Brasil, em 1989.

Atualmente existe o movi-

mento Conexão Zumbi –

João Cândido. Em 20 de no-

vembro de 2005 ocorreu

uma marcha com 10 mil parti-

cipantes em Brasília, ocasião

em que Zeelândia Cândido,

filha do marujo, foi recebida

pelo Presidente da República,

Luiz Inácio Lula da Silva.

Ainda criança, ao sair do

meio rural em busca de me-

lhores condições de vida após

a Abolição, seguindo os pais

libertos, João Cândido faria

um movimento de migração

ainda hoje repetido por milha-

res de famílias pobres. A

questão agrária está nas ori-

gens de vários desafios da

sociedade brasileira atual, que

dizem respeito não só ao

campo, mas às cidades.

Uma estátua-monumento

de João Cândido, com três

metros de altura, foi inaugu-

Apesar de superado o sistema escravista, existempermanências de longa duração. Uma delas é o

chamado trabalho escravo, que ainda aprisiona milha-res de brasileiros em condições desumanas, sem liberda-

de de locomoção, sem direitos trabalhistas e remuneração.O Plano Nacional Para Erradicação do Trabalho Escravo, coordenadopela Secretaria Nacional de Direitos Humanos, em ação conjunta comoutros órgãos (Polícia Federal, ministérios da Saúde e do Meio Ambien-te, autoridades estaduais e entidades da sociedade civil, como aComissão Pastoral da Terra), tem resultado em medidas nesse sentido,como a elaboração de um Cadastro de Proprietários (“lista suja”) e aproibição de crédito oficial para os condenados por tal crime.

A vida de hoje

João Cândido existiu e seu nome jamais sairáda história do Brasil.

Crônica de Rubem Braga, Diário de Notícias, 23/12/1958

““

Uma estátua de três metros de alturahomenageia o Almirante Negro, noMuseu da República (Rio de Janeiro)A

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Page 60: Almanaque Histórico

59João Cândido – A Luta pelos Direitos Humanos

rada nos jardins do Museu da

República (Palácio do Catete,

Rio de Janeiro) em 22 de

novembro de 2007. De costas

para o palácio que abrigava a

sede do poder central, a está-

tua de João Cândido está

voltada para o mar. Ele agora

ocupa lugar destacado no es-

paço onde o marechal Her-

mes da Fonseca e outras au-

Entre as homenagens pós-

tumas, João Cândido mere-

ceu o título de Cidadão Ca-

rioca em 1984. Confirmava-se

o tributo daquela que ele

considerava sua “cidade má-

tria” e na qual viveu e freqüen-

tou durante 74 anos. Já não

era mais a capital federal dos

palacetes e cortiços que ele

poupou do bombardeio em

toridades tramaram a san-

grenta repressão ao movi-

mento. O líder da Revolta da

Chibata não tem mais por

monumento apenas “as pe-

dras pisadas do cais”, como

na música O Mestre-Sala dos

Mares. Um busto de marujo

também foi erguido em Porto

Alegre, no ano de 2001, no

Parque da Marinha.

Busto de João Cândido inauguradoem Porto Alegre

Ninguém mais do que esse lutador negro mos-trou aos brasileiros que todos os sacrifícios se jus-tificam no combate pela dignidade básica dohomem: o direito inalienável de ser respeitado.

Escritor e crítico literário Antonio Candido, no prefácio do livro João Cândido do Brasil –

A Revolta da Chibata, Teatro Popular União e Olho Vivo

Posse da terra. A concentração da propriedade fun-diária, herdada dos tempos coloniais e com perfil

modificado em diversas conjunturas, permanece emdoses altas: 1,6% dos proprietários controlam 47% das

terras do país, segundo dados do Instituto Nacional de Co-lonização e Reforma Agrária (INCRA). As grandes propriedades (áreasuperior a 2 mil hectares) são responsáveis por apenas 2,5% dosempregos gerados no campo. Daí resultam em torno de 4 milhões defamílias de trabalhadores sem-terra no Brasil, de acordo com dados ofi-ciais do 2º Plano Nacional de Reforma Agrária (2003). Até início de2008, o governo federal informou que existiam 824.483 famíliasassentadas. Portanto, mais de 3 milhões de famílias pobres rurais aindaaguardam pela terra prometida. Pelos dados do Instituto Brasileiro deGeografia e Estatística (IBGE), existem 120 milhões de hectares de ter-ras improdutivas e mais 130 milhões de hectares de terras devolutas.Diante desse quadro, surgem iniciativas como os movimentos de tra-balhadores sem-terra, que buscam soluções para o problema.

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Projeto Memória60

1910, mas ainda guardava

lembranças e traços da pre-

sença do gaúcho que chega-

ra aos 14 anos, sozinho, para

ser grumete. Também São

João de Meriti, onde o maru-

jo morou por quatro décadas,

concedeu-lhe o mesmo título.

Nas telas e palcos

Ainda não existe um filme de

longa-metragem sobre a

Revolta da Chibata, mas três

curtas já circularam em salas

de exibições: o documentá-

rio/ficção João Cândido, um

Almirante Negro, 1987; João

Cândido e a Revolta das Chi-

batas, 2004, documentário;

Memórias da Chibata, de

2005, ficção.

No teatro, o Grupo Mam-

bembe, de Minas Gerais, en-

cenou em vários estados, du-

rante a ditadura (em 1983), a

peça musical A Revolta da

Chibata. E, desde 2001, o gru-

po Teatro União e Olho Vivo

(TUOV), de São Paulo, já fez

mais de mil apresentações de

João Cândido do Brasil – a

Revolta da Chibata em mui-

tas partes do país. O União e

Olho Vivo tem quatro déca-

das de experiência em apre-

sentar teatro para popula-

ções que não estão acostu-

madas a freqüentá-lo, fazen-

do exibições nas ruas, praças,

periferias e, também, em sin-

dicatos, associações de mo-

radores e movimentos so-

ciais, além dos teatros con-

vencionais. Os integrantes

João Cândido e a Revolta da Chibataforam tema de inúmeras publicações.

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61João Cândido – A Luta pelos Direitos Humanos

desse grupo cênico verificam

que muitas das pessoas que

assistem à peça nunca ti-

nham visto uma apresenta-

ção teatral antes.

O líder da Revolta da Chi-

bata mereceu, em 2006, ou-

tra homenagem póstuma: a

Medalha Chico Mendes de

Resistência, do Grupo Tortu-

ra Nunca Mais, entidade

criada para garantir os di-

Camisa Verde e Branco (SP),

no Carnaval de 2003, desfilou

com enredo mais claro: A re-

volta da chibata. Sonho, co-

ragem e bravura. Minha His-

tória: João Cândido, um so-

nho de liberdade. Em ambos

os casos, milhões de brasilei-

ros puderam assistir, ao vivo

ou pela televisão, a saga dos

marujos de 1910.

reitos dos cidadãos tortura-

dos durante a ditadura civil-

militar de 1964 e para de-

nunciar e investigar os cri-

mes praticados no período

pelas forças repressivas, co-

mo os “desaparecidos” po-

líticos e, ainda, para lutar

pela defesa dos Direitos Hu-

manos na atualidade.

Duas escolas de samba já

desfilaram na avenida usando

a Revolta da Chibata e João

Cândido como temas: a Uni-

ão da Ilha (RJ), em 1985, com

o enredo descaracterizado

por pressão de oficiais da

Marinha, embora exibisse um

carro alegórico com enorme

busto de João Cândido, não

citava seu nome nem uma

vez no samba; já a escola

Nome de escolas

E m São João de Meriti, onde o líder da rebelião de1910 morou durante 39 anos, foi inaugurada uma

escola CIEP (Centro Integrado de Educação) com o nome deMarinheiro João Cândido. Há também a Escola Marinheiro JoãoCândido, no bairro de Santa Cruz, município do Rio de Janeiro.

A vida de hoje

Grupo Teatro Olho Vivo: mais de milapresentações sobre João Cândido e aRevolt a da Chibata.

Chico Mendes, por sua atuação ao lado de outrosseringueiros e, também, com os índios, tornou-

se um símbolo mundial na mobilização em favor dajustiça social, preservação do meio ambiente e defe-

sa da Amazônia? O conflito entre as propostas e lutasde Chico Mendes e os interesses dos que defendem a devastaçãodas florestas (e expulsão de povos que nela habitam) causou seuassassinado no Acre em 1988.

A vida de hoje

O Grupo tortura Nunca Mais fezhomenagem post mortem ao líder daRevolta da Chibata, por meio daMedalha Chico Mendes de Resistência

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Page 63: Almanaque Histórico

Também nas vozes da po-

esia de cordel a vida e o no-

me de João Cândido se per-

petuam.

No Brasil de antigamente

Vivia-se a lei do cão

O negro pobre não tinha

Direitos de cidadão

Privilégios não teria

Conceito ou cidadania

Liberdade ou posição...

E hoje só recordação

Deste herói negro ficou

Que a lei seca da chibata

Junto à marinha acabou

Os seus feitos e sua história

Todos guardamos em memória

A tua fibra e valor

(Trecho do cordel A Revolta

da Chibata, de Jota Rodrigues)

Alunos que não sabem ler

OBrasil ainda tem 2,4 milhões de analfabetos comidade entre 14 e 17 anos em 2008, dos quais 2,1

milhões (87%) freqüentavam a escola no ano anterior. Ouseja, estudantes que não sabem ler e escrever. Os dados são do IBGE(Síntese de Indicadores Sociais). Constata-se também que entre osjovens de 21 anos, 8% dos negros estão nas universidades, cifra quecorresponde a 24% entre os brancos da mesma idade.

A vida de hoje

Anistia. Os marujos lutaram pela justiça

Aanistia póstuma a João Cândido e aos demais mari-nheiros da Revolta da Chibata foi sancionada (Lei

11.756) pelo Presidente da República, Luiz Inácio Lula daSilva, em 23 de julho de 2008, no Palácio do Planalto. Em nota oficial,a presidência da República afirmou “reconhecer os valores de justiça eigualdade pelos quais lutaram os revoltosos”. O projeto, de autoria dasenadora Marina Silva (PT/AC) e do ex-deputado Marcos Afonso(PT/AC), fora aprovado no Senado por unanimidade e, também damesma forma, na Câmara dos Deputados, em 13 de maio de 2008,data dos 120 anos da Abolição da escravatura. Não houve qualquer crí-tica ou restrição da parte de representantes de todos os partidos.Aprovado pelo Senado também de modo unânime, ainda tramita naCâmara projeto do senador Paulo Paim (PT/RS) que inscreve o nome deJoão Cândido no Livro dos Heróis da Pátria.

A vida de hoje

De lá para cá muito cresceu a consciência dos direitos hu-manos, fazendo com que um homem não possa prevalecer-se de sua posição superior para se tornar senhor e amo deseu subordinado. Afinal, já escreveu Nietzsche que a revol-ta é a nobreza do escravo, por isso mesmo, sendo legítimae justa a repulsa contra a tirania e os abusos do poder.

Jurista e sociólogo Evaristo de Moraes Filho, da Academia Brasileira de Letras, no prefácio ao

livro de Edmar Morel, A Revolta da Chibata

“62 Projeto Memória

Page 64: Almanaque Histórico

63João Cândido – A Luta pelos Direitos Humanos

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Bibliografia básica

Fu

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liote

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acio

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Page 65: Almanaque Histórico

Projeto Memória64

1880 – Nasce na fazenda Coxilha

Bonita, em Encruzilhada do Sul,

atualmente município de Dom

Feliciano, RS.

1895 – Aos 14 anos, entra para a

Escola de Aprendizes de Mari-

nheiros do Rio Grande do Sul.

1904 – Interna-se no Hospital da

Marinha para tratamento de

tuberculose.

1910 – É enviado à Inglaterra

para conduzir o encouraçado

Minas Gerais ao Brasil. Lidera a

Revolta da Chibata, contra as

punições corporais na Marinha

de Guerra. É preso e sobrevive a

tentativa de assassinato na Ilha

das Cobras.

1911 – É internado no Hospital

Nacional de Alienados, na praia

Vermelha, no Rio de Janeiro (RJ).

1912 – Volta à prisão e é absol-

vido em seu julgamento, em 29

de novembro.

1913 – Emprega-se no veleiro

Antonico. Conduz a embarcação

dos portos do Sul do país ao Rio

de Janeiro como comandante.

No mesmo ano, casa-se pela pri-

meira vez na Igreja Nossa Se-

nhora da Glória, em Laranjeiras,

no Rio de Janeiro, RJ.

1930 – Muda-se com a família

definitivamente do Rio de Ja-

neiro para São João de Meriti, na

Baixada Fluminense.

1946 – Morre seu companheiro

de Revolta, Francisco Dias Mar-

tins, o Mão Negra.

1953 – Despede-se do navio

Minas Gerais, vendido como

sucata à Itália.

1961 – Volta à terra natal para

receber homenagem, cancelada

por ordem da Marinha.

1969 – Morre em 8 de dezembro,

no Hospital Getulio Vargas. É

sepultado no Cemitério do Caju,

no Rio de Janeiro. Deixa uma

herança de coragem e dignidade,

além de esposa e filhos.

2002 – A Senadora Marina Silva

e o ex-deputado Marcos Afonso

apresentam um projeto de anis-

tia post mortem a João Cândido

e seus companheiros da Revolta

da Chibata.

2005 – Acontece a “Marcha dos

10 Mil”, em que líderes e integran-

tes de movimentos pelos direitos

humanos e pela inclusão racial

rumam a Brasília reforçando o

pedido de anistia.

2008 – Em 23 de julho de 2008,

o Presidente Luiz Inácio Lula da

Silva sancionou a Lei 11.756, que

concede anistia post mortem a

João Cândido e outros marujos

participantes da revolta.

Cronologia

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