ALTER EGO

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ALTER EGO Luiz Alberto Machado Abri a porta e o céu estava cinzento E na penumbra da sala O meu coração está feliz com os acordes do Koln Concert de Keith Jarret A minha pena ainda transcreve imagens da cabeça: um asno na lira e seus fragmentos múltiplos desentoados De pedaços outros Deus me abençoe Deus me proteja nessa desolação Uma ausência que atormenta Joguei meu último poema no riacho E outros tantos no interior das garrafas para jogá-los ao mar Quem sabe alguém desavisado Não se importune ao ler meus versos A solidão me silenciou Estou esvaziado Logo eu que vim curumba da terra batida do Una Nascido em sessenta com Brasília e o videoteipe Expondo agora sintaxes exclusivas do coração Inauguro a minha agonia Eu que morri tantas vezes sem chegar ao desespero Que vim de longe, de um mundo pequeno Onde hoje a vida é quase reduzida a uma condição inóspita Eu que ergui a minha própria casa O meu contíguo pardieiro E fiquei entregue ao meu abandono

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Poema de Luiz Alberto Machado incluído no livro O trâmite da Solidão. www.luizalbertomachado.com.br

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  • ALTER EGO

    Luiz Alberto Machado

    Abri a porta e o cu estava cinzento

    E na penumbra da sala

    O meu corao est feliz com os acordes do Koln Concert de Keith Jarret

    A minha pena ainda transcreve imagens da cabea:

    um asno na lira e seus fragmentos mltiplos desentoados

    De pedaos outros

    Deus me abenoe

    Deus me proteja nessa desolao

    Uma ausncia que atormenta

    Joguei meu ltimo poema no riacho

    E outros tantos no interior das garrafas para jog-los ao mar

    Quem sabe algum desavisado

    No se importune ao ler meus versos

    A solido me silenciou

    Estou esvaziado

    Logo eu que vim curumba da terra batida do Una

    Nascido em sessenta com Braslia e o videoteipe

    Expondo agora sintaxes exclusivas do corao

    Inauguro a minha agonia

    Eu que morri tantas vezes sem chegar ao desespero

    Que vim de longe, de um mundo pequeno

    Onde hoje a vida quase reduzida a uma condio inspita

    Eu que ergui a minha prpria casa

    O meu contguo pardieiro

    E fiquei entregue ao meu abandono

    http://www.luizalbertomachado.com.br/

  • Sem nunca haver ambicionado grandes palcios

    Ou usado um cajado para imprimir a ordem

    Eu que sou o mar que beija a terra

    Na pose mais ntima de se amar

    Sou eu que valho o que medra nada

    Um astronauta intrpido no mundo da lua

    Um zagueiro insone das coisas da minha gente

    Um lavrador dos dias que venham depois

    E quando beijo eu sou de mim o que para todos

    E quando abrao eu sou de graa o que de mim

    E quando sorrio eu sou de paz pr no ser guerra

    E quando eu choro eu sou em flor mais que a ternura

    Sou eu calor a quarenta e tantos graus

    Eu sou o tom de si, de mim, Jobim

    O tom que salte, deite, Waits

    O que faz, que foi, que , Tom Z

    O tom depois, de antes, Tom Cavalcanti

    Sou eu que gosta de cheirar xibiu de moa donzela

    Sou a que j no carit reza todas as noites por Santo Antnio casamenteiro ajeitar um

    prncipe encantado para esquentar os ps nas noites de frio

    Sou meu corao Caravaggio pintando o sete e santos

    E sempre atrado pela promiscuidade e rebeldia

    Meu corao de frases obscenas na calada da noite

    Na luta para no ser devorado na competio natural da vida

    Meu corao pavo a legislar em causa prpria

    Sempre a me desvencilhar da espada de Dmocles sobre a cabea

  • Sou eu que tenho a fora do brao Anteu sem poder largar o cho do meu pas

    Eu, depositrio de tudo, sempre paguei o pato

    Azougado como qu, completo de emoo

    E sob o efeito do lcool, hum! um timoneiro na proteo de mercrio seduzido pelo

    inslito j que nada me estranho

    As minhas batalhas algumas ganhei, muitas perdi

    Nunca gostei de jogo, claro, um mau jogador

    Coisas que vi que fiquei passado

    Nomes que no sei dizer

    Ainda perdi o que de melhor me restava

    E tive de ser So Jernimo depondo caveira

    Aguando os meus cem olhos de Argus

    Apenas sabendo o que bom ou mal por ser desobediente

    Plagiando Shulock

    Us de Peter Gabriel

    e o meu trono absoluto no banheiro

    reunindo os meus pecados

    Youre the top de Cole Porter

    A fascinao pelo proibido

    Os meus gritos at me assustam

    E alguns at me extasiam

    Eu divido a minha mesa

    Partilho a minha alegria

    Meu ancestral fencio

    Minha herana viking

    Devo estar me masturbando:

    Minha solido

  • Meu claustro

    Duvido que eu tenha sanidade mental

    Os demnios esto soltos

    Quem sabe e por alguma forma possam me perdoar

    Eu sei dos meus fracassos no meio dos sonhos de Kurosawa

    Bastar-me-ei a mim mesmo se de mim

    Sobrar alguma coisa

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