Alvaro Cunhal

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biografia, política

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Page 1: Alvaro Cunhal

ÁLVARO CUNHALÁLVARO CUNHAL1913-2005

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Sexta > 8 de Abril de 2005OINDEPENDENTEJOÃO PAULO II Sexta > 17 de Junho de 2005OINDEPENDENTE 2ÁLVARO CUNHAL

Esteve presa duas vezes. A primeira foi em1958.A PIDE não lhe perdoou o apoio à can-didatura de Humberto Delgado. A segundaem 1965. Ficou oito dias e sete noites semdormir. “Deram-me uma tareia que fiqueipara sempre agarrada a duas muletas.Tenhoo osso do cóccix partido e continuo à espe-ra de ser operada. Quatro bandidos da PIDEbateram-me durante uma semana. Fiqueicom a pele em carne viva, desde a cintura atéà curva das pernas”, relembra Maria Silva,militante comunista de 60 anos.

As palavras saem-lhe empurradas pelossoluços e molhadas pelas lágrimas. Está de pé,apoiada nas canadianas, num dos passeios daRua Morais Soares. Espera a passagem docarro que transporta o corpo de Álvaro Cu-nhal até ao Cemitério do Alto de São João.Quer prestar-lhe uma última homenagem. Émais uma entre muitos milhares.

Maria Silva é uma mulher gorda, de umredondo matriarcal, de mãos e pernas incha-das, de cabelo curto e branco. De olhos azuisque choram convulsivamente. É-lhe difícilfalar. Mas faz questão de mostrar algumasfotografias onde aparece ao lado do camara-da de coração.Todas tiradas no mesmo jantarao ar livre, já depois de 1974. “Olhe eu aquie ele aqui”, diz, enquanto os dedos grossosvão passando, uma a uma, quatro polaróidesjá quase sem cor. Cunhal está sentado à mesa.Maria Silva, com um sorriso feliz, surge de pé,ladeada por outras mulheres. “Olhe eu aquia fingir que lhe apertava o pescoço”, diz, epassa mais outra fotografia.

“Pai, descansa em paz”. As bandeiras e oscravos agitam-se no ar, ritmados pelos cânti-cos revolucionários evocativos de Abril e da

memória do histórico dirigente do PartidoComunista Português. De punho direito cerra-do e bem levantado acima da cabeça, vai-segritando “a luta continua!” enquanto o cor-tejo fúnebre se aproxima lentamente da PraçaPaiva Couceiro. Bate-se palmas e as varandasenchem-se de gente.

Um pouco mais abaixo, mais próximo daPraça do Chile, outra militante chora a mor-te do homem a quem chama pai.Alice Barbosatem 59 anos e é funcionária da Câmara Muni-cipal do Porto. O marido já morreu. O negroque veste da cabeça aos pés é apenas quebra-do pelo verde dos olhos e pelo vermelho docravo que traz espetado no peito. Tinha oitoanos em 1954, quando o pai verdadeiro foipreso por divulgar propaganda anti-regime.Nunca mais o viu, nem sabe onde está sepul-tado. Nem sequer a notícia da morte recebeu.Só no 25 de Abril, quando foram libertados ospresos e ele não apareceu, é que tomou cons-ciência da realidade. “Morreu na PIDE”, con-ta, sem ter dúvidas de que terá sucumbido àfome e aos maus-tratos. Passou a ver Cunhalcomo uma referência. Como o pai que tinhaperdido. E não se esquece do dia em que elelhe matou a fome. A si e aos filhos. Foi em1988, no congresso no Palácio de Cristal,quando o secretário-geral dos comunistaspediu que lhe servissem um prato de comi-da. “Pai, descansa em paz.A tua camarada Ali-ce Barbosa tem-te no coração. O povo está aquiao teu lado”, soluça.

Morangos com açúcar. Milhares de vozesem uníssono cantam o “Avante, Camarada”.Os corpos, sem espaço para respirar, vão-seensopando de sol. E os carros esforçam-sepor vencer a subida, metro a metro. Cheira a

O derradeiro exílioMuitos milhares saíram à rua, na quarta-feira, para dizer o último adeus a Álvaro Cunhal. Bandeiras, cravos, punhos cerrados,cânticos, palavras de ordem, palmas e lágrimas acompanharam o corpo até ao cemitério Reportagem José Eduardo Fialho Gouveia

discursos. Será assim respeitada a última von-tade do eterno líder. Duas músicas ocupam olugar das palavras. “A Internacional” primei-ro e o Hino Nacional depois. Carlos Carvalhas,sucessor de Cunhal à frente do partido, e oactual dirigente máximo dos comunistasficam de pé frente ao caixão. Do seu ladoesquerdo, a família.A irmã, a mulher, a filhae a sobrinha-neta abraçam-se, visivelmenteconsternadas. Findos os últimos acordes de “APortuguesa”, os militantes despedem-se pelaúltima vez de Cunhal. Um longo aplausovarre o cemitério.

Um rapaz e uma rapariga, na casa dos 20anos, choram copiosamente. Têm o rostoalterado pela dor e os olhos rubros. Outramulher encosta um lenço aos lábios e fechacom força o olhar. As mãos tremem-lhe. Nacara nota-se o percurso das lágrimas que des-cem até morrer nos lábios.

Desdentado e manco, um homem traz aopescoço uma fotocópia de uma imagem deCunhal ainda jovem.Adelino Morais tem 55anos e está reformado.A fotografia original foioferecida ao pai, há 25 anos, pelo própriosecretário-geral. Orgulhoso, faz questão de amostrar.

“Falei com ele várias vezes.Abracei-o, dei--lhe beijinhos”, conta, emocionado.Adelinonão tem mobilidade na perna direita, foi víti-ma de paralisia infantil. Mas fez questão depercorrer todo o trajecto da Praça do Chile atéali. “Nem que viesse de rastos, tinha de vir.Agora que ele morreu tenho andado todo‘embaralhado’. Preferia que tivesse sido umfamiliar próximo.” E despede-se. Avança, acoxear, por entre a multidão, que começa adispersar. Lá dentro o fogo transporta ÁlvaroCunhal para o derradeiro exílio.

suor e a embraiagem queimada. E há pal-mas. Muitas palmas.

Dois miúdos avançam em sentido contrá-rio à multidão. Caminham tranquilamente, detronco nu, com a “t-shirt” enrolada no pes-coço, como nada fosse. Carlos, o mais velho,não sabe quem foi Álvaro Cunhal. Tem 12anos, nasceu em Angola e veio para Portugalaos oito. O 25 de Abril também nada lhe diz.Frederico, um ano mais novo, ainda arrisca:“Foi um senhor que apareceu na televisão.Fazia a telenovela dos ‘Morangos com Açú-car’.” Do 25 de Abril já ouviu falar, mas não selembra. E seguem o seu caminho sem se inter-rogar sobre o porquê de ali estar tanta gente.

Outro rapaz, com dez anos, vestido devermelho da cabeça aos pés, também nãotem ideia de quem foi o líder comunista.Uma mulher, talvez a mãe, diz-lhe que res-ponda que foi um grande homem. Ele obe-dece, indiferente.

Último adeus. Já para lá da entrada docemitério, aguarda-se a chegada do caixão.Aleve brisa que sopra é suficiente para abanaros ramos dos jacarandás ao longo do caminhoe fazer com que caiam as flores, salpicando detons violeta o negro do alcatrão por onde irápassar o carro funerário. Cheira aos cravos dasinúmeras coroas ali depositadas em home-nagem póstuma.

Às 17h45, quase duas horas após ter saí-do da Avenida da Liberdade, o cortejo chegafinalmente à entrada do crematório. Chovemflores em cima do tejadilho da carrinha quetransporta o corpo. E chovem palmas tam-bém.

Jerónimo de Sousa, secretário-geral doPCP, ajuda a transportar a urna. Não haverá

João A. Marques

João A. Marques

João Cortesão GomesJoão Cortesão Gomes

João Cortesão Gomes João Cortesão Gomes

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Sexta > 8 de Abril de 2005 OINDEPENDENTE JOÃO PAULO II3Sexta > 17 de Junho de 2005 OINDEPENDENTE ÁLVARO CUNHAL

Cunhal, o unanimismo e o revisionismo

Vasco [email protected]

A morte de Álvaro Cunhal gerou um curio-so unanimismo. Afirmou-se que o antigolíder comunista combateu o regime autori-tário, que desempenhou um “papel relevan-te” na nossa História recente e que foi um“fundador” da democracia portuguesa. QueCunhal tenha combatido o regime anterior,e que teve um “papel relevante” no pós-25 deAbril, parece-me incontroverso. Mas acres-centar que foi um “fundador” da democra-cia – e que a nossa democracia muito lhedeve – não passa de um revisionismo políti-co inaceitável que diminui todos os cidadãosque genuinamente combateram pelo plura-lismo no nosso país.

Homem público que sempre cultivou omistério em volta da sua vida privada, Cunhal,

em tudo o que dizia e fazia, reconhecia haversignificado político. A sua morte, como seriade esperar, transformou-se num aconteci-mento político, simbolizado pela exposição docaixão na sede do PCP coberto pela bandeirado partido. Não houve, pois, nada de “priva-do” na morte de Álvaro Cunhal. E não falta-ram os elogios à sua “coerência”, à sua defesado marxismo-leninismo e à sua fé quanto aotriunfo final do socialismo. Tornou-se “fas-hionable” – à esquerda e à direita – enaltecerCunhal.Todavia, a tragédia política de Cunhalreside precisamente na sua “coerência”. Comodisse Emídio Guerreiro em entrevista ao “Jor-nal de Notícias”, “essa coerência, para mim,é uma catástrofe. O facto de ser coerente comum bandido como era o Estaline não benefi-

cia nada a personalidade do Cunhal. Isso podeser sinal de fundamentalismo”.

Perante o desastre monumental que foi ocomunismo, Cunhal continuava a acreditar nasuperioridade de um sistema que fez milhõesde vítimas. Contra todas as evidências, nun-ca deixou de crer nos “amanhãs que can-tam”. Recusando-se a expressar a maispequena dúvida, permaneceu convencido deque tinha razão. Mesmo quando o mundo odesmentia. Porquê? A resposta pode serencontrada num pequeno texto da autoriade Cunhal, “A superioridade moral doscomunistas” (Edições Avante). É um textoesclarecedor porque revela a mentalidade deum homem “esclarecido”, disposto a fazertudo pela utopia. Um homem que se sentemoralmente superior aos seus adversáriospolíticos porque se julga detentor da “ver-dade”. Um homem que, sendo “moralmen-te superior” aos seus adversários, nuncapoderia tolerá-los.Trata-se, no fundo, de umtexto que denuncia a mente de um fanático.

O comunismo defendido por Cunhal foi– a par do fascismo/nazismo – uma das duasexperiências políticas mais trágicas do sécu-lo XX. A construção do “socialismo real” naUnião Soviética e outros “países fraternos”saldou-se pelo fracasso económico e pelanegação da liberdade individual. E por mui-tos cadáveres. O terror foi um dos instru-mentos privilegiados para “construir osocialismo” e a ditadura de classe nunca pas-sou de uma ditadura do partido. Esses mes-mos partidos – desde a Polónia ao Cambojade Pol Pot – dizimaram povos, sociedades epessoas. Tudo em nome de uma sociedadeideal sonhada por seitas messiânicas que esta-vam dispostas a usar o terror para fazer aengenharia das almas. Em suma, o comunis-mo não passou de um gigantesco crime con-tra a Humanidade. As boas intenções – oideário comunista – apenas mascaravam abarbárie que era a realidade socialista.

É necessário recordar que o projecto doPCP – ao contrário daquilo que muitos dis-seram ao longo dos últimos dias – não visa-va garantir a democracia e a liberdade. Cunhalcombateu o regime autoritário, mas não o fezem nome da democracia e da liberdade. Fê--lo para reproduzir em Portugal o modelo deconstrução socialista soviético, caracterizadopor Cunhal como “o Sol na Terra”. Fê-lo paraimpor uma ditadura leninista assente noterror. Convém recordar a distinção feita porMário Soares durante o processo revolucio-nário de 1974/75. Soares defendia o socia-lismo “em liberdade”, contra o socialismoditatorial do PCP. Sobre isto não pode haveresquecimento, nem a morte de Cunhal podeservir para mistificar estes factos. Respeitar osmortos não passa pelo branqueamento do“papel relevante” desempenhado por Cunhalna nossa História recente.

Mesmo depois do desmoronamento daUnião Soviética e do seu império europeu,Cunhal recusou perceber o mundo que orodeava. O fracasso do comunismo europeuresultava apenas de erros subjectivos, dasdecisões de “traidores” que haviam renegadoo marxismo-leninismo. Era uma explicaçãopouco “materialista”, mas não importava.Nada do que Cunhal havia previsto ao longode uma vida se confirmara. As economias demercado reforçaram-se, as revoluções extin-guiram-se, os partidos comunistas ruíram – eo proletariado deixou de ser uma força socio-lógica relevante. Mas, apesar de tudo, Cunhalcontinuava a acreditar. Restava-lhe a fé. Resta-va-lhe a certeza de que – num futuro longín-quo – a História iria absolvê-lo. Restava-lhe afé messiânica do profeta. Mas, politicamente,não lhe restava nada. Foi um vencido.

Tornou-se«fashionable» – à

esquerda e à direita –enaltecer Cunhal.

Todavia, a tragédiapolítica de Cunhal

reside precisamente nasua «coerência»

Ana Baião/Arquivo

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Sexta > 17 de Junho de 2005OINDEPENDENTE 4ÁLVARO CUNHAL

Éramos três conservadores à mesa do café. Osdoutores Cunhal, Portas e Esteves Cardoso.Ou, se preferirem, os camaradas Álvaro, Pau-lo e Miguel. Como seria de esperar, demo-noslindamente.Vimo-nos aflitos para discordarminimamente.

Álvaro Cunhal tem uma lenda admirável,está colado à história. Numa época omissa emqualidades de carácter, o dirigente comunis-ta é uma excepção. É corajoso, dedicado, coe-rente, íntegro, constante.

Quanto mais sopram os novos ventos,menos ele se esconde nas golas do casaco –mais prazer e mais honra tem em dar a cara.

Álvaro Cunhal é um homem direito. Nãotem medo da vida nem da morte nem deDeus. Quanto mais do professor Cavaco. Oudas nossas perguntas. Fala com a graça tei-mosa de um rapaz, conversando com umanaturalidade que se aproxima da candura.

Sabe muito, mas parece sentir tudo o quesabe. É simpático sem ser sedutor, inteligen-te sem passar por espertalhão.

Até parece um homem aberto e justo. Émuito, muito vivo. Ri-se, surpreende-se, fazbonecos, deixa-se agitar. Ao conversar con-nosco, tem a solidez de quem se sente estar

do lado dos outros. É a terrível vaidade do ser-viço. A vaidade do verdadeiro colectivista.

Estivemos com ele duas vezes. Quatrohoras. Ficámos impressionados. Diz-se mar-xista-leninista “com hífen”. É o eterno comu-nista. Para muitos, será o último. Nós ficámosa acreditar que podia ser o primeiro.O que é que acha que um politico querquando dá uma entrevista?Quer uma passagem para a sua mensagem.Nem sempre é fácil.Essa mensagem muda conforme oórgão de comunicação social?Naturalmente que a mensagem, numa entre-vista, não é uma exposição, não é um dis-curso, não é um relatório, não é um artigo.Amensagem através de uma entrevista fica decerta forma condicionada pela condução dosentrevistadores. Mesmo assim há sempre apossibilidade de o entrevistado procurar quea mensagem chegue. Por vezes por umcaminho que pode não ser rectilíneo.Nesta entrevista tem alguma mensa-gem especial?A pergunta envolve toda a entrevista.Vou res-ponder em três ou quatro palavras e depoiscontinuaremos. Da minha parte e do meu

partido é uma mensagem de confiança, nãoé uma mensagem de descrença, não é a men-sagem de um partido que se sente vencido noseu ideal, nos seus objectivos e na sua luta.Asituação é muito complexa, quer nacional,quer internacional. Há muitos motivos paradúvidas, para interrogações, para novasreflexões. Neste mundo conturbado em queestamos a viver no final do século, procura-mos dar uma resposta, termos uma presençae uma actuação que confirmem a razão de serda nossa existência e da nossa luta como par-tido comunista que somos.

(…)Ao fim de 70 anos de Revolução deOutubro e, em muitos casos, ao fim de40 anos de regime comunista, o que fazmais impressão é que o povo final-mente, parece ter mudado muito pou-co em relação aos seus instintosnaturais. Passado o comunismo, nosentido em que nós o conhecíamos atéaqui, vê-se o regresso dos factoresnacionalistas em toda a sua força, evê-se o regresso dos factores religiososem toda a sua força. Sendo o comu-nismo uma doutrina global, afinal fa-

lhou na criação do homem novo. Ohomem continua igual ao que era.Talvez vos possa surpreender a afirmação quevou fazer. Aquilo que acaba de dizer tem emgrande parte a minha concordância. Em pri-meiro lugar, faz impressão, e certamente fazmais impressão a mim, como comunista quesou, do que a vós que não sois. A segunda éuma reflexão hoje obrigatória em termos dacorrespondência entre o que se pensa e arealidade, ou seja, a não confirmação dacriação do homem novo, a dificuldade extre-ma de modificar as consciências através dasmodificações de carácter social.Também se pode dizer que o homem, oantigo e o eterno, é forte de mais, nãomuda por via ideológica.Falta ainda a terceira questão em que eu esta-va de acordo convosco. Não quis utilizar apalavra falhanço, palavra que se utiliza nocalão político. Mas na realidade não corres-pondeu ao anunciado projectoUma de duas, ou falhou o homem oufalhou o modelo. Digamos que a natu-reza humana e os seus instintos natu-rais, resistiu ao marxismo. Como umaforça bruta, se quiser.

O eterno comunistaSempre foi comunista. Mesmo agora, quando no Leste todos estão a passar o muro, o Dr. Álvaro Cunhal mantém-sefirme nas suas convicções. No fundo, é um homem de palavra Entrevista* Miguel Esteves Cardoso e Paulo Portas

Alberto Picco/Arquivo

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5Sexta > 17 de Junho de 2005 OINDEPENDENTE ÁLVARO CUNHALSão muitas as questões que colocais. Da par-te do partido a que pertenço, o PCP, há mui-to que rejeitamos a ideia de um modelo desociedade nomeadamente de um modelo desocialismo. Modelo que resultaria natural-mente da cópia de soluções feitas em con-dições diferentes.A diversidade das condições– do estado do desenvolvimento socioeco-nómico, da composição de classes, da histó-ria e da experiência das forças motoras sociaise políticas, das transformações que se dãonum determinado país – todos estes factoresnaturalmente exigem soluções diversas. Nãohá um modelo da construção de uma socie-dade nova, de uma sociedade socialista quenós defendemos. O que se passou nos paísesdo Leste da Europa não foi devido apenas,como alguns atribuem, a defeitos dos homensou a erros dos homens, mas a soluções queconstituíram a repetição de processos que, noentender do meu partido, não se conformamcom o nosso ideal e com o nosso projecto. Seé da sociedade ou do homem que vêm as difi-culdades, creio que não podemos ter a esterespeito ideias absolutas. Não devemos teruma atitude negativa, nem relativa à capaci-dade de transformação do homem pela socie-dade, nem da sociedade pelo homem. E noque respeita a uma coisa e outra, cada um denós, e certamente cada um de vós, tem a suaprópria experiência. Eu também tenho aexperiência de viver em meios humanos mui-to diversos e, por vezes, durante muitos anos,até em meios humanos de homens conside-rados à margem da sociedade. Eu não digo emprisões políticas, digo em outros meios. Emesmo aí vi a riqueza do ser humano.A mi-nha confiança na transformação da socieda-de, baseia-se em parte na confiança nohomem. Ou seja, nas potencialidades que ohomem tem de se afirmar e afirmar a suaintervenção na sociedade, contrariandotendências, instintos e até resultados dumainfluência negativa e educação negativa querecebeu.Acredita mais no coração ou na razão?Tudo intervém. Razão e coração, não são duascoisas que possam andar independentes emcada um de nós.

(…)Falámos da natureza humana, quere-mos falar-lhe dos portugueses. Os por-tugueses são diferentes dos outros?Há uma especificidade portuguesa?Sem dúvida.Agora está na moda dizer que há. Nóssabemos que o PCP sempre o disse. Apergunta é outra: é fácil transformarum português num comunista?Ai, dão bons comunistas, dão! Mas é claro quea pergunta exigiria muito estudo, muita inves-tigação de ordem sociológica.As palavras queeu diga a este respeito serão certamente umaabordagem superficial.

De qualquer forma, eu, como português,tenho andado pelo Mundo e quanto mais andopelo Mundo,mais gosto de ser português.Qual-quer cidadão de um outro país terá em relaçãoao seu próprio povo razões suficientes para teros mesmos sentimentos que eu tenho em relaçãoao povo português. E certamente os tem.

Mas eu, como português, na minha sen-sibilidade, na minha maneira de ser, ligo-mecada vez mais ao meu povo. À maneira de serdo povo português. E às características que...Quais, quais?É difícil e arriscado fazer uma definição decarácter nacional, sempre muito limitativa ecertamente polémica. Mas o português não sefecha em si de forma a não compreender osoutros.O português é aberto à compreensão dosoutros. Dir-se-ia que este povo não é egoísta.É racista?Creio que o povo português não é um povo

racista.Desculpe, é um bocadinho racista.Os colonialistas foram muito racistas.Não, os portugueses são todos umpedacinho racistas.O português colonialista era racista, e de queforma! E não venham hoje dizer que os por-tugueses passaram por África e pelo Orientesem expressões de racismo que, infelizmen-te, ainda hoje se manifestam, aqui, na nossarealidade.Mas o português é bom comunista ounão?Se se tomar a situação de outros países euro-peus, para não irmos mais longe, se tomar-mos a situação de partidos comunistas nospaíses europeus, têm uma conclusão aténumérica para poder afirmar que em Portu-gal é mais fácil de transformar um cidadão emcomunista do que noutros países. Por exem-plo, na Grã-Bretanha o partido comunistatem actualmente 7500 membros, e há queminforme que são muito menos.

(…)O senhor tem ar de organizado, frioquando é necessário, afectivo quando épreciso. Os portugueses não o irritam?Se me permite, a minha relação com os outrosnão depende da necessidade. Não gosto derelações verticais, um a falar de cima, o outroa sentir-se por baixo. Procuro relações hori-zontais seja com quem for. E havia de irritar--me porquê? A espontaneidade é muito boae não faço nenhum esforço por contrariá-la.Realmente, o dr. Mário Soares aplicava--se mais às relações consoante a neces-sidade.Não tenho dificuldade com o dr. Mário Soa-res. Desde que ele tenha uma espontaneida-de igual à minha.Os portugueses são individualistas àsua maneira. Dizem: “Quero é que nãome chateiem, tenho a minha razão,aquele tem a dele.” Partilham de menospara serem socialistas, não acha?Não vejo isso assim.Mas não os acha desorganizados?Conheço povos que são mais desorganizadosdo que nós.O Partido Comunista é muito organi-zado. Pouco português nisso.Eu não vos convido a subir ao meu gabinetee ver algumas contradições com essa afir-mação. De qualquer forma, o que vos possodizer é que essa ideia da organização do PCP,visto de fora, está muito ligada à ideia de umacerta mecanização das consciências do PCP. OPCP contrariaria até o carácter espontâneodos portugueses, porque seria um partidoque, no que respeita às consciências doshomens, mulheres e jovens que o constituem,

tudo giraria quase de forma computorizada,e daí a expressão conhecida – “aquela máqui-na”. O PCP seria “aquela máquina”. É umainverdade, e uma grave inverdade.Não acha que há uma semelhança dou-trinária entre os conservadores demo-cratas e os comunistas na crítica quefazem ao liberalismo extremo, porexemplo, ao culto do egoísmo, os fortesque se safem, os fracos que se lixem?Isso precisaria de ser visto com maior atenção.Não me venham dizer que o aliado naturaldos comunistas são os conservadores demo-cratas! Podem atacar-se os mesmos pontospor dois lados contrários.

Pode haver uma convergência que nãoseja uma coincidência de opinião, nem dereflexão, nem de objectivo.O PCP é tido como o mais conservadordos partidos europeus. O senhor é tidocomo um conservador no PCP. Dá-semal com a palavra?Já no princípio da nossa conversa apareceu apalavra conservador. Eu acho que essa palavratem muito interesse.Fica zangado quando o acusam de serconservador?Zangado não é uma palavra que traduza umestado de espírito que me seja próprio.Acha que é uma injustiça quando lhechamam ortodoxo ou conservador?Já agora, por delicadeza, ainda acrescentavaoutra palavra: estalinista. Essas palavras nãotraduzem no mínimo o nosso posiciona-mento.A questão do conservador está muitoligada à análise histórica e à transformaçãosocial. Ontem foi o dia 25 de Abril e reparemvocês como já hoje se escreve diferentemen-te acerca do 25 de Abril. A revolução foi doscravos vermelhos que se punham nas espin-

gardas. Depois, já se comemorava com cravoslaranja, até na Assembleia da República. E euespero que não se venha a comemorar comcrisântemos, flor de finados. Hoje, já se estáa procurar rever toda a história, e a conside-rar que grandes acontecimentos, como aRevolução de Outubro e, segundo alguns, aRevolução de Abril, foram erros históricos.Os partidos comunistas é que são osmaiores praticantes da revisão da His-tória.É legítimo rever a análise da História mas nãoanalisar um acontecimento passado à luz dasexigências políticas da conjuntura presente.Não se pode esquecer as circunstâncias em quese produziram os acontecimentos. Eles nãovieram do ar através da imaginação doshomens. O homem imaginou e actuou emcorrespondência com a realidade.Isso é um conceito relativista?Exacto. Não podemos ajuizar a conduta doshomens no passado à luz da realidade pre-sente que nos impõe outra reflexão, e outraintervenção.

É revolucionário aquele que, ao mesmotempo que analisa as novas situações e osnovos fenómenos e lhes dá as respostas ade-quadas, conserva e defende valores essen-ciais, indispensáveis para a transformaçãosocial. É conservador aquele que defende equer manter a velha ordem social, emboraadoptando novas ideias e novas soluções.

Como comunista, sempre lutei para quefosse construída um dia uma sociedade emque não se registasse a exploração do homempelo homem, humilhantes discriminaçõesem relação à mulher, jovens não consideradoscomo força social interveniente, mas comoum corpo social obediente às ordens e ins-truções do Estado. Sempre lutei por isso, con-tinuo a lutar. São valores, que mantenhoporque sou um comunista e de forma algu-ma esta é uma posição conservadora.É, é.Não é, não.O senhor tem uma qualidade admirável:não foge. Falou da semântica que éperigosa e da maneira como não fogea usar aquelas palavras: há bocado dis-se “leninista, sou um comunista”,numa altura em que toda a gente andaa fugir, anda à procura de segundaspalavras ou de substituir as palavrasexistentes. Gostamos da maneira comocontinua fiel às palavras.Não é só uma questão de palavras mas deideias, de objectivos e de convicções. Apre-sentamo-nos diante do povo dizendo “somoscomunistas” e estamos bem determinados acontinuar a ser comunistas. Não há nada defundamental na nossa actuação que nosenvergonhe, antes pelo contrário. Não somosum partido que tenha tido privilégios, nãotemos a nossa clientela política, estamos aoserviço do nosso povo e do nosso país. Masse há outro país em que comunistas comete-ram graves erros, abusaram de autoridade,afastaram-se do povo, gozaram de privilé-gios, se envolveram em casos de corrupção,e também por isso perderam influência, per-deram apoio, ficaram isolados e foram ven-cidos, mesmo em eleições que eles própriosconvocaram, compreende-se que se tenhadesacreditado aí o nome de comunista.Acha que os comunistas portuguesestambém foram atingidos?Atinge-nos certamente pelas repercussões.Mas como temos a consciência política tran-quila diante do nosso povo, não há qualquerrazão para mudarmos de nome.Não se arrisca, com essa fidelidade, aque os portugueses sejam os últimoscomunistas do século XX?A expressão que acabam de dizer já tem sido

Se tomarmosa situação de partidos

comunistas nos paíseseuropeus, têm uma

conclusão até numéricapara poder afirmar

que em Portugalé mais fácil

transformar um cidadãoem comunista do que

noutros países

Luís Vasconcelos/Lusa

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Sexta > 17 de Junho de 2005OINDEPENDENTE 6ÁLVARO CUNHALutilizada contra nós. Nós evitamos a palavra“fidelidade”, porque pode traduzir um posi-cionamento passivo...Aliás, lealdade.Durante anos utilizámos a palavra “fidelida-de”. Mas com o enriquecimento da nossaprópria ideia, da nossa própria posição, vimosque essa palavra parece excluir uma novareflexão. Há motivações essenciais da nossaintervenção que se mantêm. Mas sempreprontos a reflectir e a renovar.

(…)Falando agora de Estaline propriamen-te dito...A personalidade de Estaline é uma persona-lidade muito contraditória...Alguma vez esteve com Estaline?Vi-o uma vez de passagem,mas só de passagem.Que idade é que tinha?Vinte e um, ou vinte e dois anos, num con-gresso de juventude em Moscovo. Estive lácom os jovens soviéticos. Era a construção dosocialismo, era a juventude empolgada nes-sa construção. E Estaline já estava, se calhar, aorganizar os processos repressivos, contra osseus opositores dentro do partido...Pensa que...Não quero fazer uma apreciação pessoal deEstaline.Mas do estalinismo...Eu não vou aqui propor ou sugerir a leitura,mas eu escrevi muitas páginas sobre a carac-terização do estalinismo. O estalinismo é isto,e isto, e isto. É uma coisa que não queremose que repudiamos. O estalinismo como ide-ologia, como acção política, como organi-zação do Estado, como organização dopartido, como intervenção antidemocráticainterna ou externa do partido. Naturalmen-te que rejeitamos. Aliás, há um país muitoacusado de métodos estalinistas, a Roménia.Já nós, os comunistas portugueses, tínhamosgrande dificuldade de contactos com o Par-tido Comunista Romeno e entretanto quemtinha relações prioritárias com ele era o Par-tido Socialista. Mandava lá delegações.

(…)O senhor dá a ideia de praticar um inter-nacionalismo de partidos e depois dá aideia de praticar uma espécie de nacio-nalismo de Estado. Foi um dos políticosportugueses que, depois do 25 de Abril,recuperaram a palavra “pátria”. Háqualquer coisa de nacionalista no PCP?Patriótico sim, nacionalista não. São dois con-ceitos diferentes que convém diferenciar. Oamor à pátria não significa uma concepção desuperioridade do nosso país em relação aosoutros, e uma defesa dos interesses nacio-nais não significa que não tenhamos respei-to pelos interesses dos outros povos. Onacionalismo conduz muita vez a esse des-respeito. Afirmamo-nos patriotas e interna-cionalistas. Não são sentimentos que secontrariem, sobretudo quando o internacio-nalismo tem raiz de classe. Ou seja, pensamosque o que aproxima mais os povos são os seusinteresses. São os interesses dos trabalhadoresque se identificam em aspectos essenciais.Não vemos contradição com os interessesnacionais.

Os trabalhadores portugueses são aquelescujos interesses mais se identificam com osinteresses nacionais, os grandes capitalistas sãoaqueles cujos interesses privados estão emmaior contradição com os interesses nacio-nais. Os trabalhadores portugueses são aque-les cujos interesses mais se identificam comos interesses nacionais, os grandes capitalis-tas são aqueles cujos interesses privados estãoem maior contradição com os interessesnacionais.Há capitalistas patriotas.Sim, certamente que há. E admito que os

conheço, mas eu não estou a falar das pesso-as mas dos capitalistas como classe, que pro-curam actividades económicas que lhe dêemlucros e mesmo que ofendendo os interessesnacionais e a independência do país.Capitalistas escolheram investir o seudinheiro em Portugal, em alturas difí-ceis, como em 75. Pessoas que prefe-riram ganhar menos dinheiro investindoo dinheiro em Portugal que pondo oseu dinheiro na Suíça.Se eu soubesse de exemplos desses e se esti-vesse em condições de fazer uma proposta,proporia que ao lado de muitas ordens econdecorações existentes, fosse criada umaordem especial para condecorar esses grandescapitalistas de 1974 e 75...Se Portugal não tivesse a posição geo-gráfica que tem e se situasse no blocode Leste, acha que o seu patriotismo deEstado era o mesmo?É muito difícil de ver o que eu pensaria emoutras circunstâncias. Sou português e vivo aqui.Mudamos a pergunta: era fácil ser patrio-ta, no sentido em que o senhor utilizouessa palavra, nos países do Leste?Podemos traduzir isso: se era fácil a um che-co ser patriota na Checoslováquia, se para umromeno era fácil, se para um lituano era fácil.É um problema importante da actualidade.

Ou seja, se os partidos dos países socialis-tas encontraram uma correcta solução para oproblema nacional. A realidade de hoje e osacontecimentos dos últimos anos mostram,no concerto, que as respostas não foram ade-quadas.Como e que define pátria, então? Quan-do diz patriota e nacionalista, como éque distingue? Pelas pessoas, pelosítio, pelos valores? Quando diz: soupatriota mas não nacionalista, qual é adiferença?O patriotismo respeita o patriotismo dos outrospovos. O nacionalismo facilmente ofende eagride interesses nacionais dos outros.É mais fácil criticar o nacionalista doque definir o patriota. Adiante: consi-dera importante a definição de umafronteira?Conforme a fronteira.Uma fronteira histórica.Nós temos a felicidade, os portugueses, determos um Estado coincidente com a fronteiranacional. Isso é quase único na Europa! Temosa felicidade, desde a criação do Estado Por-tuguês, de termos uma nação e um Estado.Não temos problemas nacionais.A nós faz-nos impressão quando se falada dissolução das fronteiras em nomede um só Estado europeu. E a si?Eu assusto-me.

Vamos tentar falar de si. Às vezes,vemos dirigentes políticos conceder aoadversário determinados elogios. Osenhor teve uma guerra fatal comMário Soares, teve outra com Sá Car-neiro, por outras razões. Mas nuncalhes teceu qualquer elogio. Não temqualquer tipo de generosidade paracom os seus adversários. Em contra-partida, o senhor é facilmente elogiadocomo grande político que é.Acham que sim? Mas sabem, há quemembrulhe o cassetête em papel de seda. Nãogosto do elogio, nem num sentido nem nou-tro. Muitas vezes o elogio é o tal papel de seda.Não é coisa que aprecie.É capaz de elogiar um adversário?Não sei o que entendem por elogios.Acho queé uma palavra negativa. Ter uma apreciaçãopositiva sobre uma conduta, sim. Por exemplo,houve um livro de um engenheiro muito co-nhecido que se chamava «Linha de Rumo» eque chamava a atenção para o atraso da indús-tria portuguesa e propunha grandes linhas parao seu desenvolvimento. Era no tempo do Esta-do Novo. Estou portanto a fazer um elogio.Não há qualquer dificuldade em reconhecerméritos a pessoas como este senhor.Tem paciência para a estupidez?Não sei a que é que chamam estupidez. É difí-cil definir estupidez. Muitas vezes confunde--se estupidez com falta de conhecimento. Epode haver falta de conhecimento e haver inte-ligência. Daí a necessidade de discernir ondehá uma menor faculdade intelectual. Quemestá habituado a lidar com gente de variadosníveis de instrução deve ter essa cautela.Prefere estar a falar com um mau cama-rada ou com um bom adversário?Não tenho maus camaradas nem bons adver-sários. É uma distinção um pouco subtil. Pos-

so dizer-lhe que gosto de falar com qualquerpessoa. Seja adversário, seja camarada, tenhamais ou menos instrução, seja analfabeto,seja um sábio. Aquilo que é difícil para mimnão são as conversas, são os jogos. Há umapessoa com quem falei muitas vezes, umapessoa responsável, e não posso garantir quelhe tenha apanhado alguma verdade.É o Mário Soares!Não fui eu que o disse. Mas também possodizer que falei com pessoas que nunca apa-nhei a mentir.A política partidária tem regras queimpõem alguma hipocrisia.No que respeita ao meu partido, preferimosperder votos com a verdade a ganhá-los coma mentira.Mas nota-se que, hoje em dia, até ossenhores têm um certo cuidado com aoratória e o estilo. Basta ouvir algunsdos vossos deputados.Quanto ao estilo, acho que é mais umaquestão de talento do que outra coisa. Hápessoas que têm o talento da expressão. Emais: há pessoas que vivem desse talento.É uma força e uma fraqueza.Pode dizê-lo.Na sua forma de raciocinar acha que háinfluência do Direito?Creio que uma pessoa que andou numa facul-dade de Direito não pode deixar de lá apren-der alguma coisa. O que não quer dizer queum advogado, depois de formado, não chamea mulher para o ajudar a preencher um reque-rimento.Tenho o curso de Direito mas nun-ca fui muito inclinado a tornar-me jurista.Porque é que escolheu Direito?Porque o meu pai era advogado.Não podia ter escolhido outra coisa?Belas-Artes, por exemplo?A questão da preferência tem a ver com a edu-cação.Nunca suspeitou que Deus existisse?Fui católico quando era rapazinho. Fui bap-tizado tardiamente.Tinha oito ou nove anos.Era católico praticante. E era católico crente.Depois deixei de o ser. Não vale a pena con-tar a história.Ter sido católico foi uma fase daminha vida.Mas, por exemplo, quando esteve doen-te, tu cá, tu lá com a morte, nem nes-sa altura falou com Deus?Não, falei com os médicos. Mas, por for-mação do meu partido, sou respeitador doscrentes. Acho que as crenças não são umaquestão a resolver nem em milénios.O poder absoluto corrompe absoluta-mente. Tenta o Homem.O poder absoluto, em si mesmo, já écorrupção. Não digo que tente. Mas, até porexperiência no interior do meu partido, pen-so que é fácil abusar do poder. Por isso sãonecessárias medidas cautelares que o impeçam.Não basta confiar na virtude dos homens.Quais são as medidas cautelares?É necessária a institucionalização de métodosdemocráticos de acompanhamento queimpeçam o abuso de poder.Mas o facto de se ter de responderpelos seus actos perante os outros fazcom que esse acompanhamento sejamenos eficaz. Há uma tensão entre efi-cácia e democraticidade.Não creio.Acredito muito no colectivo comoacompanhamento das decisões individuais.Não se trata de um acompanhamento policial.Por exemplo, nos estatutos do PCP está pre-visto dar contas da actividade. Em decisõesfundamentais, que podem envolver a vida daspessoas e a sua actuação política, é necessárioque isso seja acompanhado pelos camaradas.Mas nos outros partidos comunistastambém havia o trabalho colectivo.Diziam haver... Em 1947, fui encarregado

O poder absoluto,em si mesmo, já é

corrupção. Mas, até porexperiência no interiordo meu partido, penso

que é fácil abusardo poder. Por isso

são necessáriasmedidas cautelares.Não basta confiar navirtude dos homens

Egídio Santos/Arquivo

Page 7: Alvaro Cunhal

7Sexta > 17 de Junho de 2005 OINDEPENDENTE ÁLVARO CUNHALpelo partido de ir clandestinamente ao estran-geiro para restabelecer contactos internacio-nais. Falando com um dirigente de um grandepartido lembro-me de, ante a informaçãoque lhe dei sobre a direcção do PCP, ele terdito: “Felizes os partidos em que há trabalhocolectivo na direcção”.Quando fazemos reuniões colectivasno nosso jornal, com todos os jorna-listas, vemos que é mais difícil (embo-ra possa ser mais produtivo), tomardecisões. Cada pessoa tem uma opi-nião, é difícil conciliar.É muito bom conseguir resultados a partir deum colectivo. Mesmo que isso vá contra anossa opinião.Tem medo de perder?Nem noto isso. A opinião que tenho é sem-pre uma contribuição. Daí surge a opinião docolectivo, que resulta da minha e da dosoutros.O colectivo é a soma das individuali-dades?Se uma discussão é bem conduzida chega-sesempre a um consenso.Boa técnica. Sempre?Está o apuramento feito sem necessidade devotação. Um camarada propõe uma conclusãoe, se há diferenças de opinião, vai-se a votos.A votação surge como um recurso.Se fosse assim, também gostávamos deser comunistas, lá n’O Independente.Não me digam que vão aderir ao Partido...De repente, começa a descobrir-seimensas coisas sobre as pessoas quedirigiam os países do Leste. “Datchas”,contas bancárias, etc. É um fenómenoquase grotesco. Isso surpreende-o?Algumas serão rectificadas.Há sempre o exageroda hora. Não é só surpresa. É a dúvida do apu-ramento. Costuma dizer-se que não há fumosem fogo,portanto haverá fogo.Mas duvido queo fogo seja aquilo que se diz por aí.E no seu partido?Creio que em relação ao meu partido, hápessoas que, sendo do partido, utilizam emrelação aos nossos métodos acusações e defor-mações de tipo neo-estalinista. Falsificando osfactos, deformando a realidade. Não podemosexcluir que surjam métodos neo-estalinistasnaqueles que corri-gem situações de estali-nismo. É um perigo muito grande.Também na altura do 25 de Abril, se ati-raram todas as culpas para o passado.Há duas coisas distintas. O culpado de umapolítica e o culpado de uma conduta corrup-ta. Salazar nunca foi acusado de corrupção. Noque respeita à acusação política, é justificada.Muitas vezes atira-se para os dirigentes ante-riores acusações de corrupção que podemser muitas vezes infundadas. Isso é incorrec-to e condenável.O senhor é um grande cosmopolita docomunismo. Conheceu muita gente noLeste. Chegou a ter relações de amiza-de pessoal com alguns destes dirigen-tes agora defenestrados?Relações de intimidade política sim, mas denenhuma forma relações pessoais. Encontreimuitas vezes os dirigentes mais responsáveisdos países socialistas e com quase todos tiveconversas de muitas horas ao longo dos anos.Esta é uma forma de intimidade política.Há uns tempos, perguntaram-lhe segostava desta pintura, desse livro,daquele filme... e o senhor deu umaresposta curiosa. Disse que não queriaestar a dar opiniões pessoais para nãoinfluenciar os seus camaradas. Isso nãoserá uma forma, embora muito sofisti-cada, de vaidade?Não sei. Há pessoas muito espontâneas e eugosto muito da espontaneidade. Não tenho oespírito da defesa, do cálculo e não luto pela

promoção. Isso vem de uma educação anterior.Vem da clandestinidade em que ninguém sepromovia. É uma formação ética. Em relaçãoà literatura, ou à arte, creio que é um domínioque me é familiar. Não é que não esteja emcondições de ter uma conversa sobre isso. Masquando dou uma entrevista, em que sou soli-citado como secretário-geral do partido, pen-so que os meus gostos e preferências podemser interpretados como um posicionamentopolítico. É o grande risco que correram, e comresultados negativos, alguns partidos comu-nistas em alguns países. Os dirigentes atreve-ram-se a transformar o seu gosto próprio, a suaopinião pessoal, numa ideia de partido. Essa éa coisa mais terrível que pode acontecer. Quan-do se tem uma certa responsabilidade a nívelpartidário, é necessária uma certa contenção.Por exemplo, a questão da arte. É sabido queem vários países socialistas houve uma políti-ca oficial e partidária relativa ao estilo e à for-ma. Procedeu-se quase a uma exclusão deformas de expressão que não estivessem deharmonia com a ideologia dos dirigentes, porvezes, com o gosto dos dirigentes. Os resulta-dos foram muito negativos.

(…)Admite vir algum dia a escrever as suasmemórias?Acho que não. Não estou para aí virado. Malserá se isso acontecer. É porque já estareimorto.Uma das coisas mais criticadas nassociedades do Leste é o culto da per-sonalidade dos chefes políticos. Apa-rentemente, o senhor escapou a essatendência. Recusou-se a aparecer noscartazes, não gosta que gritem o seunome.Aquilo que acabam de dizer é verdade masnão corresponde a um qualquer posiciona-mento individual que mereça particularreferência quanto ao mérito. O mérito resul-ta do próprio processo de trabalho que adop-támos, um processo colectivo de trabalho.Lembro-lhes que, no PCP, desde a morte deBento Gonçalves, de 1942 a 1961, não hou-ve secretário-geral. As coisas funcionavamem colectivo. Habituámo-nos durante muitotempo a fazer trabalho colectivo sem secre-tário-geral. Foi uma educação magnífica.Só que há outra forma de culto da per-sonalidade, que é a não exibição, aocultação e o mistério. O senhor é tra-dicionalmente considerado um doshomens mais misteriosos da vida polí-tica portuguesa. Parece que joga como segredo. Ninguém sabe sobre si aque-le mínimo que se devia saber. Nemonde vive, nem as suas paixões.Nem eu lhes vou contar!!! Passar do culto da

personalidade para uma reserva pessoal pare-ce-me ser um salto muito grande. Há quedefinir que a autoridade de um militantepode ser reconhecida sem haver o culto dapersonalidade.Quais são os limites da privacidade deum político?Vivi muitos anos na clandestinidade. Desde aminha juventude ao 25 de Abril, com peque-nos intervalos.Tenho uma experiência de vidaque representou uma certa contenção da infor-mação acerca da minha vida própria, não só avida pessoal considerada em termos restritos,mas ainda em termos mais vastos. Eu gosto, porexemplo, de desenhar e até estão publicadosalguns desenhos meus. Mas não gosto muitode falar sobre isso: se desenho ou não, se pin-to ou não. Gosto de escrever mas não é meuhábito dizer se estou ou não a preparar algumtrabalho. São aspectos que não têm afinal nadaa ver com privacidade, que não resultam denenhum propósito de criar mistério. Sou fran-co a falar e até acho que é difícil existir umaoutra vida tão conhecida como a minha. Éconhecida. Mas não é devassada. É acompa-nhada o suficiente para eu não ter segredos.Nem todos têm conhecimento de tudo, masnão há nada que ninguém conheça. Não exis-tem aspectos da minha vida que tenha neces-sidade de reservar ou defender, mas não soudaqueles que procura a sua promoção públi-ca através da publicação das suas fotografiasenquanto pequenino, com os manos, dando aconhecer as suas virtudes desde tenra idade;depois fotos de quando tirou o curso; os resul-tados do curso com a fotografia do diploma;depois os seus hobbies mais conhecidos. Issoé romper a privacidade num sentido de mar-keting. Enfim, são estilos.

Eu não tenho esse estilo. Mas tenho a ideiade que, nalguns desses aspectos que referi,não tinha nada a perder.

(…)

Quando defende a melhoria das con-dições materiais dos trabalhadores,tem consciência de que pode estar acriar futuros burgueses?Não. Transformar um trabalhador num bur-guês não é assim tão simples como isso. Naminha opinião está-se a criar um certo novo--riquismo. Sobretudo quando os fundos euro-peus não vão para os objectivos a que estavamdestinados e desaparecem por bolsos em quenão deviam entrar. Há casos de trabalhadoresque ascendem a uma situação de burgueses.Mas isso não é uma regra. Os direitos que nósdefendemos são para que os trabalhadores ten-ham um nível de vida suficiente e compensa-dor. E não para que se tornem capitalistas.Mas há um nível em que se começa aconsumir de mais, a querer mais e aperder a saudade do Partido Comunista.As pessoas têm necessidade de reivindicar. Hájá muito tempo que na classe operária se dis-tingue a aristocracia operária. Esta era a desig-nação antiga. Era uma camada do operariadoque ganhava muito mais que o resto da suaclasse e que não participava na luta operária,juntando-se muitas vezes à burguesia.

Mas, segundo as vossas afirmações, atéparece que, para um comunista, quanto pior,melhor. Ora, nós queremos efectivamenteuma melhoria.O seu homólogo francês, Marchais, afir-mou na televisão que o país socialistaque tinha ido mais longe nas virtudesdo socialismo era Cuba. Se lhe fizessema mesma pergunta...É extremamente difícil absolutizar uma res-posta a tal pergunta.Não responde que é a URSS, “o Sol daTerra”, como disse aqui há uns anos?Uma vez que essa minha suposta respostatem sido reproduzida muitas vezes, vou escla-recer em que circunstâncias e em que con-texto afirmei coisa semelhante. Foi durante aII Guerra Mundial. Estávamos em profundaclandestinidade, os exércitos hitlerianos iamaté aos Pirenéus, iam até Moscovo, invadiama Noruega e o mundo parecia já derrotado eabafado pelo fascismo. Os japoneses inva-diam o sudeste da Ásia e parecia não havernenhuma esperança. Em Portugal, aquelesque se interessavam pela sorte da Guerra ti-nham uns mapazinhos com umas bandeirasassinalando a linha da frente e, segundo oscomunicados que chegavam, iam deslocandoas bandeiras e examinando a situação. Paraaqueles que viviam a ameaça da invasão dapenínsula pelos hitlerianos, a notícia de umavitória na frente soviética era para nós comoo Sol que vinha do Oriente. Foi isso que eudisse.Voltando à pergunta anterior penso queas mais profundas transformações ocorre-ram na União Soviética. O que não quer dizerque num ou noutro aspecto da vida social nãotenha havido avanços mais acentuados nou-tro país, incluindo Cuba, naturalmente.

(…)Tem consciência de que é uma das pes-soas que mais fizeram sofrer outraspessoas em Portugal?Sem dúvida. Uma actuação revolucionáriacausa sempre sofrimento a alguém. É inevi-tável. Não porque a ideia de vingança sejaprópria de uma revolução, mas porque oprocesso revolucionário atinge interesses cujaperda, mesmo ilegítimos, faz naturalmentesofrer quem os detém.O senhor deve ser uma das pessoasmais odiadas de Portugal.Não sei. O meu partido contribuiu para obem-estar das pessoas e por isso é tambémum partido muito estimado.

* Publicada n’O Independente de 18 de Maiode 1990

Uma actuaçãorevolucionária causasempre sofrimento

a alguém. É inevitável.Não porque seja própria

da revolução masporque o processo

revolucionário atingeinteresses cuja perda faz

sofrer quem os detém

Luís Vasconcelos/Lusa

Page 8: Alvaro Cunhal

Sexta > 17 de Junho de 2005OINDEPENDENTE 8ÁLVARO CUNHAL

Na hora da despedida

José Jú[email protected]

É natural que com o passar do tempo surja umcerto amolecimento, que as recordações setornem difusas e que os filtros da memórialimpem os momentos mais desagradáveis,deixando passar apenas aquelas emoções maisfortes e mais empolgantes. É falso que o ódiovelho não canse. Só não cansa quando conti-nua vivo, e para que continue vivo é necessá-rio que esteja presente. Álvaro Cunhal já nãoestava vivo porque, para todos os efeitos, já nãoestava presente. Estaria vivo enquanto cidadãoportador de B.I., número de contribuinte e

utente da Segurança Social. Enquanto ÁlvaroCunhal, ”o Cunhal”, “o Álvaro”, líder histó-rico do Partido Comunista Português, herói daresistência antifascista e potencial instaura-dor em Portugal da “democracia popular”, jáestava morto. Ou, para pôr as coisas de umamaneira menos brutal, já tinha subido ao Pan-teão dos Heróis do Povo e daqueles que, porrazões que só os próprios entenderão, aindajulgam que ser comunista lhes dá algumasuperioridade moral.

Os panegíricos que, com raras excepções, a

táveis, de firmeza, determinação, coragem físi-ca e abnegação já foram suficientemente lou-vadas e recordadas. Foi, sem dúvida, um doschefes da oposição ao regime salazarista, umdos símbolos da resistência à mais brutalrepressão e um homem coerente – se fechar osolhos para não ver os indescritíveis horrorescausados pelo seu ídolo Estaline pode ser con-siderado “coerência”, e se esse tipo de coerên-cia for a homenagem que a subserviência prestaà honestidade.

Adiante. Como diria Richard Burton, nãoestamos aqui para louvar Álvaro Cunhal maspara o enterrar. Imaginemos, por um segun-do, o que seria hoje Portugal se Cunhal tives-se triunfado, se o PCP tivesse tido a coragemde levar até ao fim o golpe militar de 25 deNovembro de 1975, se Ramalho Eanes, Jai-me Neves, Garcia dos Santos e mais um pu-nhado de militares não se tivessem opostopelas armas à sublevação iniciada pelos pára--quedistas; se Otelo Saraiva de Carvalho nãotivesse vacilado no último minuto; se MárioSoares e Salgado Zenha não tivessem tido aforça moral e pessoal para organizar aresistência ao PCP e ao “Processo Revolu-cionário em Curso”; se os militares do “Gru-po dos Nove”, Melo Antunes e VascoLourenço à cabeça, não tivessem organizadoa oposição militar defensora da democracia;imaginemos, finalmente, se Álvaro Cunhaltivesse chegado ao poder e se se tivesse cum-prido a sua profecia, feita a Oriana Fallaci, deque “em Portugal nunca haverá uma demo-cracia burguesa”. Esta semana estaríamos aenterrar não um herói do antifascismo maso amado líder do povo Português. Não ochefe do PCP durante décadas de repressãomas o chefe de um governo ainda mais bru-tal e repressivo do que o anterior; não umhomem com uma força de ferro contra aadversidade mas um tirano que tinha esma-gado com pulso de ferro a democracia e aliberdade. Estaríamos, para ser sintético, aenterrar um monstro.

Para o dr. Sampaio, certamente comovido,devemos homenagear “um combatente pelaliberdade”. Para a opinião estrangeira, unâ-nime, morreu o último estalinista. Somos,decididamente, uns sentimentalões.

Egídio Santos/Arquivo

chamada “esquerda” – conceito bastante equí-voco nos tempos que correm quando o estali-ninismo reciclado e, literalmente, travestido, setornou chique e se apropriou por usucapião dodireito de rotular ideologicamente à esquerdae à direita – debitou sobre o cadáver de Álva-ro Cunhal fizeram esquecer, porque ou seesqueceram ou se fizeram esquecidos, tudoaquilo que o homem representava, tudo aqui-lo por que ele lutou e tudo aquilo que, graçasà coragem e determinação dos seus inimigos,ele não conseguiu.As suas virtudes, incontes-

Imaginemos,por um segundo,o que seria hoje

Portugal se Cunhaltivesse triunfado