Amadurecendo em dor e prazer - Arthur da Távola
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Amadurecendo em dor e
prazer
Arthur da Távola
Depois de um dia cansativo, sonha-se com o momento de chegar em casa, repousar na cama macia e não fazer nada, apossar-se do controle remoto e “navegar” pelos canais de Tv, sem compromisso com nada, nem ninguém, caso a mente (tumultuada pelo intenso dia) o permita.
Esse fato banal recordou-me amiga minha a confidenciar-me
que quando jovem sentia esse mesmo prazer. Porém, já madura,
casada, descobriu que isso não era mais possível.
Ao aproximar-se do casal de filhos com vontade de entregar-se ao filme da tv com idêntica participação e submissão, ajeitou-se, carinhosa entre eles, mas o pensamento voador e obsessivo, dominou-a, sequer conseguia saber o que se agitava na tela, a cabeça rodava, inquieta, cheia de dúvidas e dilacerações.
Queria voltar a crer nos filmes. Hoje não pode. A tal da consciência crítica impede-a de entrega ao devaneio inconseqüente. Entende de
dominação, massificação, manipulação, tudo o que vem envolto na aparência inocente da comunicação. Só não entende a si mesma.
Aflige-a a impossibilidade de se entregar à distração, aos contadores de histórias. A cabeça – sem parar – trabalha o conflito. Ainda por cima a analista a dizer-lhe coisas. Vai estourar ou enlouquecer.
Só uma vontade: poder ver o filme com a mesma entrega dos filhos. Impulso de abraçá-los. Se enrosca entre os dois. Sente que os incomoda. Querem ver o filme. Quem lhe entenderá a solidão?
Esquece o motivo que iniciou nossa conversa: o prazer de nada fazer perante a Tv e transforma-me em seu analista e confidente. Desabafa.
Fala-me da relação extra. Considera-se bem casada e questiona o que é ser bem casada? Ter marido formidável, filhos lindos, base econômica, independência, profissão? Tem. Por que então, a insatisfação? A analista sempre lhe aponta as divisões internas, como se fosse um pecado. Vai dizer que ela não tem divisões só porque é psicanalista?
Só queria descansar a cabeça, parar o pensamento.
Tem enorme saudade do tempo em que podia ver um filme na televisão e nele se realizar, chorar, ter medo, viajar, sonhar. Agora não;
agora vive; é sozinha e adulta; tem que enfrentar as
barras sem mentiras ou enganos.
Mas então por que se sente sempre assim tão mal, cercada de tédio e vazio ou, no caso do
amante, de susto e culpa? O problema é dela ou da vida? Do ser humano ou da sociedade?
Sente saudade do amante e grande ternura pelo marido que está viajando. Jamais os magoaria. Não vê saída. Como conciliar o que a dilacera? Dará certo manter a divisão?
Deu-me vontade de dizer a ela: “Tudo faz parte da vida. Você é
apenas uma linda mulher vivendo,
conflitiva, corajosa nas suas buscas e
entregas, apenas uma bela mulher
amadurecendo em dor e prazer!”. Calei-me.
Ela mudou-se e nunca mais a vi.
FORMATAÇÃO: Mima (Wilma) Badan
MÚSICA: Autumn rose
(Repasse com os devidos créditos)