Amar

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Amar, verbo intransitivo, de Mário de Andrade44 Publicado em 1927, Amar, Verbo Intransitivo, de Mário de Andrade, chama a atenção por inúmeros aspectos. O primeiro é a sua linguagem, provavelmente considerada “errada” na época, pois se afasta do português castiço ao imitar (às vezes de forma eficiente, às vezes não) o padrão coloquial brasileiro. É como se o texto escrito imitasse a maneira de falar do nosso povo. É um livro para se fazer de conta que se está ouvindo e, não, lendo. Há numerosas características em Amar, Verbo Intransitivo que o enquadram como modernista. Um romance modernista da primeira frase (1922 – 1930), impregnado de um espírito de destruição até ao exagero. O espírito da “Semana de Arte Moderna”: destruir para construir tudo de novo. A mola real de toda a obra do autor é a pesquisa, a busca. O romance apresenta no próprio título uma contradição gritante, afinal, o verbo "amar" é transitivo direto e não intransitivo. Se isto já não bastasse, ainda recebe uma curiosa classificação: é apresentado na capa como Idílio. A perplexidade é inevitável, uma vez que idílio implica numa forma singela de amor em que não pairam dúvidas quanto à reciprocidade entre dois sujeitos. Outro aspecto interessante é o constante emprego das digressões, boa parte delas metalingüísticas, outra parte sociológicas, que

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Amar, verbo intransitivo, de Mário de Andrade44

Publicado em 1927, Amar,  Verbo Intransitivo, de Mário de Andrade, chama a atenção por

inúmeros aspectos. O primeiro é a sua linguagem, provavelmente considerada “errada” na época,

pois se afasta do português castiço ao imitar (às vezes de forma eficiente, às vezes não) o padrão

coloquial brasileiro. É como se o texto escrito imitasse a maneira de falar do nosso povo. É um

livro para se fazer de conta que se está ouvindo e, não, lendo.

Há numerosas características em Amar, Verbo Intransitivo que o enquadram como modernista.

Um romance modernista da primeira frase (1922 – 1930), impregnado de um espírito de

destruição até ao exagero. O espírito da “Semana de Arte Moderna”: destruir para construir tudo

de novo. A mola real de toda a obra do autor é a pesquisa, a busca.

O romance apresenta no próprio título uma contradição gritante, afinal, o verbo "amar" é

transitivo direto e não intransitivo. Se isto já não bastasse, ainda recebe uma curiosa

classificação: é apresentado na capa como Idílio. A perplexidade é inevitável, uma vez que idílio

implica numa forma singela de amor em que não pairam dúvidas quanto à reciprocidade entre

dois sujeitos.

Outro aspecto interessante é o constante emprego das digressões, boa parte delas

metalingüísticas, outra parte sociológicas, que fazem lembrar o estilo machadiano. Mais uma vez,

a obra apresenta elementos formais que a colocam à frente de seu tempo, caracterizando-a,

portanto, como moderna.

Dentro do aspecto sociológico, há que se entender uma posição meio ambígua de Mário de

Andrade, como se ele mostrasse uma “paixão crítica” por seu povo, principalmente o paulistano.

Note-se que critica valores brasileiros, ao mesmo tempo que diz que é a nossa forma de

comportamento, deixando subentendido um certo ar de “não tem jeito”, “somos assim mesmo”.

Além disso, ao mesmo tempo em que elogia o estrangeiro, principalmente a força dos alemães,

desmerece-os ao mostrá-los como extremamente metódicos, ineptos para o calor latino. Sem

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mencionar que reconhece que o imigrante está sendo como que simpaticamente absorvido por

nossa cultura.

Mas o que mais chama a atenção é a utilização da teoria freudiana (grande paixão do autor) como

embasamento da trama. 

O inusitado da profissão de Fräulein pode parecer inverossímil numa visão separada da totalidade

sócio-econômica e histórica (como também seu sonho de retornar à Alemanha, “depois de feito a

América, e o casamento, o vago amado distante à espera de proteção, espécie de redenção

wagneriana pelo amor.” Professora de amor, profissão que uma “fraqueza” lhe permitiu exercer,

no entanto “é uma profissão”, insistiria Fräulein.

Na Europa, o período denominado entre-guerras caracterizou-se por uma profunda crise

econômica, social e moral que atingiu os países capitalistas na década de 20. Na Alemanha,

particularmente, a situação era pior: havia um clima propício, como nos demais países que

perderam a guerra, ao nascimento de um violento nacionalismo. No caso, sabemos, estava aberta

a brecha para a ascensão do nazismo. No Brasil, apesar da guerra, o clima era bem outro: havia

um relativo otimismo em relação ao futuro. Superávamos o atraso de um país agrário num estado

mesmo de euforia pelo dinheiro proveniente da plantação e comércio do café e vislumbrava-se a

possibilidade de unir esta riqueza à nova riqueza industrial. Fräulein, diante de realidades tão

opostas, se adapta. Aliás, seu poder de adaptação é insistentemente enfatizado pelo narrador:

tornaram a vida insuportável na Alemanha. Mesmo antes de 14 a existência arrastava difícil lá,

Fräulein se adaptou. Veio pro Brasil, Rio de Janeiro. Depois Curitiba onde não teve o que fazer.

Rio de Janeiro. São Paulo. Agora tinha que viver com os Souza Costas. Se adaptou.

A descoberta de Dona Laura sobre o acordo estabelecido entre Fräulein e o Senhor Souza Costa,

referente à iniciação amorosa/sexual de Carlos, provocou explicações desconcertantes, exibindo a

hipocrisia social vigente na metrópole paulista: 

Laura, Fräulein tem o meu consentimento. Você sabe: hoje esses mocinhos... é tão perigoso!

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Podem cair nas mãos de alguma exploradora! A cidade... é uma invasão de aventureiras agora!

Como nunca teve!. Como nunca teve, Laura... Depois isso de principiar... é tão perigoso! Você

compreende: uma pessoa especial evita muitas coisas. E viciadas! Não é só bebida não! Hoje

não tem mulher-da-vida que não seja eterônoma, usam morfina... E os moços imitam! Depois as

doenças!… Você vive em sua casa, não sabe… é um horror! Em pouco tempo Carlos estava

sifilítico e outras coisas horríveis, um perdido!

Há de se convir que havia um vasto mercado para a professora de amor, que se fez assim,

inclusive, por captar as necessidades e capacidade desse mercado. Ora, antes de vir para a

emergente São Paulo, ela esteve no Rio de Janeiro e em Curitiba, “onde não teve o que fazer”.

Foco narrativo

A narrativa é feita na terceira pessoa, por um narrador que não faz parte do romance.

É o narrador tradicional, um narrador onisciente e onipresente. Mas há ainda um outro ponto-de-

vista: o autor se coloca dentro do livro para fazer suas numerosas observações marginais. Para

comentar, criticar, expor idéias, concordar ou discordar... É uma velha mania do romance

tradicional. E os comentários são feitos na primeira pessoa. Observe:

Isto não sei se é bem se é mal, mas a culpa é toda de Elza. Isto sei e afirmo...

Volto a afirmar que o meu livro tem 50 leitores. Comigo 51.

Linguagem e Estrutura

A narrativa corre sem divisões de capítulos. Mário de Andrade usa as formas conhecidas de

discurso. É mais freqüente o discurso direto, nos diálogos, mas em algumas vezes, usa também o

discurso indireto e o discurso indireto livre.

A narrativa segue, de modo geral, uma linha linear: princípio, meio e fim. Começa com a

chegada de Fräulein, se estende em episódios e incidentes, acaba com a saída de Fräulein.

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Quando termina o idílio, o autor escreve “Fim” e, depois, ainda narra um pequeno episódio: um

encontro de longe entre Carlos e Fräulein, num corso de carnaval. Freqüentemente a narrativa

fica retardada pelos comentários marginais do autor: algumas vezes exposição de tese.

Apesar de certos alongamentos em seus comentários marginais, o autor escreve com rapidez,

dinamicamente, em frases e palavras com jeito cinematográfico. Mário de Andrade usa uma

linguagem sincopada, cheia de elipses que obrigam o leitor a ligar e completar os pensamentos.

Em vez de dizer e de explicar tudo, apenas sugere em frases curtas, mínimas.

A pontuação da frase é muito liberal. Conscientemente liberal. O ritmo de leitura depende muito

da capacidade de cada leitor. Abandona a pontuação quando as frases se amontoam, acavalando-

se umas sobre as outras, polifônicas, simultâneas, fugindo das regrinhas escolares de pontos e

vírgulas. É preciso lembrar que Mário de Andrade é sempre um experimentador em busca de

soluções novas para a linguagem. Para alcançar ou tentar suas inovações ele trabalhou

suadamente: fazia e refazia suas redações em versões diferentes. Assim em Amar, Verbo

Intransitivo e mais ainda em Macunaíma. Sobre Fräulein: Agora primeiro vou deixar o livro

descansar uma semana ou mais sem pegar nele, depois principiarei a corrigir e a escrever o

livro na forma definitiva. Definitiva? Não posso garantir nada, não. Fräulein teve quatro

redações diferentes! (Carta a Manuel Bandeira, pág. 184).

Personagens

As personagens do livro são, em geral, fabricadas, artificiais, sem muita vida ou substância

humana.

Os personagens de Amar, Verbo Intransitivo são bem parecidos, e socialmente domesticados.

Para ver, praticamente, todos os personagens em ação, com certa espontaneidade, o melhor

momento é a volta de trem, depois daquela viagem ao Rio de Janeiro. Um dos momentos

narrativos mais interessantes em todo o romance. Mas a ação principal está em Fräulein: seu

domínio sexual, com imperturbável serenidade bem alemã, contrasta com a espontaneidade

sexual, com a impetuosidade bem brasileira do excelente aluno (em sexo), Carlos.

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O narrador gosta de ver os seus personagens. É um espectador pirandeliano que acompanha suas

criaturas. Que mentira, meu Deus!! Dizerem Fräulein, personagem inventado por mim e por mim

construído! Não constrói coisa nenhuma. Um dia Elza me apareceu, era uma quarta-feira, sem

que eu a procurasse.... E continua a sua pequena teoria o personagem. São os personagens que

escolhem os seus autores e não estes que constroem as suas heroínas. Virgulam-nas apenas, pra

que os homens possam ter delas conhecimento suficiente....

Felisberto Sousa Costa - pai de Carlos. É, possivelmente um doutor em qualquer coisa, mania

muito comum e que Eça de Queiróz criticou numa saborosa carta a Eduardo Prado: todo mundo é

doutor, todo mundo tem a mania do diploma e do anel do dedo. É o centro, não afetivo, mas

administrativo da casa em que mantém, mais ou menos, o regime patriarcalista.

D. Laura - mãe de Carlos, esposa de Felisberto. Como devia, sempre obedece ao marido. É uma

senhora bem composta, acomodada, burguesa. Uma senhora da sociedade e que mantém todas as

aparências de seriedade religiosa e familiar. Concorda com os argumentos tão convincentes... do

marido, na educação do único filho-homem.

Carlos Alberto - filho de Felisberto e D. Laura, com idade entre 15 e 16 anos. Uma espécie de

“enfant gaté” (um queridinho da família, porque único) e que, certamente, deverá ser o principal

herdeiro do nome, da fortuna e das realizações paternas. Como era costume, possivelmente,

deveria ser a projeção do pai, a sua continuação. Centraliza a narrativa, é personagem do pequeno

drama amoroso do livro, ao lado da governanta alemã, Elza. 

Elza - Fräulein (= senhorita), governanta alemã. Tão importante que ela dava nome ao romance.

Como é Fräulein? Ela é a mais humana e real, mais de carne e osso. Talvez arrancada da vida.

Ela, sem muito interesse, cuida também da educação ou instrução das meninas: principalmente

para ensinar alemão e piano. São três meninas que, apenas, completam a família burguesa. São

três meninas que brincam de casinha.

Maria Luísa - irmã de Carlos, tem 12 anos. Ela vai ser o centro de uma narrativa dentro do

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romance: a sua doença e a viagem ao Rio de Janeiro, para um clima mais saudável em oposição

ao frio paulistano.

Laurita - irmã de Carlos, tem 7 anos.

Aldina - irmã caçula de Carlos. Tem 5 anos.

Enredo

Souza Costa, homem burguês, bem posto na vida, contrata uma governanta alemã, de 35 anos,

para a educação do filho, principalmente para a sua educação sexual.

Não me agradaria ser tomada por aventureira, sou séria, e tenho 35 anos, senhor. Certamente

não irei se sua esposa não souber o que vou fazer lá. 

Elza é o nome da moça. Mas vai ficar conhecida e será chamada sempre pela palavra alemã

Fräulein. Chegou à mansão de Souza Costa, numa terça-feira. (Ganharia algum dinheiro...

Voltaria para a Alemanha... Se casaria com um moço “comprido, magro”, muito alvo, quase

transparente”...).

A família era formada pelo pai, por D. Laura, o rapazinho Carlos e as meninas: Maria Luísa, com

12 anos; Laurita com 7 e Aldinha com 5. Havia também na casa um criado japonês: Tanaka. A

criançada toda começou logo aprendendo alemão e chamando a governanta de Fräulein. Carlos

não está muito para o estudo. Fräulein logo se ajeitou na família, uma família “imóvel mas feliz”.

Mas o papel principal da governanta é ensinar o “amor”.

Notas

1. O problema central do romance é a educação sexual de um rapaz de família burguesa, em São

Paulo. As meninas ficam relegadas a um segundo plano. Carlos é mais importante. Não pode

ficar sujeito à ganância e às doenças das mulheres da vida. Como resolver o problema? Contrata-

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se Fräulein, professora de sexo. É mais uma estrangeira que entra para a casa brasileira, onde o

copeiro é italiano fascista, a arrumadeira é belga ou s uíça, o encerador é polaco ou russo. Na casa

de Souza Costa o empregado é japonês e a governanta é alemã. Só as cozinheiras que ainda são

mulatas ou cafusas.

2. Há uma referência ao racismo alemão: quedê raça mais forte? Nenhuma... O nobre destino do

homem é se conservar sadio e procurar esposa prodigiosamente sadia. De raça superior, como

ela, Fräulein. Os negros são de raça inferior. Os índios também. Os portugueses também. São as

idéias de Fräulein, principalmente depois que leu um trabalho de Reimer, onde se afirmava a

inferioridade da raça latina.

3. A família burguesa é patriarcalista: o centro de tudo é o homem, o pai e o filho, Carlos. Todos

têm que obedecer ao pater-familias. A começar de D. Laura que se submete, se adapta, aceita as

idéias do marido, se conforma com a presença da Fräulein como professora de sexo do filho. E a

família vai continuar patriarcalista porque já estão centralizando todas as atenções no filho varão.

4. Nessa família existe também uma religião, certamente velha tradição dos ancestrais. Uma

religião de domingo e de tempos de doença. Para que a filha, Maria Luísa, sare, Sousa Costa

aceita fazer todos os sacrifícios. Deixará até algumas aventuras fora de casa.  Ora deixemos de

imoralidades! Sousa Costa nunca teve aventuras, nunca mais terá aventuras, todos os

sacrifícios, porém que minha filha sare!... Sousa Costa pensa em Deus.

5. Carlos é bem o retrato ou exemplo da nossa sexualidade latina ou brasileira. Com todas as suas

minúcias e permissões. Fräulein não compreende bem o amor latino. Para manter a sexualidade

de Carlos e a pureza de sua saúde é que Fräulein foi contratada. Carlos precisava de mulher

dentro de casa.

6. Tudo passa e muda. A família burguesa, bem composta, bem construída, mantém sua

estabilidade. Um família imóvel, mas feliz.

Resumo

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A história, classificada como idílio pelo próprio autor, é sobre a iniciação sexual do protagonista,

Carlos Alberto. Seu pai, Sousa Costa, preocupado em prepará-lo para a vida, contrata uma

profissional para isso, Fräulein Elza (o grande medo de Sousa Costa é que, se seu filho tivesse

sua iniciação num prostíbulo, poderia ser explorado pelas prostitutas ou até se tornar toxicômano

por influência delas). Oficialmente, ela entra no lar burguês de Higienópolis para ser governanta

e ensinar alemão aos quatro filhos do casal Sousa Costa, D. Laura.

Muitos aspectos são dignos de nota aqui. Em primeiro lugar, o tema é completamente inédito em

nossa literatura e deve ter sido motivo de certo escândalo em sua época. Além disso, a iniciação

sexual tranqüila e segura é vista como garantia para uma vida madura e até para o

estabelecimento de um lar sagrado. Em suma, sexo é a base de tudo. Freud, portanto, mostra-se

marcante.

Pode-se afirmar que a intenção do chefe da família é fadada ao fracasso, pois Carlos não era

virgem. Bem antes de iniciada a história, ele havia tido sua experiência sexual no Ipiranga, em

meio à farra de seus amigos, com uma prostituta. Mas fora um ato mecânico, seco, pressionado

pelos amigos. Não tinha sido, pois, uma iniciação completa.

Interessante é que Fräulein (em alemão essa palavra significa “senhorita”, mas também tem o

valor e todo o peso do termo “professora”) realiza seu serviço com dignidade, não enxergando

relação com prostituição. Assume estar realizando uma missão. É um elemento que destoa do

olhar de Sousa Costa e até do próprio narrador.

Além disso, esse disfarce, meio que hipócrita, de Fräulein ser na aparência governanta e na

verdade iniciadora do amor, revela toda a complexidade em que a sexualidade humana está

mergulhada (as teorias freudianas). Há aqui todo um jogo de querer e esconder, negar e afirmar,

que vai perpassar a relação que Elza estabelecerá naquela casa.

Deve-se notar o comportamento de Sousa Costa. Sua atitude de contratar uma profissional do

amor para realizar os serviços debaixo do seu próprio teto revela determinados valores da

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burguesia da época. Comporta-se como o novo rico que acha que o dinheiro pode tomar posse de

tudo, até da iniciação sexual. São ricos que ainda não têm, no entender de Mário de Andrade,

estrutura para merecer seu presente status.~

Nesse aspecto o autor mostra-se bastante cruel. Ficaram notórias as suas críticas à burguesia

paulistana e à sua mania de tentar ser o que não é ou esconder o que no fundo é. Observa-se a

genialidade do narrador ao descrever Sousa Costa usando brilhantina até no bigode. Assemelha-

se à esposa, que também usa produto para alisar o cabelo. Querem esconder que são tão mestiços

quanto o resto do país.

O fato é que Carlos realmente precisava ser educado. Constantemente ao brincar com suas três

irmãs mais novas acabava, sem querer, machucando-as. Há aqui toda uma conotação freudiana,

mas o que mais importa é entender que o protagonista fere porque não sabe controlar sua força. É

um desajeitado. Nesse aspecto sua iniciação será importante, pois servirá para domar seus

impulsos, sua energia, sua afetividade.

Fräulein tem plena consciência desse objetivo. Quer ensinar o amor em sua forma tranqüila, sem

descontroles, sem paixões. O problema é que o garoto é aluado. Por mais que Elza se apresente

sedutora nos momentos em que os dois ficam sozinhos na biblioteca (outra crítica é dirigida à

burguesia paulistana. Os livros da biblioteca são comprados por questão de status, muitos nem

sequer sendo abertos, chegando alguns até a estarem com as páginas coladas), estudando alemão,

o garoto não percebe as intenções dela, o que a deixa em alguns momentos irritada.

No entanto, o que chega a reforçar a tese da professora, com a convivência brota o interesse do

menino pela mestra. É algo que não se quer revelar claro de primeira. Começa com o interesse

que o garoto tem repentinamente por tudo o que se refere à Alemanha, acelerando até o

conhecimento da língua. Se antes tinha um desempenho sofrível, agora apreende vocabulário de

forma acelerada.

Revelando muito bem as características da sexualidade humana (Freud), a atração mostra-se

mergulhada num jogo de avanços e recuos, de desejos e de medos. Os toques de Fräulein tornam-

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se cada vez mais constantes. A tensão torna-se máxima quando o menino masturba-se inspirado

na professora (é um episódio descrito de forma extremamente indireta, tangencial, dificultando

em muito sua percepção. É necessário um malabarismo mental para entendê-lo. Talvez a intenção

do narrador é, além de evitar o escândalo de ser claro em aspecto tão delicado (várias vezes diz

que não quer produzir obra naturalista), mostrar como a questão está problemática na cabeça de

Carlos. Tanto é que pouco após esse episódio, há a menção a anjos lavando com esponja santa o

pecado que acabara de ser cometido. Essa noção de prazer e pecado, de o instinto desejar algo,

mas a educação e a formação religiosa marcarem isso como condenável, é outro elemento muito

analisado por Freud). Toma consciência, portanto, de que a deseja.

Até que, pressionada pelas trapalhadas da família Sousa Costa (Sousa Costa havia descumprido o

combinado quando contratara Fräulein: deixar claro para D. Laura qual era a função da

professora. A mãe, alheia ao que estava acontecendo, estranhara o apego do filho à mestra e vai

conversar com a alemã, ingenuamente preocupada com a possibilidade de o menino fazer

besteira. Inconformada com a quebra do prometido, Elza força uma reunião entre ela e os pais, na

qual tem como intenção deixar todo o acerto claro. O resultado é que tudo se complica. Fräulein

decepciona-se com a maneira como os “latinos” tratam aquele assunto e os pais de Carlos não

sabem exatamente o que fazer, se querem ou se não querem a governanta), torna-se mais

apelativa. O contato corporal é mais intenso, o que assusta Carlos. Medo e desejo. Delicadamente

Fräulein vence. Inicia, ainda que sensualmente, Carlos. Mas em pouco tempo a iniciação sexual

torna-se efetiva. O garoto passa a freqüentar de noite a cama de Elza.

Os dois acabam assumindo uma cumplicidade gostosa, o que indica o amadurecimento de Carlos.

È uma situação preocupante, pois Fräulein acaba se envolvendo. Na verdade, o que acontece é

que isso acirra o conflito entre os dois alemães que o narrador afirma que a governanta carrega

dentro dela. O primeiro é dedicado ao sonho, à fantasia. É um coitado que anda sufocado em

Elza. O segundo é o prático, que planeja, que é metódico. Esse é quem domina sua personalidade.

Carlos, no entanto, vem fortalecer o primeiro, comprometendo o segundo.

Para complicar sua situação, uma das irmãs de Carlos fica doente. A governanta passa a cuidar

dela. Tudo em sua mão funciona perfeitamente. A família Sousa Costa cria uma enorme

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dependência em relação à alemã. E ela começa a se sentir a mãe de todos. Aliás, um papel que ela

assumirá no final da narrativa.

Preocupada em não perder controle da situação, decide acelerar o término de sua tarefa. Quer que

tudo termine de forma dramática, pois acredita que a lição sentida no corpo é mais efetiva. O

trauma amadurece. Acerta com Sousa Costa um flagrante.

Os amantes são surpreendidos no quarto da governanta. Dentro da armação, o pai dá uma bronca

no filho, ensinando-o a tomar cuidado, pois sempre havia o risco de gravidez, casamento forçado

e outros problemas. Fräulein, recebidos seus oito contos, parte, mergulhando Carlos num luto

monstruoso. Faz parte de seu crescimento.

Após isso, a narrativa flagra Fräulein ensinando um outro garoto da burguesia de Higienópolis,

Luís. Não sente prazer nesse serviço agora, talvez por ter em sua mente Carlos, mas o está

seduzindo, abrindo-lhe o caminho para o amor. É sua profissão. Precisa ser prática para juntar

dinheiro e voltar para a Alemanha.

É Carnaval. Em meio à folia de rua, Elza localiza Carlos. Atira-lhe uma serpentina para chamar a

sua atenção. O rapaz a vê e a cumprimenta formalmente. Parecia estar mais ocupado em curtir a

garota que lhe faz companhia.

Fräulein tem um misto de emoções. Ao mesmo tempo em que seu lado sonhador sente-se

frustrado – o rapaz, depois do tanto que ocorreu, mostrou-se frio –, sente-se realizada ao lembrar

de todos os que iniciou, os que ensinou o amar, intransitivamente, ou seja, a amar não importa

qual seja o objeto, o alvo. É como se quisesse ensinar que o mais importante é aprender a amar

intransitivamente para depois poder amar alguém, transitivamente.

O livro tem uma estrutura incomum: não há capítulos em si, apenas espaços em branco que

separam passagens; a palavra FIM aparece após o Idílio, apenas após isso dá-se a conclusão da

história.

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A metáfora definindo a personagem Fräulein Elza do romance Amar, verbo intransitivo de

Mário de Andrade

 

Temos como objetivo comentar as metáforas que definem a personagem feminina Fräulein Elza,

no romance Amar, verbo intransitivo de Mário de Andrade, publicado em 1927. Para que isso

aconteça de maneira clara, iniciaremos dando uma visão geral do texto, com alguns pontos que

pensamos ser importantes para a melhor compreensão desta dissertação.

Em seguida, delinearemos a personagem principal, traçaremos uma breve definição de metáfora

para, finalmente, desenvolvermos a análise do emprego metafórico relacionado com a heroína do

romance.

Sendo, o Romance, riquíssimo em metáforas, não citaremos todas. Tivemos que escolher

algumas que, ao nosso olhar, podem dar um exemplo geral da maneira como Mário de Andrade

fez uso deste recurso no texto.

Noções gerais sobre o Romance

A estória passa-se em São Paulo, no seio de uma família burguesa, em torno da governanta e

professora de piano e alemão que, na verdade, fora contratada para iniciar, no amor e no sexo, o

jovem Carlos, de 16 anos, filho mais velho de Laura e Souza Costas.

O Romance teve, pelo próprio autor, a importante classificação de Idílio porque fala do amor

poético e suave, além de expressar a prosa experimental, pelo tema, estrutura e narrativa. É um

Romance cinematográfico, modernista e moderno[1].

Tem características expressionistas, destacando a mulher, a sexualidade humana e denunciando a

burguesia. Para criticar esta última, o autor coloca em oposição a pobreza da alma do homem

burguês e a sabedoria feminina. Isso faz com que seja um romance pró-mulher, onde, apesar da

fala masculina do narrador, a autonomia e expressão femininas são fortemente ressaltadas.

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Quanto à estrutura, podemos verificar que não possui capítulos segundo a norma aceita e pedida

na época. É uma ficção caracterizada por “flashs” que resgatam o passado. As analepses

aparecem, sobretudo, por intermédio de Fräulein, a personagem principal. A cena, como no

cinema, é o meio de amenizar os conflitos dilacerantes, passando de uma a outra para provocar

um clima suspenso.

As evasivas que surgem nas interrupções do fio da narrativa são, freqüentemente, ambivalentes e

possibilitam a metáfora. Há uma narração cinematográfica de romance moderno que segue os

passos dos personagens, ora como foco isento – olhando por detrás, ora como foco comprometido

– à partir do olhar do personagem.

No que diz respeito ao gênero, verificamos a influência temática moderna, que, além do amor

(tema idílico), destaca a natureza não somente como parte integrante do ambiente, mas do próprio

personagem; e a oposição entre o Novo e o Velho Mundo, ou seja, a diferença cultural entre o

europeu e o latino-americano, designando, sobretudo, a clássica disputa entre sentimento e paixão

de um lado e razão e praticidade de outro.

Esses temas são utilizados com liberdade de escrita e vocabulário corrente familiar, numa

tentativa de unificação da linguagem por todo o Brasil; características típicas do modernismo.

Apesar de manter-se no urbano e na classe dominante burguesa de São Paulo, o autor utiliza todo

tipo de linguajar, mesmo de regiões distantes, com o objetivo de livrar-se do convencional, do

racional e de diminuir as distâncias entre o popular e o erudito. Ademais, soube dar à natureza um

papel de destaque, sem perder o urbanismo. O idílio, como gênero antigo está, desta forma,

inovando com seu ingresso na prosa modernista.

O nacionalismo, tema latente na corrente modernista do Brasil, é identificado na tentativa do

escritor em definir o caráter ou a identidade nacional do brasileiro em contra-posição ao alemão,

sem privilegiar um ou outro, mas destacando os pontos positivos e negativos de cada cultura. O

que mais o autor condena, no brasileiro, é sua ignorância quanto ao seu modo de ser e

insensibilidade para consigo mesmo; enquanto que no alemão é o aprisionamento do que é

sublime.

Há, além disso, no texto, a forte presença musical: muitas onomatopéias, citações de músicas e

instrumentos musicais. O narrador preocupa-se em criar as imagens físicas, psicológicas e

sonoras dos personagens. Como exemplo, podemos citar as seguintes metáforas

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determinativas[2] sobre as idéias de Fräulein, num ritmo sonoro: “Ela apenas acumula,

ponhamos, migalhas de pensamentos, não, antes, prelúdios de pensamentos, que fica mais

musical. Simultâneos brotam na consciência dela desenhos inacabados, isto é, prelúdios de

idéias”. (p. 84)[3].

Fräulein, a personagem principal

A heroína Fräulein está colocada entre as melhores personagens femininas da Literatura

Brasileira. Foi construída para denunciar a marginalidade da mulher num mundo machista e,

sendo autônoma, sábia, sensata, esteve acima da moralidade.

O narrador a define pelas cenas, por comparações, por metáforas… ressaltando a liberdade do

leitor em criar sua própria Elza. Ele cita que se há 50 leitores, existirão 51 Elzas diferentes, e não

quer impor a sua Elza aos leitores, mas que cada um continue com seu modelo. Porém, acaba

dando características que fazem com que definamos detalhadamente sua heroína.

Ele a compara, por exemplo, ao quadro de Rembrandt, a Betsabê, a do banho, contudo, mais

magra, de traços regulares. Assim, a personagem tem uma imagem que pode ser vista, e não

somente imaginada. Aconselha-nos, entretanto, a tirar o excesso de luz do quadro para vermos a

sua Fräulein, o que nos induz a imaginar uma pessoa sombria.

Contrapondo ao Romantismo, essa heroína, que não sabia ser meiga, não apresentava perfeição e,

para ser definida, o meio termo é, freqüentemente, empregado. O narrador diz que seu corpo não

é nem perfeito, nem clássico; que ela não é nem simpática, nem antipática; os cabelos eram

mutáveis, ora louros, ora sombrios; ela era, às vezes, professora, às vezes governanta, outras

amante sonhadora, e outras a prática mestra do amor. Uma verdadeira oscilação entre o “homem-

da-vida” e o “homem-do-sonho”.

Comenta-se a ambigüidade entre o músico Wagner como homem-do-sonho e o guerreiro

Bismarck como homem-da-vida, querendo demonstrar que, culturalmente, o alemão sublima a

civilização, o progresso, o Estado, e encarcera o “deus” que é o desejo, o gozo, o prazer, etc.

Fräulein é representante dessas duas faces, no Romance.

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O “alemão homem-do-sonho” é o europeu que sonha, religioso, sério, apegado à pátria e à

família, trapalhão, filósofo, obscuro, idealista, etc. enquanto que o “alemão homem-da-vida” é

seu lado prático, o homem que é mostrado, que a gente vê, grande homem, perfeccionista,

comerciante, etc. Indica-se, com essa dualidade, um universo onde a ordem está acima da

liberdade.

Há uma tentativa de criação de um personagem real, estando longe do peso divino dos nus

renascentistas ou da sensualidade das figuras de Scopas[4] e Leucipo[5]; não era bonita, tinha

traços regulares coloridos de cor real. Seu corpo não era perfeito, e isso não deveria enfraquecer a

estória, pois mostra honestidade e não provoca sonhos. Assim, o leitor moderno deveria estar

disposto a não querer sonhar, ou a sonhar com realismo.

Considerava a arte de ensinar o amor e o sexo como uma profissão oriunda de uma fraqueza.

Queria sinceridade nos acordos e na vida em si.

Estava tentando juntar dinheiro para voltar pra Alemanha, sua terra natal, de onde tinha muita

saudade, não conseguindo acostumar-se a vários hábitos brasileiros, como, entre outros, a

maneira barulhenta de se portar, mesmo em público (ela sente vergonha no trem, em uma viagem

que fizera com os Souza Costas ao Rio de Janeiro).

Metáfora

Segundo Dumarsais, citado por Herschberg Pierrot, a metáfora é uma figura pela qual transporta-

se o significado próprio de uma palavra a um outro significado, que só lhe convém em virtude de

uma comparação que está no espírito. Temos uma relação de substituição entre um comparante e

um comparado, em virtude da semelhança entre os significados.

Existem duas categorias de metáfora: in praesentia quando o comparado é expresso no enunciado

e in absentia quando somente o comparante é expresso. Por exemplo: “São tigres pois, no sentido

que mais convier a cada um, a governanta e o criado japonês dos Souza Costas.” (p. 96) Esta é

uma metáfora in praesentia que Mário utilizou para definir Fräulein e Tanaka, onde os

comparados, que são a governanta e o criado japonês, estão presentes na frase; mais além, no

entanto, refere-se aos dois utilizando a metáfora in absentia, ou seja, com a ausência dos

comparados: “O tigre alemão,… O tigre japonês…” (p. 97).

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Sintaticamente, as metáforas estão fundamentadas na categoria gramatical do termo metafórico e

na relação sintagmática entre o tal termo e o co-texto. Estão, assim, separadas em dois grupos:

1. As metáforas em que a relação metafórica se estabelece entre um termo com emprego próprio

e um termo metafórico, que pertencem à mesma parte do discurso. Elas correspondem à

categoria in praesentia, são nominais e dividem-se de acordo com seu quadro sintáxico em:

a. Atributivas (S1 – verbo ser – S2)[6]

b. Apositivas (S1 – vírgula – S2)

c. Determinativas (S1 – preposição – S2 = S1 de S2) - onde há uma relação polissêmica, tanto S1

como S2 pode ser o metafórico; a sintaxe e o sentido interagem.

2. As metáforas que consistem em uma relação entre um termo metafórico e um termo próprio

relevante de categorias gramaticais distintas. (Ex: Substantivo e Adjetivo / Substantivo e

Verbo...).

Podemos, na metáfora, ter motivações como a comparação e, também, a metáfora diegética, onde

os comparadores são escolhidos no contexto diegético imediato. Quanto às suas funções, temos a

metáfora-enunciado que permite a metáfora de invenção, com função cognitiva, torna-se um

meio de produzir o inédito ou de redescrever o real com o status próximo ao da ficção. A

metáfora também pode ter um papel didático, ou persuasivo, indicial, hermenêutico.

Faremos, a seguir, uma rápida distinção entre a metáfora “tecida” ou “fiada” e a alegoria. A

primeira, muito comum na retórica clássica, é definida por Michel Riffaterre, citado Herschberg

Pierrot, por como uma série de metáforas ligadas entre si pela sintaxe, que fazem parte de uma

mesma frase ou estrutura narrativa ou descritiva, e pelo sentido; cada uma exprime um aspecto

particular de um todo, coisa ou conceito, que representa a primeira metáfora da série. 

A segunda distingue-se da metáfora tecida porque constitui uma seqüência narrativa, ou uma

narração, onde todos os termos remetem a um sentido figurado; ela apresenta um aspecto literal

concreto que leva o leitor a um sentido abstrato – moral, político, teológico, etc.; freqüentemente

coloca em cena personagens com atributos e costumes que têm valores de signos e que se movem

em lugares e tempo onde são, eles mesmos, símbolos; às vezes tende a designar a personificação

de um valor abstrato (ex.: a Justiça representada pela imagem de uma mulher).

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Como vimos, vários são os termos usados para caracterizar a metáfora, podemos citar outros

como “comparação abreviada”, “contraste”, “analogia”, “similaridade”, “identidade”, “fusão”,

etc. Temos, ainda, nos nossos dias, classificações como “metáforas velhas”, “novas”, “de

invenção”, “cristalizadas”, etc. Porém, ela tem sido interpretada como um fenômeno abrangente

que atinge o sistema de pensamento, indo além da linguagem.

De acordo com Mário Vilela, a metáfora ganhou novo peso quando houve a proposta da técnica

da transferência, equivalente à valorização do valor e dinamismo comunicativos do texto

literário; ou seja, sua integração na poética, não detendo-se tanto nos conceitos de “imagem” e

“figura”, sem refugiar-se muito na retórica.

A metáfora definindo Fräulein Elza

O texto está crivado de metáforas interessantes, mas seria-nos demais extenso citar todas.

Estaremos escolhendo algumas, sem a intenção de desmerecer umas ou enaltecer outras, mas

faremos de maneira com que a intenção do autor seja mostrada, com o intuito de não tornar o

desenrolar cansativo ou repetitivo, porém, tentando não abstrair o que possa ser de relevada

importância com relação ao conteúdo temático e textual.

Mário de Andrade designa, freqüentemente, Elza, através de referências a coisas alheias, objetos,

etc. como podemos perceber na primeira metáfora utilizada no livro: “... Entrou de novo no

quarto ainda agitado pela presença do estranho. Lhe deu um olhar de confiança. Tudo foi

sossegando pouco a pouco”.(p.49). Temos duas metáforas verbais : “agitado” e “sossegando”. A

primeira com função qualificativa (adjetivo).

O quarto poderia ficar bagunçado, desarrumado, etc. se o estranho tivesse contribuído para isso,

mas vemos, pelo contexto, que a referência é Fräulein, foi ela quem ficou agitada, o verbo é

utilizado para mostrar sua agitação interior (dentro do quarto “agitado”); o olhar de confiança que

ela lançou sobre a peça teve efeito reflexivo e a sossegou, pois o quarto continuara o mesmo, não

houve mudança real do ambiente e sim, do estado emocional da personagem.

Da mesma forma, temos “Atravessou as roseiras festivas do jardim”.(p. 50) na mesma função que

a anterior, o verbo qualifica as roseiras metaforicamente, querendo mostrar a festividade das

pessoas da casa pela chegada da governanta, e sua satisfação por começar em mais um emprego.

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O sentimento de bem-estar segue-se quando Elza está em seu quarto onde “Pelas duas janelas

escancaradas entrava a serenidade rica dos jardins”. (p. 50), substantivo e adjetivo determinando

os jardins (metáfora determinativa) que não modificam o cenário real. Logo após, temos os

barulhos dos pássaros desestabilizando a serenidade da casa, diga-se, da governanta que se

incomoda com o atraso do almoço: “A bulha dos passarinhos arranhava o corredor”. (p. 51).

É interessante comentarmos a metáfora que define Elza em sua introdução na vida da família

Souza Costas. O narrador cita que ela foi desembaraçada, sendo isso uma facilidade das “raças

superiores”, e que começava como se estivesse recomeçando. Compara-a a uma família que

recebe um filho ausente por quinze dias, passa, imediatamente, à uma metáfora tecida e termina

por três metáforas atributivas:

Depois a mesma coisa recomeça, o polvo readquire o tentáculo que faltava. Com a mesma

naturalidade quotidiana, pratica o destino dele: prover e vogar. Sobe à tona da vida ou desce

porta a dentro, na profundeza marinha. Profundeza eminente respeitável e secreta. (…).

Elza é filho chegando do sítio ou mãe que volta de Caxambu. Membro que faltava e de novo

cresce. (p. 53).

Todo seu percurso como heroína é marcado pela pontualidade, rigidez nos horários e disciplina.

Logo que chega já determina as horas das lições e de tudo o que lhe diz respeito, é comparada às

máquinas numa metáfora atributiva e alegoria: “’Fräulein’ era (…). Nem antipática, nem

simpática: elemento. Mecanismo novo da casa. Mal imaginam por enquanto que será o ponteiro

do relógio familiar”. (p. 54).

Não era muito apreciada por essas qualidades, fazia as crianças repetirem sem cessar as palavras

em alemão, sempre muito disciplinada e pontual. Para mostrar isso, é utilizada uma metáfora da

categoria in absentia motivada por um advérbio, fazendo alusão ao cinema que, como vimos, será

característica da estrutura do texto: “Como é que o público podia se interessar por uma fita

dessas!”. (p. 54).

Sempre muito metódica, tinha como ensinar o amor muito bem definido pelo seu “deus

prisioneiro” que era os sentimentos, característica típica do homem-do-sonho: “Fräulein tinha um

método bem dela. O deus paciente o construíra, talqual os prisioneiros fazem essas catitas

cestinhas cheias de flores e de frutas coloridas. Tudo de miolo de pão, tão mimoso!” (p. 63).

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A metáfora in absentia está motivada por uma comparação (talqual). O substantivo “deus” é, na

verdade, tudo o que é sentimental, e compõe a metáfora juntamente com o adjetivo “paciente”.

Esse “deus” que é o sentimento em geral, foi ferido por Carlos mais adiante, quando este insiste

em encontrá-la para a primeira noite de amor: “Lhe machucara o deus encarcerado”. (p. 92).

As angústias, a luta entre a razão e os sentimentos, a dualidade entre o sonho e a realidade, são

sempre expressas nas metáforas, geralmente in absentia, do homem-do-sonho e homem-da-vida:

“Em vão o homem-do-sonho trabalhava teses e teorias. Em vão o homem-da-vida pedia vagares e

método, que estas coisas devem seguir normalmente até o cume do Itatiaia”. (p. 72-73). Era um

combate incessante, onde os sentimentos, o deus encarcerado trabalhava suas teses e teorias e, da

mesma forma, com a mesma intensidade, a praticidade pedia cautela para o alcance dos objetivos

– o cume do Itatiaia.

Mesmo a irritação por causa dos modos latinos era representada pelo deus aprisionado, bem

como o ideal, a honra, a pátria, foram representadas pela bandeira, numa alegoria:

De primeiro isso irritava bastante o deus encarcerado, e era um berreiro de atordoar dentro do

corpo dela. Achava que o ideal da honra era repetir aquela frase sue Dchiller botara na boca de

Joana D’Arc : “Não posso aparecer sem minha bandeira”, ser sincera. Mas qual, as mães

brasileiras, quando se tratava dos filhos, eram pouco patriotas, Fräulein fora obrigada a guardar a

bandeira. E não sei se o Deus encarcerado acabou se adaptando também, sei que não fez mais

chinfrim. (p. 85).

Mais além, continua fazendo uso do mesmo símbolo, a bandeira, para demonstrar, entre outras

características, o excesso de orgulho, hesitação e a praticidade: “Se compreende pois o abandono

em que vive a bandeira de Joana D’Arc. (…) Sempre fora, como a Joana de Schiller que não

podia aparecer sem sua bandeira.” (p. 86). O abandono é devido ao momento em que hesitou para

responder ao Souza Costas e, em seguida, responde, decidida a ficar, retomando a “bandeira”.

Apesar do combate, para Elza, a realidade crua, dura, áspera, sempre vencia: “A fala de Fräulein,

seca, riscava as palavras do ditado em explosões ácidas navalhando a entressombra”.(p. 75).

Temos uma metáfora adjetivada (seca) onde as sensações da audição e tato se misturam

formando uma sinestesia; uma verbal (riscava), motivada por uma função indicial num ponto de

vista atribuído à personagem que indica uma verdade geral, onde encontramos mais uma

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sinestesia (explosões – visão e audição / ácidas – tato). E o homem-do-sonho acaba por se

transformar: “Mas o homem-do-sonho dá um urro: Não! E vira chope”. (p. 131).

Em outro momento, quando estivera prestes a partir da casa, pensou em Carlos: “… Minuto

apenas. Varreu o caminho. (…) Um momento no escuro, os olhos inda pestanejaram. Não tinha

nada com isso: haviam de lhe pagar os oito contos. Mas agora tinha que dormir dormiu”. (p. 78).

Varreu o caminho, fazendo a metáfora retirar o lado sentimental de sua vida, era isso que o autor

vinha, inúmeras vezes, fazer com esse recurso da linguagem: trazer o idílio para a realidade;

mesmo expresso em verdades gerais: “As Lauras olharão sempre o céu! Os Felisbertos sempre o

chão”. (p. 80).

A natureza é um tema latente no romance, como parte das personagens. O tigre alemão e o tigre

japonês, metáfora usada diversas vezes em categorias e funções diversas, são um exemplo

característico do tema. Como são muitas, gostaríamos de citar partes de uma, que demonstra a

angústia de Fräulein e de Tanaka, vivendo num país estrangeiro sob as ordens de uma família

burguesa:

Apalermados pela miséria, batidos pelo mesmo anseio de salvação, sofrenados pelo fogaréu do

egoísmo e da inveja, na mesma rocha vão trêmulos se unir. A queimada esbraveja em torno. Os

guarantãs se lascam em risadas chocarreiras de reco-recos. A cascavel chocalha. A sucurana

prisca. As labaredas lambem a rocha. Pula uma irara, que susto! Peroba tomba. (…) Os dois

tigres ofegam.(…) Os dois tigres acabarão por desaparecer assimilados. (p. 98).

Outro momento forte, neste sentido é quando, num passeio pela Floresta da Tijuca, no Rio de

Janeiro, “Fräulein se confundia com a natureza”. (p.118) e “Adquirira enfim uma alma vegetal”.

(p.118). É interessante destacar a maneira como a metáfora é empregada pelo narrador, que

discorre, explica, refaz: “Porém eu escrevi que Fräulein era o guri do grupo… Depois corrigi para

animalzinho. Estou com vontade de corrigir outra vez, última. Fräulein é o poeta da exploração”.

(p. 118). Isso vem ressaltar sua inserção no romance: um narrador que conversa, discute, que é

“real”, erra, conserta, deixa aberturas para que a imaginação do leitor crie seus próprios

conceitos.

O autor termina o idílio, porém, continua a estória. A realidade depois do amor. Já no final do

livro, Fräulein encontra Carlos, por acaso, em um café, e seu deus manifesta-se pela última vez:

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“O deus soltou um gemido que nem urro. Esses deuses do norte são muito cheios de exageros”.

(p. 147).

O que desenvolvemos nesta dissertação teve o intuito de dar uma noção geral da maneira

modernista do autor definir Elza através de metáforas. Para Mário de Andrade, este recurso

estilístico é um veículo que conduz à imaginação, permitindo-nos ver a integração entre

“descrição” e “personagem”. Há uma fusão da metáfora na sua maneira de escrever, por causa da

linguagem extremamente corriqueira e familiar que emprega. Isto faz com que acabemos

passando por elas quase sem nos darmos conta. Ela surge naturalmente, estabelecendo a

comunicação entre texto-leitor.

O leitor faz sua mente trabalhar, decifrando as “charadas” durante todo o texto. Evidentemente,

quando nos deparamos com as metáforas, ainda que as mais evidentes, não atentamos para a

retórica, mas “aprendemos” com elas. Ocorre um processo cognitivo quanto à personagem

Fräulein. Nós a vemos, a formamos, assimilamos sua pessoa à partir das metáforas utilizadas.

 

Bibliografia:

ANDRADE, Mário de. Amar, verbo intransitivo. Belo Horizonte: Itatiaia, 1998.

HERSCHBERG PIERROT, Anne. Stylistique de la prose. Paris: Belin, 2003.

VILELA, Mário. A metáfora na instauração da linguagem: teoria e aplicação. In: Revista da

Faculdade de Letras. Línguas e Literaturas, 2ª série, vol. 13. Porto, 1996, p. 317-356.