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Cumpre-se este ano o trágico quadra- gésimo aniversário do assassinato do fundador e líder do PAIGC, Amílcar Cabral. Morto a 20 de Janeiro de 1973 em Conacry, nessa outra Guiné, em golpe meticu- losamente prepara- do pela PIDE, en- volvendo traições e cumplicidades ainda não total- mente esclarecidas, o grande dirigente e nacionalista afri- cano não assistiria às independências da Guiné-Bissau e de Cabo Verde que havia sonhado como um único país soberano e solidário. As comemorações não têm sido abun- dantes nos diferen- tes espaços lusófo- nos, assim como se tornou progres- sivamente mais limitado o conhe- cimento do seu pensamento, do seu legado político e cultural, enquanto a sua obra vasta aguarda publicação completa ainda por fazer precisamente quando, no pas- sado mês de Maio, a UNESCO em Dacar, no Senegal, lançou um grande projecto para recolher o seus textos, objectos e memórias. Talvez aqui por Macau, em sede desta plataforma que o território insiste, e bem, em querer continuar a fazer entre a China e os Países de Língua Portuguesa se possa um dia vir a encontrar a inteligência sufici- ente para publicar e, depois, estudar as obras completas de Amílcar Cabral lusofonias nº 08 | 05 de Agosto de 2013 Este suplemento é parte integrante do Jornal Tribuna de Macau e não pode ser vendido separadamente COORDENAÇÃO: Ivo Carneiro de Sousa TEXTOS: • Infância Difícil para Cultura muita • O Estudante de Agronomia em Lisboa • O Recenseamento Agrícola de Guiné-Bissau (1953-55) • A Fundação do PAI e o Massacre de Pidjiguiti • Um Líder Africano entre Humanismo e Revolução • ... Não, Poesia • Para ti, Mãe Iva • Evolução conceptual e real • Regresso Dia 12 de Agosto: Gilberto Freyre, 80 anos de Casa-Grande & Senzala APOIO: Amílcar Memórias e alguns Poemas Cabral 40 anos

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Cumpre-se este ano o trágico quadra-gésimo aniversário do assassinato do fundador e líder do PAIGC, Amílcar Cabral. Morto a 20 de Janeiro de 1973 em Conacry, nessa outra Guiné, em golpe meticu-losamente prepara-do pela PIDE, en-volvendo traições e cumplicidades ainda não total-mente esclarecidas, o grande dirigente e nacionalista afri-cano não assistiria às independências da Guiné-Bissau e de Cabo Verde que havia sonhado como um único país soberano e solidário. As comemorações não têm sido abun-dantes nos diferen-tes espaços lusófo-nos, assim como se tornou progres-sivamente mais limitado o conhe-cimento do seu pensamento, do seu legado político e cultural, enquanto a sua obra vasta aguarda publicação completa ainda por fazer precisamente quando, no pas-sado mês de Maio, a UNESCO em Dacar, no Senegal, lançou um grande projecto para recolher o seus textos, objectos e memórias. Talvez aqui por Macau, em sede desta plataforma que o território insiste, e bem, em querer continuar a fazer entre a China e os Países de Língua Portuguesa se possa um dia vir a encontrar a inteligência sufici-ente para publicar e, depois, estudar as obras completas de Amílcar Cabral

lusofoniasnº 08 | 05 de Agosto de 2013

Este suplemento é parte integrante do Jornal Tribuna de Macau e não pode ser vendido separadamente

COORDENAÇÃO:Ivo Carneiro de Sousa

TEXTOS:• Infância Difícil para Cultura muita• O Estudante de Agronomia em Lisboa• O Recenseamento Agrícola de Guiné-Bissau (1953-55)• A Fundação do PAI e o Massacre de Pidjiguiti• Um Líder Africano entre Humanismo e Revolução• ... Não, Poesia• Para ti, Mãe Iva• Evolução conceptual e real• Regresso

Dia 12 de Agosto:Gilberto Freyre, 80 anos

de Casa-Grande & Senzala

APOIO:

AmílcarMemórias e alguns PoemasCabral40anos

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II Segunda-feira, 05 de Agosto de 2013 • LUSOFONIAS

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LUSOFONIAS - SUPLEMENTO DE CULTURA E REFLEXÃO

Amílcar Cabral,40 anos:Memóriase alguns Poemas

Ivo Carneiro de Sousa

Amílcar Lopes da Costa Ca-bral, de seu nome comple-

to, nasceu a 12 de Setembro de 1924 em Bafatá, na Guiné-Bis-sau. O registo civil do seu nas-cimento ainda esclarece que o seu pai, Juvenal Cabral, deci-diu escrever Hamílcar, com um estridente H inicial, em memó-ria do grande general africano que tinha feito tremer o pode-roso império romano. Latinas influências presentes também no nome paterno: o avô de Amílcar Cabral baptizou o seu filho com esse preciso nome em que se recordava o grande poeta Décimo Júnio Juvenal (c. 55/60-c. 127) que, nas suas cé-lebres Sátiras, havia cantado as proezas desse grande Hamilcar Barca (c. 275 – 228 AC) durante a primeira guerra púnica, esse mesmo que foi pai desse ou-tro temível general cartaginês, Aníbal (247 – 183/182 BC), mais do que famoso por ter atraves-sado os Pirinéus e os Alpes à frente de um numeroso exérci-to que, incluindo 37 elefantes, haveria de semear o pânico no coração da Itália entre as pode-rosas legiões romanas.

Juvenal Cabral era um mes-tre-escola sem formação aca-démica que, no generoso con-texto democrático de desen-volvimento da instrução públi-ca promovido pela I República Portuguesa, se tinha instalado em Bissau desde 1911 e leccio-nado desde 1913 em várias re-giões da Guiné-Bissau, nomea-damente em Cacine e Geba. Juvenal era oriundo de uma fa-mília rural da ilha de Santiago de onde saíram vários professo-res e padres, reconhecidos por “educados” à época.

A mãe de Amílcar Cabral, Iva Pinhel Évora, vinha de uma família ainda mais humilde dessa mesma ilha de Santiago constantemente fustigada pe-las mais mortais secas. Como explicou nas suas Memórias e Reflexões, publicadas na Praia, em 1945, Juvenal Cabral acre-ditava que estes desastres não tinham apenas causas natu-rais, podendo ser evitados com adequada intervenção política para o desenvolvimento de no-vos projectos de fomento eco-nómico e agrícola do arquipéla-go. Contudo, como para muitos outros, o fado de Santiago mul-tiplicava emigrações sem fim, algumas das quais se dirigiam perto para essa Guiné que,

com capital em Bissau, é um dos países africanos com mais rica rede hidrográfica e cober-tura vegetal: Juvenal para lá emigrou com a família.

No seu texto de memórias, o pai de Amílcar Cabral regis-tou extasiado as diferenças muitas entre a terra verde e rica da Guiné e o seu arqui-pélago de secas, penedios e misérias: “ter deixado as ro-chas nuas da Praia Negra, da Achada Grande, do Lazareto, e cujo aspeto, severo e tris-te, parece simbolizar o sofri-mento e a dor, meus olhos, maravilhados, contemplaram sem cessar a paradisíaca ma-jestade da flora que, de modo misterioso, parece emergir do mar! Por toda a parte árvores frondosas, lindos e esquisitos arbustos que, verdejantes, se espalham pelo solo como tapetes no chão. Tudo isto é opulência e vigor, é maravilha que encanta, é riqueza que seduz e predispõe um rapaz a encarar com optimismo a vida neste país.”

Até aos sete anos, aprendeu por aqui Amílcar Cabral as pri-meiras (e muitas outras...) le-tras com o seu pai que lhe incu-tiu o meticuloso gosto pelo es-tudo, a moral da generosidade e, acima de tudo, um enorme amor e ainda mais saudade por Cabo Verde. Em 1931, Amílcar e a sua mãe regressam ao ar-quipélago, depois acompanha-dos pelo pai no ano seguinte. Nestes anos, a família gozou um período de alguma prospe-ridade quando Cabo Verde tam-bém alimentou essa metrópole que fornecia lucrativamente os diferentes lados da II Guerra Mundial. Vieram, porém, as se-cas violentas que, entre 1941 e 1948, causaram mais de 5.000 mortos. Juvenal Cabral expli-cava nos seus textos que qua-se tudo se podia evitar com a introdução de novas técnicas agrícolas, plantação maciça de árvores, investimento na irriga-ção e, sobretudo, reorganiza-ção da propriedade dos grandes latifúndios. Conselhos sem eco: a família encontrou-se entre a maioria dos que não tinha meios de subsistência, obrigan-do a mãe de Amílcar Cabral a costurar diariamente para fora e a aceitar um emprego menor num armazém de distribuição de peixe.

Entretanto, Amílcar tinha es-

tudado na escola primária da Praia, passando depois para o Liceu (adivinhe-se o nome...) Infante D. Henrique (que Gil Eanes passaria a ser em novo edifício) no Mindelo, na ilha de São Vicente. Como muitos outros adolescentes, acordou para todas as excitações da vida através da poesia, logo reflectindo em juvenis poemas sobre essa contradição parado-xal entre umas ilhas que apai-xonavam muitos poetas mas eram um inferno para os seus habitantes que só queriam mesmo fugir, escapar, emigrar.

Uma obsessão também aco-lhida pelo jovem Cabral que, aos 18 anos, escreve um de-morado conto Fidemar (Filho do Mar) para narrar o itinerá-rio de um herói revolucionário que parte da sua ilha miserá-vel com a esperança de um dia regressar para a libertar. Uma ideia de libertação que sorve igualmente os fragmentários ecos do fim da II Guerra Mun-dial que chegam a Cabo Verde, devidamente escutados por Cabral que, a propósito, escre-ve um texto de reflexão inti-tulado Hoje e Amanhã, mais tarde publicado, em 1949, sob o pseudónimo de Arlindo Antó-nio, no segundo volume do bo-letim Mensagem da Casa dos Estudantes do Império, em Lis-boa. Nesse texto premonitório das suas grandes ideias políti-cas declarava com mitificado entusiasmo: “na Terra existe um único Povo a que perten-cem todas as Nações. Do caos surgirá um mundo novo e me-lhor, o que dignificará o ho-mem preto ou branco, verme-lho ou amarelo.”

Em 1944, concluídos os es-tudos liceais com as mais altas classificações, o jovem Amílcar Cabral regressa à Praia, a ca-pital de Cabo Verde, para tra-balhar na Imprensa Nacional, embaraçando-se rapidamente com as rotinas de uma buro-cracia mais do que medíocre. Continuou a escrever os seus poemas, vários dos quais ofe-receu a João de Deus Lopes da Silva (o irmão do grande escri-tor, poeta e linguista que foi Baltasar Lopes da Silva, um dos fundadores da revista Clarida-de, em 1936 ) que, na altura comandante do navio Nossa Senhora dos Anjos, promoveu a sua publicação num semanário dos Açores.

InfâncIa DIfícIl para cultura MuIta

lusofonias

Cumpre-se este ano o trágico quadragésimo aniversário do assassinato do fundador e lí-

der do PAIGC, Amílcar Cabral. Morto a 20 de Ja-neiro de 1973 em Conacry, nessa outra Guiné, em golpe meticulosamente preparado pela PIDE, envolvendo traições e cumplicidades ainda não totalmente esclarecidas, o grande dirigente e nacionalista africano não assistiria às indepen-dências da Guiné-Bissau e de Cabo Verde que havia sonhado como um único país soberano e solidário. As comemorações não têm sido abun-dantes nos diferentes espaços lusófonos, assim como se tornou progressivamente mais limitado o conhecimento do seu pensamento, do seu le-gado político e cultural, enquanto a sua obra vasta aguarda publicação completa ainda por fazer precisamente quando, no passado mês de Maio, a UNESCO em Dacar, no Senegal, lançou um grande projecto para recolher o seus textos, objectos e memórias. Talvez aqui por Macau, em sede desta plataforma que o território insis-te, e bem, em querer continuar a fazer entre a China e os Países de Língua Portuguesa se possa um dia vir a encontrar a inteligência suficiente para publicar e, depois, estudar as obras com-pletas de Amílcar Cabral e, com ele, resgatar

os grandes líderes e pensadores nacio-nalistas que multiplicaram em in-

dependências a constelação de países lusófonos soberanos.

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LUSOFONIAS • Segunda-feira, 05 de Agosto de 2013 III

O EstuDantE DE agrOnOMIa EM lIsbOa

Em Outubro de 1945, com gran-de dificuldade, Amílcar Cabral

conseguiu ganhar uma da dúzia de bolsas oferecidas oficialmente a estudantes da Guiné e Cabo Verde para seguirem para as Universida-des que só existiam na metrópole. Chega a Lisboa com a vitória dos Aliados sobre o fascismo, assiste a várias manifestações que, depois de relativamente toleradas, são fortemente reprimidas pela di-tadura de Salazar. Cabral chegou atrasado, só em Dezembro, ao ano lectivo de 1944-45 do Instituto Su-perior de Agronomia onde queria estudar para ser engenheiro agró-nomo. Numa classe de 220 alunos – seriam depois apenas 25 ao che-garem ao terceiro ano –, Amílcar prontamente daria nas vistas por ser o único africano e um dos me-lhores alunos. A sua colega e, mais tarde, primeira esposa, Maria He-lena Vilhena Rodrigues, ainda re-cordava que o seu futuro marido em muito se destacava de todos os outros: “como ele era o único negro, isso era bastante óbvio. Ele não tinha feito os exames de acesso à Universidade, mas dis-tinguiu-se imediatamente ao tirar as melhores notas nos exames de Matemática. Todos falavam dele, elogiando a sua inteligência, era atraente e descontraído. Quanto a actividades políticas, lembro--me dos meus colegas recolhe-rem assinaturas para a adesão aos movimentos anti-fascistas de es-tudantes democráticos. Nas reu-niões, ele costumava liderar os debates visto que se expressava de forma eloquente.”

É nestes anos de frequência uni-versitária em Lisboa que, marcados pelo ambiente do pós-guerra com a sua grande circulação de ideias, o nosso estudante de Agronomia leria uma das obras que confessou reite-radamente terem mudado a sua vi-são do Mundo e da África: Léopold Senghor, Anthologie de la Nouve-lle Poésie Negre et Malgache de

Langue Française, livro publicado em Paris, em 1948. Amílcar Cabral entusiasmou-se ao frequentar es-tes poemas africanos numa língua francesa que viria a cultivar na sua expressão oral e escrita com de-senvolta elegância. Mas que nunca foi obstáculo, antes complemento, para a sua sentida defesa da língua portuguesa enquanto língua de li-

bertação e de cons-trução de novos es-tados soberanos.

No final do ano académico de 1949, Cabral regressou ao seu arquipélago de-terminado a reve-lar Cabo Verde aos próprios cabover-dianos, começan-do a 8 de Setem-bro uma série de palestras na rádio sobre aspectos geo-físicos do território multi-insular. Um projecto em tudo semelhante ao con-temporâneo movi-mento Vamos Des-cobrir Angola lan-çado por um grupo de intelectuais em torno do poeta Vi-riato da Cruz. No seu regresso a Lis-boa, Amílcar Ca-bral começa a dar passos no sentido de encontrar for-mas de organiza-ção política capa-zes de enfrentar o

dilema debatido acaloradamente com alguns outros estudantes uni-versitários oriundos das africanas colónias portuguesas: tornarem-se assimilados, como diziam, pela sua educação superior, ou mobilizar--se cultural e politicamente para desafiar o sistema de dominação colonial. Participa, então, no MUD juvenil e no Movimento da Paz, tentando sem sucesso com outros colegas conquistar a direcção da Casa dos Estudantes do Império (1944-1965), depois organizando o Centro de Estudos Africanos no final de 1951, logo estabelecendo contactos regulares com a célebre revista Présence Africaine, funda-da em Paris por Alioune Diop, em 1947.

Neste agitado período, Amílcar Cabral tinha já concluído os seus cursos universitários. Em 1950, diploma-se em Agronomia com 15 valores (no máximo de 16), fina-lizando no ano seguinte graças a uma bolsa da Missão dos Estudan-tes do Ultramar os estágios de En-genharia Agrónoma e Engenharia Agrónoma Colonial com 18 valores entre os 19 possíveis. Encontrava--se a estagiar na Brigada dos Solos de Santarém, da Estação Agronó-mica Nacional, quando recebe a notícia do falecimento do seu pai, Juvenal Cabral. Decide, então, aceitar um emprego como enge-nheiro agrónomo contratado ofe-recido pela Repartição Provincial dos Serviços Agrícolas e Florestais da Guiné Portuguesa, opção que haveria de transformar ainda mais radicalmente o seu pensamento e acção políticos.

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aMílcar cabral cOM MarIa HElEna VIlHEna rODrIguEs na sErra DE sIntra, DurantE a ExcursãO DE fIM DO cursO DE agrOnOMIa

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IV Segunda-feira, 05 de Agosto de 2013 • LUSOFONIAS

MarIa HElEna rODrIguEs E aMílcar cabral,cOM sua a fIlHa ana luísa cabral

Recorde-se que, quando regressou a Bissau, em 1952, Amílcar Cabral aproximou-se imediatamente

dos seus antigos colegas do Liceu do Mindelo que se encontravam a trabalhar na Guiné, normalmente em posições elevadas da administração ou em empresas privadas, sobretudo estrangeiras. Entre estes cabover-dianos emigrados procurou encontrar apoios políticos para o seu sonho de emancipação. Os muitíssimo pou-cos que o escutaram na altura haveriam de se tornar vinte anos depois os líderes da Guiné-Bissau e Cabo Verde independentes: o seu meio-irmão Luís de Almei-da Cabral (1931-2009), nascido em Bissau, seu constan-te seguidor, viria ser o primeiro presidente da Guiné--Bissau até ao conhecido golpe militar liderado pelo seu então primeiro-ministro, Nino Vieira, a 14 de No-vembro de 1980; Aristides Pereira (1923-2011), nascido na ilha da Boa Vista, emigrante trabalhador nas teleco-municações de Bissau, seria o primeiro presidente de Cabo Verde até 1991, não sem antes ter respondido ao golpe militar de Nino Vieira acabando com a direcção bicéfala do PAIGC, criando o caboverdiano PAICV, assim levando a que os dois países vivessem de costas volta-das por muitos anos.

Fora de um muito pequeno punhado de apoiantes destas condições, o engenheiro (como passou a ser co-nhecido um pouco por toda a Guiné) encontrou mais apoios na sua unidade agrícola experimental de Pessu-bé e, depois, a simpatia e interesse de muitos chefes comunitários e camponeses anónimos espalhados pelo país. É neste contexto de multiplicação de contactos e de sensibilização política que aparece em 1955 o MING (Movimento Nacional para a Independência da Guiné) que, animado por José Francisco Gomes e Luís da Silva “Tchalumbé”, acabaria por se dissolver no processo de-morado de criação do PAIGC.

Assim, na sua primeira visita autorizada à Guiné para rever a família, Amílcar Cabral dirige a reunião his-tórica que, provavelmente a 19 de Setembro (a data exacta ainda é discutida...) de 1956, decidiu fundar o partIDO afrIcanO Da InDEpEnDêncIa – unIãO DOs pOVOs Da guI-né E cabO VErDE, conhecido na altura simplesmente por PAI. Para além de Cabral, estiveram presentes apenas mais cinco pessoas: Aristides Pereira, Luís Cabral, Fer-nando Fortes e Júlio de Almeida (funcionário na Granja de Pessubé) eram caboverdianos, mais Elisée Turpin, o único guineense, na altura funcionário da companhia francesa SCOA. O PAI viveria quatro duros anos de clan-destinidade até encontrar, desde 1960, essa base se-

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aMílcar cabral, nO IntErIOr Da guIné,utIlIzanDO uM tEODOlItO para DEfInIçãO DE tIrO DE artIlHarIa

aMílcar cabral E OutrOs cOMpanHEIrOs, a bOrDO DE uMa canOa,a caMInHO DO I cOngrEssO DO paIgc, cassacá, 1964

O rEcEnsEaMEntO agrícOla Da guIné-bIssau (1953-55)

A 20 de Outubro de 1952, a bordo do navio Ana Mafalda, com 28

anos de idade, o agora engenheiro agrónomo Amílcar Cabral regressa a Bissau. A sua mulher, Maria Helena Rodrigues, engenheira silvicultora, chegaria quase dois meses depois. Torna-se rapidamente adjunto do Chefe da Repartição Provincial dos Serviços Agrícolas e Florestais (che-garia mesmo a ser chefe interino e até Inspector Geral do Comércio, por substituição) e Director do Posto Agrícola Experimental de Pessubé. O casal instalou-se, por isso, na casa posta à disposição do director nessa Granja de Pessubé (como era mais conhecida) que, distante do centro de Bissau, se alargava por 400 hecta-res em que se reuniam espécies flo-restais e fruteiras, mais as verduras, os cheiros e os legumes que se distri-buíam entre os altos administradores e oficiais portugueses.

Apesar de ser uma das principais realizações dos serviços agrícolas co-loniais instalados na Guiné, a estação praticamente não fazia investigação, formação ou experimentação, assim ajudando muito remotamente os camponeses da colónia que eram, aliás, considerados responsáveis por perpetuarem uma agricultura con-siderada de subsistência, primitiva e apenas “indígena”. A Granja era regularmente mais utilizada para pi-queniques, festas e passeios do pes-soal administrativo colonial do que como verdadeira estação agronómi-ca, pelo que, desde a sua chegada, o Engº. Amílcar Cabral tratou, em coe-rência, de emendar as coisas: inves-tigou técnicas agrícolas, promoveu ensaios de adaptação sobre o arroz, cana-de-açúcar, mancarra, banana e algodão, estudou pragas e doenças, fez pesquisas em sementes locais e apurou as possibilidades de desen-

volvimento de novas espécies como o sésamo, girassol e soja. Cabral chegou mesmo a ligar os serviços da estação aos outros existentes na região, especialmente no Senegal, apresentou comunicações cuidadas em seminários fora da Guiné, convi-dou especialistas e técnicos estran-geiros.

Amílcar Cabral tinha sido convida-do a trabalhar na Guiné para, prio-ritariamente, coordenar o Recensea-mento Agrícola da colónia. O que fez com a maior qualidade científica, técnica e elevado profissionalismo. Durante mais de dois anos, o nosso engenheiro percorreu todos os re-cantos da Guiné, contactou chefes de etnias e tabancas, falou com sim-ples camponeses, jovens e mulheres, observou atentamente solos e cultu-ras, fez de etnógrafo ao recensear pormenorizadamente tradições e folclores, vestiu-se de sociólogo ao desfibrar estruturas sociais, assim acumulando uma experiência do ter-reno que haveria de se mostrar guia maior na ulterior luta armada contra o colonialismo português.

O seu relatório de recenseamento agrícola da Guiné, muito ignorado pelas autoridades coloniais, perma-nece como um dos melhores e mais sólidos estudos sobre a paisagem ecológica, comunidades agrícolas e estruturas agrárias da Guiné-Bissau. Na verdade, Amílcar Cabral identi-ficou qualificadamente a tripla es-trutura de floresta tropical, savana e agricultura comunitária, percebeu as principais formas de domestica-ção humana do ambiente, estudou especializadamente os sistemas de rotação e pousio prolongados, a iti-nerância agrícola ou as queimadas sazonais, preocupando-se ainda com a profunda alteração da biodiversida-de causada pela expansão agrícola e

comercial do amendoim (que macar-ra se diz na Guiné-Bissau). Um aviso agora com seis décadas que, talvez por muitíssimo pouco lido, certa-mente deve ter caído em saco roto: mais intensamente a partir dos prin-cípios de 1980, as estruturas agrárias identificadas tão rigorosamente por Amílcar Cabral têm vindo a ser qua-se completamente substituídas por pousios curtos e essa cultura per-mamente do cajú que, mobilizando hoje 85% da população, se vazou em muito dominante riqueza do país (na verdade, tornou o país mais pobre e alguns grandes proprietários, in-termediários e comerciantes muito mais ricos...).

Nos primeiros meses após chegar a Bissau, pelos finais de 1952, Ca-bral passa à acção política, tentan-do organizar um Clube Desportivo e Recreativo de Bissau, incluindo bi-blioteca, reservado exclusivamente a guineenses, todos e sem excepção.

A proposta caiu mais do que mal entre o governador e as autoridades coloniais portuguesas que recusa-ram. Nos registos da PIDE ficou de-pois lavrada a fatal informação de subversão: “o Eng.º Amílcar Cabral e a sua mulher comportaram-se de maneira a levantar suspeitas de acti-vidades contra a nossa presença nos territórios de África com exaltação de prioridade de direitos dos nativos e, como método de difundir as suas ideias por meios legalizados, o Eng.º pretendeu e chegou a requerer jun-tamente com outros nativos, a fun-dação de uma agremiação desporti-va e Recreativa de Bissau, não tendo o Governo autorizado”.

Acabado o seu demorado e porme-norizado trabalho (com toda a pro-priedade...) de campo, mal fechado o seu relatório final do recensea-mento agrícola da Guiné-Bissau, em

Março de 1955, o governador convida o nosso activo engenheiro a sair de-finitivamente da Guiné em avião da Air France, acusado de propagar pe-rigosas ideias independentistas. Fica apenas autorizado a regressar uma vez por ano ao território para visitar a família, mas obrigado a fazer o con-veniente requerimento.

O engenheiro agrónomo encontra prontamente trabalho em Angola dirigindo uma equipa de estudo de solos na Sociedade Agrícola do Cas-sequel, proprietária, entre outras coisas, de uma enorme plantação de cana-de-açúcar na Catumbela com o respectivo privado caminho-de-ferro. Desde 1956, Amílcar Cabral torna-se também colaborador extraordinário e investigador na Junta de Investigação do Ultramar, ocupando idêntica posi-ção, desde 1958, na Direcção Geral dos Serviços Agrícolas, em Lisboa. Na primeira instituição chega, em 1957, a Chefe de Secção da Brigada de Es-tudos de Defesa Fitossanitária, e na segunda dirige a Secção do Laborató-rio da Defesa Fitossanitária dos Pro-dutos Armazenados. Em 1959, é ao Engº. Amílcar Cabral que a Junta de Investigação do Ultramar encomenda os planos de defesa fitossanitária do arroz e do amendoim da Guiné, a que se seguem os estudos das condições fitossanitárias dos porões dos navios mercantes e dos entrepostos do por-to de Lisboa.

Até aos princípios de 1960, Cabral publica 41 artigos científicos nestas áreas da sua especialidade para, de-pois, o engenheiro agrónomo se ver definitivamente obrigado a ceder completamente todo o protagonismo ao líder político do movimento de li-bertação da Guiné e Cabo Verde que, fundado sete anos antes em Bissau, se acolhia à Guiné-Conacry de Sekou Touré, independente desde 1958.

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LUSOFONIAS • Segunda-feira, 05 de Agosto de 2013 V

Recorde-se que, quando regressou a Bissau, em 1952, Amílcar Cabral aproximou-se imediatamente

dos seus antigos colegas do Liceu do Mindelo que se encontravam a trabalhar na Guiné, normalmente em posições elevadas da administração ou em empresas privadas, sobretudo estrangeiras. Entre estes cabover-dianos emigrados procurou encontrar apoios políticos para o seu sonho de emancipação. Os muitíssimo pou-cos que o escutaram na altura haveriam de se tornar vinte anos depois os líderes da Guiné-Bissau e Cabo Verde independentes: o seu meio-irmão Luís de Almei-da Cabral (1931-2009), nascido em Bissau, seu constan-te seguidor, viria ser o primeiro presidente da Guiné--Bissau até ao conhecido golpe militar liderado pelo seu então primeiro-ministro, Nino Vieira, a 14 de No-vembro de 1980; Aristides Pereira (1923-2011), nascido na ilha da Boa Vista, emigrante trabalhador nas teleco-municações de Bissau, seria o primeiro presidente de Cabo Verde até 1991, não sem antes ter respondido ao golpe militar de Nino Vieira acabando com a direcção bicéfala do PAIGC, criando o caboverdiano PAICV, assim levando a que os dois países vivessem de costas volta-das por muitos anos.

Fora de um muito pequeno punhado de apoiantes destas condições, o engenheiro (como passou a ser co-nhecido um pouco por toda a Guiné) encontrou mais apoios na sua unidade agrícola experimental de Pessu-bé e, depois, a simpatia e interesse de muitos chefes comunitários e camponeses anónimos espalhados pelo país. É neste contexto de multiplicação de contactos e de sensibilização política que aparece em 1955 o MING (Movimento Nacional para a Independência da Guiné) que, animado por José Francisco Gomes e Luís da Silva “Tchalumbé”, acabaria por se dissolver no processo de-morado de criação do PAIGC.

Assim, na sua primeira visita autorizada à Guiné para rever a família, Amílcar Cabral dirige a reunião his-tórica que, provavelmente a 19 de Setembro (a data exacta ainda é discutida...) de 1956, decidiu fundar o partIDO afrIcanO Da InDEpEnDêncIa – unIãO DOs pOVOs Da guI-né E cabO VErDE, conhecido na altura simplesmente por PAI. Para além de Cabral, estiveram presentes apenas mais cinco pessoas: Aristides Pereira, Luís Cabral, Fer-nando Fortes e Júlio de Almeida (funcionário na Granja de Pessubé) eram caboverdianos, mais Elisée Turpin, o único guineense, na altura funcionário da companhia francesa SCOA. O PAI viveria quatro duros anos de clan-destinidade até encontrar, desde 1960, essa base se-

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aMílcar cabral E OutrOs cOMpanHEIrOs, a bOrDO DE uMa canOa,a caMInHO DO I cOngrEssO DO paIgc, cassacá, 1964

aMílcar cabral E MárIO pIntO DE anDraDE, KHartuM, 1969 Arquivo Mário Pinto de AndrAde • FundAção Mário SoAreS

a funDaçãO DO paI E O MassacrE DE pIDjIguItI

gura na Guiné-Conacry para onde se transferiu a sua direcção e, com ela, deixou mesmo Cabral de ser o engenheiro agrónomo e o investigador admirado tan-to por académicos como por simples camponeses das mais remotas áreas da Guiné. Neste período de grande resguardo do PAI organiza-se igualmente, em princí-pios de 1958, o MLG (Movimento para Independência

da Guiné), reunindo personagens como João Rosa (um guarda-livros na empresa francesa NOSOCO, grande colaborador de Amílcar Cabral), César Fernandes, La-dislau Justado Lopes, Tomás Cabral de Almada, José Ferreira de Lacerda e o célebre Rafael Barbosa que, tendo sido dirigente importante do PAIGC, haveria de aparecer no contexto do assassinato de Amílcar Cabral a apoiar publicamente a política de chamada “recon-ciliação” promovida pelo governador português que, à época, era o conhecido general António de Spíno-la, homem suficiente arguto para disseminar também essas campanhas “psicológicas” em que se acusavam os caboverdianos de serem o verdadeiro problema da Guiné. Preso logo depois da independência final da Guiné-Bissau, em 1975, Rafael Barbosa acabaria por ser libertado com o golpe de Nino Vieira com quem partilhava a mesma etnia papel.

Seja como for, o MLG aparece num contexto histórico marcado pelas sucessivas independências concretiza-das e anunciadas nas colónias francesas na África Oci-dental e, especialmente, por uma grande mobilização de muitos activistas guineenses em torno da campanha presidencial de Humberto Delgado, cujos boletins de voto foram abundantemente distribuídos no território. Muitas cartas, declarações e petições em circulação pública, depois dirigidas ao governo provincial e cen-tral seriam completamente ignoradas pelo poder da ditadura em Lisboa, frustrando-se rapidamente quais-quer esperanças de transição pacífica negociada para independência da colónia tanto como ruíram as espe-ranças de milhões de portugueses com a conhecida chapelada eleitoral que derrotou apenas oficialmente o General Sem Medo para colocar na presidência de Portugal o contra-almirante Américo Thomaz. Nada de novo seguiria para as colónias portuguesas, para além de cosméticas reformas de estatutos e requalificações administrativas.

Neste período de protecção do PAI e, em contras-te, de várias actividades promovidas (ou, pelo menos, posteriormente reivindicadas) pelo MLG, conquanto muitas vezes partilhando espaços semelhantes e até os mesmíssimos activistas, Bissau era uma cidade agi-tada por um comércio que vivia em grande parte des-sa agricultura desprezivelmente dita “indígena”, mas que produzia o arroz e, principalmente, a mancarra que, em bruto ou em óleo, muitas empresas portu-DOc. IncluíDO nO DOssIEr IntItulaDO ManuscrItOs

DE aMílcar cabral. nOta DE aMílcar cabral para arquIVO: “rEunIãO a 3 DE agOstO nO cEntrO 68” CONTINUA NA PÁGINA SEGUINTE >

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VI Segunda-feira, 05 de Agosto de 2013 • LUSOFONIASlusofonias

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guesas e estrangeiras exportavam lucrativamente para os mercados europeus e, ainda que em menor escala, dos Estados Unidos. Destacava-se neste ne-gócio a presença da grande empresa francesa NO-SOCO (Nouvelle Société Commerciale) que, com o seu grande e imaculado edífico branco em Bissau, tinha interesses, armazéns e escritórios comerciais espalhados por toda a África ocidental francófona. Francesa e muita activa era também a companhia SCOA (Société Commerciale de l’Ouest Africain), mas a concorrência não era facilitada pelas várias empresas portuguesas sediadas em Bissau: Barbo-sa & Comandita, Álvaro Camacho, Sociedade Co-mercial Ultramarina e, sobretudo, a Casa António Silva Gouveia que representava os interesses da poderosa CUF (Companhia União Fabril). Grande comerciante, ex-marinheiro e antigo capitão de navios, Gouveia tinha sido deputado pela Guiné, desde 1911, na Câmara dos Deputados da I Repú-blica, ligou-se ao Partido Republicano Evolucionista de António José de Almeida e assim desenvolveu abundantes negócios com a CUF que, originada ain-da em 1865, era, de muito longe, o maior grupo económico português que detinha já pela década de 1950 fortes posições nas economias das coló-nias, do transporte marítimo à exploração mineira, do comércio às indústrias. O grande conglomerado consolidara um monopólio de tal forma eficaz no arroz, amendoim e pasta de papel da Guiné que se dizia ser o território um quintal da CUF. A verdade, porém, é que parte importante do comércio inter-no guineense escorria por outros intervenientes, alargando-se dos pequenos comerciantes libaneses de Bissau (Mamud El Awar, Michel Ajouz, Aly Sou-leiman e outros) aos muitos djilas que, almocreves ambulantes, vendiam pelos sítios mais recônditos da Guiné.

As grande empresas comerciais possuíam tam-

bém as indispensáveis frotas marítimas e fluviais que asseguravam tanto a circulação das produções internas de mancarra e arroz, sobretudo através do rio Geba, como a sua exportação externa, aqui se destacando a Companhia Nacional de Navegação que, inaugurada em 1956 pela CUF, visava assegu-rar os tráficos de mercadorias entre as colónias e para Portugal. Eram estas empresas com predomi-nância para o monopólio da CUF a imporem salá-rios, preços de serviços de intermediação, trans-porte e armazenagem, para além dos preços pagos aos produtores. Em 1959, ao contrário das outras firmas, a Casa Gouveia da CUF não actualizou os salários dos estivadores, marinheiros e outros tra-balhadores envolvidos nestes movimentos comer-ciais, tendo-se progressivamente multiplicado e radicalizado os protestos. A 3 de Agosto de 1959, os trabalhadores do cais de Pidjiguiti e muitos outros populares de Bissau decidem marchar em direcção à sede da António Silva Gouveia: o confronto com as forças da ordem torna-se praticamente inevitá-vel e a repressão muito violenta dos manifestan-tes salda-se entre os 16 mortos reconhecidos ofi-cialmente e os 50 (para algumas fontes até mais), numerosos feridos e muitos encarcerados. O trági-co (e estúpido) episódio incidental que, no campo da agitação política, parece ter tido mais alguma acção do MLG do que directamente do PAI, ficaria conhecido por massacre de Pidjiguiti. Foi, contudo, rapidamente criticado tanto pelos administradores locais como pelos responsáveis militares portugue-ses que enviaram, ainda em 1959, um relatório de análise da situação da Guiné em que se sublinhava: o agravamento do incidente deu-se devido à falta de preparação dos agentes da PSP que, impotentes para actuar de outra forma, fizeram uso de armas de fogo. Independentemente dos debates ociosos sobre o exacto número de vítimas ou a qualificação do incidente, a verdade é que a repressão policial e as mortes acabariam, como sempre acontece

nestes casos, por serem devidamente convocadas posteriormente pelas habituais narrativas tanto justificativas como heróicas dos movimentos de li-bertação que, como em todos os processos revolu-cionários históricos, sempre precisam de bandeiras e mártires que, neste episódio, existiram tragica-mente mesmo.

Amílcar Cabral recebe a dramática notícia em trânsito para Angola, mas consegue ainda deslocar--se entre 14 e 21 de Setembro de 1959 a Bissau, a sua última visita autorizada. Tinha acabado de per-correr os países africanos recentemente indepen-dentes – Gana (6 de Março de 1957) e Guiné-Conacry (2 de Outubro de 1958) – e a Libéria (independente desde 1847), estabelecendo contactos com os par-tidos que, no Congo-Kinshasa (hoje República De-mocrática do Congo) e no Senegal, se preparavam para abandonar defintivamente a África Ocidental Francesa em 1960. Conseguiu reunir apoios e muitas promessas, nem sempre depois concretizados, para o desenvolvimento da luta anti-colonial na Guiné--Bissau. Depois, numa reunião em Bissau que esta-ria na base da progressiva unificação dos activistas pela independência, decide-se a radicalização da luta, a sua deslocação para os campos da Guiné, a convocação de mais solidariedade internacional, o envio de protestos e pedidos de negociações ao governo de Lisboa que, como seria de esperar, nem sequer se deu ao trabalho de responder. Transferida a direcção do movimento de libertação para Cona-cry, Cabral lidera, em Agosto de 1960, a delegação que vai encontrar apoio na República Popular da China e descobrir inspiração na formidável mobili-zação camponesa que, em longa marcha, desagua-ra na Revolução Chinesa de 1949. A 8 de Outubro, o movimento adopta definitivamente a sigla PAIGC para, a 18 de Abril de 1961, colaborar na criação da CONCP (Conferência das Organizações Nacionalis-tas das Colónias Portuguesas), em cimeira realizada em Casablanca com o apoio do rei de Marrocos.

uM líDEr afrIcanO EntrE HuManIsMO E rEVOluçãO

A 23 de Janeiro de 1963 com o ataque ao quartel de Tite,

no Sul da Guiné, começava para ficar a luta armada. Com o seu demorado prosseguimento sob a liderança do PAICG, pratica-mente todos os outros grupos políticos guineenses se veriam obrigados a realinhar-se entre os dois lados da guerra, assim se dissolvendo ou reunificando su-cessivamente em torno do par-tido liderado por Amílcar Cabral tanto o MLG como as outras vá-rias organizações criadas entre exilados e emigrantes da Guiné--Bissau distribuídos pelos novos países independentes da África ocidental francófona: a FLING (Frente de Libertação para In-dependência Nacional da Gui-né), a UPG (União Popular da Guiné), a UPLG (União Popular para a Libertação da Guiné), a UNGP (União dos Naturais da Guiné-Portuguesa) ou o afran-cesado Ressemblement Demo-cratique Africain de La Guiné (RDAG), entre outros agrupa-mentos que, hoje difíceis de reconstruir rigorosamente, du-ravam o tempo de um par de

reuniões ou o protagonismo breve de algumas personagens políticas subsumidas numa me-mória cada vez mais fixada pela luta do PAIGC.

A guerra colonial na Guiné--Bissau, ainda deficientemente estudada em toda a sua com-plexidade e muitos jogos de sombras, sublinha um proces-so histórico geral em que se destaca de forma gigantesca a palavra, a direcção e a plura-lidade do pensamento político de Amílcar Cabral. Uma déca-da, entre 1963 e 1973, abso-lutamente vertiginosa para o engenheiro agrónomo que co-nhecia a Guiné como ninguém e era uma das mais admiradas vozes em Cabo Verde para, nos anos seguintes, se tornar respeitado nas mais diferentes geografias políticas do mundo. Assim, na frente diplomática externa, edifica uma presença muito solicitada: dirigindo-se várias vezes às Nações Unidas, enfrentando seguro, em 1970, o interrogatório difícil do sub-comité africano do Congressos dos EUA para, em Junho, vir a

ser um dos principais organiza-dores da famosa audiência de Paulo VI concedida ao MPLA, à FRELIMO e ao PAICG que muito embaraçaria os altos responsá-veis de Portugal. Em 1971, de-nuncia em Estocolmo a fome em Cabo Verde, em Junho diri-ge-se com eloquência à cimeira da OUA em nome dos movimen-tos de libertação das colónias portuguesas, percorrendo nos meses seguintes várias capitais europeias, dialogando com go-vernos e políticos, debatendo com comités de solidariedade, discursando em Universidades e semeando a sua palavra convic-ta pelos media ocidentais.

Na frente interna, em Cona-cry ou nos terrenos de guerra da Guiné, multiplicou a sua di-recção política e organizativa por centenas de comunicados, cartas, directivas, pormenoriza-dos guias de acção tanto como pequenas notas de leituras, desdobrou-se em seminários de formação de quadros e reuniões em que os seus discursos eram muitas vezes gravados e depois transcritos para serem distri- aMílcar cabral acOMpanHaDO pOr cOnstantInO tEIxEIra

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LUSOFONIAS • Segunda-feira, 05 de Agosto de 2013 VIIlusofonias

buídos e lidos com atenção. Escreveu textos ideológicos importantes sobre a libertação da mulher, explicando também o seu conceito de democra-cia revolucionária, tratou em detalhe o tema da educação popular, reflectiu sobre o sistema de saúde, discutiu as formas de participação e representa-ção políticas, escreveu sobre um Esta-do descentralizado no qual achava até que era desnecessário, porque cen-tralista e despesista, a existência de uma capital: textos escritos e falados num impecável português, por vezes também saídos de uma pena que sa-bia mobilizar com qualidade o francês e se desembaraçava num pragmático inglês.

Continua a ser complicado (talvez seja mesmo inútil) tentar nesta pro-dução oceânica de textos, interven-ções e muitos discursos encontrar uma única escola de pensamento, uma singular ideologia, um unívoco projecto político para além desse so-nho maior de libertar os africanos do jugo do colonialismo. Amílcar Cabral revela um pensamento em trânsito por variadas influências, aqui se des-cobrindo filiações marxistas e mesmo marxistas-leninistas, mas também um estudioso interesse pelos textos de

Mao, em especial sobre a mobilização revolucionária do campesinato, tanto como um fascínio fiel às antologias e textos de Leopold Senghor, dos movi-mentos literários da negritude, muita leitura também de intelectuais pro-gressistas franceses, conhecimento actualizado da obra de Samir Amin como dos grandes textos de Kwame Nkrumah ou de Patrice Lumumba. Neste pensamento entre muitas fron-teiras não deixa de se descobrir pe-rene um recorrente pan-africanismo que, vazado no nome de um partido que começava primeiro por ser Africa-no, concorre para explicar essa quase paradoxal ausência no pensamento de Cabral de um verdadeiro naciona-lismo, mas que alimentaria depois a construção de dois estados-nação in-dependentes, progressivamente mais diferentes, como o são as repúbli-cas de Cabo Verde e da Guiné-Bissau hoje. Por isso, muitas vezes se inter-rogava nos seus textos, intervenções e cursos de formação de quadros do PAIGC sobre o verdadeiro significado da luta pela independência: “Muitos países se tornaram independentes e ouvimos muitas vezes esta frase:A independência para quê? Sim, a in-dependência para quê? Para nós, em

primeiro lugar, para sermos nós pró-prios. Para sermos homens africanos, com tudo o que nos caracteriza, mas caminhando para uma vida melhor, e que nos identifique, cada vez mais, com os outros homens no Mundo.” Simples e, ao mesmo tempo, um de-safio terrivelmente complexo como a instável história de muitos dos novos países africanos independentes tem vindo a testemunhar.

Um homem no pensamento e na prá-tica da acção política profundamente humanista. Na guerra de libertação da Guiné proibiu todo o terrorismo, a violência contra os civis ou a destrui-ção das principais infraestruturas, limi-tando até o armamento ou os obuses com que o PAIGC fustigava as tropas coloniais, perdoando frequentemente traições e dissidências. Um humanismo que provavelmente ajuda a explicar um pensamento pluriforme que não se parece ter deixado amarrar a uma úni-ca ideia, ideologia ou lado político do dividido mundo do seu tempo. Explicou vezes sem conta pela sua palavra escri-ta e falada: “É por isso mesmo que eu luto, para que deixemos de amarrar as pessoas… O ser humano não pode ser amarrado. Se há problemas, vamos sentar, vamos discutir, vamos conver-

sar.” Em coerência, manteve-se sem-pre prediposto ao diálogo que parece, afinal, nunca ter verdadeiramente estado nas intenções da governação instalada em Lisboa mesmo com a che-gada à mais alta cadeira do poder de Marcelo Caetano: pouca mudança para muita continuidade.

Homem gigantesco, um verdadei-ro mito tanto entre os movimentos de libertação das antigas colónias portuguesas como entre os resisten-tes e os seus grupos no Portugal das décadas de 1960 e 1970, o seu rico pensamento tem-se tornado cada vez mais longínquo e, pouco estuda-do, arrisca-se mais cedo que tarde a dissolver-se em vago lugar da memó-ria quando deveria permanecer como legado histórico importante encruzi-lhado em saudáveis lusofonias. Resta tentar resgatar, pelo menos, alguns fragmentos da sua imensa obra que aqui se revisita nessa forma maior da arte literária que acompanhou Amí-lcar Cabral até à sua morte: a poe-sia. Pedindo-lhe, como nesse poema Regresso tantas vezes cantado por Cesária Évora ou por Cateano Velo-so, para voltar a inspirar as mais plu-rais Lusofonias. Onde Amílcar Cabral deve ficar para sempre.

para tI,MãE IVa

Eu deixo uma parcela Do meu livro de curso… P’ra ti, que foste a estrela Da minha infância agreste, P’ra ti, Mãe, que me deste A tua alma viva E o teu amor profundo Maior que o próprio mundo! Aceita este tributo, Que tudo quanto eu for, Será do teu amor - Tua carne, Mãe, teu fruto! Sem ti, não sou ninguém, Só sou – porque és Mãe!

(Amílcar Cabral, 1949)

…nãO, pOEsIa …não poesia: Não te escondas nas grutas do meu ser, Não fujas à vida. Quebra as grades invisíveis da minha prisão, Abre de par em par as portas do meu ser - e sai… Sai para a luta (a vida é luta), Os homens lá fora chamam por ti, E tu, poesia, és também um homem. Ama a poesia de todo o mundo, -Ama os homens Solta os teus poemas para todas as raças, Para todas as coisas. Confunde o teu corpo com todos os corpos do mundo, Confunde-te comigo…

Vai, poesia: dá-me os teus braços para que abrace a vida. A minha poesia sou eu.

(Amílcar Cabral, 1946)

rEgrEssO Mamãe velha, venha ouvir comigo O bater da chuva lá no seu portão É um bater de amigo Que vibra dentro do meu coração.

A chuva amiga, Mamãe velha, a chuva, Que há tanto tempo não batia assim. Ouvi dizer que a cidade velha, - A ilha toda -Em poucos dias já virou jardim…

Dizem que o campo se cobriu de verde Da cor mais bela, porque é a cor da esperança Que a terra, agora, é mesmo Cabo Verde - É a tempestade que virou bonança…

Venha comigo, mamãe velha, velha, Recobre a força e chegue-se ao portão A chuva amiga já falou mantenha E bate dentro do meu coração!

(Antologia Poética da Guiné-Bissau, 1990)

EVOluçãO cOncEptual E rEal Um conceito anterior: um caracol Nos mistérios de um invólucro de egoísmo. A vida só valia à luz do sol, De um sol falho de Amor – do comodismo.

Conceito mais actual: uma alma aberta à vida, Na conquista da vida, rasando o seu destino. Na estrada a percorrer, na estrada percorrida. O amor é o justo guia, o amor é um constante hino.

(Amílcar Cabral, c. 1950-52)

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VIII Segunda-feira, 05 de Agosto de 2013 • LUSOFONIASlusofonias

Dengo, farofa, moleque, neném, quitanda, samba... Quer palavras mais brasileiras do que estas?

De fato, são brasileiras – mas nasceram na África. Fo-ram trazidas da vasta região costeira central do continen-te, onde hoje se encontram Angola e Congo. Com origem no tronco linguístico banto, que engloba línguas como o quimbundo, o umbundo e o quicongo, essas palavras substituíram vocábulos portugueses que eram utilizados para os mesmos fins. Ou seja, em alguns casos, os falares africanos conseguiram sobrepor-se aos outros. Como a língua é algo vivo, algumas palavras mudaram um pouco, outras adquiriram significados diferentes, mas não muito distantes do original.

A linguagem é um dos aspectos mais evidentes da con-tribuição cultural dos africanos trazidos para o Novo Mun-do. Mas nem de longe é o único. Houve diversos aportes civilizatórios da África para o Brasil, e algumas regiões foram especialmente relevantes nesse processo, como é o caso de Angola. Práticas religiosas, conhecimentos téc-nicos agrícolas e de mineração, valores sociais, costumes na vida cotidiana e hábitos de alimentação, entre outros elementos, fizeram parte da bagagem cultural que os es-cravizados trouxeram para a formação de nosso país.

Manifestações religiosas como os calundus, de forte pre-sença entre os escravos trazidos da região Congo-Angola, estão na origem de religiões afro-brasileiras, como o can-domblé na Bahia. Há indícios de que a arte da capoeira tem origem na “dança da zebra”, o n’golo do sul de Angola. O jongo, tão presente em comunidades negras do Sudeste brasileiro, e a congada assinalam sua herança centro-afri-cana em versos, personagens, palavras. Os movimentos de corpo característicos de algumas danças brasileiras – so-bretudo o rebolado – também têm sua origem em Angola. De lá, portanto, viria boa parte da nossa ginga. Aliás, esta é uma palavra derivada da língua quimbundo, e nomeava uma rainha africana. De nome de rainha a elemento da congada, a ginga adquiriu muitos outros significados, hoje atribuídos principalmente aos brasileiros.

Os laços que ligam o Brasil a Angola existem há muito tempo. Remontam à formação do Império português, do qual fizeram parte, e se estendem por séculos, chegando aos nossos dias.

O Brasil é o país que por mais tempo e em maior quanti-dade recebeu pessoas escravizadas vindas da África. Apro-ximadamente 40% de todos os escravos africanos que de-ram entrada em portos do Novo Mundo foram trazidos para o nosso país. Desse total, uma ampla maioria embarcou em cidades do litoral da atual Angola. Segundo o historia-dor Philip Curtin, o Brasil recebeu 1.685.200 escravos no século XVIII, dos quais 550.600 vindos da Costa da Mina e 1.134.600 de Angola. O tráfico angolano abastecia princi-palmente o porto do Rio de Janeiro, e em segunda escala, Bahia e Pernambuco. As capitanias de Pernambuco, Mara-nhão e Pará detinham 20% do tráfico de escravos de Angola no fim do século XVIII e começo do XIX.

Nas palavras do padre Antônio Vieira em 1648, “sem negros não há Pernambuco, e sem Angola não há negros”. No século XVII, quando Luanda foi invadida e ocupada pe-los holandeses, uma expedição partiu do Rio de Janeiro a fim de retomar Angola para o Império português. A mis-são foi financiada principalmente com capital dos comer-ciantes do Rio, e as tropas eram formadas por indígenas, africanos e seus descendentes. O sucesso da expedição comandada por Salvador de Sá, governador do Rio de Janeiro, em 1648, reforçou a determinação de libertar Pernambuco do domínio holandês, o que aconteceu anos depois, em 1654.

A retomada de Angola também fez crescer a presença dos brasileiros por lá. Durante um século, entre 1648 e o fim dos anos 1740, gente do Brasil – por nascimento ou por vínculo de residência – praticamente dominou Ango-la, ocupando as funções que seriam de Portugal no con-trole da colônia e no tráfico de escravos. Portugal teve que fazer esforços para retomar as rédeas do controle político da área, o que conseguiu apenas em parte. Eco-nomicamente, e muitas vezes administrativamente, a re-lação foi se tornando tão estreita que qualificava as cida-des-porto do litoral angolano, como Luanda e Benguela, como extensões do Brasil colonial no início do século XIX.

No processo de independência do Brasil, líderes polí-ticos tinham interesse em anexar a colônia africana ao novo país. Não sem razão, no tratado que D.Pedro I teve que assinar para ter sua emancipação reconhecida pelo governo português, constava como exigência que o Brasil reconhecesse a soberania portuguesa sobre Angola. E à Inglaterra, mediadora do tratado, também interessava que o Brasil se distanciasse das rotas do tráfico escravista no litoral africano.

Frustraram-se, portanto, as esperanças de um só reino, ou de dois reinos unidos, conjugando as duas margens do oceano, a brasileira e a angolana.

A união entre Brasil e Angola não aconteceu, mas é cla-ro que onde há fortes relações econômicas e políticas constroem-se intercâmbios pessoais, familiares e de par-ceria em diferentes atividades. Era comum que grandes comerciantes abrissem representações de suas casas de negócio em Angola, muitas vezes gerenciadas por paren-tes, ou mesmo por seus cativos. Famílias de negociantes se dividiam entre um lado e o outro do Atlântico, mantinham um ir-e-vir constante, não só de pessoas, mas de notícias, produtos, correspondências. Comerciantes escravistas na África mandavam seus filhos estudar no Brasil, para que aprendessem o português, conhecessem a dinâmica do comércio e da sociedade brasileira e pudessem tornar-se intermediários qualificados nesses negócios.

A estreita convivência não terminou com o fim do trá-fico atlântico. Aparentemente reduzida na primeira me-tade do século XX, depois encontrou outros caminhos. As lutas pela libertação de Angola do domínio colonial português foram acompanhadas com vivo interesse por brasileiros, ainda que naquela época amordaçados pela ditadura. Houve gente que participou ativamente dos movimentos de libertação. Nosso movimento negro fes-tejou a independência de Angola, e o rápido reconheci-mento das novas nações africanas pelo governo brasileiro criou uma abertura diplomática importante em direção à terra de nossos ancestrais.

Na esteira dos novos interesses após a independência (1975), a influência de meios de comunicação brasilei-ros e de seus produtos passou a ser intensa no cotidiano dos angolanos. Telenovelas eram referência de entrete-nimento, para o comportamento dos jovens e a estética do vestuário. Nos canais de televisão locais são exibidos programas feitos no nosso país. Mercadorias brasileiras, legalmente importadas ou na candonga (contrabando), viraram produtos de consumo importantes, sobretudo roupas e calçados.

A literatura e a música, fortemente impregnadas de memórias, ritmos, instrumentos e vozes de herança afri-cana, também cruzaram o oceano e desembarcaram com grande sucesso no país independente, como Jubiabá, de Jorge Amado, e Tenda dos Milagres, de Guimarães Rosa.

Encontros que abriram para os artistas brasileiros no-vas perspectivas de explorar nossa identidade cultural. Gilberto Gil compôs e cantou com grande propriedade: “Trago a minha banda/ Só quem sabe onde é Luanda/ Saberá lhe dar valor”.

Após a década de 1980, surgiram novas rotas de migra-ção. Inicialmente provenientes de Angola, e acrescidas de recentes levas vindas do Congo, essas populações de refugiados são formadas principalmente por jovens do sexo masculino. A nova diáspora centro-africana para o Brasil é fruto das guerras e das impossibilidades geradas por séculos de espoliação.

O que não se pode nem se deve deixar de lembrar são nossos fortes vínculos com esses povos e essa terra. As heranças congo-angolanas, que em grande parte nos tor-naram o que somos, nos lembram o quanto é importante perceber, reconhecer e se orgulhar do nosso pertenci-mento à África.

As rápidas transformações geopolíticas em todo o pla-neta trazem novos desafios para o Brasil. Para saber qual o seu papel nesse jogo, o país precisa primeiro conhecer sua verdadeira identidade. E isso inclui recordar os com-promissos que tem com a própria História.

*Professora no Instituto de História da UniversidadeFederal do Rio de Janeiro e coordenadora do LEÁFRICA

(Laboratório de Estudos Africanos)

Mônica Lima e Souza*

IDEIas

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“Após a década de

1980, surgiram novas

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Angola, e acrescidas

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essas populações

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são formadas

principalmente

por jovens do sexo

masculino. A nova

diáspora centro-

africana para o Brasil

é fruto das guerras e

das impossibilidades

geradas por séculos de

espoliação.”

Angola é aqui