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7/27/2019 AMPERJ http://slidepdf.com/reader/full/amperj 1/2 27/09/13 AMPERJ www.amperj.org.br/artigos/print.asp?ID=100 1/2 TEMAS JURÍDICOS Troca de Tiros em Perseguição Policial: Inexistência de Tentativa Branca de Homicídio Victor Mauricio Fiorito Pereira Desta forma dispõem os artigos 301 e 302, inciso III do Código de Processo Penal:  Art. 301 - Qualquer do povo poderá e as autoridades policiais e seus agentes deverão prender quem quer que seja encontrado em flagrante delit o.  Art. 302 - Considera-se em flagrante delito quem:  III - é perseguido, logo após, pela autoridade, pelo ofendido ou por qualquer pessoa, em situação que faça presumir ser autor da infração; Dos referidos dispositivos é possível estabelecer duas premissas, quais sejam: a de que os policiais têm o dever legal de prender quem se encontre em flagrante delito; e outra premissa que se extrai do disposto no artigo 302, inciso III do Código de Processo Penal, referente a obrigação dos policiais de efetuarem a perseguição em caso de fuga. É fato corriqueiro, mormente em se tratando de crimes de roubo, porte de armas, tráfico de entorpecentes e extorsões quando ocorre a perseguição, os meliantes efetuarem disparos de arma de fogo contra os policiais, com o fim de desencorajar a continuidade da perseguição. Da mesma forma, é comum constar elementos nos autos de prisão em flagrante, que, em decorrência da “troca de tiros”, vários meliantes são alvejados enquanto que os policiais sequer são atingidos. Alguns Promotores de Justiça, ao receberem os referidos autos de flagrante, vêm considerando que os disparos efetuados, pelos meliantes, contra policiais que os perseguem, caracterizam tentativa “branca” de homicídio. Sustentam eles que ao efetuarem os disparos contra os policiais, os meliantes no mínimo tiveram o dolo eventual de atingí-los, sendo que qualquer dúvida a respeito da existência ou não do dolo, deve ser dirimida pelo Tribunal do Júri, órgão instituído pela Constituição da República, na parte em que trata dos direitos e garantias i ndividuais, como competente para julgar os crimes dolosos contra a vida. Ou seja, para aqueles que adotam tal entendimento, existe uma presunção quase absoluta da ocorrência do dolo. Com a devida vênia, ousamos discordar deste entendimento. Consideramos que ao verificar a hipótese, quando do oferecimento da denúncia, a premissa in dubio pro societatis não pode ser invocada para justificar que qualquer disparo de arma de fogo feito por meliantes, contra seus perseguidores, caracteriza dolo eventual na prática de uma tentativa de homicídio. Entendemos que para haver a subsunção perfeita do fato à norma, ou seja, para que haja perfeita correspondência entre um fato natural, ocorrido concretamente na vida real, e a descrição da conduta proibida, contida na lei penal incriminadora e também nos tipos permissivos, é necessário avaliar o elemento subjetivo do tipo, ou seja, a intenção do agente do crime. Em decorrência deste entendimento deixamos de adotar, há muito, a teoria causalista e passamos a adotar a teoria finalista da ação. A teoria causalista toma como base apenas a cena e a conduta do agente de forma mecânica, sendo, como afirmavam doutrinadores, uma verdadeira “teoria cega”. Ao revés, a teoria finalista, vai além, pois acrescenta elementos internos da pessoa, trazendo o dolo e a culpa para primeiro elemento analítico do crime, qual seja o fato típico. A Teoria finalista da conduta que teve como idealizador Hans Wezel, conduta é toda ação humana como o exercício de uma atividade finalista. Em conseqüência, repise-se, o dolo e a culpa passam integrar a própria conduta como seus possíveis conteúdos subjetivos. Figurando o tipo penal à luz do finalismo como composto por duas vertentes, uma objetiva, correspondente aos elementos descritivos da ação e outra subjetiva, correspondente à atitude mental do agente no momento da realização dos elementos objetivos da conduta. Portanto, é perfeitamente factível admitir-se que um indivíduo em fuga, efetuando disparos com arma de fogo, nem sempre tal atitude configura uma tentativa de homicídio, ou mesmo homicídio doloso. É preciso, conforme a teoria finalista da conduta, analisar a intenção do mesmo. Pode configurar, dependendo da intenção do indivíduo, além do homicídio, a lesão corporal, ou mesmo crimes subsidiários. Na esteira desse pensamento, podemos destacar o que dispõe o artigo 15 da Lei 10826/03:  Art. 15 . Disparar arma de fogo ou acionar munição em lugar habitado ou em suas adjacências, em via  pública ou em direção a ela, desde que essa conduta não tenha como finalidade a prática de outro crime: Trata-se de delito cuja objetividade jurídica é a segurança pública, figurando como sujeito ativo qualquer pessoa (crime comum), e como sujeito em primeiro plano a coletividade. Em segundo, as pessoas que, eventualmente, tenham sofrido perigo de dano decorrente do disparo da arma. É considerado como crime de perigo abstrato, ou seja, não é necessária a prova de que pessoa determinada tenha sido exposta a risco, pois o perigo é presumido. O disparo para o alto caracteriza o crime, desde que seja feito em via pública ou na direção desta. Ora, se a lei exigisse que todo o caso de disparo de arma de fogo fosse submetido ao Tribunal do Júri, não seria instituído tal dispositivo, tendo em vista que em qualquer disparo de arma de fogo feito em local habitado ou em suas adjacências, sempre haveria o risco de atingir alguém. Neste caso, haveria sempre uma presunção de dolo eventual em um homicídio, o que usualmente é feito na hipótese aqui tratada, o que vai de encontro com o referido dispositivo legal. Outro aspecto a ser considerado é o disposto no artigo 78, inciso I do Código de Processo Penal que determina que em casos de crimes conexos, havendo concurso entre a competência do Tribunal do Júri e a de outro órgão da  jurisd ição com um , p reva le cerá a com pe tê ncia do Trib un al d o Júri.

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www.amperj.org.br/artigos/print.asp?ID=100 1/2

TEMAS JURÍDICOS

Troca de Tiros em Perseguição Policial: Inexistência de Tentativa Branca de Homicídio

Victor Mauricio Fiorito Pereira

Desta forma dispõe m os artigos 301 e 302, inciso III do Código de Processo Penal:

 Art. 301 - Qualquer do povo poderá e as autoridades policiais e seus agentes deverão prender quemquer que seja encontrado em flagrante delito.

 Art. 302 - Considera-se em flagrante delito quem: III - é perseguido, logo após, pela autoridade, pelo ofendido ou por qualquer pessoa, em situação quefaça presumir ser autor da infração;

Dos referidos dispositivos é po ssível estabelecer duas premissas, quais se jam: a de que os policiais têm o deverlegal de prender quem se encontre e m flagrante de lito; e outra premissa que se extrai do disposto no artigo 302,inciso III do Código de Processo Penal, referente a obrigação dos policiais de efe tuarem a pe rseguição em caso defuga.

É fato corriqueiro, mormente em se tratando de crimes de roubo, porte de armas, tráfico de entorpecentes eextorsões quando ocorre a perseguição, os meliantes efetuarem disparos de arma de fogo contra os policiais, com ofim de desencorajar a continuidade da pe rseguição. Da m esma forma, é comum constar eleme ntos nos autos deprisão em flagrante, que, em decorrência da “troca de tiros”, vários meliantes são alvejados enquanto que ospoliciais sequer são atingidos.

Alguns Promotores de Justiça, ao receberem os referidos autos de flagrante, vêm considerando que os disparosefetuados, pelos meliantes, contra policiais que os perseguem, caracterizam tentativa “branca” de homicídio.Sustentam e les que ao efetuarem os disparos contra os policiais, os me liantes no mínimo tiveram o dolo eventualde atingí-los, sendo que qua lquer dúvida a respeito da existência ou não do dolo, deve se r dirimida pe lo Tribunaldo Júri, órgão instituído pela Constituição da República, na parte em que trata dos direitos e garantias individuais,como competente pa ra julgar os crimes dolosos contra a vida. Ou se ja, para aque les que adotam tal entendimento,existe uma presunção quase a bsoluta da ocorrência do dolo.

Com a de vida vênia, ousam os discordar deste entendimento. Consideramos que ao verificar a hipótese, quando dooferecimento da denúncia, a premissa in dubio pro societatis não pode ser invocada para justificar que qualquerdisparo de arma de fogo feito por meliantes, contra seus perseguidores, caracteriza dolo eventual na prática de umatentativa de homicídio.

Entendemos que para haver a subsunção perfeita do fato à norma, ou seja, para que haja perfeita correspondênciaentre um fa to natural, ocorrido concretamente na vida real, e a descrição da conduta proibida, contida na le i pena lincriminadora e também nos tipos permissivos, é necessário avaliar o elemento subjetivo do tipo, ou seja, aintenção do agente do crime. Em decorrência deste entendimento deixamos de adotar, há muito, a teoria causalista

e pa ssamos a adotar a teoria finalista da ação. A teoria causalista toma como base apenas a cena e a conduta doagente de forma mecânica, sendo, como afirmavam doutrinadores, uma verdadeira “teoria cega”. Ao revés, a teoriafinalista, vai além, pois acrescenta eleme ntos internos da pessoa , trazendo o do lo e a culpa para primeiro elementoanalítico do crime, qual seja o fato típico. A Teoria finalista da conduta que teve como idealizador Hans Wezel,conduta é toda ação humana como o exercício de uma atividade finalista.

Em conseqüência, repise-se, o dolo e a culpa passam integrar a própria conduta como seus possíveis conteúdossubjetivos. Figurando o tipo penal à luz do finalismo como composto por duas vertentes, uma objetiva,correspondente aos elementos descritivos da ação e outra subjetiva, correspondente à atitude mental do agente nomom ento da realização dos e lementos ob jetivos da conduta.

Portanto, é perfeitamente factível admitir-se que um indivíduo e m fuga, efetuando disparos com arma de fogo, nemsempre tal atitude configura uma tentativa de homicídio, ou mesmo homicídio doloso. É preciso, conforme a teoriafinalista da conduta, analisar a intenção do m esmo . Pode configurar, dependendo da intenção do indivíduo, além dohomicídio, a lesão corporal, ou mesmo crimes subsidiários.

Na esteira desse pensamento, podemos de stacar o que dispõe o artigo 15 da Lei 10826/03: Art. 15 . Disparar arma de fogo ou acionar munição em lugar habitado ou em suas adjacências, em via pública ou em direção a ela, desde que essa conduta não tenha como finalidade a prática de outrocrime:

Trata-se de delito cuja ob jetividade jurídica é a se gurança pública, figurando como sujeito ativo qua lquer pessoa(crime comum), e como sujeito em primeiro plano a coletividade. Em segundo, as pe ssoas que, e ventualmente,tenham so frido perigo de dano de corrente do disparo da arma.

É considerado como crime de perigo abstrato, ou seja, não é necessária a prova de que pe ssoa determinada tenhasido exposta a risco, pois o pe rigo é presumido.

O disparo para o alto caracteriza o crime, desde que seja feito em via pública ou na direção desta.

Ora, se a lei ex igisse que todo o caso de disparo de arma de fogo fosse subme tido ao Tribunal do Júri, não seriainstituído tal dispositivo, tendo e m vista que em qualquer disparo de arma de fogo feito em local habitado ou em

suas adjacências, sempre haveria o risco de atingir alguém. Neste caso, haveria sempre uma presunção de doloeventual em um homicídio, o que usualmente é feito na hipótese aqui tratada, o que vai de encontro com o referidodispositivo legal.

Outro aspecto a ser considerado é o disposto no artigo 78, inciso I do Código de Processo Penal que determina queem casos de crimes conexos, havendo concurso entre a competência do Tribunal do Júri e a de outro órgão da

 jurisd ição comum, preva lecerá a compe tência do Tribunal do Júri.

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Assim sendo, todos os delitos que ensejarem a perseguição policial, como roubos, tráfico de entorpecentes,extorsões, formação de quadrilha, porte de armas se riam da mesma forma que o “homicídio tentado”, subme tidosa julgamento pelo Tribunal do Júri.

Todos sabem os que o rito e special, peculiar ao processo e julgame nto do Tribunal do Júri é be m m ais complexoque o processo penal ordinário. É bastante comum a ocorrência de nulidades que viciam todo o julgamento emespe cial na parte da quesitação apresentada aos juízes leigos. As possibilidades de nulidade são ainda maiores aoenvolver quesitação de outros crimes que não os dolosos contra a vida.

No entanto, elaborar a denúncia classificando o fato em questão como tentativa de homicídio, já tendo em vista queserá operada a desclassificação em plenário, é movimentar inutilmente a já sobrecarregada máquina judiciária como dispendioso p rocedimento do Júri, visto que pode haver a até mesm o a necessidade de repetir todo o processado

com o aditame nto da denúncia para a a lteração do fato. Tudo isto sem mencionar que estaria o dominus litissubvertendo as regras do Direito Penal, instituindo, contra legem, uma presunção de culpa em detrimento do réu,imputando fatos que se não terá como provar. E, a e sse respe ito, vale relembrar que so mente o s fatos notórios sãoprescindíveis de serem comprovados.

Por isso, fora o aspecto legal já mencionado, é absolutamente inconveniente levar ao Tribunal do Júri a apreciaçãode outros crimes que não os do losos contra a vida, mormente quando se pretende, nos tempos a tuais, combater deforma eficiente a crescente criminalidade que assola a sociedade.

Sobre o  princípio da eficiência, insculpido no artigo 37 caput da Constituição da República, aplicável também aatuação do Ministério Público, discorre José Afonso da Silva:”...Eficiência significa fa zer acontecer com raciona lidade,o que implica medir os custos que a sa tisfação das ne cessidades públicas importam em relação ao g rau de utilidadealcançado. Princípio da eficiência, orienta a atividade no sentido de conseguir os melhores resultados com meiosescassos que se dispõe e a meno r custo. Rege-se, po is, pela regra da consecução do ma ior benefício com o me norcusto possível.” (Curso de Direito Cons titucional Positivo)

Com base nessas considerações, muito mais e ficiente seria imputar aos me liantes o de lito previsto no artigo 15 doEstatuto do Desarmamento, caso o delito tenha sido praticado em local habitado ou em suas adjacências emconcurso com o artigo 329 (resistência) c/c seu pa rágrafo 2º, ou apenas o caput, caso o local onde foram e fetuadosos disparos não for considerado como local habitado ou suas adjacências. Tal forma de agir também evitaria o riscode desclassificação em sede de plenário pa ra crime e m que a pena é m uito inferior ao do hom icídio, acarretandoinevitável reconhecimento de prescrição da pretensão punitiva.

É importante de ixar claro que todo o e xposto aqui som ente se aplica no caso de disparos de arma de fogo(tentativa branca), em que a perícia ou outros meios de prova não apontarem indícios robustos da prática de crimemais grave. Na hipótese de um dos po liciais perseguidores se r de fato atingido pe los disparos efetuados e m suadireção, fica evidenciado o dolo de m atar mesmo e m que sua mo dalidade eventual, tendo e m vista que restarácomprovado que o disparo foi mesmo efe tuado na direção do po licial e não a centenas de metros deste, nãohavendo como afastar a imputação de homicídio tentado ou consumado, conforme o caso.

Por fim, para que não se diga que as ponderações retro expostas visam excluir definitivamente a “tentativa branca” do ordenamento jurídico, vale ressaltar que é possível a denúncia, desde que prova pericial faça a constatação de

sua ocorrência, como, por exemplo, a existência de perfurações na lataria da viatura do policial, causadas pelosdisparos. O que não se de ve adm itir é a prova testemunhal pura e s imples, como verdadeira, visto que além depassível de ser tendenciosa, porque feita pelo policial, na ocorrência, transformado em vítima, sem a confirmaçãoda prova pericial. È cediço que a té me smo em estádios de futebol sã o ne cessários computadores para analisar comprecisão a trajetória da bola movida por força humana, o que se dirá de um projétil expelido por arma de fogo,estando o autor em movimento, em direção a um alvo também em movimento.Conclusões:

1 – O Tribunal do Júri, em razão das suas pe culiaridades, possui o procedimento bem m ais complex o do que oordinário, sendo mais comum ocorrer nulidade em qualquer fase deste e e m e special no plenário tornandonecessária a realização de outro julgame nto e dando ensejo ao relaxamento da prisão de réus pe rigosos;

2 - O Promotor de Justiça, visando tornar mais eficiente a repressão penal, ao formular a denúncia deve sercriterioso ao classificar os disparos de arma de fogo efetuados por perseguidos contra policiais, com o fim de nãodes locar inutilmente, a competência para o T ribunal do Júri dos crimes conexos, prefe rindo outras classificações parao fato, como o artigo 15 da Lei 10826/03 ou artigo 329 do Código Penal.

Victor Mauricio Fiorito PereiraMembro do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro