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Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Centro de Cincias Sociais
Instituto de Filosofia e Cincias Humanas
Ana Carolina Vieira de Oliveira
Brasil e Argentina sob Lula e Kirchner(s):
percepes de poltica externa e efeito sobre o Mercosul (2003-2010)
Rio de Janeiro
2012
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Ana Carolina Vieira de Oliveira
Brasil e Argentina sob Lula e Kirchner(s): percepes de poltica externa e efeito
sobre o Mercosul (2003-2010)
Dissertao apresentada, como requisito parcial para obteno do ttulo de Mestre, ao Programa de Ps-Graduao em Relaes Internacionais, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. rea de Concentrao: Trabalho e poltica social.
Orientadora: Prof. Dr. Miriam Gomes Saraiva
Rio de Janeiro
2012
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CATALOGAO NA FONTE UERJ/REDE SIRIUS/ BIBLIOTECA CCS/A
Autorizo apenas para fins acadmicos e cientficos, a reproduo total ou parcial desta dissertao, desde que citada fonte. _____________________________________ ___________________________ Assinatura Data
S586b Oliveira, Ana Carolina Vieira Brasil e Argentina sob lula e Kirchner(s): percepes de
polticas externas e efeito sobre o mercosul (2003 2010 \ Ana Carolina Vieira de Oliveira 2012.
173 f. Orientadora: Miriam Gomes Saraiva. Dissertao (mestrado) - Universidade do Estado do Rio de
Janeiro. Instituto de Filosofia e Cincias Humanas. Bibliografia. 1. Brasil Relaes exteriores Argentina - Teses. 2
Argentina Relaes exteriores Brasil - Teses. I.Saraiva, Miriam Gomes. II. Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Instituto de Filosofia e Cincias Humanas. III. Ttulo.
CDU 327(81)
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Ana Carolina Vieira de Oliveira
Brasil e Argentina sob Lula e Kirchner(s): percepes de poltica externa e efeito
sobre o Mercosul (2003-2010)
Dissertao apresentada, como requisito parcial para obteno do ttulo de Mestre, ao Programa de Ps-Graduao em Relaes Internacionais, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. rea de Concentrao: Trabalho e poltica social.
Aprovada em: 27 de abril de 2012. Banca Examinadora:
Rio de Janeiro
2012
_____________________________________________ Prof. Dr. Miriam Gomes Saraiva (Orientadora)
Instituto de Filosofia e Cincias Humanas da UERJ
_____________________________________________ Prof. Dr. Maria Regina Soares de Lima Instituto de Estudos Sociais e Polticos (IESP/UERJ) _____________________________________________ Prof. Dr. Maurcio Santoro Rocha
Fundao Getlio Vargas/Universidade Cndido Mendes
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DEDICATRIA
A Deus, por tudo.
minha famlia, pelo apoio e pelos
ensinamentos de toda uma vida
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AGRADECIMENTOS
Agradeo a meus pais, Luiz e Angela, pelo amor e pelo apoio que tive em
minhas escolhas, mesmo me tornando em determinados momentos uma filha ausente
nas questes familiares. Agradeo por saberem da importncia dessa etapa profissional.
Agradeo tambm ao meu irmo, Luiz Felipe, que soube me mostrar o que era
ser forte. Com ele, pude perceber que a saudade provocada pela distncia apenas uma
fase, e que devemos valorizar qualquer encontro e oportunidade da vida. Sou feliz
tambm pela presena da Ana Paula e do Joo Pedro em minha vida.
Ao Julio Cesar, namorado e companheiro durante esses longos anos de
mestrado, agradeo pela compreenso, amor e cobranas em situaes necessrias,
nunca permitindo que eu desistisse.
Prof. Dr. Miriam Gomes Saraiva, minha orientadora, por incentivar meu
trabalho de pesquisa. Agradeo pelas reunies repletas de observaes e conselhos, que
refletiam em segurana na dissertao, e tambm pelos diversos contatos, relevantes
para a pesquisa, que pude fazer por seu intermdio.
Ao Prof. Dr. Marcelo Mello Valena e Prof. Dr. Maria Regina Soares de
Lima pelos comentrios inteligentes feitos durante a qualificao, e que foram preciosos
para a continuidade de minha pesquisa.
Aos demais professores e colegas do Programa de Ps-Graduao em Relaes
Internacionais da UERJ (PPGRI-UERJ), pela amizade ao longo desses dois anos.
Ao Andr, secretrio do PPGRI-UERJ, pela pacincia e bom-humor em
responder as dvidas constantes nas questes administrativas.
Aos meus amigos e colegas, pela companhia que s vezes se tornava rara por
conta da falta de tempo. Dentre eles, devo agradecer Fernanda Monteiro, pela
colaborao na busca de material para esta dissertao.
Paulo Henrique Batalha, ento representante de relaes exteriores da
embaixada brasileira em Buenos Aires, e Prof. Monica Hirst, da Universidade
Torcuato Di Tella, pelas entrevistas concedidas em janeiro de 2011. Agradeo pela
ajuda e conselho.
Finalmente, agradeo aos funcionrios da Universidad del Salvador, Universidad
Catlica Argentina, Universidad del CEMA, Universidad Torcuato Di Tella e do
Instituto del Servicio Exterior de la Nacin Argentina, por disponibilizarem suas
bibliotecas para minha pesquisa.
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RESUMO
OLIVEIRA, Ana Carolina Vieira de. Brasil e Argentina sob Lula e Kirchner(s): percepes de poltica externa e efeito sobre o Mercosul (2003-2010). 2012. 173 f. Dissertao (Mestrado em Relaes Internacionais) Instituto de Filosofia e Cincias Humanas, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2012.
Brasil e Argentina nutriram ao longo de dcadas sentimento de rivalidade. Aos poucos, tal sentimento foi substitudo pela cooperao e consequentemente integrao entre os mesmos. A aproximao entre os pases culminou na formulao do Mercado Comum do Sul, um dos blocos mais importantes da regio sul-americana. Porm, ao longo da dcada de 1990, a organizao passou por momentos de crises, bem como as prprias economias nacionais. Isto provocou a possibilidade de haver retrocesso ou at mesmo a dissoluo do bloco que, em perodos anteriores, j tinha proporcionado aumento de fluxo de comrcio e de confiana entre seus dois membros maiores. No entanto, a partir de 2003, novos governantes que assumiram o cargo de presidente no Brasil e na Argentina propiciaram uma mudana naquele contexto. Luiz Incio Lula da Silva, presidente do Brasil, e Nstor Kirchner, presidente da Argentina, subiram ao poder com ideias e objetivos muito semelhantes para a integrao regional. Tambm, havia grande preocupao com o outro em termos de poltica externa, considerado como forte parceiro em termos polticos, estratgicos e econmicos. A partir da aplicao de literaturas que colocavam o Estado como figura central na elaborao de poltica externa e de mudanas na mesma, assim como daquelas que estudam o perodo de 2003 a 2010, avalia-se Brasil e Argentina. O segundo mandato de Lula e o mandato de Cristina Fernndez de Kirchner tambm so estudados, porque so considerados governos de continuidade aos anteriores. A partir desta reaproximao de Brasil e Argentina, enquanto Estados, pode-se perceber uma mudana na reconfigurao do Mercosul. H maior interesse poltico para que o bloco seguisse por caminhos que no o meramente comercial. Desde ento, h maior quantidade de iniciativas dentro do bloco, e maior disponibilidade e confiana por parte dos governos.
Palavras-chave: Poltica Externa. Brasil. Argentina. Mercosul. Mudana. Integrao
Regional.
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ABSTRACT
Brazil and Argentina developed for decades a sense of rivalry. Gradually, this feeling was replaced by the sense of cooperation and therefore integration between them. This relation culminated in the creation of the Common Market of the South (Mercosur), one of the most important organizations of the South American region. However, throughout the 1990s, Mercosur had moments of crisis, as well the national economies. This situation has led to the possibility of retreat or even the dissolution of the block that, in earlier periods, had good moments in increasing trade and confidence between its two largest members. However, since 2003, new presidents in Brazil and in Argentina changed the context of crisis. Luiz Incio Lula da Silva, president of Brazil, and Nstor Kirchner, president of Argentina came to power with similar ideas referents to regional integration and foreign policy. Also, there was great concern with each other in terms of foreign policy, and Brazil and Argentina are considered strong partners in political, strategic and economic issues. From the literature that studies the State as central in foreign policy as well those who study changes in foreign policy and the period from 2003 to 2010, this paper evaluates Brazil and Argentina. Lula's second government and the first mandate of Cristina Fernndez de Kirchner are studied too, because they are considered governments of continuity in reference with previous governments. From this relation between Brazil and Argentina, as States, one can perceived a change in the reconfiguration of Mercosur. There in more interest in developing the organization, from economic issues to economic, social, political and physical questions. Since then, there are more initiatives within Mercosur, and greater availability and confidence from the governments.
Keywords: Foreign Policy. Brazil. Argentina. Mercosur. Change. Regional Integration.
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LISTAS DE ABREVIATURAS E SIGLAS
ACE Acordo de Alcance Parcial de Complementao Econmica
Aladi Associao Latino-Americana de Integrao
Alalc Associao Latino-Americana de Livre Comrcio
Alca rea de Livre Comrcio das Amricas
Alcsa rea de Livre Comrcio Sul-Americana
Amia Associao Mutual Israelita-Argentina
ARI Afirmao para uma Repblica Igualitria
ASA Cpula Amrica do Sul-frica
BID Banco Interamericano de Desenvolvimento
BNDES Banco Nacional de Desenvolvimento Econmico e Social
Brics Brasil, Rssia, ndia, China e frica do Sul
CAN Comunidade Andina de Naes
Casa Comunidade Sul-Americana de Naes
CMC Conselho do Mercado Comum
CSNU Conselho de Segurana das Naes Unidas
CTA Central de Trabalhadores Argentinos
EUA Estados Unidos da Amrica
FEM Fundo de Financiamento do Setor Educacional do Mercosul
FMI Fundo Monetrio Internacional
Focem Fundo para a Convergncia Estrutural e Fortalecimento
Institucional do Mercosul
G4 Grupo dos quatro pases candidatos a um assento permanente no
Conselho de Segurana das Naes Unidas
G7 Grupo dos sete pases mais industrializados (Atualmente G8)
G-20 Comercial Grupo dos 21 pases em desenvolvimento no mbito da
Organizao Mundial do Comrcio
G-20 Financeiro Grupo das 20 economias mais ricas do mundo
GB Gr-Bretanha
GF Guerra Fria
GMC Grupo Mercado Comum
Ibas Grupo que rene ndia, Brasil e frica do Sul
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Iirsa Iniciativa para a Integrao da Infraestrutura Regional Sul-
Americana
ISM Instituto Social do Mercosul
MAC Mecanismo de Adaptao Competitiva
MCCP Mecanismo de Consulta e Concertao Poltica
Mercosul Mercado Comum do Sul
Mercosur Mercado Comn del Sur
Micba Mecanismo de Integrao e Coordenao Bilateral Brasil-
Argentina
Minustah Misso das Naes Unidas para e Estabilizao no Haiti
MRE Ministrio das Relaes Exteriores
OMC Organizao Mundial do Comrcio
ONGs Organizaes No-Governamentais
ONU Organizao das Naes Unidas
Otan Organizao do Tratado do Atlntico Norte
PIB Produto Interno Bruto
Picab Programa de Integrao e Cooperao Bilateral Argentina-Brasil
Pice Programa para Integrao e Cooperao Econmica
PJ Partido Justicialista
PSDB Partido da Social Democracia Brasileira
PT Partido dos Trabalhadores
PT 2004-2006 Programa de Trabalho do Mercosul 2004-2006
PTB Partido Trabalhista Brasileiro
Sacu Unio Aduaneira da frica Austral
TEC Tarifa Externa Comum
TICD Tratado de Integrao, Cooperao e Desenvolvimento
TPR Tribunal Permanente de Reviso do Mercosul
Unasul Unio de Naes Sul-Americanas
URSS Unio das Repblicas Socialistas Soviticas
UCR Unio Cvica Radical
UpC Unio para o Consenso
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SUMRIO
INTRODUO 111 QUESTES TERICAS E ANLISE DE POLTICA EXTERNA 211.1 Poltica Externa como conceito 221.2 Poltica Externa e seu surgimento como subrea das Relaes
Internacionais 231.3 Percepes, identidade, preferncias e interesses na tomada de deciso:
multiplicidade de atores 271.4 Mudanas em poltica externa 331.5 Construtivismo: culturas, agncia e estrutura 361.6 Concluso 402 O MERCOSUL NAS POLTICAS EXTERNAS DA ARGENTINA E DO
BRASIL (1985-2003) 432.1 Mercosul como iniciativa de integrao 442.2 Viso histrica de integrao: a diplomacia da dcada de 1990 por Brasil e
Argentina 492.3 A poltica externa brasileira: de Jos Sarney a Fernando Henrique Cardoso 492.4 A poltica externa argentina: de Ral Alfonsn a Eduardo Duhalde 602.5 Concluso 693 POLTICA EXTERNA NO GOVERNO LULA (2003-2010), ARGENTINA
E MERCOSUL 713.1 Governo Lula: mudana ou continuidade? 723.2 As diretrizes da diplomacia de Lula 803.2.1 Omultilateralismobrasileiro 813.2.2 AcooperaoSul-Sul 843.2.3 EntornoregionalepercepessobreaparceriaestratgicacomaArgentina 863.3 Aprofundamento das relaes com a Argentina e influncias no Mercosul 923.4 Percalos com a Argentina em nvel regional e multilateral e
institucionalizao do Mercosul 963.5 Concluso 994 POLTICA EXTERNA NA ERA KIRCHNER (2003-2010), BRASIL E O
MERCOSUL 1004.1 Ascenso de Nstor Kirchner: mudanas ou continuidades? 1014.2 Diretrizes de poltica externa na ?Era Kirchner? 1134.2.1 Ono-isolamentoargentinoeapolticamultilateral 1144.2.2 RejeioaoRealismoPerifricoepolticapragmticaaosEUA 117
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4.2.3 Entorno regional e percepes sobre a aliana com o Brasil: de alianaestratgicaalianaindita
119
4.3 Aprofundamento das relaes com o Brasil e influncia no Mercosul 1244.4 Concluso 1275 IMPLICAES DA RELAO ARGENTINA-BRASIL NO MERCOSUL
(2003-2010) 1305.1 Mercosul em aspectos quantitativos 1315.2 Mercosul em aspectos qualitativos 1335.2.1 OMercosulnasreasalm-comercial 1365.3 Concluso 1386 CONCLUSO 140 REFERNCIAS 143 -EntrevistasAPNDICE 152
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INTRODUO
O tema da presente dissertao se insere no estudo das polticas externas de Brasil e
Argentina entre os anos de 2003 e 2010, perodo no qual os cargos de chefe do Executivo de
cada pas pertenciam, respectivamente, a Luiz Incio Lula da Silva e a Nstor Kirchner e
Cristina Fernndez de Kirchner. Os dois mandatos de Lula, reeleito em 2005, coincidiram
praticamente com o nico governo de Nstor Kirchner e o primeiro mandato de Cristina
Fernndez Kirchner, este encerrado em dezembro de 2011.
Trabalhar com as polticas externas tanto do Brasil quanto da Argentina em um
mesmo espao de tempo significa tambm, neste estudo, analisar a interrelao entre elas,
assim como o papel do Estado como ator fundamental na formulao da poltica para o pas
vizinho. Deste modo, o objetivo principal desta dissertao revelar a atuao dos Estados
brasileiro e argentino em suas polticas externas entre os anos de 2003 e 2010, de modo que
sejam analisadas as percepes e aes de um para com o outro, e a consequente aproximao
entre eles, caracterizada com o uso recorrente do conceito de parceria1.
As relaes entre Brasil e Argentina em toda a histria tiveram momentos de altos e
baixos. H anlises que afirmam que essa relao sofreu, desde o perodo colonial,
interferncias de uma rivalidade produzida (RUSSELL; TOKATLIAN, 2003. p. 11;
ITAUSSU; MELLO, 1996, p. 15, 25), e que se estendeu por mais de sculo, alternando-se,
tambm, com perodos de flexibilidade. Diz-se, ainda, que esta interao passou a sofrer
mudanas, levando a uma cooperao a partir do final da dcada de 1970, e aproximao a
partir dos anos 1980, diferente de qualquer interao ocorrida anteriormente (SPEKTOR,
2002, p. 115; RUSSELL, 2010, p. 268). Este mecanismo cooperativo se consolidou em
diversos acordos ao longo da dcada de 1980, culminando em uma integrao comercial. J
no incio da dcada de 1990, presencia-se a constituio do Mercado Comum do Sul
(Mercosul).
1 O conceito de parceria ser destrinchado nos captulos 3 e 4 da dissertao, uma vez que pode ser estabelecida como estratgica ou indita (o primeiro no Brasil, e primeiro e segundo na Argentina). Mas, ao final, a significao ser a mesma, advinda do conceito de parceria estratgica de Antonio Carlos Lessa (2010), podendo diferenciar-se a indita pelo acrescento da cordialidade poltica de Cristina Fernndez de Kirchner na Argentina. O conceito de parceria estratgica, altamente utilizado ao longo do governo de Lula para demonstrar a ento relao com a Argentina, pode ser explicado segundo o artigo de Lessa (2010), denominado Brazils strategic partnerships: an assessment of the Lula era (2003-2010). Na obra, o autor avalia que as parcerias estratgicas existiam em consonncia com os interesses de poltica externa de forma geral. Estas podem ser classificadas, de acordo com o termo cunhado pela diplomacia brasileira em dcadas anteriores, como convergncia de polticas e de projetos econmicos, assim como no nvel de dilogo entre os pases (LESSA, 2010, p. 119-120).
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Portanto, alm do enfoque em poltica externa, outro tema revela-se importante para a
compreenso do objeto trabalho como um todo: a existncia do Mercosul como organismo de
integrao entre os pases constituintes, que so Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai2, e
como instrumento que, a partir de 2003, foi reconfigurado em sua proposta inicial. Criado em
26 de maro de 1991, o Mercosul foi em seus anos iniciais um mecanismo de integrao
basicamente comercial entre seus membros, principalmente se tratando da Argentina e do
Brasil. O bloco trouxe benefcios econmicos aos dois pases, que passavam por um perodo
de reestruturao de suas economias e que haviam sofrido, principalmente na dcada anterior,
por altas taxas inflacionrias. De fato, o que se verifica nos primeiros anos do Mercosul uma
linha crescente no comrcio intrarregional, de modo que Brasil e Argentina tambm tivessem
seu intercmbio comercial incrementado, atingindo seu pice aps o lanamento do Plano
Real, em 1994 (DANTAS, 2003, p. 138).
No entanto, conforme a dcada de 1990 foi chegando ao fim, percebeu-se que os
governos presentes nos dois pases no tinham levado a cabo a poltica anterior de manter o
vizinho como pea poltica fundamental. Brasil via na Argentina um parceiro poltico, mas o
mesmo no existia na formulao exterior argentina (RUSSELL, 2010, p. 279). Mas, mesmo
assim, a relevncia da parceria comercial, para o Brasil, era maior que a poltica. Isto se deve
ao fato da regio estar imersa em polticas econmicas do chamado Consenso de
Washington3, no qual era imprescindvel a liberalizao comercial. Por isso,
consequentemente, as crises econmicas que assolaram diversas partes do mundo, inclusive
Brasil e Argentina, geraram frices inegveis no Mercosul. Prova disso a desacelerao do
comrcio intrabloco e a ideia de se retroceder com o processo de integrao (BARBOSA,
2010, p. 36).
Mesmo com propostas para o relanamento do bloco, com uma agenda que inclua
acesso a mercados, exportaes para terceiros e convergncia macroeconmica, tal avano
no chegou a ser concretizado por causa, em grande medida, da crise econmica argentina
que teve seu pice em 2001. Neste momento, o Mercosul, mesmo com uma nova proposta
econmica, acabou ficando dbil.
2 A Venezuela, pelo Tratado de Incorporao ao Mercosul de 2006, vem pleiteando se tornar um membro pleno do bloco. No entanto, o legislativo paraguaio ainda no aprovou sua entrada efetiva. Brasil, Argentina e Uruguai j deram sinal positivo para sua incorporao. 3 O Consenso de Washington foi um conjunto de polticas econmicas cunhadas no fim da dcada de 1980, e que foi adotada por diversos pases da regio sul-americana. Estas polticas incluem liberalizao, privatizaes e desregulamentao (RUSSELL; ARNSON; CASTRO, 2008, p. 11).
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Em 2002, Eduardo Duhalde foi escolhido presidente na Argentina para concluir o
mandato interropido com a renncia de De la Ra. No Brasil, o presidente era ainda Fernando
Henrique Cardoso, no cargo desde 1995. Neste mesmo ano de 2002, houve eleies no pas; e
um dos candidatos ao posto de presidente era Lula da Silva, que competia desde 1989,
somando vrias derrotas eleitorais. Duhalde, dentre as opes de permanecer como grande
parceiro dos Estados Unidos ou se aproximar do Brasil, optou pela segunda. Segundo Russell
(2010, p. 281), a posio inicial de frieza para com a Argentina do prprio presidente Bush
deu mais razes para aqueles que sustentavam que seguir os Estados Unidos no apenas no
compensava, como tambm era uma das causas da tragdia argentina do momento4 (traduo
nossa). Esta ideia se deu devido reao estadunidense de exigir o cumprimento de
compromissos financeiros por parte da Argentina.
Por outro lado, a reao positiva brasileira frente aos problemas econmicos
argentinos diante ao resto do mundo e ao Fundo Monetrio Internacional (FMI), durante o
governo de Cardoso, fez com que a Argentina se visse prxima do pas vizinho, e adotasse o
Brasil como parceiro. A eleio e entrada de Lula ao governo s veio a aumentar a noo do
governo argentino de que a aproximao com o Brasil era inevitvel e relevante.
Isso se deveu ao fato de que Lula, eleito pelo Partido dos Trabalhadores (PT) aps
quase dez anos de governo do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB) , trouxe para
a poltica externa brasileira o que muitos chamam de mudana5. Suas diretrizes de poltica
externa passaram a valorizar, dentre muitos outros pontos, a diversificao de parcerias, a
relevncia da chamada cooperao Sul-Sul e a grande estima existente com a Amrica do Sul,
Argentina e Mercosul. Com relao relevncia do bloco, na verdade, o prprio programa de
poltica externa do PT trazia, desde as eleies de 1994, sua valorizao, com revigoramento e
convergncia de polticas (ALMEIDA, 2003, p. 7; 14). Aps sua eleio, o governo de Lula
trouxe essa vertente para o Mercosul, alm de traz-lo para o centro de uma poltica externa
autnoma para a regio sul-americana. O papel do Mercosul passava a ser estratgico.
As noes de uma poltica externa voltada para a regio e a importncia do Mercosul
aproximavam Lula e Duhalde que, durante o ano de 2003, selaram compromissos de amizade. 4 O texto em lngua estrangeira : la posicin inicial de frialdad distante hacia la Argentina del propio presidente Bush di ms razones a quienes sostenan que seguir a los Estados Unidos no solo no paga, sino que era una de las causas de la tragedia argentina de esa hora. 5 O debate sobre a questo da mudana em poltica externa ser tratada teoricamente no prximo captulo por meio de textos como o de Charles Hermann (1990). Tal autor ser citado ao longo desta introduo, porm sem entrar em detalhes de sua obra. J em termos prticos, os captulos 3 e 4 abordaro a questo da mudana em relao aos governos de Lula e Nstor Kirchner e Cristina Kirchner. Ao elaborar esses dois captulos, sero avaliadas as literaturas que acreditam na mudana, como a Vigevani e Cepaluni (2007) e as que no pensam nas polticas externas dos governos citados como caracterizao de alguma mudana.
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No entanto, o ento presidente argentino foi obrigado a antecipar as eleies por questes
internas6, e acabou apoiando o companheiro de partido e ex-governador da provncia
argentina de Santa Cruz, Nstor Kirchner. Apesar de Duhalde e Kirchner pertencerem ao
mesmo partido de Carlos Menem responsvel pelo governo argentino entre 1989 e 1999 , o
Partido Justicialista (PJ), ambos tinham tendncia pela valorizao das questes tradicionais
do partido em termos de poltica externa, como a aproximao com a Amrica do Sul.
A vitria de Kirchner sobre Menem nas eleies de 2003 fez com que o pas seguisse
com a poltica externa adotada por Duhalde de preferncia pela Amrica Latina e pela
integrao regional, esta com precedncia pelo Mercosul (RUSSELL, 2010, p 283). Neste
ponto, tanto Brasil quanto Argentina tinham governos com candidatos advindos de partidos
com ideologias semelhantes para a regio em termos de poltica externa, e figuras no poder
que tinham grande influncia. Aos poucos, os governantes foram imprimindo suas marcas nos
mandatos que comandavam, o que fortaleceu ainda mais o andamento da escolha que tinham
feito em poltica externa e a aproximao dos pases.
A partir desse aspecto, entende-se que o Mercosul, por meio da parceria7 entre Brasil e
Argentina, foi beneficiado. No podemos negar a assimetria existente entre os dois pases,
assim como o dficit institucional e as falhas comercias que prejudicam andamento do bloco
e, muitas vezes, afastam opinies possivelmente convergentes dentro de cada pas
(SARAIVA, 2009, p. 152-154). Mas a interdependncia j existente entre os pases, e o
conhecimento de cada um de que uma aliana, em termos bilaterais e regionais, seria
relevante at para o aumento do peso internacional individual de ambos os pases e em
conjunto (JAGUARIBE, 2010, p. 16) faltou o final desta frase. O Brasil e a Argentina
atuaram autonomamente e, s vezes, tomaram certas posies at contrrias. Mas em termos
de Mercosul, por mais que houvesse obstculos, a atuao de cada Estado fez com que a
aproximao fosse possvel.
Deste modo, o segundo objetivo desta dissertao, e que se torna o objetivo especfico
de estudo trabalhar o Mercosul durante os governos citados anteriormente, uma vez que o
bloco um dos mecanismos de integrao no qual Brasil e Argentina agem e interagem entre
si. Percebe-se que as polticas externas de cada pas entre os anos de 2003 e 2010 inserem a
6 Choques internos entre a polcia e os chamados piqueteros argentinos levaram morte de dois desses trabalhadores informais. A insatisfao popular com Duhalde por conta dessa questo social, somada a ainda questo da economia enfraquecida argentina fizeram com que sua reeleio se tornasse muito difcil (SANTORO, 2011, p. 127).
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regio sul-americana como tema relevante em suas agendas, o que torna imprescindvel o
estudo do Mercosul como instrumento de poltica externa.
A partir de tal pensamento, pode-se elaborar a hiptese 1 desta dissertao, que afirma
que a combinao dos governos que estiveram no poder no Brasil e na Argentina entre 2003 e
2010 foi o que, diante de combinaes de governos anteriores, conseguiu estabelecer a
parceria, que se tornou comum ao se falar da relao entre eles. No caso do Brasil, a parceria
se fixou como estratgica. Na Argentina, primeiramente como estratgica e, posterior a 2007,
como indita. Aparte os conceitos, o significado o mesmo. Nesta hiptese, combinaes
hipotticas de presidentes no cabem, sendo avaliadas apenas as que realmente existiram.
Como consequncia da hiptese 1 est a hiptese 2, que estabelece que a aproximao
entre Argentina e Brasil, e suas relaes guiadas por suas respectivas polticas externas,
mudou o perfil do Mercosul, de modo que estes pases o colocaram como centro de uma
estratgia regional at como meio de angariar uma melhor posio internacional. Os
governos de Kirchner e Lula tinham conscincia dessa importncia e entendiam que o bloco
j tinha certa solidez impossvel de se voltar atrs. O que se percebeu, a partir de 2003, foi a
motivao para modificar o carter do Mercosul, para que deixasse de ser apenas um
instrumento comercial intrarregional.
O segundo mandato de Lula e o primeiro mandato de Cristina Fernndez de Kirchner,
iniciado em 2007, deram prosseguimento em termos de valorizao do parceiro e do
mecanismo regional ao que j havia sido implementado nos anos anteriores. A parceria
entre Brasil e Argentina, conforme expressada em discursos oficiais, continuou sendo um
ponto forte de cada governo, assim como a presena do Mercosul como elemento marcante de
poltica externa e de consequente aproximao de ambos.
A partir do explicado anteriormente, se torna mais visvel o motivo pelo qual esta
dissertao resolveu tratar deste tema e deste perodo histrico. Os governos supracitados se
tornam relevantes, de acordo com a lgica deste trabalho, porque foram imprescindveis para
a construo de uma viso de parceria entre Argentina e Brasil que ainda no tinha sido vista
em momentos anteriores nos moldes a que foi apresentada8. A coincidncia de mandatos dos
ento presidentes se tornou pea fundamental para a compreenso da hiptese levantada por
esta dissertao. Da mesma forma, a grande dificuldade que o Mercosul vinha enfrentando 8 O conceito em si de parceria utilizado entre Brasil e Argentina foi documentado em momentos anteriores, sendo o ano de 1997 marcado pela elaborao da Declarao do Rio de Janeiro, em que os ento presidentes falaram inicialmente da aliana estratgica entre os pases. Essa aliana se caracterizaria, resumidamente, pelo fato do Brasil e da Argentina estarem unidos pelos ideais de sua gente, por sua vontade poltica, por compromissos formalmente assumidos e por uma vocao econmica e cultural comum (MINISTRIO DAS RELAES EXTERIORES, 1997). No entanto, o uso do termo foi intensificado a partir de 2003, assumindo caractersticas dos novos governos. Alm disso, o conceito de Lessa (2010) aplica-se parceria de ps-2003.
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16
por conta de desarranjos econmicos na regio, alm da perda de sua credibilidade, foi de
certa maneira modificado pelos governos naquele perodo. A partir desse momento, o
Mercosul retomou, principalmente se analisados os discursos oficiais, grande papel
estratgico na poltica exterior da Argentina e do Brasil para a regio.
Ainda sobre a justificativa para a escolha deste tema, importante ressaltar que o
estudo contido nesta dissertao lida com duas questes relevantes para as Relaes
Internacionais: poltica externa e integrao regional. Em relao ao primeiro quesito, no se
pode negar que h material vasto tanto no Brasil como na Argentina, o que torna, at
determinado ponto, a pesquisa bibliogrfica menos complexa. No entanto, este trabalho se
baseia diretamente na anlise perceptiva da relao entre Brasil e Argentina e da atuao de
cada ator em poltica externa que, em conjunto, trazem segundo as hipteses efeitos
positivos para um processo de integrao importante para a Amrica do Sul. Existem poucos
estudos sobre o tema (MONTEIRO, 2010), mas que se concentram em um dos pases. H de
se avaliar, tambm, que uma abordagem acerca das percepes como varivel na tomada de
deciso em poltica externa fornece elementos interessantes sobre como tais questes tm
efeitos em uma conjuntura regional e nas diversas reas de interesses de cada governo. Esta
questo traz um benefcio relevante a partir do momento em que se torna um elemento
explicativo muito forte de como se constroem coalizes polticas e conjunturas regionais que
possam ser determinantes para a mudana dos rumos das relaes na regio sul-americana.
Alm disso, no h como esquecer que as relaes Brasil-Argentina sempre tiveram
um peso importante para a dinmica regional sul-americana, seja por serem pases com
grande importncia poltica na regio, seja porque passaram grande parte da histria nutrindo
uma cultura de rivalidade (RUSSELL; TOKATLIAN, 2003, p. 11), ou porque, em tempos
recentes, passaram a possuir economias fortemente atreladas. Assim, a busca do entendimento
desse relacionamento, principalmente sob os governos Lula e de Nstor Kirchner e Cristina
Fernndez de Kirchner ajuda a compreender de forma mais slida como a regio se tornou
estratgica e o Mercosul recuperou seu peso na cena internacional.
Por fim, o segundo quesito, relacionado integrao regional, se mostra como um
elemento importante de toda essa anlise. A modificao do carter do Mercosul, defendida
por meio da hiptese apresentada nesta dissertao leva a questionar como uma iniciativa que
antes se encontrava desacreditada e fracassada pode ganhar relevncia estratgica para os
pases em questo. Por esse ponto, colocam-se em xeque alguns autores que, ainda hoje,
desacreditam esse mecanismo, principalmente quando falam de questes comerciais
(COUTINHO, 2009). Assim, a temtica da integrao regional busca respaldo nas anlises de
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como se deram as polticas externas dos seus dois membros mais significativos, de forma a
melhorar a instituio, assim como as percepes contribuem para o entendimento dessa
anlise.
J se tratando da abordagem terica escolhida para esta dissertao, foram
selecionados alguns aspectos da teoria construtivista das Relaes Internacionais, alm das
ideias de percepes e atores internos defendidas por autores como Robert Jervis (1976),
Charles Hermann (2003) e Sergio Caballero (2012).
O construtivismo, como teoria social, se constitui como uma teoria capaz de explicar
questes intersubjetivas (WENDT, 1992, p. 394). Dentre seus pontos mais relevantes e
fundamentais, est a explicao de que a estrutura socialmente construda, fruto das
interaes e atuaes dos atores, chamados de agentes. Portanto, ao contrrio das chamadas
teorias racionalistas, para o construtivismo, as estruturas da poltica mundial so sociais, de
maneira a se entender que estas so resultado de dinmicas sociais e de ideias, e no apenas
de questes materiais (RAMOS; MARQUES; JESUS, 2009, p. 77). Ao mesmo tempo, esses
agentes sofrem interferncias das prprias estruturas. Ou seja, os agentes sofrem influncia da
prpria interao entre eles e, por consequncia, da estrutura. Por isso, o que se pode observar
a chamada co-constituio entre agente e estrutura, negando a antecedncia ontolgica
discutida entre agente e estrutura presente em outras teorias, e afirmando influncias de
mesmo peso entre eles (NOGUEIRA; MESSARI, 2005, p. 163).
Por esta linha, pode-se dizer que a interao entre o Brasil e a Argentina, como
Estados se d ao mesmo tempo em que esses Estados so agentes e estrutura. Esta dissertao
quer, com isso, afirmar que Brasil e Argentina, enquanto agentes, interagem, formulam
percepes, interesses e preferncias, e acabam por influenciar no esquema regional
mercosulino, modificando-o e colocando-o como centro estratgico de ambos os pases; assim
como a prpria estrutura regional, modificada, altera interesses, percepes e preferncias dos
pases, e influencia na interao e atuao deles para o prprio bloco. Nesta primeira anlise,
de Estados como agentes, este trabalho analisa de forma factual o primeiro dos sentidos de
influncia; ou seja, a noo de que Argentina e Brasil, como agentes, e a partir de uma
configurao de poltica externa como poltica de Estado interagem e constroem
percepes, preferncias e interesses, de modo a influenciar o Mercosul, como organismo no
qual esto inseridos.
Porm, para se entender por completo o objetivo deste trabalho, preciso compreender
os Estados como estruturas. A interao de agentes internos, e consequente formulao de
interesses e percepes, influenciam na poltica externa de um pas. Ou seja, a partir dessa
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lgica, ao se estudar o Estado como agente de poltica externa, percebe-se que este fruto de
interaes sociais (RAMOS; MARQUES; JESUS, 2009, p. 77). Isso faz com que se entenda
que percepes, preferncias e interesses advindos desses atores podem influenciar a poltica
externa de um pas, de modo que este mesmo pas seja estudado, nesse aspecto, como uma
estrutura9.
Com relao s percepes, a abordagem encontrada para esta dissertao foi a
elaborada por Robert Jervis (1976), de que os mecanismos psicolgicos podem influenciar na
tomada de deciso. Desta forma, Jervis impede que haja interpretaes simplistas das relaes
internacionais. O autor tambm analisa a existncia de atores internos como relevantes para a
poltica externa, uma vez que o meio externo no o nico a determinar mudanas na conduta
de um pas.
Charles Hermann (1990), que tambm ser utilizado nesta dissertao, lida com
quatro atores importantes na questo da mudana em poltica externa, que so a figura do
lder, o corpo burocrtico, estruturas internas e o ambiente externo. Hermann procura por
meio de sua obra entender a questo da mudana na tomada de deciso em poltica externa, de
modo que, para esta dissertao, entenda-se que nos contextos do Brasil e da Argentina, o
Estado o tomador em poltica externa, muitos atores internos podem influenciar, por meio
de suas percepes, as percepes do Estado como ator.
Nesta dissertao, no entanto, apesar de serem estudados os agentes internos, como a
figura dos presidentes, a questo de suas orientaes partidrias ou seja, a influncia das
ideias desses partidos nesses presidentes e na poltica exterior proposta como resultado e a
proposta de reestruturao interna desejada por setores domsticos10, trabalhar-se- com o que
estes mesmos atores expressam. Isto quer dizer que no se pode negar que esses agentes, em
interao, construram e remoldaram percepes e interesses. Todavia, esta dissertao ter
como foco o que os agentes internos expressam, de modo que, com a chegada das figuras
presidenciais ao poder, tais atores influenciaram o Estado em sua poltica externa. O estudo
9 Com relao questo de Estado como agente complexo, relevante comentar que, apesar de se pensar no Estado como estrutura influenciada por agentes internos que atuam na construo do comportamento estatal, este trabalho lidar com a expresso desses atores internos; e no no comportamento e nas percepes dos mesmos. Deste modo, o uso do Estado argentino e do Estado brasileiro como agentes principais para a conduo da poltica externa nesta dissertao se validar como proposta principal e nica. Para que a explicao no se perca, dados sero apresentados ao longo desta introduo e no captulo seguinte, terico. 10 Esta situao forte no caso argentino. Muitos aspectos do modelo proposto por Carlos Escud de Realismo Perifrico, e que foi aproveitado para guiar a poltica externa de alinhamento de Menem (1989-1999), serviram para que, em 2003 mesmo com Menem se candidatando primeiramente a estas eleies, muitos setores da sociedade negassem tal poltica, procurando uma mudana de modo a reestruturar economicamente a Argentina. Para maiores detalhes sobre esse modelo, ver: ESCUD (1997). 166 p. Para uma leitura em portugus, recomendamos: MISI (1999).
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contido nesta dissertao trabalhar apenas com percepes e interesses no nvel estatal, ou
seja, de Argentina e Brasil como atores.
Outro ponto tratado pelo construtivismo a questo da anarquia como estrutura. Para
eles, a estrutura anrquica no serve para definir as relaes internacionais (NOGUEIRA;
MESSARI, 2005, p. 167). Por isso, colocam que a anarquia tambm socialmente construda,
o que faz com que no seja um ambiente puramente conflituoso, onde reine a noo de
autoajuda; mas sim um ambiente onde pode ocorrer a cooperao. Wendt (1992), apesar de
defender essa mesma ideia, aponta um elemento a mais. O autor coloca, como o prprio ttulo
do texto prev, que a anarquia, como ambiente de possvel conflito e cooperao, o que os
Estados, ou seja, os agentes, fazem dela. Por isso, como dizem Nogueira e Messari (2005), o
construtivismo de Wendt centrado nos Estados, a partir do momento em que este reconhece
sua centralidade no entendimento dos fenmenos sociais.
por essa lgica de um estudo construtivista centrado nos Estados que a abordagem
dessa dissertao ser direcionada. Foi explicado anteriormente toda a questo de co-
constituio entre agente-estrutura, mas, ao mesmo tempo, foi afirmado que se usaria uma via
de influncia e que, portanto, a anlise daria partida pela poltica externa do Estado brasileiro
e do Estado argentino.
Ou seja, ser adotada uma abordagem em que as percepes dos presidentes, partidos
e instituies domsticas so tidas como j formuladas, sendo vlida apenas a expresso
dessas percepes. A partir deste ponto que se iniciar a anlise: da ao do Estado como
agente; ou seja, da poltica externa do Estado como um todo.
Este trabalho foca em como essas polticas externas adotadas para uma maior
aproximao com os pases da regio e valorizao da integrao e do Mercosul fizeram com
que houvesse maior interao entre Argentina e Brasil como agentes estatais. E pretende-se
aqui mostrar como as percepes anteriores, j formuladas, permitiram, no s a aproximao
dos Estados, como agentes, mas como esses agentes interagiram, de modo a terem percepes
alteradas nesse estudo no sentido de serem reafirmadas, com o comportamento positivo do
outro e, consequentemente seguirem em uma modificao estratgica do Mercosul.
A dissertao dividida em cinco captulos, mais a concluso. No primeiro captulo,
tratado de forma mais extensa e completa o marco terico. A partir de autores que trabalham
com a teoria construtivista e com a ideia de percepes, a anlise dada, de modo que se
entenda a expresso dos atores internos como forma de influenciar os governantes, alm do
estudo da percepo do Estado como agente, e consequente poltica externa adotada por cada
um desses agentes, ou seja, os Estados.
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O segundo captulo apresenta a perspectiva histrica. Nesta parte, dada nfase nos
governos dos dois pases a partir da dcada de 1980, perodo no qual a houve o perodo de
redemocratizao. So abordadas as polticas externas dos agentes Brasil e Argentina at o
ano de 2002 e 2003, respectivamente, onde se encerram os governos de Fernando Henrique
Cardoso e Eduardo Duhalde. Tambm so estudadas as distintas fases do Mercosul, desde sua
criao, em 1991, at o momento de crise e perda de credibilidade, no incio do sculo XXI,
como forma de explicar a relao entre Argentina e Brasil. Por fim, no se pode esquecer de
analisar as assimetrias existentes entre os dois Estados, j que isso por vezes prejudica as
relaes entre eles e o andamento do mecanismo regional.
Os terceiro e quarto captulos tratam do Brasil e da Argentina separadamente, de modo
que, em conjunto, possam justificar e afirmar a hiptese 1, apresentada anteriormente. O
terceiro captulo analisa o governo de Lula, em termos de poltica externa, percepes do
Estado como agente, influncia da atuao dos atores internos e relao com o vizinho. Neste
captulo, a partir do estudo da poltica externa, se perceber a importncia do Mercosul para o
governo Lula, e da Argentina como parceiro estratgico.
Da mesma maneira, o captulo 4 lida com os mesmos pontos do terceiro captulo, s
que do ponto de vista da Argentina. Com isto, estuda a poltica exterior dos governos de
Nstor Kirchner e Cristina Fernndez de Kirchner, bem como a importncia do vizinho e do
Mercosul como mecanismo de integrao. Como ponto comum entre os captulos, a questo
das assimetrias existentes entre eles recebe destaque.
O quinto e ltimo captulo aborda a hiptese 2 desta dissertao. Ou seja, testada a
hiptese 1 nos captulos 3 e 4, este captulo final demonstra como o Mercosul teve sua
atividade reconfigurada. Por meio de exemplos e dados, possvel mostrar uma plataforma
diferente da predominantemente econmica usada pelo bloco ao longo da dcada anterior. E
isto foi possvel pelo grau de aproximao entre Lula, Nstor Kirchner e Cristina Fernndez
de Kirchner.
Por fim, a concluso ter como objetivo reunir as informaes contidas nos captulos
anteriores, para que seja melhor compreendida, por parte do leitor, as hipteses e o que delas
for desenvolvido. Portanto, a concluso apresenta reflexes sobre o tema desta dissertao,
sendo possvel pensar sobre as polticas externas do Brasil e da Argentina, sobre os conceitos
de parceria e sobre a influncia no Mercosul, de modo que este tenha sido reconfigurado.
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1 QUESTES TERICAS E ANLISE DE POLTICA EXTERNA
Nas Relaes Internacionais, diversas teorias foram desenvolvidas para explicar
questes factuais, tendo como representantes vrios autores de peso ao longo das dcadas de
desenvolvimento da disciplina. Em poltica externa no foi diferente, e sua anlise j foi
objeto de estudo de vrios tericos e acadmicos, sejam trabalhos antigos ou recentes. Por
esta razo, acontecimentos no sistema internacional, na esfera estatal e no interior desses
mesmos Estados so motivos de anlise envolvendo teorias de poltica externa como um todo
ou especficas desenvolvidas por alguns autores.
Os estudos de poltica externa do Brasil e da Argentina, analisando indicativos dos
mandatos de Lula, pelo Brasil, e de Nstor e Cristina Fernndez de Kirchner, pelo lado
argentino, mostram a proeminncia de se abordar questes tericas que fundamentem a
compreenso dos elementos de cada poltica por parte do leitor. Acredita-se que um captulo
direcionado discusso de poltica externa e sua incluso em diferentes pontos da teoria das
Relaes Internacionais relevante para se compreender a abordagem utilizada no estudo
envolvendo Brasil e Argentina, alm do Mercosul como instituio regional. Trata-se,
portanto, dos anos de governo supracitados, analisando ideias e percepes e aes em
poltica externa por parte de cada pas, assim como o papel de um na poltica do outro e o
efeito que tais polticas trouxeram ao Mercosul.
Ao longo deste captulo, analisado o conceito de poltica externa, assim como sua
insero na teoria das Relaes Internacionais, e o desenvolvimento da prpria disciplina.
Tambm sero apresentados autores pertinentes para o desenvolvimento das ideias contidas
neste trabalho; o que significa no ser de interesse da autora se prender a uma nica teoria ou
a um nico terico especialista no tema por acreditar que tal deciso empobreceria a
compreenso geral do estudo. Afinal, em se tratando do campo de Relaes Internacionais, a
diversificao de atores e agendas, alm da complexidade e interdependncia no sistema
internacional, verificadas nas ltimas dcadas, pode exercer efeito positivo ao meio
acadmico, permitindo uma anlise livre que complete lacunas que teorias fechadas no
conseguem solucionar.
A seguir, estudado o conceito de poltica externa, assim como a presena da anlise
de poltica externa como subrea das Relaes Internacionais. Este tpico abrir caminho para
os temas subsequentes, que envolvem a utilizao de autores considerados relevantes para o
entendimento do objeto.
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1.1 Poltica Externa como conceito
Em seu livro Poltica Externa Brasileira (1889-2002), Letcia Pinheiro utiliza
prontamente a primeira pgina da obra para definir o que viria a ser o conceito de poltica
externa. Para a autora: A poltica externa pode ser definida como o conjunto de aes e decises de um determinado ator, geralmente mas no necessariamente o Estado, em relao a outros Estados ou atores externos tais como organizaes internacionais, corporaes multinacionais ou atores transnacionais , formulada a partir de oportunidades e demandas de natureza domstica e/ou internacional. (PINHEIRO, 2004. p. 7).
Segundo Charles F. Hermann (1990, p. 5), no artigo Changing Course: When
Governments Choose to Redirect Foreign Policy, a poltica externa pode ser caracterizada
como [...] um programa (plano) traado para solucionar algum problema ou para buscar um
objetivo que implique na ao para com as entidades estrangeiras 11 (traduo nossa). Uma
terceira definio de poltica externa pode ser trazida por Ricardo Seitenfus, que a caracteriza,
em traos gerais, como decises que manifestam a vontade coletiva, mas que so apenas
tomadas pelo Estado (SEITENFUS, 1994. p. 18).
Deste modo, Seitenfus defende a ideia de que poltica externa refere-se unicamente a
ao estatal, diferentemente de relaes externas, que envolvem aes de outros atores que
no o Estado. Esta explicao se torna possvel ao autor por afirmar que a questo da
soberania fundamental, j que apenas o Estado tem as prerrogativas de representar
politicamente o pas no exterior e de fazer guerra, assim como concluir a paz12. De fato, o
Direito Internacional confere esse direito ao Estado, uma vez que as organizaes
internacionais ainda no so reconhecidas por todos os autores da rea como um sujeito do
Direito com amplos poderes, assim como o Estado o .
No entanto, no se pode esquecer que Seitenfus, ao mesmo tempo em que garante em
sua conceituao o papel central do Estado, avalia que esta condio no pode ser instrumento
para o isolamento deste ator, uma vez que muitos so unidades federadas, no caso do Brasil.
Portanto, as decises tomadas pelo Estado so federativas e passam pela manifestao da
vontade do coletivo13.
11 O texto em lingua estrangeira : [...] it is a program (plan) designed to address some problem or pursue some goal that entails action toward foreign entities. 12 idem. p. 18. 13 Idem. P. 18.
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Seguindo pela mesma linha de raciocnio est Christopher Hill, que define poltica
externa como o conjunto de relaes externas oficiais conduzidas por um ator independente
(normalmente o Estado) nas relaes internacionais 14 (HILL, 2003, p. 03) (traduo nossa).
O autor afirma a centralidade do Estado na conduo da poltica externa, porm sem deixar de
apresentar que a esfera internacional tambm formada por estruturas polticas, burocrticas e
sociais. Por isso, tanto fatores domsticos como internacionais influenciam na poltica
externa; nas aes e decises.
Assim como as definies acima apresentadas, existem diversas outras conceituaes
do termo poltica externa, diferentes por usos distintos de palavras ou at mesmo por
entendimentos diferentes do tema. Isso se justifica pela complexidade em se conseguir uma
definio universal para o conceito de poltica externa, uma vez que no h consenso por
parte de acadmicos, governos e outros atores existentes.
Objetivamente, aqui elaborado um conceito de poltica externa semelhante ao
estabelecido por Ricardo Seitenfus e Christopher Hill, com maior prevalncia ao conceito de
Seitenfus. Acredita-se que a poltica externa, apesar de ser influenciada por outros atores e, ao
mesmo tempo, ser resultado da interao dos mesmos na poltica domstica, implementada
apenas pelo Estado. Ou seja, o ator estatal como um todo o responsvel.
Isto no invalida que outros atores que no o Estado sejam relevantes para a
formulao da poltica externa de um pas. Pode-se encontrar em teorias positivistas lacunas
que no conseguem explicar como de fato a interao e complexidade entre o domstico e o
internacional so fundamentais para o estudo. , ento, importante valorizar os processos
domsticos e atores sociais e transnacionais quando se fala em poltica externa.
1.2 Poltica Externa e seu surgimento como subrea das Relaes Internacionais
Ao ser analisada, pode-se constatar que a disciplina das Relaes Internacionais foi,
por bastante tempo, dominada pela teoria realista, um paradigma que, como explicam Joo
Nogueira e Nizar Messari (2005, p.23), tem como premissas principais a centralidade do
Estado, a sobrevivncia como fim e o poder - definido entre os conceitos de autoajuda e
anarquia - como meio para garantir essa sobrevivncia.
14 O texto em lingua estrangeira : [...] the sum of official external relations conducted by an independent actor (usually a state) in international relations.
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Muitas das premissas realistas esto contidas em obras de autores clssicos como
Maquiavel, Hobbes e at Tucdides, usados para legitimar este paradigma que se formava
dentro da disciplina das Relaes Internacionais, no incio do sculo XX. No entanto, apenas
em 1939, quando foi publicado por Edward Hallett Carr o livro Vinte Anos de Crise - 1919-
1939: uma introduo ao estudo de Relaes Internacionais, que o realismo acabou por ser
conceitualmente definido (CARDOSO, 2010. p. 19) e diferenciado de outros paradigmas de
pensamento.
Em sua publicao, lanada no incio da Segunda Guerra Mundial, ocorrida entre os
anos de 1939 e 1945, Carr (2001) afirma que existe uma diferena entre os tericos das
Relaes Internacionais que o prprio autor chama de utpicos e realistas. O primeiro grupo,
majoritariamente dominante at os anos 1930, pregava o mundo como deveria ser, em termos
de harmonia de interesses e paz internacional.
J o segundo grupo de cientistas, no qual se inclua Carr, trazia como forma alternativa
do pensamento liberal a ideia de que era necessrio estudar o mundo como ele era, de forma a
pensar em termos de sobrevivncia do Estado e interesses nacionais. Para Carr, os utpicos,
igualmente chamados de idealistas, tambm falhavam ao negligenciar quase que de maneira
total o fator poder, imprescindvel nas Relaes Internacionais (CARR, 2001. p. 17-22).
Hans Morgenthau, em A Poltica entre as Naes: a luta pelo poder e pela paz, de
1948, estabeleceu, de fato, a teoria realista em oposio ao idealismo (NOGUEIRA;
MESSARI, 2005. p. 33; LIMA, 2000, p. 269). No livro, o autor define seis premissas bsicas
e centrais do realismo, a saber: 1) a poltica governada por leis objetivas que refletem a
natureza humana; 2) os interesses so definidos em termos de poder; 3) o poder como
universalmente definido e varivel de acordo com espao e tempo; 4) os princpios morais so
importantes, mas subordinados aos interesses; 5) princpios morais no so universalmente
definidos, mas sim particulares, e; 6) a autonomia da esfera poltica s outras esferas
(MORGENTHAU, 2003, p. 4-28).
Com isso, o realismo tomou forma e se consolidou como mainstream nas Relaes
Internacionais. Principalmente aps a Segunda Guerra Mundial, o paradigma realista ganhou
dominncia no espao que anteriormente era predominante do pensamento idealista. Como
Jack Donnelly (2000, p. 28) afirma,
[...] o realismo era to dominante que uma reviso feita no campo de estudo concluiria que antirrealistas genunos eram difceis de encontrar. [...] O estudo das relaes internacionais, nascido no idealismo depois da Primeira Guerra Mundial, tinha sido efetivamente fundado
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novamente depois da Segunda Guerra Mundial por meio de premissas realistas 15 (traduo nossa).
No entanto, a partir do final da dcada de 1950 e incio da dcada de 1960, crticos ao
realismo surgiram para questionar premissas como interesse nacional e o balano de poder.
Nos anos 1970, a revoluo behaviorista, com seu desejo de tornar a disciplina das Relaes
Internacionais, assim como as demais cincias sociais, mais cientfica, j havia deixado sua
influncia no campo, o que permitiu o reconhecimento de diversos autores que traziam ideias
diferentes e at contrrias ao estabelecido pelo realismo ao longo das dcadas.
Com isso, teorias pluralistas se desenvolveram com mais fora, trazendo trabalhos
importantes para repensar as relaes internacionais, como por exemplo, o livro de Robert
Keohane e Joseph Nye, intitulado Power and Interdependence, de 1977. No trabalho, os
autores buscaram apresentar a existncia de uma interdependncia entre as naes,
principalmente econmica, uma vez em que a deciso de um Estado interferia no outro. Da
mesma forma, atores dentro de um pas poderiam realizar aes que interferissem em atores
de outro pas. Deste modo, era necessrio que os pases e diferentes atores soubessem lidar
com a interdependncia, j que esta poderia ser, caso no trabalhada de forma correta, fonte
de conflitos (KEOHANE; NYE, 1989. p. 09; 24-25).
Keohane e Nye, ao trabalharem ao mesmo tempo com pases e outros atores diversos,
entendiam a existncia das esferas domstica e internacional. Neste ponto, os autores, ao
contrrio do que pregava o paradigma realista de que o Estado seria uma caixa-preta
unitria, afirmavam que existiam atores domsticos relevantes que tentavam definir seus
interesses como os interesses do Estado no ambiente externo. Desta maneira, definir o Estado
como unitrio implicaria em perder a influncia das aes domsticas para a formulao de
polticas estatais (KEOHANE; NYE apud CARDOSO, 2010, p. 25).
A crtica ao modelo de Estado unitrio, realizada por Keohane e Nye, demonstra um
comportamento que j passa a ser construdo pelos estudiosos da rea de Relaes
Internacionais. Nesse momento, a literatura voltada para a anlise de elementos cognitivos
favorece o florescimento da anlise de poltica externa no campo. Antes mesmo de Keohane e
Nye, outros autores haviam realizado estudo semelhante.
Em 1961, os cientistas polticos Richard Snyder, Henry W. Bruck e Burton Sapin
lanam um captulo no livro International Politics and Foreign Policy, organizado por James
15 O texto em lngua estrangeira : [] realism was so dominant that one review of the field concluded that genuine anti-realists are hard to find. [] The study of international relations, born in idealism after World War I, had been effectively refounded after World War II on realist premises.
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Rosenau, intitulado The Decision-Making Approach to the Study of International Politics. No
texto, os autores abordam o comportamento dos atores envolvidos na formulao e na
execuo da poltica externa.
Snyder, Bruck e Sapin avaliam que os trabalhos realistas pecavam em perceber no
Estado, como ator unitrio, um ponto de interseo entre fatores materiais e ideolgicos. Na
verdade, esse ponto de interseo no deveria ser o Estado, mas sim os tomadores de deciso
que agem em nome do Estado. Ao se observar os tomadores internos, o comportamento
poltico pode ser analisado de maneira melhor. No entanto, apesar de chamarem ateno para
os tomadores de deciso internos, os autores acreditam que o Estado continuaria sendo aquele
que decide estratgias de ao e define comprometimento de recursos (SNYDER; BRUCK;
SAPIN, 1961. p. 187).
Alm disso, os autores tratam do tema interesse nacional, que acreditam que tem
que ser definido de acordo com as percepes dos tomadores de deciso, que podem sofrer
modificaes de acordo com o que os autores chamam de situao. Esta construda de
acordo com a ao e com o motivo desta mesma ao, assim como com a forma que o ator
lida com outros atores16.
Snyder, Bruck e Sapin tambm publicaram em 1962 Foreign Policy Decision Making:
an approach to the study of international politics. A obra segue a mesma tendncia da
anterior ao criticar o realismo. Segundo Herz (1994, p. 76), o que foi escrito pelos autores em
questo
[...] abriu caminho para a criao da subrea de anlise de poltica externa. Na medida em que as percepes dos tomadores de decises eram consideradas um elemento explicativo fundamental, esse trabalho tambm inaugurou o exame de variveis cognitivas formadoras da poltica externa. [...]
Desta forma, a valorizao dos tomadores de deciso, assim como de elementos
cognitivos nas anlises no mbito das Relaes Internacionais beneficiou o fortalecimento dos
estudos de poltica externa como subrea da disciplina, que se multiplicaram ao longo das
dcadas posteriores a 1950.
A anlise terica se mostrou necessria para se compreender que a disciplina de
Relaes Internacionais, dominada, por anos, pela corrente realista, abriu o leque de
possibilidade de estudos que focavam em mltiplos atores, domsticos e externos, e
pensamentos mais amplos ou diferentes dos expostos at ento.
16 Idem, p. 188.
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A revoluo behaviorista trouxe a anlise de poltica externa para alm da viso dos
Estados como atores nicos e fechados. Desta forma, foi permitido olhar para formuladores
dentro da caixa estatal, como tambm para atores que no o Estado. O trabalho de Snyder,
Bruck e Sapin se tornou relevante para a compreenso de que, apesar do Estado ser
importante como o ator que decide e implementa as estratgias de poltica externa, existiriam
outros atores que poderiam influenci-la. Desta forma, abriu-se a caixa-preta estatal, noo
esta defendida pelo realismo.
Com novos tomadores de deciso a serem levados em conta nas Relaes
Internacionais, na subrea de poltica externa, a noo apresentada acima por Herz de que as
percepes destes mesmos atores eram consideradas elementos explicativos, se tornou
fundamental entender como tais percepes influenciam no estudo de poltica externa.
Com isso, ser mais claro ver como Brasil e Argentina, atores principais deste
trabalho, agem a partir de percepes. Da mesma forma, ser de melhor compreenso
perceber como os atores internos tm suas aes estudadas neste trabalho influenciadas
pelas percepes. Esta dissertao no trabalha diretamente com as percepes dos atores
internos aos Estados, mas fundamental entender como tal mecanismo funciona.
1.3 Percepes, identidade, preferncias e interesses na tomada de deciso:
multiplicidade de atores
Em diversos momentos, vrios autores, apesar da influncia do contexto ao qual
estavam vivendo, escreveram sobre a importncia de se pensar a multiplicidade de atores
existente no sistema internacional. Ao mesmo tempo, incluram em seus estudos diferentes
fatores ideacionais responsveis por influenciar uma tomada de deciso em termos de poltica
externa, o que explica em grande medida a adoo de teorias que fossem de encontro ao
estabelecido como mainstream nas Relaes Internacionais.
Em 1976 Robert Jervis publicou o livro Perception and Misperception in International
Relations. Posterior s obras importantes de Snyder, Bruck e Sapin, o livro de Jervis traz o
estudo dos mecanismos psicolgicos que podem influenciar no processo decisrio, ou seja, o
estudo das percepes como causa do comportamento dos atores e das escolhas polticas que
eles tomam (JERVIS, 1976. p. 30; HERZ, 1994. p. 77). Como o autor diz, [...]
normalmente impossvel explicar decises cruciais e polticas sem referncia s crenas dos
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tomadores de deciso sobre o mundo e sua imagem dos outros (JERVIS, 1976. p. 28)
(traduo nossa) 17.
Desta maneira, Jervis tem por objetivo principal em seu trabalho analisar os
mecanismos que filtram a informao incorporada pelos agentes decisrios (JERVIS apud
HERZ, 1994, p. 77), de modo que todas as informaes que chegam ao tomador de deciso
sejam assimiladas de acordo com as crenas e as ideias j presentes em cada um. Assim, h
uma crtica s teorias racionalistas, dentre elas o realismo, que colocam a ao do tomador de
deciso, que nesse caso o Estado, como fruto de uma escolha apenas racional. Na verdade,
para Jervis, o que h uma influncia grande das percepes nas aes do lder, negando
avaliaes simplificadas e objetivas.
Jervis tambm trabalha com a questo de erro e acerto, por isso os conceitos
perception e misperception em seu livro. De acordo com o autor, uma escolha acertada
para ser tomada como ao exige que se tente por parte do ator prever o comportamento do
outro. Desta forma, necessrio acompanhar as aes e reaes do outro ator, assim como
tentar se colocar no lugar do mesmo. Tambm se faz importante analisar o processo interno
que o outro ator possui.
J Federico Merke apresentou em 2008 sua tese sobre poltica externa e a questo das
identidades. Apesar do contedo de identidades no ser o foco deste estudo terico, vale a
pena oferecer as ideias que o autor argentino utilizou em seu trabalho por tratar
especificamente de Argentina e Brasil, e por fugir do contedo realista de Estado como ator
nico na tomada de deciso, em que a dimenso material era a nica relevante (MERKE,
2008, p. 08). Segundo ele, o fator ideacional influencia na tomada de deciso.
Abordando um enfoque construtivista de carter individual e discursivo18, Merke
busca trazer uma anlise da poltica exterior de Argentina e Brasil, assim como das foras que
do forma a essa poltica. A chave est em entender a conexo existente entre identidade e
poltica externa, a partir da verificao de discursos e tradies de poltica externa construdos
pelos dois pases. Ao tratar do perodo entre os anos 1980 e 2000, o autor diz que em um novo
cenrio (constitudo de elementos como democracia, integrao, o sistema ps-Guerra Fria e a
globalizao) Argentina e Brasil se encontraram em um processo pleno de reconstruo de
17 O texto em lngua estrangeira : [...] it is often impossible to explain crucial decisions and policies without reference to the decision-makers beliefs about the world and their images of others. 18 Por esse aspecto, o autor avalia que os discursos so importantes para a compreenso da prpria identidade por parte do coletivo, e que o Estado e a poltica exterior so importantes, e no o sistema internacional. O Estado, por sua vez, visto como espao pblico, onde elites polticas formam uma representao que constitua a identidade poltica do Estado como um todo. E por a, h a construo de um discurso hegemnico sobre a identidade. Ou seja, a identidade influencia nos interesses do outro, e vice-versa.
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identidades polticas e de rearticulao de suas polticas externas a nvel regional e global
(MERKE, 2008. p. 11).
Para Merke, no a identidade que determina a poltica exterior, mas esta influencia
tal poltica, fazendo com que sejam possveis, ou no, a partir do que os atores consideram
correto, desejvel ou possvel19. As identidades deram forma s percepes e interesses que
guiaram a poltica externa. A crtica ao realismo e Merke se aprofunda bastante no realismo
estrutural ou defensivo que este acredita que o comportamento dos Estados no se explica
pelo regime poltico ou percepes e crenas, mas sim pela posio de cada Estado no sistema
internacional20. At o realismo ofensivo21, que prev influncia no comportamento do Estado
por parte da anarquia, acredita que as preferncias do Estado so configuradas pelas
capacidades materiais.
Zakaria (2000) chegou a propor que se pensasse o realismo de forma a elaborar
hipteses centradas nas percepes, de modo a pensar o Estado como estrutura que
trabalhasse, tambm, com percepes dos funcionrios os atores domsticos. Este realismo
neoclssico, que tentou combinar variveis domsticas e internacionais, em que agentes
domsticos atuam como decisores e possuem diferentes percepes, acaba por ser criticado
por Merke. O autor afirma que o realismo neoclssico se torna problemtico por entender que
percepes existem, s que sob uma realidade objetiva, material. As percepes acabam
parecendo dadas, parte da realidade que est l fora22. Tambm o foco em percepes de um
nico ator, como um presidente ou um ministro, no explica porque governos mudam e
polticas no. Neste aspecto, entra a lgica das identidades, internalizadas e constitudas
independentemente do governo.
No h como verificar no trabalho de Merke, porm, o movimento contrrio ao que
diz que as identidades do forma s percepes e interesses. Sua abordagem, ao elaborar um
estudo diversas vezes correto em direo ao estudo das identidades como elemento
influenciador de poltica externa, no identifica a influncia que as percepes tambm tm na
formao de uma identidade. Ao mesmo tempo em que um governo pode mudar e a poltica
no, pode acontecer da poltica externa sofrer alteraes por conta de uma entrada de governo
19 idem. p. 13. 20 Idem. p. 17. 21 O Realismo ofensivo uma variante do neorrealismo, ou realismo defensivo, cujo nome mais importante Kenneth Waltz. 22 idem. p. 25.
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que, internalizando ideias, modifica, em determinados aspectos ou completamente, a
identidade presente at ento.
Moravcsik (1997), ao realizar o estudo da relao Estado-sociedade, elabora um
trabalho que ajuda a compreender a questo das preferncias23 na tomada de deciso
(MORAVCSIK apud CARDOSO, 2010. p. 34). Para o autor, essa relao fundamental para
a poltica externa, pois o Estado sofre impacto direto das ideias, dos interesses e das
instituies sociais, e estes, por sua vez, definem a preferncia do Estado.
Em termos de atores sociais, Moravcsik afirma que estes so relevantes para as
decises estatais. As preferncias domsticas influenciam o governo, pois o pressionam para
adotar uma determinada poltica. So as preferncias que fazem o governo tomar decises,
traar estratgias e tticas e definir polticas Os grupos privados e os indivduos, para
Moravcsik, so pea-chave da poltica internacional, e estes podem cooperar ou no,
dependendo de seus interesses, quantidade de recursos e acesso ao poder poltico24. Portanto,
a poltica externa est restringida por identidades, interesses de grupos e indivduos
(MORAVCSIK apud MERKE, 2008, p. 32). E ainda mais: a conduta de um Estado no
depende s de suas preferncias, mas tambm depende das preferncias dos outros Estados.
J se tratando de integrao, Moravcsik coloca que os Estados so racionais e atuam
num determinado bloco regional para alcanar seus objetivos, que as preferncias nacionais se
constroem em funo da poltica domstica interdependente, que o Estado o melhor
interlocutor por conta das capacidades (MORAVCSIK apud, CABALLERO, 2012, p. 86).
Portanto, a integrao se d por uma demanda intergovernamental, e no do sistema. Talvez
neste ponto, Moravcsik deixe clara a proeminncia do Estado na conduo de poltica externa,
ao perceb-lo como melhor interlocutor. No entanto, resumir a conduta estatal pelas suas
capacidades pode ser um tanto simplista. verdade que o Estado recebe grande influncia de
atores domsticos em sua conduta, mas relembrando o raciocnio de Seitenfus (1994) ele
o nico ator capaz de realizar a poltica externa. Definir o Estado como apenas ator com
capacidades descarta a hiptese, defendida tambm nesta dissertao, de que o Estado,
enquanto agente decisrio, tambm sofre influncia de suas prprias ideias e constri
percepes acerca do Estado vizinho. Mltiplos atores esto presentes no sistema, o que no
significa descartar o Estado de sua importncia.
23 O autor afirma que o termo preferncia diz respeito ao ordenamento de objetivos e interesses de um Estado em sua interao na poltica internacional, e em sua relao com outros pases. 24 idem. p. 36.
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Caballero (2012) elabora um estudo mais recente em sua tese sobre o Mercosul,
utilizando uma abordagem pinada do construtivismo. Ao tratar das aes dos tomadores de
deciso para a construo deste processo integrativo, o autor pesa a importncia do campo
ideacional e social, se valendo da crtica s teorias que enxergam o Estado como caixa-preta
na constituio da poltica externa. Segundo ele, as ideias e percepes so a varivel
independente do processo e a integrao regional a dependente. A integrao se aprofunda
quando os atores do processo manifestam vontade poltica aqui, os Estados , quando se
cria um mecanismo de integrao para dar prosseguimentos quelas ideias e quando isso tudo
afeta os cidados, positiva ou negativamente (CABALLERO, 2012, p. 23).
Caballero utiliza percepes, valores e ideias para entender seu objeto de estudo. Esses
elementos so abarcados no que o autor chama de elementos ideacionais. As ideias e
percepes so geradas entre os tomadores de deciso por conta do relacionamento com o
mundo e com outros atores, e isso leva e determinadas aes. Resumidamente, a ideia do
autor se encontra no seguinte quadro:
Fonte: CABALLERO, 2012. p. 24
Os atores que participam deste processo, segundo Caballero, podem ser os Estados,
mas tambm aqueles que participam de outros nveis polticos, como presidente e ministros,
sociedade civil, sindicatos, empresas, ONGs, etc. No entanto, o autor foca nos Estados pelo
fato do Mercosul ter sempre um carter intergovernamental25. Por este pensamento, avalia-se
nesta dissertao o mesmo elemento, mas acredita-se, aqui, que o Estado central na
25 Com relao aos atores que compem o processo de deciso, Caballero afirma que, apesar da grande quantidade de atores existentes, aqueles que tomam as decises acabam por se tornar atores principais do processo. Portanto, o autor foca nos lderes e em suas ideias e percepes. Aqui, os lderes tambm tm papel forte, sendo trabalhada sua influncia na poltica externa.
Variveis Dependentes
Integrao com diferentes graus de aprofundamento: Decises prprias criam mecanismos de
integrao com impacto no projeto e na sociedade; e
discursos pr-integracionistas com fins legitimadores e/ou
eleitorais
Variveis Independentes
Materiais
Lgicas Geoestratgicas
Lgicas Econmicas
Ideacionais Lgicas
Identitrias e socioculturais
Produzem
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conduo da poltica externa, independente de ser no meio mercosulino ou em qualquer outro
mbito. Mas percebe-se a existncia de fatores e atores domsticos, assim como fatores
ideacionais que influenciam o comportamento estatal, como Caballero assim o faz. O trabalho
realizado pelo autor se foca como o do presente trabalho em analisar o nvel internacional, e
no o subestatal (CABALLERO, 2012. p. 45).
Corroborando seu raciocnio, o autor menciona o que entende como integrao
regional, que seriam
os processos, normas e instituies que se desenvolvem no interior de uma regio pela interao de atores internos e externos , tendentes a sintonizar suas identidades e valores compartilhados e a fazer convergir suas polticas, tanto com respeito ao interior da regio como com referncia ao contexto internacional (Idem, p. 40) (traduo nossa)26.
Por fim, cabe mencionar Christopher Hill (2003), autor que faz um estudo da poltica
externa, das estruturas burocrticas e do papel de outros atores que no apenas o Estado na
conduo de tal poltica. Para Hill, a esfera internacional tambm formada por estruturas
polticas, burocrticas e sociais. Por isso, fatores domsticos e internacionais influenciam na
poltica externa. Os agentes domsticos, alm de presidente e chanceler, so importantes. Isso
inclui ministros, empresas e at pessoas fsicas, que participam de processos internacionais.
Para o autor, a capacidade de agncia, de agir, um elemento importante de
constituio do mbito internacional. A poltica externa muito importante, sendo um
ambiente em que o domstico e o internacional se fundem. O autor inclusive chega a tratar
dessa configurao completa como questes intermsticas, jogo de palavras entre
internacional e domstico.
Ao elaborar o conceito de poltica externa, ele coloca no apenas o Estado como ator
importante, mas tambm outras estruturas27, e atores que, por mais que no tenham soberania,
tm grau de atuao. No entanto, o Estado ainda central, por conta da capacidade de
mobilizao poltica e por ser um ator independente (HILL, 2003, P. 41). Ele utiliza muito o
conceito de estrutura e atores (que ele prefere a utilizao ao invs de agentes) por afirmar
que o entendimento da capacidade de agir no ambiente internacional passa pelo estudo da
26 O Texto em lngua estrangeira : [...] los procesos, normas e instituciones que se desarrollan al interior de una regin por la interaccin de actores internos y externos-, tendentes a sintonizar sus identidades y valores compartidos y a hacer converger sus polticas tanto respecto al interior de la regin como con referencia al contexto internacional. 27 As estruturas para o autor no podem ser caracterizadas apenas como nicas e concretas, porque elas representam processos e interaes, onde agentes operam. J os agentes so entidades capazes de tomar decises em determinados contextos (HILL, 2003. p. 26-27). Para Hill, os agentes so os atores estatais e as burocracias.
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questo de agente/estrutura. Se os dois se constituem e se influenciam, estes necessitam ser
estudados28, Segundo o autor,
O processo decisrio em poltica externa um processo complexo de interao entre muitos atores inseridos em uma ampla variao de estruturas. Sua interao um processo dinmico, conduzindo evoluo constante de ambos, atores e estruturas (Idem, p. 28) (traduo nossa)29.
Portanto, o autor tambm faz uso de ideias construtivistas para entender a lgica de
influncia de atores diversos na conduo de poltica externa. Porm, este no nega a
relevncia do papel estatal. O ltimo tpico deste captulo tratar mais da questo
agente/estrutura luz do construtivismo. O que no pode ser esquecido que nesta
dissertao no se trata como os atores domsticos estabelecem influncia no comportamento
estatal, mas sim que tal comportamento tem traos de atores domsticos (consequncia)
porque, em muitos momentos, atitudes subestatais chegam at a paralisar ou modificar
comportamentos estatais. Portanto, os nicos atores a serem abordados so, por escolha da
autora, os que constam na teoria de Charles Hermann (1990), que ser tratado a seguir; mas
sem detalhamento de como suas preferncias se constroem uma vez em que h muita
complexidade em se tratar destes temas, e optou-se nesta dissertao por avaliar as percepes
e ideias como apresentadas a partir do enfoque estatal.
1.4 Mudanas em poltica externa
Em se tratando do estudo das mudanas em poltica externa, o trabalho de Jervis,
apontado anteriormente, ainda pode ser citado por trazer ideias coerentes. O autor afirma que
errneo por parte de outras teorias de anlise de poltica externa pensar que o meio externo
o nico determinante para a ao e o comportamento do Estado, pois assim todos os Estados
agiriam da mesma maneira. O autor diz que se este pensamento fosse dominante nas Relaes
Internacionais, seria fcil pensar que [...] mudanas no regime domstico de um Estado, sua
estrutura burocrtica, e as personalidades e opinies dos lderes no levam a mudanas na
28 Idem. p. 26-27. 29 O texto em lngua estrangeira :Foreign policy-making is a complex process f interaction between many actors, differentially embedded in a wide range of different structures. Their interaction is a dynamic process, leading to the constant evolution of both actors and structures.
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poltica. [...] (JERVIS, 1976. p. 18) (traduo nossa)30. No entanto, para Jervis, essa hiptese
refutvel.
A obra de Charles Hermann (1990) importante para se entender as ideias desta
dissertao, pois fornece um quadro para se pensar a continuidade e a mudana em poltica
externa. Na sua obra Changing Course: when governments choose to redirect foreign policy,
ele lida justamente com agentes internos e com a mudana na poltica externa. Seguindo a
linha de raciocnio de Jervis, Hermann analisa quatro agentes que podem influenciar em
mudanas na tomada de deciso e no comportamento dos Estados: 1) a orientao do lder, 2)
corpo burocrtico, 3) reestruturao domstica e 4) choques externos (HERMANN, 1990. p.
3).
Hermann, a partir da diferenciao entre ajustes e mudanas, analisa a questo do
comportamento em poltica externa. Para o autor, ajustes e mudanas tendem a ser diferentes.
O primeiro grupo, de ajustes, tem carter quantitativo e ocorrem de acordo com o grau de
esforo e/ ou clareza dos objetivos dos pases. Para os ajustes, o que decidido, como
realizado e os propsitos pelo qual certas medidas so tomadas permanecem constantes31.
J o segundo grupo, das mudanas, que podem ser divididas em mudanas de
programas, mudanas nos problemas/objetivos e mudanas na orientao internacional, tende
a ser mais qualitativo, por envolverem novos instrumentos de ao. As mudanas de
programas so mudanas no modo ou nos meios pelos quais um pas tenta chegar a seu
objetivo em poltica externa. O objetivo da poltica tende a ser constante, mas os instrumentos
se modificam32.
As mudanas de problemas/objetivos ocorrem quando as metas a serem alcanadas
so abandonadas ou modificadas. O objetivo da poltica externa muda, sendo substitudo por
um objetivo novo. E, por fim, as mudanas na orientao internacional, consideradas pelo
autor as formas mais extremas de mudana, consistem em redirecionar por completo a
orientao e ao dos atores estatais. Este ltimo tipo de mudana se torna diferente dos
anteriores por no focar apenas em determinados pontos, mas sim por alterar completamente
30 O Texto em lngua estrangeira : [...] Changes in a states domestic regime, its bureaucratic structure, and the personalities and opinions of its leaders do not lead to changes of policies. [] 31 Idem. p. 5. 32 idem. p. 5.
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os objetivos e as atividades internacionais de um pas. A orientao do pas muda por
completo33.
Segundo o autor, essas mudanas so provocadas por diferentes tipos de agentes e
eventos os quatro citados anteriormente. O primeiro agente primrio est inserido na figura
de uma liderana poltica de um pas. Esta figura de liderana pode ser o presidente do pas
envolvido no estudo de poltica externa. O lder, que influencia no redirecionamento da
poltica externa, [...] deve ter a convico, poder e energia para compelir seu governo para
uma mudana de rumo [...] (HERMANN, 1990. p. 11) (traduo nossa)34. Nesta dissertao,
acredita-se que as figuras presidenciais de Argentina e Brasil colaboraram para a posterior
poltica externa adotada pelos Estados a partir de 2003.
O segundo agente primrio, o corpo burocrtico, lida com um grupo especfico que
tende a defender o redirecionamento da poltica. Este grupo pode estar localizado em uma
agncia nica ou dividido em diversas agncias que, de alguma forma, tem interao uma
com as outras35. Este corpo burocrtico tem a capacidade de influenciar as aes do governo e
do Estado em sua poltica externa, desde que bem localizados em cargos que possam ter
acesso aos lderes.
O terceiro agente de mudanas est localizado na reestruturao domstica. Refere-se
a um segmento da sociedade que apoia a necessidade de um regime de governar, e que tem
capacidade, por meio de suas demandas, para provocar mudanas na poltica externa.
Segundo Hermann, por mais que haja sistemas polticos pases em que as estruturas
domsticas sejam diferentes, h um tema que acaba se tornando comum: [...]
redirecionamento em poltica externa ocorre quando as elites com poder para legitimar o
governo mudam seu ponto de vista ou elas mesmo mudam em sua composio36 [...]
(traduo nossa)37.
Por fim, o ltimo agente primrio est concentrado nos choques externos, o ambiente
externo, ponto que as teorias racionalistas colocam como nico responsvel pela mudana em
poltica externa. Hermann afirma que os choques provocam mudanas por resultarem de
33 idem. p. 5-6. 34 O texto em lngua estrangeira : [...] must have the conviction, power, and energy to compel his government to change course. []. 35 idem. p. 12. 36 idem, p. 12. 37 O texto em lngua estrangeira : [...] Foreign policy redirection occurs when elites with power to legitimate the government either change their views or themselves alter in composition [...].
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eventos internacionais dramticos; e que provavelmente so originadas essas mudanas de
percepes formuladas a respeito de alteraes do cenrio externo. Quando uma mudana
ocorrer de maneira a no se repetir por meio de novos eventos, as percepes formuladas a
respeito delas as entendem como rotineiro ou benigno. Porm, quando as mudanas causam
grandes impactos, ento podem ser caracterizadas como choques externos, podendo provocar
fortes alteraes na poltica externa de um pas (Idem. p. 12).
Ao se analisar os contextos de Brasil e Argentina, percebe-se que, apesar do Estado ser
o tomador de deciso em poltica externa, muitos atores internos podem influenciar, por meio
de suas percepes, as percepes do Estado como ator. Como Hermann afirma, agentes
internos podem causar impacto na formulao de poltica externa que, no caso do Brasil, esto
inseridos nas figuras presidenciais, nos corpos dos partidos polticos, sindicatos, grupos de
relevncia econmica e poltica, etc.
Da mesma forma, impactos domsticos causam reestruturao, como por exemplo, na
crise econmica de 2001 ocorrida na Argentina; ou impactos externos, como os atentados
terroristas de 11 de setembro, tambm de 2001, que causou mudanas em diversas polticas
externas ao redor do mundo. Muitas dessas mudanas, influenciadas por alguns ou todos
desses agentes, perpassam pelas crenas e percepes desenvolvidas por estes mesmos atores,
sejam eles internos, seja o Estado. Por isso, a importncia do estudo acerca desse fator.
1.5 Construtivismo: culturas, agncia e estrutura
Jervis, ao analisar a questo das percepes em poltica externa, e na