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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Ana Claudia Lima Monteiro As tramas da realidade: considerações sobre o corpo em Michel Serres DOUTORADO EM FILOSOFIA SÃO PAULO 2009

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

Ana Claudia Lima Monteiro

As tramas da realidade: considerações sobre o corpo em Michel Serres

DOUTORADO EM FILOSOFIA

SÃO PAULO

2009

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

Ana Claudia Lima Monteiro

As tramas da realidade: considerações sobre o corpo em Michel Serres

DOUTORADO EM FILOSOFIA

Tese apresentada à banca examinadora como exigência parcial para obtenção do título de Doutor em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, sob a orientação do Prof. Doutor Peter Pál Pelbart.

SÃO PAULO

2009

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Banca Examinadora:

_____________________________________

Prof. Doutor Peter Pál Pelbart

_____________________________________

Profa. Doutora Yolanda Gloria Munoz

_____________________________________

Prof. Doutor Edgard de Assis Carvalho

_____________________________________

Profa. Doutora Márcia Oliveira Moraes

_____________________________________

Prof. Doutor Ronald Arendt

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Para Leandro, Bárbara e Brenno, que sempre me ajudam a descobrir novas

possibilidades para o corpo a cada dia...

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Agradecimentos:

À Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, pela possibilidade de desenvolvimento de um trabalho autônomo.

À Capes, por possibilitar o desenvolvimento deste trabalho apesar da grande distância entre o autor e o programa escolhido.

Ao Programa de Pós-Graduação em Filosofia da PUC-SP, pela receptividade, pelo apoio e pela competência de seus profissionais, principalmente ao professor Edélcio Gonçalves de Souza, por manter minha bolsa num momento difícil.

Ao meu orientador, pela atenção, vontade, cuidado, competência e acima de tudo, por sua generosidade em aceitar um trabalho sobre um autor tão heterodoxo.

Aos professores do programa, que me acolheram com tanto respeito, meu agradecimento especial aos professores Jeanne-Marie Gagnebin, Ricardo Fabrini e Dulce Mara Critelli, por suas aulas apaixonantes que tanto contribuíram para minha formação.

Aos professores que tão generosamente aceitaram ser banca em minha defesa e que tanto contribuíram para minha formação.

À professora Márcia Oliveira Moraes, pela minha trajetória acadêmica, que está tão misturada à minha história de vida e a sua presença tão importante em ambas.

Aos meus familiares, que sempre me apoiaram incondicionalmente neste percurso muitas vezes difícil, principalmente à minha mãe, companheira de jornada, exemplo de vida e grande guerreira que sempre está por perto quando me sinto fraca.

A todos aqueles que fazem e fizeram parte deste navegar, meus amigos queridos, que sempre acreditaram que eu seria capaz.

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RESUMO

Este texto tem como objetivo refletir sobre a possibilidade de pensar o corpo a partir dos trabalhos do filósofo francês contemporâneo Michel Serres. Este trabalho se apresenta numa proposta de pensar o corpo que comporte as novas perspectivas sobre ele. Para tanto, serão utilizadas três possibilidades de pensar o corpo a partir de suas conexões: o corpo-textura, o corpo-potência e o corpo-narrativa. Desta forma, nosso trabalho não se apresenta de uma maneira linear, nem mesmo excludente, na medida em que, acreditamos que estas são apenas três possibilidades de reflexão e não consideramos estas as únicas maneiras de se pensar o corpo. A partir do trabalho de Serres, enfatizo nossos estudos em cinco livros específicos: Os Cinco Sentidos, Variações Sobre o Corpo e três livros de sua quadrilogia sobre a humanidade: Hominescência, O Incandescente e Ramos. As reflexões apresentadas aqui se inserem um contexto contemporâneo, no qual as fronteiras entre o que é humano e o que é não-humano encontram-se cada vez mais tênues, são, a cada momento, transpassadas, móveis. Pensar sobre o corpo, nesta perspectiva, nos traz novas possibilidades de ação, e não apenas de reflexão, na medida em que nossa proposta, longe de ser uma imposição teórica, se apresenta como provocação prática, por nos incitar não a pensar sobre o corpo, mas a ter, efetivamente, um corpo.

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ABSTRACT

The goal of this text is to reflect on the possibility of relating the body to the works of the contemporary French philosopher Michel Serres. This assignment proposes the body within new perspectives about itself. Therefore three possibilities of thought will be used starting with their connections: the body-texture, the body-potency and the body-narrative. It’s not the intention of this paper to be linear nor excludente, due to the fact that, we believe there are merely three choices of reflection and not the complete nor entire forms of thinking of the body. Nevertheless, based on the works of Serres, we consider these connections pertinent, seeing that the author discusses these new choices in many of his books. The emphasis is mainly on five specific ones: Les Cinq Sens, Variations sur le Corps and three others of a quadrilogy on humanity: Hominescence, L’Incandescent and Rameaux. The reflections presented are inside a contemporary context, in which the frontiers between what is human and what is not, are more and more tenuous as well as crossed likewise movable each moment. Thinking about the body, in this perspective, brings us to new possibilities not only about reflections but actions, because our proposal, far from being a theoretical imposition, is a practical stimulation. It forces us not to ponder about the body, but to effectively have one.

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Sumário:

Introdução........................................................................................................................10

Capítulo 1: Corpo-textura – sentir um corpo?.................................................................24

1.1 – A dupla constituição do corpo................................................................................25

1.1.1 – O movimento: O corpo como invariante variável...............................................26

1.1.2 – As afecções: como o corpo se relaciona com outros corpos...............................32

1.2 – As superfícies e seus efeitos....................................................................................41

1.2.1 As diferenciações da superfície: os outros sentidos...............................................48

1.2.1.1 – Os sentidos e a abstração: mais um efeito de superfície..................................60

1.2.2 – As diferenciações da superfície: a consciência...................................................65

Capítulo 2: Corpo-potência – o que pode um corpo?......................................................69

2.1 – A potência do corpo: a alma branca......................................................................71

2.1.1 – O corpo múltiplo..................................................................................................74

2.1.2 – A alma branca – proposta metafísica?................................................................82

2.2 – O aprendizado do corpo: imitação, repetição e transformação............................88

2.2.1 – A imitação: uma forma particular de repetição..................................................90

2.3 – As potências do corpo: suas conexões heterogêneas...........................................101

2.3.2 Considerações sobre o biopoder..........................................................................110

Capítulo 3: Corpo-narrativa – dizer um corpo?.............................................................117

3.1 – A questão do código: proposta de pensar o corpo como informação..................123

3.1.1 – A translação como transformação espaço-temporal.........................................128

3.1.2 – A questão da comunicação: as trocas do corpo................................................134

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3.2 – A relação entre linguagem e corpo: o corpo se constitui como linguagem?.......140

3.2.1 – A questão do sentido: ampliação do dado, que se transforma em dom............146

3.3 – A narrativa do corpo............................................................................................159

Considerações Finais: Somos todos ciborgues?

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Introdução:

Digo: o real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia.

João Guimarães Rosa

No pensar de Guimarães Rosa, é sempre difícil começar, justamente porque as

coisas iniciam-se sempre no meio. Os começos ocorrem por recortes, por perspectivas,

por pontos de vista. Este trabalho não é diferente, encontra-se no meio, em recortes

feitos a partir de uma dupla trajetória: a do autor que escreve e a do autor que inspira a

escrita. A escalada das páginas, exercício incentivado por Serres, em Variações Sobre o

Corpo, ocorre com uma vertigem que é própria do pensamento desse autor: não se

deixar enganar pelas palavras, mas, sentir o mundo – antes de falar dos sentidos, sentir

sua capacidade de experimentar, de ser afetado pelo mundo, como em Os Cinco

Sentidos. Ao invés de olhar as coisas pela janela do escritório, provar o vinho, escalar

montanhas, ouvir o silêncio de Epidauro, navegar enfim e sentir a errância dos sentidos,

sua capacidade de aprender, sua potência de relação. Navegar para sentir e perceber,

como Serres (2001, p. 355), o colear dos sentidos na declaração: “Os cinco sentidos,

ainda no início de uma outra aventura, fantasma de real timidamente descrito em um

fantasma de língua, eis meu ensaio.” Colear que se faz corpo. O corpo não se constitui

através dos sentidos, mas, é atravessado por sensações, afetado por relações.

O corpo, para Serres se apresenta, portanto, como esta diminuição das

intensidades, como ponto de abrandamento das velocidades, como amenização do

tempo pela permanência e pela duração, continuidade que suspende os fluxos,

“estruturas longe do equilíbrio”1. Todas estas propostas de pensar o corpo mostram

muito mais sua incandescência do que sua permanência. O corpo que se apresenta numa

tensão constante, é uma diferenciação do mundo, que se apresenta numa tensão

1 Tal expressão se refere à proposta de pensar as estruturas longe do equilíbrio apresentadas por Prigogine e Stengers em seu livro Entre o Tempo e a Eternidade,Lisboa, Editora Gradiva, 1990.

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constante, numa diferenciação e num afastamento que sempre tendem a desfazer sua

permanência. O corpo, em nosso trabalho, deve ser pensado muito mais como esses

encontros e essas tensões do que propriamente pela sua estabilidade, que, em última

instância, o levaria ao fim. Daí, nossa preocupação em não definir o corpo, mas pensar

formas diferentes de “tocá-lo”, de fazer o corpo funcionar, seja como textura, como

potência ou como narrativa.

Porém, antes de avançarmos em nossas considerações sobre o corpo, é

importante que se esclareça um pouco mais o próprio trabalho de Michel Serres. Além,

é claro, da escolha de pensar o corpo a partir deste autor. Iniciaremos com o ponto que

considero mais fácil: a escolha do autor. Serres é um pensador que sempre nos intrigou,

desde nossas primeiras leituras de seu texto, feitas a partir do trabalho de Bruno Latour.

Latour é um importante pensador contemporâneo e seus textos são bastante

controversos, até por suas referências ao trabalho de Serres. Meu segundo contato com a

obra deste autor ocorreu justamente com a leitura das entrevistas que Serres concede a

Latour. Tais entrevistas são uma tentativa importante de esclarecimento, de divulgação

do pensamento de Serres, que, segundo ele mesmo, sempre trilhou um caminho solitário

durante muito tempo. Há um acordo entre eles de que esse caminho solitário ocorreu

muito mais pela dificuldade de compreensão dos textos de Serres do que propriamente

pela relevância de seus escritos. Somente com seu encontro com autores mais jovens,

como o próprio Latour, é que seu trabalho criou novas conexões, foi “traduzido”, posto

em funcionamento com outros autores e pensamentos. A leitura de seus textos

encontrou mais espaço inclusive a partir de trabalhos desenvolvidos com seus alunos.

Em outras palavras, apenas uma geração após a sua, Serres adquiriu uma leitura mais

acurada, cuidadosa, que possibilitou sua divulgação – mesmo que, não encontremos

nenhuma tese de filosofia, no Brasil, inspirada somente neste autor.

A leitura de suas entrevistas nos despertou uma curiosidade muito grande pela

forma original com que Serres compreendia o pensamento, a filosofia, a ciência, enfim,

o mundo e as relações entre os saberes. A leitura de seu livro Os Cinco Sentidos,

inspiração direta para a escrita deste texto, foi ao mesmo tempo, impactante e

desafiadora ao mesmo tempo. A forma vertiginosa, instável, inédita com que Serres nos

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apresentava os sentidos era algo absolutamente diferente de qualquer leitura anterior

sobre tal assunto. Mesmo tendo sido considerado um livro literário, esse livro pode ser

compreendido como uma forma de desvio, de inauguração de um novo caminho para se

pensar o corpo. Os sentidos não eram apresentados como algo que ocorre no corpo,

mas, como aquilo que é o próprio corpo. Esse corpo, longe de ser algo estabelecido, se

apresenta, não apenas neste texto, mas também em outros textos do autor, como

variação, como uma estabilidade instável. Seus limites não são determinados, porém

construídos pela narrativa do autor, em seus encontros, por relações. As analogias

construídas para reflexão não podem ser confundidas com exemplos de como sentimos

ou de como os sentidos funcionam, mas antes, como desafios, como convites à

experimentação. Serres nos pede menos que compreendamos os sentidos e mais que

experimentemos esse corpo, nossas sensações. Não é um tratado sobre a sensação, mas,

uma celebração, um banquete de sensações, é um livro que serve menos às palavras e

mais ao corpo.

A compreensão dessa forma de escrita só veio ao longo do tempo, com o

exercício próprio de escrever, de pensar, de estabelecer conexões não dadas. Em última

instância, o texto de Serres nos provocou o pensamento, não de uma forma comum,

mas, como experimentação. Não se tratava de uma leitura que se apresenta de maneira

“clara e distinta”, trata-se de uma leitura que podemos denominar de “visceral”, como a

leitura de Nietzsche2, pois deve ser digerida, deve “penetrar no corpo”. Com o avanço

em suas leituras, a cada movimento, a cada reflexão, novas possibilidades de pensar o

corpo surgiam. Por outro lado, Serres é um autor que não se apresenta de forma clara

para os leitores que o lêem de forma rápida e tendem a julgar seus escritos de forma

precipitada.

O objetivo maior das entrevistas que Serres concede a Latour é justamente um

esforço em apontar a importância do pensamento de Serres, inclusive na sua maneira

peculiar de escrever. Serres não “respeita” as fronteiras entre os saberes. Ele mistura,

constantemente, religião, mito, ciência, filosofia, antropologia, literatura, artes plásticas,

2 Tal conselho, de “ruminar a leitura”, encontra-se no livro Genealogia da Moral, de Niezsche.

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além de uma infinidade de questões trazidas dos lugares mais inusitados: como suas

escaladas.

Sua cultura é extremamente vasta, daí sua potência de reflexão. Seu texto não é

linear, como seu próprio pensamento. Isso, por outro lado, não significa ausência de

rigor ou inserção de incoerências que não se sustentam. Ao contrário, o pensamento de

Serres é extremamente rigoroso, mas num outro sentido, pois seu rigor encontra-se na

velocidade com a qual faz a passagem entre os sentidos dispersos nos vários saberes.

Ele próprio, com sua escrita, busca executar a tarefa de Hermes, isto é, fazer a passagem

entre os múltiplos sentidos, enxertar novos ramos nos caules estruturados. Para Serres,

todos os saberes são narrativas, portanto, possuem potências de conexão. Estas não

devem ser pré-definidas; no entanto, devem gerar o estranhamento próprio de um

pensamento novo. Assim, sua proposta é menos considerar seu trabalho como

“novidade em contraposição ao velho” do que apresentar sua proposta como

deslocamento, passagem, produção de novos sentidos.

Dessa forma, buscamos seguir as orientações do próprio Serres: ler bastante para

depois esquecer, criar, pensar por si mesmo – como o corpo faz: imita, aprende por

imitação, até que cria novas posturas. Pelo exercício, pelo treinamento, o corpo é capaz

de se superar. Por conseguinte, a proposta deste texto não é a de buscar uma “verdade”

nos escritos de Serres, mas, fazê-lo operar, traçar novos caminhos que possam abrir

perspectivas de compreensão do corpo até então não pensadas. Não se trata de um

“novo corpo”, mas, de corpos em construção, produzidos em cada proposta e em cada

movimento que o conecta, que dá a ele um recorte. Por outro lado, a leitura do texto de

Serres não apresenta um corpo que deve ser simplesmente “pensado”, com se fosse

possível esta separação entre “o que pensa” e “o que possui um corpo”. Ao contrário,

para Serres, se penso o corpo, não o tenho, só posso ter um corpo na medida em que não

penso nele. É pela ação que o corpo se potencializa e não pelo pensamento.

Nesse ponto, podemos dizer que este texto foi escrito menos para trazer uma

nova maneira de pensar o corpo e mais para refletir sobre as infindáveis discussões

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contemporâneas sobre a apropriação dos corpos. Não se trata de uma simples afirmação

do corpo, que levaria a um hedonismo sem saída, mas, de uma nova “política do corpo”.

Falar em política não significa dizer militância, na qual as reivindicações se

apresentariam em praça pública, com protestos e panfletos. Mas, uma “política da

intimidade”. Uma mudança na forma de lidar com o corpo, uma prática que leve em

consideração seus afetos, seu aprendizado, suas potências, sua construção. É menos uma

posição política e mais um fazer político, de resistência, que não se opõe nem à ciência,

nem à sociedade, mas, que se coloca “no meio”, “entre”, produzindo cada vez mais

desvios, conexões inusitadas, formas de resistência pela potencialização do corpo. Não

se apresenta como oposição; no entanto, como dispositivo de conexão. O corpo,

portanto, opera por encontros que surpreende seus limites, que desafia sua estabilidade.

A visão política vem desses desafios, na medida em que desconsidera a colocação do

corpo num espaço delimitado, numa formatação prévia. A visão política vem dessa

possibilidade de desafiar os limites, de não se submeter à lei.

Nesse ponto, encontramos mais uma convergência entre dois percursos que se

entrecruzam para formar um traçado, uma tessitura, até mesmo uma tapeçaria: o

percurso de quem escreve e o percurso de quem inspira a escrita. A nossa formação

pode ser pensada numa dupla convergência: os estudos filosóficos da Psicologia, que

passam por Foucault, Deleuze, Guattari, Lapassade, Lourau, Freud, Lacan e, mais

recentemente, por Bruno Latour, Isabelle Stengers, Anniemarie Mol, Vincianne

Despret, por um lado; e nossa experiência com o corpo, por meio da dança, durante 15

anos de nossa vida, por outro lado. Essa dupla influência sempre nos fez compreender o

corpo de uma maneira peculiar, sempre questionando as várias possibilidades de

determinismo que atravessaram nossa prática. A necessidade de pensar o corpo ocorreu

por este questionamento acerca da permanência do corpo, de sua “passividade”, de sua

captura. Não que o corpo não seja captura, mas existe algo além desta captura: suas

escapatórias, a possibilidade de surpreender. As mudanças do corpo não ocorrem apenas

para dar conta de uma demanda de beleza, de perfeição, mas também para produzir

novos sujeitos, que se reconhecem apenas em corpos produzidos por eles mesmos.

Como exemplo dessa produção, podemos citar um caso trazido por Anniemarie Mol,

em seu livro The Body Multiple: ontology in medical practice. Aqui a autora discute a

possibilidade do governo alemão pagar cirurgias de mudança de sexo, porém o critério

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para tal mudança deve ser delimitado, obviamente, não pelo sexo da pessoa, mas por

algo mais sutil: sua relação subjetiva com seu corpo. O não-reconhecimento deste corpo

como seu. É como se o sujeito dissesse: “esse corpo não é meu, eu sou uma mulher

presa num corpo masculino”. Essa expressão é muito mais política do qualquer

manifesto em prol dos transexuais, na medida em que afirma a maleabilidade do corpo

muito mais do que pensa sobre ela.

Por outro lado, não se trata de afirmar a prevalência da subjetividade. Não é em

termos de oposição ou privilégio que pensamos o corpo, daí que, algumas vezes ao

longo do texto, vamos passar do corpo à alma e vice-versa, é que a distinção não está

dada de antemão. Em outras palavras, a questão não é diferenciar aquilo que é o corpo e

aquilo que é o sujeito ou a subjetividade; entretanto, ao contrário, mostrar o quanto a

constituição do sujeito passa pelo corpo: não por esse corpo “dado”, mas por um corpo

que se constrói muito mais do que por um corpo “conhecido” pelo pensamento. Os

trabalhos de Serres, nesse sentido, são mais políticos; no entanto, de uma outra maneira

de se compreender a política, na medida em que ele nos diz em Os Cinco Sentidos, por

exemplo, que as mulheres não enganam, ao se maquiar, não escondem sua verdadeira

idade, ao contrário, constroem seu Mapa de Ternura, para enfatizar seus afetos,

determinar suas paragens, mostrar seu mapa afetivo. Essa proposta é política porque

desfaz as marcações entre corpo e alma, porque é um posicionamento político por

questionar estas fronteiras determinadas, por expor a flexibilidade do corpo ao invés de

pensar o ornamento como engano. Serres nos afirma nesse mesmo texto, que os gregos

são sábios por considerar a mesma origem para a beleza e a ordem (cosmos), ou seja, o

ornamento não é engano3, é o estabelecimento de uma ordem que não estava dada, mas

foi construída pelo artefato. O artefato não é, portanto, “enganoso”, mas primordial para

que a ordem advenha.

Cabe aqui trazer mais um dado sobre a tessitura deste trabalho: a formação do

autor. As questões suscitadas pela obra de Michel Serres produzem um efeito em nós,

produtores deste texto. Em nosso caso, a proposta de pensar o corpo trazida por Serres

3 Vale lembrar que esta origem comum ocorre antes da distinção entre essência e aparência, feita por Platão. Cf. Górgias.

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nos possibilita construir uma maneira de compreensão do corpo que não parte do

dualismo entre sujeito e objeto. Ao contrário, Serres é absolutamente a favor das

misturas, dos fluidos, das subversões de fronteiras. Pensar o corpo dessa maneira

possibilita a alteração das práticas, efetivamente. As questões trazidas por ele fazem

com que o corpo seja potencializado, que não seja pensado nem como resíduo e nem

como “marionete”. O corpo se produz, portanto, não se encontra submisso à alma,

tampouco às manipulações sociais. É essa produção que faz com que as práticas em

ciências humanas, em geral, e em Psicologia, em particular, sejam repensadas,

reorganizadas. O corpo que se coloca como potência não se opõe à alma, nem mesmo à

subjetividade, ele pode se constituir dessas diversas maneiras, sem se apresentar como

fragmento. É essa possibilidade que fez com que o trabalho de Serres fosse fundamental

não apenas para nossa prática, como também para nosso posicionamento diante do

mundo.

Além disso, a escrita deste texto não pode ser compreendida como linearidade,

na qual cada capítulo está posto segundo uma ordem hierárquica. A ordem é construída

na medida em que o texto é escrito. Portanto, a leitura deste texto deve ser

compreendida como linhas que compõem a trama de uma tapeçaria, a qual são misturas

de vários matizes que se alinham para formar o tema de nosso trabalho: o corpo. Mas,

como a própria escrita, esse corpo se delineia a cada capítulo, sob uma perspectiva

diferente. Isso quer dizer que também o corpo encontra-se no meio, a se fazer. Em nosso

texto, ele se constrói a partir de três delineamentos: o corpo-textura, o corpo-potência e

o corpo-narrativa. Esses três aspectos não são excludentes, se entrecruzam, não são

diferentes corpos, mas diferentes possibilidades de pensar a constituição de um corpo.

Daí a possibilidade de ler este texto sem seguir o posicionamento dos capítulos, haja

vista que podemos ler cada capítulo de forma separada, por não se tratar de uma

continuidade. O corpo é traçado aqui, pelos seus encontros e por suas passagens. Como

Serres conhece seu corpo pelo mar, pelas escaladas, pela religião e por sua aversão à

guerra separatista, qualquer autor impõe sua marca no texto pelos seus pertencimentos,

e pelo afastamento deles como condição de um pensamento livre, original, fabricado

pelas muitas misturas que compõem, não apenas o texto, mas o próprio corpo.

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Como dissemos anteriormente, os corpos são marcados por suas experiências,

por seus aprendizados e por suas extrapolações. Este texto não seria diferente, já que

surge desta possibilidade de ser marcado, desenhado, constituído por marcas impressas

não apenas neste papel, mas no autor que escreve estas palavras. O texto pensado

também como um corpo, se produz nesta experiência da escrita, na aproximação e no

afastamento de suas palavras com outros textos, outros autores, na possibilidade deste

de gerar potência, de afetar, de construir relações. Assim, a marca do autor, que

encontramos aqui, não se parece com um pensamento “autônomo”, na medida em que

se acredita que tal pensamento, na verdade, não existe. O que constitui, portanto, a

originalidade deste texto é a forma como são conectados os autores, seus

deslocamentos, suas traduções. Como na tapeçaria e na culinária, não se trata de criar

ingredientes originais, mas de criar a originalidade a partir das misturas, das conexões.

Não é a origem que importa, mas, mais uma vez, o meio. Este texto encontra-se no

meio, como encontro possível entre autores, como diálogo que modifica e produz

sentidos que não estão dados previamente.

Podemos nos aproximar um pouco mais das analogias que apresentamos acima –

a tapeçaria e a culinária. Serres utiliza muito o exemplo da tapeçaria, principalmente,

para pensar o corpo como superfície, que se constitui pelas paragens, montes, declínios

e dobras, ênfases e amenizações. Mas, qualquer tapeçaria possui, além de sua superfície,

suas tramas, seus nós, suas laçadas, minúsculas confusões, desalinhos, apertos e

afrouxamentos. Há, portanto, um trabalho de construção que é particular, delimitado,

detalhado, feito ponto a ponto, expresso no detalhe. Mesmo que a tapeçaria seja bastante

extensa, é a cada laçada que ela se constrói, pelos pontos, pelas cores, pela espessura

feita pelas linhas que se entrecruzam. Nada melhor do que essa analogia para pensarmos

a relação entre o local e o global: por mais grandiosa que seja a obra, ela é feita a cada

gesto do tecelão. Ao mesmo tempo, a obra impressa na tecelagem se destaca, se delineia

para além destas linhas e traçados. A figura impressa na tapeçaria é um corpo, composto

por suas particularidades, mas que se apresenta em sua totalidade. A imagem de

Penélope, tecendo os caminhos de Ulisses em suas tramas feitas e desfeitas, é um belo

exemplo das possibilidades da tapeçaria: ela é, ao mesmo tempo, o que constitui os

laços, mas frágil, a ponto de ser refeita. Delineia limites e bordas que são móveis,

passíveis de serem desmanchados e refeitos. A tapeçaria é, ao mesmo tempo, a imagem

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da totalidade e a sutileza dos pontos particulares, construídos ponto a ponto. Da mesma

forma, o corpo é composto dessa relação: ao mesmo tempo local e global.

Por outro lado, a tapeçaria se constitui por linhas, por continuidades que se

relacionam para fazer emergir algo que não está presente nas linhas elas mesmas. Em

outras palavras, o entrecruzamento das linhas faz surgir a tapeçaria, que não pode ser

compreendida apenas pela trama, local, mas, por sua visão global. O corpo, por sua vez,

também não é apenas o ajuntamento de órgãos, de elementos mais simples. O que dá

sentido ao corpo não são suas partes, mas, a possibilidade de se constituir como uma

totalidade que ganha sentido nas relações. Essa totalidade se apresenta numa dupla

constituição: é, ao mesmo tempo, um sentido interno, de relação entre partes

semelhantes, e uma relação com a exterioridade, que distingue o corpo daquilo que não

é ele mesmo. De forma análoga, a tapeçaria também apresenta a relação entre a trama e

suas bordas de forma semelhante: os laços e nós são sua coerência interna, e os limites e

bordas da tapeçaria sua relação com a exterioridade. Da mesma forma, como dissemos

acima, seus limites podem ser móveis, uma vez que é possível estender a trama, criar

novos nós e laçadas. O corpo, por sua vez, amplia seus limites estabelecendo novas

relações, novas conexões.

Em segundo lugar, temos a referência da culinária, arte pouco valorizada, posta

em segundo plano. Para Serres, a arte dos fluidos, das misturas e das relações é a melhor

imagem que podemos ter do mundo e das coisas. O derretimento, a vaporização, as ligas

e misturas que ocorrem na cozinha são belas imagens do mundo: o que importa não são

as distinções, mas os encontros, as confusões. Por mais que se apresentem como

elementos, como ingredientes, separados, aquilo que se apresenta para o cozimento é

muito mais fluido do que sólido. A solidez não permite os encontros, determina a

fixidez, a claridade, a permanência. Por outro lado, da fluidez e da vaporização

emergme novas formas de relação, novos encontros, novas misturas. Quando Serres se

refere às Luzes, valoriza muito mais a velocidade do que a clareza, talvez por perceber

que é no calor que as melhores misturas ocorrem: o vôo dos anjos, as passagens de

Hermes, as chamas incandescentes. Na cozinha, podemos ver essas imagens,

principalmente, pelo poder do fogo: é ele que faz com que as coisas sejam fluidas,

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elásticas, conectáveis. Pelo fogo, nada permanece estável, as coisas tendem a expandir,

a tomar o espaço, a ampliar. A fluidez traz consigo a expansão, a instabilidade das

bordas e dos limites, a maleabilidade dos encontros. Da mesma forma, o cozinheiro é

aquele que faz expandir os sabores e odores, potencializa as relações, produz

agenciamentos, encontros impossíveis na rigidez dos sólidos.

Essa imagem nos faz pensar o corpo como algo fluido, muito mais do que como

uma determinação sólida, palpável, delimitada. É no calor dos corpos que vemos

emergir sua potência. O corpo se faz líquido no momento em que experimenta suas

bordas, seus limites, no momento em que se faz outro, pelo mimetismo e pela

incorporação, pela conexão com a técnica. O corpo é passível de misturas, de relações

que, se por um lado, atenuam determinadas potências, ao mesmo tempo faz emergir

novas potencializações que só são possíveis nas misturas. O aumento ou diminuição

desse corpo ocorre nas misturas com as quais este corpo é capaz de exercer. Essas

conexões, por não se apresentarem como algo dado, algo determinado, fazem com que o

corpo mude a cada relação. Para Serres, a liberação do corpo acontece quando, a cada

movimento, a cada conexão, esse corpo ganha novas funções. Como exemplo, temos a

memória: no momento em que não precisamos mais armazenar os dados em nosso

cérebro, somos libertos dessa função, estamos prontos para utilizar nossa memória para

outros fins, para novas produções. Assim, a ampliação do corpo faz com que este não

seja apenas acrescentado, não é uma pura adição, mas, uma real transformação. Não é

que o corpo acumule mais dados, as conexões não são apenas quantidades injetadas no

corpo, ao contrário, a injeção de quantidade não é a forma com a qual pensamos o

corpo. Da mesma forma que na culinária, o que importa não é a quantidade, mas, as

mudanças qualitativas que ocorrem a partir das relações entre os ingredientes. Não se

trata de um aumento na quantidade, porém, de uma alteração da qualidade. Nesse

sentido, estamos falando de uma culinária que não leva em consideração o aumento do

tamanho, mas a beleza e a sutileza da forma. Dito de outro modo, a culinária que

buscamos compreender é aquela que não considera a quantidade de ingredientes como

ponto essencial para o sucesso de um prato, mas, as misturas sutis, os aromas distantes,

percebidos apenas no momento em que são compartilhados. Ao invés de buscar a

abundância dos conteúdos, buscamos encontros peculiares, que ocorrem em raros

momentos.

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A própria constituição do corpo segue esta mesma proposta: mudanças

qualitativas, ao invés de mudanças quantitativas. Assim, dividimos nosso texto em três

capítulos, como dissemos acima. No primeiro capítulo apresentamos do corpo como

textura, ou seja, apresentaremos o corpo a partir da constituição de seus limites, de suas

bordas. Neste primeiro momento, o corpo é pensado como superfície, que se lança numa

relação de exterioridade a qual, ao mesmo tempo, apresenta um sentido de interioridade.

Tal sentido se constitui a partir das afecções de que este corpo é capaz. Assim, o sentido

primeiro, a borda corporal, a primeira diferenciação se apresenta no tato, sentido

constituído pelo maior órgão de nosso corpo: a pele. Os outros sentidos se apresentam

como transformação, especialização desse sentido primeiro. A relação entre eles não é

de superioridade; entretanto, como salientamos, de especialização. O corpo, nesta

primeira parte, se delineia, portanto, como superfície de afecções, na qual não somos

capazes de distinguir uma hierarquia entre os sentidos, na medida em que, cada um

deles, é responsável pelas nossas posturas, nossos posicionamentos diante das coisas.

Tal posicionamento gera algumas especializações mais sofisticadas, como a

consciência, que nada mais é do que uma forma de diminuição da velocidade da ação,

uma dobra. Assim, a consciência pode ser pensada como mais um sentido, apresentado

para conectar um número maior de ações possíveis, como invaginação de uma dobra, o

aumento de uma superfície que, ao transbordar, se vira para dentro, criando uma nova

maneira de relação desse corpo com as coisas que o circundam.

No segundo capítulo, trataremos da possibilidade de pensar o corpo como

potência. Tal proposta desloca nossas reflexões para o que Serres denomina de alma

branca. O sentido dado a esse termo se apresenta na proposta da ótica, de pensar o

branco como a junção de todas as cores. Assim, a brancura da alma significa sua

transparência, sua desdiferenciação, sua potência de se transformar, de se

metamorfosear em várias direções e sentidos diferentes. A alma branca é a possibilidade

do corpo de se apresentar a partir de múltiplas práticas, como nos mostra Anniemarie

Mol. O corpo, portanto, não é um objeto a ser estudado como objeto epistemológico,

passível de delimitação, de alcance de sua forma última; porém, como os mantos de

Arlequim, como uma forma multifacetada, multicolorida, composta de retalhos

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absolutamente diversos. Ao se despir desses mantos, Arlequim se encontra nu, pura

brancura descaracterizada, pura potência. Essa alma branca, por se apresentar de

maneira multiforme, tem uma forma de aprendizado que a modifica, que a recria ao

constituir corpos conectados, sempre apresentados pelas relações. A alma é algo que se

apresenta muito mais em virtualidade do que na realidade. A brancura é exatamente esta

virtualidade do corpo, essa potência luminosa que se multiplica em feixes

multicoloridos. Assim, sem relação não há corpo, apenas potência, sem a abertura da

alma, o corpo não “encarna”, não adquire paragens, diminuições de ritmo.

O corpo, para se constituir como potência, deve se conectar, se relacionar. Esse

relacionamento opera sempre por mimetismo, por imitação. A potência do corpo

encontra-se encarnada nas metamorfoses, na maleabilidade e nas múltiplas posturas

apresentadas pelo corpo. Para além da captura e das apropriações, o corpo cria, resiste,

se põe de uma forma política: não de uma maneira política como conhecemos hoje, mas

como escape, como fuga dos lugares determinados, como “engano” e errância, em

contraposição às verdades determinísticas. O corpo deriva, mesmo quando se submete

às leis biológicas. O corpo cria novas potências ao deslocar, constantemente, suas

falhas. Em outras palavras, o corpo escapa até mesmo à doença, ou seja, a própria

relação do corpo com aquilo que o despotencializa, pois essa é deslocada porque o

corpo cria novas estabilidades, novas relações. Como exemplo, podemos pensar na

relação entre o cego e o programa de computador4 que o possibilita escrever, ler,

trabalhar, se relacionar. Por fim, neste mesmo capítulo, refletimos sobre a questão

política do corpo, como Serres compreende a relação entre ciência e direito e como esta

forma de pensar nos posiciona politicamente, sem, no entanto, ser uma política no

sentido estrito do termo.

No terceiro capítulo, enfim, traçaremos um caminho que vai do código à

narrativa para pensar o corpo em suas possíveis conexões com a história e a linguagem.

Tornou-se lugar-comum pensar o corpo como informação ou código. Neste último

capítulo, iremos refletir sobre essa possibilidade e se, na verdade, o que ocorre é um

reducionismo ou o que denominamos de negociação e translação. Nos trabalhos de

Serres, encontramos várias passagens que nos ajudam a sustentar a idéia de translação,

até mesmo de transubstanciação, uma vez que toda passagem de um lugar a outro requer

4 Citamos aqui o programa DOSVOX, desenvolvido na UFRJ, pelo doutor pesquisador José Antônio dos Santos Borges.

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uma mudança não apenas de sentido, mas de configuração. O próprio símbolo se

apresenta dessa maneira: como passagem, como mudança de um sentido a outro.

Portanto, não há reducionismo, nem do corpo ao código, nem mesmo do corpo à

linguagem. O que existem são trocas, relações, encontros.

Além disso, para que esses encontros se estabeleçam, deve existir uma relação

entre partes diferenciadas. Em outras palavras, o corpo, para se manter, deve se

relacionar com aquilo que não é ele mesmo, trocar “informações”. Isso significa que o

corpo também se estabiliza pelas suas comunicações. Para que haja comunicação, deve

haver necessariamente um encontro no qual as partes envolvidas possuam pontos de

contato, de igualdade, em meio à diversidade. Essa comunicação não é clara, simples, é

também uma transmutação, uma transformação na qual as partes envolvidas se

modificam, se alteram pelo contato. Dito de outro modo, o contato entre partes distintas

constrói uma relação que faz com que as coisas relacionadas não sejam mais as mesmas,

que ganhem um sentido dado pela relação e não o contrário. A relação, o encontro, se

torna comunicação na medida em que as partes envolvidas ganham o sentido dado neste

encontro depois que ele ocorre e não antes.

Assim, o corpo também se constitui como narrativa, uma vez que necessita

desses encontros para permanecer, para se tornar cada vez mais si mesmo, em relação à

diferença que estabelece com sua alteridade. O corpo se torna narrativa menos por sua

capacidade de ser decifrado e mais por sua historicidade, construída no meio das coisas,

no meio do mundo. O corpo se historiciza porque se apresenta numa narrativa espaço-

temporal, composta por diversas outras. O caminhar da história não é um destino

inexorável, mas a construção de um caminho que possui diversas temporalidades,

passíveis de serem relacionadas, mas não reduzidas. No momento em que o corpo é

pensado a partir dessa dimensão histórica, ele se apresenta como um produto das

relações as quais é capaz de exercer, que o tornam menos determinado e mais produto

de uma intrincada rede de relações. Historicamente, o corpo não é substância, é relação.

Essas afirmações nos abrem um caminho importante, pois o corpo, por ser uma

produção, uma rede de relações, não pode abrir mão, em seu tempo histórico, de suas

conexões não humanas. Em outras palavras, o corpo é, portanto, um ciborgue, como nos

apresenta Donna Haraway,em seu Manifesto Ciborgue. A postura da autora se apresenta

muito mais como uma postura política do que como uma defesa das biotecnologias. Não

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se trata de uma apologia à técnica, mas, antes, de um posicionamento no qual o corpo se

encontra como fator político na medida em que se apresenta antes de qualquer

possibilidade de divisão ou dicotomia. Haraway, como Serres, defende a “terceira

forma”, ou seja, antes de se separar em macho e fêmea, em direita ou esquerda, em

natureza ou cultura, devemos nos colocar na posição desse “terceiro instruído”:

ambidestro, hermafrodita, quase-sujeito, quase-objeto. O corpo ciborgue é o que não se

encontra previamente dado, é o corpo político das relações. É o aparecimento da

diferença, passível de ser narrada. O corpo é, também, pura potência branca,

virtualidade que se apresenta apenas nas paragens, nas diminuições de velocidade. O

corpo é também textura, afecção, forma de diferenciação que ocorre na desdiferença.

Mas, além disso, o corpo é político, na medida em que se produz constantemente, sem

se reduzir às suas prisões. O corpo é escape, fuga das representações, o que se apresenta

apenas na duplicidade: copo-textura, corpo-potência, corpo-narrativa. O corpo necessita

dessa duplicação para emergir, mas, como ressaltamos, não se esgota nelas. Apresenta

apenas algumas de suas facetas, que nos permite operar, que nos permite pensar sobre

ele. Entretanto, antes de tudo, o corpo é ação, se faz na ação, se encontra no meio das

coisas. Portanto, mesmo antes de ler este texto, recomenda-se ter um corpo, saber que

ele é pelos seus próprios contatos. Talvez, aí sim, este texto possa “tocar” outros corpos.

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Primeiro Capítulo: Corpo-textura – sentir um corpo?

(...) não mais penetrar, mas deslizar de tal modo que a antiga profundidade nada mais seja, reduzida ao sentido inverso da superfície.

Deleuze

Neste primeiro capítulo, nossa proposta é entender o corpo, por um lado, como

superfície e, por outro, como afecção. Acreditamos que estas duas maneiras de pensar o

corpo não são excludentes, mas, complementares. Na medida em que o corpo se

constitui na superfície, esta se apresenta como duplamente constituída, numa relação

que se estabelece entre interioridade e exterioridade. Neste sentido, a idéia de corpo se

apresenta na medida em que o pensamos, num mesmo movimento, à luz da relação

entre o dentro e o fora, uma fronteira que marca uma diferença funcional, localizável,

entre “o meio” e o “ser”1, além de marcar aquilo que podemos compreender como uma

“região”, um “território”, assinalado pela emergência de uma superfície de contato.

É esta relação entre exterioridade e interioridade que produzirá o corpo como ser

individuado, limitado por suas fronteiras espaciais e temporais. Como desdobramento

desta afirmação, poderemos entender como o próprio processo de individuação organiza

a diferença entre “interior” e “exterior”; de tal modo que não podemos abrir mão desta

diferença para pensarmos a própria relação que o homem estabelece com o seu corpo.

Ao contrário das afirmações que tendem a acreditar na minimização do corpo, o que

afirmamos, a partir deste trabalho é que não há possibilidade de buscar uma

compreensão do homem hoje sem pensar a relação que este estabelece com seu corpo.

Neste sentido, podemos pensar, como no texto O Timbre Intraduzível do Corpo,

no qual a autora nos mostra que, ao contrário dos outros animais ou das coisas, nós

dizemos que temos um corpo e não que somos um corpo. Portanto, ter um corpo já

1 Nem a palavra “ser” ou a palavra “meio” são boas para designar esta relação entre interioridade e exterioridade. Colocamos estes termos entre aspas justamente para frisar a precariedade destes termos, que partem do pressuposto de que esta diferença já está dada. Apenas usamos tais palavras neste primeiro momento, mas, elas serão desconsideradas ao longo de nosso texto.

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produz uma relação com o corpo que não é a mesma com a qual pensamos as coisas e os

animais. É como se disséssemos que nosso corpo, ao mesmo tempo, nos pertence e nos

escapa. Somos e não somos um corpo, porque “o corpo, para o homem, não é algo

evidente, (...) não é um dado imediato da consciência. O que a fenomenologia chamou

de “corpo próprio” é uma criação cultural e não um dado primeiro.” [DUMOULLIÉ]

Desta forma, tanto a negação quanto a afirmação do corpo partem de um mesmo

princípio: o corpo não é dado, ou seja, não podemos dizer que o corpo é algo

previamente estabelecido, no qual uma alma se instaura.

Mas, se a questão é posta nestes termos, é necessário que se afirme ou se negue

o corpo para poder possuí-lo ou abandoná-lo. Partimos da afirmação de que o corpo é

construído, efetivamente, não está desde sempre, posto, não é o ponto de partida, mas,

algo a ser constituído, flexível, móvel, algo que necessita ser praticado. E, o que

caracteriza a construção do corpo é a própria possibilidade de relação estabelecida pelas

afecções que se apresentam numa determinada superfície, superfície esta móvel,

cambiante.

1 – A dupla constituição do corpo.

Para que possamos refletir mais detalhadamente sobre esta constituição do

corpo, é necessário referir, partir de pensadores fundamentais que balizaram o campo de

nossas reflexões2. Seguindo o ponto de vista de Deleuze acerca do pensamento de

Espinosa, encontramos a seguinte reflexão:

Como Espinosa define um corpo? Um corpo qualquer, Espinosa o define de duas maneiras simultâneas. De um lado, um corpo, por menor que seja, sempre comporta uma infinidade de partículas: são as relações de repouso e de movimento, de velocidades e de lentidões entre partículas que definem um corpo, a individualidade de um corpo. De outro lado, um corpo afeta outros corpos, ou é afetado por outros corpos: é este poder de afetar e de ser afetado que também define um corpo na sua individualidade. [DELEUZE, 2002, p. 128]

2 Os autores utilizados neste texto serão considerados como “ferramentas”, no sentido deleuziano do termo, ou seja, utilizaremos suas referências para fazer funcionar nossas reflexões. Neste sentido, os textos utilizados operam uma relação de concordância que faz emergir o entendimento de nossa proposta, o que não significa dizer que estamos dizendo nem uma “verdade” sobre os autores (sobre aquilo que significa o “Pensamento” de cada um), nem mesmo uma “mentira” sobre os mesmos (o que opera uma “traição” dos textos utilizados). Mas, o que pretendemos é, como nos diz Bruno Latour, traduzir os textos e autores escolhidos, fazê-los operar numa relação de compreensão que nos ajude em nossas reflexões.

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Desta forma, é seguindo este duplo caminho aberto por Deleuze, que conduziremos

nossa investigação sobre o corpo.

1.1 – O movimento: O corpo como invariante variável.

Neste primeiro momento, encontramos, nos trabalhos de Gilbert Simondon,

algumas considerações que podem elucidar nossa proposta. É em seu texto A

individuação dos seres vivos3, que Simondon nos apresenta o processo de individuação

como esta possibilidade de constituição de uma unidade que apresenta, ao mesmo

tempo, as características de fechamento e abertura em relação ao meio. O corpo é, ao

mesmo tempo, uma invariância que permanece no tempo, e uma variação constante a

partir das trocas efetuadas com o meio, para manter a estabilidade. Portanto, tal

processo se apresenta como uma constante mudança, uma constante troca, para que a

estabilidade ocorra. É a partir de pequenas transformações que é gerada a sensação da

permanência. Tal abertura, desta forma, não é estática, é móvel, cambiante, na medida

em que, tanto o meio externo, quanto o meio interno no qual se estabelece um processo

de individuação, encontram-se em constante movimento. Além disso, o processo de

individuação se apresenta como uma constituição que permite ao indivíduo uma

polaridade, uma diferenciação tal que ele é, ao mesmo tempo, igualdade e desigualdade

em relação a seu meio. Igualdade porque tem a possibilidade de reconhecer aquilo que

lhe é semelhante – o alimento, por exemplo; e desigualdade porque consegue identificar

a relação que existe entre o que ele reconhece como “si” e o que não faz parte disso.

Para que tal distinção se torne clara, é necessário pensar nesta superfície que delimita o

contato, que produz, em última instância, este contato. A diferenciação entre dentro e

fora, neste sentido, é o próprio estabelecimento da superfície como limite, com limiar,

como fronteira.

Para a compreensão desta proposta, utilizamos ainda o texto de Simondon, na

medida em que ele pensa a constituição desta fronteira como o que ele denomina de

processo de individuação. Esta proposta nos é útil porque a constituição desta superfície

não está dada, não se constitui como algo previamente estabelecido. O processo de

3 SIMONDON, G. L’Individuation des êtres vivants. In. L’Individu et as gênese physico-biologique, Paris: Éditions Jérôme Millon, 1995.

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individuação nos interessa justamente por ser considerado muito mais como processo do

que propriamente como um resultado. Nas palavras do autor:

O indivíduo não é um ser, mas um ato, e o ser é indivíduo como agente deste ato de individuação pelo qual ele se manifesta e existe. A individualidade é um aspecto da geração, ela se explica pela geração de um ser e consiste na perpetuação desta geração; o indivíduo é este que foi individuado e continua a se individuar; ele é relação transdutiva de uma atividade, ao mesmo tempo resultado e agente, consistência e coerência desta atividade pela qual ele foi constituído; ele é a substância hereditária, segundo a expressão de Rabaud, pois ele transmite a atividade que ele recebe, ele é este que faz passar esta atividade, através dos tempos, sob forma condensada, como informação. [SIMONDON, 1995, p. 189 – tradução e grifo nossos]

A individuação ocorre a partir da idéia de que há uma organização que é capaz de se

perpetuar, não através de sua permanência num mesmo indivíduo, mas, na possibilidade

de se reproduzir, através da transmissão de informação, ao longo tanto do tempo quanto

do espaço. Além disso, o processo de individuação, como frisamos, é um ato, necessita

de uma ação do sujeito em se reconhecer como individuado. Tal reconhecimento se

caracteriza pela perpetuação de um invariante a partir da possibilidade desta, de variar.

Além disso, a variação se apresenta como possibilidade de transduzir, ou seja, de

transmutar a informação através da reprodução. A reprodução, portanto, é a capacidade

mais importante no processo de individuação. Tal reprodução não é apenas considerada

como reprodução no sentido estrito do termo, pois, ao reconstituir minhas células

epiteliais, em 24 horas, também possuo a capacidade de reproduzir minhas células de tal

forma que, é nesta mudança de células, nesta renovação, que continuo permanecendo o

que sou. Neste sentido, o que “entra” no meu corpo é transformado, transduzido, para

manter-me o mesmo.

Para Simondon, a individuação, vista sob tal ponto de vista, não se restringe ao

organismo vivo, mas, é um processo que ocorre tanto no nível da matéria quanto no

nível da vida – e também no nível do pensamento. Por outro lado, a própria concepção

de que podemos pensar a individuação como forma do organismo é errônea. O que

caracteriza o processo de individuação é não considerar, como dissemos acima, a forma

como finalidade – seja esta palavra considerada como início, seja como fim. Ao

contrário, o que é afirmado acerca da individuação é que esta se constitui como um

processo, ou seja, é a partir da individuação que as relações entre os elementos ocorrem

de maneira a que se possa definir esta organização em contraposição ao meio no qual

esta organização se dá. Os elementos que participam de determinada organização

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“comportam-se” de maneira semelhante entre si e de maneira diferenciada em relação à

exterioridade. O funcionamento “interno” que consiste em manter a ordem conquistada

é visto de maneira diferente nos diferentes níveis: no nível material, no nível da vida e

no nível do pensamento. Nos restringiremos, por agora, ao nível da vida.

Simondon pretende apontar, nos seres vivos, processos de integração e

diferenciação como maneiras de organização do próprio vivente, que possuem um

funcionamento que se apresenta como uma especificidade deste, em sua forma de

transmitir a informação. A produção da vida é uma forma de individuação na qual a

informação sofre um processo de transdução – que é, ao mesmo tempo, integração e

diferenciação: “O nível total de informação se medirá então pelo número de estágios de

integração e de diferenciação, assim como pela relação entre a integração e a

diferenciação, que poderá ser nomeada transdução, no vivo.” [Idem, p. 158]

Portanto, o processo de individuação não pode se reduzir a uma relação entre

aquilo que considero meu corpo e aquilo que efetivamente me constitui enquanto tal. A

individuação não é apenas uma possibilidade de colocar em outros termos as trocas que

ocorrem entre o corpo e o meio. Mas, o processo de individuação pressupõe tanto uma

relação do indivíduo com aquilo que se assemelha a ele, que o potencializa; quanto com

aquilo que produz a separação dos elementos que constituem a própria individuação:

No ser biológico, a transdução não é direta, mas indireta, e segue por um duplo canal ascendente e descendente; ao longo de cada um desses canais, é a transdução que permite aos sinais da informação de passar, mas, esta passagem ao invés de ser um simples transporte de informação, é integração ou diferenciação, e produzirá um trabalho prévio graças ao qual a transdução final é possível, enquanto que no domínio físico esta transdução existe num sistema como uma ressonância interna elevada ou fraca; se a integração e a diferenciação fossem somente reais, a vida não existiria, pois é preciso que a ressonância exista também, mas se trata aqui de uma ressonância de um tipo particular, que admite uma atividade anterior que exige uma elaboração. [Idem, p. 158]

Tais indivíduos não seriam, no sentido estrito, os corpos orgânicos propriamente

ditos, mas a própria possibilidade da natureza em engendrar “indivíduos”: seres

diferenciados entre si e relacionados a outros seres que são semelhantes, mas não

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idênticos4. A própria manutenção da individuação é problematizada por Simondon, na

medida em que o indivíduo, para permanecer, deverá abrir mão de seu equilíbrio estável

para constituir um prolongamento temporal e espacial que não se confunde com o “seu”

prolongamento, mas, com o prolongamento da própria espécie – ou da informação que o

engendra – a partir dele. Desta forma, o processo de individuação é pensado, como

vimos em Deleuze, como a constituição de um corpo que é, ao mesmo tempo,

pluralidade e individualidade, possui tanto a organização de suas partes dando-lhe uma

idéia de conjunto – integração; quanto uma diferença de funcionamento em relação ao

meio – diferenciação, na medida em que se apresenta como trocas incessantes como o

meio externo sem se confundir com ele. Neste sentido, a individuação vital permite

pensar

dois tipos de relação e dois tipos de limites que se descobre no indivíduo: num primeiro sentido, o indivíduo pode ser tratado como ser particular, parcelado, membro atual de uma espécie, fragmento destacável ou não atualmente destacável de uma colônia; num segundo sentido o indivíduo é este que é capaz de transmitir a vida da espécie, e se constitui como o depositário das características específicas, mesmo se ele não for jamais chamado a atualizar a si mesmo; portador de virtualidades que não darão necessariamente a ele um sentido de atualidade, ele é limitado no espaço e também no tempo; ele constitui então um quantum de tempo para a atividade vital, e seu limite temporal é essencial à sua função de relação. [Idem, p. 170]

Em outras palavras, o indivíduo não é aquele que possui um fechamento em si mesmo,

mas, aquele que porta, ao mesmo tempo, as virtualidades atualizáveis da espécie, e a

possibilidade de deslocamento em relação a este grupo do qual ele faz parte. Ele é, ao

mesmo tempo, parte e completude, numa relação, nele próprio, de exterioridade e

interioridade em relação à espécie e ao meio.

Para Simondon, por conseguinte, todo processo de individuação é, a partir de sua

constituição, um equilíbrio instável que se constitui numa relação dupla de

diferenciação e de integração ao que podemos denominar de “meio”, na qual o

indivíduo não é pensado como um ser indivisível, único, mas, como uma estabilização

que necessita constantemente se reproduzir para permanecer estável. Neste sentido, a

estabilização é sempre precária e inconstante, pois, o corpo que se constitui a partir da 4 Tais relações entre a espécie e o indivíduo são pensadas por Simondon numa relação de reprodução ou duplicação. Na medida em que determinado ser é capaz de se reproduzir e, ao mesmo tempo, permanecer ele mesmo, há a individuação, pois, a reprodução é, em todo o caso, “independente” daquele que reproduz, sem prejuízo de sua forma e, o ser que será gerado também irá possuir características daquele que o gerou, mas, não será a pura reprodução do primeiro.

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individuação não é um corpo isolado, separado, seja dos outros indivíduos que

constituem sua espécie, seja do meio que o diferencia.

Em seu texto Biontes, Bióides e Borgues, Luis Alberto Oliveira nos dá exemplos

muito esclarecedores a respeito. Ao nos falar sobre experimentos com formigueiros, ele

nos diz que

uma formiga isolada se comporta como um bêbado sonso – mas duzentas (ou mais) formigas são capazes de resolver um complexo problema de otimização de recursos, o de determinar a menor distância entre dois pontos de maneira a minimizar o dispêndio de energia, levando em conta as circunstâncias (tridimensionais!) do território. (...) Há portanto capacidades na ação coordenada de duzentas formigas que não estão presentes nas formigas individuais; um predicado novo foi acrescentado, uma nova qualidade emergiu. [OLIVEIRA, 2003, p. 145]

O que significa dizer que, para considerarmos o processo de individuação, não devemos

levar em conta o sujeito isolado – a formiga, no exemplo – e sim, considerar as relações

que são estabelecidas entre as partes para que se possa compreender a individuação. No

caso citado acima, o comportamento “individualizado” está presente muito mais no

formigueiro do que propriamente na formiga. Em outras palavras, a individuação não

está na formiga mais do que no formigueiro. Dependendo dos objetivos estabelecidos

entre os componentes de uma determinada comunidade, estes componentes se

comportarão mais como indivíduos ou menos como tais:

O todo-formigueiro, portanto, não apenas contém suas partes, mas age sobre elas. Esse todo é mais do que a simples soma das partes, porque serve como meio para as partes agirem sobre si próprias. A heterogeneidade estrutural dos sistemas complexos instaura um campo de mediações entre os níveis global e elementar que tem como resultado a aparição de novas propriedades no sistema. [Idem, p. 148]

Esta forma de relação, que apresenta vários níveis de individuação e de

aparecimento de um meio externo, se constitui como um ponto interessante. O que

percebemos aqui é que não está em jogo uma relação pré-estabelecida entre “meio” e

“ser”. As variações apresentadas organizam, de forma variada as experiências de

exterioridade e interioridade. As mudanças que ocorrem em determinados locais e em

determinadas circunstâncias alteram efetivamente a própria idéia de constituição de um

indivíduo. Como foi dito anteriormente, a individuação não é uma forma, mas um ato,

um processo.

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Do mesmo modo, tais considerações encontram ressonância também nos

trabalhos de Prigogine e Stengers acerca do que os autores denominam de “estruturas

dissipativas”. Tais estruturas se apresentem como estabilidades que ocorrem a partir de

pequenos e inúmeros desequilíbrios. As estruturas dissipativas não seguem o padrão

determinista de reversibilidade do tempo, portanto, não podem ser pensadas como

estruturas estáveis. Isso significa dizer que existem estruturas que, para se constituírem

enquanto tal, para serem pensadas como “estruturas” necessitam manter o equilíbrio se

“desequilibrando”, ou seja, são estruturas instáveis, dinâmicas que, segundo os autores,

necessitam estar em movimento para alcançarem estabilidade. Belo paradoxo no qual a

estabilidade só se dá nas pequenas instabilidades que mantém a estrutura diferenciada.

Nas palavras de Prigogine:

Em nossa escala de seres vivos, agregados macroscópicos, parecia que a lei dos grandes números poderia restabelecer na prática o esquema determinista. Mas eis que as probabilidades fazem sua entrada à força, mesmo neste mundo: é esse um dos aspectos da descoberta da auto-estruturação dos sistemas macroscópicos longe do equilíbrio. O que os relaciona ao aleatório deve-se à variedade das formas que, de uma experiência a outra, esses mecanismos de estruturação podem desenvolver, a despeito do rigoroso controle das condições experimentais. Não se trata mais de fenômenos calculáveis por meio de leis gerais. Próximo do equilíbrio, as leis da natureza são universais; longe do equilíbrio, elas são específicas. Essas “instabilidades” exigem um fluxo de energia, elas dissipam energia. [PRIGOGINE, 1991, p. 38]

No livro A Nova Aliança, os autores trabalham exatamente esta possibilidade de

entender o funcionamento do mundo muito mais pela complexidade e pela instabilidade

do que a partir da dinâmica clássica, na qual o mundo é compreendido pelo famoso

paradigma do relógio. As trocas de calor e as estruturas dissipativas mostram que, ao

contrário do que se pensava, a instabilidade é parte significativa da constituição do

mundo e das coisas:

A termodinâmica dos processos irreversíveis descobriu que os fluxos que atravessam certos sistemas físico-químicos e os afastam do equilíbrio podem nutrir fenômeno de auto-organização espontânea, rupturas de simetria, evoluções no sentido de uma complexidade e diversidade crescentes. No ponto onde se detêm as leis gerais da termodinâmica pode-se revelar o papel construtivo da irreversibilidade; é o domínio onde as coisas nascem e morrem ou se transformam numa história singular tecida pelo acaso das flutuações e a necessidade das leis. [PRIGOGINE e STENGERS, 1984, p. 207]

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Partindo dos esclarecimentos apresentados anteriormente, podemos agora pensar como

Serres apresenta seus textos sobre o corpo. Em Variações sobre o corpo, o autor nos

convida a pensar o corpo nesta relação do invariante com suas variações:

A versatilidade e a prodigalidade são a chave do segredo. Como, de fato, definir o corpo vivo? Ele é invariante, mas de forma relativa e temporária; as distâncias entre suas variações podem ser fracas e depois fortes, podem ser inicialmente circulares ou periódicas e, em seguida, caóticas. Os perigos reforçam sua estabilidade antes de destruí-la para sempre. Estável por suas variações, equilibrado por suas instabilidades, organizado por sua desorganização, ordenado, enfim, por suas próprias perturbações, o ser vivo invariante e versátil caminha em direção a (vers) algo: esta é a forma estável, diretiva, rotativa, rítmica, enfim, caótica de seu tempo percolador, que associa em si o tempo do coração e o da cabeça, do relógio e do barômetro, do periódico e do aperiódico – essa aperiodicidade de cristal que Schrödinger descobrira na ciência do ser vivo se reconduz então aqui, na própria experiência de nossa proprioceptividade –, de bifurcações e de turbulências e, sem dúvida, de outras temporalidades ainda desconhecidas. Alertados, os médicos adotaram como insígnia um caduceu constituído por serpentes e um bastão. Esta é a origem das esperanças do corpo feminino. [SERRES, 2004 p. 122/123]

Nesta longa citação encontramos a mesma idéia de que o ser vivo se constitui por suas

variações. Mas, tais variações são o que faz do corpo, ao mesmo tempo, suporte estável

e lugar das mudanças. O que nos lembra a pergunta espinosista: “o que pode um

corpo?” Em linhas gerais: variações muito amplas sob um suporte maleável5. Num

outro texto Serres ainda nos diz:

Via vita, a vida caminha rápido. Sem os deslocamentos, não existiria vida humana, sem eles não haveria ritos de iniciação ou aprendizagem e, muito menos, pré-história ou antropologia. Do outro lado de nosso destino, entretanto, não existe vida sem caminho. A palavra viabilidade pode servir para ambos. Tudo se movimenta, mesmo a árvore cuja seiva circula e cuja folhagem balança sob a ação do vento quente. Tudo se move, mesmo as moléculas no interior da mais fina célula. Tudo vive porque se comunica. Tudo existe em virtude da troca. A relação condiciona a vida e precede a existência. [SERRES, 2005, p. 155]

1.2 – As afecções: como o corpo se relaciona com outros corpos.

Na citação acima, ficou mais clara a relação que podemos estabelecer entre o

movimento e as afecções, para que possamos entender certa dimensão do corpo.

Podemos complementar nossas considerações e buscar a relação entre afecções e corpo

sob o ponto de vista de um outro autor próximo ao pensamento de Serres. Bruno Latour,

5 A questão da potência do corpo será melhor desenvolvida no capítulo 3

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em algumas de suas reflexões utiliza-se do pensamento de Michel Serres. A idéia de

uma não distinção entre humanos e não-humanos, que é um dos fios condutores do

pensamento de Bruno Latour, ganha sustentação no próprio pensamento das

mestiçagens e dos fluidos de Serres. No livro Jamais Fomos Modernos, Latour discute a

constituição moderna, na qual a distinção entre humanos e não-humanos se apresenta de

forma ambígua: ao mesmo tempo que os modernos dizem respeitar a distinção, em seus

laboratórios, misturam constantemente atores díspares e heterogêneos.

Neste mesmo livro, Latour nos diz que há uma dupla constituição do direito e da

ciência. Tal maneira de pensar nos mostra a necessidade de uma negociação, para que as

coisas venham a existir. O que queremos dizer é que a realidade não é algo dado, não se

apresenta como um conjunto de seres pré-definidos. A realidade, como os próprios

corpos, são construções formadas pela arregimento de atores díspares e heterogêneos.

Sobre tal ponto de vista: um dos principais livros utilizados por Latour neste trabalho é

Statues, pois é neste que Serres nos apresenta a dupla constituição das coisas e das leis:

Em todas as línguas da Europa, ao norte bem como ao sul, a palavra coisa, qualquer que seja sua forma, tem como origem ou raiz a palavra causa, proveniente da área jurídica, política ou da crítica em geral. Como se os objetos em si existissem apenas de acordo com os debates de uma assembléia ou de acordo com uma decisão pronunciada por um júri. (...) Era assim que o latim chamava res, a coisa, de onde tiramos a realidade, objeto do procedimento jurídico ou a própria causa, de forma que, para os amigos, o acusado era chamado de réus porque os magistrados o citavam. Como se toda realidade humana viesse apenas dos tribunais. (...) O tribunal coloca em questão a identidade da causa e da coisa, da palavra e do objeto ou a passagem substitutiva de ambos. Algo emerge aí. [cit. em LATOUR, p. 82]

Podemos também mencionar o livro Luzes: Entrevistas com Bruno Latour.

Nesta coleção de entrevistas, Latour busca compreender melhor o trabalho de Serres, e

trazer ao público esclarecimentos importantes sobre tal autor. Na terceira entrevista, os

autores discutem exatamente esta relação entre humanos e não-humanos, a partir da

compreensão das relações:

Instintivamente, é isso que você me pergunta, é sempre isso que se exige a um filósofo: qual é o seu substantivo de base? A existência, o ser, a linguagem, Deus, a economia, a política, e assim por diante desde que venha no dicionário. Mas de onde é que extrai, então o sentido ou rigor? Qual é a designação em –ismo do seu sistema? Ou pior: qual é a sua obsessão? Resposta: parto, de forma dispersa, das relações, de cada uma delas, bem diferenciada – daí a dispersão e, singularmente, a sua questão –, e de todas, se possível, para acabar por

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agrupá-las. Permite-me fazer notar que cada um dos meus livros descreve uma relação, muitas vezes exprimível por uma preposição singular? A inter-ferência, para os espaços e os tempos que se encontram entre, a comunicação ou contrato, para a relação expressa pela preposição com, a tradução, para através... o para-sita, para ao lado de..., e assim por diante. Statues é o meu contralivro e levanta a questão: que se passa na ausência de relações? [SERRES, 1991, p. 141]

Ao invés de pensar na existência das coisas, anteriormente apresentadas, Serres busca

pensar a constituição do mundo pelas relações.

Portanto, tanto em Serres como em Latour, o corpo surge como esta composição

de encontros. Não há possibilidade de falar dos corpos sem se remeter à constituição das

relações. Em seu texto How to talk about the body Latour chama a atenção para o que

caracteriza um corpo, neste pensamento:

(…) ter um corpo é aprender a ser afetado. Significando “efetuado”, movido, posto em movimento por outras entidades humanas ou não-humanas. Se você não está engajado nesta aprendizagem você se torna insensível, tolo, você cai morto. (…) Equipado com tal “patho-lógica” definição do corpo, não há obrigação de se definir uma essência, uma substância (o que o corpo é por natureza), mas ao contrário, eu irei argumentar que a interface se torna mais e mais descritível quando esta aprende a ser afetada por muito mais elementos. O corpo não é, portanto, uma residência provida por algo superior - uma alma imortal, o universal, ou pensamento – mas o que deixa uma trajetória dinâmica pela qual nós aprendemos a registrar e nos tornamos sensíveis àquilo de que o mundo é feito. Tal é a grande virtude desta definição: não existe sentido em definir diretamente o corpo, mas somente em relacionar a sensibilidade do corpo ao que os outros elementos são. [LATOUR, 2002, documento eletrônico]

Não há corpo sem afecção. O corpo se constitui na afecção. Dizer que não há sentido

em falar do corpo, a não ser pela relação que este estabelece com o mundo a partir de

sua sensibilidade, é dizer que, sem o conjunto de afecções aos quais está exposto, não há

corpo propriamente dito.

As afecções são o que determinam o próprio corpo. Neste sentido, a “aquisição”

do corpo não é dada apenas por pré-disposições a priori, mas, antes, por possibilidades

múltiplas de ser afetado. A diferença entre uma forma e outra de pensar muda

radicalmente o entendimento sobre o corpo. Se entendo o corpo como algo que possui

determinadas disposições para ser afetado, estou afirmando que este corpo está

determinado pelas capacidades prévias de afecção. Mas, se, ao contrário, entendo o

corpo como algo que possui uma maleabilidade tal, que suas conexões não estão

determinadas previamente, este corpo possui uma variabilidade quase infinita. Em

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outras palavras, o corpo não se esgota em relações pré-definidas, mas se forma, se

organiza, se constrói e se expande somente nas conexões que lhe são apresentadas. As

afecções, ao invés de determinar os encontros possíveis, é o que gera efetivamente

encontros. Tais encontros podem ser de tal ordem que produzem corpos até então não

imagináveis – como a relação entre os chips e as células nervosas, por exemplo6.

Por outro lado, os corpos não podem ser pensados como coisas que se

constituem antes das afecções. São as afecções que constroem um corpo na medida em

que a constituição dos corpos se apresenta, desde sempre mesclada, matizada, tatuada

pelas afecções.

Podemos retornar aqui, mais uma vez, ao pensamento de Deleuze. Seguindo

ainda a intuição deleuziana, passamos agora a considerar as afecções como forma do

corpo de se constituir enquanto tal, nas relações de troca que estabelece com os outros

corpos. É sobre as afecções, como mediação7 entre as coisas e os indivíduos, como

aquilo que produz, ao mesmo tempo, o reconhecimento de uma relação e a identificação

de um fechamento que pretendemos nos inclinar agora.

As afecções podem ser pensadas, de maneira simples, como aquilo que produz

um efeito nos corpos. Tal efeito, vale lembrar, é sempre duplo e marca tanto nossa

sensação de individualidade, de interioridade, quanto nossa sensação de pertencimento

ao mundo, nossa exterioridade. Mais uma vez, quando ele “faz funcionar” o pensamento

de Espinosa, ele nos possibilita entender as afecções de uma maneira muito interessante:

“Definiremos um animal, ou um homem, não por sua forma ou por seus órgãos e suas

funções, e tampouco como sujeito: nós o definiremos pelos afetos de que ele é capaz.”

[DELEUZE, 2002, p. 129] Da mesma maneira, Serres nos convida:

Os nus expostos em séculos de pintura não se destinam aos voyers, mas mostram o sensível, todas banhistas. Não modelos a serem pintados, mas modelos do que é preciso fazer para poder pintar ou pensar algum dia: lançar-se no oceano do mundo. Sentir que se forma ao redor de si esta membrana, este tecido, este véu invisível. [SERRES, 2001, p. 30/31]

6 Tal questão, sobre a relação entre o corpo e os outros materiais heterogêneos, possibilitada pela engenharia genética, falaremos melhor no capítulo 4. 7 Sobre a diferença entre intermediário e mediador, falaremos no decorrer do texto.

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Serres, nesta citação, nos apresenta o corpo a partir de sua superfície: a própria pele.

Nossa relação com o mundo e com os outros ocorre através das afecções que são

impressas em nosso corpo através da pele, este primeiro e maior órgão-limite.

Portanto, o sentido “primeiro”, que nos permite nos reconhecer como um corpo

é o tato. Antes que possamos ver ou ouvir, sentimos o contato e, tal contato nos

delimita, nos impõe um limite, ao mesmo tempo em que nos lança no mundo, que nos

relaciona com as coisas. Para Michel Serres todos os nossos sentidos são posteriores ao

tato, como podemos perceber em suas narrativas sobre as tapeçarias da Idade Média A

Dama e o Licorne. Ele nos diz: “O tato parece predominar, reunir o sentido comum,

soma dos cinco sentidos, com que tece a tenda”8. [Idem, p. 49] Neste trecho, há uma

bonita analogia entre o tecido e a pele que vale ser aprofundado.

Serres se refere às tapeçarias da Idade Média não apenas para nos trazer uma

reflexão sobre os sentidos, mas para que esta reflexão se apresente, efetivamente

atrelada a uma tapeçaria. Não é por acaso que é colocada esta relação. A própria

tapeçaria já se apresenta como textura, como forma de apresentação dos sentidos do

tato. O toque da tapeçaria já apresenta a pele conectada a ele de uma maneira própria. O

corpo que consegue sentir a suavidade da textura já é um corpo produzido pela

tapeçaria. Os sentidos não se distinguem do que sentem, portanto, a tapeçaria forma um

corpo, da mesma maneira que o sentido comum – apresentado na sexta tapeçaria como a

tenda – forma a conexão dos cinco sentidos, e dá à dama o seu corpo. No mar de

sensações, apresentado nas tapeçarias, encontramos sempre a textura dos tapetes, o

entrelaçamento de seus fios e os nós de suas conexões.

Da mesma forma, quando admiramos os quadros de Bonnard, não vemos apenas

uma tela, pintada para enganar os sentidos, mas, o que vemos são texturas que formam

sentidos:

Generalizando esta hipótese, diríamos que o tecido, o têxtil, o estofo dão excelentes modelos de conhecimento, excelentes objetos quase

8 A tenda a que Serres se refere aparece na sexta tapeçaria, das seis expostas no Museu da Idade Média, em Paris, denominadas A Dama e o Licorne. Nesta sexta tapeçaria, encontramos características únicas, diferentes das anteriores: é a única que possui a tenda citada e inscrições em seu topo que dizem: “UNICAMENTE MEU DESEJO”. Para Serres esta tapeçaria representa o sentido interno: “Definida pelo fechamento do espaço, fechada sobre si, a tenda, um pouco aberta, descobre-se a si mesma, o corpo pode escrever ou dizer: MEU.” p. 52

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abstratos, primeiras variedades: o mundo é um amontoado de panos. A mulher, pelo conhecimento, estava há muito tempo à frente do macho. Mulher nua de Bonnard, deusa com a ave, moça com o licorne ou pobretona de sapatinhas. [SERRES, 2001, p. 79]

É preciso refletir um pouco mais sobre esta questão dos afetos. Simplificar os

afetos, dizendo que afetamos e somos afetados o tempo todo não nos ajuda muito.

Devemos considerar de maneira um pouco mais detalhada as afecções. Dentre os

autores que teceram considerações acerca das afecções, temos um eixo que vai de

Aristóteles aos fenomenologistas, passando pelos empiristas, por Espinosa e Merleau-

Ponty (com todas as diferenças que cada autor apresenta, é claro). Em tal caminho, o

que aparece como ponto de encontro é a preocupação com o conhecimento que advém

das sensações. Muito já se discutiu, em filosofia, a respeito disso: se as sensações são

capazes de produzir conhecimento, ou, ao contrário, se o conhecimento advém de outro

lugar. Em outras palavras, podemos explicar a complexidade de nosso pensamento

apelando apenas para os nossos sentidos mundanos? Não cabe, no enquadre a que nos

propusemos, propor resposta a questão tão vasta. Entretanto, podemos pinçar alguns fios

que agreguem à economia de nossa argumentação.

Podemos, por exemplo, retornar ao texto de Luis Alberto Oliveira, no qual o

autor nos apresenta a vida como uma complexificação dos sistemas materiais. Para este

autor, os sistemas vivos possuem uma característica muito importante: a possibilidade

de se auto-afetar – a partir desta possibilidade, os sistemas vivos modificam-se

intensamente, a tal ponto que podem modificar sua própria natureza para assimilar as

pressões do ambiente. Para explicar estas mudanças, o autor utiliza-se do conceito de

dobra, trazido por Deleuze: “Implicar é dobrar ou conectar, explicar é desdobrar ou

dissociar. Complexo ou complicado é o que está dobrado junto, o que está redobrado.”

[OLIVEIRA, 2003, p. 150] Portanto, este conceito de dobra nos traz a possibilidade de

pensar a complexidade de uma maneira mais clara:

Qual é o efeito de uma dobra? Induzir a existência de uma outra superfície, não vista mas intuída, “por detrás” da superfície aparente. (...) Ou seja: a dobra vai permitir que os corpos se avolumem e que portanto o quadro adquira uma terceira dimensão espacial, uma profundidade [Idem, p. 151]

Podemos retornar ao texto de Bruno Latour, no qual ele nos apresenta um

exemplo interessante: a aquisição de “um nariz” a partir das experiências realizadas com

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o que ele denomina “Malettes à odeurs”, ou seja, um kit de odores que possibilita um

aprendiz a definir, cada vez de forma mais apurada, os odores, mesmo que estes estejam

misturados ou ocultos em outros odores. Adquirir “um nariz” significa, portanto, ser

capaz de diferenciar os odores: “Então, as partes do corpo são progressivamente

adquiridas ao mesmo tempo que as ‘partes-contadas do mundo’ são registradas de uma

nova maneira. Adquirir um corpo é então um empreendimento progressivo que produz,

de uma só vez, um meio sensor e um mundo sensitivo” [Latour, p. 2]

Deste modo, o mundo não se apresenta como algo “já dado”, pronto, e, por outro

lado, o próprio sujeito não pode ser pensado como algo que se apresenta como uma

forma. Para Latour, partir do pressuposto de que as coisas são objetivas e os sujeitos

subjetivos, nos impede pensar a produção do corpo:

Eu pretendo contrapor isso a outro modelo que espero evitar, a todo custo, este risco que parasita minha descrição: num tal modelo, existe um corpo, que significa um sujeito; existe um mundo, que significa objetos; e existe um intermediário, que significa a linguagem que estabelece as conexões entre o mundo e o sujeito. Se nós usarmos este modelo, acharemos muito difícil explicar o aprendizado por meio da dinâmica do corpo: o sujeito está “dentro” como uma essência definida, e aprender não é essencial para este vir a ser; o mundo está fora, e afetar os outros não é fundamental para a sua essência. Como para os intermediários – linguagem, kit de odores – que desaparecem uma vez que as conexões tenham sido estabelecidas, já que eles não fazem nada mais importante do que conduzir a ligação. [LATOUR, documento eletrônico]

Como contraponto, podemos pensar que todos os elementos envolvidos na

própria aprendizagem de “se tornar um nariz” é o que possibilita a constituição de um

corpo. É por mediações que nos tornamos nós mesmos e não o contrário. Sabemos que a

questão da mediação é trabalhada de forma mais profunda em dois livros de Serres:

Hermès III, la traduction, e O Terceiro Instruído, no qual ele nos traz a bela história de

Arlequim, que, ao visitar todos os lugares do mundo diz não haver nada diferente em

lugar nenhum – em contraste com seu manto, absolutamente multicolorido, diverso,

descontínuo, composto por retalhos desarranjados. Arlequim só é Arlequim a partir do

seu manto furta-cor, ao retirá-lo, o que encontramos é outro manto até chegarmos à

pele – tatuada, mesclada, mestiça, hermafrodita, ambidestra. Tornar-se um corpo

significa afastar-se de si mesmo, deixar-se tatuar, marcar os caminhos percorridos pelas

afecções:

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Eis assim descrito o terceiro instruído, cuja instrução não pára: pela sua natureza e pelas suas experiências, acaba de entrar no tempo; abandonou o seu lugar, o seu ser e o próprio estar aí, a sua terra de origem, viu-se excluído do paraíso, atravessou vários rios, com todos os seus riscos e perigos. [SERRES, 1993, P. 27]

Numa tradição em que cada coisa possui uma essência e uma natureza, o corpo

não seria nada mais do que um intermediário entre o sujeito e o objeto. Mas, num

mundo em que as coisas são constituídas por relações, nas quais os efeitos e afecções

não são dados previamente, há uma constituição constante do corpo a partir das

mediações. O corpo se constitui como relação9, como conexão, torna-se, cada vez mais

sensível ao mundo que o cerca. Não há autenticidade sem mistura, originalidade sem

cópia, o que há é uma constante produção que ocorre a partir de um afastamento de si

mesmo que, ao invés de produzir um enfraquecimento de si é o que nos possibilita dizer

“eu”.

Todas as afecções produzem o que Serres denomina de nó. A composição que

nos representa, nosso corpo, nada mais é do que um encontro no qual podemos construir

uma espécie de tapeçaria:

Toda separação esquece o nó ou os arabescos que estão entre as coisas separadas. (...) A falta de sutileza impede-nos ver a floresta de nós sob a tela ou por baixo da tapeçaria, deslumbrados pela representação de inteligência. Com certeza o tapete mostra uma espécie de mosaico discreto, mas, para analisá-lo verdadeiramente, seria preciso desfazer, por detrás, com a mão, os fios entrelaçados. (...) Antes que o infinito ou o tempo separem o descontínuo do contínuo, o nó os amarra. A prática e o conceito de conexão impõem-se na frente de muitos outros. [SERRES, 2001, p. 74]

Da mesma maneira, esta relação entre a mistura e a coisa se apresenta num outro sentido

quando não mais podemos distinguir a essência e a aparência. Mesmo que a tradição

faça uma distinção muito forte entre uma idéia de permanência da beleza, uma beleza

que se apresenta de maneira “natural” e uma idéia de beleza produzida, esta que engana,

que não deve ser levada em consideração10, na qual a primeira mascara e a segunda

9 Vale lembrar que o que estamos chamando aqui de relação está relacionado ao conceito de mediação, muito mais do que o conceito de intermediário. Como pudemos perceber nas citações sobre Bruno Latour, as mediações não são a mesma coisa que intermediários. O conceito de mediação compreende a mistura como anterior à coisa, as mediações produzem deslocamentos e não são meramente intermediários, que se apresentam apenas como portadores de mensagens previamente estabelecidas. 10 Como podemos perceber no diálogo Górgias de Platão, no qual o autor nos diz: “a cozinha é a adulação disfarçada da medicina. Da mesma maneira, à ginástica corresponde a toilette, prática malfazeja e enganadora, vil e indigna de um homem livre, que ilude com aparências, cores, cuidados da pele e do

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modifica, é na própria etimologia da palavra cosmos que podemos ver misturados os

dois sentidos:

Dizemos de maneira equivalente cosmética ou a arte da maquiagem. Os gregos tiveram a requintada sabedoria de fundir numa mesma palavra a ordem e o ornamento, a arte de ornar com a de ordenar. O cosmo designa a arrumação, a harmonia e a lei, a conveniência: eis o mundo, terra e céu, mas também a decoração, o embelezamento ou o arranjo. Nada é tão profundo como o enfeite, nada é tão abrangente como a pele, o ornato e as dimensões do mundo. Cósmico e cosmética, a aparência e a essência saem de uma mesma fonte. A maquiagem iguala a ordem, e o embelezamento equivale à lei, o mundo surge ordenado, em qualquer nível em que se considerem os fenômenos. Todo véu se apresenta magnificamente historiado. [SERRES, 2001, p. 27]

Dizer que nos tornamos cada vez mais nós mesmos é afirmar a fabricação de si, antes de

dizer que estamos, o tempo todo, sendo “falsos”, enganando a natureza.

Não, a mulher não põe uma máscara mentirosa como dizem os moralistas, nem remedeiam o irremediável como pretendem os jovens; ela traça o Mapa de Ternura do tato, e seus riachos de ouvido, rios de paladar e lagos de escuta, águas misturadas frementes de onde se ergue sua beleza, fiel. Torna visível sua invisível carteira de identidade ou corpo impressionável. [Idem, p. 29]

A superfície corporal, portanto, não se apresenta apenas como uma idéia de

“corpo próprio”, como pudemos perceber, pois, o corpo não se apresenta de uma forma

“pura”, “essencial”, mas como algo que só pode emergir na mistura que estabelece com

o mundo e com as coisas. O corpo em sua superfície é conexão, é mediação, á algo que

varia de acordo com as variações da pele. Não é apenas um receptáculo de sensações,

mas, a própria possibilidade de sentir, e deste modo, de dar sentido. Portanto, podemos

compreender a ambigüidade da própria palavra “sentido”, que é as mesmo tempo,

possibilidade de sentir e possibilidade de dar sentido às coisas. Não há separação entre

estas duas possibilidades pois, ao mesmo tempo que sinto o mundo, dou sentido à ele.

Do mesmo modo, as misturas, os encontros, as relações são anteriores, são primordiais

e, como vimos na citação acima, não privilegiam a “pureza”, mas enaltecem as

variações.

O lugar do encontro, das relações e da própria constituição do sujeito se

apresenta na superfície. Não há portanto, motivo para procurar, fora do corpo, o que

seria o próprio sujeito. Nosso encontro com o mundo, nossas afecções se apresentam na

superfície, na própria pele – como nos diz Valéry: o mais profundo é a pele.

vestuário, a tal ponto que, interessadas em exibir uma beleza artificial, as pessoas descubram a beleza natural, proporcionada pela ginástica.” 465b

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2 – As superfícies e seus efeitos

Portanto, nossas primeiras relações conosco e com o mundo nos são dadas a

partir desta linha tênue que nos separa deste, que nos possibilita sentir, ser afetados, que

é a nossa pele. É na e pela pele que constituímos nossos primeiros sentidos de “eu”. É

neste órgão limítrofe que demarcamos, desde o nascimento, as fronteiras de nosso

corpo. São as primeiras sensações que marcam a distinção que produzimos entre o que

reconhecemos como “nós” e o que não faz parte de nós. Nossa primeira unidade

encontra sua primeira estabilização na pele.

A pele é uma variedade de contingência: nela, por ela, com ela tocam-se o mundo e o meu corpo, o que sente e o que é sentido, ela define sua borda comum. Contingência quer dizer tangência comum: mundo e corpo contam-se nela, acariciam-se nela. Não gosto de dizer meio como o lugar onde meu corpo habita, prefiro dizer que as coisas se misturam ao mundo que se mistura a mim. A pele intervém em várias coisas do mundo e faz que se misturem. [SERRES, 2001, p. 77]

Pensar a pele como borda, não restringe nossas considerações a um lugar-

comum que é determinar biologicamente nossas fronteiras a partir da visibilidade de

nossos limites, nem mesmo a uma simplificação do corpo a partir do seu limite visível.

Sabemos que, algumas vezes, o lugar delimitado como “eu” não coincide exatamente

com o limite entre o que está dentro e o que está fora deste grande órgão periférico que

é a pele. É neste sentido de tangência comum que queremos sublinhar nossas

considerações, pois, como está claro no texto, é neste órgão-limite que somos

tangenciados, cortados, afetados pelas coisas11. Isso não quer dizer que somos somente

o limite determinado por nossa pele, mas é a partir dos contatos que estabelecemos com

as coisas que brotam as sensações, e também os sentidos. Esta leitura, um tanto

empirista das sensações encontra ainda, suporte no pensamento de Serres, porém a

querela moderna sobre a “substancialidade” do “eu”, o problema do psicologismo, e

toda a discussão acerca do inatismo do Cogito ou da transcendentalidade das

faculdades, se desloca quando pensamos que a construção tanto do sujeito quanto do

objeto não segue a via da distinção a priori.

11 Sobre esta relação entre o corpo e o corte, ver o exemplo de Deleuze, em seu livro A Lógica do Sentido.

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Não cabe aqui uma longa discussão sobre os caminhos percorridos pela

modernidade, nem mesmo as diferenças e semelhanças entre os autores. Nós

mencionamos a questão do empirismo somente para acrescentar, nas palavras de Serres,

sua proposta – que se aproxima da proposta empirista, na medida em que se afasta dos

pressupostos racionalistas de que só construímos o conhecimento a partir de uma

racionalidade “pré-existente”. Para Serres, produzir conceitos não é a mesma coisa que

ter afecções. Uma afirmação tão óbvia deve ser dita não porque esquecemos o corpo,

mas porque acreditamos que todo o conhecimento advém dos conceitos, formas que

“enformam” a experiência. Ao contrário desta afirmação Serres nos apresenta a estátua

no festim: o filósofo entra na festa com uma pele de mármore e o filósofo abre e fecha

suas janelas, para que lhe sejam apresentadas as flores, primeiramente. Porém, lhe dizer

“rosa” não distingue as múltiplas possibilidades a qual tal conceito pode se referir.

Dentro do banquete, a estátua o interrompe, não se senta nem bebe, não fareja nem degusta, ela come o cardápio: dicionário móvel capaz de memorizar a rubrica dos pratos, das receitas e dos vinhos, mas impotente para comemorar qualquer ceia. (...) Diz melhor que ninguém o que ela nunca sentiu, mas se trai no vocabulário.12

Por outro lado, temos a própria questão da modernidade, este “ato inaugural”

que transforma aquilo que é anterior a ele como algo ultrapassado. A emergência da

distinção entre sujeito e objeto, que data a modernidade, se apresenta como anterior a

qualquer possibilidade de pensar a junção entre estes dois “mundos”. Mas, autores como

Serres e Latour, não consideram a divisão moderna como um marco intransponível, do

qual deveremos partir. A tese do livro Jamais Fomos Modernos, é justamente apontar

para a construção desta distinção e o que ela possibilitou. Não possui nenhum tom, nem

de denúncia em nome da verdade, nem mesmo de nostalgia, busca do passado “melhor”.

Mas, aponta para os efeitos que tal distinção produziu, como a separação entre natureza

e sociedade. Num mundo dividido, no qual os saberes e conhecimentos apresentam-se

em trincheiras, a mistura não é bem vista. Portanto, o pensamento de Michel Serres

ocupa este “nimbo”, dedicado à não clareza, nem ontológica, nem epistemológica. Para

este pensamento, Latour nomeia seu próprio lugar (e daqueles que, como ele, entendem

a constituição do mundo como mistura) de a-modernos, pois, estes não se encontram

nem num lugar anterior à modernidade: pré-moderno; nem mesmo numa posição

12 Sobre a importância da linguagem e sua relação com o corpo, explicitaremos melhor no segundo capítulo.

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posterior à modernidade: pós-moderno13. Na entrevista que cede à Bruno Latour, Serres

nos diz:

Talvez eu não seja moderno, de fato, no sentido que dá a essa palavra. Mas, no fundo, que importa que eu seja isto ou aquilo, descrito por um adjetivo que traduz pertença? (...) Uma questão: e se aqueles que se pretendem modernos não fossem senão antigos e muito raros fossem os que são modernos? A referida modernidade supõe que tenha existido uma revolução, que mudou um determinado estado de coisas para dar lugar a uma nova era, não é verdade? Ora, essa idéia e esse gesto repetiram-se tão freqüentemente na nossa história que podemos perguntar se o pensamento ocidental não deixou de o recomeçar, como um reflexo automático, desde a sua origem. Pelo menos desde que os primeiros antepassados foram expulsos do paraíso terrestre: foi-lhes preciso voltar a partir do zero..., ocorrendo depois o nascimento do Messias... Esta maneira de ser moderno define exatamente as nossas utilizações repetidas, ia dizer arcaicas; o célebre prefácio à Crítica da Razão Pura assinala, para cada ciência, um momento inicial a partir do qual tudo começa, deixando no seu rastro uma espécie de antiguidade. Se tornar-se moderno exige que repitamos esse gesto, então nada é tão antigo. Somos modernos quando repetimos um gesto? Conservadores? Arcaicos? [SERRES, 1997, p. 195]

Partindo destas considerações, podemos perceber que Serres não busca pensar a divisão

entre sociedade e cultura, muito menos entre sujeito e objeto. Para o autor, a questão

não passa por um começo, por uma origem da qual tudo deve derivar. Seu ponto de

partida não se confunde com os pressupostos modernos, nem da divisão, nem da

ultrapassagem.

O termo utilizado por Serres para pensar as diferenciações que ocorrem no

mundo é circunstância. Ao invés de pensar a divisão, Serres pensa a constituição do

mundo a partir de encontros e transformações que são circunstanciais. Não no sentido

restrito do termo, mas, a partir de uma ampliação do sentido desta palavra, encontramos

as múltiplas possibilidades que se tornam estáveis: circunstâncias.

A circunstância torna-se todo o motor. A substância já não tem importância: é queimada no fogão. (...) As circunstâncias dizem a multiplicidade irredutível à unidade: não em número apenas, mas em localização, forma, tempo, cor ou matiz, matéria, fase, vizinhanças... contingências. [SERRES, 2001, p. 300/301]

A relação entre tangência e circunstância é fundamental para a compreensão,

tanto dos textos de Serres, quanto de sua concepção do corpo. A tangência se apresenta

13 Para um esclarecimento mais amplo desta questão ver o texto Pós-moderno? Não! Simplesmente a-moderno, de Bruno Latour e sua crítica à pós-modernidade.

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exatamente como marca de um encontro que não é simplificável a partir do apelo ao

limite corporal. Sentir algo não é somente distinguir uma exterioridade, mas, é também,

em certa medida, reconhecer uma interioridade. Interioridade esta impossível de

reconhecimento se não forem afetadas determinadas partes da pele. “O mapa da

epiderme exprime certamente mais que o toque, mergulha profundamente no sentido

interno, mas começa no tato.” [SERRES, 2001, p. 20] Por outro lado, dizer que as

coisas se constituem na circunstância é afirmar:

Trata-se justamente de circunstâncias: fenômenos não compreendidos na definição estrita do sistema, não dedutíveis do equilíbrio geral, à parte. Nenhuma balança compensa as direções gerais pelos movimentos que eu diria ocidentadas, nem os afastamentos do equilíbrio, excentricidades ou inclinações, pelas obliqüidades simétricas. O tempo reversível não integra suas exceções em uma soma ritmada. O clinâmen de Lucrécio volta; e em dimensões gigantescas. Lança-nos no tempo da gênese irreversível, o tempo do fogo: na cosmogonia, o sol deixa seu papel de massa central para reassumir o de fonte de irradiação. [Idem, p. 298]

Os afetos que possibilitam o surgimento de um corpo em relação a um mundo

são pensados como tangência e circunstância, pois os encontros se constituem nesta

dupla realidade, na qual o clinâmen, ao se mover, determina a diferenciação. O que está

em jogo aqui, não é a diferença entre sujeito e objeto, constituída a priori. O clinâmen é

anterior a qualquer possibilidade de diferenciação. O que se apresenta, nesta forma de

pensar as relações são sempre circunstâncias. As circunstâncias, como nos diz Serres,

são irreversíveis, lançam os corpos no fogo. Portanto, a tangência é a própria

possibilidade de diferenciar-se de si mesmo, de produzir um “efeito de superfície” que,

ao ser gerado, cria a própria idéia de superfície como limite, como limiar.

No corpo, o que podemos perceber é que esta diferenciação se constitui em

partes específicas. Estas partes são afetadas pelo mundo. Uma região que não foi

afetada dificilmente se reconhecerá como parte do corpo, conseqüentemente, a maneira

como somos afetados nos permite constituir o mapa de nossa própria pele:

(...) eis na pele, à superfície, a alma instável, ondulante e fugidia, a alma estriada, anuviada, tigrada, zebrada, sarapintada, chamalotada, conturbada, constelada, multicolorida, matizada, impetuosa, turbulenta, incendiada. Uma idéia selvagem, a primeira depois da consciência, consistiria em riscar finamente essas zonas e passagens, e colorir, como um mapa. [Idem, p. 18]

A partir dessas conexões que estabelecemos com o mundo externo também somos

produzidos. A própria idéia de eu, nossa identidade, não pode ser pensada se excluirmos

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este encontro. Como dissemos anteriormente, a identidade, antes de ser aquilo que

estabelece a fixidez, é o que nos mistura às coisas:

Assim, complexa e assustadora, surge nossa carta de identidade.(...) Os que têm necessidade de ver para saber ou crer desenham ou pintam e fixam o lago de pele inconstante e ocelado, tornam visível, com cores e formas, o puro tátil. Mas, pra cada epiderme, seria preciso uma tatuagem diferente, seria preciso que ela evoluísse com o tempo: cada rosto pede uma máscara tátil original. A pele historiada traz e mostra a própria história; ou visível: desgastes, cicatrizes de feridas, placas endurecidas pelo trabalho, rugas e sulcos de velhas esperanças, manchas, espinhas, eczemas, psoríases, desejos, aí se imprime a memória; por que procurá-la em outro lugar; ou invisível: traços imprecisos de carícias, lembranças de seda, de lã, veludos, pelúcias, grãos de rocha, cascas rugosas, superfícies ásperas, cristais de gelo, chamas, timidez do tato sutil, audácias do contato pugnaz. A um desenho colorido ou abstrato, corresponderia uma tatuagem fiel e sincera, onde se exprimiria o sensível. A pele vira porta-bandeira quando porta expressões. [Idem, p. 18]

É nesta topologia do corpo que encontramos nossas identificações. Variáveis por cada

traço de afecção que nos produziu e, ao mesmo tempo, identificados a estas variações,

somos o que se apresenta como ponto de intersecção, único e variável.

Mas, nas texturas que compõem o corpo, encontramos, mais uma vez, as

variações de contato. Serres expressa estas variações de formas diferentes, nos

remetendo, mais uma vez, às próprias afecções. Nos quadros de Bonnard, Serres

encontra as texturas, a pele, os véus e a tela. É no jogo destas superfícies que

encontramos a própria idéia de revestimento, que é tão importante para nosso trabalho.

Sobre um quadro do autor de 1890, Serres nos diz:

Tirem as folhas, tirem o penhoar: tocarão a pele da mulher morena ou a tela do quadro? Pierre Bonnard menos deixa ver do que sentir sob os dedos películas e camadas finas, folhagem, pano, tela, em liso, desfolhamento, desnudamento, desvelamentos refinados, cortinas leves, acariciantes: sua tela cheia de tato não faz da pele um objeto banal de se ver, mas o sujeito que sente, sujeito ativo sempre por trás. [Idem, p. 25]

Esta relação entre a tela, o véu e a pele, nos remete, mais uma vez, à relação entre as

afecções e as coisas. Além disso, não há privilégio aqui de um tipo de revestimento que

encobre as coisas, pois, todos os revestimentos são os meios de contato e relação.

O Nu no Espelho de Pierre Bonnard mantém em equivalência ou em equação a tela, os véus e a pele. A nudez é coberta de tatuagens, a pele é impressa, impressionada. O nu enfia o penhoar ou a criança o avental, tecidos impressos, sóbrios ou cintilantes, que expressam mal, com rigidez ou convenção, nossas impressões singulares. O pintor mancha a tela para expressar, digamos, suas impressões: ele a tatua, expõe sua pele frágil, privada, caótica. [Idem, p. 26/27]

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As texturas, ao invés de serem apresentadas como aquilo que serve unicamente

para cobrir, são, inversamente, vistas como a própria possibilidade de sentir. Tal

inversão expõe a pele, ela não é apenas uma textura que encobre o que é importante, ela

é o que dá sentido e totalidade, se confunde com aquilo que encobre. Por outro lado, o

revestimento não é o que deve ser descartado, mas, afetado para produzir as relações.

Esta forma de compreender as superfícies inverte toda a possibilidade de pensar a

profundidade. Como nos lembra Deleuze, sobre os estóicos:

O que há nos corpos, na profundidade dos corpos, são misturas: um corpo penetra outro e coexiste com ele em todas as suas partes, como a gota de vinho no mar ou o fogo no ferro. Um corpo se retira de outro como o líquido de um vaso. As misturas em geral determinam estados de coisas quantitativos e qualitativos: as dimensões de um conjunto ou o vermelho do ferro, o verde de uma árvore. (...) não mais estados de coisas ou misturas no fundo dos corpos, mas acontecimentos incorporais na superficie, que resultam destas misturas. [DELEUZE, 2000, p. 7]

Ao compreendermos esta “profundidade da própria pele” é que podemos entender a

importância do corpo. Não é apenas o corpo que se constitui na superfície, mas a

própria possibilidade de se pensar como um corpo, de ser um corpo.

Mas, tal superfície não pode ser pensada como algo liso, sem impressões,

homogênea. O corpo, para ser visto enquanto tal, deve ser impressionado, afetado, como

dissemos anteriormente. O manto de Arlequim, que citamos alhures, não é formado por

um tecido homogêneo, mas, por conexões entre tecidos heterogêneos, advindos de

vários lugares e várias relações possíveis. Ao citar o quadro de Bonnard O Nu no

Espelho, Serres nos instiga:

Sua epiderme está pintada de maneira bem singular. Ela despe o roupão, dir-se-ia que as estampas do tecido ficaram em sua pele. Mas, no penhoar, as meias-luas se distribuem de forma regular, mecânica, reprodutível; na roupa cutânea, vívidas, as impressões distribuem-se ao acaso, de maneira inimaginável. (...) Mistura sobre mistura e caos sobre caos, a pele tem por imagem a cortina, tem por reflexo uma tela, por fantasia uma toalha. [SERRES, 2001, p. 26/27]

Para Serres, cada um apresenta sua própria tatuagem, marca de suas próprias

afecções. O corpo, desta forma, não é apenas um suporte físico-fisiológico, mas, o

próprio mundo, enquanto forma de afecção. Como dissemos anteriormente, estar no

meio significa estar propriamente vivo, ter um corpo. Mas, cada impressão apresenta

sua conexão única, característica, na qual o corpo marca sua existência. Existência aqui

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é pensada como aquilo que, antes de apontar para um pertencimento, é um “estar fora”,

manter-se em desequilíbrio estável para se manter como estabilidade. Neste sentido,

podemos dizer que o eu. Ou ainda, ter uma identidade, não se confunde com nossos

pertencimentos – se estes são pensados como formas de identificação, o corpo não se

apresenta como uma forma de reconhecimento para além de qualquer relação.

Para que esta idéia de corpo fique mais clara, devemos pensar na distinção que

Serres faz entre pertencimento e identidade. Esta última é a simples declaração de uma

existência singular, única, apresentado no próprio princípio de identidade no qual se é

idêntico a si mesmo. Além disso, ao pensarmos em identidade, nos remetemos, em

nossos dias, aos vários mecanismos de identificação dos sujeitos: carteira de identidade,

passaporte, nacionalidade. Porém, para Serres, estas identificações não teriam,

necessariamente, relação com a identidade, e sim, com o que ele denomina de

pertencimento. Os pertencimentos não são móveis, não são constituintes de relações,

são referências fechadas, localizações e delimitações. Qualquer referência a apenas um

pertencimento constitui no erro de localizar os sujeitos em identidades pré-

estabelecidas:

O que diz o racista? Ele o trata como se sua identidade se esgotasse em um de seus pertencimentos: para ele você é negro ou homem, católico ou ruivo. Ele adora o verbo ser, tão fluido quanto redutor. O racismo tira seu poder de uma ontologia cujo primeiro ato de palavra reduz a pessoa a uma categoria e o indivíduo a um coletivo. Ele o encerra dentro de um compartimento, da mesma forma que um entomologista fixa um inseto em sua coleção com um alfinete; perseguido, assassinado, trespassado pelo aço, esse inseto é a encarnação de sua espécie. [SERRES, 2005, p. 101]

O corpo, apesar de ser aquilo que nos identifica, no sentido que propomos acima, não é

o que nos insere, definitivamente, em algum de nossos pertencimentos. O corpo é o

lugar da construção dos pertencimentos – que, em última instância produzirão a

identidade singular – a partir de seus encontros. Em outro texto, Serres nos diz:

Escandalosas injustiças e insustentáveis misérias nascem, como é de seu conhecimento, de uma falta de lógica, freqüentemente cometida, que consiste em confundir sua identidade com uma ou outra entre as suas pertinências.(...) Sua carteira de identidade, bem nomeada, comporta somente duas ou três de suas pertinências, dentre as que ficam fixas durante toda a sua vida, pois você continua macho ou fêmea e filho de sua mãe: na verdade, sua autêntica identidade se detalha , sem dúvida, se perde em uma descrição da infinidade virtual de tais categorias, indefinidamente cambiantes com o tempo real de sua existência: ontem, você ingressou em um clube de ciclismo, por causa de seus talentos, amanhã, por opinião, você adere a um partido

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político, e esta manhã, vencedor em uma determinada prova, você foi aceito, por concurso, em um determinado grupo de peritos. [LEVY, 2000, p. 13/14]

Quanto mais afastado de si, mais nos tornamos nós mesmos, como dissemos acima.

Este belo paradoxo nos diz que, cada vez mais, o que construímos é um “corpo

próprio”, não no sentido que comumente se dá a este termo. Mas, ter um corpo próprio

significa “costurar” nossas sensações para construir nosso véu próprio nas relações com

as coisas e com os outros. “Nós nos vestimos todos de peles fabulosas que parecem

esfinges enigmáticas. A pele varia, discreta, contínua, mal costurada, eriçada. Varia,

atapetada, historiada, tatuada, lendária. A construção do corpo próprio equivale á ficção

do licorne.” [SERRES, 2001, p. 57]

Mas, a constituição do corpo não se esgota na pele. Existem especializações,

dobras, erupções que fazem de nossa pele algo que já é complexo por si mesmo. Nesta

complexidade, encontramos as especializações que compõem nosso corpo. Os outros

sentidos; olfato, paladar, audição e visão nada mais são do que estas especializações do

corpo, do próprio contato com o mundo, com nossas afecções a partir do tato. E, num

sentido mais amplo, a própria consciência se constitui como diferenciação do tato, a

constituição de uma dobra. Primeiro, nos remeteremos à constituição dos sentidos, para

depois nos atermos à consciência.

2.1 As diferenciações da superfície: os outros sentidos

Iniciaremos esta parte de nossas reflexões, nos remetendo à própria forma como

Serres escreveu seu livro Os Cinco Sentidos. Tal livro inicia suas reflexões a partir do

tato, do corpo sentido, da pele, em contraposição aos outros sentidos que serão

trabalhados posteriormente. Tal escolha não é aleatória, já que Serres nos diz que

Os órgãos dos sentidos formam nós, lugares de singularidades em alto relevo neste múltiplo desenho plano, especializações densas, montanha ou vale ou poços na planície. Irrigam toda a pele de desejo, de escuta, de vista ou de odor, ela escoa como água, confluência variável das qualidades sensíveis. [SERRES, 2001, p. 47]

Falar sobre os sentidos em geral, é falar das especializações que a pele torna possível.

Por outro lado, pensar os sentidos não significa falar sobre eles. O caminho encontrado

por Serres para escrever seu livro foi buscar as próprias sensações, citar os sentidos

como atuam e não como funcionam. Em outras palavras, Serres abre mão de uma

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discussão teórica sobre os sentidos em proveito de um livro que efetivamente nos

remete ao que é sentido. Não falar da relação entre o olho e o visto, mas, povoar a pele

com olhos de pavão. Não desvendar os caminhos da audição, mas sentir o prazer da

música que preenche nossas almas. Não buscar a compreensão do paladar a partir da

explicação de seu funcionamento, mas oferecer o vinho e o pão, o prazer e a

saciedade14.

A constituição do corpo se apresenta menos como uma linguagem a ser

decifrada, e mais como uma relação a ser construída, um entre que se estabelece nas

relações. Por outro lado, a relação que estabelecemos entre os sentidos não pode ser

reduzida, como dissemos anteriormente, à idéia de que há, previamente estabelecido,

um órgão e a sensação que preencherá este órgão “vazio”. Para pensar como se constitui

esta relação, e como estabelecemos os pontos de convergência que denominamos

sentidos, passamos agora para a narrativa de Serres a respeito dos outros sentidos.

Em relação ao paladar, Serres constrói uma belíssima ligação entre o Banquete

de Platão e a Santa Ceia, de Jesus. Nesta relação, Serres contrapõe a boca que fala e não

sente, da boca que, ao constituir a Santa Ceia, constrói a relação, a comunhão entre os

membros desta. A idéia cristã de comunhão15 se estabelece no próprio compartilhar a

ceia, e a repetição deste ato restabelece, a cada reprodução, o próprio cristianismo que,

segundo Serres, por ser uma religião do corpo, é frágil, necessita ser relembrada: “Fazei

isto em memória de mim”. Para entender o próprio sujeito não é necessário que se fale

dele, mas, que se atualize a existência na divisão do pão e no compartilhamento do

vinho.

14 Na entrevista que cede à Bruno Latour, Serres nos diz porque escreveu Os Cinco Sentidos: “Ri-me muito, na minha juventude, com a leitura da Fenomenologia da Percepção. Merleau-Ponty começa essa obra com as seguintes palavras: “Iniciando o estudo da percepção, encontramos na linguagem a noção de sensação...” Não acha este exórdio exemplar? Tal como o conjunto, tão austero e escasso, dos exemplos em que se inspiram as descrições que se seguem? O autor vê, pela janela, uma árvore, sempre em flor, e apóia-se com as mãos no parapeito do seu gabinete; vez em quando, aparece uma mancha vermelha: são citações. De fato, decifre nesse livro uma boa etnologia dos habitantes das grandes cidades, hipertecnicizados, portanto, intelectualizados, agarrados à sua cadeira de escritório e tragicamente despidos de qualquer experiência sensível. Muita fenomenologia, nada de sensação: tudo está na língua.” [SERRES, 1997, p. 180] 15 A própria origem da palavras comunhão, que é koiné nos remete à idéia cristã da igualdade, pois, como Jesus “não faz acepção de pessoas”, sua busca do comum passa também pelo compartilhamento do pão e do vinho, que se apresenta como aquilo que liga as pessoas. A ligação não é feita por um contrato de palavras vazias, mas com a experimentação, com a lembrança do paladar do pão e do vinho. A ligação do corpo é, portanto, ao mesmo tempo mais frágil, porque precisa sempre ser repetida, e mais forte, porque não depende das palavras, mas dos sentidos.

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O grande cálice, quase-objeto, traça as relações entre os apóstolos, como o anel que corre no cordão na brincadeira de passar de mão em mão, ela transmite, tece, objetiva aquilo que une o grupo ou os doze. Em André, em Tiago, em João, o cálice descansa e torna a partir: a conexão coletiva pára e continua. Em cada um o grupo morre e revive. Cada apóstolo toma e dá. Toma o vinho, bebe ou degusta. E dá. Dá seu princípio de individualização que o vinho, contra a sua vontade, tira-lhe. Deposita na taça e no vinho essa identidade que o vinho retira de quem o degusta. [SERRES, 2001, p. 178]

A comunhão é construída neste compartilhamento do quase-objeto, que é o vinho. A

construção tanto do sujeito quanto do grupo ocorre neste compartilhamento que não é o

mesmo que beber o vinho. A construção da relação é, ao mesmo tempo, de um mundo,

de uma cultura e de um sujeito. O pertencimento é construído – e rememorado

constantemente na repetição da comunhão até nossos dias.

Para além da ceia, o próprio vinho – mistura de vários tons diferenciados, liga

que se dá na fermentação – não pode ser pensado como puro objeto de ligação. O quase-

objeto não se constitui como uma estrutura pré-definida. O vinho, como confluência dos

sentidos não é puro objeto, nem mesmo um objeto “puro”:

O que corre junto parece confuso à primeira língua [a língua que fala], quer fale francês ou grego, mas à segunda [a língua que bebe], que recebe a unção e segue o mapa da mistura, parece divino como o vinho de Yquem. É preciso que a primeira jamais tenha degustado para desprezar a tal ponto os fluxos reunidos, ondas compostas, corredores cheios de nós, que desembocam em um mesmo volume, os entroncamentos, as interferências fluidas. [Idem, p. 162/163]

Junto ao sentido do paladar, Serres nos convida a pensar o olfato: “O olfato

parece o sentido do singular” [Idem, p. 171]. Para entender tal relação às coisas,

devemos pensar como Serres: que o olfato está ligado à memória e ao tempo de maneira

inextrincável. Por sua relação com os ventos e o ar, os odores favorecem esta relação

com o tempo. A própria vida, entendida como este “ato de soprar” nos faz pensar na

relação entre os odores, a vida e a memória.

A relação entre a memória e o sentido do olfato é bastante interessante, pois, a

memória voluntária – aquela a qual nos esforçamos para lembrar – é bastante diferente

de uma memória “involuntária”, que nos toma de surpresa, que nos remete a momentos

passados e não apenas a lembranças. É como se o nosso próprio corpo estivesse em

outro lugar, não é apenas uma lembrança. Vemos esta relação estabelecida entre a

memória e o paladar, em Proust, pois, é o gosto da madeleine que faz o personagem

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“sentir” o passado. Porém, podemos pensar que o ar etéreo, sutil, vivifica em nós, muito

mais fortemente, esta sensação de passado. Os perfumes, os odores, a “atmosfera” de

determinados lugares, de determinados momentos, nos dão a viva impressão – ao nosso

corpo – de estar em outro tempo.

É desta memória que Serres fala, é da constituição no corpo da memória que

estamos falando, como ele nos diz em Variações sobre o corpo:

O que existe de mais precioso do que os mapas desses lugares visitados que permaneceram no fundo da memória corporal? Essa preciosidade foi concebida pelo poeta grego Simonide: quando interrogado sobre a posição dos convidados do banquete após o tremor de terra que abalara a casa de seu anfitrião, pôde responder e reconhecer a identidade das pessoas que haviam sido esmagadas pelo desabamento do teto, porque, ao deitar, seu corpo foi capaz de rever imediatamente quem estava estendido sobre o leito à sua direita e à sua esquerda, em frente e ao lado, como se seus membros conservassem a memória da superfície da mesa. [SERRES, 2002, p. 76]

Desta maneira, o que recordamos está menos ligado ao pensamento enquanto tal do que

às nossas relações com as coisas.

Ao mesmo tempo que trazemos esta memória do corpo, podemos pensar que não

apenas nossas posições nos fazem lembrar das coisas. Há um conjunto de coisas que nos

fazem lembrar, conjunto este vivamente ligado ao corpo, apesar de, às vezes, nos

parecer “incorporais”. Há uma imaterialidade etérea na lembrança. Da mesma maneira,

os odores se compõem de ares e atmosferas. O corpo não se resume à materialidade de

suas formas, mas, também aos odores do ar, aos sopros da vida:

Partindo do ar, o circuito dos odores volta ao ar: sobe por emanação, desce ao amor, à morte, ao saber e torna a subir. Partindo do vento, da alma, o circuito retorna para a alma, no sopro do vento. Alma: zero dos sentidos e portadora de todos eles. Amo tua alma leve, sutil, vaporosa, turbulenta, caótica, amo que ela penetre tua boca, tuas orelhas, que reine em tua pele. Digam a diferença entre a alma e o vento. [SERRES, 2001, p. 174]

O sopro de vida, metáfora que habita a religião e a filosofia – “Alma. A alma

traduz o latim anima, que, por seu turno, traduz o grego anemos, que quer dizer vento.

A alma errante vem de onde vem o vento.” [Idem, p. 174] – não apresenta a alma como

nossa parte “racional”, advinda de um outro lugar, mas, ao contrário, traz a alma como

anima. Nesta concepção de alma, cabe perguntar se os odores, as misturas que

compõem o ar que respiramos, não seriam sopros de alma que nos constituem, tanto

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como corpo, quanto como lembranças. O ato de respirar nós dá, ao mesmo tempo, o ar

que nos move e o cheiro que nos constitui.

Porém, quando a filosofia retorna sobre os sentidos, não é nem ao tato, nem ao

olfato e muito menos ao paladar que ela se refere, mas, à audição e à visão. Estes dois

últimos sentidos se sobrepõem aos outros quando falamos, por exemplo, sobre aquilo

que nos torna homens. Em outras palavras, a visão e a audição seriam os sentidos mais

apurados em nós, humanos, o que facilitaria nossa capacidade de pensar. Não é por

acaso que a própria linguagem, como propriedade superior, se apresenta

prioritariamente como nossa capacidade de distinguir as palavras através da audição e,

posteriormente, nossa capacidade de ler a palavra escrita, identificando os signos

lingüísticos16. Além disso, valorizamos muito mais o que denominamos de memória

visual e memória auditiva do que esta memória apresentada anteriormente: a memória

dos ventos e da alma, esta que nos toma, que nos transporta a outros lugares e a outros

tempos.

O privilégio dado pela filosofia – e pela própria ciência – aos estudos sobre o

corpo nos quais a visão e a audição são nossos sentidos “privilegiados”, são mais

comuns do que aqueles que pensam os outros sentidos “inferiores”, como o tato.

Os filósofos do conhecimento encontram mais facilmente apoio ou referência na óptica ou na audição sem dúvida, em razão destas performances: intuição, harmonia. (...) A forma volta, a linha harmônica se reproduz, já temos aí um conhecimento, pelo menos um conhecimento freqüente: estabilidades fortes retornam diante do olhar, soam na orelha como refrão (...) [SERRES, 2001, p. 171/172

É nesta força da forma, que podemos compreender a distinção feira anteriormente entre

as duas possibilidades de memória, pois, esta memória da visão e da audição também

podem ser pensadas como formas organizadas, evocadas voluntariamente por nós.

Mas, não se trata aqui de construir um tratado sobre a memória, muito menos de

estabelecer reducionismos, mas, de buscar potencializações, novas formas de

compreender os sentidos que não esgotem suas possibilidades. Mesmo a visão e a

audição são se apresentam de maneira tão clara como podemos pensar numa perspectiva

16 Sobre a relação do corpo e da linguagem, falaremos mais detalhadamente no próximo capítulo.

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mais geral, podemos perceber estes sentidos como sendo também variações da pele,

portanto, como especializações de formas possíveis de afecções.

Sobre a audição, podemos nos remeter ao texto de Michel Serres sobre os ruídos.

Ouvir não é um ato simples de compreensão da linguagem, ao contrário, para que seja

possível a audição é necessário um esforço constante de apagamento dos ruídos:

A primeira fonte de ruído esta no organismo, cuja orelha proprioceptiva ouve, às vezes em vão, o murmúrio subliminar: milhares de células de entregam a tal ação bioquímica que devíamos desmaiar sobre a pressão de seu rumor. (...) A segunda fonte de ruído está dispersa pelo mundo: trovões, vento, ressaca oceânica, aves do campo, avalanches, estrondos aterrorizantes que precedem os tremores de terra, sinais galácticos. (...) A última fonte de ruído habita o coletivo, ultrapassa, de longe, as outras duas, a ponto de anulá-las frequentemente: silêncio no corpo, silêncio no mundo. (...) a sociedade produz um ruído colossal que está de acordo com ela, o rato das cidades se distingue do rato do campo por estar imunizado contra esse ruído. [Idem, p. 104/105]

Em outra passagem, quando concede as entrevistas para Bruno Latour, Serres também

se refere ao ruído: “Uma mensagem passa lutando contra o ruído de fundo; também

Hermes atravessa o ruído em direção ao sentido.” [SERRES, 1997, p. 94]

Desta forma, nos deparamos com uma constituição do corpo que, mais uma vez,

não está dado, precisa ser construído. Tal construção é relatada por Serres de duas

maneiras: na primeira, ele evoca Ulisses, na segunda, ele evoca Orfeu. Para que Ulisses

atravesse o mar, para que chegue à Ítaca, é necessário que atravesse o ruído das sereias,

seus cantos encantadores: “Sob a linguagem, a placa musical reveste de universalidade

o caos que a precede. A linguagem precisa de música, sua condição; a música não

precisa absolutamente de linguagem. A música precisa do ruído, sua condição; o ruído

não precisa absolutamente de música.” [SERRES, 2001, p. 121] Mas, como a música

precede a linguagem, a própria audição precede a fala. Antes de qualquer chamado,

escutamos a música. Mas, o sentido que emerge da música não é o mesmo que nos

entope de palavras:

O anfiteatro não significa um espaço onde se fala, mas um lugar onde muitos vêem. Uma palavra sagrada faz calar a assembléia; nem sempre uma palavra, um gesto silencioso pode bastar para torná-la tácita, uma mímica, uma espécie de rito, e o silêncio desce no ouvido coletivo enquanto o feixe de olhares se fixa. [Idem, p. 85]

Ulisses precisa se tornar surdo para continuar sua trajetória. Neste sentido, a escolha de

Ulisses não é pela surdez propriamente dita, mas, pela escuta longínqua de sua terra. Em

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contraposição às falas que paralisam, os ouvidos devem estar atentos ao que nos faz

caminhar, ao que nos faz seguir adiante. O sentido não emerge das falas incessantes das

sereias, mas, da luta contra o falatório. O que representa este falatório? As glórias

alcançadas. A paralisia encontra-se intimamente ligada à pretensão, ao envaidecimento.

Vangloriar-se é estar preso ao passado, é não mais caminhar, é sucumbir à própria

glória. Ulisses ouve a tentação da permanência, porém, por estar “atado a fortes

liames”17 segue em frente, vai em busca de seu caminho, de outras conquistas.

Por outro lado, encontramos Orfeu e Eurídice. A relação entre a escalada de

Eurídice do reino dos mortos, a frágil estabilidade que constitui o corpo de Eurídice é,

em certa medida, nossa própria constituição. Antes de sermos um corpo “falado”, somos

um corpo que necessita ser “sentido”. Eurídice não necessita apenas da música para se

libertar dos infernos, ela necessitaria da luz do Sol, do contato com as coisas, do próprio

mundo, antes disso, ela é apenas espectro. A música a faz sair, mas não sustenta sua

existência sem o contato com o mundo. Em contraposição a isto podemos pensar que,

na emergência do sentido, encontramos também a proliferação das falas. Transformar as

coisas em palavras é esvaziá-las, em certa medida, de sua própria constituição. Orfeu,

ao retirar Eurídice dos infernos, busca reconstituir, com sua música, não as palavras,

mas as próprias coisas.

A morte nos transforma em palavras, as palavras nos transformam em mortos. Frase-epitáfio que enterra as coisas embaixo dela. Os que têm a ver com as palavras têm a ver com os mortos e dão-se ares de carregar o luto do mundo. Nossos nomes buscam desde nosso batizado uma vaga imortalidade, traço suave a partir de nosso desaparecimento. A morte nos reduz a nosso nome único, frágil, leve, esvoaçante, sem defesa, que uma fina camada de areia de circunstância recobre. [Idem, p. 128/129]

A audição, como foi exposto acima, antes de ser o sentido que nos propicia ouvir

as palavras, é este que, ao constituir nossa relação com as coisas e os outros, nos

proporciona uma idéia de corpo que se constitui a partir do silenciar dos ruídos que

perturbam o mesmo. O corpo, portanto, não se constitui como uma linguagem, mas se

17 Há uma belíssima passagem no livro O Efeito Sofístico de Bárbara Cassin, no qual a autora compara o poema de Parmênides e a volta de Ulisses para casa. Não entraremos em detalhes sobre tal livro aqui, mas, vale lembrar esta relação entre a poesia épica e o nascimento da filosofia do “Ser”. “parece-me poder ler aí até que ponto o Ser é o herói de Parmênides assim como Ulisses é o de Homero. Parmênides toma de empréstimo a seqüência do narrativo por excelência que é a Odisséia, com seus episódios e seu clímax, para instituir na língua, ou mesmo constituir como língua, o personagem filosófico definitivamente soberano que é o Ser”. [CASSIN, 2005, p. 24]

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apresenta como a organização – e posterior silenciamento – dos ruídos que o

atravessam. Ter um corpo é aprender a não ouvir, em certa medida, os clamores que o

desintegrariam:

Sem essa obra de fundo que contém o ruído de fundo, nada se mantém unido, nem as coisas no mundo, nem as pessoas no coletivo, nem os sentidos, nem as artes, nem as partes do corpo. A música vem antes da filosofia, ninguém pode se dedicar à segunda sem passar pela primeira. [Idem, p. 124]

A música não é uma referência nova em filosofia, em seus primórdios, a

filosofia encontra-se atrelada à música. Pitágoras, um dos primeiros filósofos já pensava

a constituição do mundo a partir da música. Nossa audição encontra-se num lugar

privilegiado devido a sua relação com a matemática, com os números, com a proporção

própria da musicalidade. Esta musicalidade seria a própria forma de constituição do

mundo. As proporções estabelecem a harmonia necessária para compreendermos o

cosmos. O corpo, parte integrante desta harmonia, também se constitui pela beleza das

proporções, e aqui, encontramos a relação intrínseca que há entre a audição e a visão: a

possibilidade de constituir harmoniosamente. A harmonia apresentada pela música

extrapola os limites do som e se estabelece nas próprias coisas. Os gregos, amantes da

harmonia, viam nas formas geométricas a beleza das próprias coisas. A filosofia, em seu

nascimento, busca das coisas, suas relações com a eternidade, que se apresenta nas

abstrações da geometria. Serres nos questiona se já vimos, alguma vez, uma esfera.

Resposta impossível de ser dada pela experiência, pois, como veremos mais adiante,

não podemos “ver esferas”, o que vemos são bolas, novelos de lã, pérolas, a Lua, o Sol,

maçãs, e assim por diante.

A partir das abstrações que são possíveis pelo olhar, o corpo aparece como uma

referência mínima, como suporte daqueles sentidos que se sobreporiam pela capacidade

de distanciamento do próprio corpo – o que poderíamos denominar também de

abstração. Neste sentido, a visão possui um lugar privilegiado para a filosofia:

No avião, o viajante surpreende-se por vezes com a dimensão da visão que se tem a partir das janelas, ao mesmo tempo em que, no interior do habitáculo veloz, confinado aos limites estreitos de sua poltrona, seu corpo dorme. Esta é a visão do sobrevôo: a imensidão da paisagem que se apresenta abaixo é tamanha que se transforma em espetáculo, como um cinema no qual os espectadores permanecem sentados e passivos em uma sala escura, reduzidos ao olhar, única coisa ativa no interior de uma carne tão ausente quanto uma caixa-

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preta. O olhar vivo de um organismo quase morto fornece sensações quase incorpóreas, já abstratas. [SERRES, 2004, p. 14]

A filosofia em seus primórdios, ao iniciar seus questionamentos, parte do

princípio de que, através da visão, poderemos alcançar o que está para além da visão – o

conhecimento real das coisas. Em Platão, por exemplo, podemos nos remeter à

apresentação das habilidades da visão do escravo no diálogo Menon. O argumento de

Platão, ao afirmar a reminiscência, recai sobre a possibilidade do escravo em

reconhecer, visualmente, no quadrado desenhado por Platão no chão, qualquer

quadrado, o quadrado abstrato, a própria Idéia de quadrado, alcançada, portanto, a

partir de um exercício de purificação, de treinamento do olhar.

Mesmo que o conhecimento não se esgote, ou mesmo não se apresente pelo

olhar, é na relação entre o olhar e o dizer de Sócrates18 que o escravo é capaz de

conhecer. Num outro momento, no diálogo do Fedro, Platão vai nos falar da

necessidade de se conhecer – no mundo sensível – os corpos belos para que,

posteriormente, possamos alcançar a própria Idéia de beleza. Como dissemos acima, é a

visão que nos possibilita a abstração e, no seguimento deste raciocínio, não há

conhecimento possível que não nos remeta à visão, ou seja, a própria capacidade de

abstrair se submete à capacidade de ver.

Em relação ao olhar, por exemplo, podemos dizer que este caminha numa

direção oposta à do tato: enquanto a pele se compõe das impressões e sensações que a

ela chegam, enquanto a pele se apresenta como ponto de contato e relação, como lugar

da mistura, enquanto ela se constitui a partir desta mistura, é impensável um

conhecimento puro da pele. Em outras palavras, a pele é, desde sua constituição, o lugar

da mistura.

Por outro lado, o olhar não se esgota em si mesmo. Como dissemos acima,

acerca da fenomenologia, é que este pensamento se sustenta no próprio ato de ver. Ao

escrever sobre a percepção, Merleau-Ponty inicia suas considerações sobre os sentidos

versando primeiramente sobre a visão:

18 O que, por si só, já mereceria longas considerações, na medida em que, o olhar não se apresenta como suficiente para o alcance da abstração. É necessária, ainda, a palavra. Mas, pelo menos para nossos objetivos atuais, não consideraremos tal problema.

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Trata-se da própria definição do fenômeno perceptivo, daquilo sem o que um fenômeno não pode ser chamado de percepção. O “algo” perceptivo está sempre no meio de outra coisa, ele sempre faz parte de um “campo”. Uma superfície verdadeiramente homogênea, não oferecendo nada para se perceber, não pode ser dada nenhuma percepção (...) Um campo visual não é feito de visões locais. Mas o objeto visto é feito de fragmentos de matéria e os pontos do espaço são exteriores uns aos outros. [MERLEAU-PONTY, 1999, p. 24/25]

A relação entre espacialidade e percepção fica clara neste trecho do autor. Mesmo que,

posteriormente se faça referência aos outros sentidos, o que sustenta sua argumentação

fenomenológica é a visão. É por isso que Serres nos diz que a fenomenologia apresenta

uma proposta de pensar os sentidos a partir da visão daqueles que não percebem, isto é,

daqueles que só vêem, não sentem. Todas as possibilidades da sensação estão, de

alguma maneira, sujeitas à visão (e, quando muito, à audição). A argumentação traz

como exemplos questões ligadas ao ver, ao perceber através dos olhos.

Porém as afecções, a possibilidade de sermos afetados, se estabelecem

anteriormente na própria pele. Antes da visão, nossa relação com o mundo passa pelo

corpo. Desta forma, não estamos aqui falando de uma relação estável, permanente,

homogênea, mas, ao contrário de relações mutáveis e heterogêneas, de conexão de

coisas absolutamente díspares e heterogêneas. Tais características, ao invés de colocar o

tato num lugar inferior à visão, para Serres é o que faz da pele algo tão especial:

Meio, abstrato, denso, homogêneo, quase estável, concentra-se; mistura em flutuação. Meio faz parte da geometria sólida, como se dizia antigamente; mistura favorece a fusão e vira fluido. Meio separa, mistura, abranda: o meio faz as classes, e a mistura, os mestiços. (...) A teoria do conhecimento está subordinada a essas coisas, quero dizer, a esses exemplos. Teoria ou intuição ficam na ordem da visão, chegou-se a dizer, e com rigor, que elas ficavam no sólido. Há muito tempo caminho na direção do fluido, encontrei as turbulências, antes, e as misturas, recentemente. [SERRES, 2001, p. 77/78]

Num outro momento, é a relação entre o tato e a visão que é posta em evidência

por Serres. No problema de Molyneux – no qual é perguntado ao cego de nascença se

ele reconhece, a partir da visão, os objetos geométricos que percebia através do tato –

percebemos a dificuldade mais claramente. Para Serres esta apresentação:

(...) levanta uma questão mais da geometria das perspicácias que da teoria do conhecimento. Por que não experimentaram com um rouxinol ou um ramo de lilás, com uma esmeralda ou uma saia de veludo, que existem, em vez de volumes abstratos que não existem? Quem já viu alguma vez um cubo ou uma esfera? Nunca os concebemos a não ser na língua. Que dêem ao cego uma bola e um tijolo e ele saberá apreciar pelo tato as deformações contínuas, as

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rupturas e as singularidades, perguntará logo se vocês conhecem pela visão a diferença entre uma bola e uma esfera, entre um cubo e um paralelepípedo. Ele rirá delicadamente do fracasso de vocês. [SERRES. 2001, p.80]

Para Serres, tal paradoxo não se apresenta como um problema de perspicácia

simplesmente porque são diferentes as habilidades necessárias para se conhecer através

do tato e através da visão. O contato com as coisas estabelece um conhecimento, uma

movimentação, uma relação que se apresenta de maneira diferente quando vemos e

quando não vemos. Isto não significa dizer que há uma hierarquia de conhecimento,

mas, uma outra relação com o mundo.

Serres nos expõe uma questão muito importante sobre a relação entre estas duas

formas de estabelecer uma relação com o mundo e com as coisas, que são a visão e o

tato. A partir das considerações postas acima, devemos pensar que mesmo que a visão

seja o sentido, por excelência, da abstração, isto não quer dizer que o pensamento de

constitui unicamente a partir da visão – um cego de nascença vive, relaciona-se, pensa,

age. O corpo cego se constitui, se estabiliza numa relação com o mundo que, a cada

proposta apresentada por este mundo, apresenta também suas estabilizações.

Num dos livros mais instigantes sobre a cegueira, escrito por Bruno Sena

Martins e intitulado E Se Eu Fosse Cego? Narrativas silenciadas da deficiência19,

encontramos uma forma de pensar a cegueira de uma maneira inteiramente nova e

bastante inteligente. A grande “novidade” do texto passa pela possibilidade do autor de

ouvir as pessoas cegas. Ao invés de escrever sobre aqueles que perderam a visão ou

nasceram sem ela, é mais importante ouvi-las, saber de que lugar parte suas narrativas.

Desta forma, o autor nos presenteia com um livro que, ao invés de partir do pressuposto

da tragédia pessoal, parte da construção histórica da própria idéia de deficiência,

construída em nossa cultura ocidental, repleta de filosofia e referências à visão enquanto

pré-condição para o pensamento.

O autor apresenta longas considerações acerca da exclusão dos sujeitos ditos

“deficientes” e como o corpo é apresentado como princípio de exclusão na medida em

que qualquer “deficiência corporal” é pensada como necessariamente diminuidora da

capacidade dos sujeitos: “os corpos das pessoas com deficiência são tomados como

19 Referência.

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explicação suficiente para a sua situação de marginalidade social” [p. 19]. Portanto, o

autor nos alerta para o fato de que, a construção da cegueira como deficiência, nos traz

um problema muito maior em relação ao corpo. A própria classificação da cegueira

como “deficiência sensorial” nos impõe pensar que é no corpo que encontramos os

impedimentos do conhecimento, apesar do conhecimento se apresentar como a

capacidade, por excelência, de superação do corpo.

Como pudemos perceber; se, por um lado, a visão nos remete à purificação das

formas, por outro, a visão também nos impulsiona para uma relação com as coisas

esvaziada, distanciada. A visão, ao estender o corpo para além de seu território

perceptivo, produz, ao mesmo tempo, uma espécie de abandono do corpo. O que ocorre

em certa medida, na modernidade, é que a frase “os sentidos podem enganar” não

funciona da mesma maneira para todos. A visão, mesmo que possa ser enganada, se

constitui como a arena privilegiada do debate moderno. Todas as idéias, mesmo que

“não tenham estado antes nos meus sentidos” se apresenta de forma “estruturada”, como

imagem. As imagens, partindo ou não da experiência, são sempre organizadas, imagens

são idéias que se constituem numa relação do homem com as coisas, relação esta

sustentada na capacidade humana de organizar aquilo que é visto.

Nosso objetivo, nestas poucas linhas acerca da visão, não é solapar o

conhecimento que advém deste sentido, mas, ao menos, pôr em evidência a relação

intrínseca que existe entre a construção do pensamento moderno e o sentido da visão. O

próprio termo alemão Aüfklarung, nos remete à luz, conceito estreitamente ligado à

visão. A apresentação do paradoxo de Molineux segue o mesmo caminho apresentado

pela modernidade: é a visão que nos dá o sentido de sobrevôo, como dissemos acima.

Porém, o sobrevôo, apenas, não constitui nem o corpo, nem mesmo o

conhecimento. Para Serres, a capacidade de abstração não se apresenta apenas como

uma extensão da visão. O excesso da visão, para Serres, pode gerar a vigilância, ao

invés da observação. O olhar vigilante é aquele que julga, que determina o que se deve e

o que não se deve fazer. A vigilância, ligada às ciências humanas, busca o controle das

relações entre os homens.

Observar as coisas ou supervisionar as relações, enorme diferença: dois mundos talvez se oponham aí, dois tempos, o do mito o o de

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nossa história. (...) A sociedade onde a vigilância domina envelhece rápido, soberania abusivamente arcaica, o passado aí permanece, monstruoso, ela acusa a idade do mito. (...) Panoptes vê tudo e sempre e em toda a parte: em que tarefa os deuses o empregam: na vigilância ou na observação? Para que serve a teoria? Para vigiar as relações ou para examinar os objetos? [SERRES, 2001. p. 34]

Neste sentido, podemos perceber algumas ressonâncias no pensamento de Foucault, a

quem Serres diz ter acompanhado durante a escrita do livro As Palavras e as Coisas20.

2.1.1 – Os sentidos e a abstração: mais um efeito de superfície

Sobre este assunto, podemos buscar respostas na última parte do livro O

Incandescente, de Michel Serres. É ali que o autor nos apresenta sua idéia de

universalidade e de abstração. Sabemos que, em outras obras, de maneira mais

fragmentada, podemos localizar suas idéias sobre ambas as coisas, mas, para nossa

compreensão do corpo, utilizaremos este texto e algumas partes das obras Os Cinco

Sentidos e Variações sobre o Corpo, como nossos principais eixos de trabalho.

No livro supracitado, Serres nos dá uma definição de universal que ajuda na

compreensão desta maneira de pensar a universalidade na imanência. Mais do que isso,

nos ajuda a pensar a abstração não como uma métrica, uma forma definida e afastada do

mundo das coisas, mas, uma forma de relacionar as coisas de maneira topográfica, sem

abrir mão de sua forma acidental. Vamos à definição:

Vamos tentar esclarecer o sentido da palavra universalidade, tantas vezes repetida, de emprego difícil e que significa exatamente: “seguir rumo a um ponto comum (versus) para que seja formado um conjunto único (unus)”. Um campo de forças, um cardume de peixes, um bando de patos ou uma divisão de infantaria que seguem na mesma direção, cada um de seus elementos em posição paralela ao outro. Da mesma forma, num estado sistêmico tudo se deduz de um princípio. Posso pensar de maneira coerente ou obsessiva, mas meus amores continuam fiéis. [SERRES, 2005, p. 229]

Nos deteremos um pouco mais nesta palavra: vers, porque ela implica em muitas

considerações interessantes sobre o corpo, apresentadas no livro Variações sobre o

corpo, sob o curioso título Vertigem. Nesta parte do texto, Serres faz uma reflexão sobre

a relação entre as vértebras e o sentido desta palavra: “em direção a”:

20 Afirmação apresentada em uma de suas entrevistas: “Aí discutíamos, justamente, todas as semanas sobre As Palavras e as Coisas, na altura em que ele o redigia. Uma grande parte desse livro foi escrita depois de algumas discussões entre nós. (...) o aspecto estruturalista que imprimiu à sua obra resultou dessa colaboração estreita.” [SERRES, 1997, p. 55]

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O esqueleto seria semelhante ao rígido bastão guarnecido por duas volutas espiraladas, em forma de hélice, conhecido com o caduceu de Hermes? Ou como a forma do filamento do ADN ao qual todos devem sua aparência? (...) Que relação estranha nossa postura ereta e vertical mantém com as rotações dessas vértebras? [SERRES, 2004, p. 107]

Sabemos que tais considerações, se lidas rapidamente, podem parecer vazias de

sentido, devido à conexão, tão instantânea (característica de Serres), entre elementos tão

díspares e heterogêneos como o caduceu de Hermes e os filamentos de ADN21. Porém,

se conseguirmos compreender o estilo da escrita do autor, passamos por tal dificuldade

para entender que o próprio corpo se apresenta como direcionamento “retorcido”, na

medida em que, ao nos colocarmos numa postura vertical, nos direcionamos também

para a flexibilidade, para as posturas flexíveis da dança e do esporte.

Para definir o corpo, Serres apresenta esta forma, já dita anteriormente, de se

portar como um invariante que permanece como tal a partir de suas próprias variações.

Como, de fato, definir o corpo vivo? Ele é invariante, mas de forma relativa e temporária; as distâncias entre suas variações podem ser fracas e depois fortes, podem ser inicialmente circulares ou periódicas e, em seguida, caóticas. Os perigos reforçam sua estabilidade antes de destruí-la para sempre. Estável por suas variações, equilibrado por suas instabilidades, organizado por sua desorganização, ordenado, enfim, por suas próprias perturbações, o ser vivo invariante e versátil caminha em direção a algo: esta é a forma estável, diretiva, rotativa, rítmica, enfim, caótica de seu tempo percolador, que associa em si o tempo do coração e do da cabeça, do relógio e do barômetro, do periódico e do aperiódico (...) de bifurcações e de turbulências e, sem dúvida, de outras temporalidades ainda desconhecidas. [SERRES, 2004, P. 122/123]

Portanto, a universalidade não está fora das relações mundanas, ao contrário, se

constitui a partir do que podemos pensar como processos de individuação nos quais o

que está em jogo é menos as partes que compõem o todo, e mais a própria totalidade.

Porém, tal totalidade não é constituída desde sempre, ela se faz, se constrói, necessita o

tempo todo de estabilizações posteriores. Esta universalidade não se apresenta como

algo estanque, mas, como construções que, devido ao seu direcionamento, se

apresentam sempre como totalizações incompletas. Mais uma vez, encontramos a idéia

de “universalidade em rede”, nos textos de Bruno Latour, para tentarmos compreender o

que estamos dizendo: 21 Sobre a rapidez com que Serres passa de um assunto ao outro, falaremos melhor no capítulo sobre narrativa, quando trataremos da questão da linguagem e sua relação com o hermetismo.

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(...) os quase-objetos22 quase-sujeitos traçam redes. São reais, bem reais, e nós humanos não os criamos. Mas são coletivos, uma vez que nos ligam uns aos outros, que circulam por nossas mãos e nos definem por sua própria circulação. São discursivos, portanto, narrados, históricos, dotados de sentimento e povoados de actantes com formas autônomas. São instáveis e arriscados, existenciais e portadores de ser. [LATOUR, 1994, p. 88]

Nestas palavras, identificamos uma forma de pensar a universalidade que não se

apresenta de maneira dada, de forma a priori, a universalidade não se encontra antes das

relações, mas, ao contrário, é na convergência de muitos atores que encontramos a

universalidade. A universalidade deve ser produzida, deve organizar determinados

atores de forma a estabelecer um contrato. No sentido de Serres, um contrato que leve

em consideração também as coisas, um contrato natural que não se abstenha nem das

relações entre humanos, nem das relações entre as coisas.

Neste mesmo sentido, a abstração não se apresenta como algo a priori, mas,

como algo que se constitui como instrumento. Sobre a questão da abstração, podemos

refletir sobre um trecho de livro de Isabelle Stengers, A Invenção das Ciências

Modernas, no qual a autora nos apresenta a abstração menos como a capacidade de

resolver os problemas de forma matemática, e mais como a possibilidade de relacionar

atores heterogêneos na construção de um dispositivo. Para tanto, Stengers nos dá o

exemplo do plano inclinado de Galileu, que, ao ser construído, estabelece uma nova

relação com as coisas que até então não tinha sido feita. O plano inclinado torna-se um

“ponto de passagem obrigatório” para todos aqueles que querem falar sobre o

movimento uniforme. Neste sentido, o plano inclinado é o que permite a abstração, esta

não é efetuada sem o dispositivo experimental, portanto, faz parte dele:

Pode-se certamente dizer que se trata de um mundo abstrato, idealizado, geometrizado. Mas não se terá dito nada, pois se estará simplesmente repetindo a objeção cética de Sagredo: é apenas um mundo que responde a uma definição elaborada no abstrato. A questão é antes saber o que foi abstraído, o que singulariza essa ficção. O mundo fictício proposto por Galileu não é somente o mundo que Galileu sabe questionar, é um mundo que ninguém pode questionar de um modo outro que o dele. É um mundo cujas categorias são práticas visto que derivam do dispositivo experimental que ele inventou. [STENGERS, 2002, p. 106]

22 Sobre os quase-objetos, Latour nos diz: “Reais como a natureza, narrados como o discurso, coletivos como a sociedade, existenciais como o Ser, tais são os quase-objetos que os modernos fizeram proliferar, e é assim que nos convém segui-los, tornando-nos simplesmente aquilo que jamais deixamos de ser, ou seja, não-modernos.” (p. 89)

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Portanto, a abstração não pode abrir mão do dispositivo galileano, pois, sem tal

dispositivo, a própria possibilidade de pensar o plano inclinado não seria efetuada. Em

outras palavras, a relação que Galileu estabelece entre o plano inclinado e o movimento

uniformemente variado é de tal ordem que, ao mesmo tempo em que faz as coisas

convergirem (vers) para a demonstração (para o dispositivo), também produz a própria

abstração que responde ao problema do movimento que tal plano encarna,

possibilitando a abstração do movimento em todos os lugares e em qualquer tempo.

Em outro momento Stengers nos diz:

Quando falamos de “representação científica abstrata” referimo-nos com excessiva freqüência a uma noção geral da abstração, comum, por exemplo, à física e às matemáticas. Ora, a abstração traduz aqui não um procedimento geral, mas um acontecimento: o triunfo local, condicional e seletivo sobre o ceticismo. [STENGERS, 2002, p. 107]

Desta forma, a abstração cumpre sim um papel importante: ela “faz calar os

adversários” na medida em que constrói um caminho (no sentido de método) a partir do

qual todos aqueles que quiserem falar sobre o plano inclinado, deverão seguir. A “prova

empírica” não é apenas uma construção abstrata, mas, uma forma de “traduzir”, através

do dispositivo, aquilo que se propõe defender. Mas, o próprio dispositivo não se

apresenta como algo que se constitui numa “sofisticação” do pensamento. Como se

fosse possível pensar sem uma construção do corpo no próprio ato do pensamento. Para

Stengers:

A abstração não é o produto de uma “maneira abstrata de ver as coisas”. (...) Ela diz respeito à invenção de uma prática experimental que a distingue de uma ficção entre outras, ao mesmo tempo em que “cria” um fato que singulariza uma classe de fenômenos entre outros. [STENGERS, 2002, p. 107]

É claro que a preocupação da autora não é com o corpo, e sim com a construção

“social” da ciência23, mas, como pudemos perceber, em nenhum momento se

considerou a abstração como algo que se constitui “fora” do corpo, como se a abstração

pudesse ser pensada como uma característica “pura” do pensamento. Se existem

diferenças entre aquilo que percebemos e aquilo que pensamos, tais diferenças não são

de “natureza”, mas, de relação.

23 Não queremos aqui dizer que Stengers é defensora da idéia de que a ciência é uma construção social, suas reflexões não são tão simplistas, mas, que todo e qualquer construção é o arregimento de atores heterogêneos, constitui um coletivo sócio-técnico, sejam eles “sociais”, ou “naturais”.

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A partir do que foi dito acima, podemos então buscar, nos textos de Serres, suas

reflexões acerca da abstração. E, a partir daí, poderemos entender que, a abstração não

ocorre sem corpo:

A medida, a agrimensura, diretas ou imediatas, são operações de aplicação. No sentido, evidentemente, de uma métrica, uma metrética concernir uma ciência aplicada. Na grande maioria das vezes, no sentido de a medida ser o essencial da aplicação. Mas sobretudo no sentido do tato. (...) A medida imediata ou direta é possível ou impossível de acordo com a possibilidade ou impossibilidade desta aplicação. Desse modo, o inacessível é aquilo que não posso tocar, sobre o qual não posso transpor minha régua e sobre o qual a unidade não pode ser aplicada. É preciso, digamos, passar da prática à teoria, através de uma astúcia da razão, imaginar um substituto desses comprimentos que meu corpo não consegue alcançar, a pirâmide, o Sol, o navio no horizonte, a outra margem do rio. A matemática seria o circuito destas astúcias. [grifo nosso. SERRES, 1990, p. 38]

Neste texto, intitulado O que Tales viu aos pés da pirâmide, Serres nos apresenta uma

forma de relação entre corpo e abstração na qual a abstração só é possível na relação

com o corpo. Tal seria, portanto, a “astúcia da razão”24: relacionar o corpo com aquilo

que escapa ao alcance da medida corporal. Estabelecer escalas comparativas de medida.

Serres continua neste mesmo texto:

Pois o circuito consiste, enfim, na passagem do tato à visão, da medida por aplicação à medida por visada. Neste caso, teorizar é ver, como bem diz a língua grega. A visão é um tato sem contato. (...) O inacessível é, às vezes, acessível à vista. Será possível fazer-se uma agrimensura a olho, do Sol e da Lua, do navio e da pirâmide? Esta é tida a história de Tales, que descobre, nada mais, nada menos, do que as virtudes precisas do olhar (...). Impossibilitado de transportar uma régua, Tales transporta as linhas de visada, ou, melhor, deixa a luz projetá-las sem ele. Que eu saiba, mesmo para os objetos acessíveis, a vista por si só pode assegurar-me que a régua-regra é fielmente aplicada sobre a coisa. [SERRES, 1990, p. 39]

Esta relação entre o tato e o olhar é de uma outra natureza do que aquela

estabelecida na vigilância. A diferença aqui se apresenta na medida em que o olhar já

não vigia, mas, constrói relações, estipula diferenças de escala. Há, como podemos

perceber, uma potencialização dos sentidos e não um enfraquecimento destes. O olhar

se revela como potência do tato, e não como substituto deste. É o tato que pode alcançar 24 Gostaríamos aqui de frisar nosso conhecimento sobre o fato de que, ao longo da história da filosofia, a questão da razão ocupou um lugar de destaque. Principalmente para a modernidade. Mas, ao invés de considerarmos o “tribunal da razão”, de pensar a razão como um “investigador”, nos é mais produtivo pensar a razão desta maneira: como astuciosa. Tal escolha se deve não apenas ao pensamento de Serres, mas, mesmo às considerações de Isabelle Stengers apontam nesta mesma direção. Ao invés de julgar, buscamos pensar como as conexões entre atores heterogêneos são capazes de produzir novas alianças. Tais alianças, por sua vez, constituem novas relações que, ao se estabelecerem, tanto modificam quanto fortalecem seus componentes.

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o inatingível, não é o olhar que julga a importância das coisas. A especialização da pele,

deste corpo-textura produz novas relações com as coisas, mas, não abre mão das

relações. Ao contrário do que se possa pensar, o olhar produz a potência do tato.

Ao relacionarmos estas duas possibilidades de pensar a abstração – de Isabelle

Stengers e de Michel Serres – o que podemos perceber é que tanto Tales quanto Galileu

só foram capazes de construir seus dispositivos porque fizeram do olhar um aliado do

tato. Não é o abandono do corpo que nos capacita à abstração, mas, ao contrário, ao

acrescentarmos mais elementos ao próprio tato, é possível estabelecer relações que antes

seriam impossíveis apenas pelo tato. Neste sentido, a abstração não se contrapõe à

prática, nem mesmo à experiência, mas é impossível sem estas. O corpo que sente, que

é afetado, é o mesmo que constrói as abstrações matemáticas, não por exclusão, mas por

extensão, por potencialização.

2.2 – As diferenciações da superfície: a consciência

Dentre as especializações do corpo, encontramos também a consciência. A

consciência, como dobra, não se constitui como algo para além, que nos remeteria ao

pensamento cartesiano do Cogito. Ao contrário, a consciência se apresenta como uma

superfície que se “interioriza”.

Quem sou eu? A contingência de minha fé. Alguém que ela irá justificar, fazer viver e salvar. Mais uma vez, quem sou eu? O próprio contrário da certeza; um temor que hesita entre ser e não-ser; em resumo, uma consciência. [SERRES, 2008, p. 84]

Há o que podemos denominar de um “engrossamento” das afecções. A possibilidade de

“atraso” das reações, das ações que são solicitadas pelas afecções gera uma espessura,

um prolongamento, uma dobra. A desaceleração gerada pela não-ação propicia o

aparecimento desta dobra, que denominamos consciência.

Dentre os autores contemporâneos que se debruçam sobre esta questão,

encontramos, mais uma vez, Deleuze25. Em seu texto Segunda Série de Paradoxos: dos

25 Apesar de não caber, neste texto, pensar como a consciência se constitui para Nietzsche, gostaria apenas de lembrar que é este autor que efetivamente abre o caminho para entender a consciência como espessura do corpo. Tais considerações ficam mais claras a partir da leitura de seu livro A Genealogia da Moral.

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efeitos de superfície, Deleuze nos apresenta uma forma de pensar a relação entre as

afecções e as superfícies que são importantes para nossas considerações.

Neste texto, ao analisar o pensamento estóico, Deleuze nos fala da superfície

menos como superficialidade do que como possibilidade de passagem e de extensão da

consciência através do corpo. A superfície é o lugar das passagens, das mudanças, da

própria diferenciação. Ao invés de nos remeter a uma profundidade que poderia ser

pensada como única maneira de se alcançar a “essência” das coisas, em ressonância

com o pensamento de Michel Serres, Deleuze vai nos dizer que é na superfície que se

encontram as estabilizações e trocas, ou seja, a própria constituição fugidia, não apenas

da consciência, mas, do próprio indivíduo. Os acontecimentos ocorrem aí onde o

incorporal26 – como verbalização de todos os acontecimentos possíveis – se atualiza nas

formas do corpo:

Por exemplo, em Aristóteles, todas as categorias se dizem em função do Ser; e a diferença se passa no ser entre a substância como sentido primeiro e as outras categorias que lhe são relacionadas como acidente. Para os Estóicos, ao contrário, os estados de coisas, quantidades e qualidades, não são menos seres (ou corpos) que a substância; eles fazem parte da substância; e, sob este título,se opõem a um extra-ser que constitui o incorporal como entidade não existente. O termo mais alto não é pois o Ser, mas Alguma Coisa, aliquid, na medida em que subsume o ser e o não-ser, as existências e as insistências. [DELEUZE, 2000, p. 7/8]

Para Deleuze, portanto, as afecções não podem ser pensadas como meras atribuições

temporárias de acidentes porque as modificações ocorridas na superfície possibilitam

alterações que não podem ser considerados como meros atributos que se “fixam” nas

coisas, que, por sua vez, possuiriam uma essência, além ou aquém destes atributos.

As transformações operadas na superfície não são, por extensão, superficiais. Ao

contrário, algumas transformações, certas afecções que ocorrem na superfície geram

efeitos que se caracterizam pela diminuição do ritmo temporal. Em outras palavras, as

afecções podem gerar efeitos que estão além da superficialidade: o próprio corpo,

enquanto “efeito de superfície” possui invaginações, paragens, rupturas, inversões. No

26 Esta questão do incorporal em Deleuze é muito mais complexa do que a colocamos aqui, implica em considerar todo o pensamento do autor como uma inversão do platonismo – e da filosofia clássica como um todo – no qual o ser é pensado não a partir de uma Idéia pré-estabelecida, mas, como isto que ele chama aqui de aliquid, ou seja, aquilo que se produz – e se modifica – constantemente através dos contatos superficiais que são gerados pelos encontros dos corpos e que produzem novos corpos, transformações corporais mais do que puras aquisições de atributos contingentes. Não é uma relação na qual a causa gera um efeito mas, uma relação de contato que gera novas forma de existência.

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corpo não encontramos uma superfície no sentido pleno do termo, pois, as trocas

operadas no corpo ocorrem numa relação que apresenta, ora uma superfície que protege,

fechada às agressões; ora uma superfície porosa, aberta às relações exteriores.

Tal diminuição se apresenta como algo que, ao mesmo tempo, é uma extensão e

uma diferenciação do tato. Serres nos fala desta dobra na passagem seguinte:

Com o [dedo] médio eu toco um de meus lábios. Nesse contato reside a consciência. Começo a examiná-la. Ela se esconde geralmente em uma dobra, lábio pousado sobre lábio, palato colado à língua, dentes sobre dentes, pálpebras abaixadas, esfíncteres contraídos, mão fechada em punho, dedos pressionados uns contras os outros, face posterior de coxa cruzada sobre a face anterior da outra, ou pé pousado sobre o outro pé. (...) A pele sobre si mesma adquire consciência, também sobre a mucosa e a mucosa sobre si mesma. Sem dobra, sem contato de si sobre si mesmo, não haveria verdadeiramente sentido íntimo, nem corpo próprio, muito menos cenestesia, tampouco verdadeiramente esquema corporal; viveríamos sem consciência; apagados, prestes a desaparecer. [SERRES, 2001, p. 16]

A aparente simplicidade de tais palavras esconde a complexidade do que é dito aqui. Ao

afirmar a dobra como o lugar da consciência, Serres reforça a idéia de que não há

profundidade da consciência, mas, complicações, no sentido etimológico da palavra:

com-plicas, ou seja, com dobras. Ao fazer a consciência passar pelo corpo, pela pele,

Serres vai contra o pensamento no qual a consciência é entendida como profundidade.

Há, mais uma vez, a defesa das superfícies em detrimento das profundidades: “Temos

superfícies esquerdas quase planas, sem dobras, desertas, por onde a consciência passa,

fugidiamente, sem deixar memória. Ela mora nas singularidades contingentes, onde o

corpo a tangencia.” [Idem, 2001, p. 17]

Nesta parte do texto, podemos retornar às consonâncias que ocorrem entre o

pensamento de Serres, Deleuze e Simondon. Este último, ao nos trazer a questão da

individuação, nos apresenta uma proposta de pensar a consciência que nos faz refletir,

tanto sobre as palavras de Deleuze, quanto sobre as palavras de Serres: a consciência

não é algo “vindo de fora”, mais, algo que se organiza como parte constituinte do corpo.

Como dissemos no início de nosso texto, ao se estabelecer um processo de

individuação, esta diferenciação que se produz em relação ao exterior faz surgir algo

que podemos denominar de “sentido de interioridade”. Há uma diferença entre o que

consideramos como “nós” e o que consideramos como “fora de nós”. Para Simondon, a

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própria possibilidade de estabelecer tal diferenciação, que aqui denominamos de

“consciência”, um “mundo psíquico”, é algo que se produz no indivíduo que o permite

“uma redução da individuação do vivo, uma amplificação neotênica do estado primeiro

desta gênese. Há psiquismo quando o ser vivo não se concretiza por completo, conserva

uma dualidade interna.” [SIMONDON, 1995, p. 163] Para o autor, tal processo não

pode ser pensado nem como complemento, nem como um paralelismo entre a

individuação e o pensamento. Em outras palavras, a possibilidade de retardamento da

ação torna o indivíduo mais dúplice, no sentido mesmo de dobra, pois, a consciência

como dobra potencializa tanto o sentido interno quanto o sentido externo, aumentando a

complexidade da vida: quanto mais me sinto eu mesmo, menos sinto que sou

participante de uma espécie – e por isso sustento a dualidade de pertencimento e não-

pertencimento a uma espécie.

Daí as considerações de Simondon acerca da diferença entre instinto e tendência,

no qual os instintos, muitas vezes vão contra as tendências, que se apresentam sempre

como atitudes voltadas para o grupo social (que se difere da colônia por possuir muitos

indivíduos), como tendências de alimentação, abrigo e reprodução. Tais paradoxos se

apresentam nos seres que possuem consciência justamente porque há uma ampliação

das relações entre sentido interno e sentido externo, de tal forma que a diferenciação

entre os indivíduos sofre um esgarçamento limítrofe.

A constituição de uma individualidade amplia de forma quase ilimitada as

possibilidades da consciência, pois, quanto maior a percepção de si mesmo, maior será a

tendência a diferenciar-se. Este possibilidade segue um caminho muito ambíguo, pois,

há uma tendência ao fechamento em si mesmo – apresentado no mito de Narciso e, ao

mesmo tempo, a possibilidade de variação. Neste duplo sentido, a consciência produz

mais uma dobra: o inconsciente. Para Serres, a consciência não seria o contraponto do

inconsciente, pois, ambos se apresentam no corpo. Mas, o excesso de consciência, ao

invés de produzir cada vez mais um “conhecimento de si”, o que produz é um

afastamento cada vez maior da ação, uma espécie de paralisia. Se, como dissemos

anteriormente, o corpo possui a memória, por outro lado, é no próprio corpo que

encontramos o esquecimento: “O esquecimento alivia o que a consciência torna

inflexível. De tanto olhar para si mesmo, Narciso ancilosa-se, ou seja, diminui seus

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movimentos e se torna mortalmente melancólico. Eduquem os que são considerados

ineptos para que percam a consciência.” [SERRES, 2003, p. 43]

Ter um corpo, sentir o corpo não significa saber um corpo, ao contrário, o

esquecimento do corpo não se apresenta como uma forma de esquecer o corpo, mas ,

numa forma de potencializar o corpo pelo esquecimento. Não é possível, a partir de

nossas considerações, pensar o corpo como o resíduo descartável do sujeito. Ao

contrário, o corpo se apresenta como possibilidade de ser muito mais do que a própria

consciência:

Eu nunca soube explicar o eu nem descrever a consciência. Quanto mais penso, menos sou; quanto mais eu sou eu, menos penso e menos ajo. Não me busco como sujeito, projeto tolo; solitários, as coisas e os outros se encontram. Entre eles encontra-se meu corpo, um pouco menos coisa e muito menos outro. [SERRES, 2004, p. 13]

Mesmo que haja o esquecimento, este não ocorre a partir da negação do corpo,

mas, da própria possibilidade do corpo de “incorporar” o conhecimento: “A

aprendizagem mergulha os gestos na escuridão do corpo; aliás, os pensamentos

também; saber é esquecer. A virtualidade ágil e a passagem para a ação exigem um

certo tipo de inconsciência.” [Idem, p. 43] Tanto a consciência, quanto o inconsciente se

apresentam como formas de atuação do corpo, como formas de relação que emergem na

constituição de encontros possíveis.

Vale lembrar que, o que estamos denominando aqui de inconsciente não é o que

Freud denomina de inconsciente, pois, não se trata de pensar as formações do desejo,

nem mesmo de adentrarmos no âmbito psicanalítico da compreensão do corpo. Mas, se

trata apenas de pensar a relação entre corpo e consciência. Nas palavras do autor

O que é o inconsciente? O corpo, ou melhor, o corpo em boa forma. O mais consciente entre os homens chama-se Narciso, termo proveniente de narcose: um jovem tão dorido quanto embebedado de narcóticos que se asfixia em conseqüência de uma overdose. [Idem, p. 45]

Nesta relação, não estamos apenas considerando a consciência “clara e distinta”,

como dissemos acima, mas, uma forma de relação que o corpo estabelece com o mundo.

Neste sentido, cabe considerar o inconsciente como possibilidade de ação do próprio

corpo, ou seja, o corpo age de forma inconsciente, e, desta forma, atua pelo

esquecimento, pela transformação do pensamento em ação.

Penso se e somente se fico por minha conta. Saber exige o esquecimento do próprio saber. O pensamento zomba de suas

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lembranças. A ciência perde consciência na consciência do sujeito sábio que, por esta perda, pensa e inventa. [SERRES, 2001, p. 348]

Assim, a ambigüidade apresentada acima, se esvanece, pois, não se trata de um olhar

que se volta a si mesmo, não se trata de um pensamento que reflete – e aí ainda

encontramos Narciso olhando para si mesmo – mas, de uma possibilidade de variar a

partir das variações do corpo. É neste ponto que podemos encontrar os conselhos do

autor: esquecer para pensar. Não um esquecimento ligado à abstração ou ao

pensamento, mas um esquecimento ligado ao corpo. Este esquecimento nos remete

agora a nosso próximo capítulo, pois, há uma relação muito forte entre o que Serres

denomina aqui de esquecimento e o que denominaremos a seguir de potência. Portanto,

no próximo capítulo mudaremos um pouco o foco de nossas considerações, passaremos

de uma reflexão do corpo como textura, como superfície e pensaremos no corpo como

potência, como geração de potencialidades.

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Segundo capítulo: Corpo-potência

O homem normal é o homem normativo, o ser capaz de instituir novas normas, mesmo orgânicas. Uma norma única de vida é sentida privativamente e não positivamente.

Canguilhem

No capítulo anterior, discorremos sobre a possibilidade de pensar o corpo como

superfície. Esta proposta nos propiciou compreender o corpo em seus limites, em suas

formas de permissão e impedimento daquilo que o separa de algo que não faz parte dele.

O corpo delimita e é delimitado por diferenciações e por relações de semelhança entre

partes, de coesões e afastamentos. Neste sentido, o corpo se apresenta como algo que

produz deslocamentos, acelerações e retardamentos que o diferenciam e o constituem.

Neste capítulo, nosso foco para pensar o corpo se desloca, se apresenta menos nos

limites e mais nos transbordamentos do corpo. Desta forma, nossa questão não se

relaciona mais à superfície do corpo, mas, ao que pode um corpo. Nosso ponto de apoio

para estas reflexões também se alteram: nossos contrapontos não são mais as afecções,

mas, como nos diz Serres (2004), são as variações.

Para tornar mais clara nossa proposta, devemos entender a potência como algo

que possibilita a variação. Para compreender esta possibilidade, nos propomos a pensar

o corpo a partir de um viés que se aproxima de questões relativas à constituição do

corpo como um sistema ativo de produção de variações. Como sistema biológico,

podemos considerar as variações como metamorfose – quando as variações se tornam

parte da constituição do corpo; ou como mutações – quando as variações não são

determinadas pelo próprio sistema, mas, por uma diferenciação não esperada. Porém,

existe no homem uma forma de variação que não pertence especificamente a este campo

da vida, que Serres denomina, muitas vezes, de desdiferenciação:

Afirmo que o homem não especializado se tornou uma contra-espécie: ele literalmente se generalizou. Ao perder as características que especificam, ele nivelou seu programa e tornou-se uma generalidade. O homem constitui uma incógnita x porque possui simultaneamente todos os valores e nenhum valor. [SERRES, 2005, p. 60]

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Temos ainda no livro Variações Sobre o Corpo a seguinte colocação: “Apenas os

animais conhecem os limites dos instintos; sem ele, os homens montam suas tendas

frágeis e móveis, sem paredes nem proteção contra o ilimitado.” [SERRES, 2004, p. 39]

A compreensão da desdiferenciação, em nosso texto, seguirá dois caminhos: no

primeiro, será pensada uma questão própria do pensamento de Serres que é o que ele

denomina de “brancura” da alma. No livro Os Cinco Sentidos, Serres (2001) nos faz

refletir sobre uma questão importante para sua própria compreensão do corpo como

potência: a brancura da alma. Neste texto pretendemos discorrer um pouco mais sobre

esta proposta, para pensarmos tal brancura como potência, como forma de

potencialização do corpo. Neste primeiro momento, utilizaremos uma reflexão sobre o

corpo que se inicia com Canguilhem (1995), mas, que ganha novas possibilidades no

trabalho etnográfico de Annemarie Mol (2002).

As formas de aprendizado do corpo, segundo Serres (2004), ocorrem por

imitação e por repetição. Desta forma, será tratada uma questão importante relacionada

à potência do corpo que é a possibilidade de mimetismo, de imitação do corpo. O corpo-

potência é aquele que, cada vez mais se relaciona com as coisas numa busca constante

de potencialização de suas capacidades. Neste sentido, o corpo adquire novas formas, se

metamorfoseia de maneira quase ilimitada relacionando-se com as coisas de maneira a

aumentar seus próprios limites. O corpo produz alianças heterogêneas, se refaz a cada

conexão, apontando para um caminho de relações que não estão dadas, mas, que são

possíveis a partir de uma forma de aprendizado do corpo, que é justamente esta

descoberta das potencialidades deste corpo.

Seguindo o caminho traçado anteriormente, temos, em livros mais recentes,

como Hominescências e Ramos, questões relacionadas ao que Serres (2003 e 2008)

denomina de exodarwinismo do corpo. O que ele denomina de exodarwinismo, se

relaciona com uma forma de potencialização do corpo que ocorre não apenas no

mimetismo, mas na ampliação. A partir desta forma de potencialização do corpo,

podemos pensar sobre algumas formas de transformação que são operadas pelas

conexões do corpo com o mundo que o constitui. Assim, as extensões do corpo se

apresentam como uma potência de ampliação dos limites deste próprio corpo. Porém, tal

ampliação não se apresenta de forma linear, ou seja, não se trata de um simples

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“aumento” do corpo, mas de uma transformação da própria relação do corpo com o

mundo, transformação esta que estabelece novas potências, modificações que não estão

previstas, formas de existência que se constituem e são constituídas a cada variação.

Sob tal perspectiva, terminaremos esta parte de nosso texto, apontando para as

possibilidades de conexões heterogêneas que são cada vez mais presentes em nossas

vidas, que nos fazem diferir, derivar.

1.1 –A potência do corpo: a alma branca

Para iniciar nossas questões sobre a potência do corpo, gostaria de utilizar alguns

trechos de um livro que nos possibilita refletir sobre a questão do poder de uma maneira

muito interessante. Tal forma de pensar nos faz considerar o poder de uma maneira

muito próxima do que estamos denominando aqui de potência do corpo. Em Quem Tem

Medo da Ciência? Ciências e Poderes, Isabelle Stengers traz uma reflexão fundamental

sobre a questão do poder que estará balizando este texto. Vale lembrar que, em tal livro

a autora não está falando do corpo, mas, das ciências, e de como as ciências estão

inseridas em nossa cultura, como elas fazem parte de nossa sociedade. Porém, a mesma

reflexão feita sobre as ciências também vale para o corpo, na medida em que existem

formas discursivas que fazem parte do campo da ciência que também buscam

compreender o corpo, senão afirmar um conhecimento sobre este corpo. Ela nos diz:

(...) a noção de poder não terá para mim um sentido negativo, unilateral. Quando disser poder não se deverá ter o reflexo condicionado: “poder = dominação = mal”, etc. (...) “Poder” aqui deve ser entendido no sentido de descoberta de um novo modo de acesso fidedigno à realidade. E esse poder (...), é um poder que fala imediatamente de seus riscos. [STENGERS, 1990, 13 e 15]

Podemos perceber que a questão do poder não será tratada aqui especificamente

como captura do corpo, como possibilidade de dominação dos corpos, mas, como

potência. O corpo como variação é aquele que pode fazer muitas coisas. Além disso, o

texto nos mostra a questão do risco, ou seja, nenhum poder está isento de risco, neste

sentido, a transformação do corpo não apresenta um caminho linear, estabelecido desde

sempre. O uso do corpo, a princípio está “além do bem e do mal”, seu valor será

adquirido a posteriori. Assim, podemos compreender a brancura da alma como potência

do corpo e não como algo desencarnado. Por outro lado, sabemos também que as

conexões do corpo não são infinitas, ou seja, que algumas conexões, algumas relações

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que o corpo estabelece o despotencializam e, dependendo do grau de

despotencialização, temos a desintegração de sua unidade, em outras palavras, a morte1.

Isabelle Stengers nos chama atenção para um cuidado em relação à ciência que

também deve ser tomado em relação ao corpo: não determinar a priori que qualquer

intervenção feita no corpo segue necessariamente o caminho da dominação. Dizer que o

poder envolve risco é dizer que aquilo que advém das formas de conectar atores

heterogêneos não está dado desde sempre. Ao mesmo tempo, podemos afirmar que a

emergência de novas possibilidades de se pensar, sentir, dizer o corpo não são

necessariamente formas de captura, mas, que, ao mesmo tempo, trazem novas

possibilidades de relação até então não imaginadas. A brancura2 do corpo consistiria

exatamente nesta não previsibilidade das relações, das conexões. A potência do corpo

não possui determinação prévia, portanto, não é objeto de captura imediata. Além disso,

não há captura sem ganho, o que queremos dizer é que, de alguma maneira, o corpo se

alia sempre àquilo que o transforma, que o faz crescer, mesmo que este crescimento não

seja necessariamente “saudável”.

Para compreendermos um pouco melhor o que estamos denominando aqui de

potência do corpo, é necessário que possamos nos remeter a um determinado tipo de

conhecimento que, continuamente se depara com a potência do corpo: a medicina. O

saber médico, ao longo da história, busca capturar, de formas diversas, o conhecimento

sobre o corpo. Nossa proposta é produzir uma reflexão sobre a própria relação entre o

corpo e a medicina, que se apresenta nas efetivas práticas médicas. Mesmo que nossa

proposta não seja dissecar o saber médico, é importante ressaltar que a medicina, como

prática, sempre teve o desafio de “compreender o corpo”, de buscar entender o

funcionamento deste corpo para intervir naquilo que se compreende como “mal”

funcionamento.

1 A questão da morte será tratada de maneira mais detalhada em outro momento do texto. 2 A questão da brancura do corpo será melhor explicitada no decorrer do texto, porém, é importante salientar que o que denominamos aqui de brancura está relacionado a uma contraposição feita por Serres entre a brancura do corpo – no sentido de que o branco é a possibilidade de todas as cores – e as múltiplas apresentações e possibilidades deste corpo: suas cores, traçados, tatuagens, marcas. Em outras palavras, o corpo é furta-cor, multifacetado justamente por ser branco, potência de todas as cores.

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Como dissemos acima, de alguma maneira, a medicina se depara, sempre, com

uma questão pertinente ao corpo: o que seria um funcionamento “saudável” e o que

seria um funcionamento “patológico”. Neste sentido, um estudo fundamental sobre tal

relação encontra-se em Canguilhem (1995), em seu livro O Normal e o Patológico. A

medicina como nos mostra o autor, tem de lidar com algo que lhe é próprio: o caso

particular. Porém, não é apenas no século XIX que a medicina se depara com o

particular, mas, em toda sua história. O estudo de Canguilhem recai sobre tal época por

uma questão muito peculiar: o embate entre duas formas diferentes de compreender esta

relação entre o normal e o patológico: aquela da clínica, e aquela do laboratório. Para

Canguilhem a normatização exercida no laboratório não é capaz de compreender os

casos particulares, nos quais a doença se apresenta não como um desvio da norma, mas,

como uma forma de compreensão de si mesmo. Em outras palavras, não está doente

aquele que não se reconhece como tal. A norma da vida é particular e não poderá ser

determinada pela normatização que se exerce no laboratório, normatização esta feita de

forma estatística, geral, que não leva em consideração os casos particulares.

Neste sentido, a norma da vida não segue um caminho linear, da mesma maneira

que podemos dizer que o corpo não é uma condição prévia. Mas, nossa discussão vai

um pouco além da questão trazida por Canguilhem já que não se trata de contrapor duas

maneiras de se compreender o corpo: uma clínica e outra experimental; mas, de refletir

sobre a convivência, em nossos dias não apenas destas duas maneiras de compreender o

corpo, mas, de várias outras, mesmo no campo da medicina. Em outras palavras, a

questão não é defender uma forma de atuação em detrimento de outra, mas, de não se

apressar, acreditando que em quaisquer formas de “enquadrar” o corpo, nós o

encontraremos lá, a espera de ser descoberto. Ao contrário, o que queremos mostrar é

que não há, em nenhum destes lugares, uma verdade sobre o corpo. O que não quer

dizer, que não há um corpo que se apresenta a partir destas práticas. Não se trata de uma

questão dualista, entre verdade e mentira, mas, de multiplicidade, de ampliação e de

possibilidades. Por outro lado, a questão da normatividade do corpo nos é interessante

não apenas no sentido de contraposição, mas, como uma possibilidade de olhar para o

corpo que, de alguma maneira, não busca reduzi-lo a uma norma, mas, busca

compreender as normas que são estabelecidas nos encontros.

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Para nos aprofundarmos um pouco mais em nossas reflexões, temos um livro

fundamental para pensar as potências do corpo: The Body Multiple: Ontology in

Medical Practice, de Annemarie Mol. Neste livro a autora tem uma dupla proposta:

seguir a prática médica em um hospital geral na Holanda em relação a uma doença

específica: a arteriosclerose; e apresentar uma discussão teórico-prática sobre a proposta

de pensar o corpo como multiplicidade. É claro que estas duas propostas se

entrecruzam, pois a narrativa da autora não está desvinculada de suas reflexões teórico-

práticas. Porém, a radicalidade na qual a autora apresenta sua descrição etnográfica

enriquece tanto suas reflexões teóricas quanto o inverso. Em outras palavras, as

reflexões teóricas não são apenas um suporte “epistemológico” de sua prática, mas, a

própria prática é estabelecida no encontro singular entre a autora e as múltiplas

possibilidades de se estabilizar3 uma determinada doença. Portanto, a questão levantada

por Mol é deslocada pois, o que lhe interessa é apontar as várias possibilidades de se

constituir um corpo a partir de diversas práticas médicas que se aglutinam ao redor de,

supostamente, uma “mesma doença”, a aterosclerose. Mas, como veremos a seguir, não

se trata nem de um corpo determinado, nem mesmo de uma doença única, mas, de

formas diferentes de atuação sobre o corpo, que fazem deste corpo uma multiplicidade.

2.1.1 – O corpo múltiplo:

O poder do corpo pode ser pensado como uma forma de fazer existir4 este corpo,

que, segundo a autora, é múltiplo. Dizer que o corpo é múltiplo não torna nossa

proposta mais clara, pois, não se trata de pensar o corpo como algo fragmentado, no

qual as partes são distintas, não se trata de pensar o corpo como um sistema integrado

de partes diversas, mas, de pensar o corpo como algo que, o tempo todo é produzido a

partir das práticas que lhe dão sentido.

Na prática o corpo e suas doenças são muito mais do que um, mas isso não significa que ele é fragmentado em muitos. Esta é uma coisa difícil. Mas, este é o estado complexo de relações que este livro

3 O termo estabilização é utilizado propositadamente, pois, para a autora, o que ocorre justamente, quanto há concordância sobre a doença (aterosclerose, no caso) o que ocorre é uma estabilização das várias práticas utilizadas para determinar esta doença. 4 O termo “fazer existir” não é totalmente apropriado para traduzir o termo enact, do inglês, pois, este termo tem uma conotação muito mais ampla do que a tradução pode apresentar, enact é por em ação, e ao mesmo tempo, atuar, performar, quando se trata de uma atuação teatral e, ao mesmo tempo, promulgar, no sentido jurídico, de “fazer valer”, de tornar existente, efetiva, uma determinada lei. Porém , neste texto usaremos o termo em inglês toda vez que este aparecer, mas, com o sentido dado nesta nota.

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explora. Eu tentei capturar no título, no qual o nome singular está junto com o adjetivo pluralizante. Este, então, é um livro sobre um intrincado aglomerado de coordenadas: o corpo múltiplo. [MOL, 2005, p. VII e VIII tradução nossa]

O corpo não é algo determinado, que deve ser “descoberto” ou “analisado”, mas algo

que se exerce. Na prática médica, esta proposta se apresenta de maneira mais clara,

segundo a pesquisa de Annemarie Mol (2002), porque a medicina é algo que se legitima

pelo conhecimento do corpo. Isto não quer dizer que a medicina possui o conhecimento

do corpo, mas, que esta prática está inteiramente relacionada à produção do corpo, no

sentido em que, é da prática médica – seu sucesso ou seu fracasso – que depende, em

última instância a permanência do corpo enquanto tal. Do mesmo modo, o corpo que é

“produzido”5 na prática médica não se apresenta de maneira única, daí a potência da

medicina: apesar de todas as tentativas de unificação do corpo, o que ocorre – como nos

mostra Annemarie Mol – é a dispersão. Não no sentido de que o corpo escapa à

medicina, mas, no sentido de que efetivamente, o que subjaz é pura potência.

Para a autora, não é de uma forma simplista que podemos compreender a relação

entre medicina e corpo, até porque, como dissemos acima, a própria prática médica não

é única. Em outras palavras, não se trata de apontar para uma via privilegiada de acesso

ao corpo, mas, ao contrário, de apontar a diversidade que é própria a qualquer proposta

de esgotamento do corpo. As diferentes especialidades apresentam diferentes formas de

enact o corpo. Neste sentido, ela apresenta uma forma de pensar tanto o poder quanto a

medicina de uma maneira que, ao mesmo tempo, se aproxima e se distancia das

reflexões feitas por Foucault, principalmente em seu livro O Nascimento da Clínica6.

Para entendermos a discussão da autora, são necessárias algumas breves

considerações sobre o trabalho de Foucault, principalmente no livro supracitado. Neste

é analisada a emergência da prática médica que se torna possível a partir da abertura dos

corpos, a visibilidade destes se torna cada vez mais aparente e, consequentemente, os

médicos são aqueles que detêm o poder de falar sobre tais corpos. O jogo de tornar os

5 Utilizamos o termo “produzido”, neste trecho, como enact. 6 A escolha destes autores não é aleatório, nas entrevistas que Serres cede à Latour, ele nos diz que parte do livro As Palavras e as Coisas foi escrito depois de conversas entre eles. Além disso, a própria Annemarie Mol cita Serres em seu livro, para pensar as relações de coexistências entre várias possibilidades de se ordenar o corpo. É importante salientar que, tanto Annemarie Mol quanto Michel Foucault serão utilizados em nosso texto da mesma maneira que utilizamos Deleuze e Simondon no capítulo anterior: como possibilidades de por em movimento – em última instância de enact – o pensamento de Serres

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corpos visíveis ao olhar do médico, de algum modo, faz emergir uma nova maneira de

compreender tanto o corpo como a doença, pois, a abertura dos corpos apresenta,

claramente, os locais nos quais a doença se “instaura”. Não se trata mais de um corpo

doente, nem mesmo de um sujeito que sofre, mas, de um lugar que abriga um mal até

então não visto. Para além dos corpos, existe a “causa”, localizável, de um determinado

“problema”. Este proposta desloca todas as formas de compreender os corpos, pois, se,

antes, o sujeito sabia de sua doença, de sua dor, agora não é mais ele que detém este

saber, este saber é transferido para o médico. O inclinar-se sobre os corpos possibilita o

médico atuar, produzir formas discursivas que capturam os corpos em determinadas

redes de saber-poder nas quais o médico ocupa um lugar privilegiado, assimétrico em

relação aos outros saberes sobre o corpo, inclusive o saber do próprio sujeito7.

(...) foi portanto, necessário situar a linguagem médica nesse nível aparentemente muito superficial, mas, para dizer a verdade, profundamente escondido, em que a fórmula de descrição é ao mesmo tempo gesto de desvelamento. E esse desvelamento, por sua vez, implicava, como campo de origem e de manifestação da verdade, o espaço discursivo do cadáver: o interior desvelado. [FOUCAULT, 2004, p. 217]

A questão da visibilidade é central nestas reflexões trazidas por Foucault, além do

deslocamento do médico em relação ao paciente. O que queremos frisar aqui é que não

se trata de negar as importantes considerações de Foucault acerca da relação entre

médico e paciente, sabemos que os deslocamentos exercidos pela medicina esvaziaram

os sujeitos de um saber sobre si mesmo. Porém, a questão, para nós aqui, é modificada,

pois, nos interessa pensar, para além deste desnível, as formas de relação entre um

determinado saber e o corpo, que, como veremos a seguir, não é operado de maneira

unificadora.

Por outro lado, o século XIX vê surgir uma forma de unificação do saber médico

através da implementação dos lugares “apropriados” ao ensino da medicina. O exercício

da medicina estará, desde então, submetido, condicionado a uma formação adequada

que é ensinada nos espaços de saber que são constituídos nos hospitais. Neste sentido,

Mol (2005) nos chama a atenção para o fato de que Foucault, ao mesmo tempo em que

nos mostra que há uma relação estreita entre poder e conhecimento, entre ciência e

sociedade, ele também insiste em que a medicina se apresenta de uma forma unificada

7 Vemos aí, de alguma maneira, ressonâncias com as reflexões feitas por Canguilhem, na medida em que, é sobre a relação entre o sujeito e seu que estamos falando.

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[MOL, 2005, p. 62]. Esta forma, se não se apresenta na relação entre médico e paciente,

pelo menos se apresenta em relação aos pares, aos outros médicos. É como se, de

alguma maneira, Foucault estivesse nos falando de algo que ocorre de uma maneira

única: a relação médico-paciente. Mas, não se trata disso, o próprio campo da medicina

é pulverizado, é disperso, é controverso, não há unidade. Mesmo que a questão fosse

apenas de especialidade, na qual se poderia argumentar que a unidade não ocorre porque

a medicina trata de um corpo fragmentado (cardiologia, oftalmologia, gastroenterologia,

angiologia etc.), esta não seria uma justificativa bastante forte, pois, como dissemos

anteriormente, o estudo etnográfico de Annemarie Mol não pesquisa diferentes

especialistas que falam de diferentes partes do corpo, mas, de uma “única doença”. A

questão, portanto, é muito mais complexa, propositadamente, para que não se busque

uma saída “mais fácil” para o problema proposto, a saber, a discussão sobre a

legitimidade epistemológica da doença.

Foucault, para Mol, ainda trabalha com a noção de episteme8, que, para a autora,

mantém um sentido de permanência, de fechamento que nos impede de pensar as

mudanças e particularidades que ocorrem em espaços singulares. Os saberes são

móveis, intercambiáveis e, em determinados momentos, coisas que se organizavam de

uma determinada maneira, podem se organizar de outra maneira, as fronteiras são

fluidas, maleáveis. Não há uma única forma de pensar a medicina, nem mesmo a

relação entre médico e paciente, em certa medida, estas relações são “performadas”9,

são enact a cada momento. Portanto, não se trata de esclarecer, epistemologicamente,

“quem tem razão” sobre a aterosclerose, não é uma questão sobre a verdadeira doença,

mas, há um deslocamento da questão:

A questão médica por excelência não é a questão apontada por Foucault como tal: “Onde dói?”. Ao contrário, ela tem se tornado outra: “Qual é o seu problema?” Esta questão é sobre se você, paciente, consegue viver uma boa vida, ou se você tem um problema com isso. Os problemas não são face às condições do corpo. Eles pertencem a este corpo, mas eles são situados em outro lugar: na vida deste. (...) O profissional, ou o conhecimento profissional, não é a verdadeira autoridade que consegue diferenciar entre o que é e o que

8 Sobre a questão da epistemologia, Serres nos diz: “(...) caminho inútil, a epistemologia exige que se aprenda a ciência para a comentar mal; pior, para a duplicar. Os próprios cientistas refletem melhor sobre sua matéria do que os melhores epistemólogos do mundo: pelo menos, mais inventivamente.” [SERRES. 1996, p. 45] 9 Anniemarie Mol não gosta da palavra “performance”, porque esta carrega ainda uma conotação muito forte de representação, a qual a autora se afasta.

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não é um problema na vida da pessoa. (...) Esta é uma nova troca: estes pacientes estão sendo evocados a articular normas sobre e para eles mesmos. [MOL, 2005, p. 127]

Além disso, no livro citado, a proposta de Anniemarie Mol é de seguir as

práticas, ao invés de constituir um campo epistemológico, ou mesmo um campo teórico.

Esta escolha nos faz refletir sobre a o projeto de Mol, ou seja, o que se busca é pensar as

práticas no momento em que estas são feitas. Nas palavras da autora:

Eu investigo o conhecimento incorporado nos eventos e nas atividades diárias mais do que o conhecimento articulado em palavras e imagens e impressões no papel. Eu privilegio práticas ao invés de princípios e estudo-as etnograficamente. Isto tende a fazer com que a antropologia entre na filosofia. Um movimento que se afasta da tradição epistemológica em filosofia que tenta articular a relação entre sujeitos que conhecem e objetos a serem conhecidos. [Idem, p. 32]

Deste modo, o que se busca não é uma discussão propriamente epistemológica, de

legitimidade, mas, o caminho de constituição no qual a separação entre sujeitos e

objetos é exercida a cada momento, em cada prática.

Para compreender esta possibilidade, Mol utiliza-se da proposta de Bruno

Latour, de pensar a rede, mesmo que esta palavra esteja altamente desgastada, discutida,

reafirmada e questionada, a rede não é uma configuração prévia, que apresenta bordas e

fronteiras demarcadas, mas, é uma proposta de “ontologias de geometria variável”

[LATOUR, 1994, p. 84] 10, pois busca pensar uma maneira de relação entre as coisas e

os homens na qual não há organização prévia. Neste sentido, o que ocorre não é

exatamente uma captura, ou mesmo uma forma de dominação – a qual a palavra

“poder” encontra-se muitas vezes vinculada – mas, um tipo de associação, na qual as

partes envolvidas numa determinada conexão são modificadas. Não se trata de uma

questão de apropriação dos corpos, mas, muito mais de uma nova maneira de enact

estes corpos. Mol apresenta o exemplo de Latour no texto que fala sobre a

“pasteurização da França” a partir das “descobertas” de Pasteur, mas, podemos também

pensar nas relações que o corpo estabelece não apenas com os medicamentos que são

lançados continuamente no mercado, mas, com coisas simples, como as tecnologias de

10 Nas palavras do autor: “A ontologia dos mediadores, portanto, possui uma geometria variável. O que Sartre dizia dos humanos, que sua existência precede sua essência, é válido para todos os actantes, a elasticidade do ar, a sociedade, a matéria e a consciência. (...) Ora, se traçarmos o mapa das variedades ontológicas, iremos perceber que não há quatro regiões, mas somente três. A dupla transcendência da natureza, de um lado, e da sociedade, do outro, corresponde às essências estabilizadas. Em compensação, a imanência das naturezas-naturantes e dos coletivos corresponde a uma mesma e única região, a da instabilidade dos eventos, a do trabalho de mediação.” p. 85/86

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calçados mais confortáveis e adequados (no caso dos tênis de corrida), ou mesmo na

forma como escrevemos hoje: em frente a uma tela e um teclado, que nos possibilita

caminhar no texto de maneira muito mais livre.

A possibilidade de relações heterogêneas que não levam em consideração

“essências” prévias pode ser compreendida de forma simplista, portanto, é necessário

que nos aprofundemos um pouco mais nesta idéia de associação trazida pelo texto de

Annemarie Mol, para que possamos entender que não se trata apenas de uma mudança

de palavras, mas, de novas possibilidades de compreensão do mundo, e,

particularmente, de compreensão do corpo. Afirmar que não existem essências prévias

não significa dizer que não existem estabilizações. É claro que algo emerge nas relações

que o corpo estabelece com o mundo, porém isto não significa que o que emerge é algo

que já existia anteriormente. Em outras palavras, não há essência sem relação,

estabilidade sem conexão, corpo sem variação.

A variedade de cores, de formas, de tons, a variedade das pregas, dos franzidos, dos sulcos, dos contatos, dos morros e desfiladeiros, das peneplanícies, a variedade topológica singular que é a pele é descrita o mais pobremente possível por uma mistura compósita, gradual e maleável, de corpo e de alma. Cada lugar singular, mesmo banal, forma então uma mistura original. Digamos que essas misturas, quando chegam ao contato, analisam-se ou fazem surgir, de sua composição, os elementos simples. (...) Ninguém viu a grande batalha dos simples, nunca experimentamos senão as misturas, só encontramos reuniões. [SERRES, 2001, p. 22]

Antes que possamos continuar nossas reflexões acerca do texto da autora,

gostaria de explicar melhor o que significa o afastamento desta em relação ao

pensamento de Foucault. Para que este afastamento seja esclarecido, gostaria de utilizar

os próprios argumentos da autora e, ao mesmo tempo, enriquecê-los com algumas

considerações de Serres. Para compreender esta nova maneira de pensar os saberes, Mol

utiliza-se de uma metáfora trazida por Serres em seu livro Hermès V, Le passage du

Nord-ouest, neste livro, Serres, ao invés de utilizar a metáfora das caixas para

compreender a relação entre saberes, utiliza-se da metáfora das bolsas, que são de

pano11, portanto, maleáveis, fáceis de serem moldadas, como as sapatinhas de

Cinderela, que, ao mesmo tempo em que envolvem o pé, são o que formam a princesa.

11 Vale lembrar aqui o primeiro capítulo deste texto, no qual Serres utiliza-se, de forma bastante ampla, da metáfora dos tecidos para compreender o corpo. Não é apenas uma questão de metáfora corporal, como podemos perceber, mas, uma forma de pensar o mundo, pelos fluidos mais do que pelos sólidos.

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Cinderela não é ninguém sem as sapatinhas de veiro, da mesma maneira que as

sapatinhas não significam absolutamente nada se não estão nos pés de Cinderela [Idem,

p. 59 a 63]. As bolsas, formadas por tecidos, podem tanto abrigar coisas como estar

contida em outra bolsa, é nesta proposta de mudanças intercambiáveis que Mol

apresenta a relação que estabelece entre corpo e medicina.

Por outro lado, Serres, nas entrevistas que cede à Latour, também vai nos falar

sobre o que ele compreende por epistemologia:

A ciência autofundamenta-se e, portanto, não tem necessidade de uma filosofia exterior, traz consigo a sua endo-epistemologia, se assim posso dizer. A filosofia das ciências fará, enfim, a publicidade pura e simples do cientismo? (...) A epistemologia nasce justamente depois desse tempo: já reparou que não havia epistemologia na idade clássica, quando os próprios filósofos inventavam as ciências? Essa disciplina marca, portanto, o atraso do filósofo em relação à invenção. [SERRES, 1996, ps. 174/175]

Assim, a questão trazida por ele nos mostra que a constituição de qualquer saber não se

apresenta apenas como teoria, nem mesmo como simples prática, mas numa relação

entre coisas e homens que, por se tornarem estáveis, apresentam, posteriormente,

divisões e estabilizações que são sempre passíveis de serem renegociadas. Tais

considerações encontram ressonância também com o conceito de associação

apresentado acima, pois, o conceito de interferência, de Serres, também nos remete á

uma possibilidade de pensar as relações como intercambiáveis, como produtoras,

indefinidamente, de espaços de interferência:

É preciso conceber ou imaginar como é que Hermes voa e se desloca quando transporta as mensagens que os deuses lhe confiam – ou como viajam os anjos. E, por isso, descrever os espaços que se situam entre coisas já balizadas, espaços de interferência, segundo o título do segundo Hermes. Esse deus ou esses anjos viajam no tempo dobrado, e daí os milhões de conexões. Entre sempre me pareceu, e ainda me parece, uma preposição de importância capital. [Idem, p. 92/93]

Desta forma, podemos compreender como as práticas médicas não apenas em

um hospital Geral na Holanda12, mas em cada lugar e em cada momento em que se

12 É importante também ressaltar algumas questões trazidas por Serres a respeito da relação entre local e global. O livro no qual o autor trabalho mais esta questão é O Contrato Natural, mas nas entrevistas que cede à Latour ele também fala sobre a relação entre local e global de uma maneira bem interessante, pois nos incita a compreender tal relação em cada encontro, incita-nos a pensar a produção de sínteses que se diferem de sistemas: “Partia, quase indutivamente, e ao invés das teorias unitárias, de elementos sempre diferentes, extraídos da obra ou do problema levantado, usando meios ao mesmo tempo análogos e diferentes, uma forma de pensar formal e relacional, como disse antes: portanto, nunca cheguei a um começo, a uma origem, a um princípio de explicação único, tendo classicamente todas as coisas de estar

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estabelece a relação entre médico e paciente, esta relação enact homens e coisas de tal

maneira que torna possível falar da emergência de um corpo. Neste sentido, não há

corpo sem potência a ser apresentada, atualizada. O corpo não é suporte, não é “coisa”,

mas, ato, atualização que se apresenta em cada momento. “Meu corpo e nossa espécie

existem menos no real concreto do que em “potencial” ou em virtualidade”. [SERRES,

2004, P. 52] O corpo não é apenas algo a ser apropriado nas redes de poder, mas, algo

que, a partir das associações estabelecidas, pode ser potencializado ou

despotencializado. Na verdade, não se trata de captura, mas, de formas de relação:

Talvez brinquemos de pedra filosofal que transforma as ligas e transmuta os títulos. Nada é mais abstrato, nem mais sábio, nem mais profundo, que essa imediata meditação sobre os mistos, nem mais fino nem mais difícil de apreender que essa refundição local e complexa, que essa conversão transtornada ou essas reviravoltas instáveis; sem dúvida nunca se disse nada da mudança, da transformação em geral, que teria acontecido ali, na vizinhança fina de nossa contingência. Ninguém pode pensar a mudança, a não ser sobre as misturas: quando se tenta pensar sobre os simples, só se chega a milagres, saltos, mutações, ressurreições, até à transubstanciação. [SERRES, 2001, p. 23]

A partir de tais considerações, podemos perceber que a questão se encontra

menos localizada no problema da existência ou não existência de algo anterior ao corpo

e mais nas possibilidades de encontro, de potencialização deste corpo. Mas, o que seria

então esta potência? Para Serres, a brancura, a leveza, “Alma global: pequeno lugar

profundo, perto do espaço da emoção. Alma local e de superfície: lago viscoso pronto a

agarrar, onde a luz brinca, múltipla, irisada, lentamente cambiante, sujeito a

tempestades.” [SERRES, 2001, p. 18/19] A alma não é um lugar, mas uma potência

cambiante, que se aninha em lugares diversos, de diversas formas. “A alma transparente

como um anjo, raramente ali, embranquece os lugares onde desce; a pele, historiada de

cores variadas em outra parte, torna-se, aqui, tanto mais clara quanto se anima luminosa

até à brancura.” [Idem, p. 19]

Como podemos perceber, para Serres a alma não é algo que se opõe ao corpo,

não é sob uma perspectiva dualista que podemos compreender a alma como potência

pois: “O dualismo só permite conhecer um espectro diante de um esqueleto. Todos os

em coerência ou fazer sistema, ou sentido, mas a um conjunto bem diferenciado, mas organizado, de relações. (...) A síntese diferencia-se do sistema ou mesmo da unicidade de um método. Um conjunto de relações profundamente diferentes ganha unidade.” [SERRES, 1996, p. 140/141]

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corpos reais são chamalotados, misturas imprecisas e em superfície de corpo e alma.”

[Idem, p. 20] A alma, para Serres, se apresenta como sopro de vida que nos faz

diferentes de cada ser vivo pela desdiferenciação13. “A evolução conduz o homem a

essa indeterminação branca. Valência zero, todas as valências; potência nula, todas as

potências; não serve para nada, é bom para tudo.” [SERRES, 2005, p. 61]

Por outro lado, não queremos dizer que Serres nos apresenta mais um dualismo

por nos remeter à alma como brancura. A proposta é exatamente outra: pensar a alma

como potência branca, não como coisa a ser conhecida, ou mesmo separada, distanciada

do corpo. Esta forma automática de pensar a distinção entre corpo e alma, como

veremos a seguir, não é exatamente o que estamos propondo aqui, nas palavras de

Serres:

O dualismo alma-corpo, tão incensado no passado, tão enraizado na invenção matemática, sempre desemboca, por exemplo, em conjuntos possíveis. Intensamente detestado pelo pensamento politicamente correto atual, esse dualismo se desfaz pela capacidade que o corpo humano tem de entrar na modalidade. [SERRES, 2004, p. 139]

Portanto, não se trata de denunciar os problemas do dualismo, mas, de mostrar como

nos tornamos herdeiros deste pensamento dualista, ou seja, mostrar como atualizamos

esta forma de compreensão do corpo em nossos dias a partir da retomada de algumas

discussões antigas, mas que estão presentes em nossa maneira de pensar e agir.

2.1.2 – A alma branca – proposta metafísica?

A possibilidade de pensar o corpo como potência nos remete a uma discussão,

ou melhor, a um “campo de batalhas” há muito habitado pela filosofia: a metafísica.

Sabemos de toda a questão acerca das infindáveis batalhas descritas por Kant em sua

Introdução à Crítica da Razão Pura. Nossa proposta é discutir, a partir dos trabalhos de

Serres, o que vimos falando até o momento: a alma como potência. Nesta perspectiva,

cabe falar de metafísica? Por um lado, sim, pois faz parte da tradição remeter à

13 Mesmo em biologia, encontramos esta mesma questão apresentada em outros termos, nos trabalho de um biólogo: Stephen Jay Gould, ele defende uma idéia de potência do corpo a partir do conceito de neotenia: “Suponhamos que os traços juvenis dos antepassados de desenvolvam tão lentamente em seus descendentes que se transformem em traços adultos. Este fenômeno de retardamento do desenvolvimento é comum na natureza: denomina-se neotenia (literalmente, “retenção da juventude”).” [GOULD, 1999, p. 118]

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metafísica o estudo da alma – a partir, é claro de Platão14. Por outro lado, há quem diga

que esta questão é superada justamente porque já não nos remetemos mais ao sujeito

transcendente – abandonamos a Deus, mesmo que denominemos este deus de meta-

narrativa15.

A proposta de nosso texto aqui é refletir como Serres compreende esta

possibilidade de pensar a relação entre alma e metafísica, na medida em que, tal

proposta é inaugurada na tradição filosófica por Platão, no momento em que Platão nos

remete à alma racional como sustentáculo não apenas do conhecimento, mas, da própria

existência do homem enquanto tal. Para enriquecermos nossa discussão, nos

remeteremos a um livro muito interessante sobre a construção das emoções e,

conseqüentemente, como esta construção se sustenta na divisão entre razão e emoção,

proposta por Platão, que compreende que a alma racional deve ser aquela que comanda

as outras almas, ligadas ao corpo e perecíveis com ele. A alma racional, portanto, não

pertenceria ao corpo, seria de uma outra natureza, daí sua idéia de que esta alma não

seria propriamente física, mas, meta-física – falando de maneira muito simplista.

Por outro lado, Vinciane Despret é uma etnopsicóloga que nos convida a pensar

a constituição das emoções, principalmente em sua diferenciação da razão , como já

dissemos, e, consequentemente, sobre a separação e a relação que estabelecemos entre

corpo e alma. A alma, para a autora, é constituída através de três temas abordados na

obra de Platão: “Este que eu chamarei de interdito do arrombamento; o problema da

autonomia da alma; e a temática do conhecimento de si (...)” [DESPRET, 1999, p. 157 –

tradução nossa] Esta relação, segundo a autora, serve a um determinado fim: constituir o

discurso verdadeiro, a “sangue-frio”, desinteressado, portanto, racional. Neste sentido, a

autora nos mostra como, nos diálogos de Platão, principalmente no Teeteto,

encontramos este movimento de “afastamento” da alma. A separação deve ser operada

não apenas em nome da verdade – que deve ser igual para todos, mas, ainda, em nome

de uma verdade que é também política, na medida em que é na polis que encontramos a

necessidade maior de acordo. O conhecimento, apesar de se apresentar como o

14 Sobre tal tema, ver o Capítulo III, Platon, inventeur de L´âme, do livro Ces Émotions qui nous Fabriquent, de Vinciane Despret. Em tal livro, no qual a autora irá discutir a questão da fabricação das emoções, ela irá discutir, ainda esta separação entre alma e corpo. 15 Sobre tal discussão, do fim das meta-narrativas, cf. LYOTARD, A Condição Pós-Moderna.

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problema, é também o pano de fundo para a busca de uma realidade que não deve

pertencer a ninguém, mas, deve ser aceita por todos simplesmente por ser verdadeira,

por ser imutável, permanente.

Eu terei, durante a análise de algumas passagens do Teeteto, que evocar e anunciar que um dos problemas ligados a este que afeta o conhecimento é um problema de estabilidade, o fato de que uma coisa pode aparecer como diferente disto que ela é porque ela reencontra um sujeito diferente; o fato também de que o sujeito ele mesmo pode ser levado a se definir diferentemente no fato deste reencontro com o mundo (por exemplo, quando este que é passivo se torna ativo ao se unir a outra coisa). [Idem, p. 157]

O problema da alma encontra-se intimamente ligado à metafísica, em Platão, na

medida em que, não haverá solução possível, para a permanência da alma, se esta não

estiver, pelo menos de alguma maneira, ligada a algo que é imutável. Para Platão – e

para muitos filósofos antes dele – esta imutabilidade pode ser percebida principalmente

através das verdades matemáticas (geométricas, no caso). A matemática seria, de

alguma maneira a forma de acesso à verdade, distinta das instabilidades do mundo e do

corpo, da aparência. Platão nos remete à metafísica, na medida em que nos propõe que

este mundo “abstrato” (para Platão não se trata de abstração, mas de um mundo real,

para além do mundo sensível), não pertence a ninguém. Porém, apenas nós, humanos,

dotados de uma alma racional, somos capazes de ascender, de alcançar a verdade que se

encontra “fora” do mundo16.

Por outro lado, esta alma racional – que segundo a autora é uma criação

platônica – é o que nos faz propriamente humanos porque representa a conquista do ser

humano contra o caos, contra a indiferenciação. Deste modo, ser humano é justamente

afastar-se desta indiferenciação e aproximar-se daquilo que podemos compreender

como “eu”17. Porém, o que se denomina como caos é tão produzido quanto a própria

alma, em outras palavras, no momento da contraposição, a alma e o caos se diferenciam

um do outro isto ocorre no instante em que colocamos esta distinção. A atividade da

alma deve sempre remeter à sua busca da verdade, daquilo que está para além das

sensações, pois, as sensações, por serem enganadoras, por se apresentarem como algo

que pode nos “misturar” ao mundo, é uma ameaça. Por outro lado, a alma é aquilo que

16 Estas considerações também podem ser encontradas em outros diálogos de Platão, como O Banquete, Fedro e A República. 17 Nas palavras de Serres: “A alma habita um quase-ponto onde o eu se decide” [SERRES, 2001, p. 15]

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existe em oposição, ou mesmo, em referência ao corpo na medida em que, o que chega

ao corpo, o que faz o corpo participar do mundo, é o que o ameaça ao esfacelamento. A

alma é uma conquista na medida em que mantém o corpo íntegro, sem misturas,

esvaziado de qualquer possibilidade de mistura e de esfacelamento. Na medida em que

o corpo está misturado ao mundo, a alma “salva” este corpo da mistura por afastá-lo dos

“perigos” que esta mistura revela: o arrombamento. A diferença entre corpo e alma

inaugura, para Despret, uma oposição que, ao mesmo tempo, coloca as emoções como

contraponto do conhecimento e faz com que a alma esteja não apenas devidamente

apartada do corpo, mas, que o corpo esteja sob o controle desta alma.

Para nossas considerações aqui, esta análise nos traz o problema da relação entre

corpo e mente sob novas possibilidades. O corpo, que corre sempre o risco de se

enganar, de ser afetado pelo mundo não é confiável, pode, a cada momento, esfacelar-

se. Por outro lado, a alma, pura, mais ainda, fechada sobre si mesma, é o que nos

possibilita, em última instância, ser. Porém, o eu purificado não é este do qual estamos

tratando aqui. O eu que está misturado às coisas, que habita o mundo é este que não se

considera separado de sua alma. A autora nos mostra que, como herdeiros do

platonismo, nós não conseguimos considerar a alma como algo que pertence ao corpo,

que é constituinte deste, por acreditarmos no argumento de Platão de que, ao nos

misturarmos às coisas, não nos diferenciaríamos das bestas, que, estas sim, “se

consideram a medida de todas as coisas”. A animalidade habita aqueles que não

consideram o acordo social, que não ascendem à verdade que está para além das

vontades e desejos de cada um. Além disso, a autenticidade dos homens está justamente

no reconhecimento desta alma, disto que nos separa da natureza e nos faz sujeitos de

conhecimento.

A mistura entre os homens e as coisas, em última instância, não nos permite

conhecer o mundo porque não nos dá o ponto de referência, não nos dá a diferença entre

aquele que conhece e aquele que é conhecido. Esta diferença fundamental nos inscreve

no registro da verdade, por acreditar que as coisas são sempre determinadas por esta

alma racional. Desta forma, dizer como o Protágoras de Sócrates (que se apresenta

apenas nas palavras de Sócrates e Teeteto), que estamos no meio das coisas é afirmar

que não há diferença entre o sujeito que conhece e o objeto a ser conhecido. Esta

indiferenciação é uma ameaça, porque nos joga no meio das coisas, numa relação que

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não privilegia o sujeito do conhecimento, e, por conseguinte, não alcança a verdade.

Esta verdade estaria, ao mesmo tempo, na alma e fora do corpo. Apesar de paradoxal,

tal afirmação ganha sentido no momento em que compreendemos o objetivo de Platão:

encontrar uma verdade que não se apresenta para cada um mais do que para todos18.

Porém, estar “no meio das coisas” ao invés de fazer com que percamos as

referências, que os limites sejam esfacelados, permite exatamente o contrário, que

possamos, cada vez mais, produzir uma determinada interioridade19. O sentido interno

depende da relação que estabelecemos com o que consideramos “nosso exterior”. A

discussão acerca da diferença entre mente e corpo, pode ser considerada, nas palavras

de Serres:

Em resumo, o corpo não se reduz nem à fixidez nem à realidade: menos real do que virtual, ele visa ao potencial, ou melhor, ele vive no modal. Longe de um estar lá, ele se movimenta; não se desloca apenas sobre o trajeto daqui para acolá, mas forma-se, deforma-se, transfigura-se; polimorfo e proteiforme, vocês não interromperão estas variações, a não ser que definam o corpo como capaz. O corpo pode. [SERRES, 2003, p.138 – grifo nosso]

Existem conseqüências importantes que podemos retirar das reflexões de

Despret, dentre elas, podemos dizer que somos herdeiros20 de uma diferença entre corpo

e mente que nos faz compreender que alguns processos são mentais, outros corporais.

Que algumas coisas são próprias da mente e outras do corpo. Estas diferenças

apresentam uma forma de conhecimento que privilegia a mente como “instância” na

qual ocorrem determinados processos que lhe são próprios, como a abstração. Porém,

18 Verdade que não seja apenas sobre as coisas, mas, que seja, principalmente, uma relação dos homens entre eles na qual a verdade não se encontra nas coisas, mas, nas ações e decisões dos cidadãos atenienses. 19 Como dissemos no capítulo anterior. 20 A questão da herança no texto de Despret, é algo muito importante e muito mais rico do que costumamos entender como herança, na linguagem comumente falada. Para Despret, ser herdeiro da tradição platônica significa menos se apropriar desta tradição e mais problematizar o que compreendemos daquilo que nos é legado. Para pensar esta questão, na introdução do livro, Despret nos relata a história dos doze camelos. Nesta história árabe, o patriarca, ao morrer, deixa para os filhos onze camelos e lhes dá a seguinte ordem: “metade destes camelos ficará com o filho mais velho, um quarto ficará com o filho do meio e um sexto com o filho mais novo”. Como podemos perceber, esta herança é impossível. Porém, os filhos estão dispostos a obedecer o pai e procuram um velho sábio que lhes diz que a única coisa que poderá fazer é emprestar um camelo velho para que eles possam resolver. Com este camelo, a conta se fecha da maneira exata e sobre exatamente o camelo do velho sábio, que eles devolvem. Como nós pudemos perceber, o que estes filhos herdam do pai é muito mais um problema do que algo pronto, dado. E neste sentido de Despret nos diz que somos herdeiros da alma platônica, não como algo dado, mas como um problema, como algo problematizável. É neste sentido que estaremos utilizando a palavra “herdeiro”.

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como dissemos do capítulo anterior, aquilo que denominamos abstração é também uma

forma de relação que o corpo estabelece com as coisas e com o mundo, como nos diz

Serres é uma “olhar de sobrevôo” que produzimos sobre as coisas, mas, que não deixa

de ser uma forma do corpo se relacionar com o mundo. Portanto, algumas formas de

relação entre os homens e o mundo, que permaneciam como formas de superação do

corpo, se apresentaram como parte e potencialização deste mesmo corpo. Serres, nos

mostra isso quando fala de Tales aos pés da pirâmide: diante da grandeza do túmulo, a

postura ereta de Tales cria a relação. A geometria se funda num duplo movimento:

numa relação com a morte (a pirâmide representa estes mortos) e numa relação com o

corpo, já que a comparação é feita entre a altura da pirâmide e a altura do próprio Tales.

Além disso, a geometria nasce desta comparação, deste “pôr em relação” a vida e a

morte.

Em relação à alma branca, podemos dizer que, por não ter um sentido

determinado, o corpo também é um conceito branco, ou seja, é algo sobre o qual

podemos inserir variadas formas e sentidos. Os conceitos brancos são metamorfoses,

são variações, são conjuntos variáveis de sentidos, intercambiáveis, mas que, a partir do

momento em que são inseridos em um determinado sistema, adquirem forma, são

informados. Desta maneira, o que seria a metafísica então?

Damos o nome de metafísica à disciplina que trata do grupo de conceitos brancos. Os universais. A circunscrição rural, a habitação e os objetivos, em seguida o relacional, dinheiro e signos, instrumentalizam-se a partir do corpo desprogramado para, posteriormente, retornar ao subjetivo. Por sua vez, o corpo individualizado e bloqueado parte rumo a novas exteriorizações, desta vez em direção ao templo, à praça, ao tribunal coletivos, à totalidade das profissões, rumo, enfim, à liberdade que condensa e retoma o circuito. [SERRES, 2005, p 89]

Num sentido geral, o corpo seria então, este lugar de provocação, de tensão que faz

emergir conceitos brancos, por ser, justamente mais um dentre eles. Para além de

qualquer possibilidade de determinação, a desdiferenciação.

Por outro lado, Serres nos faz pensar que, este limiar, este limite de

desdiferenciação não se encontra como que “disponível”, acessível à manipulação. Não

se trata de pensar a metafísica como possibilidade, mas, como limite:

O que é a metafísica? Ela descreve os limiares mínimos inferiores de nossas desespecializações corporais ou exteriorizadas. Os limiares de

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brancura, abstração e simbolização, os limites inferiores sob os quais não podemos imergir sem morrer. [SERRES, 2005, p. 91]

Neste sentido, a metafísica não está além do corpo, mas, está em seu limite inferior, em

sua possibilidade de desfazer-se. Não há, em última instância, uma metafísica do corpo

– nem mesmo da alma, mas, um limiar de desdiferenciação que, ao ser ultrapassado, faz

esvaecer o corpo – e a alma.

O corpo desdiferenciado é aquele que se torna capaz de se relacionar com o

mundo sem que haja determinações prévias, sem que se acredite em uma única

potência. Desdiferenciar-se é ser capaz de mudar constantemente, de produzir novas

relações, de ultrapassar suas limitações. A potência do corpo, por ser branca, estimula-

nos a sair do lugar, a variar, a inventar novas possibilidades de existência. “Alma. A

alma traduz o latim anima, que, por seu turno, traduz o grego anemos, que quer dizer

vento. A alma errante vem de onde vem o vento. (...) Zero dos sentidos, portador de

todos eles.” [SERRES, 2004, p. 174] O corpo branco tem uma potência ilimitada de

aprendizagem, varia de acordo com suas relações e surpreende-se com seus encontros.

Os ginastas educam sua alma para se moverem em torno dela ou se enrolarem em torno dela. Os atletas não têm alma. Eles correm ou lançam; mas os saltadores têm uma que atiram por cima da barra ou para além dela; enroscam mansamente seus corpos em torno do lugar em que a atiram. A diferença entre o atletismo e a ginástica, fora os saltos, tem a ver com a prática da alma. A barra fixa, o salto mortal, as argolas, o exercício no solo, o trampolim, os mergulhos valem por exercícios de metafísica experimental (...). [SERRES, 2001 p. 15]

O aprendizado, antes de ser uma formatação, é uma desdiferenciação, mesmo que a

formatação a suceda. Desta forma, falaremos um pouco mais sobre este aprendizado do

corpo, como podemos pensar a potência como diferenciação, nas formas de aprendizado

do corpo.

3.2 – O aprendizado do corpo: repetição, imitação e transformação

Serres, em seu livro O Terceiro Instruído, nos convida a pensar a questão da

aprendizagem a partir das seguintes palavras:

Partir exige um dilaceramento que arranca uma parte do corpo à parte que permanece ligada à margem de nascimento, à proximidade de parentesco, à casa e aos costumes próprios do meio, à cultura da língua e à rigidez dos hábitos. Quem não se mexe não aprende nada. Sim, parte, divide-te em partes. (...) Parte e então tudo começa, pelo menos a tua explosão em mundos à parte. E tudo começa por esse nada. [SERRES, 1993, p. 23]

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Esta provocação do autor nos incita a pensar sobre o que estamos denominando aqui de

aprendizado do corpo. Mas o que significa exatamente partir? Cremos que o

afastamento do equilíbrio é uma boa resposta a tal pergunta, pois, se a morte é a

estagnação, a vida se caracteriza justamente por afastar-se desta estagnação.

Misteriosa e frequentemente, o corpo pode destruir os efeitos dessas leis da estática. Ao exercer seu papel fora do equilíbrio, ao afrontar seus limites ele consegue estabelecer na instabilidade uma outra estabilidade de nível mais complexo. [SERRES, 2004, p. 47]

Por outro lado, podemos ainda pensar que o corpo extrapola seus limites através do

treinamento, pois “O treinamento, que permite ao coração agüentar uma maratona ou

formar os músculos que suportam alteres muito pesados, negocia com as possibilidades

até às fronteiras da morte; os acidentes e enfermidades atuam da mesma maneira”21.

[SERRES, 2004, p. 40]

Não se trata aqui, apenas de dizer que estabelecemos novas normas, mas, de dar

um passo além: sermos capazes de nos inventar. Como a citação acima nos mostra, o

corpo só consegue ultrapassar seus limites na medida em que repete. A repetição do

corpo não é igual, não é a mesma, a cada repetição, são inventadas novas maneiras de

ultrapassar de se superar, de fazer diferente, de “educar” o corpo a mudar. Se o livro

supracitado foi dedicado aos professores de educação física, não é como uma ironia que

devemos ler esta dedicatória, mas, como provocação, pois “os exigentes exercícios

corporais são um ótimo início para um programa de filosofia básica: na alta montanha,

qualquer hesitação, rotas equivocadas, mentiras ou má-fé equivalem à morte”. [Idem, p.

12] O aprendizado do corpo não permite enganos, da mesma maneira, ninguém se torna

um exímio dançarino sem treino, sem pôr o corpo à prova, sem trabalho duro de

repetição.

Nada resiste ao treinamento, de cujos gestos repetitivos a disciplina tira a naturalidade (...) e torna espontâneas as necessárias virtudes de concentração (...), coragem (...), paciência, domínio da angústia na montanha, por exemplo; não existe trabalho sem regras quase monásticas de emprego do tempo, algo que o desportista de alto nível conhece bem: uma vida subordinada aos ritmos do corpo, à observância rigorosa do sono e alimentação sadia. [Idem, p. 35]

21 Nesta questão Serres se aproxima de Canguilhem, quando este nos diz que a doença é, de alguma maneira, uma possibilidade para o corpo instituir novas regras de funcionamento. Como exemplo, podemos pensar que determinadas doenças fortificam o corpo na medida em que criam defesas para que esta mesma doença não possa se instaurar mais uma vez.

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É nesta dupla recomendação: dividir-se, diferenciar-se e produzir o hábito no

corpo que entendemos o aprendizado que advém deste corpo.

Nossa evolução e, talvez, a evolução de toda a vida consistem nessa dureza amedrontadora, tímida e temerária: não ficar na própria casa em repouso, sair em direção ao mundo das coisas, desalojar-se? Nascer implica expor o frágil ao rigor, o morno ao gelado, o flexível ao rígido, o terno à violência; isto é conhecer. [Idem, p. 24]

Não se trata de pensar nem a divisão e nem a repetição como subtração, como limitação

da potência, mas, ao contrário. Se podemos afirmar que a abstração parte do corpo,

podemos também dizer que o afastamento do corpo que a abstração permite, também

nos faz acreditar numa forma de aprendizagem que leva em consideração apenas a

repetição vazia de palavras. Como pudemos perceber, o aprendizado do corpo não

permite erros, enganações – não se pode dançar, correr, jogar futebol (pelo menos por

um tempo considerável) sem treino, nem mesmo escrever. Escrever também exige um

exercício do corpo, exige que se mantenha em treinamento.

(...) o trabalho do verdadeiro escritor exige a totalidade do corpo e um engajamento único, singular e solitário. (...) Específico, particular e original, o corpo todos inventa; a cabeça adora repetir. A cabeça é ingênua. O corpo é genial. Não sei porque não aprendi mais cedo sua força criadora, por que não compreendi, quando mais jovem, que somente o corpo glorioso poderia ser real. [Idem, p. 17]

Há uma diferença fundamental, como podemos perceber, entre a repetição do

corpo e a repetição que Serres escreve aqui. A repetição do corpo gera uma

transformação do corpo, na medida em que, a cada repetição, como dissemos

anteriormente, é alcançado um outro patamar, o corpo ao repetir, inventa. Isto significa

dizer que o corpo tem maneiras próprias de se diferenciar, de inventar novas formas de

relação com o mundo.

2.2.1 – A imitação: uma forma particular de repetição

Vale esclarecer que a imitação que estamos evocando aqui é de um tipo

particular: o mimetismo. O mimetismo é uma maneira de repetição do corpo que faz

com que este corpo atue de uma maneira diferente no mundo e assim, supere seus

próprios limites. A imitação não faz com que o corpo repita aquilo que ele imita, mas,

faz com que o corpo teste seus próprios limites ao encontrar o que é diferente de si

mesmo. O aprendizado do corpo, por mimetismo, nos permite potencializar este corpo

na medida em que apresenta a ele novas possibilidades de encontro, de ser afetado. Nas

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palavras de Serres: “(...) não existe nada no conhecimento que não tenha estado

primeiro no corpo inteiro, cujas metamorfoses gestuais, posturas móveis e a própria

evolução imitam tudo aquilo que o rodeia. Nosso saber origina-se do saber de outros

que o aprendem a partir do nosso.” [Idem, p. 68]

Mais uma vez, nos remeteremos à Platão para compreender que, sua maneira de

pensar o mimetismo também está vinculada às questões que colocamos acima. O

mimetismo, para Platão, apresenta-se como cópia, o que podemos perceber em seu

diálogo Górgias, quando Platão compara a medicina e a ginástica à saúde do corpo

[464b]. Por outro lado, a culinária não seria uma arte [techné], porque não teria a

qualidade de gerar a saúde, como a medicina, a culinária ludibria os insensatos pelo

prazer e não pela saúde [464c]22. Esta diferenciação marca a importância do

conhecimento, mais uma vez, para que possamos nos diferenciar dos outros animais,

pois, o médico, por excelência, é aquele que sabe reconhecer o corpo saudável. Além

disso, nos mostra que há algo que diz respeito à verdade, que conhece o que é melhor e

o que é pior, e há algo que diz respeito apenas ao prazer, isto é um simulacro,

enganação, cópia, feita apenas para enganar, iludir, ludibriar.

Sobre tal possibilidade, encontramos no texto Mimesis e sofística: de poikilos a

metis de Maria Cristina Franco Ferraz considerações importantes para pensarmos no

lugar da mimesis no pensamento de Platão. Em sua análise, um dos motivos principais

para que Platão coloque a mimesis num lugar de inferioridade é que esta traz o engano

das cores que a pintura apresenta, por exemplo. As cores, apresentadas principalmente

na pintura são enganosas porque nos dão a impressão de uma realidade que é pura

aparência: “Poikilos remete a tudo que é multicor e heteróclito, ou seja, para Platão, não

apenas a mistura de cores, mas a própria cor, enquanto produto de misturas.” [FERRAZ,

1996, p. 52] Platão estabelece uma “hierarquia da realidade” na medida em que nos diz

que só há realidade nas Idéias, que são alcançáveis pela alma racional, e que os objetos

sensíveis são apenas cópias desta realidade. A pintura, nesta hierarquia é de um grau

inferior a este da realidade sensível, pois é apenas a cópia da cópia. Assim as cores

possibilitam ao pintor uma imitação, uma cópia que não serve a outro fim senão o de

enganar. Esta imitação diz respeito a uma forma de imitação que leva em consideração 22 Mais uma vez vemos aqui o prazer sendo apartado do conhecimento, marcando a diferença entre aquilo que apetece o corpo e aquilo que realmente alimenta a alma.

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apenas o aprendizado que ocorre no nível do pensamento. O aprendizado do corpo pela

mimese não é levado em consideração.

Há um sentido de imitação que não se restringe a esta leitura de que a imitação é

uma simples cópia, mas, uma forma de metamorfosear o corpo. Paul Woodruff em seu

artigo Aristotle on Mimeses defende que “mimeses aristotélica não é o mesmo que

imitação, ficção, reprodução, representação ou simulação...” (WOODRUFF, 1992 p. 89

– tradução nossa), portanto, ele nos traz um sentido de mimese que pode não apenas

lançar luz sobre seu sentido em Aristóteles, mas ainda, nos trazer uma possibilidade de

entendimento que enriqueça nossa visão contemporânea acerca do que estamos tentando

mostrar aqui: que a imitação não se apresenta apenas como cópia, como modo inferior

de relação com o mundo no qual a mentira substitui a verdade. Serres nos ajuda aqui ao

nos dizer:

Receber, emitir, conservar, transmitir: estes são, todos, atos especializados do corpo. Em seguida, a imitação engendra a reprodução, a representação e a experiência virtual, termos consagrados pelas ciências, pelas artes e pelas técnicas de simulação por computador. Os novos suportes de memorização e de transporte de signos, como as tábuas de cera, o pergaminho ou a imprensa, fizeram com que esquecêssemos a prioridade do corpo nessas funções; as culturas sem escrita ainda os conhecem. [SERRES, 2004, p. 69]

Trata-se de pensar a mimese como potência, como forma de organização

diferenciada do corpo, o que desloca muito a idéia de imitação tal como ela é proposta

por Platão. É sabido que Aristóteles insiste em reconhecer um conhecimento que

advenha das coisas, que seja imanente às coisas. É sabido também que este teve forte

influência da tradição médica de sua família, o que o fez reconhecer a importância desta

prática para o conhecimento. É desta maneira que nós nos remetemos a ele, como

alguém que conhece a importância do corpo – mesmo que isso não seja tão evidente na

totalidade de sua obra. A visão de Aristóteles sobre o corpo não é apenas esta que

apresentaremos aqui, porém a própria maneira como este autor estabelece o caminho

para o conhecimento, já mostra que não se trata apenas de um “uso indevido” do autor,

mas, uma maneira de potencializar seus argumentos utilizando novas “ferramentas”. Em

Serres vemos também esta relação entre Aristóteles e a mimese, na medida em que ele

nos diz: “Como diz Aristóteles, tornamo-nos os mais miméticos dentre os seres vivos.

Os mais bem-dotados para a aprendizagem. O conhecimento se inicia. Por vezes nos

esquecemos ou desobedecemos. Semeamos nossa memória com revoltas e negligências.

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A invenção inicia-se a partir desse momento.” [SERRES, 2005, p. 68] Aqui podemos

entender que, mesmo Serres percebe que a preocupação de Aristóteles com a mimese é

algo bastante relevante. Nas próximas linhas iremos traçar este caminho para esclarecer

melhor a importância da mimese não apenas para Aristóteles, mas para

compreendermos o corpo.

Aristóteles nos dá uma outra possibilidade de pensar a mimese, num primeiro

momento que nos chama a atenção, quando nos traz uma outra leitura da medicina, nos

dizendo que esta é também uma mimese, é uma imitação da natureza, na medida em que

“substitui” a natureza não para ser um simulacro desta, mas para devolver a saúde, que é

o estado “natural” do homem. Portanto, a saúde trazida pela medicina é tão boa quanto

aquela adquirida por natureza, não há diferença aqui. Como podemos perceber, o

mimetismo não é visto como cópia, mas como potência. O corpo, ao adquirir saúde

através da medicina não está “se enganando”, mas, buscando a mesma finalidade por

outros meios. A medicina imita a natureza não para ser seu simulacro, mas para atingir

o mesmo fim, a mesma finalidade da natureza. Por outro lado, Aristóteles dá uma

função à mimese para além deste exemplo dado pela medicina, há um uso da imitação

que é, ao mesmo tempo, didático. A mimese serve, na Poética de Aristóteles, para um

fim educativo: fazer com que os cidadãos atenienses aprendam o que é a virtude através

da encenação. A palavra usada é a mesma: “esta relação entre techné e natureza ele

[Aristóteles] descreve como mimeses” (WOODRUFF, 1992, p. 78). Neste sentido, a

medicina é mimética não porque engana a natureza ou o corpo, mas, porque ajuda a

natureza a atingir seu próprio fim. Através de procedimentos diferentes – medicina e

natureza – alcançamos o mesmo fim: a saúde.

(...) techné completa a natureza por realizar através da mimeses o que a natureza foi inábil para concluir. Natureza significa para nós ser saudável, por exemplo, mas nem sempre isso acontece; a medicina pode intervir para realizar o efeito ao qual a natureza tem se dirigido. Medicina e natureza, nesta explicação, são semelhantes de duas formas: elas produzem o mesmo fim, e elas fazem então do mesmo modo, por subordinar cada coisa ao fim ao qual eles se dirigem. Mimeses aqui não tem nada a ver com imitação ou representação: ela produz saúde mais do que um simulacro de saúde. (Idem, p. 78 – grifo nosso)

Ao nos trazer a possibilidade de pensar a mimese em Aristóteles como algo bem

distinto do sentido que Platão dá a este termo, Woodruff defende que, para Aristóteles,

este termo não apresenta nem uma conotação pejorativa, nem é um sentido relacionado

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ao que fala Platão sobre ele. Para o autor, Aristóteles não segue o mesmo sentido dado

por Platão não porque queira contrapô-lo, mas, simplesmente porque segue um sentido

mais popular do termo. As preocupações de Aristóteles, em relação à mimese são

distintas das de Platão. Além disso, se para Platão a mimese deve ter necessariamente

um objeto ao qual deve imitar, para Aristóteles pode não haver este objeto: “Isso segue

que o objeto da mimese poética pode ser inteiramente fabricado pelo poeta. O objeto da

mimeses pode ser uma ficção.” (Idem, p. 81) No caso de Platão tal possibilidade não se

apresenta pois: “Aqui Aristóteles diverge consideravelmente de Platão, que trata a

mimeses conseqüentemente como tendo objetos que não são nem reais – no caso da

poesia e da pintura – e têm como objetos coisas que são elas mesmas mimemata de

coisas reais.” (Idem, p. 81) Enquanto Platão se preocupa com a formação dos jovens e

com os prejuízos que o engano podem gerar nesta formação, Aristóteles busca outros

caminhos para entender os efeitos da mimese, principalmente na tragédia, para seus

expectadores. Desta forma, o autor defende uma relação estreita entre a questão da

mimese na Poética e a questão das afecções na Retórica.

Sob tal perspectiva, a mimese possui um papel bastante distinto daquele que

seria simplesmente “iludir” os espectadores. Ao contrário, o papel da mimese é

fundamental, como dissemos, para entendermos os efeitos da tragédia em seus

espectadores, pois esta tem o poder de suscitar nossas afecções através da mimese. Em

outras palavras, é a mimese que se torna responsável pela possibilidade de gerar as

afecções. Serres também acredita que esta é uma maneira de aprendizado importante,

pois ele nos diz:

Como aprender as emoções e os estados mentais a não ser por reconhecê-los nos outros? Como reconhecê-los sem experimentá-los? Como experimentá-los sem imitá-los? Como aprendê-los sem imitá-los, como imitá-los sem aprendê-los? A repetição deste círculo cresce e nos faz crescer. [SERRES, 2004, p. 70]

Neste sentido, o problema de pensar o “engano” provocado pela mimese não se

reduz à simples idéia de “dizer mentiras”, ou, de dizer coisas que não são

“profundamente conhecidas” pelos poetas, já que estes não são, no sentido estrito, os

conhecedores da natureza humana. Não se trata disso, a questão, em certa medida, vai

além da verdade ou mentira ditas na poesia, pois, o que importa é o efeito desta naqueles

que assistem uma encenação. A pergunta, portanto, é a seguinte: Como a encenação de

fatos e características particulares pode suscitar sentimentos que dizem respeito à

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universalidade do homem, e, desta maneira, são fundamentais para a formação do

caráter? Este é o ponto fundamental da mimese em Aristóteles, pois, é através deste

“engano” que é possível ser afetado pela poesia em geral, e pela tragédia, em particular.

Neste sentido, tal “engano” ocupa um lugar de destaque, pois, sem a “ilusão” que a

poesia suscita em seus espectadores ela não teria a capacidade de afetá-los. As afecções

são aqui, a forma de ensino utilizada pelos tragediógrafos, pois, só é possível “ensinar a

sentir” pela repetição destes sentimentos, por um jogo de espelhos no qual me

reconheço no outro e sou reconhecido por este23.

Podemos pensar que para a formação do povo grego é essencial o ensino da

virtude, e cabe também ao tragediógrafo ensinar as características virtuosas. Mas, se a

tragédia não visa apenas informar, apontar, mostrar atitudes virtuosas, deve haver um

meio de se fazer com que as ações virtuosas afetem aqueles que assistem uma

encenação, no mesmo sentido em que a medicina produz saúde através da mimese,

como dissemos mais acima. É neste ponto que a mimese torna-se imprescindível, pois, a

imitação operada no palco não é uma pura repetição de gestos, mas, uma forma de

produção de sensações, de afecções aos quais a platéia se vê “ligada”. A mistura entre

fatos que poderiam acontecer no cotidiano de cada um daqueles espectadores,

misturados com fatos extremamente impactantes geram no espectador uma identificação

que os faz sentir-se como atuante da cena representada.

Há, portanto, um benefício na mimese, dado que seu objetivo não é

simplesmente fazer com que a platéia acredite no que está vendo, mas, que, de alguma

maneira, a própria realidade esteja misturada com determinadas características

“fantasiosas”. A possibilidade do que acontece em cena, acontecer a um dos

espectadores o fazem compartilhar deste mesmo pathos. Para sentir piedade ou medo do

que acontece em cena, sabemos que não é preciso acreditar no que está acontecendo no

palco – o que ocorre é apenas uma encenação. Por outro lado, não ficamos totalmente

indiferentes aos fatos ocorridos em cena, portanto, nossas emoções são suscitadas,

23 Sobre esta questão, encontramos a seguinte passagem no texto de Serres: “Certamente os gestos das bailarinas, os movimentos dos ginastas e as profissões práticas são aprendidas, mas seria mais adequado dizer que os esportes e habilidades manuais, o face a face da mãe com o bebê, em que a filha ou o filho ensinam tanto ao adulto quando este à criança, o mano a mano dos guerreiros, o vis-à-vis entre os professor e os alunos, entre o patrão e os empregados, a comunicação recíproca dos amantes são adquiridos por meio da dança e do espelho. Por isso, toda sociedade constitui um pas-de-deux. Nada mais eficaz para a aprendizagem do que o face a face do teatro.” [SERRES, 2004, p. 71]

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podemos sentir terror, ódio, piedade. Ao sentir tais coisas, estamos atualizando nossas

emoções, somos levados a repetir ou temer certas atitudes não necessariamente porque

elas são possíveis, mas justamente porque elas convencem24. A mimese aparece

exatamente neste lugar que torna a atualização das idéias em fatos convincentes, e, desta

forma, em coisas que nos afetam, seres empíricos.

Aparentemente nós devemos acreditar que um mal tem e não tem tomado lugar. O poeta deve fazer-nos responder aos eventos representados no palco como se eles estivessem acontecendo agora, tanto que evocam medo e piedade, é como se eles, [ao mesmo tempo], não estivessem acontecendo, tanto que causa mais prazer do que dor. [Idem, p.86]

Para o autor, este relação entre realidade e ficção é o que faz da mimese um engano

necessário, pois, sem ela este jogo de cena, que causa nossas emoções, não seria

possível. Para chamar mais ainda nossa atenção para este fato o autor afirma que

Esta é a possibilidade que Aristóteles sugere na Poética 9, que um escritor pode nos dizer uma verdade universal sobre o comportamento humano e, em fazer isso, produz um mimema de uma ação que é ao mesmo tempo ficcional e particular. [Idem, p. 86]

A partir do que foi dito acima, podemos compreender que a palavra mimese

expressa muito mais uma forma de potencialização daquilo que é imitado do que

propriamente uma cópia. Neste sentido, o que deve ser “imitado” são apenas partes que

identifiquem, em certo sentido, a forma do objeto. Sob tal perspectiva, podemos

entender porque Aristóteles não dá tanta importância à questão da imitação na mimese,

pois, para que algo seja mimemata de outra coisa não precisa copiá-la, mas exercer a

mesma função. Não se trata de pensar o mimetismo como cópia, mas, como uma forma

de alcançar novas maneiras de produção que são capacitadas pela imitação.

A imitação serve para tornar algo semelhante àquilo que é imitado, mas que não

é necessariamente a mesma coisa. Em outras palavras, a mimese exerce a função de

“ensinar sem risco”. Como exemplo, podemos dizer que a possibilidade de aprender

algo pelas afecções que são trazidas pela tragédia exerce um papel fundamental da

formação do homem grego sem necessariamente confundir os atores, os personagens

com os espectadores, como nas situações apresentadas na tragédia. Como conseqüência,

podemos vislumbrar com mais clareza porque Aristóteles entende a importância do

24 Neste sentido, Aristóteles é bem claro na Poética 25: “(...), podemos preferir o que é convincente mas impossível do que o que não convence mais é possível.” (1460a13)

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engano na representação trágica, pois, sem tal engano, os efeitos desejados

simplesmente não acontecem. Para esclarecermos melhor o que significa tais palavras

devemos acrescentar que

Se a pintura chama nossa atenção cognitiva para o que é universal num caso geral, a tragédia convoca nossas emoções em nome do particular que é tramado para representar um modelo geral. A mimeses trágica não deve desviar nossas emoções, mas o poder cognitivo que normalmente nos mantém sob controle, tanto que nós poderemos orientar a experiência emocional em nome de caracteres e eventos que nossas mentes dispensariam como irreais. [Idem, p. 83]

Mas, retornemos à nossa questão principal: como podemos entender a mimese

no pensamento aristotélico e como podemos tirar conseqüências contemporâneas deste

entendimento. Se não são quaisquer características que são visadas na produção de um

mimema, então podemos afirmar que o efeito produzido pelo mimema deve ser, em

certo sentido, o mesmo que o próprio objeto produziria. Desta forma, “a mimeses rompe

a ordem natural de causa e efeito. Isto é o que é maravilhoso e excitante, e é o que nos

ocasiona um modo seguro de aprender fatos sobre leões – através da pintura – e um

modo prazeroso de desenvolver hábitos corajosos na mente – através da música ou da

dança” [Idem, p. 92]. Pois se a mimese é ao mesmo tempo algo que possui

características específicas dos objetos – por isso surte efeito – e não se confunde com

ele, pode ser mais útil e, muitas vezes mais necessário, que aprendamos com a mimese e

não com o objeto mesmo.

Podemos explicar um pouco melhor a afirmação acima dizendo, de uma maneira

muito simples, é melhor aprender algo sobre leões através do desenho de algum artista,

do que convivendo com os próprios leões. Vale frisar que uma coisa não invalida a

outra e que, em nossos tempos, criamos dispositivos muito eficazes para nos aproximar

de maneira segura de animais selvagens. Mas, o que nos interessa é que a simulação

proporcionada pela mimese pode nos ser muito mais útil do que a experiência real.

Desde que esta ficção possua características importantes, tais como produzir efeitos

benéficos, aprendizados efetivos. No exemplo da tragédia a questão é a seguinte:

mesmo que esta seja absolutamente fictícia, que não se valha de absolutamente nenhum

fato real, não importa, o que importa é que a tragédia convença, o que significa dizer

que ela atingiu seu objetivo, ela suscitou os sentimentos desejados. “A ficção inventa,

mas a mimeses permite que estas invenções tenham efeitos que são normalmente

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reservados a experiências atuais” [Idem, p. 92]. Neste sentido, uma boa tragédia é

aquela que produz afecções tão reais que os sujeitos que a assistem são tomados por

sentimentos que só o afetariam se eles estivessem realmente vivendo aquelas situações.

O papel da mimese é exatamente este: produz o mesmo efeito que uma experiência

empírica produziria, neste caso, de ser uma mimese daquilo que, em outro caso, seria a

experiência efetiva da dor, ou da piedade.

Segundo tais afirmações podemos tirar conseqüências bastante interessantes e

relevantes sobre esta questão da mimese para os dias atuais. Há uma possibilidade que o

autor nos indica acerca do entendimento desta palavra que nos abre um amplo caminho

para pensar a questão da aprendizagem através daquilo que hoje entendemos como

simulação e que, nos parece, tem uma íntima relação com a idéia trazida no texto de

“engano funcional”25. Para explicitar tal conceito o autor nos dá o exemplo da relação

entre ouvir uma música heróica e, a partir desta escuta, desenvolver atitudes e

características heróicas:

Melodia e ritmo são movimentos, e então são ações; os dois tipos de movimento, quando percebidos, organizam movimentos correspondentes na mente do público. Até aqui isso parece explicar somente a aparência da música para a ação. Quando o caráter vem? Ações são ao mesmo tempo indicadores e formadores do caráter: a música que corresponde um determinado tipo de caráter simula este caráter no ouvinte organizando movimentos apropriados em sua alma. Ouvindo músicas heróicas eu sinto ritmos heróicos pulsando através de minha alma e estes são justamente os movimentos que eu poderia sentir se eu fosse um herói engajado em uma ação heróica e essas são as ações as quais, se eu tivesse um caráter heróico, eu poderia vir a me acostumar. [Idem, p. 93]

Desta forma, a mimese tem um papel fundamental da formação do caráter dos jovens

gregos. Ela sai do “limbo” conceitual no qual só podemos pensá-la como engano, erro

ou cópia para adquirir uma positividade que nos remete à importância deste “engano”

na formação do caráter, e, conseqüentemente, no desenvolvimento de atitudes virtuosas.

Pensar este “engano funcional” como parte fundamental da formação do jovem

grego é bastante interessante, pois, em certa medida, os meios para adquirir

determinadas atitudes virtuosas não são mais tão importantes, desde de que atinja este 25 Como é bastante frisado pelo autor, não estamos buscando uma correspondência entre o termo mimeses e o significado que a palavra simulação adquiriu no mundo contemporâneo, o que estamos propondo é um enriquecimento da questão da simulação a partir de uma leitura da mimeses em Aristóteles, o que, em sentido estrito, não fere nem seu significado “original”, nem deturpa, ou torce o sentido de mimeses para “caber” nele a idéia de simulação no mundo contemporâneo.

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objetivo. Em outras palavras, podemos pensar que um dos objetivos de se tornar um

“bom grego” é ser corajoso, então não importa se este jovem irá adquirir tal

característica através de atitudes propriamente heróicas ou através da escuta de músicas

que possuem um ritmo heróico, pois, o fim atingido será o mesmo. Há, nesta concepção,

as mesmas justificativas das que ocorrem na relação entre natureza e medicina: o que

importa é tornar o homem mais próximo de sua finalidade, ou seja, ser saudável, sem

importar o meio para adquirir tal saúde. Por conseguinte, podemos pensar que não é

necessário estar o tempo todo em guerra para que aprendamos a ser guerreiros, existem

outros meios de ensinar o jovem a ser corajoso sem submetê-lo a situações de perigo.

A partir das considerações feitas acima, podemos tirar algumas conseqüências

importantes para o nosso mundo contemporâneo: 1o. que a mimeses é uma forma

legítima de aprendizagem, que não é inferior absolutamente à idéia imitada, dado que

ela não é uma simples imitação, pois, o que é imitado é a própria forma, e, portanto,

alcança o mesmo fim; 2o. não há um privilégio anteriormente estabelecido entre a

mimese e seu referente, pois, atos corajosos são sempre desejáveis, seja através da

guerra, seja através das músicas que despertam em mim atitudes corajosas.

Podemos perceber, por conseguinte, que o que estamos denominando aqui de

“engano funcional” pode ser apropriado para que possamos compreender melhor o

aprendizado pela imitação ao qual se refere Serres. Mesmo que a questão da mimese se

relacione principalmente com a questão da tragédia, e com o ensino da virtude para o

povo grego, podemos perceber que esta forma de aprendizagem está muito mais ligada

ao corpo do que propriamente ao pensamento como simples abstração desencarnada. As

afecções estão ligadas ao corpo como um todo, são aquilo que possibilita os efeitos das

artes em geral e da tragédia em particular. Tais efeitos só podem ser vistos como forma

do corpo se relacionar ao mundo, porém esta forma descrita acima encontra seus limites

no mimetismo que ocorre com os homens entre si. Porém, Serres nos incita a pensar

uma outra forma de mimetismo que ele denomina de homotetia: “Assim nasceu a

homotetia, homômima do mimetismo quando este se volta em direção às coisas.”

[SERRES, 2004, p. 84] É a esta homotetia que nos referimos ao falar da comparação

entre Tales e a pirâmide. A mesma idéia de que a mimese deve ser pensada como

“engano funcional”, serve para pensar o que denominamos aqui de homotetia, pois, esta

é uma forma do corpo se relacionar ao mundo que sempre faz com que o corpo se

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diferencie de si mesmo, que se afaste do seu equilíbrio. “Ao imitar aos outros, nós os

amamos e os odiamos; desde a aurora grega, imitamos também as coisas e, com isto,

devemos concluir que as consagramos e as destruímos.” [Idem, p. 95]

Por outro lado, a homotetia amplia as potências do corpo num sentido diferente,

na medida em que apresenta a este, novas formas de relação com as coisas e com o

mundo. Não se trata aqui de pensar a pura imitação de gestos ou de posições corporais,

mas, de metamorfoses do corpo.

Com efeito, estas são as seqüências do mistério do corpo: eu não posso; exercito-me e posso fazê-lo; não sei; exercito-me e passo a saber; não compreendo; exercito-me e passo a compreender. [SERRES, 2003, p. 42]

O corpo se metamorfoseia em diversas formas, como o próprio nome já indica, neste

sentido, um aprendizado do corpo se apresenta na medida em que busca novas

possibilidades de relação com as coisas e com os outros através de uma prática corporal

que faz com que o corpo adquira uma determinada habilidade que antes não possuía. A

elasticidade do corpo proporciona mutações que se desdobram em formas potenciais de

existência. A questão não é o engano, mas, a transformação.

Porém, Serres acredita que, para se executar esta transformação é necessário

partir, que significa deslocar-se, sair do lugar ao qual ocupamos atualmente, fazer com

que o corpo aprenda novas formas e posicionamentos pelo exercício. Não se trata

apenas de memória, mas de invenção, pois a memória do corpo opera pelo

esquecimento, aprendemos quando esquecemos, quando o que adquirimos se torna

inconsciente no corpo. A invenção ocorre quando há o transbordamento daquilo que foi

imitado para que o corpo se metamorfoseie de tantas maneiras que já não seja ele

mesmo, que ocupe um outro lugar pela flexibilidade que permite:

Uma flexibilidade fundamental (...). Essa leveza inaugura e condiciona o conhecimento, pois nos conduz do rígido ao flexível. Essa flexibilidade funciona como uma fornalha que permite que nos moldemos a qualquer forma. [Idem, p. 87]

Permitir-se partir, portanto, é abrir mão dos pertencimentos em nome das misturas, da

flexibilidade. Desta forma, seremos capazes de inventar novas relações, produzir

deslocamentos e criar possibilidades.

Se a imitação inicia o conhecimento, este, em compensação, irrompe sobre o corpo, torna-o mais flexível e reanima-o para dançar um pas-de-deux com a inteligência. Se for verdadeira e intensa, qualquer meditação funciona como tratamento: o pensamento propicia a saúde,

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a pesquisa traz o bem-estar saudável, a beleza envolve a invenção com sua auréola de luz generosa e calmante, da mesma forma que a ausência de idéias pode tornar qualquer um feio, áspero, ciumento, sofredor e velho. [Idem, p. 101]

2.3 – As potências do corpo: suas conexões heterogêneas

Para Serres, apenas o corpo pode se reinventar enquanto que a simples repetição,

a reprodução do mesmo, fica por conta do pensamento. No livro Ramos, ele inicia o

livro escrevendo sobre este “Formato-pai”, ao qual nos submetemos, ao qual nos

“formatamos” para poder existir. A imitação teria, então, este primeiro papel: de

repetição. Porém, a invenção que se segue não pode abrir mão desta “imitação”, na

medida em que, é a partir desta imitação, que podemos inventar. Mas, a invenção não

advém do pensamento, e sim, da superação do corpo. Neste sentido, o corpo é capaz de

se misturar às coisas para que se torne, cada vez mais, si mesmo. Este movimento de

exteriorização do corpo, Serres denomina de exodarwinismo.

É importante que possamos nos referir a tal exodarwinismo como uma forma de

transformação do corpo, possível a partir do que se denomina de neotenia, como já

dissemos anteriormente. Porém, é importante que possamos nos aprofundar um pouco

mais nas questões trazidas por este importante conceito para que possamos compreender

a relação que Serres estabelece entre o corpo e sua exteriorização, representada pelo que

estamos denominando aqui de exodarwinismo.

A neotenia seria, nas palavras de Stephen Jay Gould: “um abrandamento

acentuado das taxas de desenvolvimento”. [GOULD, 1989, p.94] Este abrandamento faz

com que os seres humanos, de alguma maneira, nunca se desenvolvam “até o fim”. O

que significa dizer que os humanos não apresentam uma “formatação” final a qual estão

submetidos os outros animais. Em outras palavras, os humanos multiplicam suas

potências por não finalizar nenhuma delas. O próprio tempo de maturação do bebê

ocorre, também, fora do corpo da mãe, o que possibilita este bebê a aprender muito mais

coisas, a se diversificar de maneira muito maior do que os outros filhotes. Não

aprendemos comportamentos estereotipados, mas, criamos relações múltiplas. Este

conceito, em biologia, nos dá a exata dimensão do que queremos dizer aqui: que

somente nós, humanos, somos capazes de nos metamorfosear. Nós imitamos outros

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homens, os animais e as coisas. Ao fazer nosso corpo tornar-se pedra, bicho ou planta,

estamos exercitando nossa capacidade de pensar pela invenção e não pela repetição.

Histórias nas quais todos os seres vivos se comunicam, as fábulas ensinam coisas profundas. La Fontaine começa seu último livro com “Os companheiros de Ulisses”; metamorfoseados em animais, eles não querem mais voltara ser humanos, admitindo com isto que encontraram, finalmente, seu ponto de equilíbrio definitivo, seu verdadeiro caráter, sua paixão fundamental. Eis como e por que os homens podem transformar-se em animais, por que seu próprio corpo imita uma espécie e as fábulas escrevem sobre eles. (...) por meio de uma deliciosa cinestesia, essa adaptabilidade quase infinita os [crianças] faz compreender interiormente as operações da varinha mágica, menos ilusórias do que virtuais, menos inspiradas pela magia do que por uma pedagogia do possível. [SERRES, 2004, p. 52/53]

Nossos corpos são determinados para que sejam produzidas diferenças. Não

obedecemos aos nossos instintos não porque somos condicionados à cultura, mas,

porque nosso desejo é branco, como a alma26, é puro transbordamento.

Nossa espécie sai, esse é seu destino indefinido, seu fim sem finalidades, seu projeto sem objetivo, sua viagem, não, sua errância, a escência de sua hominescência. Saímos de nossas produções e fazemos com que elas saiam de nós; nós produzimos e nos autoproduzimos por meio desse incessante movimento de saída. [Idem, p. 160]

Sair, buscar novas relações, desdiferenciar-se, desajolar-se. O corpo não cessa de

buscar novas relações, de experimentar. Por mais que estejamos imersos nas coisas e no

mundo, o corpo humano insiste em afastar-se daquilo que poderíamos denominar de

“meio”, na medida em que cria novos meios, se afasta da inevitabilidade. Neste sentido,

nós, humanos, nos afastamos, mesmo que lentamente, daquilo que denominamos de

“seleção natural”. O que estamos querendo mostrar é que, ao produzirmos, cada vez

mais formas de diferenciação, somos capazes de produzir nosso próprio meio. Vale

lembrar que o que estamos dizendo aqui não é que o homem esteja imerso na cultura, ao

contrário, o que estamos sugerindo aqui é que, na verdade, não há humano que não se

constitua numa íntima relação com as coisas. Em outras palavras, a fragilidade humana

só permite sua sobrevivência na medida em que “produz” um mundo de relação com as

coisas que não está, de forma alguma, dado.

26 Sobre tal questão, é importante que nos remetemos ao texto O Mal-estar na Civilização, no qual Freud imputa à cultura o papel de controle das pulsões. Porém, mesmo que acreditemos que à um acondicionamento do homem à cultura, podemos também pensar que, inversamente, é o próprio homem que produz as formatações culturais.

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A técnica como exodarwinismo

Em seu texto Sombras de Lamarck, Gould nos incita a pensar numa relação

entre Darwin e Lamarck que pode nos ajudar a compreender o que estamos tentando

dizer: que há uma diferença fundamental entre aquilo que Darwin compreende como

evolução em contraposição ao pensamento de Lamarck. A diferença fundamental

consiste em apontar um certo determinismo em Lamarck que não se apresenta em

Darwin. Em outras palavras, a seleção natural, para Darwin, não é determinada, o

indivíduo não é capaz de modificar sua própria estrutura para se adaptar ao meio, esta

adaptação é absolutamente aleatória27. Por outro lado, para Lamarck é a própria espécie

que estabelece as mudanças que serão “melhores”, adaptativamente falando. Mesmo

que esta forma de pensar seja preferencialmente aceita, na medida em que dá aos

organismos uma certa autonomia em relação à sua produção, não se trata de afirmar

uma direção privilegiada que se estabeleceria a partir de uma certa “vontade” do

organismo.

Por outro lado, Gould nos faz pensar que esta forma de compreender a evolução

ganha força na medida em que é responsável por uma explicação da vida “mais

adequada” ao nosso pensamento.

(...) a mais importante razão para o atrativo contínuo do lamarckismo, reside na sua oferta de algum conforto contra um universo desprovido de significado intrínseco para as nossas vidas. Reforça dois dos nossos mais profundos preconceitos – a crença de que o esforço deve ser recompensado e a esperança num mundo inerentemente propositado e progressivo. [GOULD, 1989, p. 71]

Desta maneira, a teoria de Lamarck apresenta um sentido da vida que é anterior, que é

prévio, que antecede à existência. É como se, desde sempre, houvesse uma orientação

da vida para que esta alcançasse a humanidade, que seria a última instância, o ponto de

chegada da evolução, seu mais alto grau.

27 Vale esclarecer este ponto com uma citação do autor: “Os darwinistas referem-se a primeira fase, a variação genética, como sendo “aleatória”. Trata-se de um termo infeliz, porque não queremos dizer aleatório no sentido matemático, de igualmente provável em todas as direções. Simplesmente, entendemos que a variação ocorre sem orientação preferida nas direções adaptativas.” [GOULD, 1989, p. 67]

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Porém, esta forma de pensar, segundo Gould, encontra sua legitimação não no

campo da biologia, como forma de explicação para a evolução das espécies, mas, como

forma de explicação de uma outra espécie de “evolução”, a evolução cultural.

A evolução cultural progrediu segundo taxas das quais os processos darwinianos sequer podem começar a aproximar-se (...) A evolução cultural humana é de caráter lamarckista, em forte oposição à nossa história biológica. O que aprendemos numa geração é transmitido diretamente pelo ensino e pela escrita. [Idem, p. 72]

Da mesma forma, Serres nos dirá: “Quando temos acesso à técnica, inventamos uma

intenção que substitui a ausência de causas finais.” [SERRES, 2005, p. 65] Assim,

podemos pensar que há uma forma de operar que, de alguma maneira, se sobrepõe à

forma darwiniana de adaptação. Mesmo que os conceitos sejam diferentes, a idéia

central é a mesma: apontar para uma forma de mudança que opera segundo padrões

diferenciados deste apresentado pelo evolucionismo tradicional. Mesmo que Gould

argumente que a força do lamarckismo esteja em nossas crenças, também podemos

dizer que isso ocorre porque nossa forma de ação no mundo segue este padrão.

As conseqüências que podemos retirar do que foi exposto acima é que, diferente

das outras espécies, nós, humanos, somos capazes de criar nosso próprio meio, além de

produzir e reproduzir novas formas de relação com este mesmo meio, que não pode

mais ser chamado desta maneira, na medida em que nos afastamos, de maneira

inexorável do acaso. “Em virtude da inadaptação, enfrentemos a morte e, por isso,

inventamos as culturas ortopédicas que, em caso de urgência, podíamos mudar à

vontade, sem esperar do banco genético uma adaptação problemática e longa que coloca

qualquer espécie em perigo de extinção.” [SERRES, 2005, p. 66] Assim, o aprendizado

cultural, que passa através da gerações, se apresenta como uma intenção e uma escolha,

diferente da evolução aleatória e indeterminada.

As reflexões feitas acima nos fazem pensar que, mesmo que a natureza aja de

maneira “lenta e arriscada” na criação de formas de relações “aleatórias”, a espécie

humana criou uma maneira de produzir relações bastante peculiar, que denominamos de

técnica. Neste sentido, há efetivamente algo que é próprio do humano: seu afastamento

da natureza, ou melhor, não há como falar, em relação aos homens, de uma natureza que

não nos remete à técnica. Não se trata de afirmar que o homem “não faz parte da

natureza”, mas de argumentar que, para o homem, não há algo que podemos chamar

estritamente de “natureza”. Latour nos fala de estudos sobre babuínos nos quais os

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comportamentos destes animais se assemelham muito aos comportamentos “sociais”

apresentados por nós. Para ele, não seria o “contrato social” que nos diferencia dos

outros animais, ao contrário, nesta comunidade de babuínos, o líder deve negociar o

tempo todo a sua posição. Esta posição de liderança é constantemente ameaçada,

constantemente negociada. Portanto, o que diferencia-nos dos babuínos não é a

“sociedade”, mas as formas de mistura, de hibridização aos quais somos capazes, nossa

inserção num coletivo sócio-técnico. Em outras palavras, são necessários muitos outros

dispositivos, que levem em consideração o arregimento de cada vez mais objetos, para

que se constitua um coletivo propriamente humano. Esta questão se aproxima do

pensamento de Serres, na medido em que podemos identificar, nesta questão trazida por

Latour, uma proposta de pensar a técnica como construção propriamente humana, que,

na verdade, nos constitui enquanto homens. Desta forma, esta reflexão trazida por

Latour, se aproxima daquilo que dissemos acima sobre o pensamento de Serres: que a

técnica produz o exodarwinismo, ao mesmo tempo em que produz o próprio sentido da

palavra “humano”.

Porém, gostaria de me aprofundar um pouco mais na questão da cultura, pois,

neste texto utilizamos tal palavra livremente. Portanto, para nos aprofundarmos nesta

questão da cultura, podemos nos remeter, mais uma vez, aos trabalhos de Latour,

principalmente seu livro Jamais Fomos Modernos. Neste livro, o autor discute

amplamente a distinção entre natureza e cultura. Latour nos fala da dupla constituição

moderna: a separação entre natureza e cultura, e a mistura incessante entre estes dois

pólos distintos. Para o autor, o que nos faz ser modernos é, ao mesmo tempo, acreditar

que natureza e cultura são coisas distintas, mas, misturar cada vez mais estes dois pólos,

este seria o paradoxo moderno:

Os modernos, ao tornarem os mistos impensáveis, ao esvaziarem, varrerem, limparem, purificarem a arena traçada no meio de suas três instâncias28, permitiram que a prática de mediação recombinasse todos os monstros possíveis sem que eles tivessem um efeito qualquer sobre a construção da sociedade, e nem mesmo contato com ela. [LATOUR, 1994, p. 47]

A questão é que os modernos acreditam no dualismo, não apenas no dualismo entre

natureza e cultura, mas, também, em todos aqueles dualismos que derivam deste,

principalmente no dualismo entre sujeito e objeto. Desta forma, acreditam que não há

28 Trata-se aqui do pólo natureza, do pólo cultura e dos híbridos de natureza e cultura, híbridos sócio-técnicos.

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possibilidade de se misturar este dois pólos, mas, ao mesmo tempo, a modernidade

produz, cada vez mais, e de forma cada vez mais “sofisticada”, híbridos de natureza e

cultura nos laboratórios. Assim, para Latour, a separação entre ciência e técnica não se

justifica na medida em que a produção da ciência sempre passa pelos laboratórios: “esta

cozinha repugnante onde os conceitos são refogados com ninharias” [LATOUR, 1994,

p. 27].

Além disso, nos mostra que, em última instância, jamais fomos modernos no

sentido estrito, porque, na verdade, as fronteiras entre natureza e cultura nunca foram

“respeitadas”. Como dissemos acima, o que é próprio do humano é, constantemente

“misturar” natureza e cultura. Nas entrevistas que cede à Latour, Serres também nos diz

que as fronteiras entre natureza e cultura, impostas pela modernidade, na verdade, são

tão artificiais quanto aquilo que é posto como “natureza”, ou seja, não é possível falar

de algo que seja estritamente “natural”, em relação aos homens. Porém, a concepção de

modernidade destes autores diverge. Para Latour, ser moderno significa acreditar na

distinção entre natureza e cultura, para Serres, ser moderno é inaugurar “um novo

pensamento”. Para ele, nada mais arcaico do que recomeçar, do que dizer que antes

deste pensamento, tudo era “antigo”. Latour nos diz:

Na minha opinião, estamos numa falsa pista, porque “moderno” para mim não quer dizer novo, modernista, modernizador. Tomava-o no sentido mais filosófico. Tornar-se moderno é fazer a revolução copernicana duas vezes, separando o passado do presente, separando absolutamente o mundo conhecido do espírito que conhece, é o sentido que Kant lhe confere no seu prefácio. Para o dizer de uma forma mais antropológica, é separar absolutamente o coletivo e o mundo, digamos, Baal e Challenger. [SERRES, 1996, p. 196/197]

Por outro lado, ao misturar o sacrifício do deus Baal e o acidente da Challenger, Serres

executa exatamente a mesma mistura a qual Latour se refere. Trata-se aqui de pensar

que, num sentido mais amplo, Serres, como Latour, “jamais foi moderno” porque não

acredita na distinção moderna. O exemplo dado aqui é bastante significativo, na medida

em que mostra que Serres, ao comparar a explosão da Challenger e o sacrifício ao deus

Baal, nos mostra que, mesmo que estes dois acontecimentos sejam tão distintos, na

verdade, se assemelham, na medida em que repensamos a distinção moderna entre

ciência e religião, por exemplo. Para Serres não importa a intenção manifesta, neste

caso específico, a colocação do objetivo para o sacrifício, mas, o fato, despido destas

intenções, mostrado como um acontecimento que acarretou conseqüências semelhantes.

Por isso Serres não respeita a distinção moderna, pois, independente das intenções,

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trata-se de sacrifício humano, na medida em que se acredita que colocar em risco vidas

humanas, serão alcançados objetivos “mais nobres”, nos dois casos.

Dizer que nós, humanos, misturamos natureza e cultura é dizer que somos

constituídos a partir desta mistura. Em relação aos homens, em última instância, vale

dizer que não há humano sem mistura, portanto, o corpo é marcado por estas relações,

por estes “aprendizados”, pelas conexões incessantes entre natureza e cultura, pela

nossa capacidade de nos misturar às coisas. Neste sentido, podemos dizer que a

evolução humana, quando se distancia da natureza e se torna propriamente um coletivo

sócio-técnico, estabelece novas regras e normas de funcionamento, mais do que isso, o

que é próprio do homem é exatamente esta mistura. Serres, em seu livro Ramos dá um

nome para isso: naturança:

Recentemente descrito, o verdadeiro conhecimento transubstancia seu objeto; tendo começado pela incorporação, ele termina quando, por meio da externalização, inventa; uma outra forma é extraída do corpo.(...) Transformador e motor de metamorfoses ele [Homo sapiens] produz meninos e meninas, pensamentos e signos, instrumentos e máquinas... novos... todos eles criados por contingência. Naturantes, mundo e homem gritam de dor e de alegria na hora do parto. [SERRES, 2008, p. 177/178]

Por outro lado, a imitação das coisas e do mundo nos dá a exata dimensão de

nossas potências, pois, pela experimentação brincamos com os limites, traçamos novas

fronteiras. A extensão do corpo, proposta pela relação que este estabelece com as coisas,

dá ao corpo uma infinidade de possibilidades. O que queremos dizer aqui é que o que

Serres denomina de exodarwinismo nada mais é do que esta possibilidade do corpo

“projetar-se”. O corpo só é capaz de diferenciar, da maneira como constatamos hoje nas

várias culturas, como dissemos anteriormente, pela desdiferenciação original.

Desprovidos de limites, desde nosso próprio começo, encotramo-nos imprevisíveis em um meio ambiente cuja singularidade nunca se adapta à nossa abertura. Não é sem razão que essa infinitude nos provoca medo. De onde viemos? De uma integral definida de bifurcações contingentes ao longo da Grande Narrativa. Quem somos nós? Inacabados. Indefinidos ou sem definição. Para onde vamos? É nessa desdiferença que uma história imprevisível e improvável se inicia. [SERRES, 2005, p. 61/62]

Não se trata propriamente de relativismo, mas, como nos diz Serres “de universalidade

da natureza corporal” [Idem, p. 62]. Isso significa dizer que é o corpo que se apresenta

sempre de forma desdiferenciada, o que possibilita suas metamorfoses.

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Além disso, é exatamente com esta palavra: exodarwinismo, que Serres nos

propõe uma forma de compreender estas diferenciações. Esta palavra, para ele, significa

uma forma de relação que o corpo estabelece com as coisas que não pode ser

determinada a priori. Neste sentido, Serres inaugura uma discussão sobre a técnica que

nos é fundamental para entender a relação entre corpo e técnica. Tal relação é discutida

como uma forma de evolução acelerada, como nos indica Gould, pois, mais do que uma

questão de herança cultural trata-se de pensar aqui em uma herança “técnica”29. Para

Serres, o exodarwinismo é uma forma de exteriorização do corpo que, ao mesmo tempo

em que o potencializa, o produz. Como não há relação prévia entre coisas e homens, o

uso da técnica e a mistura dos corpos às coisas, nos liberam de muitos dos nossos

“fardos”. A imitação das coisas, mais do que a imitação dos homens, nos liberta porque

nos faz menos previsíveis. A imitação das coisas é de um grau superior, para Serres,

pois, na medida em que imitamos as coisas, nos recriamos. Neste ponto, o aprendizado

pelas coisas se sobrepõe à imitação dos homens porque não busca a repetição

ortopédica, mas a invenção de novas posturas corporais, a liberação do corpo.

Na medida em que nos conectamos com as coisas, nossas funções se alteram, se

ampliam, se transformam. O uso habitual de nossos órgãos se alteram quando estes

ganham novas perspectivas na medida em que são liberados de suas funções comuns.

“Nosso corpo se desembaraça e se reduz; como poderia ele engajar-se em novas

aventuras se, durante o caminho evolutivo, não se desfizesse do peso das coisas que já

sabia fazer?” [SERRES, 2004, p. 112] Neste mesmo texto, Serres nos dá um nome para

isso: “aparelhar. Dispersos na natureza, nosso membros dissociados nasceram como

objetos técnicos. O instrumento não é um prolongamento, mas uma objetivação do

órgão” [SERRES, 2004, p. 113]. O corpo compreendido como potência nos possibilita

pensar que a técnica não é algo que possamos “descartar”, mas, uma forma de relação a

qual não podemos nos privar, a técnica produz novos homens, na medida em que são

29 Sobre a questão da técnica, podemos argumentar, com Paula Sibilia que,ao falar da tradição fáustica, em oposição à tradição prometeica, nos diz: “(...) a tradição fáustica esforça-se por desmascarar os argumentos prometéicos, revelando o caráter essencialmente tecnológico do conhecimento científico: haveria uma dependência, tanto conceitual quanto ontológica, da ciência com relação à técnica. Existiria um “programa tecnológico oculto” no projeto científico, como assinala Hermínio Martins, de maneira que a sua fecundidade nessa área não seria um mero subproduto da ciência – entendida como um saber que apontaria, fundamentalmente, para o conhecimento puro e abstrato – mas o seu objetivo primordial.” [SIBILIA, 2002, p. 47] A questão então se coloca de maneira diferente, pois, não há ciência que não vise à técnica, no projeto fáustico, pois o alcance da verdade ou do conhecimento não seriam a finalidade última da ciência, mas, a técnica.

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produzidas por estes. Por outro lado, as expansões do corpo causam um estranhamento

porque se apresentam como formas não determinadas, como possibilidades de

potencialização e não como formas determinadas de relação. Daí o estranhamento,

mesmo que este seja próprio do corpo:

Nossos corpos são explicados pelas máquinas que já produziram. A aprendizagem inverte essa aparelhagem. Basta observar essas rodas na parte inferior do corpo; o corpo as projetou no mundo, mas, fora dele, o destino e a evolução as ampliaram e desenvolveram tanto que o corpo não mais as reconhece como suas. [Idem, p. 113]

Esta forma de relação do corpo com as coisas é o que Serres denomina propriamente de

exodarwinismo: “esses aparelhos exteriorizados produzem uma história que denomina

evolução exodarwiniana, como se o próprio darwinismo saísse lentamente de nós, como

se a evolução percolasse em meio a esses objetos.” [Idem, p. 112]

A libertação do corpo não o elimina, como poderíamos pensar, mas, o torna mais

presente. Existem algumas leituras da técnica30 que nos permitem pensá-la como

apropriação do corpo, como forma de controle e captura do corpo. Por esta perspectiva,

o corpo seria minimizado em nome de dispositivos técnicos que o fariam “prisioneiro”,

a técnica seria um dispositivo de “esquecimento do corpo” e não de potencialização

deste. Sabemos que existem vários mecanismos de captura do corpo que operam no

sentido de enfraquecê-lo, porém, menos do que a técnica vemos, como Serres, o

enfraquecimento do corpo como algo que se opera pela sua anestesia. Esta anestesia não

é feita necessariamente pelos dispositivos técnicos, mas, por tudo aquilo que atua como

possibilidade deste esquecimento, como a linguagem, por exemplo. No livro Os Cinco

Sentidos, Serres nos diz: “Temo menos os que vivem drogados do que os que se

submetem à língua. Entregamos-nos ao dito. O inglês diz bem: addicted.” [SERRES,

2001, p. 90] Aqui a questão se desloca da técnica para o uso da linguagem, falaremos

sobre isso no próximo, porém é importante dizer que não se trata de pensar sobre o

30 Dentre os livros que mais criticam a questão da técnica como forma de apropriação do corpo é o livro Adeus ao corpo de David Le Breton. Por outro lado, Paula Sibilia inicia seu livro O Homem Pós-orgânico: corpo, subjetividade e tecnologias digitais com a seguinte epígrafe de Sterlac: “É hora de se perguntar se um corpo bípede, que respira, com visão binocular e um cérebro de 1.400 cm3 é uma forma biológica adequada. Ele não pode dar conta da quantidade, complexidade e qualidade de informações que acumulou; é intimado pela precisão, pela velocidade e pelo poder da tecnologia e está biologicamente mal equipado para se defrontar com seu novo ambiente. O corpo é uma estrutura nem muito eficiente, nem muito durável. Com freqüência ele funciona mal [...] Agora é o momento de reprojetar os humanos, torná-los mais compatíveis com suas máquinas.” Mas, se olharmos do ponto de vista de Michel Serres, o corpo sempre foi necessariamente frágil, daí sua constituição sempre depender das relações e potencializações que ele opera.

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esquecimento do corpo que a técnica produz, mas, sobre o esquecimento do corpo que a

repetição, a ortopedia, seja ela lingüística ou não, produz em nossos corpos. O corpo,

para Serres, é o que é capaz de mudar, de inventar, de criar novas relações, o que o

impede é a repetição das velhas formas e não a transformação e a invenção operada pela

técnica.

Como podemos perceber, para Serres a questão está muito menos ligada à

apropriação de técnicas, ou mesmo ao uso das novas tecnologias e mais vinculada ao

lugar que ocupamos e à reprodução automática destas técnicas. É importante frisar que,

para Serres, não é o corpo que produz anestesia, mas, ao contrário, é o esquecimento do

corpo que nos faz acreditar num aprendizado que não leve em consideração esta relação

que o corpo estabelece com as coisas, uma vez que o aprendizado do corpo é o que nos

traz as inovações técnicas. Em outras palavras, Serres acredita que qualquer

aprendizado que não passe pelo corpo, na verdade é uma forma de anestesia, de

drogadição, do vício em acreditar mais na repetição do que propriamente na criação.

Vocês querem inventar as matemáticas? Mandem Platão para os diabos e consultem seus corpos; o sublime filósofo declarava que o escravo ignorante, personagem do Ménon, havia esquecido seus conhecimentos sobre a geometria enquanto a teoria das Idéias oculta essa verdade ofuscante de seu autor e de dois mil anos de imitação servil: todos os corpos a conhecem e cada um deles a ignora. Cegos aos tesouros corporais, nem sequer enxergamos o que fazem aqueles que os vêem: os criadores devem suas descobertas a uma fantástica proprioceptividade, esta capacidade interna de o organismo perceber os estímulos. [Idem, p. 136]

2.3.2 Considerações sobre o biopoder

Para finalizar este capítulo é necessário que possamos pensar na questão do

poder a partir daquilo que denominamos de biopoder. Tal termo cunhado por Foucault

tornou-se, na linguagem de Latour, um “ponto de passagem obrigatório” quando

falamos do poder. Não poderíamos deixar de escrever sobre esta questão e como Serres

se posiciona em relação e ela – se é que podemos dizer que há um posicionamento

direto de Serres em relação a esta questão, o que duvidamos. Como podemos perceber

em seus trabalhos, Serres não se refere diretamente ao biopoder, não passa por esta

questão, porém é importante falarmos sobre ele na medida em que, de alguma maneira,

é pelo caminho aberto por Foucault que podemos pensar no corpo como potência, pois,

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se o corpo é passível de ser disciplinado, é porque contém uma potência quase infinita

de elasticidade.

Por outro lado, não se trata de negar as apropriações do corpo operadas pelo

capitalismo, pelo mercado e pelas formas de docilização dos corpos. Porém, como

mesmo nos mostra Foucault, todo poder opera por resistência, ou seja, não há formas de

relação de poder que não apresentem escapatórias, formas de diferenciação. São

exatamente estas formas de diferenciação que dão ao corpo sua maleabilidade e, por

conseguinte, sua própria sobrevivência. É nesta relação de forças que o corpo apresenta

sua potência, pois mais do que real, trata-se de pensar aqui nas virtualidades do corpo,

ou ainda, do corpo como virtualidade, como dissemos alhures, o corpo existe muito

mais em potencial, em virtualidade, do que propriamente no real, e, é esta virtualidade

que lhe dá a liberdade. Para Serres, falar sobre a liberdade nos insere num labirinto de

conceitos filosóficos, porém

Para livrar-se desse labirinto, basta partir do corpo e da singularidade da vida. Em qualquer circunstância, todo o poder deve ser contido em benefício de sua integridade; com mãos e braços livres, o corpo tem o direito de se mover de acordo com sua vontade, deve dispor de sua natureza e de sua capacidade. Sua virtualidade se opõe a qualquer poder. A liberdade se define pelo corpo e este por sua potencialidade. [SERRES, 2004, p. 52]

Podemos perceber que se trata de uma outra maneira de pensar o corpo que não o faz

submisso, apesar de não negar a possibilidade de submissão. O corpo deve ser visto

como potência virtual justamente porque encontra-se nesta relação ambígua entre a

docilização e a potência.

Neste sentido, as questões trazidas por Foucault em relação ao biopoder, à

colocação do sexo em discurso, operada no século XVIII e à transposição da vida em

circuitos de produção e de lucro que emergem no capitalismo, fazem com que os corpos

se apresentem a partir de sua sexualidade, atrelada a dois dispositivos: a demografia e a

medicina. Estas práticas fazem com que os corpos apareçam de forma “domesticada”,

visíveis a partir destes circuitos de dominação. Porém, em meio às práticas de

dominação, há efetivamente um fortalecimento do corpo que é operado pelos

“especialistas”. O corpo, cada vez mais, se conecta com coisas até então inimagináveis,

como aquelas possibilitadas pelos medicamentos, pelas nanotecnologias e

biotecnologias. Para Serres, a questão se coloca de uma outra maneira, pois, o corpo,

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desde sempre submetido às mais diversas limitações, fardos e doenças, em nosso tempo

foi, finalmente, liberto de um tipo de escravidão que o submetia a um lugar de

inferioridade.

Trespassado por esses pesos e faltas, por toda a excentricidade da dor e do desejo, nosso corpo não cessa de experimentar uma alienação essencial. Abandonado à seca e à peste, delas ele jamais se livra. Além disso, os mais fortes roubam o corpo dos que foram atingidos pela fome e pelas doenças, como se a ferocidade coroasse os outros males. Em conseqüência disso, ele se entregou aos reis e aos grupos. Escravo encarnado da natureza e de sua cultura, o corpo viveu como um servo ou um colonizado, primeiro servidor, escravo imediato e primitivo tiranizado pelo espírito, pela alma, pela vontade, pela tradição, pelo poder e por tantas outras coisas importantes. As filosofias recentes e as religiões mais antigas esboçam dele esse perfil, cujo aspecto patético decorre menos, como se crê, daqueles que falaram a seu respeito do que de algumas de suas condições reais de vida. Sempre e por toda parte, o corpo reencontra o impossível. Os mais sábios pré-historiadores consideram mesmo que seu desaparecimento teria sido menos relevante do que sua sobrevivência. Como então, diante dessas condições, não colocar sua esperança numa instância diferente? O corpo sofreu tanto que bem merecia uma alma. [SERRES, 2003, p. 39]

Nesta longa citação, podemos reconhecer que Serres estipula uma relação entre corpo e

poder de uma maneira diferenciada. Para ele, o que ocorre em nossos dias, mais do que

a apropriação dos corpos é sua liberação, a possibilidade de um não sofrimento

inimaginável desde então. Os corpos se apresentam mais livres, de certa forma, capazes

de experimentar novas possibilidades de existência.

As transformações recentes e rápidas tendem a liberar esse servo multimilenar, cuja escravidão parecia o estado quase natural e que, em alguns decênios, teve que assimilar imprevisível reapropriação. (...) Ele se metamorfoseia e testa suas capacidades sem limites no esporte e a estética, nos desejos e viagens, na alimentação e na reprodução, na medicina, nas ciências biológicas e nas técnicas do genoma. [Idem, p. 39/40]

Podemos perceber que a preocupação de Serres não se vincula à questão

apresentada por Focault em seu livro História da Sexualidade I: A vontade de saber,

livro no qual Foucault cunha o termo biopoder a partir das investigações sobre a

sexualidade. Neste livro Focault nos diz seu objetivo:

Em suma, gostaria de desvincular a análise dos privilégios que se atribuem normalmente à economia de escassez e aos princípios de rarefação, para, ao contrário, buscar instâncias de produção discursiva (que, evidentemente, também organizam silêncios), de produção de poder (que, algumas vezes tem a função de interditar), das produções de saber (as quais, freqüentemente, fazem circular erros ou desconhecimentos sistemáticos); gostaria de fazer a história destas instâncias e de suas transformações. [FOUCAULT, 2005, p. 17]

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Podemos perceber que o distanciamento de Serres em relação à Foucault ocorre por

uma compreensão diferenciada destes dois autores em relação à política. Seguimos esta

pista dada por Serres em seu livro Diálogo sobre a Ciência, a Cultura e o Tempo, no

qual ele nos diz que seu afastamento de Foucault ocorre por uma divergência em relação

à política.

Para que possamos compreender esta diferença, nos remeteremos ao livro O

Contrato Natural, no qual Serres nos apresenta sua distinção entre ciência e direito.

Para ele, tudo o que diz respeito à ciência é a invenção, a criação, o novo, a

possibilidade de mudanças e tudo o que diz respeito ao direito é a repetição, a

formatação, o antigo, a permanência. Ele retoma esta distinção em um livro mais

recente, Ramos, ao contrapor o Formato-pai à Ciência-filha. Assim, tudo o que se

submete à regra, tende a se repetir, a se perpetuar e, conseqüentemente, a impedir a

emergência do novo. Assim, ele contrapõe Egito e Grécia; Roma e Israel: os primeiros

seriam povos do direito, da repetição das regras, os segundos, povos da descoberta, da

inquietação. Os gregos fundam a filosofia, os israelitas fundam a religião, novidades

impensadas na repetição apresentada pelas regras estabelecidas, revoluções do

pensamento que se apresentaram como alternativa àquilo que vigorava como única

possibilidade de existência.

Neste mesmo livro Serres (1994) vai contrapor Anaxágoras e Sócrates para

ilustrar esta mesma questão. Ele nos diz que enquanto Anaxágoras é expulso da cidade,

condenado ao exílio por dizer que o sol era uma bola de fogo e por prever a queda de

um meteoro, ou seja, por trazer para o meio da cidade, das relações sociais, a natureza;

em contraposição, Sócrates, que se ocupa de pensar as virtudes, a postura na polis, as

relações sociais, ocupa o lugar da vigilância, da polícia, em última instância, das

ciências humanas. É no controle das condutas que se encontra o poder de regrar, de

vigiar, seja este qual for, independente dos dispositivos e das épocas. Para Serres, a

política, o direito é, desde sempre, este campo da vigilância, em contrapartida, a ciência

é sempre o lugar da invenção.

Como podemos perceber, é nesta diferença entre direito e ciência que podemos

perceber o deslocamento feito por Serres em relação à questão posta por Foucault: para

Serres trata-se menos de investigar as apropriações do corpo e mais de pensar como,

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desde sempre, este corpo escapa das apropriações por meio da invenção. Para Serres,

qualquer que seja a intenção da política, esta sempre recai na vigilância e no controle,

que é operado a partir da necessidade de se cumprirem as leis. No livro Os Cinco

Sentidos Serres nos diz que, na medida em que olhar prevalece sobre o tato, a vigilância

prevalece sobre a criação. Mas, escapar a esta vigilância não se apresenta como uma

tomada de posição, na qual nos colocamos em oposição, numa relação de contraposição,

de crítica. Donna Haraway, em seu Manifesto Ciborgue31, nos escreve: “O ciborgue não

está sujeito à biopolítica de Focault; o ciborgue simula a política, uma característica que

oferece um campo muito mais potente de atividades”. [HARAWAY, 2000, p. 69]

Como Serres afirma, não se trata, nem mesmo em relação à Foucault, de uma

crítica, de uma contraposição. Não há posicionamento, portanto, Serres não se coloca

numa interlocução com Foucault. Até mesmo por sua aversão ao debate, à guerra,

improdutiva justamente por apresentar posições, contraposições. Porém, podemos

pensar que, a partir da apropriação operada pelas ciências humanas, também

apresentadas pelas reflexões foucaultianas, o que acontece é uma exacerbação da

suspeita, ao invés de sua eliminação. Sabemos da importância de não sermos

“ingênuos” em relação à apropriação dos conhecimentos, sejam eles quais forem, pois

“qualquer ingenuidade progride na suspeita” [Idem, p. 36].

Para Serres, esta discussão nos afasta de nossos objetivos: seguir as

relações, buscar os encontros no momento em que são produzidos; compreender como

estas relações ocorrem e como podemos engendrar novas formas de existência a partir

disso. Trata-se de apontar para a própria flexibilidade do corpo, uma vez que, para

Serres, a denúncia, a suspeita “(...) constitui a mais velha ocupação do mundo. As

coletividades ainda privadas de objetos, por sua própria vontade ou pela crueldade dos

outros, entregam-se às delícias da polícia, à prisão política, condenam-se ao inferno das

relações.” [SERRES, 2001, p. 36]

Em última instância, tudo pode ser capturado e o corpo, justamente por portar

sua brancura, não escapa a esta captura. Porém, o risco de paralisia que esta atitude nos

traz, talvez nos impeça de ir adiante, de buscar efetivas potencializações do corpo. A 31 Falaremos melhor sobre a proposta de Haraway na conclusão, mas aqui, queremos apontar apenas as semelhanças em relação ao posicionamento sobre o biopoder. Cf. HARAWAY, 2000.

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vigilância opera em detrimento da potência. “O método, nas ciências humanas que só

tratam de relações, segue a suspeita, policial ou inquisicional. Espiona, segue, sonda as

entranhas e os corações. Faz as perguntas e suspeita das respostas, nunca ele se

questiona sobre seu direito de agir assim.” [Idem, p. 37] Neste sentido, as ciências

humanas são, para Serres, ao mesmo tempo, o melhor e o pior caminho, pois, ao mesmo

tempo em que é o operador da vigilância, é também aquele que vê o corpo em sua

potência criadora, pois, para Serres, são as ciências humanas que lançam novos focos de

luz sobre as coisas e sobre as relações. Não há predominância de nenhuma ciência sobre

qualquer outra, desde que cada uma lance luz em determinados lugares que foram

deixados à sombra. Trata-se de multiplicar as formas de conhecimento, de dar voz

àqueles que a perderam. Mas, isso não significa inverter as hierarquias, mas, implodi-

las, subverter a ordem sem criar uma nova ordem. A entrada das ciências humanas em

cena não é apresentada por oposição, mas, por conexão. Novas formas de compreensão

do corpo são geradas em conjunto, novas potências são trazidas à tona. As ciências

humanas se posicionam antes da vigilância, numa forma narrativa. Apresentam-se como

uma possibilidade, dentre outras, de narrar nosso mundo, de seguir as conexões e não de

denunciá-las.

É nesta dupla constituição que podemos compreender as ciências humanas:

como denunciadoras e como libertadoras, que nos reencontramos com Canguilhem32,

quando num artigo sobre a psicologia ele nos diz que, saindo da Sorbonne, ao subir,

encontramos o Pantheon, ao descer, nos deparamos com a Gabinete de Polícia. É

exatamente neste duplo caminho que as ciências humanas se encontram: ou se

apresentam como formas de potencialização, seja do corpo, seja de produção de

dispositivos que possibilitam novos posicionamentos; ou serão mais um dos

instrumentos utilizados para a dominação, seja dos corpos, seja de qualquer

possibilidade de potência inovadora.

Neste capítulo, foi possível pensar a relação entre corpo e potência para

compreendermos mais uma faceta do corpo, apresentado aqui como potência branca,

desdiferenciação. Buscamos compreender o aprendizado do corpo a partir do

mimetismo e como ocorrem transformações nesta forma de aprendizado. Isto nos

32 Cf. CANGUILHEM, 1972.

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permitiu refletir sobre as metamorfoses do corpo, sua maneira de relação com as coisas

a partir do que Serres denomina de exodarwinismo. Pudemos também pensar sobre as

apropriações da potência do corpo e como devemos buscar alternativas que ajam no

caminho da potência. Nosso posicionamento aqui se delineou como uma proposta

política, porém, sem definições partidárias, sem defesa das oposições, sem luta, seja

pela igualdade, seja pela contraposição.

No próximo capítulo, o foco será mudado: apresentaremos uma forma de

compreender o corpo que pense em suas relações de entrada e saída, sua constituição

histórica e sua forma de relação, seja no tempo, seja no espaço. Para tanto, será

necessária uma reflexão sobre os códigos, a informação e sua relação com o corpo.

Buscaremos refletir sobre a questão do código a partir de alguns conceitos, como

negociação, translação e transubstanciação. A partir daí, será discutida a questão do

sentido, de como podemos pensar este corpo com algo que se apresenta numa unidade

de sentido. Porém, esta unidade será questionada, posta como algo que está para além

da linguagem. O corpo, portanto, não se apresenta como pura tradução lingüística. Mas,

esta é apenas uma das maneiras do corpo se apresentar, mas, que não esgota suas

potências.

Por último, mas não menos importante, será trazida para nossas reflexões a

questão da narrativa. Esta será pensada sob o crivo da história, não de uma história

linear, determinista, inexorável, mas, de uma história tecida por relações. Uma história

construída como a tapeçaria de Penélope, sempre passível de ser refeita, de ser

rearranjada. Desta forma, o corpo-narrativa é este que se constrói num tempo e num

espaço localizáveis, numa construção que leva em consideração os desvios, os

percalços, os relevos do caminho. Uma história topológica, errante, à deriva. Porém,

esta deriva não permanece constante, ela se estabiliza, cria cenários, paisagens. Assim, o

corpo não é permanentemente instável, mas, cambiante, sujeito à modificações, mas

também diferenciação.

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Terceiro Capitulo: Corpo-narrativa

Hermes, o mensageiro, traz consigo, primeiro, a clareza nos textos e signos herméticos, ou seja, obscuros. Uma mensagem passa lutando contra o ruído de fundo; também Hermes atravessa o ruído em direção ao sentido.

Serres

No capítulo anterior, traçamos um caminho no qual o corpo se apresenta como

potência, desdiferenciado. Tal possibilidade delineou o corpo como brancura, que se

metamorfoseia nas várias formas de mimetismo que o possibilitam sua diferenciação.

Estes aprendizados, que se iniciam com a repetição, com o mimetismo, se expandem e

possibilitam ao corpo novas posturas e novas relações. Esta reflexão, como é de se

esperar, não esgota as possibilidades do corpo. Neste capítulo, o corpo será traçado

como narrativa, o que não significa dizer que podemos compreender o corpo como

linguagem. As relações entre corpo e código e corpo e linguagem são pensadas de tal

forma que não há propriamente uma decodificação, mas, negociações, translações e

transmutações. Estas são feitas de diversas formas e em diversos níveis, o que nos faz

pensar nas trocas do corpo, a constituição de sentidos diversos que enlaçam o corpo,

que o fazem emergir.

Por último, é possível pensar a constituição do corpo em suas relações históricas,

em seus traçados e enlaçamentos locais. O corpo, sob tal perspectiva, é algo que se

constrói historicamente, o que também não significa dizer que o corpo se reduz a suas

relações locais, ele também se constitui globalmente. No livro Hominescências, Serres

nos dirá que as mudanças que fazem o corpo perdurar no tempo, que aumentam o tempo

de sua existência, tornaram o corpo mais forte e da mesma forma, mudou as relações

deste corpo com a própria vida. Portanto, as mudanças que se iniciam de maneira local

se transformam, criam novas relações e se estabelecem de maneira global. O corpo,

portanto, não se apresenta apenas em suas microrelações, ele também se constitui

historicamente, de maneira global. Portanto, é nesta tensão que podemos compreender o

corpo: local e global.

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Portanto, devemos nos voltar agora para a questão da permanência do corpo, na

medida em que há uma diferença entre o que faz um corpo se manter e o que faz este

corpo perecer, seja no tempo, seja no espaço. Em outras palavras, não são todas as

conexões que fazem o corpo se perpetuar, algumas conexões o despontencializam e, em

última instância, o desfazem. O corpo, como vimos, é conexão, desta forma, podemos

pensar que o corpo, ao mesmo tempo em que se diferencia, também necessita das

relações com sua exterioridade para manter seu “equilíbrio longe do equilíbrio”. Estas

relações pressupõem formas de decifração de códigos, implícitos em toda forma de

transformação de uma matriz de informação em repetições do modelo decodificado. Em

outras palavras, a possibilidade de replicação de um mesmo modelo, a partir de um

número finito (e limitado) de elementos, é o que determina, ao mesmo tempo, a unidade

de funcionamento de um corpo, sua diferenciação de um meio externo e sua

perpetuação no tempo, sua duração. A partir desta proposta, devemos refletir sobre o

que estamos aqui entendendo como código e como Serres relaciona o código e o corpo.

Nesta reflexão, é importante pensar o problema da tradução do corpo em um

determinado código, suas possibilidades e limitações.

Num segundo momento será traçado um caminho, em certa medida, diferente do

caminho apresentado anteriormente. Se antes o que estava pressuposto era a própria

constituição do corpo a partir do código, nesta parte do texto a compreensão do corpo

ganha novas nuances, acrescentadas pela questão da relação entre linguagem e corpo.

Esta relação não está pressuposta na questão anterior, porém ela emerge como problema

na medida em que o próprio corpo se torna “alvo da representação”, na medida em que

ocorre um deslocamento da questão: se tudo pode ser pensado como decifração de

códigos, então o corpo pode ser visto como pura representação de um código

estabelecido: o código genético. Esta maneira de reducionismo, no qual a informação

prevalece em detrimento do que é constituído por esta forma, nos leva a pensar o corpo

como representação Porém, como vimos antes, os encontros que o corpo estabelece com

as coisas o potencializa, então, ele não pode ser pensado como puro representação de

códigos. Desta maneira, os códigos poderiam ser pensado como mais uma potência,

como mais uma maneira do corpo se apresentar a partir de determinadas conexões dadas

por este código.

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Por outro lado, a representação do corpo produz um distanciamento deste que já

insere nas nossas reflexões uma outra forma de pensar o código: a possibilidade de

pensar o código como linguagem. A linguagem sim, aparece como representação, como

forma de redução do corpo ao código. Vale lembrar que, ao contrário do código, o

corpo pensado como linguagem já possui um distanciamento, uma busca de totalização

que, em certa medida, é pensada “de fora”. O que estamos tentando dizer é que a

linguagem já se apresenta como uma forma de totalização do sentido do corpo que se

apresenta a partir de um outro, que o nomeia. Podemos observar isso, inclusive, com a

própria palavra “corpo”, totalização (exterior) e redução de uma experiência em um

determinado conceito que o significa, mas, ao dar significado, a linguagem também

deixa de fora uma parte da potência do corpo.

Em outras palavras, o sentido do código será transformado, deslocado, para

abarcar a linguagem, não apenas como troca de informação – idéia implícita no próprio

conceito de código – mas, como possibilidade de produção de sentido. A linguagem não

é apenas aquilo que nos possibilita a comunicação – ou mesmo a decodificação – mas é

também o que nos faz relacionar coisas e palavras. A linguagem amplia as

possibilidades das coisas na medida em que acrescenta a estas a suavidade de suas

relações. Assim, podemos dizer “faca” e tornar este objeto simbólico, sem o risco do

corte. A linguagem efetua uma “suavização das coisas” e, conseqüentemente, dos

corpos, pois ela nos possibilita falar, compreender, relacionar, sem o risco da dureza, a

palavra torna as coisas etéreas, abstratas. Portanto, para Serres, o corpo não é

representação da linguagem, mas a linguagem pode se constituir como uma forma de

potencialização do corpo, dentre outras, na medida em não reduza o corpo à

representação mas, suavize as relações para aumentar as potências do corpo. Portanto, é

na mistura entre o que ele denomina o “duro” e suave1, que também mesclamos nossos

1 Quando aparece o termo francês doux, ou mesmo douce, traduziremos sempre pela palavra suave, a partir de uma orientação dado pelo próprio Serres no texto La Philosophie que se encontra em seu livro Petites Croniques du Dimanche Soir 2: Je croix que la culture, aujourd’hui, est vaincue parce qu’elle est douce – au sens de soft. Portanto, é neste mesmo sentido que será utilizada a palavra douce. Além disso, para entendermos o que são o dado e o suave, vale lembrar as palavras de Serres: “O dado que se dizia bruto pertence às vezes, nem sempre, à escala entrópica: distende os músculos, rasga a pele, arde os olhos, trespassa o tímpano, arranha a garganta, ao passo que o dado na linguagem se apresenta sempre suave.” SERRES, 2001, p. 110. Sei que há uma perda significativa na relação entre os sons das palavras donné e douce, porém, para preservar o sentido nos arriscamos a perder a musicalidade.

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corpos ao mundo. Desta forma, o próprio corpo é esta mistura, esta relação entre o duro

e o suave:

Suavidade aplicativa e dureza material fazem uma sensível distinção, sensivelmente colocada fora da linguagem. Claro, ela vem da ciência e, portanto, da linguagem e do aplicativo, mas embora a enunciemos na língua da energia, termodinâmica ou teoria da informação, o corpo a recebe ou a sofre pelas coisas. Ele sabe tacitamente a suavidade do sentido, que o discurso não esfola a retina, nem as costas nem a pele. (...) O corpo conhece esta diminuição, melhor, vive como se conhecesse, ou, melhor ainda, sobrevive ao conhecimento. Se quiser ignorá-lo, fere-se e morre. Assim também a vida explora essa distinção. Vai da dureza à suavidade. Seu impulso é dirigido do material para o aplicativo, da energia para a informação. O sensível segue este sentido. O corpo conhece este desvio e sua direção, no e pelo sensível. [SERRES, 2001, p. 110]

Neste sentido, o corpo poderia ser pensado não apenas como um “código a ser

decifrado”, mas, como uma produção que se constitui também nestas negociações entre

a dureza do mundo e a suavidade do dito.

Em terceiro lugar, gostaríamos de ampliar nossas considerações, para poder

abranger a questão do sentido. Desta maneira, o corpo também amplia suas relações,

pois, o sentido, não sendo apenas lingüístico transforma o corpo em possibilidades de

negociação muito mais amplas, pois o corpo não se expressa como linguagem, mas, se

metamorfoseia em sentidos múltiplos, sejam eles lingüísticos ou não. Vale lembrar que

a proposta de pensar a relação entre o mundo e a linguagem nos convida a pensar o

dado como dom2, numa relação entre os sentidos e as coisas na qual a linguagem, ao

traduzir as coisas, sempre deixa escapar a abundância destas. O dom nos remonta à

questão do toque, da relação, pois o dado nada mais é do que a possibilidade do toque,

que Serres denomina de dom. É como se o dado, como dom, fosse muito além da

linguagem possível, o dom se apresenta como transbordamento, como possibilidade,

2 Serres nos apresenta uma passagem muito bonita sobre esta relação entre o dado e o dom: “O dom não corresponde a nenhuma obrigação: o doador não o deve, ao recebedor ele não é devido. Poderia chamar-se o dado. Salve, o corpo cheio de dados gratuitos, por ele recebidos como dons do mundo. O que entra pelos sentidos ou por eles no corpo não se apaga nem em dinheiro nem em energia ou informação, nem em moeda de qualquer espécie, assim concordamos em chamá-lo dado.” [2001, p. 207] Ou ainda: “O corpo recebe a gratuidade. O mundo a dá, desinteressado, não pede que lhe retribuam, não espera o “contradom”, não tem balança, nem faz balanço. Nossos sentidos não lhe devolvem nada, não podem restituir nada à fonte das belezas dadas. O que poderia o olho devolver ao sol ou o palato à vinha d'Yquem?” [Idem, p. 217]

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intrínseca às próprias coisas, de dar-se. É na conexão heterogênea entre linguagem e

coisa que podemos perceber tal abundância:

A metalurgia das ligas, desde a idade do bronze, a jovem química que classifica os compostos e os corpos novos pela recombinação, a farmácia e suas preparações que adicionam os específicos para aumentar a eficácia dos remédios, a cozinha, padeira ou licoreira, mil práticas todas nobres misturam desde a aurora dos tempos fluxos diversos em cem crateras, a quente ou a frio, para o uso ou o prazer, muitas vezes para o conhecimento. [SERRES, 2001, p. 163]

Por fim, mas não menos importante, discutiremos a questão do corpo narrativa.

Buscaremos alguns caminhos, ao longo deste capítulo, que nos possibilitem pensar o

corpo como narrativa, ao contrário de reduzi-lo, seja à informação, seja à linguagem.

Esta proposta se apresenta de maneira mais clara nos livros Hominescências, O

Incandescente e Ramos. Nestes livros, Serres irá refletir sobre o que ele denomina a

Grande Narrativa e como o homem pode ser pensado inserido nesta Narrativa, ou seja,

como ele havia dito em sua entrevista à Bruno Latour, são seus livros sobre o tempo e a

história3.

Porém, ao pensar nesta possibilidade, Serres nos chama a atenção para o fato de

que a humanidade (também em relação aos seus corpos) está inserida em várias

narrativas, portanto, ao invés de nos apresentarmos como formas de reprodução de um

mesmo código, nos apresentamos, como dissemos no capítulo anterior, como um ser

desdiferenciado. Neste sentido, não há como falar de uma história que seja pré-

determinada. A narrativa, para Serres, tem uma característica muito importante: na

origem da tessitura de uma narrativa, não há determinação do seu fim, os encontros e

relações são sempre intercambiáveis, mutáveis. Porém, na medida em que a narrativa

produz suas conexões, seus arranjos e negociações, isto se caracteriza com a rigidez de

um caule, do formato que sustenta todas as ligações. A imagem de Jano, no livro

Ciência em Ação de Bruno Latour nos ajuda aqui:

Incerteza, trabalho, decisões, concorrência, controvérsias, é isso o que vemos quando fazemos um flashback das caixas-pretas4 certinhas, frias, indubitáveis para o seu passado

3 Cf. SERRES, 1996, p. 51. 4 Vale lembrar o que significa o conceito de caisa-preta para Latour: “A expressão caixa-preta é usada em cibernética sempre que uma máquina ou um conjunto de comandos se revela complexo demais. Em seu lugar, é desenhada uma caixinha preta, a respeito da qual não é preciso saber nada, senão o que nela entra e o que dela sai. (...) Ou seja, por mais controvertida que seja sua história, por mais complexo que seja seu

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recente. Se tomarmos duas imagens, uma das caixas-pretas e outra das controvérsias em aberto, veremos que são absolutamente diferentes. São tão diferentes quanto as duas faces, uma vivaz e outra severa, de Jano bifronte. “Ciência em construção”, a da direita; “ciência pronta”, ou “ciência acabada”, a da esquerda (...) [LATOUR, 2000, p. 16]

Porém a imagem utilizada por Serres é a de uma árvore, na qual o tronco é o formato e

os galhos e ramos se constituem como as bifurcações, possibilidades e alongamentos,

diferenciações e complexificações daquilo que se apresenta como “novo”5. Estas

bifurcações se lançam num movimento de desespecialiação, como dissemos no capítulo

anterior, mas, vale lembrar aqui, que esta forma de “evolução” se torna cada vez mais

imprevisível:

Uma evolução que para mim parece lançar-se em sentido inverso (...) nos desespecializa, nos desdiferencia e nos programa na desprogramação, como se retornássemos aos galhos principais da árvore, até mesmo em direção ao tronco. Esquecemos a especiação, ou seja, a formação das espécies? Em seu sentido mais amplo, essa indiferença essa não-diferenciação resultariam desse tipo de esquecimento? Esquecemos o mundo e o tempo, esquecemos também o nosso programa? Posso denominar nossa espécie de Homo negligens? Desliga-se ela da natureza, negligencia por vezes a leitura de seu próprio código? Atualmente duvidamos até mesmo que se trate de um código. Ao obedecê-lo como autômatos genéticos, outras espécies são capazes de uma leitura melhor deste código. [SERRES, 2005, p. 60]

Tal proposta tem algumas conseqüências interessantes para nosso trabalho, pois, como

mostraremos ao longo do texto, o corpo pensado como narrativa não pode ser reduzido

nem ao código nem à linguagem pois o corpo se caracteriza principalmente por sua

flexibilidade, por sua potência6. A narrativa então, segue este caminho inverso apontado

funcionamento interno, por maior que seja a rede comercial ou acadêmica para a sua implementação, a única coisa que conta é o que se põe nela e o que dela se tira.” [LATOUR, 2000, p. 14] 5 Falaremos melhor sobre esta questão do novo no decorrer do capítulo. Sobre a imagem da árvore, Serres nos apresenta um artigo intitulado L’Arbre et as symbolique no livro Petites Chroniques du dimanche soir: septembre 2004 – janvier 2006. “Este símbolo tem três características. O élan único, primeiro, a ejeção do tronco, a unicidade de uma ereção que parte da base e se eleva. Se multiplica, se bifurca, desabrocha, ocupa o espaço pelas ramificações, pelos ramos e ramagens em todas as direções... Eis o um e o múltiplo, a harmonia e a diversidade. O élan vital! Em segundo lugar, eis aqui um vivente preso à terra, com os pés sob a terra, as raízes afundadas na terra, mas que, no mais, traz a cabeça alta, na luz, no ar e no sol. O material e o ideal. Ela traz mesmo os ninhos e os cantos dos pássaros. Enfim, o melhor, esta luz a nutre, ela sabe, ela pode fazer matéria com a iluminação! Para suas raízes, matéria quer dizer madeira, ela faz madeira material dos raios que parecem imateriais. A madeira, a celulose, você sabe que é de açúcar? De fato, você tem pensado, também, na palavra “raiz”? Todas as palavras tem uma raiz, como se as palavras tivessem as árvores. Eu creio. Nós temos todas as raízes – terrenas, familiares, regionais, paisagísticas... – como as árvores e as palavras.” [SERRES, 2006, p. 110] 6 Como foi discutido no segundo capítulo.

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por Serres na medida em que aponta sempre para a desdiferenciação, para as ramagens,

para a extensão.

3.1 – A questão do código: proposta de pensar o corpo como informação.

Gostaríamos de iniciar esta parte do texto da seguinte maneira:

(...) a humanidade passou bruscamente dos meios e forças de produção às redes de comunicação; o início do novo século consagrou a vitória mundial da internet e dos telefones celulares. Hermes, deus dos intermediários e dos tradutores, assim como um número incalculável de anjos portadores de mensagens, passou a assumir o lugar de Prometeu, o velho e solitário herói do fogo. [SERRES, 2003, p. 27]

Nestas palavras de Serres, identificamos uma grande semelhança com a questão trazida

por Paula Sibilia em seu livro O Homem Pós-Orgânico: corpo, subjetividade e

tecnologias digitais, pois, neste livro, a autora nos convida a pensar as novas formas de

relação estabelecidas pelo homem a partir das novas tecnologias, como o título sugere.

Em suas reflexões ela nos traz a questão da ciência fáustica, em oposição à ciência

prometeica7:

Na atual sociedade tecnológica, enfim, o antigo prometeísmo está em decadência. É aqui que entra em cena a outra vertente filosófica da tecnociência: a tradição fáustica. (...) a tradição fáustica esforça-se por desmascarar os argumentos prometéicos, revelando o caráter essencialmente tecnológico do conhecimento científico: haveria uma dependência, tanto conceitual quanto ontológica, da ciência com relação à técnica.

Mesmo que já tenhamos discutido a questão da técnica no capítulo anterior, a retomada

do texto de Paula Sibilia aqui nos propõe menos repensar a relação entre ciência e

técnica, e mais a refletir a mudança de foco em relação à compreensão do mundo

operada por este deslocamento. Tal mudança apresenta duas questões fundamentais: a

primeira diz respeito à relação entre técnica e ciência já dita acima e, a segunda, nos

remete à questão da informação como forma privilegiada de relação entre as coisas,

como acesso exclusivo a algo que poderíamos considerar como “essência” das coisas.

7 Nas palavras da autora: “Hermínio Martins se vale dessas duas figuras míticas da cultura ocidental, Fausto e Prometeu, para analisar as bases da tecnociência moderna e contemporânea. A tradição prometéica e a tradição fáustica constituem duas linhas de pensamento sobre a técnica que podem ser detectadas nos textos dos epistemólogos dos séculos XIX e XX. Após um levantamento minucioso, Martins conclui que é na segunda dessas duas tendências que se inscreve a filosofia da tecnociência contemporânea; as suas características “fáusticas” podem ser inferidas dos diversos projetos, pesquisas e descobertas que brotam da prolífica agenda tecnocientífica de nossos dias.” [SIBILIA, 2002, p. 43]

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Paula Sibilia argumentará que a informação é a forma última na qual as coisas podem

ser “conhecidas”, decifradas – e, portanto, manipuladas. “Numa perspectiva

perfeitamente alinhada com o paradigma digital, portanto, é a informação que constitui

a “essência do ser” e irá determinar a confusa fronteira entre a vida e a morte.” [Idem, p.

52] Neste sentido, a informação se torna o ponto de partida do qual seremos capazes de

falar das coisas, os códigos e decodificações prevalecem em relação às próprias coisas.

A materialidade esvaece em formas combinatórias de símbolos. O material se

desmaterializa em códigos de informação.

Por outro lado, Serres, na citação que apresentamos mais acima, parece

compartilhar desta idéia, porém, há uma diferença fundamental entre estes dois

argumentos: Serres substitui Prometeu por uma legião de anjos. Isto significa que as

mensagens e os códigos são mais alguns dentre os mediadores, são possibilidades de

ligação e não informações pré-estabelecidas prestes a “incorporarem”, ou seja, prontas

para “ganhar um corpo” que já se apresenta pronto na informação. Não há, nas palavras

de Serres, especificamente uma denúncia ou fatalidade, ou mesmo uma forma

categórica de afirmação do inevitável. Serres busca pensar a constituição de novas

formas de relação naquilo que se apresenta como inovação. Seu ponto de partida é

sempre o que há de transformador nestas novas formas de relação. Em nosso trabalho,

incidiremos mais sobre a relação entre corpo e código, na medida em que esta relação

está sendo produzida, constantemente, em nossa cultura contemporânea.

Pensar o corpo como código, não nos parece ser uma proposta de esgotamento

do corpo, no trabalho de Serres, na medida em que, suas afirmações sobre o código

genético não buscam esgotar os sentidos do corpo, mas, ao contrário, trazer apenas mais

uma das possibilidades de pensar o corpo, como fazemos aqui. Assim, Serres busca

pensar a constante produção de novas possibilidades de entender o corpo a partir das

mudanças ocorridas em nossos dias, ou seja, as possibilidades de escape, de

recomposição, de diferenciação às quais o corpo é capaz, seja como código, superfície

ou potência.

Portanto, pensar o código em Michel Serres, não é denunciar a redução do

homem ao ADN, ao contrário, é buscar uma forma de relacionar código e sujeito de

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uma maneira que não os reduza um ao outro, mas, pensando o código como uma das

maneiras do corpo se apresentar, uma de suas conexões possíveis, dentre outras. É numa

relação que não está previamente determinada que pensamos a possibilidade de

decodificação do corpo. Pensar o corpo como código não se apresenta como um

fechamento, mas, como uma das muitas “vias de entrada” possíveis. Para que tal

possibilidade se efetue, é fundamental compreender a negociação que há entre o código

e o corpo, sim, porque mais do que decodificação, o que ocorre é uma translação, uma

tradução, que apresenta menos uma forma determinada pelo código e mais uma

negociação que é operada entre corpo e código. Vale lembrar que esta negociação se

apresenta sempre como forma virtual de relação, uma vez que, para que existe um

corpo, não é apenas necessário o código, deve existir também uma forma de

materialidade que se apresente como subjetum, como “suporte material”. Neste sentido,

a própria materialidade implica numa negociação, numa relação de escolhas e trocas,

substituições que fazem com que o corpo seja sempre este “lugar das passagens”, dos

aumentos ou diminuições de fluxos.

Desta forma, não há nenhuma possibilidade de redução, pois, na medida em que

ocorre a translação8 do código em moléculas de proteína, no momento desta translação,

algo é modificado. Além disso, o código não é claro, não se apresenta como algo

límpido, puro, transcrito ponto a ponto, a própria hélice do ADN, com nos lembra

Serres, é espiralada, trazendo assim, a imagem das dobras e desvios, revoluções que se

operam nas voltas da fita de ADN. A própria fita, a ser “lida”, e transformada em

proteína, já apresenta, de certa forma, a metamorfose do corpo, suas negociações e

escolhas, na medida em que se apresenta de forma curva. Em sua origem, o corpo pode

ser pensado como acontecimento, como fato ocasional que necessita de muitos fatores

para sobrevir. Há o que podemos denominar de acontecimento, que não é o encontro

entre coisas pré-estabelecidas, o acontecimento é uma proposta de pensar o surgimento

das coisas a partir dos encontros, e não o contrário:

Causa local, efeito universal; causa física, efeito biológico. As conseqüências bifurcam-se tanto em natureza quanto em alcance. O que chamar de acontecimento? Quando causas conhecidas desenvolvem-se de tal maneira que os efeitos esperados permanecem homogêneos a tudo aquilo que os precede e, pela regra clássica da causalidade, a seqüência se

8 A escolha da palavra translação, ao invés de tradução será melhor explicitado no decorrer do texto.

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insere num formato previsível: as horas se seguem, o tempo passa, as pessoas entendiam-se ou vivem seu quinhão de felicidade. Quando, porém, sobrevém um fato colossal, de efeitos inesperados, em dimensão ou natureza, e que, por exemplo, desvia a direção do formato monótono das regras anteriores, nós lhe damos, então, o nome de acontecimento. [SERES, 2008, p. 114]

Nesta longa citação que se apresenta no livro Ramos, podemos ver como Serres pensa a

questão do acontecimento e, além disso, percebemos que há uma relação muito próxima

entre o que ele diz e o que dissemos sobre a relação entre corpo e código anteriormente.

Ainda neste livro, Serres nos fala, sobre esta questão do acontecimento

mostrando a importância do desvio para que a narrativa ganha uma nova força. O desvio

cumpre o papel da novidade, daquilo que se apresenta como mudança de curso. Para

Serres, sem desvios não há narrativa, daí toda a atenção dada, em qualquer narrativa, até

mesmo nas narrativas lingüísticas, às mudanças de rumo. Assim, Serres nos mostra o

desvio como possibilidade, ao nos dizer que a forma da narrativa, como algo

interessante, que prende a atenção do espectador, se apresenta sempre como desvio:

quando tudo segue um determinado rumo, eis a novidade, é isto que prende os

espectadores numa narrativa, a mudança de curso.

O que existe de interessante? O desvio, o surgimento. Exceção ao nada: o big-bang; à entropia: a organização; ao reino bacteriano: os pluricelulares; à posição quadrúmana, a posição ereta; às mãos sujas que assassinam quem delas cuidam, Semmelweis9, seguido por Pasteur; às regras sinistras da violência: o amor raríssimo; à mediocridade, a obra. O que existe de interessante? A saída da agonia: vida, pensamento inventivo, calor, amor e coragem benfazeja. O nascimento, a vitória da vida contingente sobre a morte necessária. [Idem, p. 129]

Nesta lista apresentada por Serres, podemos incluir também o acontecimento do corpo.

O corpo também se apresenta como uma espécie de clinâmen, na medida em que é neste

desvio de continuidade que o código se transforma em coisa: uma certa forma se

transforma, sai de seu curso, produz um deslocamento. E, o oposto também ocorre, pois,

o corpo também produz o código, também apresenta sua formatação, sua estratégia de

permanência com o advento do código.

9 Semmelweis foi um médico húngaro que, para prevenir a febre puerperal, introdução o método de lavar as mãos com um tipo de solução antisséptica, depois que os médicos mexiam com cadáveres e antes deles realizarem os partos, para evitar tal febre.

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Neste sentido, a relação entre código e corpo não é de determinação, mas como

foi dito acima, de negociação. O corpo não está dado, constituído a priori pela

decifração do código, mas, se constrói na medida em que a decifração é possível de tal

ou qual maneira, numa estratégia de relação que mantém ambas as partes como formas

coerentes de trânsito e transmutação, de trocas intercambiáveis. Neste sentido, os

desvios constituem o corpo tanto quanto o código, na medida em que a relação entre

código e corpo, de uma certa maneira, também representa uma forma de desvio.

Para esclarecer um pouco mais a reflexão feita acima, podemos nos remeter ao

conceito de translação. Tal conceito irá nos ajudar a pensar esta relação entre código e

corpo na medida em que é a translação que nos mostra que, em toda tradução há

mudança daquilo que é traduzido. Em outras palavras, a tradução não é a simples

transposição de algo, de um lugar para outro, qualquer tradução implica uma mudança,

uma maneira diferente de atuação das partes envolvidas. Assim o corpo se apresenta

como tradução do código, na medida em que, ao mesmo tempo em que participa do

código, não se esgota nele. Além disso, o corpo estabelece outras relações, que não

sejam esta com o código, para continuar se mantendo enquanto unidade.

O corpo se conecta, constantemente, com vários materiais heterogêneos para que

se constitua sempre como diversidade, desdiferenciação. Neste sentido, o conceito de

tradução, ao invés de apresentar uma redução do corpo, o potencializa. Podemos

ampliar a tradução, para que este abarque o conceito de translação, pois, além da idéia

de transporte apresentada acima, a translação traz um fator novo: o deslocamento, uma

espécie de desvio no qual, para que haja a tradução, é necessária uma modificação. A

translação nos mostra que o deslocamento sempre deixa algo de fora, e, ao transladar,

também leva algo que não estava dado antes. Aqui fica mais clara a idéia de negociação,

pois, a passagem possui o desvio e é necessária a negociação para que a passagem seja

feita levando em conta a mudança implicada na translação. Assim, além da

decodificação, do transporte, temos ainda o que podemos denominar de deslocamento.

Este ocorre sempre a partir da idéia de desvio, de mudança, torna esta possibilidade

mais forte, mais presente. Porém, para que esta questão fica clara, devemos ter mais

cuidado em definir a translação.

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Em primeiro lugar, gostaria de pensar a translação da mesma maneira que ela é

pensada nos trabalhos de Latour – que também busca referência nos trabalhos de Serres,

principalmente em seu livro Hermès III, la traduction. Em seu livro Ciência em Ação,

Latour nos define translação:

Além de seu significado lingüístico de tradução (transposição de uma língua para outra), também tem um significado geométrico (transposição de um lugar para outro). Transladar interesses significa, ao mesmo tempo, oferecer novas interpretações desses interesses e canalizar as pessoas para direções diferentes. [LATOUR, 2000, P. 194]

Portanto, a própria tradução é ampliada para que o sentido de translação possa abranger

as possibilidades de pensar os deslocamentos, as mudanças, os arranjos. Desta forma,

podemos pensar que o próprio mecanismo de passagem do código ao corpo implica em

deslocamentos que ocorrem no momento da passagem. Tais deslocamentos não se

apresentam de maneira linear, nem mesmo de forma contínua. A translação, portanto,

implica temporalidades múltiplas, seqüências temporais que, da mesma forma, não são

lineares: “Começamos a considerar as alças do ADN como uma sonda temporal”

[SERRES, 2005, p. 295]. Considerar o ADN com algo temporal implica em dizer que,

ao invés da pura decodificação, o que temos é uma forma de duração temporal, que é

produzida no momento do desvio. Além disso, os desvios operados pela translação

apresentam-se também de uma forma espacial, tanto para Latour quanto para Serres, os

deslocamentos significam efetivamente mudanças de posição, o que quer dizer que a

translação não pode ser pensada como uma espécie de “evolução no tempo”, mas, como

uma transformação espaço-temporal.

3.1.1 – A translação como transformação espaço-temporal

Antes de continuar nossas reflexões sobre a questão do código, é necessário nos

ater a como Serres pensa tanto o tampo quanto o espaço, pois, estas questões são de

grande importância para a compreensão do corpo como código neste autor. Serres, em

muitos de seus textos, nos fala sobre o que ele entende como temporalidade.

Primeiramente, podemos pensar o tempo, em Serres, a partir do livro Diálogos sobre a

Ciência, a Cultura e o Tempo. Neste, o autor nos convida a pensar o tempo da seguinte

maneira::

O tempo não corre sempre segundo uma linha (...) nem segundo um plano, mas de acordo com uma variedade extraordinariamente complexa, como se aparentasse pontos

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de paragem, rupturas, poços, chaminés de aceleração espantosa, brechas, lacunas, tudo semeado aleatoriamente, pelo menos numa desordem visível. (...)Para explicar estas duas percepções é preciso, com efeito, clarificar a teoria do tempo; a teoria clássica é a da linha, contínua ou entrecortada, enquanto a minha seria antes caótica. O tempo flui de maneira extraordinariamente complexa, inesperada, complicada (...). Paradoxal, o tempo dobra-se ou torce-se; é uma variedade que seria necessário comparar à dança das chamas de uma fogueira; ora cortadas, ora verticais, móveis e inesperadas. [SERRES, 1997, p. 83/84]

Nesta longa citação, podemos perceber que o tempo, para Serres não apresenta uma

forma determinada de passagem, não é contínuo. Coisas que aparentemente estão muito

próximas no espaço, podem estar muito distantes no tempo, como também o contrário

pode acontecer, coisas aparentemente distantes espacialmente, podem estar próximas no

tempo. Além disso, a proximidade, mesmo temporal, não é dada pela linha do tempo,

mas por uma temporalidade própria que se caracteriza pelos desvios, dobras e rupturas,

estes desvios ocorrem muito mais pelo significado e pelo sentido que possibilitam as

ligações do que a proximidade.

O tempo, na citação acima, aparece para explicar a maneira de Serres

compreender o tempo. Desta forma, o tempo aparece como uma forma de pensar, de

construir relações que não seriam possíveis sem esta “dobra” do tempo. Bruno Latour

pede para que Serres explique o funcionamento de seus textos, suas passagens, sua

rapidez. Para um melhor entendimento dos textos, Serres fala desta velocidade como

forma de aproximação de idéias que podem ser conectadas não por sua proximidade

temporal, mas, por sua proximidade de sentido. O exemplo utilizado para pensar o

tempo, no caso citado acima, são os estudos sobre Lucrécio, no qual Serres aproxima tal

autor à física contemporânea, à física dos fluidos. Desta forma, não há nenhum

problema em pensar a atualidade de Lucrécio, pois, se o tempo não é linear, poderão

existir aproximações que, aparentemente, estariam muito distantes. O modelo não é,

portanto, do tempo irreversível10 e linear, pensado como tal antes do advento das

ciências modernas, mas, de um tempo no qual as reversibilidades são possíveis na

medida em que são construídas proximidades de sentido. Da mesma forma, pensar o

ADN como temporalidade significa dizer que a própria constância do código não ocorre

10 Sobre a questão do tempo irreversível e da reversibilidade, cf. STENGERS, 2002.

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de maneira linear e sim a partir de possibilidades de trocas e diferenciações sem as quais

seria impossível a variabilidade dos sistemas vivos.

Neste sentido, a permanência temporal do corpo se apresenta de forma ambígua,

uma vez que, ao perpetuar a formatação, a decifração determinada do código, o faz

modificar, perecer na brevidade da vida; por outro lado e, ao mesmo tempo, faz com

que este código se mantenha como forma virtual do corpo, numa permanência delicada,

pois, neste filamento cabem inumeráveis códigos, muitos sem sentido. O filamento de

ADN, como sonda temporal, se apresenta como nos diz Serres:

A nova sonda abandona qualquer ritmo para entrar na arritmia: em meio a um alfabeto extremamente simplificado, as alças do ADN desenvolvem uma mensagem longa na qual nenhum período se torna evidente, mas na qual entram milhares de fragmentos destituídos de sentido ou utilidade manifestos. Pelo fato de associar em mim mesmo um corpo que tem a duração de um piscar de olhos a um germe-sonda que acumula esse tempo colossal, um fenótipo de ritmo curto a um genoma do qual uma parte remonta às primeiras bactérias e estas aos primeiros átomos, um metabolismo que pulsa como um coração a um banco de informações sem duração, minha vida se compõe dos ciclos superficiais próprios à medida rítmica do tempo que mantém um estoque no qual sua natureza se concentra? [SERRES, 2005, p. 296]

Fica claro, nesta citação, de Serres, que há uma relação fundamental entre o tempo e

este “código da vida”. Porém Serres termina esta parte do texto com uma reflexão que

ele mesmo responde nas páginas subseqüentes:

Nosso genoma contém um fragmento da evolução, o abismo obscuro de uma parte de seu desdobramento, de onde surge a comunidade de todos e a singularidade de cada um. Começamos a compreender a relação profunda que existe entre duração e individuação, entre mim mesmo e esse fluxo colossal que eu acreditava jamais poder alcançar. Idem, p. 297]

A partir do que foi dito acima, podemos pensar que o tempo, tal como é pensado

nos trabalhos de Serres, se apresenta de duas formas diferentes em relação à vida:

primeiro podemos pensar numa relação entre temporalidade e vida na qual a vida se

apresenta como constância, como perpetuação de um determinado equilíbrio adquirido

ao longo de um tempo colossal. Por outro lado, a vida não se apresenta como pura

repetição do mesmo, ela se apresenta como forma de variação e diversidade, dada a

amplitude de possibilidades que são as espécies de seres vivos. Porém, Serres nos diz,

de uma outra maneira, que o que ele considera como temporalidade só se apresenta nos

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momentos de mudança, de desvio, pois, a repetição, a formatação, suprime a

temporalidade. Assim, ao invés de compreender o tempo como repetição ou mesmo

como algo periódico, trata-se de pensar o tempo como duração, como aquilo que está

fora do equilíbrio, instável. A translação e a temporalidade do ADN se apresentam

como esta possibilidade da vida de variar e, ao mesmo tempo de se perpetuar na

variação. Esta possibilidade dupla é o que enriquece a relação entre corpo e código,

trazendo, portanto, uma forma de translação que opera uma mudança temporal.

Por outro lado, a translação atua como mudança na medida em que organiza

novas possibilidades de arranjos espaciais, possibilidades de combinações que fazem do

código algo que se apresenta de maneira topologicamente variada. O que torna tal

proposta possível é a combinatória de elementos até então distintos e separados. A

combinatória, longe de exibir a simplicidade de elementos que mudam simplesmente de

lugar, exibe uma variedade quase infinita de possibilidades com o aumento de

elementos que se encontram nesta cadeia de combinações possíveis. A própria

linguagem pode ser compreendida desta maneira, pois, há um número finito de signos –

as letras – que, por combinatória, criam um número quase infinito de possibilidades de

sentido – as palavras e as frases.

Portanto, esta combinatória não é passível de reprodução, pelo menos de

maneira simples:

Se trato em conjunto um grande número de elementos, a probabilidade com que prontamente reproduzirei a mesma combinação anterior diminui quase em torno de zero. A seqüência desses estados de coisas não se repetirá a não ser ao fim de algum tempo inimaginável. A cada entrelaçamento, surge uma originalidade. Nada mais pulsa ou gira, tudo vira outra coisa, muda e se transforma: a seqüência dos cálculos e do tempo se perde de maneira irreversível. A combinatória produz uma flecha: o genoma contém o sentido do tempo. [Idem, p. 297]

Aqui percebemos como Serres organiza a idéia de combinatória e a relação espaço-

temporal da translação: o tempo percola, portanto, na medida em que se constituem

combinações, estas não poderão ser “recriadas” pela simples reversibilidade. Além

disso, a disposição espacial, permitida pelas infinitas combinações, aumenta a variação

das relações possíveis. Em outras palavras, antes de se constituir uma determinada

relação, não sabemos como ela será estabelecida, mas, depois que esta relação é

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estabelecida, o caminho inverso não poderá ser percorrido, sem o risco de mudança ou

perda do que foi constituído. Neste sentido, temos o ADN sendo construído, ao mesmo

tempo, por uma indeterminação anterior e uma necessidade posterior, pelas relações que

já se tornaram possíveis, que se tornaram existentes. O ADN é, desta forma, o percurso

de uma determinada relação, que, antes, poderia não ter ocorrido, mas, depois, torna-se

necessária. Mais uma vez, vemos a imagem da árvore, na qual o nascimento, cheio de

percalços, dá lugar à perenidade de sua força.

A espacialidade também é pensada a partir da idéia de combinatória no artigo de

Luiz Alberto Oliveira Biontes, Bióides e Borgues, pois, ao falar sobre sistemas

complexos, o autor nos diz:

Num sistema complexo, no qual diferentes níveis de organização estão presentes, quando em um desses níveis ocorre uma síntese de elementos até então disparatados, desligados, essa integração de díspares produzirá uma nova via de atuação que ocorrerá no nível recém-formado, e o sistema não mais será o mesmo, nem estrutural nem funcionalmente. A dobra, portanto, cria uma nova relação dentro-fora: uma nova topologia: quando o contato se realiza, isso equivale ao estabelecimento de ligações até então não concretizadas, apenas potenciais, entre os componentes dispersos originais; assim se daria a formação (ou reforma) de uma estrutura, o germe da aparição (ou modificação) de um indivíduo. [OLIVEIRA, 2003, p. 151/152]

A idéia de complexidade e estrutura presentes no texto de Oliveira são também os

pontos presentes no pensamento de Serres. Em sua forma de entender as relações

espaciais Serres utiliza-se da idéia de topologia para esclarecer sua forma de

compreender a vida, ambos pensam a vida como complexidade e estrutura. Porém, vale

esclarecer em que sentido estamos usando a palavra estrutura, uma vez que este

conceito foi amplamente utilizado pelas ciências humanas, principalmente depois da

teoria lingüística de Saussure. Portanto, não se trata do estruturalismo, presente tanto

nas ciências humanas quanto nos estudos de linguagem. Serres, mais uma vez nas

entrevistas concedidas a Latour, nos diz que seu método é um método matemático:

É de origem algébrica ou topológica, oriundo da matemática das estruturas, nascida neste século. (...) De repente, dois ou três objetos situados a uma grande distância, anteriormente sem qualquer ligação, fazem parte da mesma família. Esta forma de pensar ou de operar faz de quem a exerce um estruturalista autêntico, mesmo se a palavra perdeu tanto o sentido original como a sua importância nos métodos.(...) A vantagem que resulta disso é uma nova organização do

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saber: toda a paisagem é assim alterada. Em filosofia, onde os elementos se encontram ainda mais afastados uns dos outros, esse método parece, a princípio, bastante curioso: aproxima as coisas mais díspares. [SERRES, 1997, p. 100/101]

Portanto, o estruturalismo não se apresenta como o método que foi apropriado pelas

ciências humanas, mas, como um método, ainda matemático em sua origem. Não se

trata de uma forma de pensar as relações a partir de sua “estrutura”, mas, de repensar a

própria possibilidade de estabelecimento de encontros, de aproximações, de uma

maneira estruturalista, num sentido topológico. A rapidez como característica desta

forma de pensar ao contrário de ser entendida como conexão sem critério de qualquer

coisa com qualquer outra, é entendida, nos escritos de Serres, como uma forma de

eliminar os intermediários (por isso é tão difícil segui-lo):

(...) se a vida é breve, felizmente o pensamento anda tão depressa como a luz. Outrora os filósofos utilizavam a metáfora da luz para falar da clareza do pensamento; gostaria de utilizá-la para exprimir não apenas o brilho e a pureza, mas também, e sobretudo, a velocidade. Neste sentido, inventamos neste momento uma nova época das Luzes. (...) Embora escrevendo x possa querer dizer 1, 2, 3, o infinito, os racionais e transcendentes, os reais e os complexos, e mesmo os quaternões, temos aí uma economia de pensamento. O que você me censura, dizendo: “A estrutura não basta, é preciso acrescentar todos os intermediários”, não é um pensamento de matemático. Os filósofos adoram as mediações, os matemáticos eliminam-nas de boa vontade. Uma demonstração elegante salta os intermediários. [Idem, p. 97]

Para Serres, o caminhar é único, é uma forma singular de estabelecer relações,

impossível de ser percorrido mais de uma vez. A demonstração traz em si a abertura de

um caminho, portanto, o método, menos do que repetir caminhos é o que constitui

novas possibilidades de encontro, novas maneiras de estabelecer relações. A

substituição de qualquer elemento por uma variável faz com que as operações sejam

simplificadas. Isto implica em dizer que há uma economia efetiva de construções, de

explicações, de repetições para a produção de novos sentidos.

As considerações acerca do método de Serres nos possibilita pensar que, ao

discutir a questão do código, não é de uma linearidade que estamos falando, nem ao

menos de uma proposta que busca entender a relação entre código e corpo de forma

reducionista, como dissemos acima. Como pudemos perceber, há uma conexão muito

importante entre translação e combinatória, além disso, na própria idéia de translação e

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no sentido da palavra combinatória, encontramos o caminho para pensarmos a

diversidade e o novo:

A encruzilhada está ali, está dada, mas a escolha é imprevisível, imponderável, dela só podemos dizer sua chance. Cada vez que em uma encruzilhada um caminho é seguido, o dado do acaso rola sobre a mesa da necessidade. O labirinto seria assim o dispositivo por excelência pelo qual uma necessidade férrea suporta um acaso inventivo, um acaso inovador. Uma matriz de futuros (...). [OLIVEIRA, 2003, p. 152/153 grifo do autor]

Portanto, o que está em jogo aqui é menos uma determinação do que uma

potencialidade. O código nos ajuda a produzir, a construir, a transladar na medida em

que se apresenta como um leque de possibilidades, como nos diz Oliveira, uma “matriz

de futuros”. Pelas translações e combinatórias, podemos compreende porque o corpo

não pode ser reduzido ao código, ao contrário, na medida em que o código opera,

produz diferenciações, novos caminhos, novas possibilidades de relação que se

apresentam neste momento da translação, ao longo das relações espaço-temporais do

corpo.

2.1.2 – A questão da comunicação: as trocas do corpo

Como dissemos anteriormente, o código não esgota o sentido do corpo, não

apenas graças às translações e combinatórias, há, além destas contingências, as relações

que o corpo estabelece com outras coisas além do código, mesmo depois que o código é

decifrado. As potências do corpo, como dissemos, operam por diferenciações, pela

desdiferença que nos constitui. O aparente paradoxo pode ser explicado de uma maneira

espacial: o corpo como forma materializada, ocupa um determinado espaço, ou seja,

estabelece limites e bordas. Porém, tais limites não são fechados, são negociados, no

sentido em que o corpo deve constantemente “conquistar” estes limites. O corpo se

diferencia de algo que podemos denominar de “meio” (muito mais no sentido de “estar

no meio de” do que propriamente pertencer a um meio). Na verdade, o corpo se

apresenta como portador de interfaces, interfaces estas que processam relações entre

dentro e fora, que, ao estabelecer e negociar nestes limites, é permitido a este corpo

relações de constância e desestabilização.

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O que faz com que o corpo se porte como algo desdiferenciado são justamente

as regras de troca que estabelece com as coisas, com o que não é ele mesmo. Tais coisas

podem fazer o corpo se perpetuar, ou, ao contrário, perecer, como apontamos no início

do nosso texto. Portanto, o corpo também se potencializa nas trocas, sejam “reais” ou

“virtuais”, que o fazem instalar a si mesmo e ao seu meio. Neste sentido, o corpo

apresenta formas de “entradas e saídas”, de pertinências e não-pertinências, de

pertencimentos e não pertencimentos. As superfícies corporais, portanto, além de operar

com as afecções, de se configurarem como potência, também têm de lidar com as

trocas, os intercâmbios, na medida em que produzem identificações, formas de relação e

ações que mantém a própria “corporalidade” na medida em que aumentam – ou

diminuem – a superfície.

A troca, nesta proposta de pensar o corpo, se apresenta então como forma de

produzir redes de contato, de dar visibilidade cada vez maior aos pertencimentos através

destes contatos. Não é apenas uma metáfora espacial, é verdadeiramente um

pensamento no qual as superfícies se comunicam. As trocas ocorrem para que o corpo

ao mesmo tempo em que permanece “igual a si mesmo”, seja diferente ao longo do

tempo. Dentre estas formas, encontramos uma que é bastante peculiar, que se apresenta,

em certa medida, como o que Serres denomina de transubstanciação. Esta

transubstanciação, esta passagem, este deslocamento, nós denominamos aqui de

comunicação. Para pensarmos esta comunicação, podemos nos remeter às passagens do

texto de Serres nas quais o autor nos fala sobre a diferença entre a teoria e a informação,

ou utilizando sua própria linguagem, entre os personagens conceituais11 Hermes e

Panoptes. Enquanto a teoria vigia, observa, busca a vigilância das relações, a

informação passa, dá passagem, espalha-se no espaço. O campo da comunicação não se

refere ao olhar, mas à pele, ao contato.

11 Serres nos diz na entrevista com Latour, o que ele compreende ser o trabalho da filosofia: criar personagens conceituais: “Porque a filosofia cria, para além de conceitos, personagens; o próprio Deleuze o disse ainda há pouco, melhor do que eu poderia fazê-lo; eis alguns deles: Hermes, o Parasita, o Hermafrodita, o Terceiro Instruído, o Arlequim.” [SERRES, 1996, p. 105] Em outro livro, Serres ainda nos diz: “A filosofia aborda, com certeza, o saber abstrato, mas também as sensações imediatas, as condutas corporais, a própria vida, enfim, as coisas como elas são. Ela inventa nos conceitos do que personagens: Hermes, o Parasita, o Hermafrodita, o Terceiro Instruído, Arlequim e Pierrô, Atlas, Anjos e Dominações, o Hominescente e o Incanescente, todos eles convertem-se em personagens que erram pelas paisagens do mundo, que têm em comum a capacidade de vibrar entre a pessoa e o símbolo, de aliar o singular ao Universal, de turbilhonar entre os dois estado de coisas que destaquei no começo destas páginas. [SERRES, 2005, p. 239]

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Falamos das relações e dos objetos, saber e vigilância, concorrência e sociedade. O mundo da informação toma o lugar do mundo observado; as coisas conhecidas porque vistas dão lugar aos códigos permutados. Tudo muda, tudo decorre da vitória conquistada pela tábua de harmonia sobre o quadro dos olhares. [SERRES, 2001, p. 45]

Para além da comunicação entendida como possibilidade de entradas e saídas de

uma determinada caixa-preta12, Serres nos propõe pensar a comunicação como uma

outra maneira de se produzir uma metamorfose. Já falamos sobre a metamorfose do

corpo a partir dos encontros que o corpo estabelece com as coisas, pelo caminho da

potência, aqui, tais metamorfoses ganham um sentido peculiar: tais metamorfoses

ocorrem por deslocamentos do corpo, por suas entradas e saídas, pelas negociações

entre o que é passível de aumentar a potência do corpo e aquilo que é passível de

diminuir esta potência. Qualquer coisa que entre em relação com o corpo, que produza

uma espécie de relação de comunicação, irá necessariamente alterar este corpo e ser

alterado por ele, como pudemos perceber quando tratamos das afecções.

Tal proposta nos mostra que a comunicação, ao invés de ser uma passagem do

exterior ao interior, de algo que é identificado como semelhante, é uma apresentação de

semelhanças e diferenças que produzem metamorfoses, transformações, transmutações

– ou, como dissemos, transubstanciação. Neste sentido, as mutações, ao invés de

estarem restritas ao erro do código – como se este se apresentasse como uma linguagem

clara, transparente –, são pensadas como possibilidades de transformação a partir dos

encontros – como a própria linguagem é pensada como metamorfose –, das

comunicações que se apresentam em relações e trocas.

Para Serres, qualquer possibilidade de comunicação deve ocorrer como

passagem daquilo que emerge como negociação, pois, a relação que ocorre numa

comunicação é algo que delimita as permissões de entrada e saída de algo que

permanece, de alguma maneira, constante. Em outras palavras, a comunicação produz

uma formatação que pressupõe a entrada e algo, daí a idéia de in-formação. Esta

entrada, como nos diz a teoria da informação, é sempre produzida para que o “sistema”

seja modificado de acordo com as exigências do “exterior”. Neste sentido, ser um corpo

12 Sobre este conceito, ver nota número 4 neste mesmo capítulo.

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é negociar, é estabelecer, com sua externalidade, uma relação de encontro na qual as

entradas e saídas são sempre passíveis de negociação.

Para ilustrar o que estamos dizendo, é importante trazer mais uma narrativa

apresentada pelo autor: a história de Cinderela. Nesta história, Serres vê a possibilidade

de metamorfose da linguagem, que se apresenta nesta passagem, que faz fluir as

comunicações e, portanto, as transmutações de Cinderela. Cinderela se transforma duas

vezes, de filha preferida a lacaia, de lacaia a princesa. A variação de Cinderela, para

Serres, se apresenta na relação entre a sapatinha de veiro e o pé da moça. O sentido da

comunicação não é a permanência da sapatinha, que determina quem é a princesa, mas é

a relação entre o pé de Cinderela e a sapatinha que estabelecem uma verdade no

momento exato em que esta relação ocorre. Há um laço fundamental que liga a

sapatinha e o pé da moça ambos se constituem como relação e se significam

mutuamente, na medida em que se apresentam interligados. O que Serres nos mostra, a

partir de sua forma narrativa, é a construção do sentido da sapatinha que é “inaugurado”

no pé de Cinderela, em toda a história, é a primeira vez que um determinado objeto dá

sentido “real”, permanente, a alguma coisa que toca. No mundo de Cinderela ratos se

transformam em serviçais e abóboras se transformam em carruagens, neste mundo de

pura significação não há sentido algum, dado que o sentido, para ser construído, para se

apresentar numa relação necessita do estabelecimento de um acordo, de um contrato.

Este contrato só ocorre no momento em que Cinderela calça as sapatinhas, toda a magia

se desfaz, os encontros estabelecem um contrato.

É neste exato momento que ocorre a comunicação, pois, a sapatinha dá sentido à

princesa, que detém seu sentido nesta negociação. Ambas se constituem no sentido dado

pela relação: é a sapatinha da princesa, ao mesmo tempo em que é a princesa por

causa da sapatinha. A comunicação, portanto, é a formatação do sentido, o

reconhecimento das partes em se constituírem como tais. É a constituição do sentido na

negociação, no estabelecimento de um contrato que faz com que as partes se

reconheçam como integrantes de uma relação. Mais uma vez, entendemos o contrato a

partir do pensamento de Serres, pois, em O Contrato Natural, Serres nos diz que esta

palavra tem origem na idéia de amarração. É no estabelecimento de laços bem

amarrados, que unem duas partes até então distintas, que estabelecemos um contrato.

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Neste sentido, o invariante – no caso de Cinderela a sapatinha – estabelece um contrato,

ou seja, amarra duas coisas num mesmo laço, laço simbólico. Torna-se o ponto no qual

a comunicação ocorre, estabiliza o sentido.

A sapatinha envolve o pé na medida do pé. O pé designa a unidade da medida. A unidade, bem entendido, não deve variar, a sapatinha que envolve na medida exata marca a variação. A sapatinha de veiro, parâmetro, torna-se a variável. Ao mesmo tempo em que Perrault escrevia seus contos, Leibniz introduzia nas matemáticas e na mesma língua, francesa e latina, a noção de variável e dava a variedade como critério da realidade de um fenômeno. A variação exige que se pense ao mesmo tempo o estável e o instável, não o instável puro que não poderia ser verdadeiramente compreendido, mas o invariante na variação. [SERRES, 2001, p. 62]

Como podemos perceber, este encontro ocorre segundo uma circunstância, ou

seja, antes dele não se pode falar nem de princesa e nem se sapatinha de princesa. Da

mesma maneira, a circunstância que permite o que se exerça a comunicação faz com

que tudo o que antes era determinado, se reconfigure. A comunicação distribui novas

atribuições, impõe novos limites e estipula novos lugares. Novos arranjos se apresentam

para dar sentido à transubstanciação. Serres nos dá um bom exemplo:

A circunstância ou a coisa não são apenas causas, elas também codificam. Vejamos: como parte do destino, ao nascer, você recebe um conjunto de cartas, como no jogo de baralho; no decorrer desse jogo, você obtém uma carta nova, das duas uma, ou ela não lhe traz nada de novo, ou transforma sua cartada medíocre numa quadra de ases. A cada instante da vida você recebe ou não um novo conjunto de cartas, no primeiro caso a seqüência transforma pouco a pouco seu jogo, a ponto de a mão anterior tornar-se irreconhecível. [SERRES, 2005, p. 261]

Neste trecho podemos, mais uma vez, perceber a importância dada às trocas, às

relações, em detrimento de uma determinação do código. Para que estas relações

ocorram, é fundamental que algumas alterações possam ser feitas, que este corpo esteja

aberto.

Em outro trecho de seu livro Os Cinco Sentidos, Serres contrapõe O Banquete de

Platão e A Santa Ceia, descrita na Bíblia, já falamos sobre este trecho no primeiro

capítulo, quando mostramos o paladar como uma dentre as diferenciações de superfície.

Mas, retomo este trecho em outro sentido, para mostrar a diferença entre duas formas de

comunicação: a do Banquete: que visa à instrução, e a da Santa Ceia, que visa ao

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compartilhamento No primeiro capítulo, escrevemos sobre a comunhão, aqui,

gostaríamos de chamar a atenção para a diferença que ocorre entre uma comunicação

que se exerce no e pelo corpo e uma comunicação que é apenas uma forma de disputa,

na qual vence quem melhor convence. Além disso, para Serres, O Banquete encena

alegorias:

Em volta do banquete, alegorias bebem: a comédia, a tragédia, a medicina... Falam alegoricamente. Só compreendemos isto verdadeiramente quando assistimos a um festim formal, onde cada instituição ocupa uma cadeira, onde cada convidado só o foi porque representa a política, a ciência, o banco, as mídias ou a administração, potências do momento. O jantar imita o dos deuses, tanto os indivíduos acreditam que só se tornarão deuses se perderem a individualização. A dona da casa poderia ter convidado robôs que falariam por programação, ao comando de teclas: o que diz um administrador ou um jornalista não pode ser tido como surpreendente, ele celebra seu poder. [SERRES, 2001, p. 176/177]

Por outro lado, a Ceia celebra a comunicação que ocorre muito mais através dos

atos e gestos dos apóstolos do que por suas colocações verbais. Enquanto que no

Banquete as pessoas falam sem degustar, na Ceia as pessoas degustam sem falar:

Cada um, Tiago, André ou João, simples pescadores da costa, da beira do lago, marinheiros de água doce, publicano ou mero coletor, não representava nada além de si mesmo, indivíduo, pobre que sonha com pesca miraculosa, patinhando no peixe escorregadio que transborda do barco, cada um bebe, por sua vez, no cálice, e o passa, dá o passe a seu vizinho, cala-se. Nunca se soube que Tiago tenha falado, nem João, nem André. Pedro falou. Para trair. Pedro, o chefe, o primeiro, o papa. O único que representa. [Idem, p. 177/178]

Nesta relação entre o Banquete e a Ceia, a transubstanciação pode ser percebida,

na medida em que se apresenta como uma forma de comunicação que ocorre no corpo.

Ao invés de ser um simples ato de informar, a comunicação transforma. O que está

implícito nesta maneira de pensar a comunicação é sua forma de fazer com que as

coisas variem. A comunicação como forma intermediária – na qual existem essências

prévias e a linguagem é uma mensagem pura – é abandonada para se buscar um tipo de

mediação no qual a linguagem é apenas mais uma das muitas maneiras de construir

relações. Desta forma, podemos nos remeter, mais uma vez, às palavras de Latour em

seu livro Jamais Fomos Modernos:

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O mundo dos sentidos e o mundo do ser são um único e mesmo mundo, o da tradução, da substituição, da delegação, do passe. Diremos, sobe qualquer outra definição de uma essência, que ela é “desprovida de sentido”, desprovida de meios para manter-se em presença, para durar. Toda duração, toda dureza, toda permanência deverá ser paga por seus mediadores. [LATOUR, 1994, p. 127]

Neste trecho, podemos perceber que trata-se de uma questão fundamental: não existem

essências anteriores às relações e, por outro lado, não existem coisas que sejam

puramente intermediários. Há sempre transformação, há sempre produção. O que

ocorre, nas palavras de Serres, é que existem legiões de anjos que, ao estabelecerem

relações, produzem a duração, a durabilidade, em outras palavras: um corpo. Os

mediadores são estes que, ao produzirem encontros, geram estabilidades. Neste sentido,

a comunicação, como mediação é uma forma de produzir encontros que serão

construídos a medida em que ocorrem. Esta é uma forma ampliada de compreender a

comunicação, na qual o sentido não se esgota na linguagem.

3.2 – A relação entre linguagem e corpo: o corpo se constitui como linguagem?

Num outro livro, A Comunicação, Serres retoma, mais uma vez, o conto de

Cinderela para nos falar da comunicação, de uma forma mais específica: a comunicação

propiciada pela linguagem. Nesta maneira de pensar a comunicação a transmutação de

que falamos, o contrato que estabelecemos, nada mais é do que a metamorfose, a

translação das coisas nas palavras. Para que as coisas possam engendrar palavras,

devem se estabelecer como uma formatação, como uma forma de estabilizar a variação

das coisas a partir da estabilidade das palavras. A forma como é feita a nomeação é

fundamental para compreendermos a linguagem: a designação. Para Serres, o ato de

nomeação se apresenta como a varinha mágica: “E se, por acaso, a varinha mágica fosse

o dedo da designação, o dedo da prestidigitação?” [SERRES, s/d, p. 221], e, ao mesmo

tempo, a fada madrinha seria aquela que designa, que nomeia: “E se a fada – fata, fateor

– fosse uma bela faladora, atirando palavras, atirando feitiços, benefícios ou

malefícios?” [SERRES, s/d, p. 222]

Desta forma, o ato de nomeação determina a constância, a amarra da linguagem,

que estabelece o contrato na medida em que dá à palavra o poder sobre as coisas, o

poder de designação. Neste momento, as palavras substituem as coisas, mas, sempre

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deslocando-as, ao mesmo tempo em que retiram sua “materialidade”, lhe dão uma

“virtualidade” que opera no intuito de dar às coisas a liberdade das palavras, seu

transporte etéreo, sua velocidade. A transformação, a transubstanciação operada pela

linguagem faz com que as coisas estabeleçam novas relações até então impossíveis, até

mesmo impensadas. A imaterialidade da linguagem dá aos objetos do mundo sua

suavidade, que permite às coisas uma variação até então não experimentada. A

passagem das coisas às palavras nos permite lidar com estas coisas desta forma etérea,

gasosa, que se desfaz em sons e símbolos, que são suaves, que habitam o pensamento.

Porém, o dedo da designação, ao mesmo tempo em que apresenta o objeto,

também o transforma, pois, esta designação pretende transformar a linguagem em coisa,

e vice-versa, enquanto pretende esconder esta transformação. É como se houvesse uma

simples transposição do objeto à linguagem e não uma transformação, uma translação.

O que queremos frisar aqui, é que este ato da designação, longe de ser uma simples

transposição, é um ato de transubstanciação, de transformação que, ao invés de transpor,

modifica, altera, transforma no momento da designação. Serres nos traz o conto de

Cinderela, e, conseqüentemente, a fada que transforma as coisas ao nomeá-las

justamente para que possamos pensar neste ato da nomeação, pois, ao apontar a varinha

para a abóbora, por exemplo, esta se transforma em carruagem pelo simples ato de

nomeá-la como tal. Em outras palavras, o ato da designação, no conto de Cinderela, faz

com que as coisas se tornem aquilo que é designado, daí a citação de Serres, quando nos

dá a fada como o dedo da designação, pois este ato, ao invés de simplesmente apontar,

produz, dá aos objetos, como dissemos, sua suavidade.

Em contrapartida, quando as coisas nos chegam aos sentidos, são afecções, são

formas de relação que se estabelecem com o corpo. Portanto, as coisas nos chegam

como dados, não no sentido restrito, de que são dados codificados, mas, num sentido

amplo, que são efetivamente formas de relação entre corpos, que, ao se relacionarem,

trocam afecções. Por outro lado, como já dissemos, o que a linguagem produz é uma

suavização da dureza das coisas, uma forma de transformação da dureza em símbolos,

leves. Assim, a linguagem faz emergir uma nova forma de apresentação13 das coisas, na

13 Evitamos falar aqui sobre representação para não entrarmos numa longa discussão sobre a linguagem como representação. Esta discussão sairia de nossa proposta. Porém, gostaria apenas de citar um trecho

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qual o funcionamento destas se modifica. Porém, esta modificação se apresenta de tal

maneira, fortalecida, que, aparenta transformar absolutamente todas as coisas em

linguagem:

Eis o mundo: até em seus pequenos recantos, calhaus, raízes, grilos, em suas dobras secretas, minas, bolsões, covas, sob a terra e no fundo das águas. No meio das florestas primitivas ou nos confins das galáxias recentemente descobertas, ele é repleto de proposições e de categorias, sem lacuna. Mesmo o desconhecido ou o inconsciente ou o indizível reintegram a linguagem. [SERRES, 2001, p. 110]

Neste trecho, percebemos a força que a linguagem exerce, seu poder de transformação,

de fazer com que as coisas se suavizem. A linguagem faz parecer que qualquer coisa do

mundo pode ser transformada em linguagem e, desta maneira, se esvaeçam, se tornem

etéreas. A informação penetra nas coisas, decodifica-as, pulveriza-as e as faz operar

numa ordem que, ao mesmo tempo em que tira a dureza, faz as coisas adquirirem

rapidez, a rapidez da luz. Porém, o que acontece é que acredita-se que o dado se esgota

na linguagem, como se esta fosse sua forma última, sua decifração. Mas, para Serres o

dado escapa, fugidio, do esgotamento da linguagem:

É bem verdade que o dado muito freqüentemente se dá na e pela linguagem, mas acontece que, por uma brecha no muro aplicativo, passa uma força que derruba. O dado às vezes faz cair do cavalo, nem sempre por uma palavra que soa. (...) A náusea nem sempre vem da escrita, ela corre da onda para a água sem que a língua se meã, barulho náutico, ruído da carne. Sim, o dado às vezes se endurece, ao passo que na linguagem ele se dá sempre suave. [Idem, p. 111]

Este não esgotamento da coisa na linguagem é o que nos faz pensar os objetos como

dados, como formas sempre fugidias, como relações sempre renováveis. A designação

não é a forma última das coisas, sua decifração, não é porque não posso transformar

coisas em palavras, mas, porque as relações entre as coisas passam necessariamente,

pelo corpo. Neste sentido, o dado não é lingüístico, mas corporal. Sendo assim, há algo

que escapa à designação, à significação, algo que ocorre a partir dos sentidos, que não

participam da codificação lingüística. Daí a relação que Serres estabelece entre a língua

que fala, que significa e a língua que sente o gosto, que degusta e nos mostra a relação

do livro Jamais Fomos Modernos sobre a dupla constituição da sociedade e da natureza operada, em conjunto, por Hobbes e Boyle: “Em seu debate, os descendentes de Hobbes e de Boyle nos fornecem os recursos que usamos até hoje: de um lado, a força social, o poder; do outro, objeto da ciência. Os porta-vozes políticos irão representar a multidão implicante e calculadora dos cidadãos; os porta-vozes científicos irão de agora em diante representar a multidão muda e material dos objetos. (...) Em breve a palavra “representação” tomará dois sentidos diferentes dependendo de estarmos falando de eleitos ou de coisas.” [LATOUR, 1994, p. 35]

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entre a sapiência e o saborear, que se estas fossem, mais do que complementares,

inseparáveis. A comparação entre o banquete e a ceia deriva desta reflexão, na qual o

corpo está presente, em detrimento da linguagem, que fala sem sentir, sem degustar:

A sensação, dizia-se, inaugura a inteligência. Aqui, mais localizadamente, o paladar institui a sapiência. Pela ancestral definição latina do humano, nossos antepassados instruídos, mas ainda sensíveis, indicavam seriamente que sem o paladar arriscamo-nos a perder o estado de homem, a recair no rol dos bichos. Antes de reconstruir o pensamento sobre a sensação, estranha empreitada, decerto queriam que meditássemos sobre uma espécie de recíproca: ao desprezar a sensação, ao substituí-la por artifícios, por discursos ortopédicos, voltamos correndo para a animalidade. O bicho come depressa, o homem saboreia. [SERRES, 2001, p. 155]

Por outro lado, a nomeação como possibilidade de se estabelecer uma linguagem

não só suaviza as coisas, mas, ao mesmo tempo dá à variedade das coisas, a unidade da

palavra.

A linguagem e o monoteísmo tornam homogêneo o trapo pagão, a técnica passa sobre nichos sagrados: destruição dos velhos deuses vicinais, abolição da gleba e dos limites. O empirismo respeita e dá vida a cem divindades locais, adorará até a do verbo. O monoteísmo torna possível a intervenção tecnicista global: para formar um espaço isótropo, foi preciso primeiro matar os ídolos. [SERRES, 2001, p. 243]

Esta unidade arbitrária opera no sentido de possibilitar o transporte, de amenizar as

relações e, portanto, de formatar as coisas através do sentido. A comunicação só pode

ocorrer nesta unificação, neste acordo, neste contrato. Mais uma vez, nos deparamos

com Ulisses e as sereias, pois, atado a seu mastro, preso com amarras apertadas à

“realidade” das coisas, Ulisses é capaz de ouvir os ruídos no mundo – da mesma

maneira em que, atados à linguagem, não nos perdemos na infinidade de sons que nos

vêm do corpo, da cultura e do mundo: “o que cantam então, o que gritam as Sereias? O

mundo banal, misto de suavidade, atraente, e de duro, repulsivo” [SERRES, 2001, p.

123].

Além disso, não nos dispersamos em meio às “divindades” do mundo, em meio

à variação que é própria do mundo. Desta forma, somos capazes de atravessar os

diversos mares de sentido para nos submetermos à linguagem. A linguagem só se torna

comunicativa, na medida em que se situa no contrato, na amarração, feita, como

dissemos, não sem violência. A violência decorre da necessidade de obediência ao

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contrato, às amarras, não se pode permitir a alteração deste contrato, daí decorrem todas

as regras, designações, explicações, significados, sinônimos, conceitos e todas as formas

de normatização da linguagem. Serres também nos lembra:

Então, desde quando a estátua reina? Desde a origem, desde o começo de nossa memória, no próprio nascimento da linguagem. Nosso primeiro ancestral descreve, o mais antigo herói cantado parte por água para as ilhas do vento ou terras desconhecidas e embalsamadas que dormem no horizonte violeta, a prisão da língua fecha-se, poética, sobre aquele que viaja e tenta perder-se para escapar a ela; apesar das tempestades desejadas, as piores sortes do mar, apesar das feiticeiras que mudam as aparências, Ulisses recai na armadilha da trama coordenada, onde sua viagem é assinalada nas laçadas de Penélope, desfeitas, refeitas, de noite, de dia, no programa textual, na língua: tudo isso ele canta no banquete do rei, mata os pretendentes, que não cantam, no último festim na casa de sua mulher. [SERRES, 2001, p. 201]

Desta forma, Ulisses retoma a linguagem, refaz o percurso e estabelece sua lei. Ao

impor sua volta, seu retorno, retoma o sentido em suas próprias mãos, constitui seu

sentido e significado.

Porém, não somos herdeiros apenas desta cultura grega. Para além da tradição

grega, encontramos em um autor alemão, conhecido tanto pela riqueza do seu

pensamento, quanto pela sua origem judaica, uma forma de compreender a nomeação

que pode nos ajudar a compreender tal ato de uma maneira que nos facilite compreender

porque Serres evoca, tantas vezes, a tradição judaico-cristã, ao invés da tradição greco-

romana. Estamos nos referindo ao texto Questões Introdutórias de Crítica do

Conhecimento, na Origem do Drama Barroco de Walter Benjamin. Neste texto, o autor

se remete ao ato adâmico de nomeação14, e desta forma, nos desloca do próprio sentido

dado ao logos grego para fazer falar uma outra tradição que nos atravessa, como

dissemos acima, a cultura judaico-cristã. Isto ocorre porque Benjamin compreende que

encontramos nesta cultura, tanto quanto na cultura grega, nossa herança, seja na forma

14 Refiro-me aqui à passagem do texto de Benjamin, apenas para apontar esta nossa herança judaico-cristã, para tornar relevante a importância desta herança para a questão da relação entre linguagem e corpo. Sabemos dos limites de tal relação, da diferença entre as posturas teóricas os autores e da preocupação de Benjamin com a legitimação de seu trabalho sobre o drama barroso como questão propriamente filosófica daí decorre sua relação entre Platão e Adão Porém, gostaria de ressaltar um trecho do autor, para esclarecer o lugar de suas reflexões: “A verdade não é uma intenção, que encontrasse sua determinação através da empiria, e sim a força que determina a essência dessa empiria. O ser livre de qualquer fenomenalidade, no qual reside exclusivamente essa força, é a do Nome. É esse ser que determina o modo pelo qual são dadas as idéias.” [BENJAMIN, 1984, p. 56]

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do pensamento, seja na forma da relação entre linguagem e coisa, seja na maneira de

compreendermos o corpo. Serres, ao mesmo tempo em que se remete à Ulisses, também

nos traz Adão, como aquele que nomeia, que ordena. Da mesma forma, Serres nos diz:

“Nosso primeiro ancestral, na margem defronte, muito contente com seu festim de

frutas, no meio das árvores, nu em companhia de sua bela mulher, trata logo de nomear

as espécies.” [Idem, p. 201] Para Serres, tanto Ulisses quanto Adão “dizem a gênese da

língua” [Idem, p. 201]

Na tradição judaico-cristã, a linguagem ganha ênfase por apontar para o ato da

nomeação como ato inaugural da humanidade. No momento em que Adão nomeia, se

torna homem, se humaniza ao relacionar as coisas às palavras. É como se, no ato da

nomeação, as coisas ganhassem uma outra vida, sob a égide do contrato. Os homens,

como criaturas de Deus, são aqueles capazes de dar às coisas uma outra possibilidade de

existir, nas palavras. O domínio humano sobre a Terra, dado por Deus, se constitui neste

ato de nomeação. Ato que se repete no momento em que “O Verbo vira carne e habita

entre nós”. Neste caminho inverso, no qual é a palavra que ganha “corpo”, Serres vê a

religião do corpo, da carne, na medida em que Jesus, ao transubstanciar o pão em seu

corpo e o vinho em seu sangue, também dá um novo sentido a estas palavras, cria um

novo contrato e pede que este ato se repita “em memória dele”. Mas, este contrato

frágil, só pode ser compartilhado por poucos, por aqueles que estão “em comum”

acordo com esta nova significação. Cria-se uma nova religião que advém de um novo

sentido, de um nov contrato que deve ser sempre refeito.

Isto é vinho – como se pode chamar isto de vinho? – isto é espírito isto é meu sangue. (...) O vinho circula entre nós, corpos em comunhão. Aqui estamos unidos, reunidos, não formamos mais que um só corpo, unânime. A mesma alma circula entre nós, sangue novo do corpo coletivo. (...) A velha ambrosia dos velhos deuses passa para o meio da comunicação, doravante imortal, ao contrário dos indivíduos, mortais. Sangue da eterna e nova aliança. Bebam o vinho, vertam o sangue, percam sua singularidade para vertê-la à comunidade, ligações, alianças antigas e novas, confusão ainda e sempre, aparição de um tempo novo e de promessas novas, lembranças. Façam isto em memória de mim. [Idem, p. 185]

Por outro lado, podemos pensar que o próprio corpo se constitui neste ato de unificação

no qual o nome se apresenta. Mas, sabemos também que o ato de nomeação não esgota

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as possibilidades do corpo, por isso deixamos esta discussão para o último capítulo,

porque, ao longo de todo o texto pudemos refletir sobre as múltiplas possibilidades de

se pensar o corpo. A linguagem é apenas mais uma dentre estas possibilidades de

transubstanciação. Porém, vale lembrar a força que esta maneira de compreender o

corpo possui em nossos dias e em nossa cultura. Para enfatizar esta importância, Serres

nos diz:

Então passamos das religiões antigas à nossa, das religiões dos sentidos à do verbo, do corpo à palavra, das filosofias da experiência às da linguagem, esta narrativa data de ontem, ou de dez anos, ou de quase dois mil anos, ou do momento perdido em que o mundo se refugiou na linguagem pela palavra daquele que se torna homem ao dizê-la. Eis exatamente o primeiro discurso: isto. Isto é o corpo e o sangue do próprio verbo, Isto seria mais que uma palavra? [Idem, p. 187]

Portanto, a palavra ganha força e posição de destaque em nossa cultura, a tal ponto que

buscamos compreender todas as coisas pela passagem destas à linguagem. É como se

não fosse possível nenhuma relação que não pudesse ser dita, explicitada pela palavra.

A palavra se torna a visibilidade última das coisas, sua exposição máxima.

3.2.1 – A questão do sentido: ampliação do dado, que se transforma em dom

Porém, podemos estender a questão da linguagem, para que o sentido seja

pensado como algo mais amplo. A linguagem não se restringe à designação, mas, é algo

que, como dissemos dá novas dimensões às coisas. O sentido traz uma questão até então

não colocada: o problema da interpretação. Um problema que, de alguma maneira,

atravessa o pensamento de Serres, na figura de Hermes. Mas, o que Serres entende

como a função de Hermes não está necessariamente restrita à linguagem, a mensagem

que Hermes carrega, na verdade, é o que Serres denomina de dom, aquilo que

transforma o caminho, que muda as relações.

Desta forma, podemos pensar que o sentido é a própria possibilidade de conectar

elementos díspares e heterogêneos que busca arranjos e aproximações antes

impossíveis. Além disso, o sentido “amarra” coisas até então livres, até então errantes, à

deriva. O ato de tricotar pode nos ajudar a refletir sobre a questão do sentido. Neste ato,

o traçado feito pela linha e pela agulha é um misto de apertos e afrouxamentos, de nós e

de laçadas que, ao se formarem constituem a trama do tecido. As laçadas, que são

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passagens da linha pelas agulhas, determinam as configurações dos relevos e a força do

tecido: quanto mais apertadas as laçadas, menos visíveis são os espaços entre um ponto

e outro. Da mesma forma, o sentido é constituído menos pela coisa que se apresenta a

partir dele e mais pelo engendramento anterior das relações que foram traçadas ao longo

do caminho de reprodução deste sentido. Em outras palavras, é na repetição de um

mesmo gesto, na construção de encontros e de novas laçadas, que lentamente emerge o

sentido.

Para entender um pouco melhor o que estamos tentando dizer, devemos entender

o sentido a partir daquilo que o materializa: o símbolo. Além disso, devemos pensar que

o símbolo é algo que se apresenta com uma certa transparência, na medida em que ele

não se esgota em si mesmo, mas, ao contrário, nos remete sempre a outra coisa. Desta

maneira, não podemos falar de sentido se não falarmos de interpretação. Portanto, o

sentido se estabelece a partir do surgimento de um símbolo que requer interpretação.

Sabemos que a tradição filosófica se apropria do significado da palavra símbolo

deslocando-o de sua forma original: símbolo, que para os gregos significa “lançar

junto”, era uma espécie de cerâmica que, ao ser quebrada produzia um contorno único,

somente completo com a outra metade da mesma peça. Cada parte deste símbolo era

entregue a uma pessoa: a primeira era o hospedeiro e a segunda o hóspede. Os gregos

utilizavam tal objeto para reconhecer seus amigos, quando se reencontrassem, depois de

terem compartilhado a refeição, era um encontro que marcava a hospitalidade do

anfitrião e a possibilidade de retorno do viajante. Estabelecia-se uma espécie de

“contrato” no qual o reencontro entre anfitrião e viajante marcava sempre o

reconhecimento de ambos. Portanto, não importava o lugar e a ocasião do encontro, o

símbolo marcava a semelhança entre eles. Pressupunha-se que somente os “amigos”

eram capazes de portar o símbolo. Assim, a relação simbólica ocorre para marcar as

semelhanças, em detrimento das diferenças. Além disso, o símbolo não é nada sozinho,

são necessários, no mínimo, três coisas para se estabelecer o símbolo: o anfitrião, o

hóspede e a cerâmica. Sem tais componentes, não podemos falar de símbolo. Portanto, o

símbolo pressupõe um enlaçamento, um nó que une coisas heterogêneas, numa mesma

relação.

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O símbolo não se esgota em si mesmo, como dissemos, porém, ele se constitui

como um nó, uma laçada, uma amarração que busca constituir, em meio aos

afrouxamentos da realidade, um caminho seguro, passível de ser reconstituído, enfim,

busca instituir uma formatação em meio à diversidade. O símbolo reúne, em meio à

heterogeneidade das relações possíveis, elementos desconexos para que estes se

reconheçam como “pares”, ocorre um emparelhamento de coisas díspares. Para que isso

ocorra, como dissemos anteriormente, é necessário “firmar o sentido” com amarras bem

apertadas, em contraposição à diferenciação que se encontra no mundo empírico. Sobre

tal questão, Serres nos diz:

Excluir o empírico é excluir a diferenciação, a pluralidade dos outros que encobre o próprio. É o primeiro movimento da matematização, da formalização. Neste sentido, o pensamento dos lógicos modernos acerca do símbolo é semelhante à discussão platônica acerca da forma geométrica desenhada na arena: é preciso eliminar a cacografia, a tremura do traçado, o acaso do traço, o defeito do gesto, o conjunto dos reencontros que fazem com que nenhuma grafia seja estritamente da mesma forma que qualquer outra. Do mesmo modo, a coisa percebida é indefinidamente discernível: seria preciso uma palavra diferente para todo o círculo, símbolo, árvore ou pombo; (...) Na extrema conseqüência do empirismo, o sentido está totalmente imerso no ruído, o espaço da comunicação é granular, o diálogo está condenado à cacofonia: o transporte da comunicação é transformação perene. Então, o empírico é estritamente o ruído essencial e acidental. (...) A partir daí, para que o diálogo seja possível, é necessário fechar os olhos e tapar os ouvidos ao canto e à beleza das sereias. [SERRES, 1985, p. 35/36]

Como podemos perceber, para Serres, não é pressupondo a simples clareza do sentido

que podemos entender o símbolo. Ao contrário, o símbolo emerge de um fundo de

ruído, da interferência originária, como ele nos diz, da empiricidade originária, da

diversidade.

Por outro lado, o símbolo é, ao mesmo tempo, o que instaura o sentido e o que

escapa deste sentido. O que queremos dizer é que o símbolo requer interpretação e

reconhecimento, das partes envolvidas, do sentido que ele carrega. Desta forma, tudo

aquilo que requer interpretação, pode ser pensado como símbolo. Há um deslocamento

do sentido original dado ao símbolo para o sentido pensado na filosofia. Em certa

medida, continuamos falando de partes que devem ser “encaixadas”, porém, ampliamos

os encaixes. Dito de outro modo: pensamos que os símbolos são passagens, são coisas

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que se apresentam sempre para mostrar outra coisa que não é a si mesmo. Símbolos são

coisas que nos exigem interpretação, são pontos de passagem, são caminhos. Como

conseqüência, podemos pensar que, mesmo o corpo, é passível de interpretação, se

apresenta de maneira simbólica.

Para que possamos elucidar a questão posta acima, devemos refletir um pouco

mais sobre a questão da interpretação e como tal questão se relaciona ao corpo.

Portanto, iremos, nos próximos parágrafos, nos remeter à tradição filosófica da

hermenêutica – que é a tradição que se ocupa deste problema de forma mais detalhada.

E, especificamente, pensar a como a questão do símbolo e da interpretação se tornaram

algo fundamental na compreensão contemporânea do corpo, a partir dos estudos feitos

por Ricoeur, mais nomeadamente, sobre o trabalho de Freud. Tal questão é importante

porque, a partir dos estudos freudianos, se desenvolve uma corrente de pensamento que

acredita que o corpo é sempre representação simbólica, ou passível de reduzir ao

sentido, mais do que à linguagem.

Na verdade, é o próprio sentido da palavra hermenêutica, como inauguração de

um pensamento que questiona a clareza do sentido, que nos intriga aqui. Porém,

gostaria de apontar para alguns caminhos que justificam nossa escolha. Primeiro,

gostaria de pensar na hermenêutica como um caminho traçado por Hermes, este

caminho que produz sentido, que cria relações até então não apresentadas. Neste sentido

nos aproximamos de Serres, dado o grande número de referências a este mensageiro na

obra do autor. Mais uma vez, nas entrevistas que cede a Latour, estes autores discutem a

questão da hermenêutica no trabalho de Serres (1996) a partir da figura do próprio

Hermes:

Agitado, por passar por todo lado, na enciclopédia completa, que trabalho; agitado, isto é, ativo, e não preguiçoso; trapalhão, ou seja, para criticar as ordens obsoletas, rir-se delas, mostrar que o espaço do saber mudou de relevo e que este perfil é mais acidentado do que se julga; trapalhão, ou seja, desembaraçado no meio do caos, eis o nome que Platão deu ao pai do amor, desembaraço ou, em termos mais nobres, expediente; mais do que turista, errante e miserável, atravessando o deserto; sim, e muito pior ainda, zaragateiro. Mesmo ladrão, se quiser! Ao mesmo tempo bom e mal. Hermético, além disso. (...) A personagem de Hermes está agora completa. Universal e singular, concreta, abstrata,

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formal, transcendental e narrável. [SERRES, 1996, p. 161/62]

Portanto, Hermes é menos um personagem do que a própria passagem, o ato de passar

por vários tempos e vários espaços. Hermes é o deus das passagens, o que faz dele o

deus da relação, desta forma, Hermes também pode ser pensado como aquele que

constitui o sentido, na medida em que, ao arrumar as relações, desloca as coisas de seu

lugar, lhe dá um sentido, lhe transmite um dado. Assim, o dado é pensado como este

dom, que é transmitido por Hermes e pela legião de anjos.

Podemos pensar que, nesta perspectiva, o sentido se encontra sempre como

possibilidade, como forma de organização das coisas na qual a própria constituição de

algo ocorre nesta relação com o sentido. O sentido, portanto, é aquilo que dá a

existência a algo. Retomando o ato adâmico, podemos pensar que, na tradição judaico-

cristã o que ocorre é exatamente isso, no momento da nomeação é como se as coisas

passassem a existir, ou a se constituir como algo que se produz na relação com o próprio

ato adâmico da nomeação. Sem a nomeação não há existências das coisas. Da mesma

maneira, no ato inaugural do mundo, as coisas passam a existir no momento em que

Deus, através de sua palavra, diz “Faça-se”. Nesta tradição o ato da nomeação é

anterior, e por isso mesmo, as coisas surgem deste ato.

Após este esclarecimento, gostaria de, em segundo lugar, esclarecer as

aproximações e afastamentos de Serres desta tradição para que a discussão sobre a

possibilidade de pensar o corpo como linguagem se torne mais clara, na medida em que

existem leituras diferentes sobre a linguagem que geram caminhos, muitas vezes

opostos na constituição de relações entre a linguagem e o corpo. Para que possamos

efetivamente discutir esta relação, devemos nos remeter à tradição hermenêutica, que

toma como pressuposto o que dissemos acima: a antecedência do ato de nomeação,

como forma de tornar as coisas existentes.

A tradição hermenêutica, escolhida por nós, como dissemos anteriormente, têm

em Paul Ricoeur15 um dos filósofos que, mais do que afirmar a possibilidade da

interpretação, questiona-a, é intrigado por ela. Ricoeur é um autor que busca pensar a

15Autor contemporâneo que dedicou suas reflexões e muitas de suas obras à hermenêutica, escolhida para nosso trabalho devido à importância do seu pensamento para a filosofia de língua francesa.

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interpretação, num sentido grego, como thauma, ou seja, como aquilo que nos move a

pensar, como aquilo que requer explicação, que se apresenta como problemático. Por

outro lado, utiliza-se também da tradição judaico-cristã para pensar este ato inaugural

do sentido, sua potência de nomeação. Neste autor, a questão da interpretação emerge

de uma dupla inserção: filosófica e religiosa. Porém, não é apenas nestes campos que

Ricoeur irá pensar a interpretação. O que intriga Paul Ricoeur, em seu texto Da

Linguagem, do Símbolo e da Interpretação é justamente o problema trazido pela

psicanálise, sobre a interpretação. Neste sentido, Ricoeur propõe pensar muito mais

naquilo que escapa à interpretação do que propriamente naquilo que a interpretação

efetivamente faz. Desta forma, podemos refletir sobre esta relação entre corpo e

linguagem, na medida em que, é na psicanálise que encontramos tal relação posta de

maneira mais explícita, pois, é no corpo que ocorrem os sintomas, ou seja, aquilo que é

passível de interpretação, na psicanálise.

Ricoeur nos apresenta duas possibilidades de interpretação das quais somos

herdeiros: a que ele identifica em Aristóteles (tradição filosófica) e a exegese bíblica

(tradição judaico-cristã). Em Aristóteles há a idéia de interpretação como “imposição”

de um nome a uma coisa “não designa uma ciência versando sobre significações, mas a

própria significação, a do nome, do verbo, da proposição e, em geral, do discurso.”

[RICOUER, 1977, p. 28] Quando nomeamos as coisas, estamos dando-lhes um sentido

e este sentido já marca um distanciamento: “A ruptura entre a significação e a coisa já

se realiza com o nome, e essa distância marca o lugar da interpretação.” [Idem, 1977, p.

29] Mas, em Aristóteles, mesmo que essa significação deixe certa abertura na relação

entre coisa e nome, tal distinção é ainda muito geral para abrigar as miríades das

interpretações multívocas. Mesmo que o ser “se diga de muitas maneiras”, isso não quer

dizer que haja uma multiplicidade de interpretações, apenas quer dizer que há várias

maneiras de se falar de um mesmo ser, que é uma unidade lógica e ontológica. “A

noção de significação requer a univocidade do sentido: é o que exige a definição do

princípio de identidade, em seu sentido lógico e ontológico.” [Idem, 1977, p. 29]

Porém, para Serres, tal princípio de identidade, pode ser sim, pensado como

unidade lógica, porém, não como unidade ontológica, na medida em que, dizer que uma

coisa é igual a si mesma, não significa dizer que o nome esgota o sentido das coisas. Ao

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contrário, se o nome é dado às coisas, posteriormente à sua existência, então não

podemos dizer que as coisas “pertencem” ao nome que lhe é dado. Como dissemos, há

um distanciamento entre coisa e palavra, na medida em que, antes as coisas existem,

depois são nomeadas. Num outro sentido, mesmo que o nome se distancie dos objetos,

podemos pensar que, sem este nome, os objetos não se constituem como tais, pois, a

nomeação como ato, é o que dá o dom às coisas. Neste sentido, não é possível pensar

algo que não se apresente através do dom da linguagem. O corpo, por sua vez, na

medida em que é significado, também é dotado da graça:

Ela, a carne, ela, a mãe, a sensibilidade corporal, concebe virginalmente o verbo: sem que o dado a afete a não ser pelo verbo. Antes de assim conceber, ela mesma foi concebida imaculada. O dado só vem da linguagem: o corpo nunca recebeu nada senão verbo. Antes de só receber verbo, antes, portanto, de receber, ele nunca recebera nada. (...) Só o anjo anuncia o que nos faz recordar que o corpo se enchia de graça antes que o verbo o anulasse e o tornasse, por efeito retroativo, carne imaculada. (...) Quando o verbo a satura, a carne perde essas antigas graças, velhas mensagens incompreensíveis em língua, esquece, desbota, a graça. Ela abandona a carne quando o verbo se faz carne. [SERRES, 2001, p. 205/206]

Como percebemos no texto acima, a linguagem como dom se apresenta no instante da

nomeação, no ato de nomear, de significar. Neste momento, a cerne se faz graça, se dá

ao sentido, se apresenta na ligação, no enlaçamento do significado.

Portanto, fica clara a idéia de que encontramos o problema da interpretação

justamente na tradição judaico-cristã, a partir da interpretação na exegese bíblica.

“Nesse sentido a hermenêutica é a ciência das regras da exegese, sendo esta entendida

como interpretação particular de um texto. É incontestável que o problema da

hermenêutica constitui-se, em grande parte, nesse recinto da interpretação da Sagrada

Escritura” [Idem, 1977, p. 30]. Mesmo que a exegese não se limite à noção de analogia,

esta é fundamental até mesmo para pensarmos a respeito da própria idéia de exegese

como uma “transposição” dos limites da escritura enquanto tal. É compreendendo o que

significa uma analogia, que podemos compreender o sentido da transposição, da

interpretação e da significação. A analogia, que no pensamento grego, coloca as coisas

em proporção, nos faz compreender que nesta relação, o sentido emerge como

ponderação, como forma de por em conexão sentidos diferentes para que estes se

relacionem. É como se o homem, pela analogia, fosse capaz de compreender as coisas

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de maneira mais ampla. O exemplo de Serres, para pensar a peculiaridade do povo

grego, é Tales aos pés da pirâmide. A comparação da sombra de Tales e a sombra da

pirâmide, o capacita, por analogia, a medir a altura da pirâmide, por proporção.

Portanto, a significação da altura da pirâmide só pôde ser conhecida em relação à altura

de Tales. O sentido, portanto, não advém das próprias coisas, não é ontológico, mas,

relacional. Além disso, é com seu próprio corpo que Tales relaciona o tamanho da

pirâmide, assim, o sentido também passa por este dado: o corpo significa a pirâmide e

vice-versa, o sentido constitui a ambos.

Por outro lado, podemos pensar a analogia de uma outra maneira: há analogia

entre coisas que, a princípio, não possuem uma semelhança aparente, nem mesmo uma

semelhança lingüística que pode ser pensada como comparação de uma palavra a outra.

Mas, há uma diferença “de natureza” entre as coisas postas em analogia. A interpretação

carrega esta possibilidade de “dar sentido” a coisas que, a princípio não poderiam ser

postas na relação analógica. Como exemplo, em Freud, temos os sintomas histéricos,

que, grosso modo, são postos “em analogia” com os desejos reprimidos do paciente. O

que significa dizer que é possível constituir uma relação do corpo com o sentido, que

até então não foi imaginada: o corpo “fala” sobre o desejo. O corpo estabelece um novo

sentido para seu próprio desejar, dá o dom do desejo, recebe o sentido do corpo.

Estabelece paragens, ligações, sentidos para o que não pode se expressar por palavras: o

corpo se expressa a partir de um outro sentido: novos dons são estabelecidos pelo desejo

que não se esgota na linguagem.

Para compreender o que Ricoeur pensa sobre a analogia, nos remeteremos à

metáfora do livro da natureza: “Essa metáfora faz surgir uma extensão possível da

noção de exegese, na medida em que a noção de “texto” ultrapassa a de “escritura””

[Idem, 1977, p. 31]. Neste sentido, a própria interpretação não se vê mais aprisionada

nos muros da “escritura”, o que, em certa medida, amplia, desloca, “traduz” a própria

exegese, de tal maneira que ela altera seu lugar. Tal “alteração” traz conseqüências

importantes, pois, o próprio Freud apela para uma interpretação que não se reduz à

“escritura”, nas palavras de Ricoeur:

Freud recorre a ela [noção de “texto” libertada da noção de “escritura”] com freqüência, especialmente quando compara

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o trabalho da análise com a tradução de uma língua para a outra. O relato do sonho é um texto ininteligível que o analista substitui por um texto mais inteligível. Compreender é fazer essa substituição. [Idem, 1977, p. 31]

Vemos neste trecho, que a interpretação, como o próprio Ricouer coloca, não pode ser

apenas textual, ela se apresenta de maneira mais analógica. O próprio conceito de

tradução, como dissemos alhures, possui um sentido muito mais amplo do que a pura

transposição de palavras entre línguas diferentes. Interpretar sonhos não significa

transformar imagens em palavras, símbolos em significados, muito mais que isso, a

tradução sempre opera num outro nível: a interpretação do analista sempre acrescenta

um sentido àquilo que, a princípio, não possui sentido algum. Se estendemos nossas

reflexões, chegamos ao ponto de afirmar que a interpretação pode ser pensada como

uma forma de relacionar-se não apenas com a linguagem, mas, com o próprio corpo.

Retomamos aqui a questão do sintoma: só compreendemos aquilo que acontece no

corpo como sintoma, na medida em que interpretamos determinadas maneiras de

apresentação do corpo, como algo que possui um sentido que não está explícito. A

psicanálise, neste sentido, constitui uma nova maneira de interpretar o corpo, no qual

este se apresenta como algo a ser decifrado.

Mesmo que não seja nosso objetivo nos aprofundar nesta questão da

interpretação freudiana, nos chama a atenção a colocações do corpo em termos de

decifração. Por um lado, podemos pensar que a proposta freudiana se apresenta como

uma abertura para este novo dom: o corpo é interpretado a partir de novas relações, de

novas formas de compreensão que não estão previamente dadas. Neste sentido, o corpo

se dá de forma inédita, apresenta um novo dom. Porém, na medida em que este corpo se

vê aprisionado ao modelo de interpretação analítica, mais uma vez, o dom se transforma

em saturação, satura a carne de palavras, busca aprisionar o dado, a graça, numa forma

única de interpretação. Assim, Serres nos alerta:

O dom não corresponde á nenhuma obrigação: o doador não o deve, ao recebedor ele não é devido. Poderia chamar-se o dado. Salve, corpo cheio de dados gratuitos, por ele recebidos como dons do mundo. O que entra pelos sentidos ou por eles no corpo não se paga nem em dinheiro nem em energia ou informação, nem em moeda de qualquer espécie, assim concordamos em chamá-lo dado. Salve, carne plena desses dons. [SERRES, 2001, p. 207]

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Como podemos perceber, o caminho da interpretação traduz o corpo, nos dá

mais uma forma de compreensão deste corpo cheio de dons. Porém, mais uma vez, o

corpo não se esgota neste único dom. A interpretação, como forma de apreensão do

corpo pela linguagem, ao mesmo tempo em que nos dá uma nova possibilidade de

compreender o corpo, busca torná-lo seu único caminho. Como escape, o corpo não de

deixa interpretar, produz novos sintomas, novas forma de expressão. No texto Nas

dobras do corpo..., Eliana Schueler Reis nos traz um caminho alternativa ao nos dizer:

O que é parte da matéria perturbadora do corpo, o que escapa à ordem da castração, se deixa atravessar por outro corpos, se dispersa em percepções alucinadas ou encena próteses monstruosas, este fica sendo território da psicose ou da perversão, lugares que a psicanálise ainda não se aventura muito, por serem territórios por demais sinistros e incontroláveis. [REIS, 1997, p. 337]

Neste trecho, fica clara a proposta de captura do corpo operada pela psicanálise e, ao

mesmo tempo, suas vias de escape. Assim, ao querer capturar o corpo em modelos de

interpretação, a psicanálise opera, ao mesmo tempo, um deslocamento de proposta de

pensar o corpo, inova, ao considerar a linguagem do corpo como algo passível de ser

interpretado. Dá um novo dom a este corpo. Por outro lado, a psicanálise também

captura o corpo em formas de linguagem que não permite a este corpo novas

possibilidades. Porém o próprio Freud reconhece, em seu texto, Análise Terminável e

Interminável, os limites da interpretação na medida em que nos diz que em momento

algum, afirma a completa eficácia do tratamento analítico, nem num sentido estrutural

(qualquer pessoa, mesmo sendo neurótica, é passível de análise, independente de sua

constituição egóica e pulsional); nem num sentido temporal (mesmo que a análise seja

bem-sucedida, nada garante que, depois de um certo tempo, aquele próprio paciente

venha a ter “recaídas”, seja devido à força das vicissitudes da própria vida; seja por

enfraquecimento do ego diante de tais vicissitudes).

Deste fato, podemos pensar a questão da interpretação nos seus limites: a

interpretação analítica, pelo menos, esbarra em muitos fatores que não conseguem ser

“traduzidos”, ou seja, há um limite para a interpretação. Tal limite pode ser encontrado

nas relações entre o ego e a pulsão. Mas, o que nos diz tal relação? Freud aponta para

três fatores decisivos para o sucesso do tratamento analítico: “a influência dos traumas,

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a força constitucional das pulsões e as alterações do ego”16. Destas ele destaca a força

das pulsões, que não seria apenas constitucional, mas que sempre remete a uma ocasião

na vida do paciente. A questão do fim da análise nos remete ao problema da

interpretação na medida em que, para o tratamento analítico, não há como delimitar um

fim. É claro que, como Freud mesmo aponta, uma análise termina quando analista e

paciente não se encontram mais. Mas, dito de outro modo: será possível um

esgotamento da interpretação? Freud nos diz que não. Inicialmente, não conseguimos, é

claro, transformar todo o conteúdo inconsciente em algo consciente. Além disso, há um

constante investimento da pulsão que não se esgota nem na relação analítica

(transferência), nem em qualquer relação estabelecida pelo paciente futuramente. Não

há previsibilidade possível, nos alerta Freud. Daí uma certa “interminabilidade” do

tratamento analítico. O que se propõe então, é um fortalecimento do ego, a tal ponto que

este se torne “forte” o suficiente para lidar com futuras vicissitudes.

Ainda neste texto, encontramos um caminho que nos leva de volta ao texto de

Ricoeur: se pensarmos no que Freud fala a respeito da pulsão, podemos perguntar: o que

significa dizer que há uma força da pulsão? Freud ressalta a questão da economia, e seu

conseqüente remetimento ao fator quantitativo na análise. O conceito de repressão

aponta para este fator e, para Freud, o fortalecimento do ego ocorre também de uma

forma que poderíamos entender como sendo quantitativa. Mas, qual seria o papel da

interpretação neste sentido? O próprio Freud nos alerta, como dissemos acima, para a

questão de que, se um conflito não está presente na análise, o analista não tem nenhum

poder sobre ele, portanto, não há interpretação possível de conflitos que não surgem no

setting analítico (ou seja, que não ocorrem na transferência): “Se um conflito pulsional

não está presentemente ativo, se não está manifestando-se, não podemos influenciá-lo,

mesmo pela análise.”17 Se fosse possível “prever” todos os eventuais problemas futuros

do paciente, poderíamos dizer a ele o que fazer quando estes conflitos surgissem. Mas,

Freud nos alerta que mesmo falando ao paciente sobre a possibilidade de outros

conflitos pulsionais, tal relato não produz efeito algum no paciente, segundo ele: “O

resultado de “instruir” o paciente acerca de futuros conflitos para fortalecê-lo] não

16 Freud, Análise Terminável e Interminável. In. Edição Standart Brasileira das Obras Psicológicas

Completas de Sigmund Freud, Vol. XXIII, pg. 256. 17 Freud, op. cit., pg. 263.

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ocorre. O paciente escuta nossa mensagem, mas não há reação.(...) Aumentamos seu

conhecimento, mas nada mais alteramos nele.”18 Este fato é bastante significativo, pois,

a questão do sentido não pode estar desvinculada da força pulsional. O que significaria

tal fato? Em última instância, a psicanálise não pode abrir mão disto que Paul Ricoeur

nos diz em O Conflito das Interpretações: Ensaios de Hermenêutica: que nenhum dos

dois fatores que influenciam o pensamento de Freud podem ser negligenciados. Nas

palavras do autor:

O problema hermenêutico encontra-se, assim, situado do lado da psicologia: compreender é, para um ser finito, transportar-se para outra vida. [Que] nos remetem a uma problemática muito mais fundamental: como a vida, ao se exprimir, pode objetivar-se? Como, ao objetivar-se, elucida significações suscetíveis de serem retomadas e compreendidas por outro ser histórico, que supera sua própria situação histórica? Encontra-se posto um problema maior (...) o da relação entre a força e o sentido, entre a vida portadora de significação e o espírito capaz de encadeá-los numa seqüência coerente. Se a vida não for originariamente significante, a compreensão será sempre impossível.19

O que podemos perceber, a partir das considerações postas acima, é que a

interpretação não pode abrir mão da historicidade da narrativa. Se, para Freud, a força

da pulsão está intimamente ligada ao sentido, a significação destas forças desejantes,

então não é possível pensar o corpo sem interpretação. Porém, tal interpretação não

pode ser considerada como algo esgotado, finito, algo que se apresenta para além da

vida, das circunstâncias. “O gênio não se deixa prender, o corpo não deixa esclarecer as

suas causas e seus efeitos, há sempre um pedaço que fica na sombra, que se encolhe

enquanto outro incha; se oculta enquanto se mostra; um efeito colateral quando há uma

cura.” [REIS, 1997, p. 338] O corpo não é algo que se apresenta em sua clareza, seja

pelo sintoma, seja pela interpretação. A objetividade do corpo não é algo que possamos

apreender, nem mesmo pela interpretação.

No texto de Serres, encontramos esta mesma mobilidade, Hermes não se deixa

capturar, em sua trajetória fugidia, produz significados, mas escapa, encontra-se sempre

18 Freud, op. cit., pg. 266. 19 Ricoeur, Existência e Hermenêutica. In. O Conflito das Interpretações: Ensaios de Hermenêutica, pg.

9.

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em outro lugar. Sobre esta mobilidade de Hermes, podemos nos remeter mais uma vez

às entrevistas de Serres:

Poderia chamar imperialistas os comentários que outrora criticava (...) porque utilizavam uma única chave para abrir todas as portas e janelas: a chave-mestra psicanalítica, marxista, semiótica, e assim por diante. (...) Sempre que se procura abrir uma fechadura diferente, é necessário forjar a chave específica, portanto, evidentemente irreconhecível e sem equivalente no mercado dos métodos. [SERRES, 1996, p. 129]

Serres não concebe nem o corpo e nem mesmo a realidade com algo passível de ser

capturado, posto em uma única porta, na qual se possui uma única chave. Neste sentido,

a interpretação deve ser exercida, a todo tempo e em todos os lugares. Serres multiplica

seus personagens conceituais, lhes dá uma forma de atuação, doa a eles sua existência,

porém, não inscreve seus personagens sem mundos que lhe são estranhos. Todos os

personagens habitam seus lugares próprios, constituem seu próprio mundo e dão

sentidos novos ao mundo que conhecemos. Por outro lado, os personagens conceituais

não se apresentam de forma isolada, não são aquilo que se apresenta apenas numa

parcialidade, eles constituem sínteses do mundo. “Imagine um ponto, e extraia dele um

mundo. (...) A demonstração traz a transparência a um lugar extremamente obscuro, um

raio de sol que passa por um buraco. [Idem, p. 135]

Serres nos apresenta seus personagens para que possamos compreender a

interpretação de uma maneira diferente: qualquer conceito pode ser pensado em termos

de narrativa, qualquer interpretação pode ser pensada como ambiguidade na medida em

que sempre se refere a algo que não está dado. A interpretação ocorre interligada à

narrativa na medida em que os personagens não pretendem ser qualquer outra coisa, a

não ser personagens, a não ser narrar suas histórias. Fica claro que o uso deste termo já

nos entrelaça com a narrativa, pois, os personagens são sempre narrados, nunca são

passíveis de serem retirados de seu próprio contexto. Os personagens possuem uma

natureza dupla: são ao mesmo tempo locais e globais. São locais porque, como

dissemos, se apresentam em seu contexto, mas, são também globais porque sua

apresentação, sua cena, ultrapassa os limites de sua própria narrativa. A síntese exercida

pelo personagem, faz com que este extrapole seu lugar de nascimento, esta é sua

produção de sentido, o que requer interpretação. Não é sem motivos que Serres

apresenta a narrativa com forma do pensamento: é a narrativa que nos move, que requer

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interpretação, que nos incita a estabelecer novas relações. Neste sentido, podemos

ampliar nossas considerações sobre a interpretação para que ela abarque a narrativa em

sua totalidade e, mais especificamente, a narrativa de mais um dos personagens

construídos por Michel Serres, o corpo.

3.3 – A narrativa do corpo

Narrar o corpo não significa reduzi-lo ao simbólico, nem mesmo significa

interpretá-lo. O corpo se metamorfoseia e é exatamente sua forma metamórfica que

produz a narrativa. Neste sentido, a narrativa se apresenta em sua historicidade, no

traçado de um caminho que produz seu sentido na medida em que se constitui. A

narrativa não é algo que pode ser previsto, não é uma forma linear de compreender os

acontecimentos. “Subitamente, o sentido muda de sentido; ora, o sentido nasce quando

o sentido muda, seja de direção ou de significado” [SERRES, 2008, p. 133] A

historicidade se constrói nesta mudança de sentido, a narrativa se delineia nestes

caminhos sinuosos através dos quais é possível construir uma história.

3.3.1 – Histórias e narrativas no pensamento de Serres:

Neste ponto, é necessário que consideremos com mais detalhes o que significa a

história para Michel Serres. No início do seu livro O Incandescente, Serres nos

apresenta uma cena na qual mostra as várias possibilidades de narrar uma paisagem:

uma menina em relação a um brinquedo, um homem em relação a uma casa, uma casa

em relação a uma montanha. É importante considerar a própria relação, nenhuma

narrativa se apresenta isolada, nenhuma história é construída por um único fato. O

entrelaçamento das histórias é o que caracteriza a narrativa. Para Serres, a história não

se apresenta apenas como um fato ocorrido, inquestionável, mas como a possibilidade

de ligação que qualquer fato, qualquer acontecimento comporta. Podemos pensar a

história como a tapeçaria de Penélope: no momento em que se constroem suas ligações,

seus nós, sua tessitura, Penélope faz surgir o mundo, porém, esta tessitura é desfeita, é

reorganizada, da mesma maneira que a volta de Ulisses se apresenta tortuosa, uma

chegada que nunca se completa, uma história construída de idas e vindas. A história é a

construção de narrativas, sua concatenação. Não há história linear porque são possíveis

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vários agrupamentos, várias relações, conexões diversas que se costuram numa

narrativa.

Por outro lado, a história não é um nivelamento das narrativas, mas, sua

complexificação. Colocar várias histórias em relação é buscar um sentido novo, é

construir conexões até então não apresentadas.

Assim como Copérnico e Galileu com sua ciência mecânica mudaram nossa antiga percepção dos movimentos terrestres em torno do sol, também você doravante contempla maravilhado essa nova metamorfose na duração, uma sucessão de relógios escalonados cujas engrenagens, umas imensamente lentas – estrelas e montanhas – outras prodigiosamente rápidas – menina e boneca – contabilizam o tempo. Cada uma delas em seu ritmo, ou melhor, em seu tempo, presta-se ao prazer do olhar e à privação quase imóvel do sentido da visão. [SERRES, 2005, p. 15]

Da mesma forma, Serres nos apresenta a relação da rosa e do jardineiro: a brevidade da

rosa dá sentido ao jardineiro ao mesmo tempo em que a perenidade do jardineiro

constitui um sentido para a própria rosa, sua própria possibilidade de existência. O que

permanece como história, é exatamente a construção deste sentido, desta relação: duas

narrativas que se apresentam interligadas. No pensamento de Serres, podemos chamar

de história o que ele denomina de Grande Narrativa, na medida em que a Grande

Narrativa é a própria possibilidade de constituir relações entre várias narrativas até

então desconectadas: humanidades, ciências da natureza, literatura, religião. Em seu

trabalho, Serres nos apresenta o tempo todo, sua Grande Narrativa: um sentido

construído a partir da tessitura dos saberes, filosofia mestiça, filosofia dos corpos

misturados.

As narrativas multiplicam o tempo e nos fazem compreender de maneira

diferente a duração. Não se trata de pensar a duração em oposição ao tempo linear,

trata-se de considerar a duração em sua variedade. Como dissemos anteriormente, o

tempo não passa, o tempo percola. “Quando dizemos que o tempo corre, esquecemos

que o verbo latino colare significa filtrar uma mistura de elementos diversos. Como é

possível constatar, ele percola mais do que corre: ele filtra. Ele passa e não passa.”

[SERRES, 2008, p. 138] Não há um tempo adequado ao qual a duração se oponha,

todas as coisas possuem uma historicidade própria na medida em que se apresentam

pela sua duração, em relação a outras. A história, portanto, não é apenas a contagem do

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tempo, a apresentação sucessiva de fatos, é escolha, é filtragem de fluxos. Quando se

pretende narrar, se escolhe o caminho que deve ser seguido a partir do entrelaçamento

de personagens e paisagens. Cada componente possui sua própria história, sejam

aqueles que se apresentam na cena, seja a própria cena. No livro O Contrato Natural,

Serres já nos chama a atenção para tal fato: o cenário não é algo imóvel, não é apenas o

suporte da cena, é também parte da narrativa. O que deve estabelecer este contrato

natural é exatamente a possibilidade de inserir a paisagem na história, torná-la mais um

dos personagens. O contrário disso é o que se apresenta comumente:

Fazei desaparecer o mundo em redor dos combates, preservai apenas os conflitos ou debates, densos de homens, puros de coisas, e terão o teatro, a maioria de nossas narrativas e filosofias, a história e a totalidade das ciências sociais: esse espetáculo interessante a que chamamos cultural. (...) A nossa cultura tem horror ao mundo. [SERRES, 1990, p. 14]

Para que possamos pensar o trabalho da narrativa, é necessário que haja uma

compreensão do corpo como paisagem, como outra maneira de narrar a própria história

a partir de lugares e de tempos que percolam. Para Serres, compreender esta narrativa

implica numa possibilidade de pensar a própria paisagem como manto, como corpo:

O corpo se junta por membros esparsos, uma roupa é montada por peças e costuras, seria de pensar que a paisagem veste o corpo de minha mãe Terra, os semideuses do panteão pagão a prenderem jóias, aqui e ali, para adorná-la? (...) Não perguntem mais como se vê uma paisagem, pergunta de criança mimada que nunca trabalhou, descubram como o jardineiro a desenhou; como, desde há milhares de anos, o agricultor lentamente a compôs para o pintor que a expõe ao filósofo, nos museus e nos livros. [SERRES, 2001, p. 242]

A paisagem-corpo, apresentada para nós historiciza também o mundo. A narrativa se

amplia, a paisagem se torna personagem.

3.3.2 – O corpo-narrativa: construção de caminhos possíveis

É a partir da possibilidade de pensar a história como constituição de personagens

que o corpo emerge como forma narrativa. A construção de narrativas faz com que o

corpo se apresenta como lugar múltiplo, mais uma vez. A construção mosaica do corpo

faz com que este corpo seja sempre um equilíbrio frágil, fugidio.

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Quem sou eu? Não apenas o nível evolutivo da escala que indica a idade e o estado civil, mas também os níveis sucessivos de uma boa parte de sua extensão. Meu tempo se expande sobre a duração do mundo; mais que isso, mergulho por inteiro em seu tempo. Composto de ritmos variados, meu corpo passa do efêmero a milhões de séculos, em suma, sou tão velho que minha vida e a história quase não têm importância. [SERRES, 2005, p. 18]

Por outro lado, o que faz um corpo ser como tal, é sua permanência, sua

perenidade no tempo. Desta forma, podemos pensar que o corpo se constitui também

como forma de narrar, de apresentar sua estabilidade pela concatenação de histórias.

Compor um corpo, como o corpo de Arlequim é, sem dúvida, construir uma narrativa na

qual os pertencimentos se entrecruzem para constituir uma unidade que ganhe esta

denominação: corpo. Mas, como percebemos acima, é possível pensar o corpo de uma

maneira diferente: como forma de duração da própria espécie, da própria vida e, em

última instância, do próprio universo. O corpo inserido na Grande Narrativa faz parte de

uma história que o precede infinitamente, que o conecta a narrativas que o ultrapassam e

que fazem transbordar seu próprio sentido.

Entretanto, o corpo não é significado apenas desta maneira como colocamos

acima. Na verdade, raramente reconhecemos o corpo como parte desta Grande

Narrativa. É muito mais comum que possamos pensar o corpo numa relação com nossa

própria história, como personagem construído de maneira local, pelas suas relações

próximas. Como personagem o corpo se insere na temporalidade da história, pode ser

compreendido em sua própria ambigüidade: permanência que se desfaz. A duração do

corpo nos permite experimentar esta ambivalência:

À angústia pascaliana diante do silêncio infinito das extensões cósmicas, sucede o maravilhamento de quem flutua de corpo e alma numa duração em que ritmos e distâncias proliferam de maneira quase infinita, desafiando a intuição tanto na formação das coisas quanto na brevidade do momento. [Idem, p. 17]

O corpo comporta esta angústia; entretanto, não se vale dela para simplesmente se

tornar crítico. No pensamento de Serres não cabem nem a denúncia, nem a suspeita, e

nem mesmo o tédio niilista, armas poderosas que promovem a separação, a distinção e a

indiferença. Para Serres, as texturas, as potências, as narrativas se apresentam como

possibilidade de ação “O que há de interessante? O advento. O nascimento. O quente

raro, não o frio regular. O despertar; nem o sono, nem o sonho. A invenção da

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sobrevivência. A saída da caverna e do túmulo. Pensem sempre em sair. Em nascer para

vencer a morte.” [SERRES, 2008, p. 129]

Na construção da Grande Narrativa, o corpo se apresenta como mais um lugar

nesta construção, uma parte da tessitura, local e global ao mesmo tempo. No encontro

destas duas possibilidades, o corpo inventa posicionamentos, cria novas ramagens,

apresenta-se incandescente.

Composto de corpo e germes, o ser vivo associa em si diversos ritmos fenotípicos, metabólicos e orgânicos que medem o tempo e as combinações aperiódicas, dobradas ou empilhadas, que ocultam e desvelam sua natureza: ritmos e duração, períodos e processual, reversível e irreversível, mensuração e natureza, memória e esquecimento. Uma carteira de identidade branca que se mistura a uma outra. [Idem, p. 299]

Por outro lado, ao construir mais uma narrativa, na qual o corpo se apresenta

nesta relação com o tempo e com a história não faz com que a construção de uma

narrativa, que leve em conta as culturas, as humanidades, as relações sociais seja

desconsiderada. A questão da angústia, indicada em linhas anteriores, não cessa de se

apresentar em nossas relações e escolhas. O corpo não se apresenta apenas como algo

que possui historicidade, mas, como dissemos, algo que constitui sentidos. Os

significados do corpo emergem em suas relações locais, mesmo que o sentido global

não lhe escape. No fim de seu livro O Incandescente, Serres toca neste problema:

Entendo vocês: nada nessa longa epopéia pode nos consolar nem nos proteger do fato de que não nos entendemos, pois não falamos as mesmas línguas. De nos odiarmos por não praticarmos as mesmas religiões, de nos explorarmos porque os que não vivem nos mesmos níveis econômicos encontram-se indefesos, de nos perseguirmos, porque não dispomos das mesmas formas de governo. Nada pode evitar que nos assassinemos uns aos outros por todas essas razões. (...) Pior ainda, a antiga cultura pela qual alguns choram, embora fundada sobre os horrores da guerra de Tróia ou a interdição do sacrifício humano sob o punho de Abraão, pai dos monoteísmos, jamais nos livrou das violências infernais do cotidiano da história, dos massacres dos gauleses, dos índios, dos cátaros ou dos aborígenes, nem de Auschwitz ou de Hiroshima. As ciências não ditam o sentido, somente as culturas podem evocá-lo. [SERRES, 2005, p. 302]

Nesta longa citação podemos perceber que a preocupação de Serres, ao contrário

de nos parecer “distanciada” das questões da humanidade, se apresenta como forma de

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deslocamento, como busca de construção de novos sentidos que dêem conta de

problemas que podem ser pensados como “humanos”. No Contrato Natural, Serres, de

alguma maneira, se apresenta como opositor da guerra para que aqueles que se

acostumaram a vigiar as relações humanas pudessem reconstruir suas conexões para que

nelas também coubesse o mundo. Ao invés de apontar para a Ágora, era precisa apontar

para as estrelas. Por outro lado, fica claro, em sua entrevista com Latour, que Serres se

preocupa muito mais com as guerras humanas do que propriamente com a ciência.

Classificar seu pensamento como Filosofia da Ciência é esvaziar toda a dimensão

política inserida em seu pensamento, é dividir as páginas de seu trabalho, amputar sua

produção. Ele nos diz que o problema do mal é, sem dúvida, o problema filosófico

primeiro.

Peço aos meus leitores que ouçam o deflagrar deste problema em todas as páginas dos meus livros. Hiroxima continua a ser o único objeto da minha filosofia. (...) Sim, todas as ciências, umas após outras, mudavam, mas também transformavam profundamente as relações que mantinham com o mundo e com os homens. [SERRES, 1996, p. 28]

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Considerações finais: Somos todos ciborgues?

No final do século XX, neste nosso tempo, somos todos quimeras, híbridos – teóricos, e fabricados – de máquina e organismo; somos, em suma, ciborgues. O ciborgue é nossa ontologia; ele determina nossa política.

Donna Haraway

No decorrer de nosso texto, apresentamos o corpo sob diversos pontos de vista,

sempre a partir do pensamento de Michel Serres e de conexões possíveis entre este autor

e outros pensadores que se aproximam dele, seja de forma real, seja de forma “virtual”.

Traçamos então um caminho que se revelou muito mais heterogêneo do que

homogêneo. Buscamos pensar o corpo não a partir de uma subjetividade prévia, de um

sujeito anterior, que pudesse dar sentido a este corpo. Nossa proposta foi a construção

do corpo a partir de seus encontros, como dissemos diversas vezes ao longo do texto.

Para tanto, pensamos o corpo a partir de suas articulações com outros “personagens”

que serviram como “liga”, como sustentação para nossas reflexões, assim, o corpo

emerge como textura, potência ou narrativa. Com estes substantivos, buscamos refletir

sobre a virtualidade do corpo, suas possibilidades múltiplas, sua ausência de substrato.

Apresentamos, portanto, a multiplicidade do corpo, que não se confunde com sua

dispersão. Dito de outro modo, o corpo não é pensado como algo desconectado, como

partes independentes que se conectam, mas, como uma construção, que se apresenta

sempre completa, nos seus diversos modos. Não se trata de pensar a dispersão, mas, o

fazer prático, que torna o corpo sempre uma matéria moldável, flexível, ao mesmo

tempo, que se apresenta sempre como totalidade, como coerência, em quaisquer que

sejam suas apresentações.

Nossas reflexões se apresentam de uma maneira que pretende suscitar encontros;

dessa forma, não há nenhuma pretensão em se concluir este trabalho aqui. Entretanto, a

nossa intenção é de fazê-lo operar, é a de trazer uma provocação a mais. Nesse ponto

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reiteramos que a nossa proposta é de trazer uma reflexão que nos faça pensar o corpo

em sua diversidade coerente, em sua forma política de apresentação. Mais uma vez,

fazer o corpo agir a partir de uma derradeira conexão: o ciborgue. Dessa maneira, não

nos cabe escrever uma finalidade para nosso trabalho. Cabe-nos, sim, trazer mais um

problema, uma vez que é a partir dessa problematização que este trabalho encontrará

novas conexões, novos pontos de estabilização que vão além destas páginas. O trabalho,

neste ponto, deve ser “vivo”, pulsante, provocador, como qualquer corpo deve se

apresentar, como abertura, ao mesmo tempo em que se delineia como coerência: um

invariante na variação.

Tentamos evitar aqui alguns reducionismos a respeito do corpo, apesar de

buscarmos uma proposta não tão extensa quanto o tema nos pudesse exigir. Nosso

cuidado em relação ao reducionismo se deve à preocupação em não pensar o corpo

como algo que sempre se apresenta em relação ou em oposição àquilo que podemos

denominar alma, consciência, sujeito pensante. Nesse sentido, buscamos compreender a

constituição do corpo sem subjectum, sem algo que subjaz à sua produção, ao mesmo

tempo em que pensamos o corpo sem distinções prévias. Porém, isso não quer dizer que

o corpo não possui diversas especificidades, diferenciações. O que desejamos discutir e

refletir, não é sobre a presença ou solidez do corpo, mas, sua fluidez, na medida em que

afirmamos a força das conexões. Por outro lado, não se trata de uma busca pelo

princípio e sim de uma tentativa de compreensão das forças de conexões, que quando

estabilizadas, apresentam mudanças, passagens, represamentos de fluxos contínuos,

contenção de intensidades. Tal apresentação se assemelha ao que dissemos no texto

sobre o nó. O corpo, em certa sentido, também pode ser pensado como esta diminuição

do fluxo, esse nó. Portanto, a constituição do corpo ocorre por estabilização de

potências, muito mais do que por definição de essências.

Para direcionar nossas considerações, é pertinente que busquemos, em nosso

mundo contemporâneo, uma nova maneira de pensar o corpo, que esteja de acordo com

nossa tentativa de reflexão. Assim, trazemos para nossa derradeira reflexão, a imagem

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do ciborgue, apresentada por Donna Haraway em seu manifesto. Como dissemos no

segundo capítulo, não é como contraposição que devemos pensar nossa proposta

política e sim como uma busca de sentido que não se coloque nem de um lado, nem de

outro das dicotomias cristalizadas pelos embates oposicionistas. Não buscamos uma

oposição: buscamos mais enlaçamentos, mais conjunções, mais subversões do que está

dado como fim inexorável. Busquemos, então, a compreensão do ciborgue e sua

potência para nossos escritos.

Como nos indica Haraway, o ciborgue não é apenas uma imagem que se

apresenta como metáfora do corpo. O ciborgue é real, é nossa ontologia. O corpo

ciborgue não é apenas uma maneira de compreender o corpo, é sua possibilidade de

existência. O ciborgue é um manifesto a favor das misturas, dos abrandamentos das

fronteiras. Segundo a definição de Haraway:

O ciborgue é uma criatura de um mundo pós-gênero: ele não tem qualquer compromisso com a bissexualidade, com a simbiose pré-edípica, com o trabalho não alienado. O ciborgue não tem qualquer fascínio por uma totalidade orgânica que pudesse ser obtida por meio da apropriação última de todos os poderes das respectivas partes, as quais se combinariam, então em uma unidade maior. Em certo sentido, o ciborgue não é parte de qualquer narrativa que faça apelo a um estado original, de uma “narrativa de origem”, no sentido ocidental, o que constitui uma ironia “final”, uma vez que o ciborgue é também o telos apocalíptico dos crescentes processos de dominação ocidental que postulam uma subjetivação abstrata, que prefiguram um eu último, libertado, afinal, de toda dependência – um homem no espaço. [HARAWAY, 2000, p. 42/43]

O ciborgue então, se encontra nesse espaço entre um início e um fim. Encontra-

se, também no lugar da pré-definição, no qual as determinações não ocorreram e, ao

mesmo tempo, apresenta-se antes do fim, pois não requer finalidade última, haja vista

que é puro recomeço. O ciborgue é a encarnação dos delírios pós-humanidade, ao

mesmo tempo em que é a própria definição de humano, porque é pensado como

potência de conexões, como um invariante da variação, como um tecido de informações

e traduções – o que não significa dizer que o ciborgue é a própria experiência da

“libertação”. Por não possuir finalidade, o ciborgue não pode ser pensado como a

encarnação de nossa liberdade, uma vez que qualquer deslocamento o faz tender para

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todos os lados. Dito de outro modo, o ciborgue está para além “do bem e do mal”;

entretanto, ao ser encarnado, ao se tornar uma prática, possui a gama de variedades

possíveis entre estes dois extremos.

Um corpo ciborgue, dessa forma, apresenta múltiplos ângulos e possibilidades,

pois é sempre múltiplo sem ser muitos. O ciborgue não é o fim da humanidade, como

dissemos, não é uma “nova forma” de compreender o homem, é sua ontologia. Mais

uma vez, a proposta do ciborgue abre muito mais caminhos do que captura nosso

objeto. O ciborgue pode ser superfície, potência, narrativa. No entanto, além disso, o

ciborgue não se apresenta como fechamento:

O ciborgue está determinadamente comprometido com a parcialidade, a ironia e a perversidade. (...) Não mais estruturado pela polaridade do público e do privado, o ciborgue define uma polis tecnológica baseada, em parte, numa revolução das relações sociais do oikos – a unidade doméstica. Como o ciborgue, a natureza e a cultura são reestruturadas: uma não pode mais ser o objeto de apropriação ou de incorporação pela outra. [Idem, p. 43]

O ciborgue, como percebemos, é um projeto político; no entanto, que não delineia um

campo político tal como o conhecemos. O ciborgue não se posiciona por não acreditar

nos antagonismos de origem. Sua política é a de conexão, mas não de totalidade. Sua

herança é subversiva, é problemática, é traição. O ciborgue não possui posicionamento,

não é fiel aos seus pertencimentos: ele os subverte. Dessa forma, o ciborgue não cria

novas dicotomias, apresenta sempre os desvios possíveis entre os campos de

estabilidade, produz novas entradas, delineia novas saídas.

Podemos relacionar o ciborgue com a proposta de Serres de pensar o Terceiro

Instruído: também ambidestro, hermafrodita, anterior às divisões apresentadas pelas

propostas de submeter o corpo a essências prévias.

Não, não somos um, mas dois. Canhoto ou destro, o corpo de cada um compõe-se de dois irmãos inimigos, gêmeos perfeitos, embora enantimorfos, ou seja, ao mesmo tempo simétricos e assimétricos, gêmeos concorrentes e contrariados depois de um deles já ter morto o outro (...). Protesto contra a pena de morte nesta matéria, sou pelo corpo reconciliado, pela amizade entre irmãos, enfim a favor desta tolerância talvez rara do amor, que procura que o outro, seu

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semelhante mais próximo, viva feliz e tenha no futuro pelo menos a oportunidade ou o direito de nascer. [SERRES, 1993, P. 20]

O corpo que se submete a uma de suas essências, deve necessariamente “matar” seu

irmão, destruir seu contrário, submeter suas outras potências. A identificação a qualquer

pertencimento destrói as múltiplas possibilidades do corpo. Mesmo que pareça, a um

primeiro olhar, dicotômico, o trecho que transcrevemos anteriormente não busca apenas

a conciliação entre opostos que são contraditórios. Serres, que era canhoto de

nascimento, aprendeu a usar as duas metades do corpo, conciliou suas duas potências,

se posicionou antes da divisão, aprendeu a ter um corpo ambidestro, que, apresentando a

diferença entre direito e esquerdo, não desvalorizou as possibilidades de cada

posicionamento. Ainda sobre essa questão, Serres (2008) vai um pouco mais longe:

Quem sou eu? Essa bifurcação. O ponto de intercessão na estrutura interna do escudo, figura cruzada em quiasma. Esgotado, infatigável. Repelido, perdido de amor. Inconsciente, ruidoso. Terra, e ar, rastejante, voador. Água e fogo, geada incandescente. Entusiasta-indiferente. Atleta e aborto, vivo, cheio de recursos. Gravidade e graça. (...) Eu mesmo e sempre outro. Mestiço, completamente canhoto, Terceiro-Instruído. Hermafrodita. Anjo e besta. Estátua e música. No final das contas, choro de alegria. [SERRES, 2008, p. 101]

Mas, essas passagens, essas inclusões de outras potências não ocorrem de

maneira simples, pois o manifesto ciborgue não é um panfleto que se deve segurar.

Trata-se de uma proposta que se deve incorporar, não com aquiescência, mas, como

resistência. O que queremos dizer é que o corpo-ciborgue não advém pelas palavras ou

por teorias: advém por posturas corporais, por mudanças no corpo, mudanças que

trazem potências, inovações, formas diferentes de relação. O ciborgue requer

aprendizado, no sentido corporal, requer um novo corpo, que sustente as ampliações e

passagens. A aquisição de potências corporais não vem sem esforço, sem luta. No

entanto, não é uma luta contra o outro. É uma luta a favor do outro, como possibilidade

de incorporação de um outro. Para que isso ocorra, é necessário, muitas vezes, que uma

parte de nós pereça, ou, ao menos, que mude de função. Serres nos escreve sobre isso

quando cita, por exemplo, a liberação da memória promovida pelos bancos de dados.

Não se trata de pensar um enfraquecimento desta memória – mesmo que isso ocorra

efetivamente – mas, de buscar novas funções, novas maneiras de utilizar a memória. Da

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mesma maneira que as mãos livres podem criar belíssimas obras, essas mesmas mãos

podem destruir com a mesma facilidade. Por isso, não é o uso dos instrumentos e das

técnicas que geram um empobrecimento ou enfraquecimento do corpo. Ao mesmo

tempo em que o corpo se deixa enfraquecer pelas facilidades e pela domesticação (como

nos dirá Serres em seu livro Hominescências), essas mesmas facilidades libertam o

homem de suas dores e de seus sofrimentos. Assim, o que pode ocorrer é justamente o

fortalecimento desse corpo a partir das potências apresentadas, novas formas de relação

até então não apresentadas. Se antes o corpo padecia de muitas dores, hoje ele se

apresenta “libertado” dessas para ser outro, para produzir novos corpos e novas relações

– até mesmo uma alma. Para Serres, é próprio do homem encontrar-se nessa oscilação:

tendemos, ao mesmo tempo para a guerra e para o amor. A cada metamorfose, nos

bifurcamos.

Frente à oscilação que nos é constituinte, Serres encontra num personagem

conceitual, deslocado por ele, mais um ponto relevante para nosso trabalho. No livro

Ramos, Paulo, discípulo tardio de Jesus, nos é apresentado, de uma certa maneira, como

um ciborgue, por subverter as ordens vigentes. Esta escolha se deve não somente à sua

fé, mas, principalmente pela mistura que Paulo representa: “Judeu, grego e latino, São

Paulo reunia em sua pessoa singular três dos antigos formatos que deram origem ao

Ocidente” [SERRES, 2008, p. 74]. Como encarnação dessa tripla herança, Paulo não se

submete a nenhuma delas, por isso pode criar uma nova civilização. Não há luta entre

contrários: há incorporação de oposições, tensões que se apresentam pela diferença,

deslocamentos de sentido, provocações.

Paulo não é nem o “formato-pai”, nem a “ciência-filha”. Ele é o que Serres

denomina de filho adotivo, porque não se apresenta nas oposições, pois ele é o enxerto,

a possibilidade de uma nova cultura que não se submete aos formatos antigos;

entretanto, também não se coloca no lugar da oposição, da rebeldia. É, nesse sentido,

uma herança subvertida, problematizada, pois traz a novidade sem esquecer suas raízes.

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Por outro lado, essas raízes são múltiplas, advém de vários pertencimentos. A mistura

desses pertencimentos é que faz surgir a novidade de Paulo:

Paulo carrega sobre os ombros uma trindade universal de pais universais. Imediatamente antes de afirmar: eu sou quem sou, não é por acaso que Paulo se diz: um aborto (I, Cor., XV, 8); diz-se também filho adotivo (Gal., IV, 5); não por figura de retórica, mas com toda a verdade. Isso porque, ao isentar-se da lei, da sabedoria e do direito, ele abandona os pais correspondentes e deseja que nos livremos deles. Contingentes, a graça e a fé substituem a lei necessária; loucura e vulnerabilidade substituem a sabedoria e a força. [SERRES, 2008, p. 91]

É nessa imagem de Paulo que encontramos, mais uma vez, a expressão política de

Serres: não se posicionar, se colocar no lugar da vulnerabilidade.

Além disso, Serres nos apresenta uma possibilidade de resistência que não passa

necessariamente pela guerra, pelo antagonismo. Para que qualquer antagonismo se

efetue, é necessário o que Serres denomina de “libido do pertencimento”, ou seja, é

necessário que se acredite tanto na herança, que ela se torna sua única possibilidade de

existência. O pertencimento a uma determinada “classe” ou “família” ou “grupo social”,

nos faz submissos à lei:

Cometemos a maioria dos pecados da carne de acordo com um treinamento mimético, pela pressão dos pares e sob o entusiasmo cego da coesão nacional, tribal, familiar... em virtude do corporativismo ou da máfia. Quem tem a coragem do eu? Nós o cometemos com muito mais frequência do que eu os cometo, visto que o pecado diz respeito ao nós, ou seja e, à lei, e não ao eu pessoal, que dele nos liberta. Quando São Paulo nos “liberta da Lei”, ele, que em princípio, livra nossa própria identidade desse laço coletivo. [SERRES, 2008, p. 78]

Porém, não se trata de pensar a questão da Lei e do pecado de forma simplista e sim

como um formato, como uma maneira de aprisionamento do corpo, uma forma de

limitação das potências, de imposição de fronteiras, de adequação imposta ao corpo.

Além disso, o formato delineia o campo do pertencimento, porque organiza as

diferenças em campos opostos.

Por outro lado, Paulo não reproduz seus pertencimentos. Ele busca a libertação

operada pela “nova ordem”, impensável em sua época, de sustentar uma sociedade na

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fraqueza. Apesar das muitas críticas – principalmente advindas do pensamento

nietzscheano, sobre a fraqueza – Serres busca pensar “as boas-novas” nesse lugar limite:

não como revolução, mas como proliferação. A colocação do corpo como algo “a ser

produzido”, portanto, não é apenas uma questão teórica, como já dissemos. Trata-se de

uma proposta prática, não no sentido de impor uma “nova ordem”; porém, no sentido de

produzir, nos pequenos espaços, nas pequenas relações, mudanças efetivas, que

proliferem pela própria práxis, pelo próprio fazer, pelas conexões locais. A produção de

desvios locais só se torna significativa porque contribui para o contágio, para a

disseminação de novos corpos, ainda não capturados, domesticados, submissos. Assim,

o ato inicial de Paulo, que Serres relaciona com seu testemunho do apedrejamento de

Estevão, é o de buscar uma inversão: ao invés dos pertencimentos, uma singularidade1.

A morte de Estevão configura o perecimento do eu em favor do nós. Nesse sentido,

Paulo não rompe com a tradição, mas, subverte-a, para que não haja uma única bandeira

de pertencimento. Assim, os ramos não se desprendem do tronco: vislumbram novas

paisagens, ocupam o espaço, e, principalmente, podem criar uma nova árvore, não

necessariamente igual àquela que o originou.

Portanto, essa disseminação não ocorre na busca de oposição, como já dissemos

anteriormente, mas, nos espaços cotidianos, nas transformações microscópicas. Essa

forma da novidade se apresenta de maneira sutil, tênue, porém, se apresenta a partir de

uma grande força: a conexão. A possibilidade de conexão, aquilo que denominamos de

Eros, é a força das alianças, a força que constrói encontros. Eros não é apenas a relação

entre opostos, é a própria possibilidade de conexão entre elementos díspares e

heterogêneos. Nesse sentido, Eros subverte os formatos ao produzir os ramos, as

bifurcações, as diferenciações a partir de uma origem comum. Para Serres, é Paulo que

nos mostra a possibilidade de emergência do eu:

O novo eu se constrói a partir de uma tríplice contingência: fé e incerteza; esperança feliz cujo tempo é indeterminado; laços de Amor incondicionais. Três debilidades, três forças. Menos de dois milênios depois de São Paulo, Descartes tenta reconstruir o sujeito, ao tentar

1 Serres, na verdade, utiliza a palavra identidade. Para ele, identidade tem a apenas um sentido lógico: ser igual a si mesmo. Para ele isso é absolutamente diferente do que ele denomina de pertencimento, que é considerar a identidade como apenas um dos pertencimentos: ser negro, mulher ou europeu, por exemplo.

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encontrar certezas. Duvido de que ele tenha tido êxito, uma vez que a contingência e a incerteza, em resumo, a própria dúvida, presidem seu nascimento e sua formação. (...) Fé, esperança e caridade descrevem a não-ontologia desse novo sujeito, sua não-instalação, sua não-certeza, seu não-ser, seu nada... o despertencimento da alma... [SERRES, 2008, p. 86]

O eu, que possui um corpo, que se apresenta como não-ontologia, é este que não

determina as diferenças a priori. Errante, o corpo adquire uma alma no movimento de

se produzir, na força das relações e na fraqueza de sua estabilidade.

A fragilidade dos ramos são sua própria força, uma vez que, em comparação ao

formato, à estabilidade e à certeza do caule, os ramos são apenas descrições frágeis, se

apresentam como expansão inconclusiva, afastamento da segurança. Assim, os ramos,

apesar de se prenderem ao caule, em contraposição a este são contingenciais É nesta

contingência que a novidade se apresenta – há sempre a possibilidade do enxerto, da

criação de uma nova relação. Nesse sentido, os ramos se apresentam como unidade de

medida, a qual todo tipo de ramificação se apresenta enfraquecido. Por outro lado, é

essa comparação que faz com que os ramos se diferenciem: “Dessa unidade de medida,

só podemos constatar que alguém que se compara a ela é nada: a relação com o absoluto

conduz aquele que se compara ao nada.” [SERRES, 2008, p. 89] Mais uma vez, Serres

busca compreender o corpo nessa desdiferenciação. Mas isso não implica uma oposição,

já que não há “descolamento” do caule. Ele nos dirá que, sempre em relação ao passado,

o que ocorre são bifurcações, diferenciações, produções diferenciadas. Porém, essas não

são vistas como produção do embate, da guerra, da oposição. Ser “nada” significa

exatamente se colocar no lugar da produção, sem se colocar como oposição. Por outro

lado, os embates também são pensados por Haraway:

Toda história começa com a inocência original e privilegia o retorno à inteireza, imagina que o drama da vida é constituído de individuação, separação, nascimento do eu, tragédia da autonomia, queda na escrita, alienação; isto é, guerra, temperada pelo repouso imaginário no peito do Outro. Essas tramas são governadas por uma política reprodutiva – renascimento sem falha, perfeição, abstração. (...) Mas existe um outro caminho para ter menos coisas em jogo na autonomia masculina, um caminho que não passa pela Mulher, pelo Primitivo, pelo Zero, pela Fase dos Espelho e seu imaginário. Passa pelas mulheres e por outros ciborgues não nascidos da Mulher, que recusam os recursos ideológicos da vitimização, de modo a ter uma vida real. [HARAWAY, 2000, p. 98/99]

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Em outro trecho, podemos encontrar mais um ponto de apoio para as

semelhanças traçadas aqui por Serres e Haraway. O incandescente de Serres se alia ao

ciborgue na medida em que Donna Haraway irá nos alertar para as infindáveis guerras

dicotômicas que assolam todas as propostas emancipatórias – inclusive as questões

trazidas pelas feministas.

Depois do reconhecimento, arduamente conquistado, de que o gênero, a raça, e a classe são social e historicamente construídos, esses elementos não podem mais formar a base da crença em uma unidade “essencial”. Não existe nada no fato de ser “mulher” que naturalmente una as mulheres. Não existe nem mesmo uma tal situação – “ser” mulher. Trata-se, ela própria, de uma categoria altamente complexa, construída por meio de discursos científicos sexuais e de outras práticas sexuais questionáveis. A consciência de classe, de raça ou de gênero é uma conquista que nos foi imposta pela terrível experiência histórica das realidades sociais contraditórias do capitalismo, do colonialismo e do patriarcado. E quem é esse “nós” que é enunciado em minha própria retórica? Quais são as identidades que fundamentam esse mito político tão potente chamado “nós” e o que pode motivar o nosso envolvimento nessa comunidade? [HARAWAY, 2000, p. 52]

No texto de Haraway, apresenta-se a preocupação da autora com o mesmo problema

que Serres denomina de pertencimento, e Haraway de identidade de classe. A partir de

todas as “conquistas” de oposição, caímos sempre no impasse de um novo poder, de

uma nova ordem opressora, que gera uma nova forma de embate.

Neste ponto de nossas reflexões, cabem algumas considerações mais detalhadas

sobre a questão do embate, em Serres. Uma imagem bastante significativa de como

Serres vislumbra o embate é o início de seu livro O Contrato Natural. Aí ele narra a

imagem de um quadro de Goya, no qual dois guerreiros lutam em meio à lama. Assim,

Serres nos chama a atenção para a colocação em cena do mundo nesse quadro: quanto

mais os guerreiros lutam entre si, mais eles afundam na lama. A luta entre os humanos,

ao mesmo tempo em que desconsidera as coisas, se afunda em sua “materialidade”.

Portanto, a questão se coloca de uma maneira diferente: não se trata de lutar contra

teorias, opondo saberes, delimitando territórios, mas de fazer a passagem das coisas e

dos homens por entre essas fronteiras. Num outro momento dessa mesma obra, Serres

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nos fala de seus ensinamentos como marinheiro para pensar a política: no navio,

cercado pelo mar, é impossível ser recluso ou mesmo se voltar contra os outros homens,

a não ser que se ponha em perigo a volta de todos à terra firme. Serres utiliza-se da

oposição entre a Ilíada e a Odisséia para pensar a diferença entre o embate e o

isolamento de Aquiles, e a errância e a coesão dos marujos de Ulisses. Podemos

também pensar na obsessão do capitão Ahab em capturar a natureza representada pela

Baleia Branca de Moby Dick. Não se trata de uma luta, de uma oposição, quer seja com

os outros homens, quer seja com a natureza. Como ciborgues, o que se busca é

subverter os caminhos, abrir novas estradas sem pavimentá-las, sem torná-las

necessárias e, mais especificamente, não transformar os encontros em embates, em

disputas, em jogos de poder.

Por outro lado, o ciborgue não se apresenta como uma oposição ao “homem

natural”, encarnado como essência última, seja corporal, seja “transcendental”. No

entanto, ao mesmo tempo, o ciborgue não é puramente um homem técnico, uma vez que

não é a técnica que determina sua “humanidade”. Reiteradamente, percebemos que o

ciborgue não se posiciona nem como natureza e nem como cultura, do mesmo modo,

encontra-se entre natureza e técnica. Este ciborgue também se encontra no meio dessas

variações, se produzindo a partir delas e não antes delas. “Em uma ficção na qual

nenhum personagem é “simplesmente” humano, o significado do que é humano torna-se

extremamente problemático.” [Idem, p. 103] Nesse ponto, podemos vislumbrar que o

corpo não é, senão, mais um ciborgue. O corpo não se apresenta totalizado, depende

sempre de um “processo de corporificação” [Idem, p. 106] que o torna quem ele é.

Gostaríamos de finalizar este trabalho não apenas conectando Haraway e Serres,

como se existisse uma “real” conexão entre eles; entretanto, como forma de produzir um

deslocamento entre esses autores que nos permitam repensar nossas práticas, nossos

discursos e nosso posicionamento diante das propostas apresentadas em campos

diversos do saber. Nesse sentido, nossa política esboça um esforço contínuo em

constituir espaços de resistência que não apresentem totalidades prontas, fechadas.

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Trata-se de repensar circunstâncias, posturas, arranjos que não pretendam ser modelo,

direcionamento e nem mesmo “ultimatos”. O que também não significa dizer que não

haja um posicionamento do autor em relação ao que está escrito acima. São coisas

diferentes que estão em jogo aqui: a postura do autor em relação ao que escreve, e a

crença deste mesmo autor de que aquilo que escreve esgota as possibilidades do que

está escrito. Como dissemos no início, este texto apresenta a trajetória do autor, nossas

conexões, nossas trajetórias, nosso posicionamento.

Por outro lado, este percurso não se apresenta como caminho único, apesar de

ser um caminho singular. Não há pretensão de esgotamento do tema, mas de

provocação, como já dissemos. Nesse sentido, encontram-se, nessas páginas, algumas

de nossas perspectivas sobre o corpo, aquilo que pensamos ser suas conexões, seus

engendramentos. Mais uma vez, nosso encontro com Michel Serres foi o que

possibilitou o desenvolvimento desta perspectiva, que nos fez pensar o corpo de uma

maneira tão singular e, ao mesmo tempo, tão diferenciada. Os esforços de compreensão

da obra de Serres formam, ao mesmo tempo, uma grande dor e um grande prazer, como

se seus escritos realmente penetrassem no corpo, fossem compreendidos muito mais no

corpo do que no pensamento. Daí a importância das leituras constantes, das múltiplas

entradas, de uma certa errância nas citações utilizadas aqui, além da extensão destas.

Não é sem propósito que o texto oscila, vagueia, num certo sentido, nos muitos livros

do autor e, ao mesmo tempo, se encontra tão conectado a este. Sua escrita favorece essa

navegação, é feita por um marinheiro que conhece os múltiplos caminhos do mar, que

nos apresenta o balanço das ondas e a fluidez necessária ao pensamento. Serres nos faz

pensar com o corpo e nos faz conectar nosso próprio pensamento a ele, como se fossem

dois a escalar uma montanha ou a navegar em uma nau. É assim que buscamos construir

nosso texto: com alianças, deslocamentos e traduções, fazendo torções e estabelecendo

encontros.

Em meio a esse turbilhão de idéias, recorremos, mais uma vez, ao pensamento

de Guimarães Rosa, que capitaneou o início de nossa navegação, e, como argonautas,

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vislumbramos o que se fez corpo: nosso trabalho. E percebemos, navegantes que somos,

não o gosto da partida ou o da chegada, mas o gosto da travessia. No meio. Mar aberto

para mais buscas, mais investigações.

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