Ana e o Arquiteto

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conto de Maria Helena Nascimento abril de 2013

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N o verão de 1966, o Rio de Janeiro foi castigado pela pior enchente de sua história. Por quase uma semana a chuva

caiu pesada, desfazendo barrancos e soterrando casas. Carros ro-dopiavam desgovernados em redemoinhos de água barrenta; quem precisasse estar na rua andava encolhido e amedrontado, tentando equilibrar-se no meio-fio para não ser engolido por um bueiro. Os homens viravam noites no resgate dos desabrigados; as mulheres separavam roupas e mantimentos e contavam histórias aterradoras longe das crianças. Fogões, colchões, cabritos e restos de barracos se embolavam na enxurrada de lama que descia do morro ao lado do prédio onde Rômulo Valverde morava com a família.

Na semana seguinte, quando o sol apareceu forte, a cidade pare-cia presa num molde de argila. Assim que teve certeza de que era possível enfrentar a estrada, Rômulo, sem dormir direito há duas noites, pôs os dois filhos no Volkswagen verde e dirigiu sem parar até a casa de sua cunhada, na serra, onde as crianças estariam segu-ras. Não aceitou o café que a copeira lhe ofereceu, precisava voltar logo à cidade para trabalhar. Temia que a chuva voltasse e outras barreiras da estrada cedessem. Deu um beijo na filha e procurou o filho para se despedir, mas ele já tinha sumido no jardim. Rômulo manobrou o carro e desapareceu na curva que levava de volta ao portão. Só então alguém disse a Ana que ela e o irmão não passa-riam ali só o fim de semana, que provavelmente perderiam alguns dias de aula também. Quantos, ninguém podia dizer.

*

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A serra era um lugar onde se brincava de boate no quarto escuro, dançando em cima da cama, enquanto uma prima ligava e desliga-va as luzinhas da árvore de Natal. Um lugar onde os dias acabavam com raios: lá para as seis da tarde alguém gritava, mandando sair da piscina porque os raios começavam a cair – e isso era tão grande, tão maior que a autoridade de qualquer um dentro ou fora da família, ninguém podia com os raios. Não era uma implicância mesquinha, era o céu, era a morte apontando o dedo para a cara da pessoa e mandando-a correr para dentro. Fora isso, não havia lei. Não havia lei porque o espaço era grande demais para haver lei, tudo escapava pelo gramado, pelo mato, as pessoas quando se encontravam eram como conhecidos se cruzando de surpresa numa avenida, “você por aqui?”. E eventualmente a pessoa podia estar passeando sozinha e ser acuada, as costas no portão, por um cachorro enorme surgido sabe lá de onde; ou podia estar quase, quase conseguindo tirar um esqueleto de cobra de um buraco entre as pedras do muro quan-do o jardineiro com hálito de álcool aparecia e segurava sua mão, porque o veneno da cobra continua na cobra mesmo depois que ela morreu. E porque corujas comem cobras, também não se mexe em ninho de coruja.

Com a pele ainda cheirando a cloro e sem nada para fazer depois do almoço, Ana descobriu, sem querer, uma técnica para chorar. Bastava esconder o rosto no braço dobrado e manter os olhos ar-regalados, sem piscar, até que eles ardessem e começassem a lacri-mejar sozinhos. Quando as lágrimas alcançaram a ponta do nariz, a imagem de si mesma chorando a deixou tão comovida que ela conseguiu continuar sem precisar mais do truque. Todas as coi-sas tristes que já haviam lhe acontecido ou as que ainda iriam lhe acontecer se juntaram num bolo dolorido na garganta. Sua tia vi-nha passando com uma garrafa de vinho do Porto e parou, mais contrariada que preocupada. Ana não quis responder o que havia de errado, preferiu omitir que se tratava de uma espécie de exercí-

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cio. A tia fez um carinho em sua cabeça e estava a ponto de beijá-la – era o momento em que o exercício iria ganhar sentido e valer à pena – mas seu irmão, que tinha o dom de sempre conseguir inter-romper os momentos bons com alguma novidade idiota, em geral envolvendo a necessidade de um curativo ou uma injeção, entrou na casa gritando, com um enorme marimbondo ainda preso ao lóbulo da orelha.

*Ana estava abaixada tirando areia de um machucado no joelho, quando Vicente saiu de repente de uma curva no caminho que levava à quadra de tênis. Lembrava um cavalo manso, daqueles que os meninos das redondezas traziam para alugar no fim de sema-na. Nada nele brilhava, nada era novo ou áspero. Não era velho, apesar da barba e do bigode. Talvez fosse mais novo que seu pai – que odiava a própria barba e a combatia todas as manhãs com um aparelho de aço que se abria como uma flor fria quando se girava a base, revelando uma gilete azul com um desenho de espadas cru-zadas. Ele disse um “tudo bem?” afetuoso, como se realmente se importasse, que fez com que ela perdesse a fala. Se não fosse este primeiro encontro de surpresa, ela não teria visto tão de perto que os olhos dele tinham a cor de folhas secas e que seu rosto era extra-ordinariamente bonito.

Vicente era amigo de seu tio, mas tinha vindo a trabalho, para projetar uma reforma que queriam fazer na casa. Estava no quarto verde com chicotes emoldurados na parede. Às vezes se distraía durante a conversa e roía o canto da unha e, ao contrário de todos os homens, falava baixo. Tudo isso ela soube pelas primas, que pas-savam a maior parte do tempo cercando os adultos enquanto eles conversavam ou jogavam baralho, acendendo cigarros e tomando o resto das bebidas de quem deixasse.

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Ana, que adorava comer devagar, passou a engolir o café da manhã todos os dias para poder sair logo e procurá-lo. Mas sempre que o encontrava, as duas primas já estavam com ele, cercando-o e inco-modando-o com bobagens. A competição a desanimava. Afastada e quieta junto a um canteiro recém-plantado, ela esperava que uma força vinda do céu premiasse sua modéstia e a fizesse brilhar mais que as primas, mas o céu naquela manhã quis que aparecesse Cris-tina. De boca aberta, Ana acompanhou enquanto ela vinha des-calça e despenteada abraçar Vicente e esfregar a cabeça no pescoço dele, como um gato, até que as mechas do cabelo claro cobriram seu rosto. Era elástica, era esguia e usava uma camisa dele que mal cobria os triângulos do biquíni.

Ana nunca tinha visto uma mulher assim, uma mulher sem ne-nhuma timidez, nada, zero. As primas lhe contaram que ela havia chegado sozinha durante a noite, adorava Carnaval, tinha feito um aborto. E que falava perto demais dos homens, tocava-os, estava sempre ajeitando a gola ou consertando alguma coisa na roupa de-les enquanto conversava, mesmo com os casados. “Qual é o proble-ma de ajeitar a gola?” Ana perguntou baixo, envergonhada por não ter entendido, apesar de também não ter certeza do que era exata-mente um aborto. Cristina deu mais um beijo em Vicente e saiu correndo, já tirando a camisa para um mergulho. Ana não tirou os olhos dele, enquanto ele acompanhava cada movimento da mulher se jogando na piscina.

*Metade da casa se projetava por cima de um declive gramado, sus-tentada apenas por uma coluna em forma de V. Vicente estava ali para inventar uma sala que ocupasse aquele espaço vazio. Sentada no chão da varanda, Ana acompanhava uma trilha de formigas que desmontavam uma cigarra morta. “Às vezes eu acho que era melhor

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vender esta casa de uma vez”, a tia disse. “Mas é uma boa casa”, ele considerou. “Mas daqui a uns anos as meninas crescem e ninguém mais vai querer vir pra cá comigo. É o que sempre acontece”. A pa-rede de pedra atrás do balanço onde os dois estavam sentados ficou subitamente vermelha e eles pararam de conversar para olhar o sol se esconder atrás do morro, os olhos atravessados pela claridade. Sem querer, Ana esfarelou com o pé o que sobrara da casca oca da cigarra e sentiu um aperto, sentiu uma falta da mãe, sentiu que nada estava a seu alcance.

*Na segunda-feira, ela teve uma insolação. Passou o dia na cama, vomitando num balde e tremendo de frio, coberta de uma pasta de água e bicarbonato para aliviar as queimaduras do rosto e dos ombros. Talvez Vicente notasse que faltava uma das meninas, a mais misteriosa, a mais interessante. Sua tia poderia comentar que ela estava de cama e ele ficaria pensativo, penalizado. Então iria ao quarto dela, de banho tomado, antes do jantar. Encostaria a palma da mão em sua testa para ver se a febre tinha cedido. Ela fraca, afundada nos travesseiros – haveria mais uns três travesseiros além daquele – e ele diria “senti sua falta...” Os braços dela enlaçariam seu pescoço, os braços magros de quem não comera nada além de uma maçã em dois dias. “Vou levar você daqui”, ele diria num impulso, e sairia com ela no colo, a ponta do lençol arrastando no chão atrás deles, fechando o mundo que deixavam para trás. Mas foram as primas que apareceram para vê-la antes do jantar. Tinham comprado unhas postiças na cidade e gesticulavam muito para ad-mirar o efeito do esmalte vermelho. Ela não teve inveja, sabia que era outro tipo de mulher. Trouxeram também um cigarro roubado e fecharam a porta para acendê-lo. No meio de uma tragada, a mais velha contou que Vicente tinha resolvido voltar para o Rio no fim de semana porque Cristina sentia falta do apartamento, da praia, de

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descer e ir até a esquina comprar uma cerveja, não aguentava muito tempo longe da cidade, mesmo com a confusão da enchente e com o calor que devia estar fazendo. “Meu pai disse que vai dar um jantar de despedida pra ela, porque ela é a pessoa mais interessante que já veio aqui”. “E a mamãe levantou da mesa depois que ele disse isso”, emendou a menor, pegando o cigarro; a primeira, irritada, rebateu que não era verdade, uma coisa não tinha nada a ver com a outra e deu um tapa na irmã que fez as unhas se soltarem, todas de uma vez. Era como perder todos os dentes num sonho.

*No dia do jantar, Ana tomou banho cedo, fez um rabo de cavalo que puxava seus olhos, pôs o único vestido que havia na mala e se instalou numa cadeira da sala, antes mesmo de chegarem os pri-meiros convidados. Durante horas ouviu a vitrola de pilha tocan-do no quarto das primas; imaginava que elas estariam brincando de boate, mas ela não iria, não podia perder Vicente de vista na sala cheia. Não sabia mais o que fazer por ele. Estava trançando as franjas de uma almofada, quando seu irmão apareceu trazendo um vidro com um pequeno escorpião. Contou que tinha subido no barranco onde os meninos amarravam os cavalos para alugar. No-tou uma pedra grande solta; empurrou-a até tirá-la do lugar e uma multidão de pequenos escorpiões saiu para a luz. Ela examinou o bicho, que embora fosse delicado como uma escultura de areia, não a interessava. O irmão então pegou o vidro de volta e correu para o quarto das primas, para assustá-las. Ela voltou a se aprumar na cadeira. Começava a sofrer naquela posição, mas isso de algu-ma forma lhe parecia justo. Também sentia fome, mas as bandejas que circulavam jamais paravam diante dela. De repente, seus olhos foram atraídos para a chama de um isqueiro dourado que acendia dois cigarros juntos; um deles, seu tio tirou da própria boca e pou-sou, com os dedos trêmulos, entre os lábios de Cristina.

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Quando o jantar saiu, Ana finalmente recebeu um sinal da sor-te: o guardanapo de Vicente caiu sem que ele visse. Como não se pode comer bobó de camarão assim sem nenhuma proteção, ela correu e pegou toda a pilha de guardanapos engomados na mesa; foi abrindo caminho pelo meio dos convidados e já ia alcançá-lo, quando Cristina se jogou na cadeira ao lado dele. Disse alguma coisa baixo em seu ouvido e lhe fez um carinho na barba; ele traiu um arrepio profundo e sorriu. Ana voltou para sua cadeira e pregou os olhos no camarão que boiava solitário em seu prato. Devia ser proibido, devia haver uma lei, um raio, um escorpião gigante, que viesse derrubando as casas e as cidades e cravasse o ferrão no peito de qualquer pessoa que tivesse aquele poder sobre alguém que se ama, quando não se tem poder nenhum. Devia ser possível abrir os olhos de manhã, uma vez na vida, e encontrar tudo exatamente do jeito que se deseja. Tantas vezes tinha ido dormir acreditando nisso, mas nunca, nem no dia de seu aniversário acontecia. Às vezes achava que já tinha toda vida que teria, que não havia nenhuma no-vidade dali para frente, e ela apenas andaria por cima das próprias pegadas, como alguém perdido no deserto. Em algum livro esque-cido devia haver uma palavra que restaurasse a ordem no mundo. Ela ergueria bem alto uma bandeja pesada de pedras preciosas e a ofereceria a um rei, de coração aberto, exibindo sua sinceridade e seu pedido tão simples: que as coisas fossem como ela desejava. Iria se curvar até onde alguém pode se curvar. Um rei que aceitasse a oferta e pronunciasse a palavra que conserta o mundo. E depois dessa palavra, um vento que silenciasse tudo.

*Nunca tinha andando tão devagar pelo corredor escuro, em geral tinha medo de passar por ali. No quarto das primas a música con-tinuava alta, mas não tanto que encobrisse os gritos e os risos atrás da porta fechada. Nada faria com que ela girasse aquela maçaneta.

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Também não queria entrar nos outros quartos. Nem voltar para sua casa no Rio, nem sua mãe, nem seu futuro – não queria nada.

Aquela família tinha um modo particular de possuir as coisas. Cada objeto tinha sido trazido de algum lugar distante e vinha envolto numa pequena aventura, como um estojo precioso. Aquela lupa quase se quebrou na mala feita às pressas, aquele jarro precisou ser embalado num caixote cheio de palha porque não cabia em mala nenhuma; a latinha branca ali no canto, já guardou balas de violeta, feitas na Itália com violetas de verdade. Nada vinha de Copacabana ou do Centro da cidade. Mas as coisas não eram into-cáveis, tudo podia se sujar, até se quebrar, não era o fim do mundo. O mundo, aliás, era infinito, outras viagens viriam, outros tapetes, outros binóculos e caixas de bombons e a curiosidade das crianças não devia ser restringida. A única exceção era o quarto no alto da escada, cuja porta ela havia acabado de abrir sem fazer ruído. Era o quarto dos donos da casa, e lá as coisas não eram divertidas nem curiosas, eram luxuosas e proibidas. Ana examinaria primeiro o banheiro, os banheiros eram sua paixão: os cremes, as espumas, os armários com objetos enigmáticos. Eram sobretudo coisas de borracha, quase sempre coisas de borracha, cor de pele, macias, como se tivessem alguma vida dormente em suas membranas e fos-sem despertar no contato com o corpo de alguém. Mas quando, onde, como? Entrou sem respiração, os olhos pregados nos golfi-nhos dourados das torneiras da pia. Mas antes que pudesse acender a luz, ouviu suspiros na imensa cama em frente à janela. Parou, sem coragem de dar mais um passo. Bem perto dela, o colchão cedia e uma espiral de sussurros se elevava no escuro. Ana recuou sem fazer barulho e disparou pela escada.

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A sala tinha mudado como o tabuleiro de um jogo. As mulheres es-tavam amontoadas num canto, ao lado de uma enorme bandeja de café, inclinando-se para ouvir umas às outras. Quanto a Vicente, conversava em pé com um homem velho que segurava um charuto. Ana serviu uma xícara de café com cuidado e foi andando devagar, tentando não derramar nada. Ele sorriu levemente desconfiado, como sempre fazia quando ela lhe levava alguma coisa para beber que não fosse absolutamente transparente. “Já tem açúcar”, ela ex-plicou. O velho do charuto observou-a, surpreso. “Nem me lembro quando é que a minha mulher me trouxe um café pela última vez... Seu desgraçado, você é bonito. Você é bem bonito. Até as meninas se apaixonam por você.” Vicente sorriu por trás da xícara, sabore-ando o elogio. Então aconteceu o que Ana mais odiava: ela ficou vermelha. Seu rosto fervia como se tivesse levado um tapa; mesmo naquela sala pouco iluminada era possível enxergar isso. O velho deu uma gargalhada que se transformou em acesso de tosse e fez sinal chamando outro amigo no sofá, querendo dividir a desco-berta. Nada mais podia ser feito; esse tipo de brincadeira quando começa ganha uma vida feroz que só se extingue por exaustão. Ana precisava ir embora dali, mas suas pernas não tinham força para desgrudar do chão. Foi então que entendeu qual era a única saída. Entendeu antes de entender, entendeu com o corpo. Na ponta dos pés, fez com que Vicente se abaixasse até que sua boca encostasse na orelha dele. A orelha e os lábios juntos, como o princípio de tudo, como um anfiteatro antigo, um labirinto. Ela sussurrou e ele riu, “o quê? Não entendi nada...”, esperando ouvir uma bobagem, e ela repetiu devagar, articulando bem cada sílaba, acariciando o ouvido dele com os T e os S pronunciados apenas com os dentes e a língua. Então ele se endireitou; quis perguntar mais alguma coisa, mas desistiu e saiu quase correndo, já pisando mais leve porque sabia que precisaria pisar leve. Em volta, todos foram parando de conversar para ouvir os passos na escada, os protestos abafados, as portas batendo. Sua tia permaneceu imóvel, segurando uma xícara

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no ar. Logo o silêncio tomou conta da sala, como se a onda de uma explosão houvesse deslocado tudo para longe e aberto um círculo de paz absoluta.

*Não sabia há quanto tempo estava na varanda. Não sabia se alguém lá dentro sabia o que ela havia feito. De repente, Cristina passou chorando, carregando a mala. Vicente tentou segurá-la, mas ela se desvencilhou, correndo na direção do carro. Os dois falavam pala-vrões e se empurravam e se puxavam de volta, até que ela conseguiu abrir a porta do carro e jogou a mala lá dentro. Ele gritou “sua puta” e ela arrancou. “Não vai, ainda pode chover!” ele gritou de novo para o escuro.

Ana, paralisada, ouviu o barulho das rodas sobre o cascalho e viu as lanternas vermelhas sumirem na estrada de terra. Depois só o martelar dos sapos. Achou que ia desmaiar, estava sem respirar há uma eternidade, sentada no balanço. Ele se virou, surpreso, quando ela não aguentou mais e deu um suspiro. Ana tinha medo da reação dele, queria conseguir falar para poder dizer que estava arrependi-da, embora não estivesse.Mas ele fez um gesto para que ela lhe des-se espaço para sentar. Ainda tremia, mas o cansaço logo acalmou seu corpo. “É tarde, você não está com sono? Deita aqui.” Ana quis deitar a cabeça na perna dele, mas estava usando um brinco com uma pedrinha vermelha que machucaria terrivelmente quando fi-casse imprensado entre eles dois. Ainda assim, deitou-se, encolhen-do as pernas. Seus olhos correram pelas estrias do veludo da calça dele, até seus joelhos. Além daquele ponto não havia mais luz, nem foco e ela dormiu imediatamente.

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