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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS (MESTRADO) ANA IGRAÍNE DE GÓIS BARRETO IT WAS A PLEASURE TO BURN”: FAHRENHEIT 451 E ADAPTAÇÃO NO CONTEXTO DA LEITURA CONTEMPORÂNEA MARINGÁ PR 2017

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS (MESTRADO)

ANA IGRAÍNE DE GÓIS BARRETO

“IT WAS A PLEASURE TO BURN”: FAHRENHEIT 451 E ADAPTAÇÃO NO

CONTEXTO DA LEITURA CONTEMPORÂNEA

MARINGÁ – PR

2017

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ANA IGRAÍNE DE GÓIS BARRETO

“IT WAS A PLEASURE TO BURN”: FAHRENHEIT 451 E ADAPTAÇÃO NO

CONTEXTO DA LEITURA CONTEMPORÂNEA

Dissertação apresentada à Universidade Estadual de

Maringá, como requisito parcial para a obtenção do grau

de Mestre em Letras, área de concentração: Estudos

Literários.

Orientador: Prof. Dr. Márcio Roberto do Prado

MARINGÁ – PR

2017

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Às vezes na minha saudade eu tenho a impressão que

continuo criança. Que você a qualquer momento vai

aparecer me trazendo figurinhas de artista de cinema ou

bolas de gude. Foi você quem me ensinou a ternura da

vida...

(José Mauro de Vasconcelos)

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Às minhas mães, Ivoneth Góis e Antonia Góis.

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AGRADECIMENTOS

À minha mãe, que é meu pé de laranja lima e razão de todos os meus feitos. Por ter

me introduzido à literatura e ao cinema, e por ver arte em todas as coisas da vida,

obrigada.

Ao meu pai, que é meu Zezé particular e meu grande herói, por estar me dando a

chance de conhecê-lo (e amá-lo) ainda mais.

À minha avó, que deixou, em toda a minha saudade, um pedaço muito grande de

inspiração.

Ao meu orientador, Prof. Dr. Márcio Roberto do Prado, pela infindável paciência e

confiança, e pelos momentos de riso causados meio às minhas crises.

À banca examinadora, Prof. Dr. Jaime dos Reis Sant’Anna, pelas sugestões valorosas,

e Prof.ª Dr.ª e amiga Líliam Cristina Marins, que, com todo seu amor pelas Letras e,

principalmente, pelo ensinar, foi essencial na realização deste estudo e no feitio deste

grau.

À CAPES, pelo apoio financeiro e concessão de bolsas.

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RESUMO

A leitura é um dos elementos mais importantes no despertar do pensamento crítico.

Assim, o objetivo deste trabalho é analisar o enredo de Fahrenheit 451 (livro e filme)

em diferentes meios para aplicação à formação do leitor contemporâneo, de modo a

compreender a função de outras práticas de leitura em uma sociedade a partir da

adaptação cinematográfica. Além disso, estudar e comparar as ideologias pregadas

poderá trazer uma compreensão maior da leitura a nível social, a ponto de estabelecer

o que estamos repetindo e o que estamos mudando, bem como entender até que ponto

uma sociedade tem sua própria opinião. A história em Fahrenheit 451, obra de

Bradbury de 1953, trata de um mundo distópico no qual livros são banidos e

literalmente queimados, pois entende-se que a literatura causa infelicidade e rebeldia.

Os bombeiros são quem ateiam fogo a eles, numa total distorção do real. Neste

romance, há a primazia da alienação do ser humano em detrimento do pensamento, o

que transforma o indivíduo em um ser cada vez mais apático face às relações sociais.

O texto de partida é o livro de Ray Bradbury, porém atingiu seu real sucesso com o

filme de François Truffaut (1966). A relação cinema-literatura pode ser explorada a

partir das teorias da adaptação difundidas por Linda Hutcheon (2011), Thais Diniz

(2005) e Robert Stam (2000, 2003, 2006, 2008), das ideias disseminadas por

estudiosos das novas tecnologias, como Henry Jenkins (2009) e estudos a respeito da

ideologia, realizados por Michel Foucault (1972, 1984, 1996) e Mikhail Bakhtin (1997).

Palavras-chave: Cinema; Literatura; Fahrenheit 451; Ideologia; Adaptação.

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ABSTRACT

Reading is one of the fundamental elements in eliciting critical thought. Thus, this work

aims at analysing the plot of Fahrenheit 451 (book and film) in different means to apply

in the formation of the contemporary reader, in order to comprehend the role of different

practices of reading in a society as from the film adaptation. Furthermore, studying and

comparing the diffused ideologies may bring up a greater understanding of reading on

a social level, to the point of establishing what we have been repeating and what we

have been changing, as well as to comprehend to what extent a society has its own

opinion. The story of Fahrenheit 451, Bradbury’s work released in 1953, is a dystopia

in which books are banned and literally burned, since people understand that literature

causes unhappiness. The ones who set fire to them are the firemen, what represent a

total distortion of reality. In this futuristic novel, there is the primacy of the human being’s

alienation and the detriment of thinking, what makes the individual more and more

indifferent to social relations. The source text comes from the book by Ray Bradbury,

but it reached its real success with Truffaut’s film (1966). The relationship between

cinema and literature can be exploited from the theories of adaptation disseminated by

Linda Hutcheon (2011), Thais Diniz (2005) and Robert Stam (2000, 2003, 2006, 2008),

the ideas diffused by researchers of new technologies, such as Henry Jenkins (2009),

and studies concerning ideology, carried out by Michel Foucault (1972, 1984, 1996) and

Mikhail Bakhtin (1997).

Keywords: Cinema; Literature; Fahrenheit 451; Ideology; Adaptation.

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SUMÁRIO

CONSIDERAÇÕES INTRODUTÓRIAS ........................................................... 2

Problematização e Justificativa ......................................................................... 4

Metodologia e Objetivos ..................................................................................... 5

Roteiro .................................................................................................................. 7

1. ABORDAGEM HISTÓRICA

1.1 O Escritor, O Adaptador............................................................................... 10

1.2 Os Estados Unidos à época da escrita do livro ......................................... 19

1.3 Fahrenheit de 66, Maio de 68 ..................................................................... 22

2. FAHRENHEIT 451: ANÁLISE EM SEUS DIFERENTES SUPORTES ........ 25

2.1 O romance e a adaptação cinematográfica ............................................... 29

2.1.1 Ponto de vista: As reiterações nas mídias .............................................. 31

2.1.2 Ponto de vista: O contraste entre as mídias ........................................... 44

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................................................................. 65

4. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................ 68

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CONSIDERAÇÕES INTRODUTÓRIAS

A ideia de ter o livro como algo sagrado tem sido muito questionada, uma

vez que os avanços da tecnologia e, mesmo, a mudança de interesse das novas

gerações têm aumentado. Com isso, exige-se cada vez mais uma transformação na

visão de leitura, como já era proposto por Certeau (1998) ao escrever seu livro A

Invenção do Cotidiano em 1980, época na qual considerar leitura não só a palavra

escrita, mas também imagens, era novidade. Certeau entende a experiência de ler

não apenas como uma mera ação passiva; para ele, ser leitor é ser atuante dentro

do texto, é ser produtor de sentido no ato de ler. O leitor é capaz de diminuir a

autoridade do autor, pois enquanto ele usufrui da leitura, também atribui significados,

muda ordens, lê e relê, anota, e com tudo isso, cria um novo texto, nunca tendo uma

experiência de leitura igual à anterior. Dessa forma, uma literatura sempre será

diferente da outra simplesmente pela forma como ela é lida.

Juntamente com a leitura, o próprio leitor e/ou sujeito social não mais

consegue ter uma identidade fixa, constante. Isso é explicado por Hall (2005, p. 10-

13), ao mostrar que o indivíduo se identificou, outrora, como um sujeito do

Iluminismo, o qual enxergava o ser humano de forma totalmente centrado e

unificado, de identidade inerte. Evolutivamente, veio o sujeito sociológico, que se

define pela interação com o meio (interno ou externo) e que passa a mostrar que o

indivíduo não pode ser separado da sociedade. A partir de então, surge a questão

da identidade e subjetividade serem projetadas no mundo social e cultural, e,

portanto, é impossível que ela se mantenha idêntica, uma vez que as mudanças de

meios provocam a fragmentação do indivíduo. Por fim, entra-se na era do sujeito

pós-moderno, o qual não é capaz de ter uma identidade fixa, essencial ou

permanente, pois a quantidade de informação cultural e social que ele recebe na

atualidade é muito grande, o que faz com que várias identidades sejam, assim,

multiplicadas em um só sujeito, havendo uma constante mudança.

A partir de tais evoluções e, consequentemente, alterações (no indivíduo e

na leitura), foi necessário que novas maneiras de se conseguir a experiência da

imersão numa história fossem buscadas. Tal fato pode ser entendido pelas obras

aqui estudadas. Fahrenheit 451 foi publicado pela primeira vez em 1953, por Ray

Bradbury. Em 1966, o diretor francês François Truffaut adaptou a história para o

cinema, transformando-a no filme que o consagrou como diretor. As supracitadas

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datas sugerem que a tentativa de inserção de outras práticas de leitura não é algo

recente, uma vez que a adaptação cinematográfica já se faz presente desde o início

da história do cinema. Além disso, tais datas são essenciais no entendimento de

uma futura discussão ideológica e de motivos pelos quais algo foi escrito ou

encenado.

No livro, Bradbury relata uma distopia na qual a sociedade é

controlada/manipulada por um governo que preza pela alienação. Distrair-se com

carros velozes e tecnologia excessiva é a cultura que prevalece e é incentivada. A

literatura é quase inexistente, posto que ler e/ou possuir um livro é uma prática ilegal.

Entende-se que a leitura provoca o pensamento crítico, o que causa infelicidade e

rebeldia. Evitando o pensamento, evita-se, também, a resistência. A partir de tal

enredo, torna-se desafiador e favorável unir os estudos ideológicos e de adaptação

ao assunto do qual o livro trata.

Truffaut conseguiu fornecer aos telespectadores a possibilidade de ler o livro

de Bradbury através das telas do cinema, o que fez com que sua história atingisse

público suficiente para que, hoje, a adaptação cinematográfica seja muito mais

conhecida que o livro de Bradbury. Isso mostra, assim como o romance prevê, o

quanto as pessoas se sentem cada vez menos atraídas pela leitura tradicional,

aquela da palavra escrita. Porém, sugere também que há uma tentativa em

recuperar tal interesse a partir de alternativas ao papel, seja no uso de filmes,

internet ou videogames, tudo direcionado a chamar a atenção do “usuário” para o

romance que antecedeu a adaptação.

Com isso, tenta-se entender as funções das práticas contemporâneas de

leitura no desenvolvimento de um leitor crítico, uma vez que a formação de um leitor

competente infere um indivíduo que é capaz de compreender o que lê; que consiga

“ler também o que não está escrito, identificando elementos implícitos; que

estabeleça relações entre o texto que lê e outros textos já lidos; que saiba que vários

sentidos podem ser atribuídos a um texto” (BRASIL, 1997, p. 41). Há, ainda, a

tentativa de mostrar a importância da transformação da leitura nos dias de hoje, o

que será essencial no entendimento de que não é possível hierarquizar diferentes

formas de arte – no caso deste trabalho, a constante comparação entre cinema e

literatura, que sempre coloca o livro como arte mais importante.

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Problematização e Justificativa

A evolução tecnológica está sobressaindo-se em relação às formas mais

clássicas de entretenimento, o que faz com que várias questões acabem por surgir.

No que diz respeito à área aqui estudada, o questionamento principal é sempre

quanto ao futuro da leitura, uma vez que o livro, enquanto mídia, tem sido visto como

algo paulatinamente obsoleto e deduz-se queo interesse pelo mesmo vem caindo

conforme o aumento das possibilidades de diversão oferecidas, principalmente, pela

internet. Apesar de a tecnologia estar cada vez mais em evidência, a maneira de

pensar mais habitual não conseguiu se ajustar à rapidez do digital e, por isso, ainda

enxerga obstáculos em situações que podem trazer benefícios. Exemplo disso é a

própria ideia de leitura, que, não raras vezes, continua sendo vista de forma fechada,

apenas prendendo-se à palavra escrita e ao papel, desconsiderando a definição total

do termo.

É possível entender a dificuldade de transição para uns e a facilidade para

outros a partir da explicação de Darnton (2010, p. 11):

Uma geração “nascida digital” está “sempre ligada”, conversando por celulares em toda parte, digitando mensagens instantâneas e participando de redes virtuais ou reais. (...) Gerações mais velhas aprenderam a sintonizar girando botões em busca de canais; gerações mais jovens alternam canais de imediato, apertando um botão. A diferença entre girar e alternar pode parecer trivial, mas deriva de reflexos localizados em áreas profundas da memória cinética. Somos guiados pelo mundo mediante uma disposição sensorial chamada de Fingerspitzengefühl pelos alemães. Se você foi treinado a guiar uma caneta com seu indicador, observe a maneira como os jovens usam o polegar em seus celulares e perceberá como a tecnologia penetra o corpo e a alma de uma nova geração.

Entende-se, então, que até mesmo os mais relutantes em aceitar as novas

maneiras de ler apenas precisam de tempo para se inserir na modernidade conforme

ela avança. Além disso, imagens e sons já se mostraram capazes de substituir o uso

da palavra e ainda acomodar-se enquanto leitura, pois “as imagens são mediadoras

de valores culturais e contém metáforas nascidas da necessidade social de construir

significados” (HERNANDEZ, 2000, p. 1330). Ao aceitar a amplitude da palavra

“leitura”, os questionamentos a respeito da falta de leitores passam a diminuir, pois

pode-se notar que o acesso às formas de ler cresce de forma elevada com a

digitalização, uma vez que a internet possibilita a troca de dados sem que o limite

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geográfico atrapalhe. Dessa forma, o compartilhamento de informação também

cresce – o que faz com que as bibliotecas virtuais sejam cada vez mais alimentadas

– e, com ele, o aprendizado. Em uma entrevista concedida por Pierre Lévy (2011)

ao jornal O Globo, o filósofo afirma que “no futuro, não haverá suportes físicos para

levar a informação”. Será, então, o fim das bibliotecas físicas? Ou as novas práticas

se adaptarão e serão aceitas no mundo literário, de forma a conviver com os livros?

A questão principal é compreender que ao entreter-se com um filme ou livro,

há sempre a intenção de descobrir uma nova história. Isso acontece

independentemente do meio, esta intenção é capaz de inserir o digital na literatura,

pois, como já dito anteriormente (e em todos os lugares), atualmente é possível

encontrar histórias a serem contadas em variados suportes – digitais ou não. A

pergunta se estes novos modelos de leitura são válidos na formação do leitor tem

sido discutida e vista com bons olhos, porém, a resposta definitiva só virá com o

passar do tempo, com a atualização da literatura e com a evolução da tecnologia.

Portanto, esse trabalho é feito para que seja possível, ao menos, supor as

vantagens que as mudanças podem trazer ao leitor porvindouro, e deste modo

analisar e desenvolver as adaptações em estudos e aplicações posteriores. No

momento, é possível apenas pensar nos possíveis reflexos da tecnologia na

literatura. Logo, aprofundar-se em outras formas de escrita e leitura – aqui, a

adaptação – dará suporte para uma previsão do que se pode esperar desta e da

modernização do ato de ler na formação do leitor.

Metodologia e Objetivos

A metodologia de pesquisa utilizada será a qualitativa e, assim, será possível

levantar hipóteses coerentes a respeito da análise feita. A pesquisa será formulada,

portanto, para oferecer uma visão de dentro de determinado assunto estudado, a fim

de que se possa entender os conceitos analisados a partir de um tema comum e

palpável. Para tal, serão utilizadas as atuais teorias de adaptação, defendidas por

Linda Hutcheon (2011) e Robert Stam (2000, 2003, 2006, 2008). Além disso, os

estudos sobre a relação cinema-literatura serão baseados em Diniz (2005), Caughie

e Corseuil (2000), Benjamin (1994), em outros autores e até mesmo no diretor em

estudo, Truffaut (2005, 2016), bem como outros autores estudiosos de apenas um

dos assuntos do duo. Lévy (1996, 1999, 2000) e Jenkins (2009) serão responsáveis

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pela bibliografia relacionada ao ciberespaço e a digitalização da literatura. Ainda,

teorias elaboradas por Foucault (1972, 1984, 1996) servirão de suporte nos estudos

das relações de poder identificadas na história, unindo-se, ainda, a Bakhtin (1997) e

Althusser (1970), que oferecerão significativa base à questão ideológica juntamente

estudada.

Optamos pelo estudo comparativo entre o filme e o livro para que se possa

analisar as histórias a partir de recortes das obras, sejam eles convergentes ou não.

Com as devidas divisões, será possível cumprir a finalidade de estudar duas práticas

diferentes de leitura, ao mesmo tempo que será feita alusão à questão ideológica,

buscando entender as escolhas do escritor e cineasta naqueles momentos e o

quanto suas posições enquanto sujeitos determinaram o porquê de uma frase ou

uma cena. Além disso, a análise comparativa será capaz de mostrar as possíveis

formas de aprendizagem nas mídias aqui analisadas e o desenvolvimento de cada

uma, o que possibilitará um futuro aperfeiçoamento das práticas de leitura visando

a formação do leitor.

A partir da interação entre obras, a análise do livro e do filme tem por objetivo

compreender a função da adaptação cinematográfica em uma sociedade como

prática contemporânea de leitura. O fato de um mesmo texto poder ser entregue em

meios diversos, e em suportes também diferentes, sejam eles verbais ou não-

verbais, quer dizer que é possível que uma leitura – no sentido amplo da palavra –

seja feita no papel, na tela do computador ou do cinema, no celular, no tablet, no

leitor de e-book, etc, e ainda assim ser considerada leitura. Porém, isso não extingue

a possibilidade de ler o livro só porque se pode ver o filme. É intenção, também,

mostrar que ambas experiências são válidas e importantes, e uma não elimina a

outra. Pode-se notar que as novas tecnologias, bem como o diálogo entre um

suporte e outro, mostram que o leitor contemporâneo tem uma nova visão de leitura

e é esta visão que desperta seu interesse ou o mantém ativo. Assim, é possível

estudar a influência e as mudanças que as diferentes maneiras de ler podem trazer

para a formação de leitores partindo do duo cinema-literatura. Esta questão já é, de

certa forma, comentada na educação brasileira, como mostrado nas OCEMs

(BRASIL, 2006, p. 63):

(...) supõe-se que os alunos que ingressam no ensino médio já estejam preparados para a leitura de textos mais complexos da cultura literária, que

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poderão ser trabalhados lado a lado com outras modalidades com as quais estão mais familiarizados, como o hip-hop, as letras de músicas, os quadrinhos, o cordel, entre outras relacionadas ao contexto cultural menos ou mais urbano em que tais gêneros se produzem na sociedade.

Portanto, é necessário que a discussão a respeito das diferentes práticas de leitura

mantenha-se evoluindo, para que eventualmente haja uma nova formulação na

forma de pensar a educação.

Além disso, entendendo que o cinema é uma “criação da coletividade”

(BENJAMIN, 1994, p. 172), por ser preciso envolver bastantes pessoas para se

realizar um filme, há também o objetivo de enxergar a adaptação como uma segunda

obra – porém não secundária (HUTCHEON, 2011, p. 30) – que passa por um

extenso processo até que seja finalizada.

Num segundo momento, a análise ideológica das obras, partindo das

escolhas do autor e do adaptador, objetiva entender até que ponto uma sociedade

tem sua própria opinião ou é forçada a pensar de determinada forma, partindo de

Foucault (1972, p. 200), que doutrina sobre as relações de poder na linguagem, a

qual age como forma de controle, de coerção e de exclusão social. O pensador ainda

defende que o indivíduo respeita leis e cumpre ordens mesmo sem se dar conta

delas pois há um sistema de funcionamento extremamente sutil que permite o

controle sobre a sociedade, a ponto de que o poder que se tem em relação ao

indivíduo não seja nem mesmo notado (idem, 1987, p. 212), – o que poderá ser

facilmente notado em Fahrenheit 451.

Roteiro

O primeiro capítulo será dedicado a introduzir o autor do livro, Ray Bradbury,

e o diretor do filme, François Truffaut, de forma a entender, ao menos basicamente,

qual o estilo de cada um e até que ponto o romance e sua adaptação atingiram

outros trabalhos de seus realizadores. Além disso, uma apresentação da história de

Fahrenheit 451 será realizada, porém sem que haja intenção de aprofundamento

no enredo, visando apenas analisá-lo brevemente para que não falte assimilação

entre o enredo e sua análise no decorrer do estudo por parte de quem o lê.

Fahrenheit 451 traz a assustadora ideia de um mundo sem Shakespeare,

Nietzsche, Dickens e outros grandes pensadores, de fundamental importância

cultural. Portanto, a função do primeiro capítulo será a tentativa de imaginar o mundo

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descrito/mostrado por Bradbury e Truffaut, já fazendo referência à dificuldade para

um indivíduo desenvolver criticidade em um mundo alienado. Ainda, o primeiro

capítulo será detentor de um breve estudo histórico, uma vez que o período das

obras coincide com momentos importantes da história, como o período repressor

que precede a publicação do livro, marcado pelos movimentos nazifascistas, os

quais pregavam exatamente a alienação sugerida na história. Em relação ao filme,

há os movimentos estudantis de contracultura ocorridos na França em 1968, dois

anos após o lançamento da adaptação – o que pode ser entendido como resultado

de uma insatisfação que já ocorria há tempos.

No segundo capítulo, desenvolver-se-á a análise propriamente dita das

obras, de modo a observar elementos de afastamento e aproximação, ou seja, em

que o filme e o livro são diferentes e em que se parecem. Mesmo que a utilização

das palavras “afastamento” e “aproximação”, ou mesmo “diferenças” e “reiterações”,

não consigam suprir completamente a imparcialidade entre os meios aqui sugerida

(e buscada), reforça-se que não há intenção de comparação valorativa entre as

obras, pois parece claro que ao transpor um texto de uma mídia para outra, é

impossível que a história seja contada exatamente da mesma forma, uma vez que

cada meio possui suas limitações e peculiaridades. Portanto, a ideia não é discutir

ou buscar fidelidade, limitamo-nos apenas a apresentar as características de cada

obra ainda que de forma comparativa, uma vez que são frutos da mesma história.

Nesta análise, discute-se os impactos de como determinadas cenas são

apresentadas em um suporte ou em outro, bem como a necessidade que existe de

modificar partes da história de partida para que seja possível adaptá-la ao novo

formato. Ao mesmo tempo, busca-se explicar o porquê das modificações a partir da

ideologia da época do filme.

Para que haja a conexão de uma ideia com outra, o segundo capítulo

englobará tanto a análise comparativa quanto o enfoque na ideologia transpassada

na história, usando como gancho o uso exacerbado da tecnologia pela sociedade

descrita. Cada discurso carrega uma opinião que tende a ser propagada conforme

se fala, o que quer dizer que a função de toda e qualquer ideologia é colocar um

indivíduo na posição de sujeito que age a partir do que defende. O fato de o indivíduo

não estar livre para falar o que quer quando quer, posto que é o seu meio que

determina o que pode ser dito, será capaz de explicar o porquê das escolhas do

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escritor e do cineasta, ou seja, o estudo ideológico nos textos tornará possível a

análise do que Truffaut pretendeu ao usar determinadas situações ou falas e,

também, do que Bradbury quis mostrar ao escolher certa escrita e tal tema para seu

livro.

Assim, será necessário enxergar a literatura de forma mais ampla, pois,

como defende Negroponte (1995, p.18), “todas as indústrias, uma após a outra,

olham-se no espelho e se perguntam sobre seu futuro; pois bem, esse futuro será

determinado em 100% pela possibilidade de seus produtos e serviços adquirirem

forma digital”. Não há necessidade em pensar no fim da literatura, uma vez que a

virtualização surge com a função de manter a mesma viva e, ao mesmo tempo,

ampliá-la, visto que é capaz de levar a arte a lugares que seriam mais dificilmente

alcançados pelo livro impresso. É esta a função da transposição de um suporte para

outro, fazer com que a história sobreviva, independentemente de onde. A partir

dessa ideia, as obras de Fahrenheit 451 podem sem enxergadas através dos olhos

de Jenkins (2009, p. 29) e sua Cultura da Convergência, que explica o fato de o

consumidor e o produtor de mídia terem poderes que interagem, ou seja, já não há

mais um controle sobre o que será veiculado ou não, uma vez que hoje é possível

ser veiculador de ideias com apenas alguns cliques. A convergência oferece ao

consumidor – em termos jenkinsianos - diferentes e diversas plataformas de mídia.

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1. ABORDAGEM HISTÓRICA

1.1 O Escritor, O Adaptador, A História

Ray Douglas Bradbury foi um romancista norte-americano, nascido em 22

de abril de 1922. Era o terceiro filho de Leonard Spaulding Bradbury e Esther Marie

Moberg Bradbury. Em 1934, ele e a família mudaram-se para Los Angeles. Enquanto

adolescente, andava de skate pela cidade, na tentativa de encontrar celebridades.

Dessa forma, acabou conhecendo pessoas como o profissional de efeitos especiais

Ray Harryhausen, e o comediante – na época, radialista – George Burns. Foi Burns

quem pagou seu primeiro cachê como escritor, quando Bradbury colaborou com

uma piada para o famoso programa de rádio Burns & Allen Show (OAKES, 2004,

p. 52).

Durante o ensino médio, Bradbury foi influenciado por duas professoras no

caminho da literatura – Snow Longley Housh lhe ensinou poesia e Jeannet Johnson,

a escrever contos –, às quais ele dedica ampla gratidão ao longo de seus anos como

escritor. Também teve influência de grandes autores de fantasia e ficção científica,

como Edgar Allan Poe e Jules Verne, além de romancistas modernistas como Ernest

Hemingway e John Steinbeck. Não se formou na universidade, porém, nunca deixou

de estudar. Trabalhou como entregador de jornais durante o dia e passava suas

noites na biblioteca, lendo e escrevendo. Sua primeira publicação foi em um fanzine

de ficção científica, o Imagination!, em 1938, com o conto Hollerbochen's

Dilemma (ELLER, 2011, p.18). Apenas em 1943 Bradbury desistiu de vender jornais

e passou a se dedicar exclusivamente à escrita.

Conheceu Marguerite "Maggie" McClure em uma livraria e casou-se com ela

em 1947, mesmo ano da publicação de sua primeira coletânea de contos, intitulada

Dark Carnival. Em 49, teve sua primeira filha, Susan (BLOOM, 2010, p. 159).

Ganhou reconhecimento como escritor de ficção científica apenas em 1950, quando

publicou As Crônicas Marcianas. Mais tarde, em 1953, publicou Fahrenheit 451,

livro aqui estudado.

A primeira versão do livro foi escrita e publicada numa revista de ficção

científica, a Galaxy, em fevereiro de 1951. Apenas após tal periódico é que o autor

foi descoberto pela Ballentines Books e incumbido de alongar sua história e

transformá-la, de fato, num livro. A princípio intitulado The Fireman, por ordens

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editoriais, Bradbury (2010) precisou escolher um título diferente para seu trabalho.

Foi neste momento que a curiosidade surgiu no escritor: a qual temperatura o papel

do livro pega fogo? Para descobrir, ele ligou para o departamento de química da

UCLA e para o departamento de ciências da USC, mas nenhuma das universidades

soube dar a resposta. Finalmente, ligou para o corpo de bombeiros de Los Angeles,

de onde obteve o retorno de que o papel do livro queima a 451 graus Fahrenheit.

Absorveu a informação e inverteu o nome.

Quanto à escrita do livro, Bradbury (Id. Ibid.) explica que precisava de um

escritório para poder trabalhar, uma vez que suas filhas atrapalhavam sua

concentração. Porém, por não ter condições financeiras para tal, acabou usando a

Universidade da Califórnia em Los Angeles (UCLA) como local de trabalho, posto

que na mesma havia um porão com doze máquinas de escrever disponíveis para

locação, no valor de dez centavos de dólar por trinta minutos de uso. Com um gasto

de nove dólares e oitenta centavos, Fahrenheit 451 foi escrito.

O romance é conhecido como uma crítica à censura nazista, em virtude da

época de sua publicação. Bradbury (2010) afirma que sua intenção era apenas

mostrar os rumos que a sociedade estava tomando ao privilegiar a tecnologia em

detrimento dos livros e outros meios antecessores à mesma. O escritor enxergava o

leitor numa posição mais elevada que o resto dos consumidores de mídia, colocava-

o acima da massa. Portanto, sua visão lembra os apocalípticos descritos por Eco

(1993, p. 8), os quais recusavam a modernização e os meios de comunicação de

massa (onde o cinema pode ser encaixado), pois para eles só havia uma forma de

leitura: a do livro impresso, e esta forma estava acima de qualquer outra. Esta

suposição pode ser comprovada a partir da resposta do escritor em uma entrevista,

quando lhe perguntaram o porquê de as pessoas não mais lerem como antigamente:

“há muitos computadores, muitos e-mails e muitos dispositivos. Eles ficam no nosso

caminho e nos impedem de ler. Se não tivéssemos os computadores e os e-mails,

poderíamos passar mais tempo lendo e escrevendo” [Tradução da pesquisadora]1.

Isso vai de encontro a contemporaneidade, que ainda exige uma discussão

a respeito das vantagens e desvantagens da cultura de massa, apesar da mesma já

1 There are too many computers, too many e-mails, and too many devices. They get in our way, and prevent us from reading. If we didn't have the computers and the e-mails, we could spend more time reading and writing.

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se encontrar firmemente enraizada. Os integrados de Eco (ibidem, p. 7), como Lévy

(2000, p.203-204), defendem que

(...) as redes de computadores carregam uma grande quantidade de tecnologias intelectuais que aumentam e modificam a maioria de nossas capacidades cognitivas: memória (...) raciocínio (...) capacidade de representação mental (...) e percepção (..). O domínio dessas tecnologias intelectuais dá uma vantagem considerável aos grupos e aos contextos humanos que as utilizam de maneira adequada.

Ainda Bradbury (2010)2, conforme explica em uma entrevista, não planejou

desde o princípio escrever uma história que sairia, de súbito, apenas de sua cabeça,

com apenas as suas ideias. Conta ele que a história vem de muito antes, quando

havia saído de um restaurante com um amigo e foi parado pela polícia. Perguntaram

o que ele estava fazendo, ao que o mesmo respondeu: “estou colocando um pé à

frente do outro”, o que diz acreditar não ter sido a resposta correta, uma vez que o

policial se exaltou e ficou repetindo que não haviam pedestres na rua. A partir de

sua própria história, o escritor teve a ideia de um conto ao qual deu o nome de O

Pedestre (anteriormente citado como The Fireman), publicado na revista Galaxy

Science Fiction, em fevereiro de 1951 (ELLER, 2011, p. 210). Tal conto narra a

história de um professor fora do exercício da profissão que gosta de caminhar pelas

ruas durante à noite e, numa dessas caminhadas, é preso, pois não estava

assistindo à televisão como todos os outros moradores.

Num diálogo intertextual, Clarisse conta, em determinada parte do enredo,

sobre o dia em que seu tio foi preso por estar caminhando, de forma a remeter ao

conto que originou o livro. Bradbury diz que o policial é o responsável pela escrita

de Fahrenheit 451. Ainda a garota nos leva à questão ideológica de forma clara: a

entrevista supracitada, Bradbury (2010) diz que “Clarisse McLellan é Ray Bradbury:

o garoto que se apaixonou pela vida. E Clarisse é a essência da vida e a essência

do amor”3, uma garota que inspira e ensina. Isso mostra que o autor escreveu a

personagem pensando em suas posições e opiniões, como se ela o representasse

ali dentro da história.

O autor, conhecido como autor de obras visionárias, teve muitos

pseudônimos, usados no intuito de, no início de sua carreira, esconder o fato de que

2 Disponível em: https://www.arts.gov/video/nea-big-read-meet-ray-bradbury 3 Clarisse McLellan is Ray Bradbury, the boy who fell in love with life. And Clarisse is the essence of life and the essence of love. (TRADUÇÃO NOSSA)

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era ele quem escrevia todas as histórias de sua fanzine, Futuria Fantasia. Alguns

deles eram: Doug Rogers, Guy Amory, E. Cunningham, Brian Eldred, D. Lerium

Tremaine, D.R.Banet, Brett Sterling, etc. Bradbury faleceu aos 91 anos, em Los

Angeles, em decorrência de uma longa doença, deixando filhas, um legado de livros,

prêmios e uma adaptação cinematográfica de sucesso de um de seus livros.

Do outro lado, dez anos mais novo que o escritor, temos o cineasta François

Truffaut, nascido na capital francesa, no dia 6 de fevereiro. Foi rejeitado pela mãe e

nunca chegou a conhecer o pai, de forma que foi criado pelos avós, com quem

aprendeu a gostar da leitura e da música. Com a morte de sua avó, voltou a viver

com a mãe, a qual havia se casado com o homem que lhe daria o sobrenome que

marcou o cinema francês. A paixão pelo cinema surgiria ainda cedo, quando matava

aulas para assistir filmes (tal como Antoine Doinel), e seria desenvolvida mais à

frente com a ajuda de seu mentor, o grande crítico de cinema, André Bazin. Foi Bazin

quem o ajudou (dentre muitas coisas) a entrar para a redação da revista Cahiers du

Cinéma, a qual lhe rendeu artigos que fariam com que o diretor fosse por vezes

criticado por suas ideias esquerdistas (2016).

Truffaut sempre foi conhecido por seus filmes em preto e branco, dirigidos e

filmados na língua francesa. Foi um dos fundadores da nouvelle vague e, como todo

filme deste movimento, retratava o amor ou alguma parte específica da vida de

alguém. Acreditava que fazer um filme é uma forma de deixar a vida melhor, “(...)

organizá-la à sua maneira, é prolongar as brincadeiras de infância, construir um

objeto que é ao mesmo tempo um brinquedo inédito e um vaso onde disporemos,

como se se tratasse de um buquê de flores as ideias que temos em determinado

momento ou de forma permanente” (TRUFFAUT, 2005, p. 328).

Utilizando um de seus maiores sucessos, Les quatre cents coups (no

Brasil, Os Incompreendidos), o primeiro da série de filmes de seu Alter ego Antoine

Doinel, é possível criar uma relação entre o cineasta e o autor de Fahrenheit 451,

uma vez que ambos partem de histórias pré-existentes para desenvolver outras. No

sucesso de Truffaut, o garoto de 14 anos rebela-se contra as imposições de sua

escola e deixa de ir às aulas para poder ir ao cinema. A princípio, Truffaut, assim

como Bradbury, não tinha o roteiro completo em sua cabeça e nem mesmo a ideia

de fazer um longa-metragem a partir de tal história. O primeiro vestígio de Os

Incompreendidos surgiu de um curta-metragem de vinte minutos que o cineasta

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havia feito, chamado Antoine runs away, o qual discorre sobre um menino que não

vai à aula e, por não ter nenhum bilhete que sirva de desculpa por sua falta, inventa

que sua mãe morreu. Não pode voltar para casa, pois haviam descoberto sua

mentira.

Para o desenvolvimento do roteiro na intenção de torná-lo um longa, Truffaut

contou com a ajuda do roteirista Marcel Moussy. A ideia de aumentar a história do

jovem Antoine

Foi porque eu estava decepcionado com Os Pivetes, ou, pelo menos, por sua concisão (...) Eu tinha passado a rejeitar este tipo de filme feito a partir de vários esquetes ou esboços. Então, eu preferi deixar Os Pivetes como um curta e me aventurar com um longa-metragem através da expansão da história de Antoine runs away. Dentre as cinco ou seis histórias que eu já tinha esboçado, está foi a minha preferida, e ela tornou-se “Os Incompreendidos”. (TRUFFAUT, 1984) [Tradução da pesquisadora]4

A intenção do diretor, após Os Incompreendidos, era realizar outro filme

com crianças como foco. Porém, no começo dos anos 60, chegou ao livro de

Bradbury por recomendação do amigo e produtor Raoul Lévy. Como também

quisera realizar um filme em que os livros eram os heróis, sendo os personagens de

carne e osso secundários, obviamente o fascínio foi instantâneo e, logo em seguida,

em 1962, viajou para Nova Iorque para procurar o autor, na intenção de comprar os

direitos do livro e conversar sobre uma adaptação do mesmo.

Classificado como um diretor da chamada “esquerda cinematográfica”, a

qual utiliza dos filmes para questionar as ideias do governo, Truffaut debatia

questões ideológicas em seus artigos para a Cahiers du Cinéma, e seu interesse

em discutir ideologia fica bastante claro em Fahrenheit 451. Tal filme é muitas vezes

visto como um deslize dentre as várias obras do diretor, justamente por que não era

parte de seu estilo utilizar cores, muito menos inovar com ficção científica. O mesmo

responde que não havia, com isso, mudado de estilo, mas, sim, de assunto. A

começar que Truffaut desprezava filmes e livros do gênero, como pode ser visto em

muitos de seus artigos, defendendo que O monstro do ártico (The thing from

another world, 1951), de Christian Nyby, é “o único filme de ficção científica

4 It was because I was disappointed by “Les Mistons,” or at least by its brevity (...) I had come to reject

the sort of film made up of several skits or sketches. So I preferred to leave “Les Mistons” as a short

and to take my chances with a full-length film by spinning out the story of “Antoine Runs Away.” Of the

five or six stories I had already outlined, this was my favorite, and it became “The 400 Blows.”

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realmente inteligente” (DIXON, 1993, p. 79). Em relação ao gênero, o diretor explica

que ficção científica é algo muito difícil de executar e, muitas vezes, há o risco de

ser ridículo.

Não conseguiu realizar as gravações na França, uma vez que Fahrenheit

451 era algo muito grande para o que o cinema francês podia oferecer, na época. O

gasto financeiro com o filme seria muito alto, algo que não acontecia com o cinema

francês: ninguém colocava mais de cento e vinte milhões em um filme de arte,

enquanto que Fahrenheit 451 custaria setecentos e cinquenta. Devido a isso, foi

preciso deslocar a produção do filme para a Inglaterra, onde havia estrutura, dinheiro

e mão de obra especializada para um trabalho de tal porte. Até mesmo bombeiros

reais fizeram parte dos bastidores, já que muitas cenas foram feitas com fogo, o que

acabou causando alguns pequenos incêndios durante as gravações. Muitos técnicos

da equipe dos filmes de James Bond foram utilizados em Fahrenheit 451, apesar

de serem obras bastante diferentes no sentido de que as séries de Bond são

consideradas parte do mainstream, enquanto Truffaut se encaixa no cinema cult.

Contudo, apesar de possuir estrutura e apoio melhores na Inglaterra, o país

acabou causando grande desconforto ao diretor. Técnicos e atores britânicos eram

obcecados pela fidelidade entre as obras, o que fez com que Truffaut tivesse

problemas em lidar com os mesmos. Este tipo de situação já foi discutido por Diniz

(2005, p. 13-14), quando diz que os críticos vêm buscando fidelidade entre o trabalho

literário e o filme adaptado, de modo a observar se o último foi capaz de absorver

todos os aspectos da história de partida. A adaptação era analisada de forma a

observar se o cineasta usou elementos cinematográficos que substituíssem

eficientemente os literários. Isso quer dizer que as adaptações fílmicas estão

situadas num redemoinho de referências e transformações intertextuais, de textos que geram outros textos, num processo infinito de reciclagem, transformação, transmutação, sem qualquer ponto de origem, necessariamente definido.

Ainda neste sentido, algo pior aconteceu com Oskar Werner, quem

interpretava o personagem principal, pois o ator tinha uma visão já pré-definida sobre

Montag para o estúdio, o que não agradou o diretor. Ao não aceitar as ideias de

Werner, a relação entre ambos acabou ficando desconfortável e Truffaut passou a

dirigir o ator por intermédio de um dublê. Ao fim das filmagens, não mais se falavam

(GUIMARÃES, 2014). Caughie explica que a razão disso se dá porque

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os atores também encenam (en-act) e incorporam (en-body) sentimentos como se fossem reais, de uma forma que se tornam reais para eles e para nós. (...) Para incorporar sentimentos, os atores aprendem técnicas de relaxamento físico, jogos de risco e acreditam minimizar as barreiras entre um sentimento e a sua expressão: a expressão de uma verdade que é mantida – como que milagrosamente, apesar de toda pretensão – sempre lá dentro do ator. (2000, p. 119)

Isso mostra uma das discussões mais comuns no campo da tradução, algo

bastante debatido por Arrojo (1986, p. 22): ao transpor um texto de uma linguagem

(verbal ou não-verbal, independentemente do suporte) para outra, há uma

impossibilidade na questão da fidelidade justamente porque a pessoa que recebe o

primeiro texto não consegue manter-se a uma distância em que a mesma se anula

e aceita o que lê exatamente da forma como o autor pensou; existe um processo

que não permite que a totalidade do trabalho de partida seja atingida, pois ao

transpor uma história para outra linguagem seria revelado, “inevitavelmente, uma

leitura, uma interpretação desse texto que, por sua vez, será, sempre, apenas lido e

interpretado, e nunca totalmente decifrado ou controlado”. Assim, os textos passam

a ser vistos como um palimpsesto, em que se apaga e se escreve novamente, em

diferentes épocas, culturas e lugares, dando espaço a outra leitura da mesma

história (ibidem, p.24).

Ainda na questão das releituras, a adaptação cinematográfica de Truffaut é

muito mais conhecida que o livro de Ray Bradbury no qual o filme se baseou. O fato

de que, ao se falar de Fahrenheit 451, o filme é o primeiro que vem à mente

demonstra que a imagem cinematográfica tem a capacidade de se inserir com mais

facilidade na memória coletiva das massas. Isso talvez aconteça com Fahrenheit

451 porque o tema da história é a queima de livros, a qual é tão forte que consegue

falar por si. Assim, quando a câmera foca nos livros sendo incendiados, é possível

identificar os exemplares que ali estão, o que faz com que o telespectador consiga

criar uma ligação com aquelas obras que a ele são conhecidas e reais – mesmo que

sejam apenas compartilhadas na memória coletiva. Ali, entende-se que os livros não

são somente parte do plot, mas são, em especial, os personagens principais deste.

Além disso, Truffaut teve uma preocupação com os livros a serem usados

nas gravações, algo que não ocorreu no livro de Bradbury claramente porque não

era relevante para aquela experiência de leitura. Já no filme, a escolha dos livros

que a câmera captava sendo queimados foi importante. Autores como Jacques

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Audiberti e Jean Genet foram inseridos no filme graças ao amor de Truffaut pelos

mesmos, ao que o diretor diz que se fosse para o acampamento dos homens-livros,

decoraria Marie Dubois, de Audiberti. Além destes, o diretor buscou edições

antigas, em inglês, de Le Livre de Demain, da Arthème Fayard, porque considerou

que muitas pessoas se emocionam com a obra, devido às suas xilogravuras e à

lembrança de antes da guerra. Com isso, Truffaut consegue criar uma conexão do

telespectador com o filme, fazendo com que uma memória seja formada na mente

daquele: cria uma lembrança sobre uma sociedade que vive de esquecimentos. Ao

mesmo tempo, posiciona-se ideologicamente ao mostrar que também teve a

intenção de expor a guerra, como Bradbury, em seu filme.

Truffaut ainda explica que foi porque Bradbury criou a queima de livros em

sua história que ele pôde se divertir tanto nas filmagens dos incêndios, além de

esclarecer que considera o escritor dono de, pelo menos, metade de seu filme:

Na verdade, este filme, como todos que são tirados de um bom livro, pertence parcialmente ao seu autor, Ray Bradbury. Foi ele quem inventou as queimas de livro que eu estou me divertindo tanto em filmar e para as quais eu queria cor. Uma velha senhora que se deixa queimar (...) o herói, que torra seu capitão; são coisas que eu gosto de ver na tela e que eu gosto de filmar, mas que minha imaginação, muito presa ao real, não conseguiria conceber.5 (TRUFFAUT, 1974, p. 157, apud FUMARONI, 2010) [Tradução da pesquisadora]

Neste sentido, Truffaut acaba por defender um dos pontos discutidos nos estudos

pós-modernos da tradução: a questão da coautoria. Para alguns teóricos, a tradução

é, de certa forma, uma nova criação. Portanto, nessa nova forma de representar a

criação de partida há uma necessidade de que o tradutor use o maior conhecimento,

vivência e sensibilidade possíveis ao tema no qual estabelece seu trabalho para que,

só assim, consiga transpô-lo. O rastro que o tradutor deixa é permanente, por mais

que a coautoria não seja pretendida. Portanto, é possível aceitar que a adaptação

cinematográfica tem o próprio escritor do livro como coautor, assim como assume o

cineasta.

Ainda, os incêndios foram o maior gasto da produção, porém, ao mesmo

tempo, foram talvez a parte mais importante da história, uma vez que os livros

5 en fait, ce film, comme tous ceux tirés d'un bon livre, appartient pour moitié à son auteur, Ray Bradbury. C'est lui qui a inventé ces incendies de livres que vais avoir tant de plaisir à filmer e pour lesquels j'ai voulu la couleur. Une vieille dame qui se laisse brûler (...) le héros que “grille” son capitaine, voilà des chose que j'aime voir à l'écran et que j'aime à filmer, mais que mon imagination trop lieé au réel ne pourrait concevoir.

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representavam, de fato, personagens importantíssimos do enredo, eram eles que se

martirizavam para que toda uma sociedade pudesse continuar defendendo sua

ideologia. Segundo Truffaut, queimar livros foi difícil e, ao mesmo tempo, fascinante:

difícil porque havia certa resistência à queima de alguns e os que ele realmente

queria queimar, era preciso que houvesse várias cópias; fascinante porque algumas

páginas desgrudadas na queima enrolavam-se como se fossem conchas, o que era

algo deveras bonito. Além disso, nas últimas cenas de livros queimados, é possível

ler algumas linhas enquanto as páginas inflamam, o que faz com que o cinema

acabe trazendo uma aproximação da literatura.

Truffaut, o “cineasta apaixonado”, é famoso por fazer filmes que

homenageiam diferentes partes da arte: O Último Metrô (Le Denier Metro, 1980)

mostra seu amor ao teatro; A Noite Americana (La nuit américaine, 1973), ao

cinema; Fahrenheit 451, à literatura. Apesar de ter vivido poucos 52 anos, deixou

filmes que se configuram como marcos no cinema francês, até mesmo pelo fato de

ter sido um dos fundadores da nouvelle vague (GALVÃO, 2008, p. 07). Morreu em

21 de outubro de 1984, em decorrência de um câncer no cérebro. A doença foi

mantida em segredo, porém, pouco antes de seu falecimento, Madeleine

Morgenstern (ex-esposa do diretor) contou ao cineasta Claude de Givray o que

estava acontecendo, uma vez que o mesmo havia sido chamado para dirigir um filme

televisivo e estava tentado a não aceitar por ter, previamente, um compromisso em

relação a roteiro com Truffaut. À indecisão de Givray, Madeleine advertiu: “Claude,

você não deveria recusar nenhum trabalho. François tem câncer em fase terminal”

(BAECQUE; TOUBIANA, 1999, p. 384-385) [Tradução da pesquisadora]6.

Com a apresentação dos realizadores de ambas as obras feita, é possível,

agora, dar um enfoque nos momentos vividos pelos Estados Unidos na época de

publicação do livro, considerando, também, a posição de Bradbury em sua escrita.

Igualmente, o famigerado maio de 68 e, de modo óbvio, os eventos e manifestações

que se desenvolviam ao lançamento do filme – já ocorrendo, portanto, antes da

revolta estudantil francesa – serão tratados. Tal discussão servirá de base para

compreender a questão ideológica no próximo capítulo discutida.

6 Claude, you shouldn’t turn down any work. François has terminal cancer.

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1.2 Os Estados Unidos à época da escrita do livro

O momento vivido pelos Estados Unidos após o fim da Segunda Guerra

Mundial entra em contraste com os países participantes da mesma e tem relação

profunda com os pontos principais de Fahrenheit 451. O conto Bright Phoenix foi

o precursor de O Pedestre e foi escrito em 1947, dois anos após o fim da guerra.

Nele já há alguns questionamentos que poderiam ser frutos do momento ali vivido

pelo escritor.

Após a guerra, os Estados Unidos passaram por um período próspero e de

paz, pois foi tal conflito que acabou com os problemas decorrentes da crise

econômica de 1929. Foi lá que milhares de pessoas conseguiram arrumar emprego,

o que causou aumento da economia e colocou o país no topo das nações que viviam

em alto padrão. O governo utilizou de muitas estratégias e planos para o cidadão

norte-americano, de modo que aumentou a previdência social e o salário mínimo,

melhorou o sistema educacional e construiu casas para aqueles de renda menor.

Assim, o pós-guerra ainda fez com que o país ficasse nas mãos de grandes

corporações, as quais controlavam a sociedade e a economia norte-americana de

forma conservadora. Ainda nesta época, surgiram os movimentos por direitos civis,

que buscavam igualdade social especialmente dos negros, os quais passavam pela

segregação racial existente nos Estados Unidos, que só teve fim em 1964.

Logo após a Segunda Guerra Mundial, também se deu início à Guerra Fria,

na qual o estado norte-americano disputava preeminência política, militar e

econômica com a União Soviética, que tinha por objetivo implantar o socialismo em

outras nações. O constante medo em relação ao comunismo fez com que os Estados

Unidos acabassem por entrar em vários outros conflitos ainda na década de 1950,

o que ainda pode ser explicado pelo fato de que o país acreditava que deveria estar

em estado de guerra permanente para ter sua economia estabilizada (KARNAL et

al., 2011, p. 14).

Ainda de grande importância foram as bombas atômicas, as quais atuaram

como mais um ato militar da Segunda Guerra, o qual colocou um item deveras

perigoso nas relações internacionais. Além disso, muitos refugiados (judeus,

socialistas, deficientes físicos, ciganos, lésbicas, gays e outros) perseguidos pelos

nazistas não encontraram exílio nos Estados Unidos nem em outros países aliados

a este, ao mesmo tempo em que o país ignorava as evidências do holocausto e os

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constantes pedidos dos militantes para que a imigração fosse facilitada. Apenas

quem fosse de alguma forma conveniente ao país, conseguia refúgio – como foi o

caso de Albert Einstein, que foi para os Estados Unidos para trabalhar como

professor universitário. Com isso, Karnal et al. surgem com a pergunta que nos

remete ao próprio livro de Bradbury: se os Estados Unidos estavam, de fato, em

“uma guerra genuína contra o fascismo, por que as vítimas principais do nazismo

não tiveram prioridade na estratégia militar dos aliados?” (ibidem, p. 186).

Bradbury, enquanto cidadão norte-americano vivendo tal momento, insere

sua posição ideológica ao escrever Fahrenheit 451 – ou mesmo os contos que

deram início ao livro. Durante a época de escrita do mesmo, o senador do estado de

Wisconsin era Joseph McCarthy. Ele tornou-se conhecido por ter sido o governante

que iniciou investigações hostis para descobrir todos que eram ou simpatizassem

com os comunistas, independentemente da profissão ou cargo dos inquiridos. A este

período deu-se o nome de “macartismo” ou, ainda, “Caça às Bruxas”, como

referência ao tempo em que mulheres acusadas de praticar magia negra eram

queimadas durante a Idade Média. Como a censura era grande e a perseguição

ainda maior, as atitudes de McCarthy acabaram sendo vistas como uma mancha na

história da democracia dos Estados Unidos.

Em relação a isso, Bradbury explica sua intenção com Fahrenheit 451

Durante o reinado de terror de McCarthy, eu escrevi um romance chamado Fahrenheit 451, o qual era um ataque direto ao tipo de força destruidora de pensamentos que ele (McCarthy) representada no mundo. Ainda assim, poucas pessoas me atacaram por escrever um romance não-macartista. Eu fui capaz de fazer propaganda sem ser apedrejado ou agredido. Mais tarde, os russos piratearam uma edição deste mesmo livro, o qual eu ouvi que vendeu muito bem na Rússia. Obviamente, por ser ficção científica, eles não entenderam a mensagem de todos os tipos de tirania em qualquer lugar do mundo, a qualquer momento, de direita, esquerda ou centro. Então, eu fui uma força subversiva, caso você prefira, na URSS, ao mesmo tempo em que fui igualmente subversivo aqui. (BRADBURY apud AGGELIS, 2003, p. 13) [Tradução da pesquisadora]7

7 During the McCarthy reign of terror, I wrote a novel titled Fahrenheit 451 which was a direct attack on the kind of thought-destroying force he represented in the world. Yet few people attacked me for writing an anti-McCarthy novel. I was able to propangadize without getting myself stoned or pummeled. Later, the Russians pirated an edition of this same book, which I hear has sold very well in Russia. Obviously, because it is science-fiction, they haven’t gotten the message that I means all kinds of tyrannies anywhere in the world at any time, right, left or middle. So I have been a subversive force, if you like, in the USSR, while being equally subversive here.

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A linguagem da ficção científica possibilitou que acontecesse com Bradbury o que

os compositores brasileiros da época da ditadura faziam: o uso de metáforas,

lugares indefinidos e elementos criados foram capazes de despistar a censura e não

se configurar enquanto problema para o governo.

Assim, pode-se perceber que, apesar da Segunda Guerra Mundial ter sido

o que possibilitou a reorganização dos Estados Unidos, ela também trouxe sintomas

do que é visto no mundo contemporâneo, que é a alienação – proposital ou não –

criada pelo governo, que faz com que os cidadãos fechem os olhos para o que está,

de fato, acontecendo. A crítica de Bradbury se faz clara no livro em momentos em

que a televisão é privilegiada e a guerra é comentada como algo que todos fazem

de conta que não está acontecendo.

Para estabelecer sua crítica, o escritor coloca o capitão Beatty dizendo, de

forma bastante submissa para uns e irônica para outros, o trecho a seguir:

Mais esporte para todos, espírito de grupo, diversão, e não se tem de pensar, não é? Organizar, tornar a organizar e superorganizar super-superesportes. Mais ilustrações nos livros. Mais figuras. A mente bebe cada vez menos. Impaciência. Rodovias cheias de multidões que vão pra cá, pra lá, a toda parte, a parte alguma. Os refugiados da gasolina. Cidades se tornam motéis, as populações em surtos nômades, de um lugar para o outro, acompanhando as fases da lua, vivendo esta noite no quarto onde você dormiu hoje ao meio-dia e eu a noite passada. (...) Autores cheios de maus pensamentos, tranquem suas máquinas de escrever! Eles o fizeram. As revistas se tornaram uma mistura insossa. Os livros, assim diziam os malditos críticos esnobes, eram água de louça suja. Não admira que parassem de ser vendidos, disseram os críticos. Mas o público, sabendo o que queria, com a cabeça no ar, deixou que as histórias em quadrinhos sobrevivessem. E as revistas de sexo em 3D, é claro. Aí está, Montag. A coisa não veio do governo. Não houve nenhum decreto, nenhuma declaração, nenhuma censura como ponto de partida. Não! A tecnologia, a exploração das massas e a pressão das minorias realizaram a façanha, graças a Deus. Hoje, graças a elas, você pode ficar o tempo todo feliz, você pode ler os quadrinhos, as boas e velhas confissões ou os periódicos profissionais. (BRADBURY, 2012, p. 80-81)

Bradbury usa seus personagens para expressar uma opinião própria a respeito do

período em que ele mesmo vivia. Até mesmo no que tange à tecnologia, sua crítica

é clara: a guerra acabou com vidas, culturas e nações, mas causou o boom

tecnológico norte-americano, o que auxiliou na economia, colocando os Estados

Unidos como potência mundial. O fato de chamarem a Segunda Guerra Mundial de

“boa guerra” deixa claro que é preferível se fingir de cego e surdo, pois, de fato, é

mais fácil ignorar do que revolucionar.

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1.3 Fahrenheit de 66, Maio de 68

No ano em que o filme foi realizado, a economia sofria uma forte recessão,

que abalou a situação econômica mundial, o que acaba se configurando como uma

grande contradição, uma vez que a recuperação do pós-guerra havia reestabelecido

os bens de consumo duráveis de quase toda a Europa. Na França, a política era

autoritária e reacionária. Ao mesmo tempo, o país foi forçado a orientar a economia

em direção à Europa, uma vez que a mesma estava crescendo em passo acelerado

após a Guerra da Argélia. Com isso, novas partes da indústria eram abertas,

aumentando a necessidade de trabalhadores empregados. Essa abertura causou

um crescimento, também, na esfera educacional, uma vez que técnicos e formados

passaram a ser requeridos com urgência. Na época do filme, o número de

estudantes havia dobrado e, com isso, as universidades ficavam cada vez mais

lotadas, menos bem equipadas e com uma direção com valores desatualizados.

Ainda em 66, a Confederação Francesa Democrática do Trabalho (CFDT)

une-se à Confederação Geral do Trabalho (CGT) na luta de classes. Os

trabalhadores passavam a sentir os primeiros sinais da recessão: apesar do auge

econômico, o salário ainda era baixo e, com o descontentamento e a frustração, o

desemprego aumentava, juntamente com a carga de trabalho. Assim, até a

derradeira greve geral, houve uma junção de estudantes com trabalhadores, ambos

buscando reformas em seus respectivos setores de atuação (WOODS, 2008).

Até mesmo o cinema foi atingido no ano de 1968. A cinemateca francesa

surgiu em 1936 e servia para mostrar e divulgar as obras cinematográficas do

passado, além de colecionar elementos relacionados ao cinema, como câmeras,

figurinos, cartazes, entre outros. Em fevereiro, o ministro da cultura, André Malraux,

demitiu Henry Langlois, o qual era fundador do lugar. Isso fez com que a antiga

equipe da Cahiers du Cinema e outros diretores se reunissem para ir às ruas.

Truffaut estava entre eles (BAECQUE; TOUBIANA, 1999, p. 276).

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A insatisfação dos estudantes para com a precariedade das universidades,

bem como o tirano sistema educacional, causou os primeiros sinais de revolta. Os

estudantes deram início ao conflito se manifestando contra uma proibição de

homens e mulheres nos mesmo alojamentos, de forma que, assim, conseguiam

buscar mudanças sociais e políticas. Após isso, uma sucessão de conflitos passou

a acontecer: com o fechamento da Universidade de Nanterre, a agitação chegou a

Sorbonne; após, os estudantes passaram a pedir pela renúncia do presidente

Charles de Gaulle. Como houve violência exacerbada por parte da polícia nas

manifestações, o Partido Comunista Francês também passou a apoiar os

universitários, mostrando-se contra as reações do governo. Os trabalhadores, já

insatisfeitos, igualmente uniram-se às manifestações ao cruzar os braços e instaurar

uma greve geral, no dia 13 de maio de 1968.

O maio de 68 ficou marcado na história como o mês em que os franceses

(além de vários outros países do mundo, uma vez que diferentes conflitos

aconteciam ao redor do globo) rebelaram-se para que suas vozes fossem ouvidas.

Os movimentos causaram diversas mudanças na parte ocidental do mundo, bem

como melhora da educação e das condições de vidas, como de fato havia sido

solicitado. Porém, politicamente não teve sucesso, uma vez que o então presidente

organizou eleições para junho e teve como vencedor seus aliados.

Com esse contexto, é possível entender as motivações de Truffaut ao

realizar uma adaptação cinematográfica como Fahrenheit 451. Bradbury, quando

escreveu seu livro, passava por um momento histórico em que a sociedade fingia

não ver nada, e é justamente isso que ele expõe na história; contrariamente, o

cineasta estava numa nação que tinha olhos bem abertos e se mantinha em busca

de seus direitos, o que pode ser personificado por Montag, a face da revolução

Fonte: https://palavrasdecinema.wordpress.com (2015)

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dentro daquela sociedade. Montag é cada estudante e cada trabalhador que quis

ver e viver em um lugar mais justo, onde o cidadão não é enganado ou manipulado.

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2. FAHRENHEIT 451: ANÁLISE EM SEUS DIFERENTES SUPORTES

Atualmente, a possibilidade de se ler um texto a partir de diferentes suportes

vem aumentando, uma vez que a tecnologia possibilita a promoção de outras

modalidades textuais. As múltiplas formas de linguagem permitem o intercâmbio de

uma mesma história em diferentes mídias: a HQ The Walking Dead transformou-se

em série de televisão e é recordista em audiência, poemas audiovisuais e audiolivros

trazem uma nova visão de literatura, e histórias saem de um suporte e adaptam-se

a outros rapidamente. Portanto, ao analisar um livro e um filme deve-se ter em mente

que o cinema não é apenas um mero desdobramento do texto de partida, mas possui

uma linguagem própria, a qual é diferente da verbal. Assim, em tal análise, adentra-

se dois mundos de significações múltiplas, o que não impede que a adaptação faça

representações narratológicas de forma distinta do texto de partida, porém tão

expressivas quanto.

Segundo Hutcheon (2011, p. 30), uma adaptação pode ser “uma

transposição”, “um ato criativo e interpretativo” e “um engajamento intertextual”.

Assim, “é uma derivação que não é derivativa” e, principalmente, “uma segunda obra

que não é secundária – ela é sua própria coisa palimpséstica”. Então, o que deve

ser entendido é que atualmente muito pode ser visto como adaptação. Com isso, “no

trabalho da imaginação humana, a adaptação é a norma, não a exceção” (ibidem, p.

170).

O que ainda pode ser percebido, é a relação entre adaptação e ideologia na

formação do leitor: a adaptação é responsável pela transição de uma história por

outros suportes que não apenas o papel, de forma a levar a literatura para as telas

(do computador, do cinema, da televisão...), o que possibilita que a mesma seja

encontrada e apreciada de forma mais fácil e condizente com o mundo

contemporâneo, cercado pela tecnologia. Ao mesmo tempo, a formação discursiva

– ou seja, a ideologia que controla os discursos de uma sociedade – de um sujeito

é capaz de moldar seus gostos e sua produção discursiva. Um mesmo texto pode

ser lido de formas diferentes por povos diferentes em épocas diferentes, devido ao

condicionamento cultural, social e, primordialmente, ideológico das sociedades nas

quais tais indivíduos encontram-se. A ideologia possibilita a leitura, assim como a

leitura possibilita as escolhas ideológicas, sejam elas resistentes ou passivas.

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A adaptação traz consigo a possibilidade de ler uma história a partir de outro

formato, de modo a inserir na literatura um novo entendimento à palavra “leitura”.

Com a evolução e a tecnologia, a literatura viu-se obrigada a se modernizar e, com

isso, os livros passaram do impresso para o digital. Da mesma maneira, o mundo

digital passou a fazer sua própria forma de literatura. A partir desta ideia, é possível

entender por que "contar histórias sempre foi a arte de contá-las de novo” e por que

esta arte “se perde quando as histórias não são mais conservadas. Ela perde-se

porque ninguém mais fia ou tece enquanto as ouve” (BENJAMIN, 1994, p. 205). Isso

quer dizer que é necessário que haja meios pelos quais a literatura seja difundida,

pois enquanto houver quem a dissemine, ela continuará viva. O espaço digital

permite que a leitura continue ativa ao adicionar à definição desta uma gama maior

de opções.

Naturalmente, é necessário que se estabeleça o que será entendido como

leitura, para que não haja confusão nem generalização da mesma. Ler, na maioria

das vezes, é relacionado ao papel impresso, sem considerar as várias outras

práticas de leitura que as tecnologias contemporâneas têm inserido no cotidiano

coletivo. Hoje em dia, é possível entender que a leitura não faz parte apenas de um

meio. É leitura, segundo Martins (1994), a maneira de interpretar um conjunto de

informações, bem como “a decodificação de dados a partir de determinado suporte”,

independente de qual seja. Assim como as histórias e a tecnologia, a definição de

leitura foi mais uma dentre as várias perspectivas que mudaram em vinte anos. Ler

exige um processo mental, uma atuação significativa de quem recebe as

informações, de forma a criar uma relação entre o que alguém escreveu e o que

alguém está recebendo. Assim, utiliza-se da tecnologia e, aqui, do cinema para

proporcionar artifícios que possibilitam e induzem o interesse pela leitura.

A mudança de definição no termo “leitura” pode causar rebuliço e oposição

por parte de estudiosos da língua, os quais, em sua maioria, veem a questão da

tradução de textos literários como uma destruição e descaracterização (ARROJO,

1986, p. 25-26) do que eles consideram ser o texto superior. Para estes estudiosos,

“a tradução é uma atividade essencialmente inferior, porque falha em capturar a

‘alma’ ou o ‘espírito’ do texto literário ou poético” (ibidem, p. 27).

A partir disso, retomando Benjamin (1994, p. 166), entende-se que uma obra

de arte é e sempre foi passível de reprodução. Acaba-se, então, caindo na questão

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do melhor e do pior, do maior e do menor, e, justamente por isso, nota-se que é

impossível que haja uma hierarquia entre as artes ou entre as histórias contadas,

visto que uma decorre da outra. Nesta ideia de hierarquia, tem-se Stam (2006, p.

21), que cita os constantes preconceitos sofridos pelas adaptações, como, por

exemplo, a questão da antiguidade: a obra mais antiga é frequentemente

considerada melhor que a mais recente; a ideia provém de que não é possível que

haja duas obras igualmente boas, portanto, o cinema significa uma perda da

literatura. Além disso, há o preconceito em relação às artes visuais (iconofobia), o

qual anda lado a lado com a supervalorização dos textos escritos (logofilia); e o

desgosto pela incorporação, ou seja, pela ideia de fazer com que um texto seja parte

de outros textos.

Devido a tais preconceitos, cai-se na constante cobrança por fidelidade da

adaptação ao texto de partida. Claramente, ao transpor um texto de uma mídia

para outra, é impossível que a história seja contada exatamente da mesma forma,

uma vez que cada meio possui suas limitações e peculiaridades. Com isso, o termo

fidelidade

de maneira geral usando os mais variados disfarces retóricos, ainda representa um elemento de valor presente nas análises de adaptações e nos comentários que se pode colher entre o público espectador de maneira geral. Mas parece-me evidente que a noção de “fidelidade” como um parâmetro em estudos de adaptação não se sustenta. (HATTNHER, 2013, p. 37)

Assim, é possível contar/mostrar essencialmente uma história sem

prender-se a um só meio, por mais que, no meio do caminho, determinados pontos

precisem ser ajustados ao suporte utilizado. Portanto, discutir fidelidade não é nem

deve ser um ponto de importância, uma vez que o próprio termo “adaptação” faz

referência ao ato de acomodar-se, ajustar-se. O desejo de fidelidade existe, sim,

porém a mesma é impossível, não só devido à “presença inevitável de mediações

de todos os tipos na constituição das adaptações, mas devido à instabilidade dos

significados produzidos em quaisquer textos por meio de múltiplas interpretações”

(Id. Ibid.).

De extrema importância, ainda, o que pode ser pensado é justamente no

enfoque diferente dado à palavra “leitura”, o qual é reflexo de uma ideologia presente

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em determinado grupo social. Segundo Williams (1985, p. 152-157, apud STAM,

2003, p. 155), é possível entender ideologia a partir de três sentidos, sendo eles

(1) um sistema de crenças características de uma determinada classe ou grupo; (2) um sistema de crenças ilusórias – falsas ideias ou falsa consciência – que podem ser contrastadas com o conhecimento verdadeiro ou científico; e (3) o processo geral dos sentidos e ideias.

Já Althusser (1970 apud BRANDÃO, 2004, p. 24) explica que “a ideologia

representa a relação imaginária de indivíduos com suas reais condições de

existência”, não sendo o elemento-chave na reprodução/transformação das relações

em uma formação social.

Sabendo que a distopia de Ray Bradbury conta a história de uma civilização

comandada por um governo totalitário, que tinha como prioridade manter os

cidadãos alienados, focados apenas em suas novelas e carros de alta velocidade,

pode-se, a princípio, analisar ideologicamente o papel deste governo e o resultado

de suas ações nesta sociedade. O romance retrata um tema de absoluta importância

da época em que foi escrito: de 1953, o livro foi publicado alguns anos após o fim do

Império Nazista, em que

se queimavam livros, não só judaicos, mas aqueles contrários à ideologia [do Nazismo]. A Biblioteca de Alexandria foi queimada na Antiguidade, e na Idade Média também se queimaram livros, e bibliotecas quase foram extintas. Existiram obras que foram destruídas e não sabemos absolutamente nada. Esse perigo é constante ao longo da humanidade. A censura é uma das primeiras coisas que se faz em uma sociedade fascista. (BASTOS, 2013, apud CUNHA, 2013)

De forma consciente ou não, Bradbury teve influência externa do momento

em que ele e o resto da sociedade estavam vivendo quando escreveu Fahrenheit

451, de modo que expôs um mundo sem livros (portanto, sem desenvolvimento do

pensamento crítico) e de total controle do governo – como ocorreu até o fim da

Segunda Guerra Mundial, previamente discutido. E suas ideias vinham desde antes

mesmo do conto O Pedestre, pois este foi também resultado de um pequeno

resquício do que daria vida ao livro aqui estudado: o conto Bright Phoenix, o qual

foi escrito em 1947, mas publicado apenas em 1963. A história trata da queima de

livros enquanto experimento social, uma vez que eles são considerados perigosos.

O chefe deste conto, assim como Beatty, também possui uma explicação para tudo:

“Este é um experimento extraordinário. Uma cidade-teste. Se a queima funcionar

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aqui, ela funcionará em qualquer lugar. Nós não queimamos tudo, não. Você reparou

que meus homens limparam apenas determinadas prateleiras e categorias?”8.

Na história, tal como em Fahrenheit 451, há ainda várias alusões a outros

nomes da literatura, como as primeiras linhas de The Passionate Shepherd To His

Love, de Christopher Marlowe; o famoso “Call me Ishmael”, do romance Moby Dick;

uma citação do poema The Tyger, de William Blake e outra de To Autumn, de John

Keats. A história ainda mostra que ninguém está preocupado com a queima e explica

tal atitude quando um chama o outro pelo nome de algum escritor, dando a entender

o que Fahrenheit 451 propõe ao fim do enredo: a transformação das pessoas em

livros e, assim, uma forma de manutenção da literatura.

Isso retoma a questão de uma história repetindo a outra, nunca sendo

completamente original, de forma que mostra o próprio autor usando duas histórias

diferentes para montar outra totalmente nova. Corseuil (2009, p. 373) explica a

função da análise comparativa de um filme com um texto literário ao dizer que “serve

(...) para que se busque definir elementos que podem ser transferidos de um meio

ao outro e aqueles que oferecem resistência e exigiram (...) uma narrativa menos

linear, mas nem por isso menos vinculada ao cinema”. Dessa forma, será feito o uso

de tal análise para que seja possível compreender as escolhas de diretor e, com

elas, o papel da ideologia na adaptação, bem como no romance.

2.1 O romance e a adaptação cinematográfica

A obra conta a história de uma civilização comandada por um governo

totalitário, que tinha como prioridade manter os cidadãos alienados, focados apenas

em suas novelas e carros de alta velocidade. Trata-se, então, de um futuro (próximo)

em que os bombeiros deixaram de apagar o fogo e passaram a executar a

contraditória função de queimar livros. Entende-se que a literatura provoca o

pensamento crítico, o que pode causar tristeza e/ou fazer com que as pessoas se

rebelem contra o status quo.

Num mundo onde tudo é controlado, o bombeiro Montag acaba revendo

seus princípios após conhecer a jovem Clarisse McClellan, quem o questiona acerca

8 This is a tremendous experiment. A test town. If the burning works here, it’ll work anywhere. We don’t burn everything, no no. You noticed, my men cleaned only certain shelves and categories? (2017)

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da vida e de tudo o que o governo evita que seja falado. Ao ser colocado para pensar,

o protagonista revê suas prioridades e prazeres, experimenta a literatura e dela

nunca mais consegue se livrar. Ao ser denunciado por sua esposa, Montag vê sua

equipe prestes a incendiar sua residência. Durante a discussão ele acaba por matar

seu chefe. Foragido e procurado, Montag reúne força e coragem para mudar o rumo

da sua vida perante tal sociedade.

Talvez a escolha da linguagem cinematográfica acabe sendo mais frequente

na adaptação devido ao fato de que ela é capaz de reunir, em um só suporte,

elementos que tornam possíveis a narrativa e a construção fílmica, o que alcança a

memória e o inconsciente do espectador. Há, com isso, um texto do real, uma vez

que o cinema põe a realidade em evidência e, com isso, acaba por criar uma outra

linguagem. (DIAS, 2008, p. 08).

Aqui, a adaptação será vista como o produto filme e, ao mesmo tempo, como

o processo de transportar uma história de um meio para outro. Com isso, será

possível analisar ambas as obras e, assim, compreender as necessidades de

modificação de determinados pontos da história para que a transposição para o

suporte de destino seja bem-sucedido. Nem sempre tais modificações agradam, o

que pode ser explicado caso o processo de adaptação seja pensado da forma ampla

com a qual ele é feito. O próprio diretor comenta que há uma grande dificuldade não

apenas por parte do público em relação à adaptação, mas também no contexto da

indústria cinematográfica:

Os produtores acham sinceramente que faltam roteiristas criativos e talentosos; os roteiristas acham que não é necessário se matar por diretores que enfraquecerão o pensamento deles, produtores que amputarão seus roteiros (...) os diretores invocarão a censura política ou a de costumes, e, sistematicamente, a censura financeira dos produtores, enfim, aquela cujas leis tácitas são decretadas pelo cretinismo do público. (TRUFFAUT, 2005, p. 287)

Todavia, surge a pergunta: se há tanta dificuldade e falta de reconhecimento,

o que faz um roteirista querer adaptar um romance? Segundo Hutcheon (2011, p.

126), diversos podem ser os motivos para se fazer uma adaptação: os estímulos

econômicos, uma vez que os – aqui estudados – filmes são produtos com altos

gastos e que, por isso, buscam apostas seguras num público que dará o retorno e

lucro esperados; capital cultural, na intenção de fazer com que as obras que são

consideradas derivativas e qualitativamente secundárias sejam vistas com novos

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olhos e, assim, as adaptações conquistem respeito; razões pessoais ou políticas,

sejam como homenagens, críticas, questionamentos, etc.

Um dos motivos pela escolha do cinema como estudo se dá pelo fato de que

o mesmo possui cinco formas de construção do conteúdo: linguagem verbal,

imagens, músicas, efeitos sonoros e de iluminação (STAM, 2000), o que faz com

que um mundo novo de significações seja construído e com que haja a possibilidade

de uma análise substancial. Além disso, as adaptações podem ser entendidas a

partir da hipertextualidade, que enxerga os filmes como hipertextos derivados de

outros hipotextos previamente criados, ou seja, um filme é, então, uma diferente

leitura de uma mesma história.

Para tal, serão utilizados termos de cunho, talvez, carregados de sentidos,

como “diferenças” e “reiterações”, ou mesmo “afastamento” e “aproximação”.

Explicamos que a escolha das palavras se dá no sentido de colocar ambos os

trabalhos em posições semelhantes de distanciamento, enxergando-os como

processos individuais e diferentes, sem valoração de um em detrimento do outro. Ou

seja, nem a literatura, nem o cinema serão privilegiados neste processo: ambos

caminham em direção oposta ou contrastante de maneira igual.

2.1.1 Ponto de vista: As reiterações nas mídias

O que se tem entre as obras, na verdade, é o conceito de dialogicidade de

um meio com o outro, sugerido por Bakhtin (1997, p. 113), o que pode ser

relembrado por Stam (2003, p. 226) quando o autor considera que “qualquer texto

que tenha ‘dormido com’ outro texto (...) também dormiu com todos os outros textos

que o outro texto já dormiu”. Ou seja, obras novas sempre vêm de obras anteriores.

Diniz (2003) também explica esta questão ao dizer que parte do cineasta a decisão

de manter uma história fiel ou não, de usar vários hipotextos para criar um hipertexto

ou de fazer uma grande obra “original”. De qualquer forma, independentemente da

originalidade, um trabalho sempre será passível de ser considerado uma adaptação

de uma história anterior. Portanto, a literatura é ligada a outras manifestações

artísticas de forma inseparável, ou através da relação autor-texto-leitor, ou através

de sua contribuição para a criação de outros textos artísticos.

Assim, é possível perceber que a ideia inicial de adaptação sugerida por

Hutcheon (2011), Diniz (2003) ou Stam (2011), de que uma obra sempre vem de

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outra, pode ser comprovada tanto pelo escritor quanto pelo diretor de Fahrenheit

451, uma vez que ambos partem de histórias pré-existentes para realizarem seus

trabalhos. As adaptações estão em todos os lugares, nos dias de hoje, então elas

não podem ser consideradas secundárias.

Entende-se, então, que os próprios textos de chegada (sejam livros ou

filmes), de fato, sempre vêm de inspirações anteriores às mesmas, vêm “da boca de

outrem”. A partir deste ponto de vista, a adaptação é também um arranjo de

discursos, talentos e trajetos, de forma que combina diferentes mídias, o que faz

com que a originalidade deixe de ser possível ou, mesmo, desejável. E uma vez que

a originalidade literária perde seu valor, fazer uma adaptação da mesma deixa de

ser uma “ofensa” tão grave (STAM, 2006, p. 23). Isso quer dizer que “(...) pinta-se,

escreve-se ou faz-se filmes porque viu-se pinturas, leu-se romances, ou assistiu-se

a filmes. A arte, neste sentido, não é uma janela para o mundo, mas um diálogo

intertextual entre artistas” (idem, 2008, p. 44).

O primeiro exemplo aqui descrito deve ser um ponto que faz com que seja

possível perceber os primeiros passos da insatisfação de Montag: num dia normal

de trabalho, pela primeira vez, em anos de serviço exemplar, antes de sair para

outro incêndio, Montag esquece seu capacete por se distrair em seus

pensamentos. É uma situação bem marcante tanto no livro quanto no filme, uma

vez que o bombeiro, que até então, nunca havia tirado uns segundos para pensar

acaba perdendo-se completamente, a ponto de não conseguir realizar o trabalho

que sempre realizara com maestria. Além disso, tal passagem representa por si só

o papel do capacete, que é o de proteger a cabeça, o cérebro, o que faz com que

seja possível perceber que, ao esquecê-lo, Montag está abrindo-se ao exercício do

pensamento.

Com isso, nota-se também a mudança de posição de Montag. O

bombeiro, a princípio, defende uma ideologia que prega a ignorância e a alienação

como o caminho para uma vida feliz. Sente-se pleno ao deslizar pelos canos do

corpo de bombeiros e jamais se incomodou com o cheiro constante de querosene

em suas roupas, o qual “não passa de perfume” (BRADBURY, 2012, p. 24) para

ele. A cena do capacete é, portanto, um marco para a compreensão de que o

bombeiro está iniciando sua transição, uma vez que o exercício do pensamento (ali

pouco ou nada utilizado) provoca-lhe estranhamento. Assim, é como se a ideologia

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dominante fosse, de certa forma, questionada pela parte dominada: é proibido

pensar, mas, ainda assim, pensa-se.

Montag é o personagem escolhido para mostrar a ideologia de sua

sociedade, uma vez que ele é o exemplo de cidadão correto, que não vai contra as

leis e que aproveita a vida a partir das distrações que seu grupo impõe. Evita a

leitura, pois, segundo o governo, praticá-la seria um ato de subversão; assim,

participa das práticas e rituais sociais e os defende, mesmo que inconscientemente.

Isso quer dizer que o indivíduo se assujeita à língua e, com isso, acaba não notando

que sua fala, muitas vezes, não é própria, é apenas uma personificação do que é

dito e defendido pelo seu meio e, principalmente, pelos seus comandantes. Assim,

a materialidade da ideologia encontra-se sempre no discurso, enquanto sua

articulação está no sujeito. Bakhtin explica que

Tudo que é ideológico possui um significado e remete a algo situado fora de si mesmo. Em outros termos, tudo que é ideológico é um signo. Sem signos não existe ideologia. Um corpo físico vale por si próprio: não significa nada e coincide inteiramente com sua própria natureza. Neste caso, não se trata de ideologia. (1997, p. 31)

Isso quer dizer que os signos nem sempre significarão a mesma coisa; é preciso

entender o meio, a história, os acontecimentos e a formação discursiva do falante

para poder atribuir significado às mesmas. O que para um é apenas uma imagem

de uma mulher, para outros é símbolo de santidade: muda-se o sentido a partir da

referência ideológica de quem vê. Ou seja, há um complexo grupo de discursos no

qual o sujeito toma seu lugar. O lugar de Montag muda ao se dar conta do que antes

não via. Assim, enquanto sujeito, ele não pode ser submisso, pois passa a ocupar

uma posição no discurso e resistir a outras posições. Sendo o assujeitamento da

ordem do político e do simbólico, é também da resistência, a qual Foucault (1984, p.

303) define como uma força produtiva na luta contra a submissão das subjetividades,

como a sobrevivência a condições antagônicas.

Assim, é impossível que haja ideologia sem o discurso ou sem seu

articulador. Ao estado, interessa que o sujeito não perceba que está sendo

influenciado, como explica Foucault (1996) em sua aula inaugural no Collège de

France, em 1970, o que pode ser visto no fato de que as relações de força de um

discurso nunca são iguais, pois sempre há uma subordinação ocorrendo. Assim, o

discurso pode ser analisado em três fases (vide Figura 1), tendo início na superfície

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linguística, passando-se para o objeto discursivo e finalizando no processo

discursivo, ou seja, na formação ideológica:

Fahrenheit 451 foi escrito em 1953 e desde então representa inúmeras

questões que podem ser vistas no mundo atual. A tecnologia, por exemplo, é um

aspecto de grande importância nas obras, uma vez que o papel da mesma é

controlar a mente da sociedade de forma que não se rebelem contra o sistema. Os

comerciais e as paredes televisionadas são a forma de manter a população entregue

às mordomias da tecnologia sem notar que está sendo manipulada. A própria esposa

de Montag, Mildred/Linda, sofre, de certa forma, uma lavagem cerebral pela

realidade virtual à qual é exposta diariamente. Quanto a isso, entende-se que

Nossos meios de comunicação são nossas metáforas Nossas metáforas criam o conteúdo da nossa cultura”. Como a cultura é mediada e determinada pela comunicação, as próprias culturas, isto é, nossos sistemas de crenças e códigos historicamente produzidos são transformados de maneira fundamental pelo novo sistema tecnológico e o serão ainda mais com o passar do tempo. (CASTELLS, 1999, p. 414).

Como representação disto, ainda no início (do livro e do filme), tem-se a

cena em que a esposa de Montag desmaia pelo excesso de comprimidos

estimulantes com sedativos. O bombeiro encontra sua esposa inconsciente e liga

para a assistência médica, que de imediato resolve o problema, utilizando de uma

troca de sangue: tira o antigo e substitui com novo, deixando-a, também, “nova”.

Esperando por um médico – que não irá aparecer, uma vez que tal situação é

comum –, Montag escuta dos enfermeiros: “casos como esse... Tratamos 50 por

dia como ela. (...) Ela não será a última esta noite, nem de perto” (TRUFFAUT,

1966). Tal cena reforça a suspeita de Montag de que ninguém em seu mundo é

realmente feliz e que há uma depressão constante sendo camuflada; ao mesmo

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tempo, é capaz de mostrar ao leitor/telespectador o primeiro contato do que será

visto como normal ao longo da história.

A influência da tecnologia naquela sociedade é fortemente reforçada nas

obras. A poucos passos da Terceira Guerra Mundial, nem o filme nem o livro tocam

muito em tal assunto, justamente para simbolizar a falta de atenção e/ou o quão

pouco as pessoas se importam com eventos que fujam do mundo absorto ao qual

elas estão acostumadas. Apesar de haver bombardeios diários e de,

ocasionalmente, algum meio de comunicação noticiar que “... a guerra pode ser

declarada a qualquer momento” (BRADBURY, 2012, p. 53), não há uma

preocupação genuína por parte dos alienados habitantes daquele coletivo.

Qualquer comentário a respeito da mesma é ofuscado pela obsessão de todos por

entretenimento sem sentido. Quando a guerra, de fato, estoura, a cidade de Montag

é inteiramente destruída, sem deixar sinais de vida. O que ocorre, então, é uma

sátira – caracterizada pelo dicionário Michaelis (2016, online) como uma

“composição poética (...) que censurava as instituições, os costumes e as ideias da

época, em estilo irônico ou indignado” – em relação à tal obsessão do público com

celebridades e cultura pop ao mesmo tempo em que se reconfortam naquilo em

que acreditam ser um status quo imutável.

A própria situação de guerra trata mais profundamente das descobertas de

Montag após ter contato com a literatura. Há nele despertada a consciência de que

a vida que o sistema faz com que todos tenham é camuflada por agitação e felicidade

comprada, e que na realidade é extremamente infeliz e vazia. O bombeiro passa a

dar passos mais largos para longe da ignorância, pois agora sabe que o que ele

chamava de felicidade era apenas distração e nenhum exercício de pensamento. A

ideologia que um dia foi defendida saía do campo do desconhecido e passava para

o lado do esclarecimento.

Seu discurso passa a mudar, o que pode ser entendido pelo fato de que o

mesmo não é apenas um conjunto de signos feitos apenas para que as pessoas

possam se comunicar. É, na verdade, um sistema que serve de suporte para as

representações ideológicas: é o elemento que media o homem e sua realidade

(BRANDÃO, 2004, p. 12), o que pode ser claramente visto nos diálogos e devaneios

de Montag no trecho a seguir:

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Por que diabos esses bombardeiros passam lá em cima a todo instante de nossas vidas! Por que ninguém quer falar sobre isso? Desde 1990, já fizemos e vencemos duas guerras atômicas! Será porque estamos nos divertindo tanto em casa que nos esquecemos do mundo? Será porque somos tão ricos e o resto do mundo tão pobre e simplesmente não damos a mínima para sua pobreza? Tenho ouvido rumores; o mundo está passando fome, mas nós estamos bem alimentados. Será verdade que o mundo trabalha duro enquanto nós brincamos? (...) Talvez os livros possam nos tirar um pouco dessas trevas. Ao menos poderiam nos impedir de cometer os mesmos malditos erros malucos! (BRADBURY, 2012, p. 97-98)

Enquanto uma guerra acontece, todos mantêm-se como sujeitos

construídos, inscritos num sistema de ideias específico, isto é, são indivíduos

determinados pela formação discursiva dominante – na história, aquela que

defende que a alienação é o melhor caminho a ser seguido –, a qual impõe e

dissimula a tais indivíduos o seu assujeitamento de forma a parecer que o mesmo

é autônomo e não previamente construído. Truffaut faz questão de manter todos

em seu casulo de alienação durante seu filme, de modo que Montag pareça cada

vez mais um “estranho no ninho”, o único que percebe as atrocidades e falta de

humanidade ao seu redor.

Nessas primeiras reiterações, pode-se notar a intenção do adaptador em

fazer com que haja, de fato, um diálogo entre as obras, ao passo que quem recebe

uma conseguirá fazer uma conexão com a outra – contanto que se tenha um

conhecimento prévio das mesmas. Em relação a isso, Jauss (1994, p. 28) explica

que

A obra que surge não se apresenta como novidade absoluta num espaço vazio, mas, por intermédio de avisos, sinais visíveis e invisíveis, traços familiares ou indicações implícitas, predispõe seu público para recebê-la de uma maneira bastante definida. Ela desperta a lembrança do já lido, enseja logo de início expectativas quanto a “meio e fim”, conduz o leitor a determinada postura emocional e, com tudo isso, antecipa um horizonte geral da compreensão vinculado, ao qual se pode, então – e não antes disso –, colocar a questão acerca da subjetividade da interpretação e do gosto dos diversos leitores ou camadas de leitores.

Há, ainda, o capitão dos bombeiros, Beatty, o qual Cyril Cusack interpretou

com maestria no filme. É ele quem exemplifica a ideologia daquela sociedade

absolutista. Beatty é um homem estudado, conhecedor de história e do que está

contido nos livros, porém, ainda assim, mostra seu comodismo perante as leis a todo

momento, durante o livro e o filme inteiros. Afirma que Clarisse “não queria saber

como uma coisa era feita, mas por quê. Isso pode ser embaraçoso. Você pergunta

o porquê de muitas coisas e, se insistir, acaba se tornando realmente muito infeliz”

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(BRADBURY, 2012, p. 84). Tal discurso mostra seu conformismo, pois, apesar de já

tido acesso às informações dos livros, um dia, e ter bagagem suficiente para sair da

alienação, mostra que acha mais fácil manter-se respeitando o que o sistema impõe,

de forma que, assim, consegue evitar que seus pensamentos lhe deprimam.

Ao mostrarem determinada atitude partindo do chefe de um órgão

governamental, tanto escritor quanto cineasta colocam em questão suas opiniões de

que o topo da cadeia organizacional de uma sociedade deve e será o primeiro a

convencer a parte inferior da importância de suas ideias e do porquê elas estão

certas.

Beatty representa todos os líderes daquele sistema, é a ideologia pregada

em tal sociedade, porém ele sabe mais sobre o que contém nos livros que qualquer

outra pessoa. Apesar de queimá-los com veemência, passa boa parte de seu tempo

dedicando-se a citá-los, desde a mitologia até trechos da Bíblia. Beatty, no passado,

provavelmente foi um curioso e rebelde como Montag, alguém que começou a ler e

acabou questionando o sistema, o que fez com que ele também quisesse mudar as

regras. Este questionamento causou o sentimento do capitão em relação aos livros:

eram muitas questões para as quais não havia resposta, não havia uma receita para

viver nem uma explicação sobre o sentido da vida, uma vez que a literatura pode,

sim, - assim como deve – ser contraditória, o que fará com que os pensamentos

venham em milhares, causando ainda mais confusão. Uma vez que não existia a

vontade de pensar, essa desestabilização em sua forma de viver pode ter causado

a repulsa de Beatty por livros. Então, nunca houve um medo, por parte do governo,

das informações contidas no livro. O medo se dá a partir da própria função principal

da literatura, que é causar o pensamento crítico, o questionamento. A questão que

paira, portanto, é: seria o chefe dos bombeiros (ou qualquer representante oficial)

feliz e crente em suas decisões?

Na contramão, tem-se um grande exemplo de situação também aproveitada

no filme, que é a já citada cena da Senhora Blake, uma mulher que mantinha uma

biblioteca em sua casa e que se caracteriza como o primeiro grande contratempo de

Montag. Quando os bombeiros encontram seus livros, ela apenas ri, enquanto desce

as escadas recitando as palavras do bispo Hugh Latimer (mártir, morto por heresia)

ao também bispo Nicholas Ridley: “Aja como homem, mestre Ridley, havemos hoje

de acender uma vela tão grande na Inglaterra, com a graça de Deus, que tenho fé

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que jamais se apagará”. Sua fala se abre para o fato de que Montag é essa vela, e

que aquele dia será essencial para o despertar do bombeiro; ela é o mártir, a que

morre também por heresia, também por ir contra as ordens do governo.

Tal cena é essencial ao enredo por representar extremamente bem a

mudança de Montag, como mostra o trecho a seguir: “uma fonte de livros jorrou

sobre Montag enquanto ele subia trêmulo pela tosca escada. Que inconveniente!

Antes, sempre fora como apagar uma vela” (ibidem, p. 57) e, só então, o bombeiro

percebia que não queimava apenas objetos: feria pessoas ao destruir uma vida de

histórias lidas. Pelo trecho supracitado, é possível perceber a falha que ocorre no

ritual discursivo, uma vez que algo resistivo já começa a surgir na transformação de

Montag em indivíduo consciente.

Além de tudo, a dona da casa não havia saído – recusava-se a fazê-lo, como

era determinado a todos os subversivos. Montag sentia-se irritado – por ela ou pelo

sistema? –, o que o impedia de concentrar-se em seu trabalho. O momento decisivo

do bombeiro ocorre nesta situação, quando

Os livros bombardeavam seus ombros, braços, o rosto voltado para cima. Um livro pousou, quase obediente, como uma pomba branca, em suas mãos, as asas trêmulas. À luz mortiça, oscilante, uma página pendeu aberta e era como uma pluma de neve, as palavras nela pintadas delicadamente. Em meio à correria e à fúria, Montag teve tempo apenas para ler uma linha, mas esta brilhou em sua mente durante o minuto seguinte, como se marcada a ferro em brasa. “O tempo adormeceu ao sol da tarde.” Soltou o livro. Imediatamente, outro caiu em seus braços. (...) A mão de Montag se fechou como uma boca, esmagando o livro com selvagem devoção, com descuidada insanidade, junto ao peito. Os homens lá em cima lançavam braçadas de revistas para o ar poeirento. Elas caíam como pássaros abatidos e a mulher permanecia ali embaixo, parada como uma garotinha, entre os cadáveres. Montag não fizera nada. Sua mão fizera tudo. Sua mão, com cérebro próprio, com a consciência e a curiosidade em cada dedo trêmulo, tornara-se uma ladra. Agora ela escondia o livro sob seu braço, prendia-o na axila suada, surgia de novo vazia, como num passe de mágica! Olhe aqui! Inocente! Veja! (ibidem, p. 58-59)

O contato com as palavras no papel e a devoção daquela senhora para com

seus livros foram os primeiros passos de Montag em direção à fuga da alienação. O

que havia naquelas páginas para fazer com que a mulher preferisse morrer a viver

sem elas? Se os livros eram tão perigosos, o que fazia com que ela sofresse tanto

a “morte” dos mesmos? Em posse do livro, mesmo sem lê-lo, Montag começa a

descobrir o mundo. Passa a notar que não existe um diálogo substancial entre ele e

sua esposa, apenas superficialidades, como novas tecnologias ou as pessoas nos

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telões; percebe que vive com uma pessoa complemente vazia e que, até então, ele

mesmo também o era. Poderia ser o que quisesse, mas optou por ser apenas “um

homem ridículo e vazio junto de uma mulher ridícula e vazia” (ibidem, p. 66). Então,

toma-se a posição do sujeito para entender qual peso será dado às palavras ditas.

A emoção deste trecho no livro é transmitida em pouco mais de três páginas;

Truffaut extraiu dessas páginas a cena mais marcante de seu filme: uma mulher que

se recusa a viver sem seus livros e, por isso, ateia fogo a eles e a si mesma. No

filme, o cineasta se insere e usa de uma metalinguagem ao colocar como um dos

livros a serem queimados a revista Cahiers du cinema, para a qual o mesmo

escreveu como crítico por anos, e o próprio livro que deu origem ao filme, Fahrenheit

451. Apesar dessa escolha do cineasta se configurar como uma diferença em

relação ao livro, ela é aqui mencionada para adequar-se à cena da Sra. Blake. Stam

(2003, p. 173) explica que “os filmes podem jogar com as ficções em lugar de

descartá-las por completo; contar histórias, mas também colocá-las em questão;

articular o jogo do desejo e o princípio do prazer e os obstáculos à sua realização”,

que é exatamente o que o cineasta busca fazer ao inserir determinados elementos

em seu filme, como os exemplos supracitados.

Ainda em ambas as obras, nota-se a falta de consciência política ou mesmo

emocional da sociedade. Um exemplo é quando as mulheres estão reunidas na sala,

assistindo à “família” (um programa televisivo que chama as telespectadoras de

“primas”, como uma forma de se aproximar das mesmas e aliená-las cada vez mais),

e conversam sobre filhos. As que não os têm, falam sobre a ideia de tê-los como

impossível; as que têm, os tratam como uma obrigação qualquer. No livro, uma delas

explica que os aguenta “em casa três dias por mês; não é nada de mais. A gente

põe as crianças no “salão” e liga o interruptor. É como lavar roupa: é só enfiar as

roupas sujas na máquina e fechar a tampa”. No filme, quem os defende o faz pelo

fútil motivo de que “Os bebês crescem para se parecerem com você. Isso deve ser

divertido”. Tais mulheres da história possuem uma visão muito limitada de tudo, e a

intenção do governo é exatamente essa.

Retoma-se, ainda, a questão (acima referida) da guerra iminente, posto que

o filme e o livro apresentam a mesma visão das esposas a respeito desta.

- A questão sobre as guerras é, se você quiser chamá-las assim, que apenas os maridos das outras é que morrem.

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- Isso é verdade. Nunca conheci ninguém que tenha morrido em uma... Ninguém que o marido tenha morrido dessa maneira. Por atropelamento, ao saltar de uma janela, sim. Como o marido da Gloria, há algumas noites atrás. Mas nunca dessa outra maneira. De qualquer modo, é a vida, não é? (TRUFFAUT, 1966)

Isso relembra a questão da Segunda Guerra Mundial, em que todos preferiam fechar

os olhos para os refugiados e para toda a infelicidade que a guerra trouxe. Da

mesma forma, Bradbury encontrou nas mulheres outra forma de retratar esses

cidadãos, mostrando-as como pessoas que veem como algo natural o suicídio ou a

alta velocidade, mas que acham que a guerra só acontece para os outros. Na mesma

ocasião, Montag é retratado com bastante semelhança entre as mídias no momento

em que lê um poema para as amigas de sua esposa. Seja no livro ou no filme, a

atitude causa espanto e, por parte de uma das mulheres, choro, o que mostra que

os sentimentos de tristeza existiam, só eram mantidos adormecidos, mascarados

por uma falsa realidade, como anteriormente dito.

De forma resumida, ainda, Truffaut foi capaz de relatar o fim do capitão

Beatty e o início da fuga de Montag. Quando o bombeiro é denunciado por sua

esposa, sua equipe (junto com ele) direciona-se à sua casa, a fim de queimar todos

os livros encontrados. Seus colegas o julgam, seu patrão o despreza e sua esposa

o abandona. Num ato “caridoso”, Beatty deixa que Montag faça as honras de atear

fogo a seu crime, o que faz com que o bombeiro se rebele ainda mais e passe a

queimar tudo: as paredes, a cama, os armários... Por fim, determinado a não ser

engolido pelas imposições às quais seria condenado, Montag faz a escolha que

contrasta completamente com o indivíduo que se conhece no início de ambas as

obras: com o lança-chamas em mãos, ateia fogo no capitão dos bombeiros e

queima com ele, simbolicamente, toda uma vida mantida na alienação. Isso se dá

após o capitão fazer questão de provocá-lo, ao dizer que

Os romances não são vida. O que Montag esperava sair de toda essa coisa impressa? Felicidade? Que pobre idiota deve ter sido. Esta besteira é suficiente para levar um homem à loucura. Pensou que podia aprender como andar sobre a água, foi? Montag precisa aprender a pensar um pouco. Todas estas escritas, estas receitas pra felicidade se contradizem. Agora deixe este monte de contradições queimar. Somos nós, hoje, que trabalhamos para a felicidade do Homem. (...) Nada a dizer? Esse é o espírito. Essa é a verdadeira sabedoria. (Id. Ibid.)

É como se o capitão quisesse que Montag o matasse – queimando em meio aos

livros, como bem fotografado no filme –, o que mostrou que ele mesmo não

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aguentava mais o peso de conviver com todos aqueles indesejados pensamentos e

com as ordens às quais devia inutilmente obedecer. Tal cena causou exatamente o

que a literatura propõe e o que Kracauer (1995, p. 24 apud STAM, 2003, p. 81)

acredita que o cinema deveria transmitir: a contradição provocada pelos livros e a

intenção do filme em mostrar que existe, em toda sociedade, um “mal-estar social”,

pois “se (o cinema) retratasse as coisas como realmente são hoje em dia, os

espectadores se sentiriam constrangidos e começariam a indagar sobre a

legitimidade de nossa atual estrutura social”. Entende-se, assim, que “os filmes são

o espelho da sociedade predominante”9 (ibidem, p. 291) [Tradução da

pesquisadora].

Seja no filme ou no livro, há um enternecimento, choque ou mesmo um

fundo de sadismo por parte de quem lê ou vê as últimas cenas, e a emoção sentida

não é a mesma para todos. Isso se dá pelo fato de que assistir a um filme coloca o

espectador em um mundo novo, em que “a identificação com o que o ator está

fazendo quando representa pode às vezes explicar o nó na garganta ou o vazio no

estômago, o que sugere que você está tendo uma experiência” (CAUGHIE, 2000,

p. 120). E é exatamente este o propósito de qualquer história contada/mostrada:

criar uma ligação entre o leitor e a obra. Por isso, nota-se que não há a existência

do “espírito do texto original”, uma vez que

o próprio processo de leitura, hoje, constitui a elaboração de uma “adaptação”, a constituição imagética daquilo que apreendemos na interação com o texto literário. Assim, um filme “adaptado” de um romance, por exemplo, é sempre a expressão de uma das múltiplas leituras possíveis para esse romance. (HATTNHER, 2010, p. 148)

Algo de grande destaque, além disso, são os personagens principais, que,

no filme, personificam de forma fundamental as pessoas descritas no texto de

partida. A cena do envenenamento por comprimidos – anteriormente relatada –,

dentre outras, mostra Mildred/Linda como uma mulher de personalidade vazia e

desinteressada, enganada por tecnologias e comprimidos que lhe dão uma falsa

ideia de que sua vida é feliz; Clarisse é sonhadora, insurgente e tem sede de

mudança, o que é mostrado por todos os seus atos e em todos os momentos em

que a mesma aparece, seja no filme ou no livro; Montag acreditava-se feliz, porém

9 Films are the mirror of the prevailing society.

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é despertado quando Clarisse o coloca para pensar, principalmente, após as várias

perguntas no primeiro encontro dos dois – “você é feliz?”; Beatty é a personificação

do governo, ou seja, do que deve ser dito e feito, e sua morte mostra, também, a

renúncia de Montag em relação àquela sociedade.

Por fim, ambas as obras terminam com o bombeiro como fugitivo. Há uma

perseguição, a qual, apesar de ser retratada em ambas as obras, ocorre

diferentemente em cada uma delas. O filme utilizou-se de policiais para fazê-la e

Montag fugia por si só, já sem a ajuda de Faber, até conseguir chegar a um rio e

esconder-se em uma embarcação. Em momento algum, há o uso de elementos

tecnológicos pertencentes a um mundo futurista. O que ocorre é o emprego de

subsídios antiquados – como telefones antigos, cores básicas e outros pontos em

que a tecnologia é propositalmente incitada – como uma forma de mostrar uma

sociedade repleta de contradições. No livro, a cena da fuga teve o Sabujo como

ajuda dos oficiais. Montag ainda tinha Faber como aliado e foi o mesmo quem lhe

ofereceu roupas, para que seu cheiro não fosse mais facilmente identificado pelo

animal, e que despistou a polícia. Por fim, assim como exposto por Truffaut, o

bombeiro também acaba chegando ao rio.

Seu rosto havia sido estampado nos jornais e seu nome havia virado notícia,

fazendo de Montag o símbolo da resistência, visto como um fugitivo, desertor e

rebelde. Isso fez com que a polícia, para dar à cidade um Montag morto, atirasse em

um homem qualquer, meramente parecido com ele, quando perderam o alvo

principal. Isso sugere principalmente que há sempre a intenção de manter a

ideologia dominante como algo inabalável: espera-se que o homem pague por sua

contravenção e, logo, a mídia faz com que isso aconteça – mesmo que de forma

manipulada. Ela decide como a imagem de uma pessoa será pintada; dessa forma,

marca um posicionamento e, obviamente, delimita determinado território ideológico.

Truffaut mostra as televisões passando toda a perseguição em tempo real, o que já

é explicação do ocorrido ao espectador. Bradbury coloca um insurgente para

elucidar o que aconteceu ao bombeiro (e a quem lê):

Estão simulando. Você os despistou no rio. Eles não podem admitir isso. Sabem que não conseguirão manter a audiência por muito tempo. O espetáculo precisa chegar ao fim, depressa! Se começassem a vasculhar toda a extensão do rio, poderiam levar a noite inteira. Por isso, estão em busca de um bode expiatório para chegar a um final sensacional. Observe.

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Apanharão Montag nos próximos cinco minutos! (BRADBURY, 2012, p.180)

Na questão simbológica, o momento da fuga de Montag é fortemente

marcado pela água. O bombeiro usa o rio para escapar da cidade e chegar à floresta.

É ela que faz com que seja possível a ele desaparecer do mundo distópico e tornar-

se parte dos revolucionários que se livraram da alienação. A água, então, representa

a salvação e o renascimento de Montag, uma vez que, ao cruzar o rio, o bombeiro

torna-se uma pessoa diferente. É, ainda, uma fronteira que divide dois mundos

completamente diferentes (o dos rebeldes e o dos alienados).

A cena final mostra o acampamento das pessoas-livros: fugitivos que

seguiam pela linha do trem e se espalhavam em diversos acampamentos, todos com

o intuito de decorar obras literárias para que as mesmas não se perdessem. Os

andarilhos, enquanto queimadores de livros que o faziam apenas por medo de serem

encontrados, também representam, então, uma nova forma de pensar. E o

acampamento, ao pregar determinadas ideias, formava um novo círculo social

defensor de uma nova ideologia. Ali, é possível entender que eles já esperavam,

conscientemente, pela guerra, pois a mesma acarretaria um avanço em sua causa,

uma vez que causaria a destruição da cidade e o fim das ideias “anti-livros”.

O que se pode notar, então, é que aqueles transgressores da história eram,

agora, livros. Se assim o eram, então eram, obviamente, literatura. Além disso, o

próprio roteiro cinematográfico ou teatral pode ser considerado, também, um texto

literário. Dessa forma, o mesmo filme que teve início com créditos narrados, para

mostrar a proibição da leitura, também tem por fim as letras “The end” sem narração

alguma, como se explicasse que, naquele momento, a literatura já tinha tomado um

sentido tão amplo que não apenas a escrita no papel poderia ser considerada

literária. Atingiu-se um ponto em que não mais era possível censurar a leitura, uma

vez que a mesma se tornara muito abrangente.

A tecnologia que Bradbury descreve em seu livro e que Truffaut busca

mostrar nas telas é resultado de uma sociedade que optou por adotar o

entretenimento ao invés do conhecimento. As histórias tornaram-se fragmentos e

versões condensadas do que um dia foram os livros. Ao mesmo tempo, as famílias

televisionadas substituíram as famílias verdadeiras e, assim, ninguém mais

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conversa, a sociedade apenas desmorona sob o peso da tecnologia ali mostrada, a

qual afirmam que os torna felizes.

A escolha de Montag é definida ao longo de sua caminhada com o grupo.

Eram anônimos que se apresentavam pelos nomes de escritores famosos (Jonathan

Swift, Charles Darwin, Schopenhauer, Einstein, Albert Schweitzer...) e viviam num

lugar onde todos deixavam de ser quem se era para tornarem-se livros. Talvez por

isso a ordem das palavras tenha sido a de caracterizar as pessoas como livros

(“pessoas-livros”; no inglês, o adjetivo vindo antes do substantivo: “the Book

People”), e não o contrário (“the People Book”). Aquelas eram bibliotecas humanas,

era seu principal vocativo. E este se tornara, também, o caminho de Montag, que,

no livro, passaria a ser o Eclesiastes, da Bíblia, e, no filme, David Copperfield (o

primeiro livro que havia lido e o mesmo que leu para as amigas de Mildred/Linda),

de Charles Dickens.

2.1.2 Ponto de vista: O contraste entre as mídias

Foi visto que Fahrenheit 451 possui diversos pontos em que é possível

perceber as reiterações entre o livro e o filme. Para que a questão da adaptação seja

compreendida de forma mais completa, também as diferenças devem ser

analisadas. É óbvio que as diferenças existem e, conforme explica Rey (1989, p.

58), o aplauso quase nunca será geral, o que pode ser elucidado pelo fato de que

há quem não entenda que

A adaptação não precisa necessariamente conter tudo que está no livro. Mesmo livros com muita ação têm capítulos monótonos ou vazios. O que importa é que ela seja uma obra inteiriça, redonda, completa, sem evidenciar amputações, cortes por falta de tempo, saltos desconcertantes e buracos entre as sequências. (...) fidelidade é apenas uma das virtudes exigidas numa adaptação. Ela, sozinha, resulta em desastre (p. 59 e 60)

Assim, para início de análise, tem-se o plot, que se mantém linear e coeso

do começo ao fim; tanto o livro quanto o filme pretendem contar/mostrar a história

do bombeiro Guy Montag, um dos responsáveis pela queima de livros. Tal

personagem carrega até mesmo em seu nome o peso do protagonismo – na história

e na sociedade relatada –, uma vez que este deriva de palavras estrangeiras as

quais podem dedicar ao personagem uma leitura significativa: “Guy”, do inglês “cara,

rapaz”, traz ao bombeiro a imagem de sujeito comum que o mesmo apresenta no

início da história, em que se mostra como mais um igual a todos os outros com quem

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convive; ao mesmo tempo, “Montag” vem do alemão e quer dizer “segunda-feira”,

dia o qual, apesar de não ser o primeiro da semana, as pessoas dedicam-se a, de

fato, começar qualquer plano ou trabalho que tenham, o primeiro dia “útil” – com

todas as conotações de tal palavra. A imagem do rapaz comum entra em contraste

com aquele que decide mudar seu destino e realmente dar início a algo novo – tal

como seu nome propõe.

O livro é dividido em três partes, sendo elas: “A lareira e a salamandra”, “A

peneira e a areia” e “O brilho incendiário”. Cada uma detalha uma parte da jornada

de Montag na descoberta da literatura. A primeira introduz a vida pacata e

predominantemente racional do bombeiro: feliz em seu emprego, com uma

promoção em vista, casado e cumpridor das leis. Sua esposa, Mildred, não trabalha

e vive à base de pílulas calmantes ou estimulantes (o que é recorrente em todas as

pessoas dessa sociedade). Ela passa seus dias interagindo com as telas nas

paredes da sua casa, que são a forma de riqueza da sociedade retratada: quanto

mais telas, maior o status social. Eles possuem telas em três das quatro paredes (a

última, instalada há menos de dois meses), porém Mildred já anseia pela quarta,

para que possa conversar com a família televisiva – previamente explicada – criada

pela mídia para manter as donas de casa alienadas e viciadas em pessoas que só

existem para distraí-las. Ao conhecer a jovem Clarisse McLellan, Montag passa a

questionar até que ponto sua felicidade realmente é real e como consegue ser

casado com uma pessoa com quem nem mesmo conversa. A primeira parte do livro

é claramente marcada pelos primeiros passos do bombeiro em direção à quebra das

regras. Além disso, seu título faz referência à lareira, que é o centro da casa e fonte

de calor, e à salamandra, que representa o fogo e a justiça, e que é um animal o

qual acreditavam sobreviver ao fogo. Dessa forma, ela é símbolo dos bombeiros

retratados na história, responsáveis por usar do incêndio como modo de cumprir as

leis e a justiça. Ao mesmo tempo, a salamandra simboliza a renovação, o que remete

a Montag em seus primeiros obstáculos pessoais.

“A peneira e a areia”, no segundo capítulo, também possui fortíssima

simbologia. A imagem da areia passando por uma peneira faz com que seja possível

visualizar uma tentativa falha de reter minúsculos grãos numa superfície vazada.

Isso faz referência ao momento em que Montag está no metrô, esforçando-se para

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memorizar partes da Bíblia, porém não conseguindo concentrar-se devido à alta

propaganda do dentifrício Denham.

Uma vez, quando criança, ele se sentara em uma duna amarela à beira-mar num dia azul e quente de verão, tentando encher uma peneira com areia, porque um primo cruel lhe dissera: “Encha esta peneira que eu lhe dou uma moeda de dez centavos!”. E quanto mais rápido ele despejava, mais rápido a areia passava pela peneira, silvando de calor. (...) Baixou os olhos e viu que levava a Bíblia aberta nas mãos. Havia gente no vagão, mas ele segurava o livro nas mãos e uma ideia tola lhe ocorreu: se você ler rapidamente e ler tudo, talvez parte da areia fique na peneira. (BRADBURY, 2012, p. 102-103)

Com isso, o título se configura como uma explicação para aquele mundo: ao banir

os livros, a mente dos cidadãos acabava tornando-se peneiras, incapazes de reter

qualquer tipo de pensamento, conhecimento ou palavra, todos simbolizados pela

areia.

Já o título final, “O brilho incendiário”, entra como um contraste à primeira

frase do livro: “Queimar era um prazer” (ibidem, p. 21). Enquanto a história se inicia

com uma afirmação condizente ao bombeiro da “lareira e a salamandra”, “o brilho

incendiário” que embaça a visão é tudo o que resta no último capítulo. É nele que a

casa de Montag é queimada e é nele que a cidade toda queima conforme a guerra

chega. Ainda faz referência à fênix, uma vez que a cidade que queima

brilhantemente nascerá novamente, no futuro, talvez de forma que não repita os

erros anteriores. Em inglês (língua na qual o livro foi escrito), o título “Burning Bright”

ainda pode representar uma simbologia mais ampla, uma vez que faz alusão à

primeira estrofe do poema The Tyger, de William Blake – poeta referenciado pela

senhora Blake e poema mencionado no primeiro conto, Bright Phoenix (o qual

também se encaixa nesta análise simbológica). Em "Tyger! Tyger! burning bright,/ In

the forests of the night;/ What immortal hand or eye,/ Could frame thy fearful

symmetry?”10 há o título do livro. Neste poema, o tigre retratado possui uma energia

que pode ser tanto divina quanto demoníaca. No livro, este capítulo mostra Montag

questionando os que controlavam a sociedade, também sem saber se as forças são

positivas ou negativas, principalmente os responsáveis pela queima de livros.

No campo narrativo, é possível perceber que os detalhes e as explicações

são essenciais à leitura e à própria história, uma vez que no livro o principal processo

10 Disponível em: <https://www.poetryfoundation.org/poems-and-poets/poems/detail/43687>

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é a interpretação do único material do qual o mesmo dispõe, que são as palavras.

Segundo Culler

A obra literária é um evento linguístico que projeta o mundo ficcional que inclui falantes, atores, acontecimentos e um público implícito (um público que toma forma através das decisões da obra sobre o que deve ser explicado e o que se supõe que o público saiba). [...] A ficcionalidade da Literatura separa a linguagem de outros contextos nos quais ela poderia ser usada e deixa a relação da obra com o mundo aberta à interpretação. (1999, p.37-39 )

Já no filme, há uma união de elementos de muitas artes e muitos trabalhos,

como fotografia, figurino, sonoplastia, edição, teatro e, ainda, a literatura. Portanto,

o cinema ainda tem outros meios aos quais recorrer, de forma que se torna

impossível fazer com que a “mesma” história em cada um destes suportes ocorra

em momentos e velocidades semelhantes. Conforme explicado por Corseiul,

é necessário que se ressalte a importância de uma perspectiva crítica que leve em conta os elementos específicos da linguagem cinematográfica (...), responsáveis pela construção de significados no sistema semiótico compreendido pelo cinema. Ainda à linguagem específica do cinema, existem outras diferenças que produzem certas limitações a cada meio: enquanto um filme é exibido em um teatro, pelo tempo médio de 2 horas de duração, um romance pode ser lido durante horas, dias ou meses- fato que impossibilita qualquer adaptação literal de um longo romance. (2005, p. 296)

Assim, enquanto Bradbury mostra calmamente um Montag descobrindo a

literatura, ainda receoso, o filme pede certa agilidade, uma vez que há a necessidade

de transportar mais de duzentas páginas para duas horas de filme. Truffaut usou

determinadas escolhas para expor o desprezo do bombeiro em relação à própria

profissão e a si mesmo: Montag deixa de usar o poste do quartel, passa a usar uma

escada; não entra mais no carro dos bombeiros junto com os colegas; arruma

desculpas para faltar ao trabalho; em seus devaneios, Montag pergunta como seria

se eles tivessem livros e, só então, pensa no porquê de queimá-los. Os primeiros

sinais de resistência são mostrados exatamente nestas situações. Toda essa

rejeição faz com que o espectador consiga perceber que Montag está desistindo de

seu emprego, pois sente-se mal em ser a pessoa que está acabando com a

literatura. Isso acontece de forma ágil e, portanto, diferente no livro, uma vez que há

um narrador contando a história por ele, o que fez do processo algo mais sutil e mais

longo. Sua relação com a literatura só passa a surgir mais tarde.

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Em seu filme, Truffaut utiliza dos artifícios do cinema para representar o que

no livro acaba não sendo possível: a tentativa de anulação da literatura ao máximo.

Logo de início, os créditos do filme são falados – diferente do que é feito com

qualquer outra obra cinematográfica, já que os mesmos apenas passam na tela e a

leitura destes fica por parte do espectador –, justamente para antecipar a ideia de

um enredo em que não ocorre o ato de ler, em que o mesmo é proibido. No filme,

não há nada que precise ser lido, sejam placas, sinais ou outdooors. É uma obra

absolutamente imagética e até mesmo o uniforme dos bombeiros vem apenas com

o alto-relevo “451” e a fênix bordada, nada mais. Essa metáfora representa uma

grande peculiaridade entre um suporte e outro, uma vez que não é possível utilizá-

la no romance, pois livro não exclui livro.

Aqui, então, é possível apontar a simbologia da história em ambas as obras

a partir dos bombeiros: há, neles, o fogo e a fênix como formas de metaforizar

diferentes mundos. O fogo – fortemente representado pela cor vermelha, no filme –

, na sociedade distópica, é dominante na vida de Montag e possui uma conotação

negativa, uma vez que é usado para terrificar aqueles que vão contra as leis, pois é

ele que queima seus livros e casas, além de apagar qualquer rastro de conhecimento

cultural e de servir para compor cidadãos que cumpram as leis conforme o regime

manda. Já para as pessoas-livros, o fogo é responsável por mantê-las quentes nos

acampamentos, permitir que seus cafés sejam preparados e apagar sua

contravenção ao dar fim aos livros já memorizados. Porém, principalmente, é o fogo

da guerra que destrói o mundo distópico, de forma que representa o ciclo natural da

vida ao mesmo tempo em que dá espaço para a renovação da humanidade.

Em relação à fênix, entende-se de duas formas também o uso da ave

mitológica na história. Ela é para os bombeiros sua insígnia e representa os livros

que são queimados até virarem cinzas, para que, então, sejam queimadas também

as cinzas. Assim, não seria possível restituir as ideias causadoras de infelicidade

que estavam contidas naquelas páginas. Todavia, a humanidade, principalmente

pensada a partir das pessoas-livros (que queimavam o material do livro, mas o

conteúdo permanecia e renascia quando memorizado), também pode ser

simbolizada pela ave, uma vez que ambas optam por se destruir para nascer

novamente a cada autodestruição, como explica Granger, um dos insurgentes do

livro:

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havia uma ave estúpida chamada Fênix que, a cada cem anos, construía uma pira e se consumia em suas chamas. (...) Toda vez que se queimava, ressurgia das cinzas e novamente renascia. E parece que estivemos fazendo e refazendo inúmeras vezes a mesma coisa, só que com uma vantagem que a Fênix nunca teve. Nós sabemos a estupidez que acabamos de cometer. Conhecemos todas as coisas estúpidas que estivemos fazendo nos últimos mil anos. Desde que não nos esqueçamos disso, que sempre tenhamos algo para nos lembrar disso, algum dia deixaremos de construir as malditas piras funerárias e de saltar dentro delas. (BRADBURY, 2012, p. 197)

Ainda, é possível analisar Montag a partir das diversas fases passadas por

ele, as quais fizeram com que ele mudasse de forma-sujeito. Entende-se como

forma-sujeito o ser social enquanto elemento sócio-histórico, com ações pensadas

a partir de um dado posicionamento. Montag passa por uma primeira fase, em que

acredita verdadeiramente que evitar o pensamento sempre é a forma correta –

mesmo que inconscientemente – de proceder. Respeitava as leis, era marionete de

seus superiores, dos que ditavam as regras. Seu primeiro encontro com Clarisse

mostra sua gratidão por seu trabalho e por ser uma pessoa “racional”, como pode

ser observado no trecho a seguir:

- Você nunca lê nenhum dos livros que queima? Ele riu. - Isso é contra a lei! - Ah, é claro. - É um trabalho ótimo. Segunda-feira, Millay; quarta-feira, Whitman; sexta-feira, Faulkner. Reduza os livros às cinzas e, depois, queime as cinzas. Este é o nosso slogan oficial. Caminharam ainda mais um pouco e a garota disse: - É verdade que antigamente os bombeiros apagavam incêndios em vez de começá-los? - Não. As casas sempre foram à prova de fogo, pode acreditar no que eu digo. (BRADBURY, 2012, p. 26)

Em tal diálogo, logo no início da história, surge os primeiros passos de

Montag em direção ao esclarecimento, seu “acordar para a vida”, quase como uma

epifania. Na interação com o outro, com Clarisse, o bombeiro passa a construir para

si uma nova identidade. Tal interação é criada pelos interlocutores e, ao mesmo

tempo, tem efeito neles. Entende-se, assim, a posição do bombeiro dentro daquela

sociedade, com aquela forma de pensar, sendo esta totalmente oposta à de Clarisse.

Para representar a aquiescência e conformação, o livro de Bradbury mostra

uma história futurista em que a tecnologia é não só presente, mas também essencial

à vida daquela sociedade. É a partir da tecnologia que os indivíduos conseguem se

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divertir, uma vez que o governo pensa constantemente em formas de fazer com que

as pessoas se sintam servidas pelas máquinas. Tudo é aceitável: dirigir em alta

velocidade para diminuir o estresse (e ser preso caso dirija “devagar”), outdoors

enormes para que as pessoas possam vê-los ao passar velozmente na rodovia,

programas televisivos que propõem a participação do espectador, comprimidos

calmantes e estimulantes tomados como se fossem água, etc. Tem-se, assim,

formas infindáveis de distração dos cidadãos comuns, propostas pelo governo afim

de mantê-los alienados e tolerantes às regras.

Conforme já dito, Montag (de forma diferente e além de Beatty) é o “meio”

que o escritor e o cineasta utilizaram para representar a ideologia nas obras, pois

ele mostra a ideia de Althusser com relação à função primária da ideologia, que é

“reproduzir sujeitos aquiescentes aos valores necessários à manutenção da ordem

social opressiva” (apud STAM, 2003, p. 158). É a partir de Montag que, no

supracitado diálogo, entende-se qual sua posição de pensamento e qual a maneira

determinada para que todos sejam manipulados a pensar. O bombeiro é o exemplo

de cidadão correto, que não vai contra as leis e que aproveita a vida a partir das

distrações que a sociedade impõe. Concorda com a tecnologia e também gasta seu

dinheiro com as grandes televisões, as quais são utilizadas para que a população

assista a programas estipulados e não busquem por algo diferente – sendo esta,

então, uma crítica direcionada às sociedades de lá e de cá; aceita a tecnologia e

almeja carros velozes, pois estas são as formas de diversão autorizadas e porque

“todos devemos ser iguais. Nem todos nasceram livres e iguais, como diz a

Constituição, mas todos se fizeram iguais” (BRADBURY, 2012, p. 81). Compartilha

da ideologia do governo, uma vez que participa e defende as práticas sociais

determinadas.

Na contramão, há Clarisse, quem surge para representar, como enxerga

Truffaut, uma outra parte de Montag. A princípio, esta outra parte aparece como um

lado oposto, especialmente quando a garota contradiz tudo o que ele acredita:

Eu raramente assisto aos “telões”, nem vou a corridas ou parques de diversão. Acho que é por isso que tenho tempo de sobra para ideias malucas. Já viu os cartazes de sessenta metros no campo, fora da cidade? Sabia que antigamente os outdoors tinham apenas seis metros de comprimento? Mas os carros começaram a passar tão depressa por eles que tiveram de espichar os anúncios para que pudessem ser lidos. (ibidem, p. 27)

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Com o contraste de ideias entre Clarisse e Montag, o bombeiro consegue,

pela primeira vez, questionar o que lhe é imposto, ao mesmo tempo em que, também

pela primeira vez, nota que não há uma escolha por parte de ninguém, visto que

algo está, de fato, sendo manipuladoramente inserido em sua cabeça. Clarisse faz

observações, questionamentos e aponta dados para os quais o bombeiro nunca

havia atentado. Ao fim de seu encontro, a garota o instiga ao perguntar se ele é feliz.

Pensar passa a ser, então, uma nova – e frequente – experiência.

Clarisse é a primeira a notar que Montag é diferente do resto dos cidadãos,

visto que ele se interessa e, mesmo de forma relutante, pensa a respeito de tudo o

que ela diz. Por este motivo, ela diz que ele, assim como ela, também é “estranho”:

“às vezes até me esqueço que é bombeiro” (ibidem, p. 43). A crise de identidade de

Montag se inicia logo após poucos encontros com a garota, quando, em seu

trabalho, questiona o capitão a respeito de suas funções como bombeiros e da

história de sua profissão. Num primeiro momento, Clarisse personifica a resistência,

de forma que possui sua própria ideologia e, a partir dela, busca mudanças no meio

social em que se encontra. Enquanto isso, o capitão Beatty, justamente com Montag,

personificam a ideologia de defesa do status quo daquela sociedade. É através dele

que se torna possível entender a questão ideológica a partir do “hábito” e do “uso”,

os quais são capazes de designar, igualmente, o que é e o que deve ser, o que às

vezes acaba sendo mostrado por desvios linguísticos.

A desculpa pela queima de literatura é apresentada, no filme, com uma fala

do capitão a Montag:

Agora, aqui está um livro sobre o câncer de pulmão. Todos os fumantes entraram em pânico! Por isso e para a paz de espírito de todos, nós o queimamos. Agora este deve ser muito profundo: A Ética de Aristóteles. Qualquer um que o tenha lido acredita que está acima de quem não o leu. Entende? Isto não é bom, Montag. Todos nós temos que ser iguais. A única maneira de sermos felizes é se todos formos iguais. Por isso, temos que queimar os livros, Montag. (TRUFFAUT, 1966)

Ainda nesta cena, diferentemente do livro, o capitão dos bombeiros segura

em suas mãos o livro “Minha Luta”, de Adolf Hitler. Há, então, uma referência ao

período hitlerista em que livros proibidos eram queimados em praça pública. Com

isso, mostra-se a primazia de determinada ideologia em detrimento de outras

correntes de pensamento que buscassem combater aquela. É neste ponto da

história que Montag mostra sinais mais profundos de seu descontentamento com as

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imposições, de forma que se sente cada vez mais tentado a descobrir o que

escondem os livros, e, assim, inicia sua ruptura com as mesmas. O grande momento

em que se torna possível visualizar tal ruptura é quando Montag demonstra que quer

encarar seus sentimentos, ao invés de fugir (em alta velocidade) dos mesmos, como

mostra o trecho a seguir

Não, eu não quero. Não desta vez. Quero ficar com essa coisa esquisita. Meu Deus, isso ficou grande em mim. Não sei o que é. Estou tão desgraçadamente infeliz, com tanta raiva, e não sei por quê. (...) Tenho a impressão de que deixei de lado um monte de coisas e não sei exatamente o quê. Eu poderia até começar a ler livros. (BRADBURY, 2012, p. 88)

É ainda neste momento que o bombeiro finalmente revela para sua esposa

que vinha estocando livros dentro de casa há cerca de um ano. Mesmo com o

desespero de sua esposa, Mildred, ele admite que não irá queimá-los, que quer olhar

para eles, e nem a presença do capitão Beatty na porta, podendo invadir a casa,

poderá fazer com que ele mude de ideia.

Entende-se, então, que “nos processos discursivos há sempre ‘furos’, falhas,

incompletudes, apagamentos e isto nos serve de indícios/vestígios para

compreender os pontos de resistência” (ORLANDI, 2012, p. 213). Dessa forma, é ao

ser separado pelo Estado, tornando-se individual, que o sujeito possibilita a

visualização de pontos de resistência, pois algo nesse processo acaba falhando e

“a falha é o lugar do possível” (ibidem, p. 230). É na falha que há a “condição para

que os sujeitos e os sentidos possam ser outros, ‘fazendo sentido do interior do não-

sentido’” (ibidem, p. 231). Para Orlandi, é aí que se inicia a resistência.

Na representação das ideias mostradas no livro, o filme busca diferentes

subterfúgios para trazer a ideia de época futurista, como os diálogos, que deixam

claro o momento vivido, ou alguns (poucos) elementos que simbolizem alguma

tecnologia, como as televisões, o serviço de emergência médica e o rápido

transporte dos bombeiros. Não há grande preocupação com efeitos visuais ou

mesmo com uma arquitetura que remeta ao futuro. É nesse sentido que se entende

que “contar uma história em palavras, seja oralmente ou em papel, nunca é o mesmo

que mostrá-la visual ou auditivamente em quaisquer das várias mídias performativas

disponíveis” (HUTCHEON, 2011, p. 49), pois sabe-se que dificilmente será possível,

ou desejado, adaptar tudo o que o texto escrito propõe.

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O cinema possui especificidades próprias de sua linguagem, como a

possibilidade de utilizar imagens para o que, no livro, se tinha na imaginação – ainda

que isto não se enquadre como uma limitação da interpretação. Um exemplo disso

são as telas televisivas. O sonho de consumo da esposa de Montag, Mildred/Linda,

é colocar a quarta tela, visto que ter as quatro paredes de uma sala televisionadas

é o símbolo de ascensão social da referida sociedade. No romance, o leitor pensa

em um cômodo cercado por imagens, correspondendo ao que Bradbury havia

imaginado quando escreveu a história. Já no filme de Truffaut, tais telas são

televisões de tela plana, o que se explica devido ao cineasta de fato ter escolhido

utilizar o maior veículo de manipulação daquela – e desta – sociedade, conforme

mostrado até mesmo no início do filme, em que são filmadas várias antenas nos

tetos das casas. Houve a intenção de que existisse essa diferença entre o filme e o

livro, uma vez que a televisão possui um papel tão importante quanto (e talvez, ainda

mais que) o da própria Mildred. Ela é o veículo de propagação da ideologia do

governo e funciona exatamente como este deseja: de forma que o indivíduo não

perceba que está sendo influenciado.

Dessa forma, é possível entender a comparação de Barthes (1977, p. 45) ao

dizer que o livro faz com que o leitor sinta como se tivesse estado na história, ao

tempo em que o filme traz essa sensação para o presente. Assim como ver a

televisão de tela plana faz com que o espectador aceite aquilo como autêntico, ouvir

os créditos falados também faz com que mesmo imagine-se ali, com alguém lhe

contando uma história.

Ao mesmo tempo, no romance fala-se muito sobre o quanto as pessoas são

dominadas e forçadas a não pensar. O leitor é sempre levado a refletir junto com os

personagens a respeito da manipulação do governo, seja a partir das ideias de

Faber, das pessoas-livros ou até mesmo de Montag, em suas várias divagações. De

forma que tal iteração não iria acontecer no filme, por escolhas do próprio cineasta,

Truffaut usou uma cena na escola onde Clarisse trabalhava para dar vida a essas

críticas reiteradas no livro. Quando a garota e Montag passam pelo corredor que

leva às salas de aula, é possível ouvir várias crianças recitando mecanicamente a

tabuada: “Uma vez dois é igual a dois; duas vezes dois é igual a quatro...”. Assim,

Truffaut verbera a pressão do governo, mostrando os estudantes como robôs que

só repetem o que lhes é imposto. Ainda, expõe a educação como algo construído a

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partir de fórmulas prontas e receitas a serem seguidas, de forma que os alunos não

têm nem mesmo como questionar o porquê das coisas e acabam por se tornar cada

vez menos críticos e/ou conscientes.

Ainda neste sentido, Truffaut, em sua adaptação, mostra um Montag

constantemente desorientado, que oscila entre o medo de que descubram suas

práticas subversivas e a sede por mudança, que faz com que ele queira que todos

descubram o porquê da oposição do governo em relação aos livros. Montag torna-

se sujeito da resistência na medida em que se opõe as ideias que lhe são impostas,

passando a mostrar em seu discurso o que já se encontra ressaltante em seu

subconsciente, o que mostra que as leis de uma sociedade são capazes de regular

a mesma, mas também de fazer com que seus cidadãos resistam. Assim, a

resistência é um meio de mudança, mas não a mudança em si (VENTURA, 2009, p.

157). Para Pêcheux (1977), é nesta luta de classes que haverá a

manutenção/reprodução de um movimento e, ao mesmo tempo, a transformação

deste.

O foco do cineasta, porém, não é apenas mostrar a resistência de Montag,

mas, principalmente, emoldurar a foto de uma sociedade marcada por uma ideologia

dominante. Como explica Common e Narboni (1977 apud STAM, 2003, p. 163), “o

que a câmera de fato registra” é uma reprodução do mundo a partir de como o

mesmo aparenta ser quando visto pelos olhos da ideologia, não como ele de fato é:

“Isso inclui todos os estágios do processo de produção: o tema, os estilos, as formas,

os sentidos as tradições narrativas; todos sublinham o discurso ideológico geral”. O

personagem de Oskar Werner é ajustado ao sistema capitalista e mostra uma forma

de consciência que, para o espectador, parece natural.

Ao longo do filme, Truffaut inverte muitas cenas, sendo uma delas a que

Montag conhece Clarisse. Bradbury relata a volta de Montag do trabalho, a pé; o

bombeiro percebe que está sendo seguido e, após um tempo, Clarisse aparece e se

apresenta. No filme, o primeiro encontro real entre ele e a garota acontece no metrô.

A cena em que o bombeiro é seguido acontece de forma diferente e apenas na

metade do mesmo: Clarisse não está sozinha, tem em sua companhia a Sra. Blake

(anteriormente comentada), a qual foi provavelmente escolhida como forma de

inserir a literatura na cena a partir do nome de (William) Blake. Ambas estão atrás

de Montag, cochichando. Tais inversões mostram que o processo de adaptação se

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deve também ao fato de que o próprio adaptador, antes de tudo, é intérprete da

história que tenta ajustar e, por isso, o mesmo acaba filtrando-a e absorvendo-a a

partir de sua própria sensibilidade e interesse (HUTCHEON, 2011, p. 43).

A própria garota é outro ponto largamente interessante de contraste entre

as mídias. Bradbury descreve Clarisse como uma garota de quase 17 anos que

acabou de abandonar a escola, devido ao fato de que os métodos de educação

utilizados pretendiam moldar o aluno de forma a aceitar tudo o que lhes fosse

imposto e Clarisse, questionadora, não conseguia se adaptar a este padrão. Já

Truffaut coloca a garota como uma mulher nos seus vinte e poucos anos que deseja

ser professora Claramente, a escolha dos realizadores tem conotação ideológica e

possui motivos específicos. Bradbury a retrata como uma aluna, que é em quem

todas as expectativas de mudanças para que haja um mundo melhor são colocadas.

Além disso, alguns anos após a publicação do livro, ocorreu a própria revolução de

68 na França, a qual se deu graças às manifestações dos estudantes. Truffaut, por

outro lado, apresenta Clarisse como professora, profissão responsável por professar

ideologias e por abrir as primeiras portas da revolução em busca de mudanças.

Ainda, a diferença pode ter ocorrido também pelo fato de que Clarisse e

Mildred/Linda, a esposa de Montag, foram interpretadas pela mesma atriz, Julie

Christie. Ao considerar que Mildred tem 30 anos, nada mais evidente que aproximar

a idade das duas para que o mesmo rosto convença o espectador.

A troca do nome talvez tenha acontecido apenas para que uma mulher

comum como a esposa de Montag tivesse, também, um nome comum. Ou, indo um

pouco mais além, para que houvesse uma aproximação fonológica com o nome da

outra mulher presente na vida de Montag – cLArIsse e LIndA –, de forma a contrastá-

las ainda mais como faces diferentes de um mesmo elemento (abaixo explicado). Já

a escolha da atriz é explicada pelo fato de que Truffaut não queria que a esposa

fosse vista como a vilã e a garota como a heroína; a ideia é que as duas deveriam

ser dois lados da mesma moeda, uma vez que elas representariam os desafios de

Montag ao longo de sua descoberta de si mesmo.

Portanto, apesar de diferirem em um ponto bastante importante – duas das

personagens principais –, as obras não dependem uma da outra, ou seja, não é

preciso que se leia o livro para que se entenda o filme, ou vice-versa. Ambos contam

essencialmente a mesma história, porém se diferenciam em relação a alguns

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elementos. Ainda assim, cada texto ainda consegue ser suficiente em si mesmo e

contribuir para a compreensão do universo narrativo em questão. Em relação a isso,

apesar das obras não se encaixarem de forma perfeita ao conceito, a definição de

narrativa transmídia dada por Jenkins faz com que seja possível perceber que há a

utilização de elementos transmídia em ambos os textos, e mostra que

Uma história transmídia desenrola-se através de múltiplas plataformas de mídia, com cada novo texto contribuindo de maneira distinta e valiosa para o todo. Na forma ideal de narrativa transmídia, cada meio faz o que faz de melhor – a fim de que uma história possa ser introduzida num filme, ser expandida pela televisão, romances e quadrinhos; seu universo possa ser explorado em games ou experimentado como atração de um parque de diversões. (JENKINS, 2009, p. 138).

Exemplo disso é o fato de que Bradbury mostra dois personagens

primordiais que não aparecem no filme: Faber, o mentor de Montag, que marca toda

a segunda parte do livro; e o Sabujo, um cachorro mecânico que busca por infratores

(= livres pensadores). Na segunda parte do livro, Montag passa a ter contato não só

com livros, mas com outros insurgentes que vivem, de alguma forma, longe das

vistas do governo. É quando conhece Faber, um antigo professor que passa a ser a

única pessoa em quem ele pode confiar, uma vez que Clarisse desapareceu sem

explicações. Faber era professor universitário, mas ficou sem emprego após a

queima de livros e, consequentemente, o fechamento de universidades. A partir de

um ponto em seu ouvido, para que possa se comunicar com Faber antes de

finalmente fugir, Montag consegue saber o que falar e como falar com o capitão dos

bombeiros durante sua transição para a subversão. Reduzir-se a uma voz no ouvido

do protagonista faz com que Faber possa ser visto como a consciência de Montag;

ao mesmo tempo, o próprio Montag também pode ser visto como a coragem

adormecida do professor.

Ainda neste ponto, é possível analisar o porquê do nome do mentor de

Montag: Faber, do latim “artesão”, “criador”, “aquele que faz”, remete-nos a Bergson

e sua noção de homo faber, a qual explica que o indivíduo é primeira e naturalmente

o ser que tem poder sobre a matéria, o qual seleciona possibilidades com sua

inteligência e não responde apenas a impulsos instintivos (ZUNINO, 2010, p. 263).

Ou seja, é a capacidade de fabricar que diferencia o ser humano do animal. Assim,

tal nome vem repleto de significação ao bombeiro da história, que passa a

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diferenciar-se de todos os outros a partir do momento que entende sua capacidade

de modificação do que estava, então, pré-determinado.

Apesar de tamanha significação, a ausência do professor, no filme, não

trouxe prejuízo para a história, uma vez que houve total intenção do cineasta em

mantê-lo de fora, dado que a função do mesmo acabaria sendo suprida por Clarisse

e, mais à frente, pela própria sede de mudança despertada no bombeiro. Além disso,

a forma como Truffaut montou sua narrativa foi eficiente no que diz respeito a

transmitir os desafios de Montag em sua busca pela literatura. Enquanto sujeito-

falante, Montag passa a inverter sua posição-sujeito e tal mudança de posição não

acontece por determinação do sujeito, mas sim, concebida como efeito exterior do

real-ideológico-discursivo, na forma-sujeito. Com suas falas, nota-se que o discurso

de Montag é a ocultação de seu inconsciente. No filme, não há necessidade de um

Faber, pois toda a trama ocorre numa velocidade e coesão que possibilitam a fluidez

e coerência da história: é um macramê muito bem entrelaçado. Assim, entendendo

o trabalho cinematográfico como uma arte independente, é possível perceber que

Truffaut mudou propositalmente determinadas partes do romance Fahrenheit 451

com a intenção de adaptá-lo para o novo suporte e de forma a marcar sua posição.

Quanto ao Sabujo, é descrito um animal mecânico de oito patas, desprovido

de emoções, capaz de farejar insubordinados que mantinham o hábito da leitura. A

partir de um aparelho em seu focinho, injetava doses enormes de morfina ou

procaína no transgressor com apenas uma mordida. Ele fez parte dos maiores

temores de Montag no início de seu interesse pela literatura. No filme, o mesmo não

existe. Fazê-lo a partir de efeitos especiais ou mesmo jogo de iluminação não seria

problema, porém deve-se considerar alguns pontos como: 1) François Truffaut não

é um diretor famoso por filmes com grandes arquiteturas computacionais, seu

cinema é cult e sem pretensão alguma de se tornar o que Star Wars foi para a época

no que diz respeito a efeitos especiais. O próprio diretor (DÜLLMANN, 2007) admitiu

que não tinha intenção de usar muitos elementos futuristas, o que pode ser explicado

pelo fato de que o futuro apenas confirma algo que acontece todos os dias no

presente – no caso, a censura e o combate ao pensamento discordante. 2) Truffaut

escolheu, sim, um Sabujo, porém não sob a forma de cachorro. Em momentos

primordiais do filme, é possível perceber a presença do bombeiro Fabian, sempre

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atento a qualquer movimento de Montag. É ele quem supre a necessidade de um

cachorro mecânico que segue todos os passos do personagem principal.

Dessa forma, apesar de ser um filme que remete ao futuro, o máximo

utilizado na adaptação de Fahrenheit 451, no que diz respeito a efeitos especiais,

foram os bombeiros sobrevoando a cidade à procura de Montag e, ainda assim, é

possível ver perfeitamente os cordões pelos quais eles se mantêm suspensos. Isso

se dá pelo fato de que houve, a todo tempo, a intenção de mostrar que aquilo tudo

era ficção. De tal modo, é possível notar que as escolhas do cineasta

proporcionaram uma ligação maior da história com o espectador, uma vez que

(...) a leitura se realiza a partir do diálogo do leitor com o objeto lido – seja escrito, sonoro, seja um gesto, uma imagem, um acontecimento. Esse diálogo é referenciado por um tempo e um espaço, uma situação; desenvolvido de acordo com os desafios e as respostas que o objeto apresenta, em função de expectativas e necessidades, do prazer das descobertas e do reconhecimento de vivências do leitor. (MARTINS, 1994, p. 33).

Pode-se considerar, também, no corte do personagem de Faber e na

ausência do Sabujo, além da escolha da mesma atriz para Mildred e Clarisse, que a

questão financeira é extremamente marcante em uma adaptação cinematográfica.

A prioridade não é apenas a arte pela arte. No cinema, ao mesmo tempo em que

tudo visa lucros, tudo acarreta gastos. Quaisquer mudanças exigidas numa

adaptação são feitas pensando no dinheiro gasto e no dinheiro esperado. Por isso,

uma adaptação bem-sucedida é aquela que rendeu financeiramente, que encheu

salas de cinema com telespectadores pagantes. Considerando as questões

corporativas e financeiras, além de uma história bem contada, há também a

pretensão de fazer o máximo com o mínimo e ainda tirar algum proveito. Com isso,

mais uma vez pode-se notar a presença de uma ideologia que rege até mesmo

aqueles que têm intenção de levar cultura a determinado público. A adaptação

cinematográfica é fruto de uma sociedade que é comandada pela ideologia do

dinheiro, em que o capitalismo é algo que deve ser simplesmente aceito como fato.

Isso pode ser percebido pelo fato de que os filmes mainstream quase sempre

acabam com um final feliz, de forma a privilegiar o público que busca histórias mais

leves. Por mais que Truffaut, com Fahrenheit 451, tivesse a vontade de pregar o

oposto do consumismo, ele acaba sendo forçado a tal ideologia, pois a indústria de

seu trabalho visa o lucro antes da arte.

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Malcom Bradbury (1994, p. 101) explica que o processo de recriar todo o

enredo de um romance não tem custo algum, até porque tal processo acontece na

imaginação do leitor e, nela, cada versão é diferente. Porém,

Quando se está escrevendo um roteiro para a televisão, é como se (o adaptador) estivesse sentado em um táxi; o taxímetro está sempre rodando e tudo deve ser pago. Sempre pode-se ver o preço aumentando, em todo lugar para o qual se vá, ou as dificuldades da performance e da produção; esta é a arte de escrever para tal meio. O romance, porém, tem o taxímetro desligado; é possível escrever o que quiser, falar sobre Buenos Aires, sobre a lua, sobre o que quer que seja. [Tradução da pesquisadora]11

Truffaut (1984), por outro lado, enxerga o fato do taxímetro estar sempre

rodando como uma das vantagens do cinema em relação ao romance: “você não

pode simplesmente largar tudo. A máquina está com as engrenagens ligadas,

contratos são assinados...” [Tradução da pesquisadora]12. Dessa forma, é natural

que haja uma economia no enredo na realização de uma adaptação.

Ainda o cineasta (2005, p. 13) retoma a ideia de Hutcheon (2011, p. 45) no

que diz respeito à criação na adaptação: não depende apenas de uma pessoa o

fazer de um filme, portanto, o fim do roteiro não determina o fim da obra; sempre

há o olhar do diretor, a reação ou improvisação do ator, a edição e todas as outras

peças que são essenciais na montagem de um filme. Diniz (2003, p. 66) também

defende esta ideia ao buscar no teatro fundamentações para seus estudos. Explica

que o filme “apresenta a peça que está sendo escrita como um trabalho

colaborativo”, pois havia ajuda por parte de todos que naquela arte trabalhavam,

uma vez que “os dramaturgos auxiliavam e criticavam as obras uns dos outros,

num verdadeiro trabalho de equipe”. Assim sendo, o diretor e sua equipe agem

continuamente como intérpretes antes de, finalmente, serem adaptadores:

interpretam, criam e recriam em uma nova mídia. Isso significa que não há uma

receita a ser seguida na adaptação, o que pode ser comprovado quando Truffaut

(2005, p. 317) explica que realizou Fahrenheit 451 porque “quis fazer minhas

ideias de cineasta coincidirem com as minhas ideias de cidadão francês”, não por

11 When you are writing a TV script, it is like sitting in a taxi; the meter is always running, and everything

has to be paid for. You can always see the price turning over everywhere you go, or the difficulties of

performance and production; that is the art of writing for the medium. But the novel has the meter

switched off; you can write what you like, have Buenos Aires, have the moon, have whatever you

want.

12 […] is that you can’t just drop it. The machine’s in gear, contracts are signed.

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haver uma obrigação ou necessidade de seguir o enredo do livro. Ainda nesse

ponto, Arrojo diz que

[...] mesmo que considerássemos o autor o “pai absoluto‟ do texto que lemos ou traduzimos, ele será irremediavelmente nosso “convidado‟ nessa empresa; sua atuação, sua própria “presença‟ nesse projeto dependerá sempre do papel que, explícita ou implicitamente, lhe outorgamos. (1986, p. 41)

Isso quer dizer que a história tem seu autor inicial, mas passa a ser colaborativa no

momento em que o roteiro é construído de maneira a caminhar junto com o texto de

partida, porém, sem deixar de lado as ideias do cineasta ou dos roteiristas.

Na convergência entre as obras, tem-se, ainda, um aspecto de grande

importância e exposto de forma diferente em cada uma das mídias: o

desaparecimento de Clarisse. No livro, ela simplesmente desaparece em algum

ponto da história. Bradbury afirma que a garota morre, perseguida por suas ideias

antagônicas e sua curiosidade desigual. Já Truffaut a mantém viva, deixando isso

explícito primeiramente em uma cena que mostra sua fuga quando os bombeiros

invadem a casa em que ela morava com seu tio. Por fim, a garota reaparece no

acampamento das pessoas-livros (explicado adiante) – não por acaso – como

Memoirs of Duc de Saint-Simon. Truffaut brilhantemente escolheu tal livro para

representar a nova vida de Clarisse, de forma que explicita uma ideologia ao utilizar

do clássico literário francês, escrito por Louis de Rouvroy, dando uma imagem

completa da Corte de Versalhes, e nos remetendo a um princípio absolutista.

Com o desaparecimento de Clarisse, Montag passa a ser o subversivo da

trama, uma vez que começa a agir um pouco como a garota, isolando-se de todos,

adquirindo gostos diferentes. Isso é resultado da mudança de posição ideológica do

bombeiro, que se aproxima cada vez mais de uma identidade insurgente, e dos

efeitos dessa nova ideologia. Assim como a garota, Montag não aceita mais a vida

com todas aquelas normas impostas. A consciência passa a ser sua realidade, não

mais algo do qual não tinha conhecimento, e ela aparece ao revelar o mundo. O que

Truffaut buscou manter da história de partida é a ideia de que Montag vê sua

liberdade nos livros e em Beatty, vê uma ameaça a tal liberdade. Há, então, dois

discursos diferentes, sendo um que representa uma vida nova e outro que é apenas

mais do mesmo. Manter a garota viva foi uma forma de mostrar que Montag se

espelhava e se direcionava a partir de alguém, e que houve uma pessoa que o

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ajudou a construir sua recém-descoberta consciência. E, de fato, tal escolha agradou

tanto Bradbury que o próprio autor utilizou o final do filme em sua peça teatral de

Fahrenheit 451 (1979).

Ainda, não por acaso são os livros escolhidos para o novo Montag. O

Eclesiastes tem como tema principal o absurdo da vida, de forma que mostra a

depressão causada pela constante busca da felicidade no que é mundano, material.

Por fim, a história mostra que a produção de livros é algo negativo, o que torna a

escolha de Bradbury um tanto paradoxal. Tal livro busca ensinar o desapego dos

bens que existem “debaixo do sol” (o mundo mortal) e nega a felicidade dos que têm

dinheiro, pois

tudo quanto desejaram os meus olhos não lhes neguei, nem privei o coração de alegria alguma, pois eu me alegrava com todas as minhas fadigas, e isso era a recompensa de todas elas. Considerei todas as obras que fizeram as minhas mãos, como também o trabalho que eu, com fadigas, havia feito; e eis que tudo era vaidade e correr atrás do vento, e nenhum proveito havia debaixo do sol. (BÍBLIA, Eclesiastes 2.10-11, grifo da pesquisadora)

Ao mesmo tempo, Truffaut diferencia-se, colocando Montag como o grande

livro de Dickens, David Copperfield. Uma vez que o cineasta busca refletir em seus

personagens elementos pessoais, faz sentido que este tenha sido o livro escolhido

para Montag, visto que (muitos creem que) Dickens tenha feito o mesmo, incluindo-

se em David Copperfield. Este conta a história do homem que o intitula, mostrando

toda sua infância e juventude. É uma das primeiras obras a delatar a hipocrisia e o

rigor absurdos da moral vitoriana, retratando uma época em que a educação

enxergava a criança como um indivíduo a ser ensinado a se civilizar, uma vez que a

considerava naturalmente perversa. Ainda, mostra uma sociedade sem pretensões

de revolução e que defende cegamente um governo inquestionável. Com David

Copperfield, Dickens tornou-se um símbolo do pensamento revolucionário do

século XVIII. Assim, tanto Bradbury quanto Truffaut conseguiram eximiamente

escolher obras que se encaixavam no papel que Montag havia passado a

desempenhar.

Com tais diferenças, torna-se possível entender que o filme tenta

reproduzir a realidade de forma mais rápida, visto que é uma linguagem ouvida e

assistida, que exige determinada velocidade. A literatura surge com a ideia, o

abstrato: o narrador guia o leitor a formar, em sua imaginação, todos os

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personagens, os espaços, as expressões e reações; já o cinema precisa recriar a

noção de tempo e espaço, para, então, apresentar aquele mundo sendo exibido na

tela. Assim, o filme mostra, ao tempo que o livro descreve. Segundo Jauss, em sua

Estética da Recepção (1964), o espectador do filme que já tenha lido a história

que deu origem a este já tem o conhecimento sobre o conteúdo do mesmo e,

devido a isto, possui um “horizonte de expectativas”, o qual pode ser modificado

e/ou questionado. Retomando esta ideia, Clüver (2006, p. 15) explica que

O repertório que utilizamos no momento da construção ou da interpretação textual compõe-se de elementos textuais de diversas mídias, bem como, freqüentemente, também de textos multimídias, mixmídias e intermídias. As comunidades interpretativas, que determinam e autorizam quais códigos e convenções nós ativamos na interpretação textual, influenciam também o repertório textual e o horizonte de expectativa.

Tal influência faz com que haja esse desejo contínuo por fidelidade entre

trabalhos feitos para suportes completamente diferentes, pois, ao buscar a

associação, torna-se natural ao indivíduo ler uma história e esperar que o filme seja

“tão bom quanto” o livro, como é comumente dito.

Ainda nesse ponto, conforme explica Stam:

A passagem de um meio unicamente verbal como o romance para um meio multifacetado como o filme, que pode jogar não somente com palavras (escritas e faladas), mas ainda com música, efeitos sonoros e imagens fotográficas animadas, explica a pouca probabilidade de uma fidelidade literal, que eu sugeriria qualificar até mesmo de indesejável (2008, p. 20).

É indesejável, de fato, uma vez que transpor uma história de um livro para

as telas e mantê-la exatamente igual faria com que a mesma acabasse sendo

extremamente monótona ou incoerente. Assim, há pontos de convergência entre

as obras que não necessariamente acontecem da mesma forma ou de forma

completamente diferente. Truffaut utilizou de peças distintas para mostrar uma

mesma situação descrita por Bradbury, como é o exemplo do comercial da pasta

de dentes Dentifrício Denham. Como se trata de uma sociedade constantemente

mantida em alienação e dependente dos meios de comunicação não-literários, a

propaganda é um símbolo do controle do governo sobre a população. O comercial,

alto, passava no metrô, impedindo que qualquer pessoa conseguisse se concentrar

em algo que não fossem aquelas palavras: “Dentifrício Denham”; “Denham

resolve”; “creme dental Denham”.

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Neste momento, conforme citado anteriormente, Montag tenta se

concentrar nos escritos de uma Bíblia que carregava em mãos. Como uma

referência ao título do capítulo, “A peneira e a areia”, o bombeiro tenta ler o mais

rápido possível, com a esperança de que algo daquilo fique em sua memória, como

se passasse areia em uma peneira e, ali, conseguisse reter alguma coisa. Com as

palavras sendo invariavelmente repetidas, ele não conseguia entender o que lia. E

quanto menos entendia, mais irritado ficava, a ponto de gritar, insano, no metrô:

— Calado, calado, calado! — Foi uma súplica, um brado tão terrível que Montag se viu em pé, os passageiros do vagão barulhento espantados, afastando-se desse homem de rosto demente, inflamado, a boca seca tartamudeando, o livro se agitando em seu punho. As pessoas que, um minuto antes, estavam sentadas, batendo os pés ao ritmo do Dentifrício Denham, o Creme Dental Denham, Dentifrício Dentifrício Dentifrício Denham, um dois, um dois três, um dois, um dois três. Pessoas cujas bocas se agitavam levemente repetindo as palavras Dentifrício Dentifrício Dentifrício. Em retaliação, o rádio do trem vomitava sobre Montag uma tonelada de música feita de estanho, cobre, prata, cromo e bronze. O clangor reduziu as pessoas à submissão; não corriam, não havia lugar nenhum para onde correr; (BRADBURY, 2012, p. 103-104)

Já no filme, a cena do comercial não existe, uma vez que ela precede a

primeira ida de Montag à casa de Faber. A solução encontrada por Truffaut foi a de

colocar Clarisse e a Sra. Blake no metrô, observando o bombeiro. Ao saírem do

veículo, Clarisse passa a segui-lo até esbarrarem-se, como num acaso. Neste

momento, ambos saem para tomar um café e Clarisse conta que foi demitida, sem

explicações, da escola onde trabalhava. A forma que Montag encontra para

extravasar, como correlação com a cena do comercial, no livro, é a de faltar ao

trabalho e voltar com a garota à escola para buscar explicações à injustiça a ela

cometida. Com relação a isso, Truffaut (2005, p. 259) supõe que há cenas

passíveis e não passíveis de filmagem num romance adaptado – o que é

claramente questionável, uma vez que o que é não-filmável para um diretor não

necessariamente o é para outro. Assim, ao invés de eliminar tais partes, a opção é

pela criação de cenas análogas, de forma que pareça que o autor do romance as

escreveu especialmente para o cinema. De tal forma, Truffaut conseguiu adicionar

ao filme ora sua opinião, ora os elementos ideológicos que pretendia mostrar.

Portanto, o essencial de uma adaptação é que haja momentos de

afastamento bem como de aproximação entre as obras. Como previamente dito, a

fidelidade total não garante o sucesso da adaptação, uma vez que o que foi

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pensado para um suporte nem sempre pode ser aproveitado em outro, e, com

certeza, não o será totalmente. Entende-se, portanto, que a posição de seu

realizador tem fundamental importância no resultado da história contada, pois

Qualquer tradução, por mais simples e despretensiosa que seja, traz consigo as marcas de sua realização: o tempo, a história, as circunstâncias, os objetivos e a perspectiva de seu realizador. Qualquer tradução denuncia sua origem numa interpretação, ainda que seu realizador não a assuma como tal. Nenhuma tradução será, portanto, “neutra” ou “literal”; será, sempre e inescapavelmente, uma leitura. (ARROJO, 2003, p.77).

As diferenças são partes primordiais da adaptação, pois são elas que

garantirão à história novas leituras: são as imagens, cores, atores, atuações,

figurinos e todas as coisas feitas especialmente para um filme que garantem ao

espectador uma visão em relação ao que está sendo contado, visão a qual seria

diferente – não melhor, nem pior – caso a leitura estivesse ocorrendo em um livro

ou qualquer outro suporte. Portanto, assim como no livro, uma adaptação

proporcionará uma leitura única e diferente todas as vezes, visto que as ideologias,

as situações e o próprio leitor estão sempre em transformação.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Fahrenheit 451 é considerada uma distopia, aquilo que destoa

absurdamente da realidade. Mas será possível que seja tão destoante assim? Ou

Bradbury foi, de certa forma, visionário ao escrever seu livro? Pinto (2012 apud

BRADBURY, 2012, p. 17), responsável pelo prefácio do livro, explica que "Bradbury

não imaginou um país de analfabetos, mas diagnosticou um mundo em que a escrita

foi reduzida a um papel meramente instrumental e no qual a literatura e a arte têm

função ‘culinária’”.

As previsões de Bradbury mostram-se a cada dia mais verdadeiras. Hoje em

dia, as regras ainda são impostas todos os dias e a sociedade age da forma que o

governo determina mesmo sem perceber. Isso inclui a propaganda e a primazia da

televisão, as quais são usadas para moldar o cidadão “perfeito”: aquele que não se

rebela. Isso nos remete a Montag, que pode representar qualquer alienado da época

Nazista, qualquer um que estava longe do fogo cruzado e acreditava não sofrer

impacto algum daquela situação; pode representar o cidadão francês que aprendeu

a importância de sua voz após ver todas as manifestações das classes de

estudantes e trabalhadores em busca de seus direitos; pode até mesmo representar

o aluno, professor, cidadão – contemporâneo ou não – que entra em contato com

uma obra (literária, cinematográfica, virtual...) e abre uma nova janela em sua mente,

pronta para receber novas informações e mais conhecimento.

E é pelo fato de a intelectualidade estar se tornando algo de menor

importância que é fundamental aceitar que o alfabeto deixou de ser constituído

apenas por letras escrita. Deve-se conviver com as multissemioses da nossa

sociedade, que hoje é multiletrada e precisa, de fato, dessa combinação de

diferentes meios para que se mantenha informada e atualizada.

Isso mostra que a vida passa em uma velocidade tal qual na história quanto

atualmente. Porém, ao mesmo tempo, há, por trás da tecnologia de hoje, Montags

do nosso tempo, aqueles que se rebelam contra o status quo e buscam usar do que

se tem para fazer algo melhor. Apesar da tecnologia por vezes fazer com que os

indivíduos se fechem cada vez mais – para outras pessoas, para o mundo exterior,

para a literatura... –, existem pessoas que buscam usá-la em favor da inteligência,

como ferramenta para manter o interesse pelas histórias – de ficção ou não – vivo.

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Da mesma forma, segundo Benjamin (1994), “a reprodutibilidade técnica da

obra de arte altera a relação das massas com a arte”, ou seja, o cinema, com o poder

de atingir muitas pessoas, pode fazer com que o espectador se conecte ou tenha o

interesse em buscar as histórias de partida.

A reprodutibilidade técnica do filme tem seu fundamento imediato na técnica de sua produção. Esta não apenas permite, da forma mais imediata, a difusão em massa da obra cinematográfica, como a torna obrigatória. A difusão se torna obrigatória, porque a produção de um filme é tão cara que um consumidor, que poderia, por exemplo, pagar um quadro, não pode mais pagar um filme. (p. 172)

O cinema existe para que não se possa ver todo o processo que houve na

escrita: cria-se uma ilusão da realidade ao mesmo tempo que trabalha para não

mostrar que essa realidade não existe. Assim, é incoerente dizer que a adaptação

cinematográfica não é válida ou que o cinema quer acabar com as outras artes, visto

que ele quem pode fazer com que a literatura chegue de forma mais abrangente a

quem o assiste. Segundo Jenkins (2009, p. 41), "palavras impressas não eliminaram

as palavras faladas. O cinema não eliminou o teatro. A televisão não eliminou o

rádio. Cada meio antigo foi forçado a conviver com os meios emergentes".

Assim, é possível perceber que as práticas de leitura disponíveis para

Fahrenheit 451 são capazes de formar um indivíduo tanto como leitor quanto como

sujeito. Stam (2003, p. 173) defende que apesar de haver “os prazeres da narrativa

convencional, o cinema também poderia estimular o espectador a questioná-los,

fazendo deste próprio questionamento algo prazeroso”. Isso quer dizer que durante

a leitura do filme, questionamentos a respeito da história ou mesmo da conexão da

mesma com a vida real irão surgir no espectador, e essa é a função primordial da

leitura: criar indivíduos que consigam pensar, julgar e compreender o meio social no

qual se encontram, de modo a construírem seu processo de cidadania.

Dessa forma, é crucial que se compreenda que o surgimento dessas novas

práticas de leitura são elementos integrantes de um processo mais amplo e mais

complexo. Tais formatos pressupõem novos espaços e métodos de interação, dentro

de um contexto que altera critérios convencionais de leitura, graças à “pluralidade

de tempos e de espaços” (LÉVY, 1996, p. 22) que a internet propicia, já que, na

virtualização, “os lugares e tempos se misturam” (ibidem, p. 25). A questão, portanto,

não é temer o fim da literatura, uma vez que a própria adaptação é uma forma de

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levá-la a outros lugares e pessoas, mas sim esperar que crítica e a teoria da

literatura, bem como os professores e instituições, encontrem meios e aparatos

formais para analisar, compreender e ajustar-se à era da informação, de modo a ter

um posicionamento quanto ao papel do meio eletrônico na arte literária.

Assim, as diferentes e atuais práticas possibilitam que um grande desafio do

educador seja concluído: atrair o aluno na aquisição do gosto pela leitura,

independente do suporte que será utilizado para tal. Se a intenção é despertar seu

interesse, torna-se óbvio que se deve buscar artifícios que façam parte de seu

cotidiano (como filmes, videogame, internet...).

Entendemos, portanto, que não é a literatura (ou a música ou a pintura...)

que vem antes do cinema ou de qualquer outra arte para a qual ela sirva como

inspiração. O cinema precisa de várias artes para que possa formar seu alicerce,

mas consegue manter-se em pé e passível de análise a partir de elementos próprios.

Todas as artes “são produtos não do gênio de escritores individuais, mas da cultura

que os produziu” (DINIZ, 2005, p. 63), o que faz de quem as lê também um autor

daquela obra. As ideias finais do texto – em qualquer que seja o suporte – serão

sempre extraídas do horizonte do leitor, independente da forma que este receberá a

história. A função do contar uma história é justamente inserir quem escuta naquele

mundo. E quem sai de uma sala de cinema (assim como quem termina a leitura de

um livro, de uma HQ, de uma poesia interativa...), nunca sai imparcial.

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