Ana iturgaiz - sob as estrelas

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AArrgguummeennttoo:: Navarra, 1296.

A pequena Margheritte, filha de um ourives da vila de Estella,

escutava junto ao garoto Gabriel, uma estranha conversa

que nenhum dos dois compreendia.

Onze anos mais tarde, nada tinham em comum.

Margheritte ficou sozinha e, depois de descobrir que tinha

uma família na França, decidiu juntar-se a ela, levando

consigo seu único bem material: uma tabuleta esmaltada e

um anel de prata, que seu pai tinha mantido ocultos até sua

morte. Mas alguém poderoso está tentando encontrar esta

joia…

Gabriel se tornou um viajante, busca a vida como pode; é

açoitado pela Guarda Real por defender os monges

templários, que cuidaram dele desde pequeno e que foram

detidos por ordem do infante da França, o recém-coroado rei

de Navarra.

É quando seus destinos voltam a cruzar-se.

Juntos empreenderão uma fuga e se verão envolvidos em

uma trama repleta de perigos que mudará suas vidas para

sempre.

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CAPÍTULO 01

Vila da Estella, Reino da Navarra,

Fevereiro de 1296

O moço estava paralisado. Da beira do caminho, contemplava com

olhos sobressaltados ao homem que jazia a seus pés. Não era a primeira vez

que a morte e o sangue lhe turvavam os olhos, mas esta lhe deixou

emocionado.

—Gabriel! Gabriel! —implorou o irmão Roger, ajoelhado no chão

junto ao corpo ainda quente de seu companheiro—. Moço! Preciso de você!

— demandou de novo, mexendo com cuidado na frente e no inferior da

roupa do companheiro que estava no chão.

O religioso teve que insistir um par de vezes mais até que conseguiu

que o fiel moço reagisse. Gabriel se agachou junto a ele ainda com pouca

consciência.

—Ponham as mãos aqui —ordenou o religioso. O moço duvidou uns

instantes antes de colocar onde lhe indicava. A ferida do irmão Pablo parecia

muito grave, muito profunda devido à quantidade de sangue que emanava—.

Aperte com força.

Assim que o jovem fez o que seu mentor lhe indicava, este tirou a

faca, deu um talho em sua própria túnica, rasgou um pedaço comprido de

tecido e aplicou com firmeza em torno do corte.

Não voltou a dirigir-se ao menino até que esteve seguro de que suas

mãos comprimiam com força o profundo corte.

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—A vila está um pouco mais adiante. Corra até lá. Atravesse a

primeira porta, passe o bairro dos judeus o mais rápido que possa e, ao outro

lado da Porta da Tinturaria, encontrará a Rua das Lojas. Pergunte pelo

professor Vermelho, Roux —se corrigiu—, o ourives. Explique-lhe que o

irmão Pablo está ferido gravemente. Procure uma carroça e venham o mais

rápido que possam!

Gabriel desorientado, olhou para as sua mãos cheias de sangue, mas

ao voltar a ver a expressão de padecimento de seu superior, limpou-as com

presteza nas esfarrapadas meias e pôs-se a correr sobre os gastos

paralelepípedos sem olhar para trás.

—Margheritte, entre e ajude a sua mãe.

—Mas pai, você sabe que mamãe não necessita de ninguém que a...

—Margheritte!

—Mas...

O ourives lhe jogou aquele olhar intimidador que sua filha conhecia

tanto e esta se deu por vencida. Sabia bem que quando seu pai ficava firme

não havia nada que fazer. Deixou cair os ombros em sinal de derrota e se

dispôs a obedecer se caminhando para a porta que seu pai assinalava,

entretanto, antes de cruzar a soleira, voltou-se em um último intento de

procurar a compressão paterna. Em vão. Este já havia retornado a conversa

que mantinha com um possível cliente.

O orgulho ferido de sua filha era a menor de suas preocupações.

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Por mais que sua mãe havia tentado lhe explicar, Margheritte seguia

sem entender as razões que seu pai tinha em mantê-la afastada de seu lado.

Ela havia passado toda a vida sem sair daquela oficina. Ali tinha dado os

primeiros passos, ali havia dito as primeiras palavras, ali tinha aprendido a

ler, ali tinha escrito as primeiras letras e, sobre tudo, ali se tinha sentado

horas e mais horas observando como os ágeis dedos de seu progenitor

criavam as obras de arte que tanto admirava. Ele sempre tinha agradecido

sua companhia, mas, já fazia vários meses que cada vez que um desconhecido

aparecia na porta; seu pai a expulsava para longe de sua oficina.

Sua mãe falava que já era uma mulher e, portanto, não podia

mostrar-se em público ante qualquer homem da forma em que o tinha feito

até então, mas Margheritte a seus treze anos, assim como a lua aparecia a

cada noite da mesma forma, sentia-se a mesma menina de sempre.

Entrou em casa zangada. A cozinha ocupava o resto da parte baixa

que a oficina deixava livre. E ali era o território de sua mãe. Seu pai mandava

na parte dianteira, sua mãe o fazia na traseira e a obrigavam ficar atrás,

quando de verdade queria estar na frente.

Se ficasse fora da oficina, nunca teria contato com o resto do mundo;

quando o que queria era precisamente isso, conhecer pessoas, escutá-las

quando falavam de seus trabalhos, de suas cidades, de suas famílias. Era tão

interessante tudo o que contavam! Mas seus pais, em vez de permitir-lhe este

contato, faziam justamente o contrário. Ocultavam-na. Que injusta era a

vida!

Um momento depois, limpava com a ponta de seu vestido os olhos

avermelhados. O que mais odiava dos trabalhos diários domésticos era picar

cebolas. Por sorte, a tortura já tinha finalizado. Além disso, acabava de

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escutar porta da rua se fechando. Levantou-se depressa, depositou a tarefa

cumprida nas mãos maternas e se aproximou da oficina.

—Já partiu? De onde era? Comprou algo? —perguntou impaciente,

olhando para todos os lados para comprovar se faltava alguma das peças que

seu pai tinha criado tão minuciosamente sob sua atenta supervisão.

—Filha, já sabe que a maioria das vezes as pessoas tem que pensar

primeiro antes de tomar uma decisão.

—Não comprou.

Não, o desconhecido não levou nada. A caixa de prata com filigranas

e a cruz com a imagem da Virgem com a face feita de cristal de rocha

continuavam sobre a mesa. Também estavam à arca pequena com as pedras

incrustadas e as duas palmatórias que o ourives tinha acabado apenas duas

semanas antes.

Uma enorme desilusão se refletia em seu rosto infantil. O homem

passou o braço sobre os ombros da menina e a conduziu para dentro.

—Não fique preocupada! Verá como retorna.

Estavam a ponto de entrarem na cozinha quando ouviram uns gritos

fora de casa.

—Vermelho, Vermelho, abra!

Margheritte reconheceu a voz. Era o senhor Nicolás, o carpinteiro

vizinho da casa do lado. E pela urgência, aquela não era uma visita de

cortesia. O que teria acontecido?

—Fique aqui.

—Pai...

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Alienor Roux voltou a dirigir a sua filha um daqueles olhares de

advertência e retrocedeu para reabrir a porta que acabava de fechar.

Entretanto, desta vez a moça não estava disposta a que a deixassem

de lado, seguiu seu pai e se escondeu atrás dele.

—Quem chama?

—Aqui fora tem um rapaz jovem que pergunta por você.

O ourives abriu.

Era certo. No meio da rua, dobrado com as duas mãos apoiadas nos

joelhos, estava um rapaz, que teria mais ou menos a mesma idade de

Margheritte, tentava recuperar o fôlego. O homem saiu de casa quando

observou que não seria fácil para o moço se aproximasse até ele.

—O rapaz me disse que deve lhe buscar. O que deseja? — repreendeu-

lhe o marceneiro.

Gabriel elevou um pouco a cabeça, justo para que seus olhos se

deparassem ao rosto de um homem bem mais alto do que esperava. Assentiu

com a cabeça enquanto se esforçava para recuperar a respiração. Conseguiu-o

uns instantes mais tarde. Por sorte para ele, o ourives continuava ao seu

lado. Tinha que esperar o que tinha para lhe dizer.

Incorporou-se dolorido, com as mãos segurando a parte inferior das

costas. Um conjunto de cabeças de homens, mulheres e meninos o

rodeavam por toda parte, tal era a expectativa que sua chegada tinha

causado.

—O irmão Roger me mandou. Atacaram-nos. O irmão Pablo está

ferido gravemente. Terá que ir ajudar! — narrou apressado.

O homem que tinha diante de si ficou pálido. Jogou um olhar

nervoso aos vizinhos ali reunidos e lhe fez um gesto rápido.

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—Espere um instante.

O menino o ouviu falar com alguém dentro da casa e, um momento

depois, saiu com um maço debaixo do braço.

—Moço, me mostre o caminho.

Já fazia muito tempo que Margheritte foi para seu quarto dormir,

entretanto, continuava acordada. Aquele dia, mais que nunca, havia

desejado ficar na cozinha ao terminar o jantar, sentar-se no chão e ajudar sua

mãe remendando os punhos desgastados das camisas de seu pai. Aquela seria

a única maneira de inteirar-se de algo. Mas não tinham lhe permitido.

Quando deu a última colherada de sua sopa, a enviaram para seu quarto. Até

lhe afastaram de suas obrigações diárias! Quem teria de encher o cântaro de

água? Divertiu-se ao imaginar o garoto realizando o trabalho. Problema dele!

Era um inculto e um mentiroso! Uma das vezes em que a tinha visto, ao

passar por ela na escada, lhe dissera que seus olhos eram da cor do mar! Ela?

Oh! Muito bobo! Tenho certeza que nem em seus melhores sonhos teria

visto o oceano. Como seria o mar? «Quando for maior, irei e o verei com

meus próprios olhos», fez uma promessa.

Tinha sido um dia estranho. Desde que aquele menino apareceu no

meio da rua em busca de seu pai, sua casa não era sua casa, seu pai não era

seu pai e sua mãe gastava todos os minutos do dia para atender o ferido e a

uns desconhecidos que ainda não sabia o que faziam ali. Nada do que

ocorria era normal. Embora todos eles fizessem o impossível por simular que

era. Conversas pelos cantos que cessavam assim que ela aparecia, enigmáticos

olhares por cima de sua cabeça e o silêncio a toda hora. E tudo para que ela

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não se inteirasse de nada, claro que o garoto tampouco parecia muito

informado do que acontecia. Comportavam-se com ele da mesma que faziam

com ela. Alegrou-se de não ser a única a que mantinham à margem.

Deu uma volta na cama para trocar de posição, embora soubesse que

olhar para teto não ia facilitar em nada a tarefa de tentar dormir.

Concentrou-se nos sons que chegavam até seus ouvidos. Era absurdo

perguntar o que estava acontecendo embaixo. Sabia a resposta: falavam.

Podia ouvi-los. O eco das vozes atravessava os frisos do teto baixo da cozinha

e penetrava entre as frestas do chão de seu quarto. Só havia um problema:

não conseguia entender o que diziam.

Em algumas ocasiões, as vozes masculinas subiam de tom e ela se

concentrava em poder decifrar um par de frases, mas, quando começava a

compreender alguma das palavras, os sons se perdiam de novo.

Se ao menos sua mãe estivesse na cozinha, podia ter descido com

uma desculpa inventada, com o risco de topar com o olhar contrariado de

seu pai. Entretanto, nem sequer tinha aquela opção, já que ela estava

cuidando do irmão Pablo na oficina. Um momento antes, tinha escutado

sua mãe subir pela escada e se despedir do garoto à porta de um cômodo,

onde lhe tinha disposto de um leito; um feixe de palha, um lençol e uma

manta tinha sido suficientes para lhe proporcionar uma confortável cama.

Tinha ouvido a conversa pois o quarto era contíguo do ao seu.

Margheritte sorriu na escuridão. Estava certa de que o singelo «que

descanse» com o que sua mãe se despediu do garoto tinha sido uma

advertência.

Só foi um leve som, mas ela o escutou à perfeição, tão claro, tão

evidente, que lhe fez abrir os olhos. Ficou atenta esperando quem quer que

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fosse desse o seguinte passo, porque aquilo eram passos. Após uns minutos

depois mais sons. Essa vez foi mais sutil que um chiado. Alguém arrastava os

pés ao outro lado da porta. O garoto sem dúvida. Passadas se dirigiam para a

escada. Atreveria-se a descer? Se ele fazia, ela, certamente, não ficaria ali

acima.

Afastou a manta que a cobria e se levantou. Estava tão excitada que

nem notou que a madeira estava gelada. Descalça, percorreu em sigilo a

distância que a separava da saída e colocou a orelha na porta. Nem um só

som chegou até ela. Os homens do piso inferior tinham parado de conversar.

Pensou. Se a descobriam sempre podia alegar que o urinol não se encontrava

debaixo da cama. Levantou o ferrolho que sua mãe tinha insistido para

fechar, abriu a porta o mais devagar que pôde e colocou a cabeça para fora.

A escassa claridade que subia de baixo lhe permitiu intuir o que já

tinha imaginado.

Abaixado no chão, com a cabeça aparecendo pelo buraco da escada,

o garoto se esforçava por se inteirar do que estava acontecendo na cozinha.

Margheritte se aproximou com cautela.

—Eles vão ouvir —balbuciou Gabriel, com a voz tão baixa que quase

não entendeu o que dizia— Se abaixe!

Ela obedeceu.

—O que fazem? —sussurrou depois de agachar-se.

—Não está vendo?

Parecia zangado.

—Espiando?

—Não estou espiando! Somente estou tentando entender o que

acontece!

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—Já averiguastes algo?

—Shhh... — Com um gesto insistiu que se calasse.

Ambos ficaram em silêncio, atentos às palavras que provinha de

abaixo.

—Acredito que seria melhor que passasse de novo as suas mãos,

Alienor. — Aquela era a voz do irmão Roger. -Era a razão pela que nos

dirigíamos para aqui; para tentar lhes convencer.

-Já faz anos que decidimos que não era seguro. Este seria o primeiro

lugar que procurariam. —A voz do ourives soou mais brusca que Margheritte

já tinha ouvido.

—Já vieram no passado e por isso não vão lhes ocorrer vir de novo.

Ficamos limpos daquela vez. Não é provável que imaginem que está de novo

em nosso poder. Já lhes expliquei por que não podemos continuar com a

custódia.

O garoto ficou tenso quando ouviu o ruído de um assento se

arrastando. Pôs a mão sobre o braço para tranquiliza-lo. Os passos de seu pai,

que percorriam a cozinha de um lado para o outro, confirmava que ainda

estavam a salvo, a conversa ainda não tinha finalizado.

— Não o quero comigo.

— Entendo perfeitamente o seu cansaço —comentou o irmão Roger—.

Pensa em sua família.

Margheritte percebeu que seu pai tinha interrompido sua

caminhada.

—Elas são tudo o que tenho — Afirmou com tom aflito.

—Haverá gente a quem pareça ordinárias as suas palavras. Sabe que as

coisas poderiam ser de outra maneira.

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—Antigamente me neguei a lutar por algo que não era meu e não vou

fazer agora.

—Nem sequer por sua filha...

—Precisamente por ela. Não merece viver rodeada de intrigas e

falsidades, onde o amigo mais próximo acaba sendo o inimigo mais voraz, as

palavras confabuladas, conspirações, maquinação e perfídia se sussurram

pelas esquinas antes do amanhecer e até depois de que anoitecer.

Margheritte estava confusa. Do que estava falando seu pai?

—Compreendo suas razões, mas acredito que não têm outra

alternativa —respondeu o irmão.

—Posso ir ao pai Guillelmet. O monastério de Irache não é o pior dos

lugares.

—Sabe que não compartilho sua simpatia por esse homem.

—Farei o que me pareça mais apropriado. —A voz do ourives voltou a

soar tensa.

—Sei... Está em seu direito.

Um longo silêncio acompanhou as palavras do religioso.

—Deveríamos velar o irmão Pablo —foi o que se escutou da boca do

dono da casa.

—Vamos —acrescentou o religioso. O eco dos passos disse aos furtivos

observadores que os homens se encaminhavam para a oficina. O que não

conseguiram ouvir foi às últimas palavras do irmão—. Vamos pensar sobre

isso durante esta noite, fique comigo.

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CAPÍTULO 02

25 de outubro de 1307

Onze anos depois…

Margheritte saiu do edifício com passo seguro. Sabia que o

representante da confraria ficou à porta observando-a partir. Apertou a

manta que estava jogada sobre os ombros para impedir o frio do outono e se

obrigou a caminhar com pressa. Percorreu a Praça do Mercado Novo, como

tinha feito tantas vezes ao longo da vida. Ao passar junto à igreja de San

Juan, benzeu-se um par de vezes e continuou andando. Virou pela primeira

rua que encontrou à direita e que a fez desaparecer da vista do homem. Só

então se permitiu diminuir o ritmo.

Preparou-se para isso. Durante vários dias tinha repetido o que ia

dizer, mas não tinha tido um resultado nada fácil. Abandonar o único lar

que havia conhecido não era algo que se fizesse todos os dias. Tinha tido

muita sorte durante aqueles meses. O posto de ourives lhe tinha permitido

ficar com a casa durante todo esse tempo apesar de que não tinha nenhum

direito a fazê-lo. Depois da morte de seu pai, Simón Learza, o maioral da

confraria, tinha comentado que não havia pressa de sair. A casa ainda não

havia sido atribuída a outro, desse modo podia continuar nela até que o

futuro proprietário a reclamasse. Mais tarde, soube que o homem ao que

haviam prometido a casa de seu pai, tinha caído de uma árvore, ferindo uma

perna, desse modo não tinha podido tomar posse ainda do lar que por

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direito lhe pertencia. E assim continuava a situação no momento. A final, a

decisão de aceitar o convite de sua prima tinha partido de sua própria

vontade. Tinha acalmado o antigo desejo de consultar às mulheres que

passavam frequentemente pelo bairro dos francos a caminho do sepulcro do

Apóstolo, se negando a possibilidade de conhecer novas terras e novas

pessoas, tinha aceitado o raciocínio que ditava. «É o melhor que posso fazer»,

repetiu ao mesmo tempo em que se incorporava à maré humana que alagava

a rua.

Aquele frio e ensolarado dia de outubro era um momento muito

especial para a vila da Estella. Seus habitantes se superaram. Todas e cada

uma das casas que sua vista alcança, estavam enfeitadas. Os mais ricos

tinham pendurado nos balcões pendões, bandeiras ou insígnias. A cor

vermelha, emblema do Reyno de Navarra, e o azul e o amarelo, divisa da

monarquia francesa, apareciam por toda parte. Até os menos privilegiados

tinham adornado suas casas: centenas de ramos de louro e de oliva

enfeitavam as balaustradas como autênticos enfeites.

A cidade estava preparada para dar as boas-vindas a Luis I, infante da

França e recém-coroado rei de Navarra.

Mar começou a caminhar, mas após dar três passos, algo se aferrou a

suas pernas e pouco faltou para que caísse no chão.

—Teresa! Quase me deixa cair!

Uma menina de uns seis anos, morena, com o cabelo muito

encaracolado e um sorriso encantador, olhava-a com cara de um anjinho

recém-caído do céu.

—Olá, Mar.

—Onde está sua mãe?

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A menina se limitou a encolher-se de ombros.

—Por aí —comentou com descaso.

Teresa era a neta da senhora Manuela, a mulher do carpinteiro e sua

vizinha mais próxima. O dia que seu pai morreu tão repentinamente e a

deixou sozinha no mundo — fazia anos que sua mãe tinha sido chamada ante

a presença do Senhor—, tinha sido Manuela, com ajuda de sua filha, que

havia cuidado de tudo. Tinha avisado ao pároco da igreja do Santo Sepulcro,

cuidou do corpo de seu pai, colocando a mortalha, tinha-o velado e ficou

com ela para receber as condolências dos amigos e conhecidos. E ainda tinha

tido tempo para consolá-la. Além disso, Mar levara mais de seis meses

dormindo na cama com Teresa. A senhora Manuela tinha sido inflexível

neste ponto. «De nenhuma maneira vou permitir que passe as noites a sós»,

havia-lhe dito sem necessidade de acrescentar o resto das palavras que

pensava: «Não seria decente». E a essa altura, podia-se dizer que os Alvar

eram sua segunda família.

—Já escapou outra vez! Venha! —disse ao mesmo tempo em que

agarrava a mão da menina—, Vamos voltar para casa.

Começaram a percorrer a Rua Maior, a caminho da Ponte de São

Martín, entretanto, entre as pessoas que cruzavam, algumas tinham que

saudar, às vezes Teresa parava para olhar algo que lhe chamava a atenção,

conseguiam avançar e tinham que parar de novo.

—Mar, olhem ali! —gritou a menina antes de soltar-se de um puxão e

correr para onde se formou um grupo grande de pessoas.

Margheritte a seguiu tentando não perder a de vista. A menina se

fundiu com o grupo de pessoas e admirava as cambalhotas de um pequeno

cão branco com manchas negras que dançava sobre as patas traseiras ao som

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que seu dono tocava em um pandeiro. Parecia muito engraçado, porque as

pessoas riam sem descanso. Esticou o pescoço para ver por onde Teresa se

acomodou e a descobriu sentada na primeira fila, muito concentrada no que

estava acontecendo diante dela e com uma inocente expressão de adoração

pelo animal.

Tinha pressa, faltava pouco tempo para deixar definitivamente seu

lar e ainda lhe faltava muitas coisas para guardar, mas foi incapaz de obrigar

Teresa a abandonar aquilo que tanto atraia sua atenção. Assim, se dispôs a

esperar que a apresentação terminasse.

—Mar! —exclamou uma voz feminina a seu lado—. Não terão visto

A...?

Isabel, a mãe da Teresa, apareceu de repente com o rosto

preocupado. A jovem levava entre os braços o seu filho menor. O bebê se

entretinha brincando com as cordas da touca que sua mãe usava para ocultar

o cabelo.

Mar assinalou à parte dianteira do grupo de pessoas.

—Vou matá-la, levei meia manhã atrás dela. Assim que me viro ela

desaparece como um raio, me segure Santiago!

Antes que percebesse, Mar tinha o menino entre os braços. O

pequeno sentiu saudades do corpo de sua mãe e se inquietou. Um instante

depois, Isabel apareceu com sua filha presa pela orelha.

—Ai, ai, ai, ai! —queixava-se a menina, que andava nas pontas dos pés

tentando diminuir a dor.

—Vê se aprende de uma vez a não escapar!

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Mar teve piedade da menina. Voltou a entregar o pequeno a sua

mãe, que não teve mais jeito que soltar a sua filha maior. A menina se

apressou a esconder-se atrás de sua salvadora.

—Hoje é um dia especial! Não são todos os dias que o rei de Navarra

chega a Estella.

—Isso, isso! —fez coro Teresa ainda oculta atrás do vestido de sua

salvadora.

Isabel optou por não prestar atenção em sua filha e centrou toda a

atenção na jovem.

—Está muito elegante esta manhã. —insinuou.

Mar tinha colocado sua melhor roupa. Além disso, a cor violeta

sempre lhe tinha caído bem, ou ao menos isso era o que dizia sua mãe; que o

azul profundo de seus olhos em certas ocasiões, parecia transformar-se na cor

lilás.

—Venho da Confraria — explicou direta.

Não teve que acrescentar nada mais. Isabel sabia do que falava.

—Vou à casa de minha sogra, quer nos acompanhar?

—Sim, sim, sim! —gritou Teresa enquanto dava saltos a seu redor—.

Acompanhe-nos!

—Mas é que...

—Por favor, por favor! —pedia a menina com as mãos unidas olhando-

a nos olhos.

Mar não pôde negar. Ao fim, com toda segurança, aquela ia ser a

última vez que estaria com ela.

—Bom, mas só as acompanho até a porta e depois parto para casa.

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Seis horas depois estava sentada no chão do pátio da casa da sogra de

Isabel jogando um jogo de tabuleiro com Teresa.

Gabriel obrigou o cavalo a diminuir a marcha. Sempre que chegava

ao monastério gostava de fazê-lo com tranquilidade. Aqueles velhos edifícios

lhe faziam sentir um orgulho singular, algo especial que custava descrever

com palavras. Imaginava como seria ser o proprietário de um castelo e

aparecer às almenas e observar as propriedades. Só que neste caso, nada do

que via era dele. Ele não era mais que um simples hóspede dos irmãos. «Isso

sim, um hóspede de luxo», disse ao mesmo tempo em que recordava a

gentileza com que o tratavam cada vez que retornava.

Deu gosto de passar montado no cavalo como estava, por debaixo da

pequena ponte que unia a igreja da Santa Maria e o hospital de peregrinos.

Aquilo era algo que sonhava fazer quando era menino e se apressou a levar a

cabo assim que teve a oportunidade de montar em seu próprio garanhão.

Quando alcançou a hospedaria viu um dos irmãos sair dela e

encaminhar-se à igreja. Não o reconheceu. Com a túnica branca, a cruz

vermelha bordada sobre ela, a capa clara, o cabelo raspado e a barba espessa,

era difícil saber quem era este irmão. Além disso, fazia anos que ele tinha

deixado o convento e nesse tempo novos monges se uniram aos que ele

conhecia. Respondeu amavelmente à inclinação de cabeça que dirigiu o

religioso e seguiu adiante.

Desmontou diante da muralha exterior do convento. A trepadeira,

que ameaçava todos os anos engolindo aqueles robustos muros, exibia com

descaramento sua cor vermelha antes que as folhas começassem a cair.

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Gabriel deixou escapar um sorriso quando seus olhos se pousaram sobre o

sino. Aquela era uma de suas travessuras mais comuns: escapar as horas da

reza e tocar o sino com a mesma urgência, como se chamasse o Senhor em

pessoa. Ver o irmão que ficava na portaria atravessar o pátio com o andar de

pato era um dos maiores prazeres que tinha um menino de onze anos.

Conteve-se de tentar fazê-lo. Seria melhor comportar-se como o adulto que

era se não queria correr o risco de suportar a reprimenda que estava certo de

que o irmão Roger daria.

Passou por debaixo do arco de entrada com as rédeas na mão. Como

supunha, o convento estava em plena ebulição. O pátio que dava acesso ao

monastério não era grande e continuava dedicado aos cavalos em sua

totalidade. Várias pessoas se moviam pelo interior realizando trabalhos

variados. Todos eram criados da ordem. A cruz vermelha bordada ao lado do

peito os identificava como tais. Gabriel os observou com curiosidade. Na

ferraria, situada do seu lado direito, o ferreiro lutava para conseguir que um

cavalo lhe permitisse verificar uma das patas traseiras. Do lado esquerdo,

dois dos irmãos se esforçavam em partir vários enormes troncos de pinheiros

que, supôs, secaram-se naquele tórrido verão. Depois de cortados,

ordenavam a lenha debaixo de um telhadinho que foi construída para

abriga-los. A pilha de troncos estava bem alta; os monges se preparavam para

a chegada do inverno. Pensar nos próximos meses lhe recordou que tinha

que tomar uma decisão de onde se encaminharia assim que partisse dali,

embora, por sorte, a aparição de um dos escudeiros lhe salvou no momento.

O moço se aproximou com rapidez. Assim que o viu, soltou a

forquilha com que estava jogando a forragem para dentro das cavalariças e se

aproximou dele.

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—Senhor, se me permitir — Disse, encarando-o de frente.

Gabriel viu seu próprio reflexo dez anos antes. A mesma altura, o

mesmo cabelo, a mesma constituição. Conhecia muito bem aquele olhar de

excitação quando alguém diferente da ordem aparecia por ali. Sabia com

perfeição o que significava aquele brilho. Imaginava, sem dúvida, o único

desejo daquele moço. Tudo se resumia em um único sentimento e uma

perigosa palavra: aventura. E sabia também que ninguém, fizesse o que

fizesse e dissesse o que dissesse, ia conseguir tirar da cabeça a ideia de que

fora daqueles muros havia um mundo excitante esperando sua chegada. E

sabia por que ele mesmo tinha experiência disso, pois fazia mais de uma

década que sentira isso em sua própria pele.

—Claro! Cuide bem dele. —respondeu, lhe entregando as rédeas.

Teria gostado de ficar conversando um momento a mais com o

menino e responder todas as perguntas que estava certo que lhe faria, mas

não teve tempo. O irmão da portaria aparecia pela porta principal do edifício

com o andar de pato.

—Gabriel Etayo! — Exclamou quando o reconheceu—. Faz muito

tempo que não nos visita!

—Irmão José! — Saudou Gabriel com uma inclinação de cabeça.

—Venha — convidou o irmão, enquanto observava de cima abaixo—.

O irmão Roger ficará encantado de lhe ver.

Gabriel ficou incomodado, embora preferisse de responder. Sabia o

que o irmão insinuava: os farrapos que vestia não seriam do gosto de seu

antigo tutor. E sabia o que viria depois: uma nova e contida reprimenda pelo

tipo de vida que levava. Encolheu os ombros antes de se pôr a caminhar

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atrás do religioso. A final de contas, já estava acostumado à censura do irmão

Roger. Tinham vivido muitos anos juntos.

Atravessaram o pátio central e entraram na abadia. Percorreram toda

a área sob as velhas relíquias que Gabriel conhecia tão bem. Cruzaram com

vários monges. Alguns eram velhos conhecidos, outros apenas pareciam

familiares.

—Irmão Juan, Irmão Santiago, Irmão Benjamim, Irmão Clovis,... —

saudava conforme se aproximava deles.

Chegaram à porta que dava acesso aos aposentos do abade e dos

irmãos. Gabriel se deteve um segundo e ajeitou a camisa. Uma coisa era não

ter outra roupa para usar e outra muito diferente era não tentar estar o mais

decente possível. Colocou para trás as mechas de cabelo que caíam sobre os

olhos, firmou o cinturão que pendurava a faca e ergueu os ombros. Só então

indicou com os olhos ao irmão da portaria que estava preparado e, só então,

este abriu a porta.

Gabriel entrou em uma sala bem iluminada. Por sorte, fazia um dia

ensolarado e a luz do sol penetrava pelas janelas pequenas, que se

dispunham regularmente em uma das paredes laterais. Vários monges se

dividiam pelo cômodo, sentados em pequenos e toscos bancos, todos

concentrados na leitura. Ao notar a nova presença, alguns deles elevaram a

vista e puderam ver uma figura alta e bem constituída, com um olhar

profundo, entrava no cômodo como se fora o seu.

Gabriel demorou em localizar aquele tinha vindo visitar. Descobriu-o

no fundo, junto a uma das janelas. Uma onda de ternura atingiu seu peito.

Os cabelos grisalhos tomaram conta de sua cabeça naqueles últimos meses e

seus olhos estavam cansados. Ao vê-lo assim teve certeza que tinha encolhido

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os ombros. Forçou-se a ajeitar sua postura e se dirigiu para ele com decisão.

Ao aproximar-se, um de seus pés tropeçou contra um tamborete

abandonado, que caiu no chão. O ruído fez elevar a vista do religioso.

—Gabriel, filho!

A força com a que o religioso segurou seus braços e o brilho úmido

que apareceu em seus olhos disseram a Gabriel tudo o que faltou em

palavras.

—Vejo que levou uma vida agitada nestes últimos meses —comentou

o irmão Roger com gesto severo.

—Diz isso por conta da ferida nas costas? Não foi nada, apenas um

arranhão. Por sorte, o sujeito não me acertou em cheio.

Os homens estavam na cela do monge. Gabriel tinha soltado o

cinturão que prendia a túnica e se desfez dele. O religioso tinha pedido a um

dos criados que levasse uma bacia com água e objetos de limpeza para o

jovem. Tinha tentado também chamar o irmão barbeiro para que cortasse o

farto cabelo, mas Gabriel negou.

—Não mudaste de vida! — recriminou o monge sentado no catre

cheio de palha.

Gabriel passou as mãos molhadas pelo pescoço e começou a enxugar

a água, que caía pelo peito e as costas, com o pano que o monge o entregou.

Olhou por cima do ombro para observar o corte que percorria as costas do

ombro direito para a coluna. Tinha melhor aspecto que dos dias anteriores;

o inchaço tinha cedido e a pele parecia menos arroxeada. Doía apenas

quando fazia algum movimento brusco.

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Aproximou-se da entrada da porta onde tinha colocado a roupa

limpa.

—Em uns poucos dias estará totalmente curada —comentou sem dar

importância enquanto secava as mãos.

—Não pense que irá conseguir me distrair.

Gabriel deixou escapar um meio sorriso. O irmão Roger estava

ficando cada vez mais idoso, mas, como um bom soldado, não deixava passar

nada. E nunca baixava o guarda.

—Nas últimas escaramuças contra os aragoneses, o novo monarca

enviou a cavalaria da Guarda Real. O tipo com que cruzei naquele botequim

não parecia gostar muito que o estandarte real de Aragón esteja neste

momento em Sangüesa. Mesmo eu sendo de Navarro, não gostaria de um

estandarte de Aragón.

Gabriel colocou pela cabeça a camisa que foi enviada pelo irmão.

—Assim segue do mesmo jeito —escutou sem deixar de notar o áspero

tom com que tinham sido proferidas as palavras.

Não virou. Pegou a túnica marrom de lã e a pôs. Ficava pequena.

Estava claro que o antigo dono era um palmo mais baixo que ele; a cruz

vermelha, que identificava aos que levavam aquela túnica como membro do

monastério, aparecia mais próximo do ombro que do coração, onde devia

estar, depois colocou o cinturão; ficando a sós quando finalizou o último

nó, respondeu ao ancião.

—Não me conhece ainda?

O irmão Roger se calou durante uns instantes.

—E agora, para aonde você vai?

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Gabriel deu de ombros. Sabia que o que ia dizer não agradaria ao

irmão, mas não era um daqueles que mentia para escapar de uma

reprimenda.

—A qualquer lugar que obtenha umas moedas. Procurarei por aqui e

por lá. Tenho certeza que consigo algo. Graças a você e aos ensinamentos

que me deram no monastério, estou acostumado a seguir adiante sem

problema.

—Não era essa nossa pretensão.

—Sei. Mas vocês também compreendem que não se pode atar um

cavalo selvagem.

Gabriel escutou um suspiro de resignação enquanto colocava as suas

meias.

—Tinha a esperança de que os anos tivessem feito você mudar de

ideia. Já não é mais um menino. Rezo por você todos os dias —acrescentou o

irmão—. Peço a Deus que ilumine o seu caminho para que encontre seu

lugar neste mundo. Imploro-lhe que lhe faça topar com uma boa mulher,

que lhe dê uma família e que lhe obrigue a se assentar. Mas, se por acaso

nada disto aconteça, sobre tudo, rogo a Deus que ponha em seu caminho

uma pedra bem grande para que não possa movê-la até que fique detido

tempo suficiente em um lugar para refletir sobre o seguinte passo.

Gabriel soltou uma gargalhada.

—Uma mulher, uns filhos? Uma casa? Você melhor que ninguém

sabe que eu gosto de dormir em um descampado. Tudo o que preciso é uma

manta e o céu pontilhado de estrelas.

Virou-se para continuar se vestindo.

—Gabriel, não blasfeme!

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—De acordo, se o preferir, uma manta e o Senhor no firmamento.

—Está feliz com o que faz?

A pergunta o pegou de surpresa. Ficou calado, sem saber o que

responder. Nunca tinha pensado nisso. Levava anos vagabundeando pela

região e não tinha estado mau. Trabalhava com o que encontrava, dormia

aonde deixavam e se divertia o quanto podia. A maioria das mulheres com as

quais teve contato não eram das que se casavam e tinham filhos, e, se por

acaso isto fosse pouco, ele nunca gostou muito de nenhuma delas o

suficiente para trocar de vida.

—O que pretende exatamente?

Conhecia o suficiente os templários para saber que nunca falavam se

não tinham algo importante que dizer.

—Pode enumerar alguns dos trabalhos que desempenhastes nos

últimos tempos?

Gabriel se concentrou para recordá-los.

—Exerci a profissão de ferreiro em Tafalla, de carpinteiro em Viana,

de pedreiro em Artajona, vendi tapeçarias pelos caminhos, fui ajudante de

cozinha em Larraga, acompanhante de peregrinos, vendedor em todas as

partes, recolhi olivas, fui secretário para um rico comerciante de Obanos e

um pouco de tudo em Sangüesa —acrescentou evitando parecer orgulhoso.

O monge ficou pensativo. Estava a ponto de comentar algo quando

soou o sino da comida. O irmão Roger interrompeu a conversa com um

gesto. A emoção de ver o seu antigo escudeiro tinha feito esquecer-se de

atender as suas obrigações.

Levantou-se, uniu as mãos e começou a rezar os sessenta padres-

nossos que antecediam a ida ao refeitório; trinta pelos mortos e o resto pelos

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vivos. Gabriel não teve nenhuma dúvida de que além destes acrescentaria

algum a mais por sua salvação. Depois de um momento observando o seu

preceptor, decidiu que unir às orações não faria nenhum mal. O certo era

que fazia tempo que não orava.

Ao lado do ancião começou a entoar o agradável som em latim que

tinha repetido em inumeráveis ocasiões e que fazia tanto tempo que não

escutava.

Quando Mar ouviu os sinos da igreja de San Miguel, soube que não

seria fácil chegar a sua casa. Divertiu-se muito e, a aquela hora, as ruas

estariam repletas. Sossegou com beijos os lamentos de Teresa antes de sua

partida, deu um longo e emotivo abraço em Isabel, agradeceu a hospitalidade

da proprietária da casa e saiu com pressa.

Antes de começar a caminhar pela rua, olhou a distância. Por cima

de São Martín, seu bairro, o bairro dos francos, elevava-se a fortaleza de

Zalatambor, que seria a residência do monarca nos dias que este

permanecesse em Estella.

A despedida de sua amiga e da pequena tinha feito com que

retornasse o gosto amargo em sua boca. Desde o momento que as encontrara

na rua aquela manhã, não havia tornado a pensar no escasso tempo que

faltava para que chegasse o momento de sua partida. Em menos de vinte e

quatro horas diria adeus a tudo o que tinha conhecido até então e

embarcaria para um lugar e uma família desconhecida.

Inspirou ar para dar ânimo, envolveu o manto e se decidiu.

Começou a caminhar em direção a costa. Atrasar uma tarefa, não a ajuda a

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desaparecer, havia dito seu pai uma vez. Evitou passar os olhos por sobre a

muralha que rodeava a igreja de San Miguel. Não era o momento de

sentimentalismos, ainda restava muito para fazer e devia se apressar se queria

chegar para jantar na casa da senhora Manuela. Dedicaria o dia seguinte para

despedir-se dos lugares e das pessoas.

Alcançar a Rua Major não foi difícil, complicado foi decidir para

onde se dirigir. O lógico deveria virar para a esquerda e cruzar o rio pela

Ponte do Cárcere, era o caminho mais curto até sua casa. Mas descobriu que

havia uma multidão que não avançava, pois uma carreta estava quebrada no

meio da ponte, mudou de ideia. Cruzaria por São Martín e entraria na Rua

das Lojas pela parte contrária. Com um pouco de sorte, chegaria antes que o

monarca aparecesse sequer pela hospedaria dos Unzaga, mais à frente do

bairro dos judeus.

Mas estava claro que aquele dia a sorte não estava ao seu lado.

Quando surgiu a ponte, pareceu que as pessoas que a cruzavam para aclamar

o novo senhor de Navarra não era muita. Poderia passar entre elas sem

muito problema. Mas, mudou de opinião. Os passos dos curiosos eram

lentos até que pararam no centro da ponte. Mar parou ao lado de quatro

lavradores, suas mulheres e uma enxurrada de meninos. Virou de um lado e

a outro em um intento de localizar uma fresta entre as pessoas que lhe

interpunham o caminho. Penetraria pela lateral de um aglomerado. Mas

mudou de ideia por um momento, quando o grupo se moveu para tampar a

fresta que ela ia passar. Não teve mais jeito que se colocar detrás do grupo e

conter a impaciência. Um momento mais tarde, quando por fim a multidão

começava a avançar, um murmúrio, originado nas últimas filas, os alcançou.

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—Passagem à autoridade! Passagem à autoridade! —proclamavam os

gritos.

A multidão foi para um lado e Mar se viu arrastada até a mureta da

ponte. O golpe em suas costas contra o bordo da pedra a deixou sem fôlego.

Deixou escapar um gemido quando a mulher obesa que a tinha empurrado

até ali, pisava em um dos seus pés.

Demorou uns minutos em tirar o seu pé de baixo do pé da outra e

procurar um espaço para poder respirar. Aproveitou o lugar que um menino

deixou vazio, seu pai o tinha colocado nos ombros, para sair da mureta. Um

par de trancos a mais e ficou na primeira fila.

Bem a tempo para ser esmagada pelas enormes patas de uma manada

de cavalos.

Afundou-se entre as pessoas que tinha deixado atrás, enquanto os

grandes homens da vila contemplavam as pessoas diante de seus olhos sobre

suas montarias.

O primeiro de todos ia o baile, seguido dos fiéis, embora não muito

amados, coletores de impostos. Um pouco mais atrás, apareceu o almirante

da cidade, acompanhado pelos fiscais e os agentes policiais. Seguiam os

representantes dos grêmios, com o representante dos curtidores à frente e as

laterais protegidas por dois vendedores. E, em último lugar, o confrade

maior de São Pedro de Lizarra se erguia sobre seu pangaré com a mesma

altivez que se encabeçasse a marcha. Todos os cavalos estavam em formação,

todos vestidos com suas melhores roupas e suas brilhantes esporas. E todos

acompanhados por seu próprio séquito.

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A multidão se fechou no final, como as águas do Nilo atrás do povo

israelita em busca da terra prometida, e Mar teve que disputar novamente o

espaço que colocava cada um dos pés.

Demorou um tempo para conseguir chegar ao outro lado da ponte. E

ainda restava a pior parte. Teve a má sorte de que sua casa estivesse na rua

que faria parte do trajeto da comitiva do rei.

Com dificuldade, aproximou-se da fachada da Casa de Juntas e

apareceu a Rua das Lojas. Um oceano de cabeças lhe deu as boas-vindas.

Impossível aproximar-se de seu lar por vários metros. Olhou para todos os

lados para ver se ocorria alguma ideia que não a obrigasse a ficar ali

esperando, bloqueada, durante várias horas na última tarde na vila. A

fachada do templo no alto lhe deu uma solução.

Subiria até a igreja e passaria pelos fundos das casas da colina até o

extremo oposto da rua. Se chegasse à casa dos comerciantes e descesse pela

colina da esquerda, só teria que se preparar para cruzar a rua principal e

alcançar a sua.

Preparou-se para cruzar a praça. Para isso, teve que passar por

debaixo de uma carroça, que já estava com umas vinte pessoas em cima para

observar melhor o que ia acontecer, e começou a subir para São Pedro De La

Rua, a principal do bairro. Uma vez na parte alta, teve que rodear o casarão

do distrito.

Tocou a bolsa que levava pendurada no cinturão aonde levava a

chave de sua casa. Ainda estava ali. O responsável pelo grêmio tinha insistido

que guardasse até o dia seguinte.

Caminhava com cuidado para não manchar seu melhor calçado.

Cada vez que os muros de uma casa terminavam, parava um minuto e

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esquadrinhava pela rua anexa o que acontecia na rua principal do bairro dos

francos. Depois de percorrer o exterior da terceira moradia, começara a

escutar os clamores procedentes da multidão. Na quarta, um Viva o rei!

Chegou aos seus ouvidos com toda claridade. Na quinta, os Que Deus lhe

guarde muitos anos! Eram respondidos pelo clamor popular. Ao passar por

detrás da sexta, pôde entender um Viva o rei! E, quando os gritos isolados se

converteram em um clamor geral, Mar soube que o monarca estava a ponto

de entrar na rua.

A curiosidade foi maior que o seu desejo para chegar a seu destino e

entrou na ruela mais próxima, a mais estreita de todas, com cuidado para

não tropeçar com as pedras do caminho. Já alcançava o final da mesma

quando a escuridão tomou conta de si. Elevou os olhos para descobrir a

causa da falta da luz naquele lugar e se deparou com uma figura que tampava

a entrada da rua.

Ao princípio não o reconheceu. A luz entrava pelas costas do

desconhecido e o rosto ficava oculto na penumbra. Mas não teve dúvida de

que era um homem.

—Ora... Ora!. Se não é a vizinha de frente. Do que está se

escondendo?

O filho do comerciante. O abominável filho do comerciante. O

detestável filho do comerciante. O odioso filho do comerciante. O

desumano filho do comerciante.

Ele tinha dezenove anos, cinco menos que ela, mas, cada vez que o

via, uma sensação de temor se apoderava de sua mente. Não era o seu

tamanho que a amedrontava, nem que o gesto de sua boca se transformasse

em um sorriso pérfido muito frequentemente, nem que quando o

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encontrava por acaso, a olhasse como se ela fosse parte de sua comida

daquele dia, mas sim seu alarme ante aquele imprestável se devia a que o

tinha visto mais de uma vez torturando a algum pobre gato vagabundo, que

tinha sido mais lento que o resto e tinha tido a desgraça de cair nas garras

daquele detestável aprendiz de ser humano.

—Me deixe passar!

Mar cruzou os braços sobre o peito e ficou o mais direita que pôde,

não sabia se para intimidar aquele bruto ou para reafirmar sua própria

serenidade.

Entretanto, sua atitude não teve nenhum efeito naquele animal. O

viu apoiar as costas na parede, depravado. Com a ponta do calçado levantava

as pedras da rua e as lançava para diante.

—Pode-se saber aonde vai com tanta urgência? —inquiriu, olhando-a

de soslaio.

O sujeito esboçou aquele perverso sorriso desagradável e Mar soube

que tinha perdido a possibilidade de escapar. A rua era muito estreita para

correr e tentar passar, ele não teria mais que esticar um braço para capturá-la.

Gritar tampouco lhe serviria de nada pois a multidão era ensurdecedora. O

rei estava cada vez mais perto e a multidão fazia coro o nome do monarca.

Ninguém a ouviria, nem sequer aqueles que estavam de costas na ruela. A

única saída que ficava era voltar atrás e escapar por qualquer das outras ruas.

—Não acredito que isso seja de sua incumbência — espetou ela em um

intento de lhe entreter para que não se movesse de onde estava.

Ele começou a limpar as unhas da mão esquerda com uma lasca que

tinha tirado não se sabia de onde.

—Poderia ser...

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Mar ficou lívida.

—A você? —atinou a dizer.

—Por que não? Na sua idade, não acredito que vá encontrar nada

melhor que o que eu ofereço. E, conforme parece, não sou um mal partido.

Dizem que seu pai era apenas um simples ourives.

O jovem se ergueu e começou a caminhar para ela com passo felino.

Mar ficou tão confusa que não foi capaz de reagir. Estava propondo

matrimônio aquele animal? Quando se recuperou, ele estava ao seu lado. Já

era muito tarde.

Antes que se percebesse, ele a segurou pelos braços e a esmagou

contra a parede.

Mar tremia por dentro, mas sabia que não podia demonstrar o

quanto a atemorizava. Aquilo era o que ele pretendia, assustá-la suficiente

para tê-la a sua mercê.

—Ou acaso acredita que não estou a sua altura? —sussurrou junto a

sua boca.

Um aroma de suor rançoso e resíduos pútridos alagou os seus

sentidos. Mar tentou afastou o rosto do jeito que pode na posição em que

estava. Outra nova baforada daquele mau hálito e estava certa de que

acabaria vomitando.

— Me solte! —resmungou com os dentes apertados e os olhos fixos na

comitiva real que via passar à uma distância mais abaixo.

Nesse mesmo momento, um loiro jovenzinho, de uns quinze anos,

cruzava o espaço que as duas casas deixava livre montado em um corcel. A

altura do cavalo fazia que o jovem se elevasse por cima das pessoas. Era o

único que tinha o ângulo suficiente para observar o que estava acontecendo.

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Mar depositou a esperança nele. «Se virasse um pouco a cabeça...»,

entretanto, não o fez. Não virou, não a olhou. Mar o viu desaparecer atrás da

casa que estava a seu lado.

—Ou...? —o riso do agressor, com o tom de quem sabe que vai ganhar

o combate.

Mar sabia que era inútil, mas iria resistir, não se deixaria caçar como

um coelho assustado. Reuniu tudo o que pôde para tentar conseguir que

aquele selvagem a liberasse.

—Me solte! —repetiu com fúria.

Soltou-a. Soltou os braços e a agarrou pelo pescoço com uma mão e

com uma força descomunal a mantinha aprisionada contra o muro,

enquanto com a outra começou a percorrer seu corpo por cima da roupa.

Começou pelas pernas, subiu pelas nádegas, percorreu-lhe a cintura e seguiu

subindo. Agarrou um dos seios e começou a apertar com força. Mar teve

certeza de que, nesse momento, ela era para ele como um daqueles gatos que

torturava. Esse mero pensamento fez arrepiar o pêlo da nuca.

Disposta a fazer algo que chamasse a atenção da multidão que se

amontoava a poucos passos dela, olhou de novo para ali.

E desta vez teve sorte. Um dos componentes do séquito do rei os

olhou. A viu. Ficou com a boca aberta, os olhos direcionados para o agarre

daquela besta em sua garganta. E, quando Mar se convenceu que estava

salva, viu um sorriso cúmplice aparecendo na boca do desconhecido e como

ele desaparecia pelo mesmo lugar que tinha passado o monarca em pessoa

um pouco antes.

Deve ter sido aquele gesto que retornou sua valentia e lhe deu a força

para agir, aquele gesto de desprezo e a certeza de que sua segurança dependia

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unicamente dela. Não pensou duas vezes, subiu o joelho o mais rápido que

pôde e, com toda sua força concentrada naquele ponto, o golpeou na virilha.

O animal caiu pesadamente como se estivesse com um ferimento de

morte. E Mar saiu correndo para a segurança da multidão e não demorou

nem um segundo em mesclar-se com ela.

A escolta do soberano continuava passando e ela não podia cruzar

para o outro lado, a menos que fosse pisoteada pelas patas de seus cavalos.

Nervosa, tentava esquadrinhar por cima das pessoas por ver se aquele desfile

iria acabar logo. Em um desses momentos se chocou contra um corpo

robusto. Um nó no estômago se formou só de pensar que o filho do

comerciante a tinha localizado de novo.

—Menina! Estão enlouquecidos!

Nunca tinha se alegrado tanto de ver a senhora Manuela.

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CAPÍTULO 03

Ao meio-dia, quando os sinos tocavam, o irmão Roger partiu para a

igreja deixando Gabriel na quarto. «Descansa um momento», lhe

aconselhou.

Gabriel não desperdiçou o conselho. Deitou sobre o catre, colocando

as mãos sob a cabeça e ficou pensando. Voltar lhe trazia para a memória

antigas lembranças. Tinha chegado ao monastério quando era um bebê.

Conforme tinha contado o irmão Roger, seu pai ficou viúvo e tinha

encontrado um trabalho seguro com a encomenda dos templários, trazendo-

o com ele. Gabriel perdeu o pai quando este morreu afogado. Sempre que

pensava nisso, afastava da mente aquele rosto inchado e deformado, e se

centrava no do irmão Roger. E é aquele homem que já entrava na velhice,

tinha sido sempre, e seria no futuro sua única linhagem. Evitou pensar na

conversa que um momento anterior tinha mantido com o monge.

Muito tempo depois, quando o estômago lhe pediu algo mais que

continuar deitado, se levantou e saiu do aposento do religioso. Os ofícios já

deviam ter finalizado.

Encontrou o seu mentor saindo dos aposentos do comendador. Este

lhe entregava um pergaminho que o irmão Roger escondeu entre as dobras

de sua túnica. Por que não levaria nas mãos? Quando o ancião se pôs a

partir, encontrou Gabriel.

—Como sempre, chega na hora certa —disse com um sorriso

enquanto assinalava a fila de monges que se dirigiam ao refeitório.

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Gabriel assentiu. Quando era um menino tinha o costume de passar

as manhãs «perdido» e aparecer sempre no momento que soava os sinos que

chamavam para o almoço.

—Concordo.

—Se adiante. Eu ainda tenho que ir até minha câmara. Preciso fazer

algo —comentou.

Gabriel notou como o monge levava uma mão à cintura, justo no

lugar onde tinha guardado a missiva que acabava de receber.

Tal e como esperava, a comida era frugal —uma sopa de pão e um

guisado de carne eram suficiente alimento para aqueles soldados— e era

estranho. E não era por comer de costas ao resto daquelas pessoas, nem

tampouco por fazê-lo em uma mesa com toalha, nem sequer por usar uma

tigela própria, mas sim, por ter uma multidão de criados, esperando que

solicitasse a bebida com um silencioso gesto.

O resto da tarde transcorreu sossegadamente. Gabriel percorreu o

monastério sem que ninguém o detivesse e nem o interrompesse. Ficou um

momento nas cavalariças para entreter-se com os animais. Os cavalos

seguiam sendo a prioridade dos monges-soldado. Os corcéis viviam quase

com toda segurança e em melhores condições que os donos.

A chamada para a novena o fez retornar para o monastério e decidiu

acompanhar seus anfitriões em suas obrigações. Encaminhou-se à capela.

Entrou com os primeiros e parou de um lado dos pilares centrais, à

espera de ver o seu mentor. Já tinha aparecido grande parte dos monges

quando o viu. Chegava apressado, com as mãos sob a túnica branca. Quando

o religioso olhou para ele, fez um gesto e o enviou para frente. Gabriel

obedeceu e se aproximou até onde o ancião parou.

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O capelão começou a repetir o primeiro dos pais-nossos, o resto o

seguiu e, um instante depois, um murmúrio rítmico subia para o teto que

coroava a nave. Gabriel juntou as mãos e baixou os olhos. Tentou seguir o

ritmo das orações, sem ser consciente que o fazia, elevou a vista para o altar e

deixou de escutar.

As trevas começavam a invadir o templo. As grossas tochas, colocadas

nas laterais do templo, não conseguiam iluminar nada além dos três degraus

que separavam o altar da nave central. De um lado, Gabriel pôde ver a

imagem, tão familiar da Virgem das Hortas, imaginou mais que viu, o

Menino Jesus sentado no regaço com a mão levantada em sinal de bênção.

Um ruído as suas costas o fez voltar para a realidade. As preces

murmuradas haviam sido tranquilizadoras, agora um alarmante rumor

chegava do exterior. Gabriel deu a volta no momento em que as portas da

igreja se abriam de par em par e uma patrulha de soldados invadia o sagrado

lugar. Interromperam as rezas e desfizeram as fileiras.

Um silêncio entristecedor imperou no interior do templo.

—Irmão! — escutou uma voz por detrás das cotas de malhas com as

que os soldados se protegiam— Estes...

O abade deu um passo à frente. Como responsável pelo convento,

correspondia a ele solucionar qualquer problema que surgisse. O irmão

Clemente era um homem alto, maior que o irmão Roger. Gabriel sempre

tinha se impressionado com a sua altura, sua postura e dignidade. Apesar da

idade, dos cabelos grisalhos que povoavam a barba e da permanente

umidade que residia em seus olhos, sobressaltava o halo de majestade que

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irradiava de sua figura. A túnica negra, que vestia como responsável pelo

monastério, incrementava ainda mais sua importância.

—Senhores — saudou com semblante severo.

Um dos militares, que se encontrava no centro da primeira fila,

aproximou-se dele e lhe entregou um documento.

—IL est o mandat du roi¹. (Estas são as ordens do Rei)¹

O abade estendeu uma mão e pegou a missiva. Manteve durante uns

segundos o olhar para o porta-voz dos soldados, que ousara interromper a

tranquilidade do convento, antes de começar a abri-la. Leu devagar, sem que

um só gesto revelasse a natureza das notícias. Quando finalizou, fez um sinal

ao irmão Roger para que se aproximasse.

O religioso atendeu ao chamado, pegou a carta oferecida e pousou os

olhos na missiva. Gabriel o viu abrir a boca para dizer algo, mas o abade o

deteve com um gesto.

—Pode traduzir minhas palavras? — perguntou este.

O irmão Roger assentiu.

—Quando quiser.

Gabriel notou como o abade inspirava antes de começar.

—Eu gostaria que me informassem quais são as ordens exatas que

trazem.

O monge traduziu ao francês as palavras que o abade acabava de

pronunciar.

—On nous a commandé de vous conduire a ville d’Olite cet après-

midi² —respondeu o soldado. (Foi ordenado que o abade responsável seja

conduzido esta mesma tarde para a vila de Olite)²

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O irmão Roger dissimulou o desgosto que aquelas palavras lhe

provocavam e as transmitiu ao abade.

—Me permitam uns minutos antes de lhes acompanhar — respondeu

o monge.

O tradutor repetiu as palavras em francês. O soldado respondeu algo

exaltado. O pânico ficou evidente no rosto do irmão Roger, que deu um

passo para trás. O irmão Clemente pegou no braço do monge e o obrigou a

explicar o que o militar acabava de dizer.

Gabriel soube que algo ia mal quando o soldado tocou o punho da

espada. O viu se voltar para a tropa que o acompanhava e ordenar algo com

rudeza.

Os soldados se deslocaram com rapidez e antes que Gabriel pudesse

descobrir o que exatamente estava acontecendo já os tinham rodeado.

—Mas o que...! —exclamou quando apareceram dois homens com a

espada desembainhada detrás dele.

Não tinha nem ideia do que estava acontecendo ali, mas não ia

deixar mata-lo sem defender-se. Instintivamente, levou a mão à faca que

sempre levava na cintura, sem recordar que seus escassos pertences ficaram

no quarto do monge junto à surrada roupa.

Olhou ao seu redor em busca de uma fresta para poder se esgueirar,

mas os soldados eram muitos e não parecia fácil escapar do círculo aonde os

tinham cercado. Gabriel soube que aqueles homens não só sabiam defender-

se como estavam bem organizados e, por sua sinistra expressão, não era

difícil deduzir que não eram dos que deixavam escapar uma presa.

E para sua desgraça, a presa eram eles.

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Calculou o risco que tinha se seus captores saltassem sobre ele

quando se aproximava do abade e o irmão Roger. De onde estava não

conseguia se inteirar do que acontecia. Continuou se movendo, e a

autoridade principal do convento se virou para o restante dos monges.

—Não são notícias boas —anunciou. Os irmãos se agruparam em

torno dele — Estes homens trazem uma ordem de nosso novo rei, Luis I, para

nos levar até Olite.

—Vão nos prender? —perguntou alguém com voz trêmula.

O abade assentiu em silêncio. Um murmúrio de pânico se elevou

entre os religiosos.

—Sabíamos que isto poderia acontecer —interveio de novo—. As

notícias que chegavam da França não traziam esperanças. Nossos irmãos de

outra cidade já sofrem há dias nas masmorras. Agora, o Senhor quis que nós

fôssemos os que lhes acompanhe em seus padecimentos.

Gabriel era incapaz de acreditar no que estava escutando. Observou

com espanto como um a um, os religiosos foram baixando as cabeças em

sinal de submissão e se resignavam a seu destino. Não se pôde conter.

—Partirão com eles sem opor resistência? Irão se deixar capturar sem

fazer nada para evitá-lo? Sabem melhor que ninguém que poderíamos detê-

los. Chamem seus criados! Ergam as suas espadas! Onde está seu orgulho ?

Por Deus, também são soldados! O melhor exército do Ocidente. Os

salvadores do cristianismo. São cavalheiros de Deus, não dos homens. Não

devem ao poder real, devem obrigação ao mandato da Igreja. Olhem bem,

não é impossível. Poderemos com eles!

Foi então que desatou a tormenta.

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42

A um leve gesto do capitão, dois dos soldados reais se aproximaram

de Gabriel e o cercaram. O terrível golpe de um deles na cabeça com o

punho da espada o deixou cambaleante e a ponto de desabar. O arrastaram

para a escuridão agarrado pelos braços.

Quando o irmão Roger se deu conta do perigo que corria Gabriel,

desejou ir a seu auxílio. Foi impossível. Ante o alvoroço, o resto dos guardas

se fechou em torno dos monges com as espadas na mão. Mas não era só

aquela a causa de sua impotência. Os monges não podiam defender-se. Eles

eram soldados, era certo, soldados da cristandade, soldados e monges. A

regra era muito clara: jamais poderiam ferir um cristão. Aquela era uma das

razões que Gabriel nunca pode entrar para a ordem. Uma das coisas que

nunca tinha compreendido. Uma das que nunca tinha aceitado.

Do lugar mais sombrio do templo, onde tinham levado Gabriel,

chegaram uns golpes secos seguidos de uns gemidos abafados. O pânico

apareceu no rosto do ancião. Olhou apavorado ao abade, enquanto se

debatia entre seus temores mais escuros e a obrigação devida à regra. O

abade tomou para si a angústia do monge.

—Traduza —lhe ordenou—. Acompanharemos de boa fé, sem opor

resistência. Nosso único pedido é que deixem de golpear o rapaz.

O irmão Roger se apressou a traduzir a solicitude e esperou

angustiado a resposta. O capitão demorou em responder. O silêncio se

apoderou do ar e todos pareceram conter a respiração. Um uivo quase

desumano chegou até seus ouvidos.

—Laissez-o!³ —bramou o capitão. (Deixem-no)³

No mesmo instante que voltou para ditar a ordem, o irmão Roger se

aproximou para onde procediam os sons. Nem via por onde pisava. Uma

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estreita abertura, logo conseguiam entrar os poucos raios de luz que ainda

escapavam do entardecer, foi permitido chegar até ele sem tropeçar. Os

homens não tinham acatado a ordem de parar o ataque e continuavam

chutando Gabriel sem piedade.

Este tinha tentado proteger a cabeça com os braços, mas quando um

dos soldados acertou a parte baixa de suas costas, se encolheu de dor com a

única esperança de continuar respirando depois de que terminassem com

ele.

O religioso o encontrou estendido no chão, contorcido de dor.

Tentando se afastar dos golpes que chegavam de várias partes. Ao ver que a

tortura não finalizava, o monge se estendeu sobre ele na intenção de protegê-

lo. Encaixaram um golpe seco sobre a sua têmpora e tentou cobrir ainda

mais o corpo que auxiliava no chão. Como se fundir-se a ele o ajudasse na

espera de um milagre. Ainda suportou um par de golpes a mais antes de

saber que o capitão estava a seu lado.

Enjoado como estava desde que sentiu o primeiro golpe, não escutou

como o capitão repetia a ordem que tinha gritado um momento antes e que

os homens não tinham obedecido.

A surra parou.

Gabriel não notou como o irmão Roger buscava o pulso em seu

pescoço, nem como o tiraram arrastado da igreja, nem escutou os

infrutíferos intentos do monge para explicar que aquele jovem, que tinha

recebido a surra, não formava parte da ordem. Gabriel não percebeu como a

umidade do chão do pátio se filtrava por sua roupa nem se inteirou como,

horas depois, tiraram-no do monastério. Nem, é obvio, chegou a ver o casal

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de corvos que, posados sobre a cruz dourada da capela do templo, observava

com interesse como se afastava a triste comitiva.

O jantar na casa da senhora Manuela tinha terminado. Os homens

abandonaram a mesa e se encontravam ao lado do fogo, afastados das

conversas das mulheres. A proprietária da casa e ela mesma eram as únicas

que permaneciam sentadas. Mar observou Teresa com carinho. A menina,

esgotada depois de todas as emoções do dia, tinha apoiado a cabeça em seu

colo e adormeceu. Isabel, que tinha terminado de amamentar seu bebê,

aproximou-se com ele em seus braços e se sentou no banco. Aquele era o

momento certo para o comunicado.

Estava a ponto de abrir a boca para começar a falar quando a

senhora Manuela se adiantou.

—Me explique de novo como irá chegar até lá — Pediu a proprietária

da casa enquanto se levantava e começava a recolher os pratos.

Isabel e Mar lançaram um olhar cúmplice. Aquela era a terceira vez

que contava os detalhes da viagem.

—Depois de amanhã parto com os monges beneditinos e um grupo

de peregrinos franceses do monastério de Irache. O prior me disse que a

maioria deles nos deixariam em Burdeos, mas os religiosos irão comigo até

Nantes. Depois, terei que encontrar uma maneira de chegar a Rennes —

resumiu—. Não acredito que seja difícil —acrescentou ao ver o gesto de

preocupação da senhora Manuela.

—Ali é onde reside sua prima? —Mar assentiu—. Explicaste-me isso

muitas vezes, mas continuo sem entender. Sem saber por que esse sacerdote,

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que se diz amigo de seu pai, te incentivou a cometer semelhante loucura.

Além disso, este seu parente, se for tão poderoso como dizem e tem tanta

vontade de que vá até eles, não entendo como permite que percorra sozinha

milhares de léguas sem levar em conta o perigo que pode correr.

Mar não quis dizer que aquilo era precisamente o que mais gostava

da viagem. A parte em que conheceria outras pessoas, outras terras, outros

povos. Provavelmente seria o mais excitante acontecimento de sua vida.

Achava que na França seria o mesmo em Navarra; uma vez que chegasse à

casa de sua prima, sua vida se limitaria, com um pouco de sorte, a ser mais

uma de suas acompanhantes.

—Mãe... —comentou Isabel elevando a voz—, sabe que Mar esperou

pelo enviado muito tempo e este não chegou nunca. Não é a primeira

mulher que viaja sozinha. —Fez um gesto com a mão e assinalou para fora —.

Você mesma as vê passar diante de sua casa a caminho de Santiago.

A senhora Manuela não deu importância do que sua filha lhe

indicava —preferia não dizer o que opinava daquelas mulheres— tomou as

mãos de Mar com doçura.

—Fica conosco —insistiu—. Sabe que nesta casa sempre haverá um

lugar para você.

Mar tentava toda noite controlar as emoções e não pôde conter-se

por mais tempo. Os olhos ficaram úmidos ante o emotivo pedido de sua

vizinha. Isabel viu seus esforços para manter a serenidade e roçou o ombro

com suavidade para lhe infundir ânimo.

—Mãe! Não vê que a está deixando nervosa? Além disso, Mar é uma

mulher e não pode pretender retê-la a seu lado durante o resto de sua vida.

A mulher passeou lentamente o olhar pelo rosto das duas jovens.

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—Tem razão. Já tem idade suficientes para saber o que faz. As duas os

têm. Eu em sua idade já tinha parido cinco filhos —acrescentou enquanto

colocava as tigelas sujas em uma bacia, como se a debilidade de um

momento não tivesse tido lugar.

Aquela era a ocasião que Mar estava esperando.

—Hoje dormirei em minha casa. Quero passar a última noite nela.

—Ninguém saberá que está sozinha — apoiou Isabel antes que sua

mãe pudesse abrir a boca.

A senhora Manuela parou o que fazia. Mar notou que suas mãos

tremeram durante um instante sobre a jarra.

Isabel se preparou para auxiliar a amiga.

—Bem —foi direta a resposta da mulher—. Nicolás, vá à casa do

ourives e acenda uma luz.

Mar e Isabel trocaram um olhar de triunfo.

O carpinteiro se levantou pesadamente da banqueta e se dirigiu para

a porta.

—Não se incomodem, de verdade. Só será uma noite.

—Vá —insistiu a mulher a seu marido—, e você não lhe ocorra abrir a

porta a ninguém —acrescentou, assinalando em direção a Mar.

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CAPÍTULO 04

Mar tomou as providências que a senhora Manuela pediu; certificou-

se de que a tranca que fixava a porta ficasse bem encaixada e passou a chave.

Embora a senhora fosse insistente em falar das precauções necessárias, iria

tomá-las de toda forma. Desde que tinha entrado em sua casa, não tirava da

cabeça o desagradável encontro com o filho do comerciante aquela tarde.

Menos mal que não o tinha mencionado no lar da vizinha. «Se o tivesse

feito, não teria podido me despedir da casa», pensou enquanto se assegurava

também de que a fresta da janela ficasse bem fechada.

Apoiou-se na porta um instante. Precisava tirar forças antes de

comprovar pela última vez que estava tudo preparado.

«Ao fim chegou o momento.»

Tinha colocado todos os seus pertences em uma pequena arca. Vinte

e quatro anos de sua vida em tão breve espaço. E no fundo, pensou com

tristeza, o resumo de sua existência se limitava a quatro coisas.

Abriu a tampa da arca. Dois vestidos, uma camisa, uns sapatos, um

cinturão, uma capa e uma manta; confirmou enquanto levantava uma a uma

cada um dos objetos. Voltou a deixar tudo em seu lugar.

Aproximou-se da mesa. Sobre ela tinha deixado a bolsa de couro que

levaria consigo, dentro dele, guardava as únicas coisas de valor que possuía.

Introduziu uma mão e começou tirá-las.

Em primeiro lugar, segurou a bolsa onde tinha depositado o

dinheiro e a agitou. O alegre som das moedas confirmou que tudo estava em

ordem. Deixou cair o conteúdo sobre a mesa. A maioria era dinheiro

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sanchetes, a moeda local. Algumas mostravam uma meia lua e uma estrela;

em outras, podia-se apreciar um castelo junto à lua, mas a maioria delas

estava tão gasta que o desenho não dava para distinguir. Iria no dia seguinte

a casa de troca tentar conseguir dinheiro francês. Seria melhor para quando

cruzasse a fronteira. Estendeu com cuidado. Ali estavam todas as economias

da família e o que ela tinha ganhado com a venda do trabalho que seu pai

tinha deixado finalizado quando morreu. Esperava que fosse o suficiente

para poder bancar a viagem no dia seguinte.

Recolheu o dinheiro e voltou a guardar. Da bolsa, tirou um objeto

largo protegido por uma parte de tecido e foi desembrulhando com cuidado.

«É uma obra de arte», o examinava enquanto abria o tecido. Isso era ao

menos o que parecia aquela lâmina de cobre com um precioso entalhe

assinado por seu progenitor. O encontrou no arca do quarto de seus pais,

entre as dobras de um velho lençol. Mar tinha esquecido por completo de

sua existência. Seu pai tinha começado quando ela era uma menina, teria...

doze ou treze anos. «Mais ou menos quando ocorreu o trágico incidente com

o monge», calculou.

Passou os dedos pela superfície para sentir seu relevo. Aproximou a

vela, situada no outro lado da mesa, para apreciar sua beleza. O fundo estava

talhado por diferentes arestas em vários tons de azuis. Seguiu a linha de cor

turquesa com a ponta do dedo indicador. Um pequeno sorriso apareceu nos

lábios. Podia ver seu pai inclinado sobre a peça, trabalhando com as distintas

casas de abelha com o buril e as preenchendo depois com massa de vidro. Às

vezes, era ela mesma que sugeria as cores que queria colocar, e nos últimos

tempos, até realizava as misturas: chumbo e prata para os amarelos, ferro

para o vermelho, cobalto para o azul, manganês para o violeta, zinco para o

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branco..., recordou o tempo que acariciava as figuras que completavam a

lâmina. Os dois anjos nas laterais e ao centro o Todo Poderoso, seu pai

nunca fez nada igual. Aquela imagem de bronze dourado tinha uma sutileza

fora do comum. Não era uma peça de dimensões exatas, mas o resultado

parecia muito mais real, mais autêntica que outras que já tinha visto. Os

entalhes eram menores que de outras peças, mas isso se devia a que as pedras

sobre a peça pareciam incrustadas e limitavam o espaço. Mar apalpou a

suavidade dos desenhos e se deleitou com a sua cor vermelha intensa.

Quando encontrou a lâmina, a primeira coisa que pensou era que

tinha que haver outras como aquela. Não parecia uma obra qualquer, mas

sim um dos lados de um pequeno cofre, por mais que tenha procurado, não

localizou nada parecido em casa.

Recolocou a lâmina junto ao tecido com delicadeza e a deixou ao

lado das moedas. Tocou outra joia que levava consigo.

O anel que ganhou de seu pai; um singelo aro de prata decorado

com um pequeno ramalhete esculpido com flores de lis que abrigava uma

safira azul de cor intensa. «Da cor de seus olhos», havia dito. «Não o perca”.

É sua única herança.»

Mar apertou o punho enquanto continha a dor que aquela

lembrança causava. Não soltou nenhuma lágrima. Não podia deixar escapar

nenhuma só, ou correria o risco de que seu pranto se convertesse em uma

corrente. Quando abriu a mão, em sua palma aparecia quatro profundas

meias luas que as unhas tinham deixado sobre a pele.

Depositou o anel sobre a bancada.

Deixou para o final o que possivelmente foi o mais importante; as

cartas que a tinha feito tomar a decisão de partir.

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Desatou o laço que unia os manuscritos e separou o primeiro. Uma

escritura reta e prática se desdobrou na sua frente.

A descobriu há vários meses, junto à gaveta, e teve que revisá-la várias

vezes para assimilar o conteúdo. Era a sua família, uma família na França. Ao

menos uma prima, chamada Blanche de Dreux, filha de um dos irmãos de

seu pai.

Na missiva, sua prima escrevia a seu pai contando que descobriu

recentemente que ele existia. A carta dizia que em uma celebração em honra

de seu pai, o conde da Bretanha, um religioso espanhol, pertencente à

Ordem de Císter, comentou que conhecia um ourives de Navarro de origem

francesa que tinha certa semelhança com o conde. O homem afirmou que a

aparência era assombrosa e falava para quem quisesse escutar sobre a incrível

semelhança. Quando alguém comentou que provavelmente era imaginação

dele, o religioso se ofendeu e reinteirou que não era fruto de sua mente. O

ourives havia feito um crucifixo para o seu monastério e guardou bem o seu

semblante. Quando ficaram a sós, continuou escrevendo sua prima, seu pai

confidenciou a sua filha que fora realmente do seu irmão a pessoa que o

religioso mencionara. As informações coincidiam: nome, função e os

detalhes físicos, não havia indício algum para duvidar da palavra do

religioso, Blanche confessava que aconselhou ao seu pai um pouco de

cautela ante aquela surpreendente descoberta. Entretanto, a cautela deu

passo à dor quando o conde faleceu de repente uns meses depois, em

novembro do D.C de 1305.

O seu tio teria sido totalmente esquecido, acrescentava ela, mas a

presença daquele monge a fez recordar o desejo de seu pai de ter notícias de

seu irmão mais novo. Entregou aquela carta ao religioso para que a

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entregasse quando retornasse a sua terra, com a esperança de que chegasse às

mãos adequadas. O resto era uma mera descrição dos acontecimentos na

família nos últimos anos, nascimentos, bodas e falecimentos de alguns

familiares que Mar não conhecia. A missiva finalizava com o desejo de que a

família se unisse, do jeito como seu pai ansiou, quando conheceu a

possibilidade de abraçar seu irmão.

Mar não sabia se ficara mais desconcertada em saber que seu pai não

era filho único, como sua mãe contara todos aqueles anos, ou descobrir que

além disso era de família nobre.

Não havia mais cartas, não parecia que seu pai tivesse enviado

alguma resposta, nem que sobrinha ou tio trocaram alguma missiva a mais,

por isso Mar pensou tanto antes de se atrever escrever. Passado dois meses da

morte de seu pai, em um dia que estava bem triste, decidiu que deveria

encontrar um futuro mais excitante, que acabar se casando. Era uma ideia

simples e decidiu fazê-lo, sem nenhuma esperança de obter resposta. Mas,

para sua surpresa, sua prima respondeu com toda gentileza dando graças ao

Senhor por havê-la encontrado depois de tantos anos, expressando seu

desejo de encontrá-la e afirmando mil vezes o convite de que passasse o resto

de seus dias em sua companhia. Do mesmo modo, insistiu que enviasse um

desenho com seu retrato, assegurou que penduraria diante de sua

penteadeira para tê-la presente em todas suas orações.

E antes que Mar houvesse resolvido alguma coisa, chegou outra carta.

Uma em que sua prima afirma que enviaria um mensageiro para acompanha-

la na volta a casa.

Quatro meses depois, o mensageiro não aparecera ainda. No

princípio, se alegrou —podia retornar a sua velha pretensão de conhecer

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mundo—, mas depois reconsiderou. O dinheiro acabaria logo. Por um lado,

as mulheres não podiam trabalhar; —algumas viúvas conseguiam com muita

sorte se encarregar dos negócios de seus maridos, e inclusive para elas era

complicado, tanto que frequentemente se casavam com um dos cunhados

para poder manter o comércio em seu poder—. Por outro lado, não tinha

intenção alguma de unir-se em matrimônio com um qualquer por puro

desespero. E desta maneira, que possibilidades tinha? Nenhuma. Conhecia a

situação de algumas mulheres que subsistiam. E teria que ter muito cuidado

para não se arriscar sem necessidade. Além disso, a qualquer momento

apareceria o novo ourives e ficaria sem casa. Tampouco podia se alojar na

casa da senhora Manuela durante mais tempo; ficava envergonhada de

abusar da caridade dos Alvar. Assim decidiu aceitar o amparo de sua própria

família. E já era hora de fazê-lo; sairia em busca do seu passado. Esperava

encontrar o caminho, seguiria o trajeto em qualquer caso. Estava

determinada a aproveitar a oportunidade que o abade do monastério de

Irache a brindava, acompanhando alguns dos frades até Nantes. Dali

encontraria uma maneira de chegar a Rennes da forma mais segura possível.

A viagem à França teria que servir para satisfazer o velho desejo de aventuras.

Mar ficou um bom momento ali sentada, tocando tudo que colocou

sobre a mesa. Poucas coisas. Coisas singelas, sem muito valor, mas vitais para

começar sua nova caminhada.

* * *

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Assim que se moveu, sentiu como se uma centena de cavalos, um

após o outro e a passo lento, passassem por cima dele. Tentou virar a cabeça.

Uma dor aguda atravessou de um lado a outro. Apertou os dentes para

tentar suportar.

—Já acordou —ouviu de seu lado—. Ah Deus obrigado!.

—Gabriel, Gabriel! —sussurrou outra pessoa—. Está bem?

Se estava bem? Bom Deus! Não sabia se estava vivo.

Custou abrir as pálpebras. Sentia como se encarregasse sozinho da

edificação da igreja de Nossa Senhora das Hortas. Cinco cabeças, que não

pôde distinguir, estavam a seu redor. Ouviu emitirem um suspiro de alívio.

—O deixem respirar!

Quatro dos rostos se retiraram. Unicamente a face do irmão Roger

continuou em seu campo de visão.

—O que... o que aconteceu?

—Não recorda?

Gabriel estava confuso. Tinha que se lembrar de algo importante? A

cabeça estava a ponto de estalar e de se transformar em pó. Esperou uns

instantes para a dor diminuir e voltou a abrir os olhos.

—Não —confessou.

—Os soldados franceses o espancaram.

Notou então que, aonde o tinham colocado, se movia, fazia frio e era

noite. Suas mãos estavam atadas. E foi então que se deu conta que estava

preso.

A confirmação que necessitava apareceu quando um cavaleiro a

cavalo se aproximou da carroça.

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—Tailandeses-toi!4 —gritou o soldado zangado enquanto agitava uma

tocha para dentro.

O irmão Roger o olhou um instante. Gabriel pensou que ia

responder, mas voltou a sentar de seu lado sem dizer uma palavra.

Percorreram mais de uma légua sem conversarem nenhuma só palavra, até

que os nervos de Gabriel se agitaram mais que sua sensatez.

—Aonde nos levam? —sussurrou inquieto.

Tentou se endireitar. O monge o impediu; pôs uma mão sobre seu

ombro e o obrigou a se deitar.

—Deve descansar, esteve muitas horas sem sentido.

—Deixaram que nos apanhasse —recordou confuso.

—Obedecemos. Sabe que era nosso dever.

Gabriel não soube o que responder, ficou calado, perdido entre os

entrecortados pensamentos.

Quando pôde concentrar-se de novo, começou a estudar o lugar que

estava. Naquela carroça havia seis pessoas, os cinco religiosos e ele. Os

monges se sentaram e apoiavam as costas nas laterais de madeira. A maioria

deles tinham as mãos unidas e a cabeça inclinada. Não pôde ver seus rostos.

«Rezam», intuiu.

Demorou bastante tempo para descobrir que a cabeça não era o

único lugar que doía. Quando as pontadas começaram a diminuir, descobriu

que tinha o resto do corpo ainda mais machucado. Tentou adotar uma

postura mais cômoda, mas do jeito que estava, doíam todos os ossos sobre os

que se apoiava.

Um momento mais tarde, quando o silêncio se fez tão espesso que o

ameaçava se afogar, decidiu agir.

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Ficou sentado apesar da tortura e conseguiu sem deixar escapar

nenhum som. O tecido que o cobria deslizou para baixo. Apoiou-se como

pôde sobre as mãos atadas, olhou a seu redor e ficou atônito com o que viu.

Lutando contra a umidade que empapava o ar, os irmãos desprenderam

generosamente das capas e o tinha protegido com elas.

Ao sentir os movimentos, o irmão Roger saiu da sonolência.

—Por onde calcula aonde que poderemos estar? —perguntou Gabriel

em um murmúrio apenas audível, sem deixar de observar aos dois soldados

que galopavam atrás deles.

O monge respondeu com a cabeça ainda agachada.

—Quando saímos de Vila Vétula já tinha anoitecido e não acredito

que tenhamos avançado muito. Ainda fica um comprido caminho por

percorrer.

—Quantos são?

—Nós fechamos a comitiva. Atrás são dois soldados. Os outros irmãos

vão adiante.

—E o resto dos soldados também —murmurou Gabriel.

Notou os dedos rígidos do religioso quando segurou seu braço.

—Não pode fazer isso! —murmurou alarmado—. O matarão. Esta

tarde, quase conseguiram.

—Não vou ficar aqui esperando que me enjaulem como um vulgar

criminoso, enquanto alguém decide o que fazer para tirar a minha vida. E

vocês virão comigo —decidiu.

—Sabe que isso é impossível. Devo à ordem. E ela nos manda que

aceitemos nosso destino.

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—Deus não pode envia-los a um matadouro! —Seu mentor encolheu

os ombros—. Pois eu não! Não o farei.

—Não seja louco. Têm as mãos atadas, está a pé, não sabe onde eles

estão. Eles estão a cavalo e armados, eles o caçarão como um coelho e se

divertirão. Ainda está gravada na memória a sua imagem, encolhido sobre si

mesmo, enquanto os soldados o chutavam sem misericórdia—. Não há

mínima possibilidade de escapar. Fica —rogou—. Quando estivermos em

Olite, perante a Guarda Real, poderá explicar que foi um mal-entendido.

Nenhum dos criados foi preso, não terão mais remédio que soltá-lo quando

descobrirem o engano.

A conversa transcorria no máximo sigilo, entretanto, os captores

devem ter notado algo porque se aproximaram da carruagem. O ligeiro golpe

que deram em um dos monges na lateral de madeira da carroça serviu de

advertência. Ambos fingiram dormir. A estratégia funcionou.

—Ceux-ci Ne causeront ps de gêne dans um temps long5.

Gabriel os escutou rir. Aguçou o ouvido e sentiu que os passos dos

cavalos diminuíram um pouco.

—Deite do meu lado — orientou Gabriel para o irmão Roger ao

mesmo tempo em que deslizava até ficar de novo completamente deitado.

O monge não entendeu qual era a razão que pedia para fazer aquilo.

—Mas...

—Faça —insistiu Gabriel impaciente—. Coloque suas mãos debaixo de

minhas roupas e tente soltar as amarras.

Se os guardas estivessem mais próximos dos prisioneiros, teriam

notado movimentos suspeitos por debaixo dos tecidos que cobriam o ferido.

Também teriam percebido que o resto dos religiosos se aproximava com

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cautela até o local onde estavam deitados. Logo aquele ângulo da carroça se

fundiu com a escuridão que reinava.

—J’ai besoin d’uriner. Je vous atteins dans quelques instants6.

—Um dos soldados vai parar —informou o monge — Parecer que

precisa esvaziar a bexiga.

O coração de Gabriel se acelerou quando se deu conta de que aquela

poderia ser a oportunidade para escapar.

—Irmão, se apresse! — pediu ao religioso.

O monge se esforçava para tentar soltar as tiras ao redor dos punhos

de Gabriel. Não era fácil do jeito que estava. Por sorte, os soldados não

prenderam com muita vontade as tiras no jovem. Não era provável que um

homem inconsciente fugisse.

—Faço o que posso.

—Je vous accompagne. Ceux-ci NE bougeront ps d’ici7.

O soldado que havia gritado com eles se adiantou. Gabriel e o irmão

Roger ficaram imóveis. O militar simplesmente disse algo ao condutor da

carroça, e voltou para junto de seus companheiros.

—Eles pararam —explicou o monge.

Gabriel apurou o ouvido, ouviu os guardas rirem mais afastado e

soube que não podia perder aquele instante. Estava a ponto de voltar a

apressar o irmão Roger quando notou que as tiras se afrouxavam.

Desprendeu-se delas o mais rápido que pôde e se incorporou.

—Vamos —anunciou.

Dez pares de olhos o olharam com ternura.

—Não Gabriel... —negou um dos religiosos com a cabeça—. É o seu

momento, conosco não têm nenhuma possibilidade.

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O tom de voz do monge não deixava lugar a dúvidas, assim como

tampouco a expressão no rosto dos religiosos. Uma enorme tristeza o

sobressaltou.

—Eles voltam!

—Se apresse! deslize pela roda e se esconda nos arbustos.

Agachado e aguentando a dor que martirizava seu corpo, aproximou-

se da borda da carreta. Um par de monges que estavam sentados na sua

frente ocultava o seu corpo dos soldados. Antes de saltar, ainda teve tempo

de lançar um olhar aflito aos homens que abandonava.

—Voltarei para busca-los — prometeu.

A última visão, antes de continuar o seu caminho, foi o bondoso

sorriso daquele que tinha sido, e sempre seria, seu mais querido amigo.

Nunca imaginou que sua maior aventura de menino se convertesse

na maior das torturas. Atirar-se no chão e rolar na escuridão não foi nada

divertido. No local que fora, aonde roçou e a dor; como se mil agulhas

atravessassem sua carne e a dor subia até a base do crânio. Mas o pior de

tudo era ter que morder os lábios para impedir de sair da garganta um

mísero som em forma de chiado.

Quando parou de rolar, começou a se arrastar. E foi então quando

percebeu as suas costelas, e da forma que doíam deviam estar todas

machucadas. Mesmo assim, continuou avançando, se esgueirando para

nenhum lugar, comendo ervas, tragando terra e se enrolando entre os ramos.

Quando teve certeza de que ninguém o seguia, apoiou o pé em uma das

rochas que oferecia um lugar seguro. Uma vez sentado, apoiou a cabeça nas

frias pedras. Precisava pensar. Pensar no que fazer. No que fazer de noite,

sem roupas, sem dinheiro e sem armas. E com frio, muito frio.

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Uma hora depois continuava no mesmo lugar, sem chegar a

nenhuma conclusão. Em realidade, sim. Tinha tomado uma decisão. E uma

decisão era melhor que nada. E esta não seria ficar ali esperando que a

mulher da foice o apanhasse, que o encontrasse abraçado a si mesmo com o

corpo coberto de frio. Ele não daria uma oportunidade aos inimigos, se

colocando em uma bandeja de prata.

Logo que pode se mover; as contusões doíam como mil demônios o

espetando. Apesar de tudo, conseguiu encontrar o caminho. Algo era algo,

não sabia aonde se encontrava, mas pelo menos chegaria a algum lugar

habitado.

Começou a caminhar com o corpo dobrado, o braço esquerdo

cobrindo as costelas. Ao caminhar, começou a sentir novamente aquelas

agudas espetadas. Seu passo se tornou mais vacilante.

Um momento mais tarde, o som da noite se uniu a outro

preocupante. Não teve que escutar muito para saber que eram cavalos a

galope. Escondeu-se entre as folhagens. Se eram seus captores, não imaginara

que o seguiria; se fossem malfeitores, não se preocupariam em verificar as

folhagens do caminho; se fosse um correio, não pararia; estavam com muita

pressa para que fossem peregrinos e, em qualquer caso, era muito tarde para

que fossem boas pessoas.

Quando os cascos dos cavalos pareciam mais perto, Gabriel se

encolheu ainda mais. Não teve tempo para comprovar, mas eram dois

cavalos com os seus respectivos cavalheiros, e, pelo som das espadas se

chocando contra as cotas de malha, eram dois soldados.

Os cavaleiros chegaram e desapareceram na escuridão absoluta. Ele

não saiu do esconderijo até que o galope se desvaneceu. Se manteria a salvo

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60

se aqueles soldados se empenhavam em espantar sua presa com semelhante

ruído. Golpeado e dolorido, mas crédulo e mais animado, empreendeu de

novo a escura viagem.

Soube onde estava quando chegou a um cruzamento conhecido. Na

sua frente se abriam três caminhos, três destinos. Um, voltar porá onde

estava, em direção a Ponte a Reina. Outro, dirigir-se a Ayegui. Olhou atrás,

olhou à esquerda e descartou ambas as opções.

Decidiu-se pela terceira.

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61

CAPÍTULO 05

Aquela noite a sorte estava ao seu lado. Nada como chegar à entrada

da cidade com um produtor de vinhos, que falava animadamente de suas

aventuras em um bordel de Villatuerta e com uns guardas dispostos a serem

subornados para deixá-los entrar na cidade horas depois do anoitecer. Entrar

por trás das carretas que transportavam os barris não foi complicado. O dia

não foi bom, mas a escuridão não falhava. Além disso, as trevas favoreciam o

plano que tinha em mente.

A Rua das Lojas estava completamente às escuras. A claridade da lua

nova o permitia mover-se com reserva e o anonimato que necessitava.

Encontrou o início da rua onde o ourives morava. A rua estava deserta.

Cruzou veloz, com o corpo agachado, com o desejo de fundir-se ao chão, até

o lateral da casa vizinha. Rodeou os fundos e apalpou o muro que o separava

do pomar. De onde estava podia escutar a corrente do rio que transcorria

um pouco mais à frente. Aquela não era a época que o curso estava mais alto

nem a corrente fluía mais forte, mas não estava em seus planos, nem em um

presente nem no futuro, dar um mergulho de cabeça nas frias águas de Ega

àquelas horas. Não queria correr riscos, subiria por ali.

Apoiou as duas mãos na parte superior da parede e procurou alguma

brecha para um de seus pés. Nesse momento, algo espesso roçou seu

tornozelo. Assustou-se e chutou ao ar. Um miado lamurioso tirou de

dúvidas. «Gatos!», pensou com aversão ao mesmo tempo em que o animal se

afastava dele.

Page 62: Ana iturgaiz - sob as estrelas

62

Retornou à tarefa. Voltou a procurar o buraco no muro, voltou a

encaixar o pé, voltou a colocar as mãos nos apoios e se impulsionou com

força. Uma vez acima, só necessitou um par de movimentos mais para

superar o obstáculo. Caiu com os dois pés de uma vez e os joelhos

flexionados. Mordeu o lábio inferior para evitar que escapasse um gemido. A

dor era tão lacerante que parecia que as costelas se desprenderam dos ossos.

Levou uns instantes para se recompor e assegurar de que ninguém na

vizinhança escutou seus avanços. Uma vez que ficou claro que poderia

caminhar e que todas as almas dos arredores se cobriam sob o abraço de

Morfeo, continuou com o plano.

Abrir a porta de acesso à cozinha foi fácil. Muito singelo. Um forte

empurrão, e a madeira cedeu. Com um estridente chiado. «Muitos ruídos»,

murmurou antes de decidir entrar pela estreita passagem que se abria.

Já estava dentro. Apenas as escadas o separavam de seu objetivo.

Abriu os olhos alarmada. Algo a fez despertar. Esperou um segundo e

escutou enquanto controlava o impulso de levantar. Um profundo silêncio

a envolveu. Foi um sonho ruim. Voltou a fechar os olhos aliviada.

Cobriu-se com a manta e a jogou por cima até cobrir toda a cabeça.

Quando o coração retomou ao ritmo normal, concentrou-se em voltar a

dormir. Por mais que pensasse em verdes campos repletos de flores azuis e

amarelas, a única imagem que apresentava em sua mente era a fétida cara do

vizinho lhe dizendo frases ofensivas. Mesmo recordando a risada de Teresa,

só escutava as malévolas gargalhadas daquele sádico. Por mais que imaginasse

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63

que umas mãos a segurava pelos cotovelos com suavidade, só notava as garras

daquela besta. Por mais que...

Mar abriu os olhos assustada. Aquela vez não conseguiu se dominar e

se sentou angustiada. O coração palpitava na garganta. Havia alguém na

habitação. Abraçou os lençóis em busca de refúgio.

O rosto do filho do comerciante golpeou a sua mente como uma

barra de ferreiro.

—Quem está aí? —conseguiu dizer.

Esperou. Não houve resposta. Tragou saliva e se obrigou a inspirar.

Repetiu a pergunta elevando a voz. Notou que as palavras tremiam.

Ninguém respondeu.

Seus olhos começavam a acostumar-se à escuridão e, pouco a pouco,

começou a distinguir os perfis do quarto. Demarcou o limite da cama, a

borda da arca e a mesinha onde tinha deixado a vela. Nenhum dos lugares

da estadia ocultava alguma figura humana. Ali não havia ninguém. Sua

respiração se aliviou por um instante, só até se recordar que ainda ficava o

resto da casa para alguém se esconder. Olhou para a janela. Ainda podia

abri-la e gritar. Em pouco tempo teria a metade da vizinhança na sua porta.

Mas e se só era uma má sensação provocada pela desagradável

experiência daquela tarde? Despertaria todo mundo para nada e passaria

como tola. Na verdade, não escutou nenhum ruído, só despertou com

aquele nefasto pressentimento. «Melhor tirar as dúvidas», decidiu.

Apertou a roupa que a cobria e deslizou as pernas para fora.

Começou a caminhar nas pontas dos pés, não sem antes dar uma olhada

rápida sob a cama. Sabia que era inútil comprovar sem uma luz se um

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64

estranho se escondeu ali, mas não resistiu fazê-lo. Encontrou o que esperava,

a escuridão absoluta. E nenhum perigo.

Saiu ao corredor e se dirigiu para a escada. Passou pela frente do

quarto de seus pais; mantinha a porta fechada desde que seu pai morrera. A

luz que subia do piso inferior indicava que não transcorreram muitas horas

desde que foi dormir, o fogo que o senhor Nicolás acendeu, e que ela tinha

alimentado com abundância antes de subir ao quarto, ainda ardia vivo.

Começou a descer os primeiros quatro degraus devagar e com muita

cautela, no momento que abrangeu com os olhos espaço da cozinha,

verificou que estava do mesmo jeito que deixara horas antes, a confiança

voltou para ela.

Quando seus pés pisaram no chão de terra, achou que seu estado de

tensão deveria ser da partida.

Foi quando gelou o sangue nas veias e a risada que estava a ponto de

escapar morreu entre os dentes. Uma leve corrente de ar fez ondular a barra

de sua camisola e sentiu que um braço aprisionava a garganta e tampava a

sua boca.

—Não faça um só ruído — ameaçou uma voz no ouvido.

Suas pernas afrouxaram. O filho do comerciante! Estava perdida. A

visão daqueles pobres e indefesos animais que aquele selvagem torturava a

fez reagir. Não tinha mais ocasião de escapar, só teria uma oportunidade.

Debateu-se com fúria e tentou feri-lo do jeito que dava. Chutou-lhe

as pernas e lançou murros aonde pôde. Um gemido rouco confirmou que o

tinha acertado e se encheu de esperança. Continuou brigando, entretanto,

quando comprovou que a pressão dos braços do assaltante aumentava, soube

que a oportunidade de se salvar acabou no momento que saiu do quarto.

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Reclamou de impotência, mas só conseguiu que ele risse de seu inútil

esforço. Arrastou-a até a chaminé.

—Acenda uma vela —ordenou, assinalando a caixa onde Mar

guardava os juncos banhados em manteiga.

Sabia onde estavam as coisas, ficara um tempo na casa e tinha

verificado os lugares. Mar o imaginou planejando o assalto, divertindo-se

com seu terror, saboreando sua vitória.

Tremeu ainda mais.

—Quem está em cima? —perguntou ele, aliviando a pressão dos dedos

sobre sua boca.

Pensava que havia alguém com ela. Não podia deixar escapar aquela

oportunidade.

—O marido da senhora Manuela —respondeu como pôde.

—Quem?

Parecia surpreso.

—O senhor Nicolás, o carpinteiro.

—Dorme com você?

—Mas o que pensa de mim? — comentou com fúria.

Não pôde continuar. O animal a silenciou de novo com sua mão.

—E seus pais?

Aquilo sim a confundiu. Não sabia com perfeição que ambos haviam

falecido?

Mar negou com a cabeça já que não pôde fazê-lo com palavras.

—Vamos comprovar.

Ela não teve mais jeito que subir. Ele caminhava um degrau atrás. E,

embora o filho do comerciante não fosse mais alto que ela, surpreendeu a

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facilidade que tinha para continuar aprisionada pelo pescoço. Era como se

tivesse crescido nas últimas horas.

Ao passar na frente do quarto principal, insistiu para abrir. Mar

tocou a fechadura e fez o que ele ordenou. A estrutura da cama era simples e

foi uma clara amostra de que mentiu. Quando ele se convenceu de que o

quarto estava vazio, conduziu-a para o seu próprio quarto.

Cada passo que ele a obrigava a avançar, ela batalhava para se soltar.

E assim, a base de trancos chegaram em frente ao seu quarto.

Ao iluminar o vão da porta, Mar voltou a lutar. Sabia que ele não

necessitava de um cômodo leito para fazer o que queria com ela, era absurdo

se sentir mais ameaçada agora que antes, entretanto, estava. Mas não estava

disposta a sucumbir sem que aquele desprezível ser levasse uma péssima

lembrança.

Notou como ele apertava ainda mais seu pescoço, mas conseguiu

cravar o cotovelo em seu estômago. Mar se surpreendeu com sua própria

força quando sentiu como ele se dobrava sobre si mesmo.

Por fim livre! Entretanto, a alegria durou pouco. Muito pouco. Um

grande empurrão a impulsionou para frente até se chocar de bruços contra

sua própria cama.

—Não se mova daí! —escutou que a advertia; no piso ele tentava

recuperar o fôlego.

A luminária com a vela foi ao chão. Mar a viu rolar pelo chão do

corredor. Escutou o chute na porta do quarto e como esta se abria com força

e se chocava contra a parede.

Page 67: Ana iturgaiz - sob as estrelas

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Mar não tinha conseguido ordenar as ideias quando ele retornara.

Havia recolhido a vela e se elevava imponente na soleira. Elevou a vista para

ele e teve vontade de chorar. De alívio.

Não era ele, não era o filho do comerciante.

Aquele homem era bem mais alto e de mais idade. Tinha um vasto

cabelo, que chegava à altura dos ombros. As largas mechas tampavam parte

do rosto e lhe conferia um aspecto desalinhado. Seus olhos eram expressivos,

seu rosto era bem marcado, parecia esculpido em um tipo de mármore;

olhava para ela com um aspecto selvagem. Seus olhos femininos se desviaram

um instante até a cruz vermelha que ostentava sobre o peito. O movimento

da chama a fez retornar até seu rosto. Seu gesto deixava transparecer decisão

e firmeza. Com as pernas fortes e robustas separadas, uma mão na cintura e a

luz da vela erguida, Mar recordou uma das lendas que seu pai lhe contava

sobre um Colosso.

Quem era aquele indivíduo?

A imponente figura e o consolo de descobrir que a pessoa que tinha

diante de si não era quem ela temia, a fez esquecer por um momento que

não era um amigo, se levantou da cama desconfiada.

—Que é você?

Mas ele não chegou até ali para responder perguntas.

—E o homem? O outro homem? —Mar o olhou confusa— Onde está?!

Ele se adiantou um par de passos e fechou a porta com o pé

enquanto esperava a resposta. O seco som pôs Mar de novo em alerta.

Livrou-se da morte só para cair no inferno.

—Não... Se a..proxime —gaguejou enquanto tentava se a afastar.

—Onde está seu amante?

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Se não fosse porque estava a ponto de ser ultrajada e assassinada por

aquele indivíduo até teria rido. Não soube bem por que, talvez porque não

tinha nada para ganhar, mas resolver disser a verdade.

—Não existe.

O desconhecido a observou durante um momento como se a visse

pela primeira vez. Mar não se atrevia a mover um só músculo para não

provocar de novo sua cólera. Mas, em vez de tentar atacá-la, fez algo que a

deixou confusa.

Apagou a vela com um sopro.

Assustada pelo que poderia acontecer a seguir, Mar apalpou atrás de

si até que encontrou o leito. Passou por cima da roupa revirada. Quando

pisou no chão outra vez, retrocedeu até a janela.

Tudo estava escuro. Seus olhos ainda não se acostumaram e não

podia olhar o que era o que ele estava fazendo. Escutou um agito, depois um

grunhido e depois, nada.

O que Mar não viu foi como ele relaxou o cenho e os seus lábios se

distendiam em um meio sorriso aparecia em sua boca, deleitando-se com a

última imagem que seus olhos gravaram.

—Onde... onde está?

—Se deite.

A voz chegou da porta. Ela se encontrava do outro lado do quarto.

Ainda dava tempo de abrir as venezianas, arrancar o grosso tecido que cobria

o vão da janela e gritar.

—O que você pretende eu não faria, Margheritte. Não procuro

machuca-la, mas não permitirei que descubram minha presença.

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Ficou estupefata. Ele a conhecia. Sabia como se chamava. Os joelhos

deixaram de sujeitá-la. Apoiou as costas na parede e escorregou até o chão

abraçando as pernas.

—O que pretende? — atreveu perguntar.

—Dormir, se você permitir isso.

—Dormir?

—Preferiria que desejasse outra coisa?

Ela não respondeu. O que ia dizer? Ficou calada um momento.

—Escapou de algo?

Não era a primeira vez que Mar via aquelas roupas. Não era a

primeira vez que os cavalheiros de Deus apareciam em sua casa com algum

de seus criados.

—Eu não diria tanto. Os irmãos não são os culpados de que eu me

encontre aqui esta noite.

—Está fugindo?

—Aproximasse bastante disso.

Mar não se atreveu a perguntar de quem era nem do que se escondia,

ele tampouco o explicou. Nenhum dos dois voltou a dizer uma só palavra.

Passou um bom momento até que Mar se deu conta que ele respirava com

intervalos regulares. Dormiu.

Aquela era a oportunidade. Tinha que tentar. Levantou com

prudência e, deslizando com cuidado sobre o piso, foi se aproximando até

ele com a esperança de que não tivesse bloqueado a saída. O rangido do piso

a obrigou a parar várias vezes e não continuou até se assegurar que ele não se

movia. Já devia estar perto de chegar quando uma guarra a segurou pelo

tornozelo.

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—Volte para a cama —disse com voz rouca—. Vejo que não mudou

nada em todos estes anos. Continua sem obedecer quando alguém manda.

Mar se rendeu. Rendeu-se ao medo, aos nervos, à força masculina, ao

inesperado. Rendeu-se ao frio, à solidão, ao desconhecido. Rendeu-se e

obedeceu.

Entrou embaixo dos lençóis e se encolheu como uma menina. O

sonho a apanhava em intervalos curtos. O resto da noite não deixou de

pensar. Mil vezes se perguntou por que não se levantava e se jogava na rua

pela janela, e mil vezes não soube o que responder.

Dormiu próximo a alvorada, quando o galo da senhora Clara

anunciava a chegada do novo dia.

Mar não ouviu o som metálico do trinco e nem se inteirou dos

golpes em sua porta. Não despertou até que a senhora Manuela ficou

chiando debaixo de sua janela.

Tendo em conta que não reagira até a quarta vez que escutou

pronunciarem seu nome, quando abriu a janela, os gritos ameaçavam

derrubar as casas vizinhas.

—Estou aqui —respondeu afligida, aparecendo à janela.

A mulher elevou a vista para onde procedia a voz da jovem. O

semblante pareceu se aliviar.

—Estávamos esperando tomar o café da manhã com você.

Para Mar, aquelas palavras soaram uma recriminação.

—Dormi... Desculpe-me —. Agora baixo.

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—Não, não —disse a mulher com impaciência quando viu que Mar se

afastava —. Ande depressa. Deixo isso aqui.

Mar descobriu então que a mulher levava uma enorme cesta, a

mesma que sempre levava a feira, e outra menor, e estava depositando ambas

diante da porta.

—Muito obrigado —respondeu envergonhada ao se dar conta do quão

era tarde.

Mas a senhora Manuela não escutava mais. Com seus pequenos e

apressados passos já havia chegado a casa contigua e logo desapareceu na

esquina da Casa de Juntas.

Era quinta-feira e as quintas-feiras era dia de compras na feira da

Praça de San Juan. A sua vizinha gostava de passar em todas as barracas e

pechinchar com os vendedores, demoraria um par de horas para retornar a

casa.

Voltou a deitar entre os lençóis em busca do calor que seu corpo

acumulou durante a noite. Cobriu-se até o queixo com intenção de ficar

mais um momento, correndo risco de que o café da manhã desaparecesse

nas mãos de algum ladrão ou de algum peregrino faminto.

Um barulho no piso de baixo a devolveu à realidade. O assaltante! O

coração acelerou. Sentou na cama para constatar o que já sabia. Ele não

estava no quarto, a deixou sem fazer nenhum dano.

Levantou-se de um salto, tirou a camisola, pegou o vestido que tinha

deixado sobre o arca e o colocou pela cabeça. Não parou nem para colocar o

cinturão nem para olhar-se no espelho. Segurou as cordas do calçado e, com

ele pendurando na mão, saiu do quarto.

Page 72: Ana iturgaiz - sob as estrelas

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Ninguém o impediu. A porta estava totalmente aberta, também

estava a de seus pais e a do corredor.

Desceu as escadas sem parar para pensar no que podia encontrar no

piso inferior e sem acreditar na sua falta de responsabilidade ao se meter na

boca do lobo por vontade própria.

De fato, todas as ideias sumiram assim que o viu nu no meio da

cozinha.

Estava de costas, diante da chaminé, ao lado de uma poça d’água que

tentava secar. Agachado, com um joelho no chão e inclinado para frente,

Mar pôde apreciar a ferida que ia do ombro direito até a coluna. Além disso,

em um dos lados de seu corpo, uma grande extensão de pele começava a

ficar púrpura.

Conteve a respiração quando ele levantou para escorrer o trapo com

o que limpava o chão. Depois, o viu se esticar para trás e alongar os ombros.

O homem que estava diante de si, estava acostumado ao exercício duro. Os

músculos das costas e dos braços demonstravam. Na noite anterior não teria

como fazer nada se ele tivesse decidido agredi-la. E teve certeza de que

nenhum dos golpes que recebera, fez alguma diferença significativa em seu

corpo ou em suas intenções.

O desconhecido agarrou o atiçador e com ele em mãos, introduziu

no fogo as roupa que tirou de seu corpo e as que utilizou para secar o líquido

derramado. Estava queimando a túnica e a camisa com as que tinha chegado

a aquela casa. Antes que as chamas as consumissem, Mar pôde vislumbrar

um pedaço da cruz bordada em vermelho.

Tentou fazer então o que devia ter feito antes de descer, avaliar a

situação. Como era impulsiva às vezes! Pensou voltar e se trancar na quarto,

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73

mas ele, como se tivesse escutado seus sigilosos pensamentos, virou seu corpo

e a descobriu.

E pela terceira vez, como sempre acontecia cada vez que a via,

Gabriel se surpreendeu com o que encontrou.

Margheritte apoiava um ombro na parede da escada e o observava

com interesse. Estava muito mudada. Seus cabelos estavam mais volumosos,

o nariz mais afinado, uma boca pronta pra beijar e um corpo esbelto e

tentador. Mas os olhos eram os mesmos. Os mesmos astros brilhantes que

prometiam levar a quem os olhasse a lugares indescritíveis. Os mesmos céus

tormentosos e seus estremecedores relâmpagos. Os mesmos.

Entretanto, aquela manhã, ela estava ainda mais fascinante. Com o

sonho ainda nos olhos e o cabelo emaranhado. Desejou ter sido ele o

causador de seu aspecto.

Olhou com avidez para o que carregava em sua mão e baixou o olhar

até seus pés descalços. Desejou ser ele que a calçasse. E o que...

Não, não tinha tempo de colocar uma mulher em seus problemas

atuais. Ser um fugitivo da justiça já era grave o suficientemente. Tinha que

lidar bem com ela para que não o delatasse, depois de que virtualmente a

sequestrou em sua própria casa. E aproveitando o momento... havia uma

incógnita sobre ela que tinha interesse em resolver.

Deu uma olhada na roupa que tomou emprestado e que havia

deixado sobre um tamborete.

—Confio que não se importará no meu atrevimento ao pegar uma

roupa de seu... marido — aventurou.

—Faz já tempo que ninguém a põe —respondeu Mar omitindo a

verdade.

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Ele começou a se vestir na sua frente, sem virar.

Se esperava que ela se amedrontasse, não conseguiu. Naquela hora,

Mar resolveu que o desconhecido não era tão perigoso como parecia na

noite anterior. Em qualquer caso, e enquanto se sentava em um dos degraus

com intenção de se calçar, repassou mentalmente o lugar onde guardava as

facas.

Seus olhares não se cruzaram, apesar de que nenhum dos dois

afastou a vista do outro. Enquanto Mar percorria o peito e o ventre

masculino até a linha do calção, Gabriel olhava com interesse os ágeis

movimentos com que ela calçava os sapatos e a suas bem delineadas pernas.

Ela foi à primeira em terminar e decidiu acabar com aquela situação.

aproximou-se até ele com os braços no quadril. Esperou que tirasse um dos

braços pela manga da camisa antes de falar. O homem estava custando mais

tempo que o normal para se vestir, a julgar por quão lento estava. Não teve

dúvidas de que as lesões que tinha não facilitavam os movimentos.

—Me conhece —comentou, aparentando ter mais segurança que

sentia—. Ontem me chamou por meu nome.

Sentiu a força da vontade dela de enfrentar a situação. O mesmo

caráter de antigamente. Em vez de sentir-se coibida, enfrentava o problema

com decisão.

—Conheço. Por um tempo, há anos —confessou.

—Onde?

—Nesta mesma casa.

Ela tentou resgatar da memória suas antigas lembranças. Franziu o

cenho e aproximou o dedo indicador de seus lábios. Gabriel controlou um

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sorriso. Conhecia aquele gesto. Fazia mais de doze anos que não a via fazer

isso. Decidiu prolongar um pouco mais aquele entretido jogo.

—Irá perder o café da manhã.

—Como diz?

Ele fez um gesto em direção à porta da oficina.

—Seu café da manhã. Vai desaparecer se não fizer algo para recuperá-

lo.

Tinha escutado os gritos da senhora Manuela, claro, impossível não

fazê-lo. Mar demorou uns poucos segundos em calcular se devia deixá-lo

sozinho. Quase rindo dela mesma. O que ia perder se o fizesse? Ele teve

tempo para procurar as suas coisas, encontrar seus tesouros e desaparecer

dali antes que ela se levantasse e não o tinha feito. Ou sim? Chegou à oficina

com mais pressa do que a dissimulação obrigava. A bolsa de couro seguia

sobre a mesa de trabalho de seu pai. Aproximou-se com urgência, abriu a

lapela e colocou a mão. Apalpou o conteúdo. Parecia que não faltava nada,

mas, em qualquer caso deixou a bolsa dentro de um cesto de roupa velha

que seu pai usava quando trabalhava. Tampou bem sem deixar de olhar na

fresta que a separava da cozinha se por acaso ele a tivesse seguido. Quando

finalizou, se aproximou da porta mais tranquila.

Quando voltou, o desconhecido já estava vestido por completo e

fazia desaparecer entre as brasas o último resto de sua presença naquela casa.

Sorria enquanto se dirigia à mesa com a cesta, em sua mente ainda

estava nítida a imagem daquele corpo.

A senhora Manuela foi muito generosa. Um pouco de leite e um

pedaço de pão era suficiente para começar o dia na casa do carpinteiro, mas

aquela manhã, além disso, incluiu uma cebola, um pedaço de queijo e duas

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maçãs. Mar estava avaliando a possibilidade de compartilhar todo aquilo

com o visitante quando voltaram a bater na porta. Elevou os olhos até ele,

que havia parado no meio da cozinha. Com apenas um perceptível gesto,

Gabriel indicou que abrisse. Mas, quando o fez, uns meninos saíram

correndo rua abaixo entre gargalhadas.

Retornou à cozinha com vontade de vê-lo, para descobrir que seu

«convidado» já não estava. Tinha desaparecido com parte do café da manhã.

Foi para o pomar. Mal-humorada, percebeu sobre uma prateleira uma velha

navalha que seu pai utilizava, não sabia para que. Esperou uns minutos,

entretanto ele não retornou, não tinha nenhuma razão para fazê-lo, já tinha

conseguido dela o que queria: roupa, proteção e comida, e não a necessitava

para nada mais.

Era uma quinta-feira 26 de novembro, dia de feira, e o rei de Navarra

e seu séquito se alojavam em Estella. Sem dúvida, a vila era um lugar

improvável para desaparecer.

Mar se sentou no banco, partiu um pedaço de pão e começou a

colocar as migalhas partidas sobre o leite.

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CAPÍTULO 06

Gabriel percorreu a rua confundindo-se com os compradores que

entravam e saíam das vendas e das oficinas, enquanto mordiscava a maçã

que pegou na casa de Margheritte. Já havia comido parte do queijo que levou

apressadamente. Não era sua intenção sair correndo daquela maneira, mas

não podia descartar a possibilidade de que o estivessem procurando. Assim

quando escutou que alguém golpeava a porta, decidiu desaparecer. «E ao que

parecer a vila é a melhor opção», pensou ao passar diante de uma hospedaria

por onde saia três peregrinos, seu cajado e sua cabaça baixa se uniram aos

transeuntes. Com esse movimento de gente entrando e saindo, ninguém

repararia em um desconhecido a mais.

Ao chegar à esquina, à esquerda, pôde ver a silhueta da igreja

carregada de velar pelas almas do bairro dos francos e, por cima dela, no alto

de uma rocha, o castelo. Uma fila de soldados guardava a entrada até ele. O

novo rei de Navarra estava bem protegido.

Gabriel baixou os olhos para o chão e passou ao lado deles sem se

deter. Só depois, quando já chegava à Ponte de São Martín, se deu conta de

que era impossível que algum daqueles homens estivesse no dia anterior no

monastério templário, não era possível ter chegado a Olite e retornar de

volta para Estella. Um pensamento trouxe o bom humor. «A conversa com

Margheritte», pensou, ao mesmo tempo em que jogava no rio a fruta roída.

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Mar tirou o véu ao sair do tempo do Santo Sepulcro e desceu os sete

degraus que a separavam da rua. Elevou a vista até o sol para verificar a

posição e soube que era tarde. Havia decidido se despedir da igreja no último

momento e agora não teria tempo para fazer as visitas programadas.

Guardou o véu que havia prendido o cabelo na bolsa que estava

pendurava na cintura. Visitar as nove Igrejas da vila levaria o resto do dia,

assim teria que bastar o que já tinha realizado. Orar com o crucifixo, com fé

e determinação naquele lugar que seu pai tanto admirava, seria suficiente. O

Senhor sem dúvida entenderia sua pressa.

Já na Ponte do Cárcere, as matronas de Estella voltavam da feira com

as cestas transbordando. Saudou a senhora Clara e a senhora María Irigoyen,

que, desde que ficara viúva exercia a profissão de confeccionar cestas com

mais eficácia que seu falecido marido. Quando alcançou a parte mais alta da

ponte, observou o Rio Ega. Poderia passar o dia inteiro vendo fluir a

corrente seguindo com os olhos a incessante viagem dos ramos que a água

arrancava de seu caminho. Mas não podia ficar.

Subir até San Miguel foi fácil, passar pelos postos de pescado e

saudar seus proprietários, mais complicado, e conseguir sair dali, quase

impossível. Todo mundo tinha se informado de sua partia no dia seguinte.

Mar perdeu a conta dos beijos que dava, as mãos que apertava e os

mantimentos que rechaçava. Pior seria, pensava enquanto contornava a rua,

quando tivesse que passar pela casa de troca da Praça de San Juan e

conseguir trocar o dinheiro.

Encontrou a senhora Manuela entre repolhos, espinafres, alcachofras

e figos.

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—Nem pensar! Não entrara ai para fazer negócios no meio dos

homens —repreendeu quando a jovem contou o que iria que fazer.

Mar inspirou tentando manter a calma. Já não sabia o que fazer para

que sua vizinha entendesse que em uns dias estaria na França e que

necessitava da moeda francesa.

—Mas não vê que é necessário?

—Além disso —continuou a mulher sem atender o que Mar estava

dizendo—, não deveria sair com tanto dinheiro por ai. Expõe-se a que

qualquer um possa te roubar —acrescentou em voz baixa.

—Mas não ter ninguém que faça isto por mim?

A mulher pensou durante um segundo.

—Me deixe.

O que conversou a senhora Manuela com o vendedor de frangos,

galinhas e coelhos Mar nunca soube. Mas o resultado foi que as duas

mulheres acompanharam o homem até a porta de uma casa particular,

entregaram-lhe a bolsa, o esperaram na rua e, um momento mais tarde, as

moedas se transformaram em umas bonitas libras francesas.

Mar se despediu deles depois de agradecer. Alegou que ainda

faltavam algumas pessoas para saudar, mas a realidade era que queria estar

sozinha. Só para percorrer aquelas ruas, para escutar a gritaria e para

observar os vizinhos pela última vez. Só para entreter-se com o burburinho

do dia a dia, os gritos dos vendedores e as vozes dos clientes. Queria estar

sozinha para pensar. Para pensar no passado e no futuro. E em tudo o que

aconteceria em sua última jornada.

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80

Levara toda a sua vida sonhando que poderia conhecer outros

lugares e agora que chegava o momento, sentia que estava a ponto de ficar

sem suas origens.

Perambulou pela vila até que os sons dos sinos avisou que era meio-

dia. Já fazia tempo que os compradores abandonaram a praça, ficando

apenas alguns proprietários com mercadorias para recolher. Chegou a hora

de partir de casa. Não tinha cabeça para conversar com ninguém. Seus

pensamentos e sentimentos estavam à flor da pele, não tinha como manter

uma conversa. Tinha avisado à senhora Manuela que não chegaria a tempo a

comer. Embora soubesse que, apesar de haver comentado que não era

necessário que preparasse nada para ela, a mulher reservaria algo para a sua

volta. Retornaria pelo mesmo lugar que saíra aquela manhã. O caminho

estaria tranquilo. A maioria das pessoas já teria retornado aos seus trabalhos.

O mais provável era que não encontrasse com ninguém.

Ao passar por uma das ruas que beirava o rio, se animou a aproximar

da água e tocá-la pela última vez.

Em nenhum momento do percurso, desde que o dinheiro retornou

as suas mãos, percebeu a presença de alguém seguindo seus movimentos com

atenção.

Embora fosse a primeira vez que caminhava por aquelas ruas, Gabriel

gostou do lugar. Em sua caminhada, em mais de uma ocasião dirigira seus

passos para a vila de Estella.

Gabriel saiu da casa do ourives com intenção de descobrir se sua

presença na vila era conhecida pelos guardas e descobriu que não. Ninguém

Page 81: Ana iturgaiz - sob as estrelas

81

o reconheceu de seus tempos de garoto, nenhum homem tinha passado os

olhos nele mais tempo do que o necessário. Também se certificou de que

não seguido. Sabia que ser mais alto do que normal e manter o cabelo com

um comprimento fora do comum não era o melhor para passar

despercebido, mas naquela cidade não parecia chamar muita atenção. Estella

recebia diariamente inúmeras pessoas, todos eles de diversas índoles e regiões

e os moradores estavam mais que acostumados a vê-los.

Andou até que se cansou. Percorreu as ruas e as praças, observando

qualquer indivíduo que cruzava o seu caminho. Olhou e pensou.

Pensou no que ia fazer a seguir. Refletiu na promessa que tinha feito

aos irmãos: libera-los de onde tivessem encarcerados; mas sempre chegava à

mesma conclusão: o primeiro era chegar até Olite e depois... não tinha nem

ideia.

Por isso, quando descobriu Margheritte no meio da praça

conversando com uma mulher robusta, encontrou a desculpa perfeita para

descansar a sua mente de suas reflexões. Apoiou-se em uma coluna que

estava próxima e se dispôs a observar sem ser visto. Era uma oportunidade

única para contemplá-la sem que ela o advertisse.

O que viu gostou, muito mais do que pode apreciar a noite anterior

e naquela mesma manhã: temerosa e altiva. E atrativa, muito atrativa. Teve

que reconhecer, a reação dela quando o encontrou nu na cozinha, o divertiu

muito. Qualquer outra mulher desviaria os olhos, entretanto, ela os manteve

presos no seu peito.

Escapou um sorriso quando recordou a expressão de seu rosto. Não

era surpresa, a não ser interesse. Estava claro que já tinha idade suficiente

para não ser uma donzela inocente. Com a sua idade, estar casada e criando

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vários filhos era o mais normal, embora não parecia o caso. Aquela ideia o

agradou imensamente.

Margheritte continuava caminhando pela da praça, alheia a ser o

objeto de interesse de alguém. Gabriel a viu mover as mãos, tirar uma mecha

da frente do rosto, apertar a boca preocupada quando entregou a bolsa ao

homem, partir, retornar, sorrir e posar a mão sobre o saquinho que tinha

voltado para sua cintura. Contemplou como, de quando em quando,

esticava o tecido da saia em um gesto nervoso e a observou se despedir.

Espiou-a enquanto passeava absorta e a seguiu quando se sentou ao sol em

um banco de madeira em frente a um edifício de três andares.

O tempo foi passando. As ruas se esvaziaram e voltaram a encher.

Pelas janelas dos lares podia observar a volta ao trabalho dos homens.

Artesãos e vendedores começavam a ocupar seus postos dentro e fora das

casas. A vida da cidade se deteve e voltava a começar. E Margheritte nem

sequer percebeu a sua presença.

Gabriel já começava a acreditar que teria que chamar sua atenção

para que voltasse para casa quando ela reagiu. Seguiu-a. Caminhava atrás

dela, seguindo seus movimentos.

Na metade da Rua Maior, um bêbado, que saía de um botequim, se

jogaria em cima dela de repente. Gabriel o segurou bem a tempo para evitar

que o homem acabasse no chão. Endireitou-o e esperou para ver se ele se

sustentava por si mesmo.

—Me perdoe, cavalheiro — se desculpou.

Tinha os olhos frágeis.

—Está bem?

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O homem não respondeu. Não conseguia manter a cabeça quieta e

seria um milagre que pudesse pensar algo com certa lucidez.

Gabriel retornou para Margheritte. Esta seguia seu caminho

concentrada sozinha sem saber o que acontecia a poucos metros diante dela.

Gabriel retomou seu caminho.

—Boa garota.

Ao que parecia, o bêbado era capaz de manter o equilíbrio e o seguia.

Gabriel bufou com resignação. Melhor seria seguir adiante.

—Sim.

—E boas nádegas —insistiu.

Para Gabriel não restou alternativa que dar razão. O homem estava

ébrio, mas não cego.

—Sim, muito boas.

—A conhece?

—Sim, não. Bom sim — confirmou finalmente.

—Não está muito seguro — disse, segurando o seu braço para não

cair—. Acredito que você a conhece, mas que ela não quer te conhecer.

—Provavelmente —resmungou Gabriel entre os dentes, zangado por

ter que aguentar aquele homem.

Acelerou um pouco e adiantou uns passos. Entretanto, o bêbado o

alcançou outra vez e voltou a caminhar de seu lado.

—Né, né! Não se incomode —pediu—. Ji, ji, ji —começou a rir,

colocando as mãos sobre os joelhos.

Gabriel parou irritado.

—Do que ri?

—Da cara que faz quando fala de sua mulher.

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—Não é mi...

O empurrão que o bêbado recebeu o lançou contra a parede. Gabriel

foi em seu auxílio rápido e logo pôde ver dois indivíduos se afastando rua

abaixo.

—Deveria ir para a casa —aconselhou quando o ajudou a ficar em pé.

O homem bateu em seu braço.

—Têm razão. Prefiro a cólera de minha mulher a de outros —disse

antes de se mover.

Viu-o caminhar rua acima. Apoiava-se no muro das casas com mais

segurança do que Gabriel previra. Seu aspecto era que essa não era a

primeira vez que iniciava o retorno para casa naquelas condições. Não coube

dúvida que chegaria a sua casa sem problemas.

Retornou ao objeto de seu interesse.

Margheritte desapareceu de sua vista. Não faltava muito para chegar

ao rio, com certeza estaria atravessando naquele momento. Correu para

alcançá-la. Quando acabou a rua, girou à direita e começou a subir a ponte.

Surpreendeu-se quando não viu rastro dela. Adiantou-se mais do que ele

esperava. Chegou à parte superior. Tampouco a viu do outro lado. A perdeu.

Um indício de decepção apareceu em sua mente.

Zangado, aproximou-se da mureta e se apoiou dela. Ver passar a água

por debaixo provocou um estremecimento. Como sempre, depois de tantos

anos ainda não tinha podido controlar aquela arrepiante sensação que

ocasionava os rios. Fechou os olhos um instante para esquecer o que tinha

diante si e fugir daquele pesadelo, foi então, quando voltou a abrir os olhos,

quando a encontrou.

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Margheritte não tinha chegado a sua casa, nem sequer tinha cruzado

o outro lado. Seguia no lado esquerdo do rio, na beira da água. E não estava

sozinha. Falava com um indivíduo um pouco mais alto que ela, visivelmente

mais volumoso. Outro tipo, se encontrava mais atrás, apoiava um dos pés no

muro da casa mais próxima à espera que o casal acabasse a conversa.

Gabriel os observou com curiosidade. Quem seria aquele homem?

Alguém de sua confiança, supôs quando o viu aproximar-se dela. Mas ao

olhar para Margheritte se deu conta imediatamente de que esta não parecia

muito contente com o sujeito. De fato, qualquer um poderia perceber que

ela não gostava daquela presença. Uma sombria sensação atingiu seu

estômago e caminhou para eles. Empregou o caminho sem separar os olhos

da cena que tinha diante de si. Caminhava devagar, pouco a pouco, mas

quando o homem segurou Mar pelo braço e a sacudiu, pôs-se a correr.

Quando ainda faltava um pedaço para chegar onde estavam, não esperou

mais.

—Margheritte! —chamou, ao mesmo tempo em que saltava por cima

da mureta.

Os dois homens ficaram confusos em serem descobertos por Gabriel,

ganhou uns segundos para se repor dos efeitos do salto. Inspirou fundo,

apertou os dentes e segurou a dor que o transpassava por completo. Estava

certo que todas as costelas tinham saído do lugar. Não fazia nem um dia que

recebera a maior surra de sua vida.

Uma vez que retornou o controle de seu próprio corpo, aproximou-

se com decisão. O alívio dos olhos femininos confirmou que tinha acertado

em sua premonição. Ela não estava com aqueles homens por vontade

própria.

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—Estava esperando por você em «sua casa» —enfatizou, olhando com

firmeza para os olhos do menino que a estava importunando—. Vamos

voltar.

Ela se aproximou dele e tocou em seu braço com firmeza. Gabriel

soube que o fazia para deixar claro que entre eles havia uma intimidade fora

do normal. Seguiu o jogo. Apoiou as mãos nas costas dela e a conduziu de

novo para a ponte com segurança.

—Obrigado —murmurou ela sem parar e sem virar os olhos.

—Está bem?

Só quando entraram na rua principal do bairro de São Martín, Mar

respondeu.

—Sim.

Ainda tremia a voz.

Gabriel desapareceu antes que alcançassem a casa da senhora

Manuela. Mar não teve ânimo suficiente para saudar a vizinha e se dirigiu a

seu lar diretamente. Quando tirou a chave da bolsa e abriu a porta, ainda

não controlava o movimento das mãos.

A solidão da oficina a recebeu com frieza. Cruzou a estadia depressa

e entrou na cozinha em busca de refúgio. Voltar a encontrar cara a cara com

o filho do comerciante foi arrepiante. Recordou as palavras que ele

pronunciou, aquela vez levara «um amigo» para assegurar de que ela não

escapulisse como no dia anterior.

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Gabriel passou pela porta de atrás antes que desse tempo de pensar

em alguma coisa. Não pediu permissão, simplesmente abriu, entrou e se

aproximou até o fogo. Esperou que Mar desprendesse a capa antes de falar.

—Quem era? —inquiriu enquanto empilhava umas toras sobre as

brasas já quase extintas.

—Ninguém importante —respondeu ela enquanto soltava o laço que

tinha fechado o casaco.

Mar não queria tratar aquele tema com ele. Não até que aquela

sensação de insegurança desaparecesse. Corria o risco de ter o mesmo desejo

que quando o viu aparecer, desejava refugiar-se entre seus braços. E nesse

momento, estava a ponto de se afastar para sempre daquela terra, o último

que queria era precisar sentir-se protegida.

Pendurou a capa em um gancho situado ao lado da porta e se

aproximou do fogo. Estava gelada.

—Parece assustada.

—Não é uma companhia que me agrade — confessou enquanto

esfregava as mãos para se aquecer.

Gabriel levantou e segurou a pederneira, situada sobre a prateleira da

chaminé. O fogo não parecia estar disposto a colaborar. A casa e ela mesma

teriam que esperar para se esquentar.

—Volto logo — disse enquanto desaparecia pelas escadas.

Mar ficou confusa.

—Aonde...?

Não teve que esperar muito para que sua pergunta fosse respondida.

Um instante depois, voltava a aparecer com um punhado de palha que

pegou dos restos que ficaram no corredor.

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—É seu marido? —continuou ele de uma vez enquanto colocava a

palha na lareira.

Mar se alterou ao de pensar naquela possibilidade, mas controlou a

voz.

—Não.

Gabriel começou a golpear o sílex contra o metal junto à palha seca.

Saltaram algumas faíscas.

—Seu prometido?

—Não.

Mais centelhas.

—Algum familiar?

—Não.

Mais centelhas.

—Amante?

Mar explodiu. O que era aquela insolência? Acaso a estava

interrogando?

—Está tentando me fiscalizar? Não têm nenhum direito de fazer essas

perguntas e eu não tenho nenhuma obrigação de responder.

—Acredito que mereço uma explicação por me arriscar em salvar a

sua vida.

—Sua vida? Salvar-me? Se pensar que o risco que correstes hoje é o

maior que pode sofrer nesta vida, não está pronto para este mundo. Melhor

se recolher em um convento.

Aquilo alterou Gabriel muito mais do que Mar pudesse imaginar.

Nunca, desde o dia em que saiu do monastério, fugira do perigo. Levantou

furioso e parou diante dela. Tirou a camisa e as calças e ficou nu na frente

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dela. Assinalou os hematomas de seu corpo, que já começavam a trocar de

cor.

—Pensa que isto é fruto de um tombo acidental?

Os machucados que Gabriel exibia a fizeram retroceder. Deixou que

seus nervos dominassem suas palavras.

—Perdoe minha rabugice —se desculpou—. Você melhor que ninguém

compreenderá que estas últimas horas foram excepcionalmente complicadas

para mim. Ontem mesmo tive outro encontro pouco... fortuito com aquele

selvagem que você ajudou a se livrar faz um momento. —sentiu um calafrio—.

E agora, se não fosse por você, a esta hora estaria estuprada e abandonada no

meio de qualquer matagal dos que rodeiam Estella. Ontem à noite, quando

entrou em meu quarto, pensei que fosse ele.

Gabriel a olhou com firmeza. Mar pensou que iria sair

definitivamente daquela casa, mas em vez disso, vestiu-se e retornou a seu

intento de acender a lareira.

Ele decidiu trocar de tema. Ainda havia muitas questões que Mar

não compreendia.

—Vive sozinha —constatou sem deixar de soprar.

Ela deu uns passos para trás e se sentou no primeiro degrau das

escadas.

—Meu pai morreu na primavera passada. Faz anos que minha nos

deixou.

—Não deveria ficar aqui sozinha. Seu pai não teria permitido.

Ela recordou então o que haviam dito aquela mesma manhã.

—Quando os conheceu? Dissera também que sabia quem eu era.

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—Estive nesta casa faz muitos anos —revelou—. Acompanhava dois

templários. Um deles morreu no quarto contiguo.

—O escudeiro do irmão Roger? O menino?

Gabriel virou para olhar sua reação. Seus olhos mostravam a sua

estranheza.

—Sim...

—Mudaste muito —constatou ela quando conseguiu repor-se da

surpresa.

Sem parar para pensar se aquela era a melhor solução, Gabriel

decidiu justificar-se. Voltou, e se sentou no chão, depositando a pederneira

entre as pernas.

—Se pergunta como um escudeiro acabou escondido em uma casa

estranha.

Ela não disse nada. Esperou que se explicasse.

E Gabriel o fez. O contou tudo. Ou quase tudo. Tudo menos quais

eram suas intenções. No fim, ninguém mais deveria saber que tinha o

propósito de ir em auxílio dos irmãos.

—Assim que você escapou. —comentou ela ao terminar o relato.

Gabriel a notou incomodada. Importaria ficar com um fugitivo?

—Exato. E quando descobri que estava tão perto de Estella, lembrei-

me do ourives.

Não quis acrescentar «e de você e de seus olhos», apesar daquela

imagem infantil tinha passado pela sua cabeça.

—Recordou de nossa casa.

—Sim...

—E invadiu por que...

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—... porque bater na porta principal poderia ser como um toque de

trompetista. Em uns segundos toda a vizinhança estaria com os olhos sobre

minhas costas.

—Verdade... A Guarda Real o procura. —evidenciou ela com frieza.

Tanta calma, Gabriel sentiu que gelava , entretanto, seguiu em

frente.

—Exato.

—E não ocorreu pensar que nos colocou em perigo?! —gritou Mar de

uma vez, se levantando e se dirigindo para ele.

Era inútil evitar o inevitável. Gabriel optou pela certeza e a

enfrentou.

—Não, não pensei. Meu único pensamento era a possibilidade de que

os donos da casa podia ter se mudado. E no que faria nesse caso. —Viu-a

endurecer o olhar e algo incontrolável o impeliu a avivar sua cólera—. Mas

você me mostrara que minha intuição não falhou. Seguiam aqui. No mesmo

lugar... e com a mesma camisola — testemunhou em clara alusão à roupa de

dormir.

—Canalha!

Ele a segurou e riu na sua frente.

—Me chame como desejar, mas pensar que um canalha egoísta iria se

arriscar por você? Permita-me dizer que você que é uma ingrata.

E sem mediar às palavras, a agarrou pelo braço e a forçou a se dirigir

a porta dos fundos.

—me solte! —Não deu atenção e continuou arrastando-a para o

pomar—. aonde me leva?

—Para aqueles indivíduos. Espero que ainda continuem te esperando.

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Ela se agarrou a soleira da porta com todas as forças.

—Me solte agora mesmo!

—Abra!!

O grito procedia da rua.

A luta de Mar por liberar-se cessou nesse mesmo instante. Gabriel já

não a aprisionava. Enfrentou seu olhar e esboçou um sorriso triunfal.

Acabava de ganhar aquela batalha.

De um puxão, se soltou e se encaminhou à parte dianteira da

sentindo sua vitoria. Sentiu que a seguia e, quando por fim abriu a porta,

pela extremidade do olho, o viu por detrás dela.

Era Isabel que a chamava.

—Demorou em abrir.

—É que estava no pomar — mentiu.

—Mãe insisti em vir ela mesma e comprovar que tudo estava bem,

mas eu a convenci em trazer isso. Sei que gosta de estar sozinha.

«Se ela soubesse», pensou olhando de soslaio à sombra escondida a

sua esquerda.

Uma ideia malvada ocorreu de repente. Ia fazê-lo sofrer um

momento, igual o que ele tinha feito com ela a noite anterior.

—Agradeço isso muito —disse com a porta ainda entreaberta—. Mas

não fique aí parada, entre.

Notou como Gabriel se pegava ainda mais às dobradiças e riu em

silêncio.

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—É impossível. O menino está quase despertando e prefiro estar com

ele quando o fizer.

Mar lamentou que o primeiro intento tivesse dado errado. Provaria

outra coisa. Colocou a cabeça à rua e olhou em ambas as direções.

—Há muitos guardas pela rua, verdade?

A voz da Isabel soou surpreendida.

—Não sei. Você esteve esta manhã na vila e os teria visto.

—Por ali passam uns. Devem estar procurando a alguém, não crê?

Isabel virou a cabeça em todas as direções sem ver o que sua amiga

indicava.

—Onde? Eu não vejo nenhum.

Mar exalou um suspiro, estava claro que não ia poder contar com o

inocente apoio de Isabel. Decidiu deixar de torturar.

—Diga a sua mãe que antes de ir, irei me despedir.

—A que hora partirá?

—Antes do sol se por. Um dos criados do monastério de Irache virá

me buscar.

—Então não a verei mais —explicou Isabel, equilibrando-se sobre ela.

Deram um forte abraço. Tão forte, tão próximo, tão emotivo que a

figura de Gabriel e o rancor foi esquecido por completo. E seu único

propósito foi despedir-se de sua amiga.

Antes que Isabel desse a volta e partisse, voltaram a olhar-se. Ambas

lutavam por dominar as lágrimas. Mar não pôde conter-se e acariciou a

bochecha da amiga uma última vez. Isabel roçou o dorso da mão. E depois,

sem dizer mais nada se foi.

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Mar manteve a porta aberta uns momentos mais, até que conseguiu

serenar-se. Quando ao fim a fechou, pegou a cesta da comida do chão e se

encaminhou para dentro sem esperar Gabriel.

—Se divertiu?

Ela voltou com gesto violento.

—Menos do que queria — espetou.

—Não teria se atrevido me denunciar —afirmou ele.

—Não?

—Sua própria reputação ficaria abalada.

Ela soltou uma sonora gargalhada.

—Não ouvistes? dentro de umas horas, desapareço desta cidade.

França fica muito longe para que me alcance à maledicência desta vila.

De um golpe, colocou o cesto sobre a mesa e começou a tirar o que a

senhora Manuela enviou com tanto amor.

Gabriel teria acrescentado algo a mais a seu comentário. Algo do

tipo: como respiraria mais tranquilo assim que estivesse separado dela por

umas boas milhas, mas se calou. A verdade era que estar com ela era muito

divertido.

Algo chamou sua atenção. Estava na borda de sua saia e se atirava

nela.

Baixou os olhos disposto a dar um chute naquele vira-lata de rua que

devia ter entrado na casa atraído pelo aroma da comida. E se deparou com o

sedutor sorriso de uma menina com a cabeça cheia de cachos. Ficou atônito.

—É o pretendente de Mar? —perguntou com uns olhos escuros e

brilhantes.

—Como?

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—Irá se casar com ela? —insistiu a menina.

Gabriel teve vontade de começar a rir. Agora sim estava passando

bem.

—Teresa! —Mar estava estupefata—. Como entrou?

A menina ampliou o atrevido sorriso ainda mais.

—A janela estava aberta —respondeu com descaramento sem dar

muita atenção.

Naquele momento, todo seu interesse estava centrado naquele

desconhecido que discutia com a amiga de sua mãe. Ela sabia, porque tinha

visto seus pais, que quando os maiores brigavam, a maioria das vezes depois

se beijavam. E ela queria que o homem de cabelo comprido beijasse Mar.

Assim se casariam e não partiria para outro país, ficaria vivendo sempre ali e

ela poderia refugiar-se em sua casa sempre que sua mãe brigava com ela.

—Estou pensando —respondeu ele enquanto se agachava para ficar à

altura da pequena—. Achas que convém?

—Como atreve!

Nem sequer Mar soube se dirigia a Gabriel, a Teresa ou a ambos de

uma vez. Aquela conversa era grotesca. O que fazia uma menina e um...

estranho discutindo sobre sua vida amorosa como se ela não estivesse ali?

Ambos a ignoraram.

—A quer? —continuou a menina. Sem esperar a resposta — Minha

mãe diz que o homem que consiga deixá-la apaixonada levará a reluzente luz

dos luzeiros e as ardentes chamas do sol. Sabe o que quer dizer isso?

Gabriel levou a menina com ele, sentou-se no banco e a acomodou

junto a ele.

—Acredito saber.

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—E é bom?

Mar decidiu que já escutara suficiente.

—Acabou-se. Teresa, vai agora mesmo — ordenou, estendendo o

braço em direção à porta.

O rosto da menina se obscureceu e uma ameaça de choro apareceu

em sua boca.

—Deixe que fique um momento —disse ele com olhos joviais—. Teresa

e eu estamos tendo uma conversa muito interessante.

A pequena abraçou o pescoço de seu protetor. E Mar não teve mais

remédio que resignar-se. Ao fim, os inocentes comentários de uma menina

não iriam prejudica-la. Entretanto, concluiu que já tinha escutado o

suficiente, e não ia ficar ali para ouvir o que Teresa pudesse dizer para o

maior tolo que tinha conhecido até então. Olhou Gabriel com uma

advertência antes de sair para a oficina. Ali, se aproximou da mesa e se

sentou sobre ela de um salto.

E dispôs a esperar que passasse o mau humor.

—Explica isso? —insistiu a menina, obrigando Gabriel a afastar o

olhar da esteira que Mar tinha deixado a seu lado fazendo-o retornar de novo

para ela—. Explica-me o que quer dizer minha mãe?

—Teresa, como chamas Margheritte?

—Mar —respondeu a menina com naturalidade—. É como brilhar

como as estrelas?

Gabriel revolveu o cabelo com um amplo sorriso. Certamente, se

aquela menina tinha alguma particularidade era a de ser insistente.

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—E você, o que crê?

—Eu gosto das estrelas. E você?

—Também. Sabe uma coisa? —continuou ele com os olhos de Teresa

em expectativa ante suas palavras—. Não há nada melhor que passar a noite

no meio do campo e dormir as olhando por cima de ti.

—Às vezes se apagam e depois se reacendem —constatou a pequena.

—Sim, sabe por que se apagam? —A menina negou com a cabeça—.

Para que lhes dê tempo para piscar — comentou ouvido como se fora um

importante segredo —. E agora irá me responder uma pergunta?

—E como o sol? É bom brilhar como o sol? Por que Mar se parece

com o sol?

Gabriel inspirou. Ao que parecia, averiguar por Teresa o que estava

suspeitando desde que a ouviu chamá-la Mar não ia ser tão singelo como

tinha previsto.

—Porque queima quando se zanga, suponho.

—Sim, sim! —confirmou a menina—. Saem faíscas dos olhos, assim —e

começou a abrir e a fechar os dedos das mãos muito depressa.

Gabriel não pôde controlar uma gargalhada. Como comprovou os

gestos que Tereza fazia, refletia a Mar à perfeição.

—Sabe o que eu acredito? —Gabriel sabia como manter a atenção de

seu entusiasmado público feminino—. Que o que aparece nos olhos de

Margheritte quando se zanga são as estrelas refletidas no mar.

Voltou-se para a porta da oficina. Tinha sido imaginações ou escutou

uma exclamação afogada?

Teresa deu uns golpes na mão para chamar a atenção.

—Já não se chama Margheritte. Antes sim, mas agora se chama Mar.

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—Quando trocou o nome?

A menina encolheu os ombros.

—Minha mãe diz que quando era pequena tinha nome de flor, mas

que alguém a levou e deixou o mar, que é muito maior, sabe?

—Sim, e muito azul.

—Como os olhos de Mar. —Teresa baixou a voz e olhou às escondidas

em direção à oficina—. Foi um menino —confirmou com um profundo

mistério e o rosto muito sério.

—Que?

—Que levou o nome velho e deixou o novo. E logo partiu. Foi por aí.

Minha mãe disse uma vez que agora ele também era um monge.

Gabriel esteve a ponto de beijá-la. Aquela menina era uma joia.

Virtualmente tinha confirmado o que ele supunha, de suas palavras a mais

de dez anos, e que graças a ela se lembrou do nome.

E não sabia por que, mas aquela tolice o alegrava mais do que

pudesse imaginar.

Mar não tinha suportado e decidiu entrar. Entrar e interromper,

fora o que fosse o que estivessem conversando aqueles dois.

—Deixastes de cochichar? Teresa, acredito que têm que ir. Sua mãe

estará te procurando.

Teresa desceu do banco obediente. Tinha dado por encerrada a

conversa. Esticou a saia do vestido para tirar as dobras que tinha formado,

mas, antes de dar a volta para partir, aproximou-se de Gabriel. Este sustentou

o seu olhar e sussurrou:

—Me prometam uma coisa. —Ela assentiu—. Não fale nunca com

ninguém de mim nem diga que Mar tem um prometido.

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—Então, iram se casar?

Piscou um dos olhos em resposta.

A menina partiu encantada.

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CAPÍTULO 07

—Está contente?

—A verdade? Sim. —confessou.

«E muito, mas que divertido.»

—Deveria ter vergonha, surrupiar dessa maneira uma menina.

—E por que você acha que eu estive surrupiando? podia estar

perguntado por seus jogos infantis.

—Me acha tola?

—Não acho, talvez uma espiã.

—Não sou uma espiã, só estava me inteirando do que acontecia.

Gabriel deu uma gargalhada. Entretanto, ao ver o sério semblante de

Mar, decidiu que seria melhor voltar para a tarefa que tinha abandonado

antes da chegada da Teresa. Aproximou-se da lareira de novo, recolheu a

pederneira do chão e começou a golpear.

Os sinos da igreja avisaram de que a hora de comer já havia passado

tempos, entretanto, Mar perdera o apetite.

—Dói minha cabeça. Acredito que vou descansar um momento —

anunciou enquanto se dirigia às escadas.

—Quer que prepare um ensopado de rabanetes?

Ela nem se dignou a responder.

Nem tinha que dizer que não doía a cabeça nem estava com sonho.

Simplesmente estava esgotada. Esgotada, excitada, alterada e exausta. E não

sabia se todo aquele amontoado de sensações a agradava ou desgostava.

Vestida como estava, deitou-se sobre sua cama e começou a pensar.

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101

Aquilo foi o pior que pôde fazer. Assim que começou, as perguntas

quem?, o que?, como? E, sobretudo, por que? Martelavam sua mente uma e

outra vez. Por que a mim? Por que agora? Por que ele?

Havia passado muito tempo que sentira algo por um homem. Desde

que seu prometido morrera. E nem sequer recordava que tivesse sentido

algo. Luis vivia na casa de frente e cresceram juntos, era natural que quando

estivessem com a idade de casar, o fariam. Era um bom menino, embora

muito conformista, recordou. Ela inventava histórias de mundos longínquos

e ele a chamava de sonhadora e ria quando assegurava que algum dia,

partiria a conhecê-los. Mas Luis não estava, fazia muitos anos que nem

sequer pensava nele, e agora tinha chegado Gabriel removendo as

lembranças. Estava recordando que era uma mulher, uma mulher com

aspirações, ilusões e desejos. «Margheritte», repreendeu-se, «ver um homem

nu está afetando mais do que seria razoável». Mas não eram só os seus

ombros musculosos, seus braços ou seu peito, era também seus olhos, sua

voz e, sobre tudo, seu sorriso o que a afetava tanto.

Um momento depois, a fictícia dor de cabeça se converteu em uma

enxaqueca muito forte. Deveria ter aceitado aquele ensopado de rabanetes,

por outro de cebola ou por uma boa omelete de verbena que ficara na mesa.

Em algum momento, Gabriel deve ter pensado que preferia se

manter distante de sua companhia e a insensível solidão tomou conta de si,

sentindo a dor que esta provocara. Ao passar diante de seu quarto, Mar

fechou os olhos e conteve a respiração. Perguntando-se se atreveria a entrar.

Não o fez. No fundo de seu ser, se sentiu decepcionada.

O ruído que fazia a porta do quarto era inconfundível. Sempre

divulgando o som como as cigarras no verão.

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«Em umas horas estarei me afastando dele», foi o último pensamento

de Mar antes que uma inquietante neblina a envolvesse entre seu fôlego.

Tinha acabado o tempo. As sombras já penetravam entre as frestas e

o tecido que tampava na janela de seu aposento. Não devia faltar muito para

que o criado do monastério de Irache chegasse a procurá-la.

Mar se distanciou lentamente. Porque ao final dormiu. Apesar de

tudo.

A casa estava silenciosa, triste. Arrependeu-se de ter sido tão

insociável e ter preferido estar a sós no último momento. Lamentou não

haver se permitido acabar o dia escutando as risadas da Teresa, os gritos de

Isabel e a rosto que a senhora Manuela reservava para as ocasiões especiais

nas que sabia que tudo já estava perdido.

Entretanto, ficar se lamentando por algo que não tinha remédio não

solucionaria nada, resolveu. Já era hora de começar a preparar-se. Não queria

deixar esperando quem fosse que o abade do monastério enviasse.

Quando saiu ao corredor, as pernas se empenharam em guiá-la até a

sala, apesar de que a cabeça tentava dirigi-la para a escada. Gabriel também

dormia. Sua expressão não se parecia em nada da que mantinha quando

estava acordado. O traço de sua boca era muito mais amável, assemelhava a

de um homem cordial. Pela primeira vez desde que o visse, notou que a cor

de seu cabelo era mais claro do que parecia em princípio. A luz que entrava

através da fresta de uma janela indicava isso. Nunca antes tinha visto um

homem com um cabelo como este. Acostumada aos homens com o cabelo

curto, rapado ou calvos, ver um que deixou crescer o cabelo até alcançar o

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103

pescoço era francamente especial. Ficou com uma enorme vontade de tocar

as mechas que escapavam por detrás das orelhas, mas se refreou no último

instante. Notou o sangue seco de uma ferida recente debaixo da mandíbula.

E soube o que era que tinha feito com a navalha que tinha encontrado na

prateleira da cozinha. Tentava se barbear.

Quando Gabriel trocou de posição, Mar fugiu daquele lugar. O

último que faria era ter que dar explicações do que fazia ali com ele,

espiando. O Imaginou abrindo um olho e um sarcástico sorriso no rosto.

«A tempo», disse quando chegou ao quarto degrau e escutou uns

fortes golpes na porta.

O criado chegou muito antes da hora prevista. Teria que mandá-lo

um momento a taberna mais próxima, a que separava o limite do bairro dos

francos com o bairro de judeus.

Mar atravessou a oficina apressada e, apressada, abriu a porta.

Em boa hora.

Dois homens, vestidos de escuro e usando uma pesada capa,

apareceram na sua frente. As escuras boinas que cobriam o alto da cabeça,

fizera Mar pensar que o abade tinha enviado dois monges para acompanhá-

la. Entretanto, algo deixava transparecer no primeiro dos rostos e não era

precisamente amizade. Mar se deixou levar pelo instinto e tentou fechar a

porta para impedi-los de passar.

Mas a força com que abriram a porta, a levou ao chão. Os homens

entraram em seu lar com a rapidez de cães de caça.

Arrasaram com tudo que encontraram. Pincéis, buris, pedras-pome,

cinzéis, martelos, punções... Cada uma das ferramentas de seu pai, que ela

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ordenara com tanto carinho e que não podia levar, foram saqueados sem

nenhuma pena e jogadas no chão.

Mar, ainda estava sentada no chão, não atrevia se mover, foi quando

um dos homens se cansou de destruir, e foi para ela com os olhos furiosos.

Ela retrocedeu com as pálpebras apertadas sem deixar de sentir como o

homem avançava para ela.

—Onde está? — gritou o assaltante.

Descobriram Gabriel! O que seria dela agora? O que seria de ambos?

—Não sei a que se refere —mentiu sem se atrever a encara-lo.

Rezava para que ocorresse um milagre, qualquer coisa que fizesse que

aqueles homens desaparecessem.

—Não se faça de tola comigo! — reclamou, cravando os dedos por

debaixo da mandíbula e a obrigando a levantar a cabeça—. Fale! Vamos

encontrar, embora tenhamos que danificar este bonito rosto que Deus

concedeu.

Mar soube que não esqueceria aquele rosto facilmente. Um sujeito

sem uma orelha e a ponta do nariz, estivesse a ponto de arrancar sua

garganta não era uma lembrança fácil de esquecer.

—Deixe um bom aviso! Uma flor de lis no meio da bochecha ficaria

bem. Dessa maneira sempre recordará o lugar de onde vem — animou o

companheiro, um homem moreno e desalinhado.

—Não se preocupe, que este pássaro cantará breve. Disso eu me

encarrego.

De um puxão, separou-a da parede e a jogou dentro da sala. Mar não

encontrou nada em que se segurar e após um par de empurrões estava no

meio da cozinha.

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—Para seu bem, espero que tenha repensado. Já reparou que meu

amigo tem vontade de utilizar sua pele para fazer um desenho — repetiu o de

Nariz Cortado em voz baixa enquanto dava voltas a seu redor.

Esperou sua resposta, mas Mar continuava sem denunciar a presença

de Gabriel. A quarta vez que passou diante dela acabou a paciência.

—Onde está?!

Com aquelas garras apertando suas bochechas resultava impossível

dizer uma palavra. Não teria podido nem que tivesse querido. Mas o

movimento dos olhos deve ter a traído, porque o homem elevou a vista para

cima e um sorriso vitorioso apareceu na boca.

—O que acontece? —perguntou o outro.

—Vamos, está acima. Traga ela.

O outro assaltante subiu as escadas de dois em dois. Mar conteve a

respiração à espera do momento que descobrisse Gabriel. Pensou então que

não fez nada para avisa-lo, que o deixou encerrado como um pássaro em uma

jaula a mercê do gato. Mas se de sua garganta estava a ponto de sair um som

de advertência, ficou apagado quando o agressor intuiu o que estava

pensando e tampou sua boca.

No quarto de seus pais, as coisas começaram a cair. Mar não pôde

reconhecer todos os sons, mas sim a alça da arca, o golpe da banqueta ao se

chocar contra o chão, o som do espelho se partindo em milhares de partes,

o impacto da tampa da arca contra a parede ao ser aberta. Não pôde localizar

de onde procedia o resto do estrondo. Supôs que seria o conteúdo do arca

ao ser esvaziada e o crucifixo se estatelando no chão.

—Encontraste? —perguntou o de nariz cortado quando os ruídos se

detiveram.

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—Aqui não está!

—Siga procurando! Tem que estar aí!

«Efetivamente, estava», pensou Mar. A menos que tivesse fugido.

A ideia de que Gabriel tivesse desaparecido, arrepiou-lhe o pêlo da

nuca. A teria deixado sozinha o canalha?

Se Gabriel tivesse sabido que Mar pensava dele naquele momento,

teria saltado pela janela e a teria largado. Por ingratidão.

O certo era que estava dormindo não sabia do que se passava.

Quando despertou, Mar se levantou, desceu, abriu a porta para os dois

assaltantes e até os deixou entrar; estes destroçaram a oficina e invadiram a

intimidade do lar. E tudo aconteceu sob o mesmo teto que dormia

placidamente sem ter a mais mínima suspeita da ameaça que o espreitava a

menos de dez passos.

Por sorte, o perigo vinha acompanhado de muito pouca discrição.

Despertou, os sons abriram os seus olhos, o espelho se partindo o

pôs em pé, a tampa do arca o obrigou a mover-se. Mas o que fez soar todos

os seus alarmes foi escutar as vozes dos assaltantes. Voltou a ver a imagem

dos dois homens intimidando Mar junto ao rio.

Olhou a seu redor em busca de qualquer objeto que pudesse servir

de arma e o desânimo o envolveu. Uma velha vasilha meio torta e um

montão de palha não eram utensílios com os que alguém pudesse defender-

se de um ataque.

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Recordou então o espelho que escutou fazer-se em pedacinhos no

outro cômodo. Se pudesse chegar até ele, teria sorte de conseguir fazer um

ferimento suficientemente grande para amedrontar os agressores.

Um deles entrava no quarto de Mar. Aproveitou que o homem

entreabria a porta para cruzar o corredor. Na habitação grande, encontrou o

que procurava. Ao redor do arca, pulverizados pelo chão, estavam às partes

do espelho. Um par deles chamou sua atenção. Escolheu o mais estreito e

afiado. Um pedaço da moldura ficou enganchado na parte mais larga e que

permitia segurá-lo sem se machucar. Saiu do cômodo nas pontas dos pés,

com cuidado para não cravar nos pés nus alguma das lascas que brilhavam

dispersadas pelo piso.

O assaltante saiu da habitação no mesmo momento que Gabriel

pisava nas pranchas do corredor.

—Mas o que temos aqui? Estava oculto como um vulgar foragido —

balbuciou.

Gabriel franziu os lábios. Não ia permitir que aquele homem o

intimidasse. Não era a primeira vez que tinha que defender-se em uma briga

de taberna, embora nunca o fizesse com uma arma tão pouco apropriada.

Olhou com inveja a adaga que levava seu inimigo. Em comparação, a sua era

muito mais curta e menos mortífera. Observou de novo à figura que tinha

diante e fez um cálculo rápido. O tipo era bem menor que ele. O

comprimento de seus braços daria uma vantagem necessária, pensou e se

dispôs a começar a briga.

Abriu as pernas, flexionou os joelhos, separou os braços do peito e o

olhou com firmeza. Não pronunciou nenhuma só palavra. Não fez falta,

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todos os gestos desafiavam o homem. Este firmou posição, esticou seus

próprios músculos e se dispôs apresentar a batalha.

No princípio, nenhum dos dois parecia atrever-se a ser o primeiro a

atacar. Caminhavam em círculo sem deixar de se olharem mutuamente à

espera que o outro atacasse primeiro. Mas depois da terceira volta, o

assaltante ficou impaciente e lançou a adaga. Gabriel deu um salto para trás

e encolheu o estômago, bem a tempo de se esquivar do fio da arma do

adversário. Gabriel, sem pensar duas vezes e antes que o homem tivesse

tempo de atingir o seu braço, o golpeou provocando um corte no antebraço.

A resistência da carne ao ser perfurada disse que acertou em cheio. Cobriu-

se de orgulho. As brigas de todos aqueles anos o puseram em forma.

O agressor pareceu duvidar um instante e Gabriel aproveitou para se

afastar novamente do alcance de sua adaga.

—O que acontece aí acima? Acabe de uma vez. O francês pode ficar

impaciente e deixar de pagar.

Se o outro homem continuava na casa, o certo era que Mar também

estava. Gabriel sentiu um alívio que não deixou aflorar e se concentrou de

novo em seu inimigo.

—Aqui há alguém que não está disposto a sair da toca sem brigar.

—Não se mova daqui —escutou Gabriel do sujeito que estava no piso

inferior— ou mataremos aos dois: primeiro ele e depois você.

Gabriel soube que se não lutasse, as coisas se complicariam muito.

Contra um tinha alguma possibilidade, mas nenhuma contra dois homens

armados.

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Não pensou mais. Acumulou nas pernas todas as suas forças e se

lançou contra ele. O derrubou sem esforço e o arrastou até o fundo. Ambos

se chocaram contra a parede e caíram no chão. A luta começou.

Em algum momento Gabriel pensou que aquele tipo era uma presa

fácil, equivocou-se por completo. O homem lutava como um experiente

gladiador. Estava claro que não era um inexperiente e, certamente, aquela

não era sua primeira briga. debatia-se como um javali para tentar se livrar do

peso de cima. Gabriel perdeu a rudimentar arma, caiu quando ocorreu o

impactou sobre o assaltante, e pôs toda a sua concentração em um único

ponto: a mão que sustentava a adaga. Aquilo foi a sua perda. O homem

conseguiu soltar a outra mão e colocou um murro na altura dos rins, justo

no meio do hematoma. Gabriel se arqueou para trás de dor.

Trocaram as posições.

O atacante escapou de seu abraço e conseguiu ficar em cima. Gabriel

esperneou para tentar livrar-se dele, mas o homem o sujeitava como um

marisco em uma rocha açoitada pelo fluxo. A corpulência de Gabriel era

favorável em alguns momentos, mas aquele não era um deles.

Os dedos de Gabriel estavam agarrando o braço do adversário, sentia

como o braço dele aumentava sua potência. A adaga estava a menos de um

palmo de seu rosto e se aproximava perigosamente.

—O que acontece aí acima?

Por instinto, o malfeitor voltou à cabeça para a fresta das escadas de

onde procediam as vozes.

Aquele engano custou sua vida.

Gabriel arrancou a arma de sua mão, deu a volta e, um instante

depois já por cima apontou na direção da base da garganta. Este o olhava

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fixamente, surpreso ainda pelo que tinha acontecido. Mas o compreendeu

em um instante. O bandido fez um leve gesto apelando a sua piedade.

Gabriel notou que seu olhar se abrandava. Deixá-lo assim só atrasaria o

momento da morte.

Empurrou a adaga com um movimento limpo e rápido. O sangue

emanou como um manancial em temporada de degelo. Sentado sobre ele,

observou como o homem entreabria os olhos pouco a pouco até fechá-los

por completo. Notou os tremores e, depois, como os membros se relaxavam.

Não era a primeira vez que contemplava quão singelo era morrer.

E confirmou bem a tempo quão difícil era viver.

Uma figura apareceu detrás dele. Com uma tocha em uma mão e

uma faca na outra, o recém-chegado observou durante um segundo o corpo

de seu companheiro, mas logo se esqueceu dele e se concentrou em Gabriel.

Este se obrigou a levantar de um salto, procurou o refúgio da parede e se

forçou a ficar em guarda de novo. Não se surpreendeu com o aspecto pouco

humano do novo agressor. Sabia que a guerra e a vida nem sempre eram

fáceis. Respirava pesadamente de uma vez e se esforçava em avaliar suas

opções. Nenhuma. Estava fatigado, enfrentaria um homem descansado que

levava uma mortífera arma. O pouco que soubesse usá-la, sem dúvida,

acabaria com qualquer tentativa sua de atirar a adaga, ainda sanguinolenta,

que estava na garganta do outro assaltante.

Sem nada para perder, apelou ao truque mais velho do mundo.

Despistar o competidor.

Olhou por cima do ombro de seu inimigo para o início do corredor e

exclamou:

—Golpeie com todas suas forças!

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Uma risada sarcástica saiu da garganta do segundo assaltante.

—Pensa me distrair com esse engano?

Não pôde dizer mais. Ficou mudo e surdo quando recebeu um

tremendo golpe no centro do crânio que o fez estremecer.

—Não sabe bater mais forte? — Gabriel repreendeu Mar, que ainda

mantinha com força entre as mãos o tronco que tinha batido na cabeça do

sujeito, e que tinha tirado do montão da lenha.

Gabriel tinha razão, não tinha batido com suficiente força o golpe e

o assaltante estava se recuperando. Mar deu um passo atrás ao mesmo tempo

em que levantava de novo a lenha. O homem se voltou e decidiu trocar de

objetivo. Centrou-se no oponente mais débil. Levantou a tocha e avançou

em sua direção.

—Maldita puta francesa! —vaiou.

Não teve tempo de dar muitos passos mais.

Gabriel lançou um golpe no ombro direito. A princípio, o homem

pareceu não sentir o golpe e continuou andando, mas ao cabo de um

instante, a tocha desabou e o assaltante caiu de joelhos enquanto segurava o

braço ferido. Gabriel se aproximou com decisão e chutou a adaga do sujeito

para afastá-la. O ferro deslizou pelo piso até os pés de Mar, que a observou

com certa apreensão.

Gabriel pegou a adaga que estava gravada no sujeito e a dirigiu

contra o malfeitor. Este, ao ver que estava em desigualdade de condições,

colocou as mãos no chão.

—Procure algo para atá-lo! —urgiu Gabriel a Mar, que continuava

petrificada no meio do corredor.

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Ela reagiu ante a urgente petição e desapareceu no quarto de seus

pais. Demorou para sair, mais tempo do que Gabriel considerava razoável.

Quando por fim apareceu, levava nas mãos algo que parecia um

cinturão. Fabricado com um grosso cordão de couro, Mar tinha pensado que

seria suficiente para imobilizar ao assaltante. Entretanto, Gabriel não

pareceu ser da mesma opinião devido à expressão de seu rosto. De todas as

maneiras, estendeu a mão e o segurou.

—Segure isto! —disse impaciente entregando a arma—. Se ele se

mover, não duvide em usá-la.

Nervosa como estava, Mar teve que segurá-la com as duas mãos. O

assaltante notou seu tremor ao sustentá-la e lançou um sorriso malicioso.

Mas se tinha passado pela mente a possibilidade de escapar, o forte puxão

que Gabriel proporcionou no braço ferido, tirou-o do engano. Antes que

percebesse, tinha ambos os membros bem amarrados às costas.

Só então Mar se permitiu relaxar os músculos e deixar de ameaçar o

ferido. Se tivesse podido se sentar para acabar com a moleza de pernas, mas a

determinação que exibia o acusador olhar de Gabriel foi uma advertência:

não era o melhor momento para fraquejar.

Primeiro esconderam o defunto. Mar tentou agarrar pelos pés. Pesava

mais do que esperava e teve que segurar com firmeza para que não

escorresse. Depositaram-no ao fundo, em um dos lugares mais escuros, onde

o telhado era tão baixo que quase roçava o chão. Quando saiu dali, Mar só

pensava em como fazer desaparecer aquele escuro de sangue.

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Quando Gabriel desceu, Mar já tinha o caldeirão cheio e trabalhava

em excesso e com desespero para conseguir que a lenha queimasse.

Necessitava de água quente para limpar toda aquela quantidade de sangue.

Tirou a pederneira de suas mãos e continuou com a tarefa.

Não falaram até que, um momento depois, as chamas fizeram

crepitar a palha e começar a lamber o ramo de um carvalho seco.

—Quem eram esses homens? —perguntou ela, ainda com a voz

agitada.

—E você pergunta isso? Como entraram?

Mar demorou em responder e, antes de falar, já imaginava o que ia

acontecer.

—Abri a porta —confessou.

Não se confundiu.

—Como?!

Pela ira de seu olhar e a força com que Gabriel apertava os punhos,

Mar soube que se fosse um homem, suas mãos não estariam fixas ao lado de

seu corpo; teria batido em seu rosto.

—Pensei que era o servente do monastério de Irache —se desculpou—.

Estou esperando sua chegada. Parto para a França.

Aquela explicação pareceu contribuir para diminuir a fúria de

Gabriel.

—Eu disse antes.

Quando? Quando tinha contado que partia? Tinha sido depois da

visita de Isabel, quando tiveram aquela disputa verbal. Apenas mencionou e

pensou que merecia uma explicação mais honesta. Ao fim, ele contou a sua

situação em que se encontrava, inclusive expondo-se a que ela o entregasse

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aos guardas. E se por acaso isto fora pouco, acabava de matar um homem

para defendê-la.

Decidiu contar a verdade.

—Parto para a França a casa de uma prima. Não há muito tempo

descobri que tinha família ali e vou viver com eles.

Não parecia muito entusiasmada.

—Por isso tudo está recolhido.

Mar olhou a seu redor. Era certo que a casa parecia compartilhar a

tristeza. Com as paredes vazias e o chão sem tapetes, não resultava muito

acolhedora.

Assentiu.

—Sim, assim é.

—Saem esta mesma noite? —perguntou ele enquanto se aproximava

da porta.

—Não, hoje pernoito junto a outros viajantes no monastério de

Irache e amanhã, há primeira hora, parto com eles.

—Nesse caso, deveríamos arrumar —comentou, fazendo um gesto para

o desastre que os assaltantes tinham causado na oficina.

Não custou muito reunir os utensílios esparramados pelo chão. Mar

não se deteve em examiná-los com detalhe, mas notou que vários ficaram

seriamente danificados.

Lançou um olhar ao cesto onde estava oculta a bolsa de couro e se

aproximou dele com discrição. Estava tensa, teve que escavar para localizá-lo.

Escondeu-o as suas costas e se situou rente à parede , como se fora uma

vulgar ladra, foi se deslocando até chegar à porta e pôde escapulir com

aquele vulto detrás dela.

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Gabriel sorriu entre dentes quando desapareceu. «Ah! Margheritte

tem algo que ocultar», pensou divertido ante sua desconfiança.

Ainda tiveram que ensaboar e escovar o chão do piso superior até

que o tom da madeira substituiu a sinistra cor do sangue. Depois de acabar,

Mar esfregava as mãos com uma parte de sabão que ficava na casa, tentando

terminar com aquele aroma de sangue que estava por todos os poros de sua

pele.

Muito tempo depois, agradecia mentalmente que a senhora Manuela

tenha enviado Isabel com os suprimentos. Gabriel comia e Mar fingia que o

fazia. Em realidade, observava-o às escondidas sem deixar de perguntar-se

como podia pensar sequer em meter algo na boca quando acabava de

terminar com a vida de um homem.

Foi Mar que rompeu o silêncio.

—O que irá fazer?

—Depois que você se for? Não pensei ainda —mentiu.

Sabia, claro que sabia. Roubar um cavalo, um pouco de comida, de

roupa e partir para Olite. O resto já pensaria pelo caminho.

—Não pode ficar aqui. Esta mesma tarde tenho que entregar esta casa

ao responsável pela função de ourives na cidade.

Gabriel arqueou uma sobrancelha.

—Suponho que é consciente de que a fechadura de uma porta não é

um obstáculo muito difícil de salvar. —Sorriu orgulhoso ao pensar em como

tinha entrado naquela casa outras vezes —. Ficarei aqui por esta noite e

amanhã partirei. Espero não sofrer nenhum outro contratempo nas

próximas horas.

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Mar se estremeceu ao pensar nos «contratempos» que estavam

escondidos.

—O que vamos fazer com eles?

Não teve que explicar a quem se referia.

—Antes que amanheça tentarei me desfazer dele.

—E por que não agora mesmo?

—Porque, com sua propensão a se colocar em confusões, pode

aparecer esse criado que está esperando e nos encontra com o cadáver nas

mãos —se burlou—. Além disso, o rio não é muito fundo. Prefiro fazê-lo

desaparecer quando nem você nem eu estejamos perto.

—E o ferido?

—Esse deixaremos como está. Já se encarregará sozinho de que

alguém o encontre.

—Acredita que voltarão por você?

Gabriel respondeu com uma pergunta.

—O que aconteceu de verdade? Perguntaram por mim?

Mar puxou a memória.

—Não pronunciaram seu nome, mas que outra coisa queriam?

Gabriel se concentrou na coxa de galinha que tinha entre as mãos.

Era melhor aquilo que contar a Mar que os soldados que o custodiavam

quando escapou não sabiam nada de espanhol, que não era normal que uns

vulgares malfeitores procurassem um cativo fugido da Guarda Real, e que o

de nariz cortado não tinha nem ideia de quem era ele. Havia duas coisas que

estava seguro; uma, que aqueles dois bandidos eram mercenários ao serviço

de um terceiro; e a outra, que esse terceiro não era do rei. Se perseguiam

alguém, certamente, não era ele.

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Fez um tempo que Mar deixara de fingir que tinha fome. Afastou a

tigela para o centro da mesa e se limitou a observar o apetite insaciável de

Gabriel.

Matar um homem e apunhalar a outro não o tinha afetado muito.

Supôs que os homens como ele estavam acostumados a exercer esse tipo de

violência. As feridas que tinha no corpo deixava muito claro. Seus pais

tentaram protegê-la, mas ela não viveu encerrada em uma concha todos

aqueles anos; conhecia com perfeição as misérias e a crueldade que estava

exposta a existência humana. De fato, vivenciou em sua própria pele. Ver

morrer o irmão templário, só foi à primeira lição. Ver a pessoa amada,

alegre, junto com o resto dos recrutas, para não retornar nunca mais, foi a

segunda e a que conseguiu abrir os olhos definitivamente. Embora ainda, de

vez em quando, recordava a inveja que tinha sentido ao vê-lo partir. «Eu

nunca terei a possibilidade de fazer coisas tão excitantes», tinha pensado.

Depois, quando chegou à notícia de que morreu na fronteira de Aragón,

aprendeu a lição: a vida não era como imaginou. Era muito mais brutal, e

não tinha piedade de ninguém. E o homem que tinha diante de si adaptou à

perfeição.

Ocorreu de repente. Aquela podia ser uma forma fácil de que ele

pudesse sair da vila... e de que ela... Não, era uma loucura.

—Por que não vêm comigo?

«Por que não me acompanha?», era o que tinha pensado na

realidade.

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Gabriel elevou os olhos para ela, ainda sustentando um pedaço de

pão em uma mão e parte de uma cebola na outra.

—A França? Não, obrigado —disse, dando outra mordida e sem notar

o grau de excitação de Mar.

A desilusão apagou o desagradável aroma adocicado que desprendeu

a comida.

—Não, não. Até Irache. Quando vier o criado diremos que forma

parte da caravana e que também passará a noite no convento junto aos

outros peregrinos.

—E por que crê que sua proposta pode me interessar? O que eu

ganho com isso?

Tinha razão. Estava louca em pensar que um homem como esse

permitiria que o acompanhasse. Estava louca de supor que um homem como

esse não fosse complicar sua existência. Voltou para a realidade; seu futuro

se encontrava em um palácio em algum lugar em Rennes.

—Sair de Estella sem levantar suspeitas. Se o perseguem — indicou

com a voz mais fria que encontrou—, partir da cidade acompanhado e a

caminho de um monastério pode ser uma maneira de despistar a seus

perseguidores. Além disso, o abade do monastério, o pai Guillelmet, pode

te auxiliar. Ele também conhecia irmão Roger. Meu pai tinha amizade com

ambos e se encontraram em outras ocasiões.

«É uma possibilidade», pensou Gabriel com ironia. Sobre tudo

levando em conta que não acreditava que ninguém estivesse procurando a

ele.

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A aparente convicção de Mar obrigou a tragar o cinismo. Estava a

ponto de dar outra dentada na comida, quando um grito chegou como uma

descarga. «Maldita puta francesa!», gritou o bandido.

Aquele homem conhecia Mar. Sabia quem era. Não o buscavam, a

queriam!

Aquela certeza mudou tudo.

—Talvez não seja tão má ideia —aceitou sem permitir que a tenebrosa

sensação aparecesse em rosto.

—Acaso têm alguma melhor?

Uma chamada na porta o fez saltar do banco e o liberou de

reconhecer que não, que não tinha outra ideia melhor. Na realidade, logo

teria que ter uma ideia.

Não correram nenhum risco.

Gabriel não deixou que Mar abrisse a porta antes de olhar a rua da

janela do piso superior. Apareceu com discrição e comprovou que nenhum

dos cidadãos que percorriam a rua estavam interessado em nada do que

acontecia naquele lar.

Na frente da casa do ourives, um homem de média idade, usando

uma túnica de cor parda, esperava lhe atender.

Gabriel desceu depressa e bastou um simples gesto para que Mar

compreendesse que não havia perigo.

—Manda-me o abade... —começou o homem quando abriram a porta.

Ela não o deixou terminar.

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120

—Em um momento estou preparada. Espere aqui —disse e fechou a

porta em seu nariz.

Gabriel começou a organizar a partida.

—Precisa recolher algo?

—Tenho tudo preparado —explicou Mar, assinalando a pequena arca

que estava sobre a mesa da oficina.

—Me escute bem. Relata ao criado a história que inventamos. Eu

aguardarei na passagem dos peregrinos, me juntarei a vocês assim que

passem a meu lado.

Estavam prontos. Mar se envolveu no manto e o rodeava ao corpo.

Uma sensação de abandono havia tocado o seu coração, desde que o criado

bateu na porta. Antes de dar o último passo que a separava da rua, deixou

escapar um profundo suspiro.

Gabriel observava todos os seus passos escondido em uma das ruelas

do outro lado da rua. O criado já tinha posto o pacote e a arca no flanco da

mula quando ela girou a chave. A viu se benzer antes de enfrentar o seu

incerto futuro.

Notou o vulto debaixo da capa de Mar. Recordou a bolsa de couro

que ela tinha tirado às escondidas da oficina quando pensou que ele não a

olhava. Sorriu. Era uma garota prevenida. Ele, entretanto, só contava com as

mãos e os pés como únicos bens e, em suas circunstâncias, sendo ambos os

objeto de perseguição, não sabia se seriam suficientes. Pensou na

possibilidade de levar uma tocha da casa de Mar, mas não tinha querido

arriscar-se a passear notoriamente armado pela cidade. Assim se limitou a

esconder entre a roupa as facas que pegou dos assaltantes. Com a Guarda

Real rondando pelas ruas, passaria mais despercebido desarmado. Embora,

Page 121: Ana iturgaiz - sob as estrelas

121

se era correta sua intuição e aqueles bandidos procuravam mar em vez dele,

não sabia como ia protegê-la. Para começar, não tinha nem ideia do que ou

quem a ameaçava.

Mar não teve que golpear a porta da senhora Manuela, esta se abriu

com ímpeto assim que se aproximou. A mulher que Gabriel tinha visto com

Mar no mercado a abraçava, com tal força que estava certo de que no dia

seguinte lhe doeriam todos os ossos. Chorava desconsolada.

E Mar com ela.

Quando se separaram, Gabriel soube que a despedida chegava a seu

fim, entretanto, esperou até o momento em que a vizinha jogou um beijo na

frente de Mar, como teria feito uma mãe com sua filha. Sentiu uma pontada

de nostalgia que ameaçava sair do lugar que estava oculto todos aqueles anos

e começou a caminhar.

—Pararemos um momento para recolher outro peregrino que nos

acompanhará —avisou Mar ao criado quando voltaram à marcha.

O homem encolheu os ombros e franziu a boca em um gesto de

desinteresse. Não era a primeira vez que um homem e uma mulher partiam

juntos sem encomendarem antes à bênção da Santa Mãe Igreja. Conhecia

muitos supostos peregrinos que fugiam com a desculpa de procurar a

redenção divina para acreditar naquele conto.

Como tinha prometido, Gabriel saiu do lugar marcado assim que

passaram diante dele. Se o criado se surpreendeu pela falta de bagagem, não

disse nada, embora um sorriso zombador se instalasse definitivamente em

sua boca. Só de ver a bela moça que era, para confirmar todos seus

prognósticos.

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122

Mar, percorrer a rua das Lojas e depois a de São Nicolás, foi

interminável. Não contava que se encontraria com tanta gente conhecida

que teve que saudar. A maioria se dava por satisfeita com um leve

movimento de cabeça e um sorriso, mas houve uns poucos que se

aproximaram até eles para dizer adeus. E todos, todos sem exceção, cravavam

o olhar em Gabriel. Este observava com paciência, embora sem dissimulação

alguma, a despedida. Se a intenção era passar despercebidos, não

conseguiram de maneira nenhuma. Aquilo era algo que daria muito que

falar nos próximos dias. No dia seguinte, os falatórios do bairro dos francos

tratariam de uma só coisa: da partida da filha do ourives e do homem que a

acompanhava.

Em seu íntimo, Mar agradeceu a presença de Gabriel. Ajudava se

sentir mais segura e a obrigava a seguir avançando.

Chegaram a Porta de Castilla, um último passo os separava do

exterior, quando tropeçaram com um pequeno tumulto. «Uma briga de

bêbados», pensou Gabriel quando se aproximaram. Em efeito, dois homens

gritavam impropérios na saída de uma taberna, ante as expressões divertidas

do resto dos viajantes. Um dos espectadores era o filho do comerciante.

Gabriel o reconheceu imediatamente. Entre todos os rostos, o seu

era o único que não prestava atenção à disputa, mas sim o olhava. De frente,

lhe desafiando com seus olhos de rato. Gabriel sustentou o seu olhar lhe

desafiando a fazer um só movimento. O outro logo desviou o olhar, para

dirigi-lo a Mar, sabendo de que Gabriel não se afastaria dela. O filho do

comerciante passou a língua pelos lábios, lambendo-se, enquanto dirigia à

mão a virilha em um gesto obsceno. Gabriel soube que a próxima vez que o

encontrasse, o mataria, embora tivesse que fazê-lo com suas próprias mãos.

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Uns jovens saíram a toda pressa para onde se concentraram as

pessoas e estas se chocaram contra Gabriel, que se desestabilizou e perdeu de

vista seu competidor. Atrás dos rapazes, apareceram os soldados. Mar os

descobriu depois de que estivesse transbordando de pessoas e quase para o

coração quando os viu se dirigindo a porta da muralha. Se a fechassem

estariam perdidos.

Nenhum dos dois homens que a acompanhava pareciam ser

conscientes da gravidade da situação. O criado estava tão interessado na

briga que se colocou entre o tumulto para não perder detalhe dos

impropérios que se cruzavam os opositores. E Gabriel... Gabriel não sabia o

que fazer, pensou enquanto seus olhos saltavam pelos rostos das pessoas

próximas a ela.

Ao final, foi ela que teve que esporear a mula para que avançasse.

Ficar ali dentro, encerrados, aquela noite seria muito arriscado. Além disso,

nada nem ninguém a convenceria dormir ao lado de um cadáver.

Mar nem se deu conta de que o criado retornou, pois só tinha olhos

para um dos guardas que não deixava de observar Gabriel. Logo quando

faltavam uns passos para atravessar a porta, os soldados os abordaram.

Encolheu seu estômago e se esqueceu de respirar. Acabou. Recordou o

homem morto nos fundos de sua casa e se despediu da liberdade. Mas para

seu alívio, os militares não os detiveram. Passaram direto e se meteram no

meio da luta. Ouviu-se cruzar um ruído de aço e as vozes aumentaram de

volume.

A briga deu a oportunidade que procuravam.

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Gabriel disse algo ao criado e este voltou a sua atenção para passá-los

pela porta da grande muralha. Ninguém se fixou nas três últimas pessoas que

saíam pela Porta de Castilla em 26 de outubro de 1307.

Uma vez que se afastaram, Mar olhou para trás. Os grossos muros da

cidade não deixavam passar nenhuma luz, só brilhavam as tochas das

almenas do castelo e, no céu as primeiras estrelas começavam a sair.

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CAPÍTULO 08

—Adiante.

—Pai Guillelmet —comentou em voz alta o frade que a

acompanhava—. A jovem esperava chegou.

A porta se abriu e Mar se encontrou diante dos agudos olhos do

superior do monastério de Irache.

O abade era um homem de uns cinquenta anos. Magro em excesso

em sua juventude, os anos e o poder o ajudaram a engordar pouco a pouco

até converter-se em uma pessoa volumosa. Fazia anos que o homem deixou

de tentar se pentear, embora tivesse o costume de aparar o pouco cabelo que

ficava por debaixo da túnica. Mar nunca compreendeu qual era a razão pela

qual seu pai tinha cultivado a amizade com esse homem durante tantos anos.

De vez em quando, avisava a sua mãe e a ela de que passaria à tarde no

monastério e sempre retornava de pior humor que quando tinha partido.

Não havia tornado a pensar nele desde o dia do funeral de seu pai;

entretanto, um dia desses a tinha enviado uma nota em que a convocava a

Irache para interessar-se por seu futuro. Aquela conversa foi providencial, já

que coincidiu com a chegada da carta de sua prima que rogava que fosse até

ela. E o pai Guillelmet teve a gentileza de ajudá-la a realizar a viagem

acompanhando uns religiosos da ordem.

—Pai —saudou Mar ao mesmo tempo em que se apresentava a ele.

Este lhe estendeu a mão. Mar a beijou e ficou imóvel até que sentiu

uma breve pressão que autorizava a soltá-la.

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—Pode se retirar —concedeu o abade ao monge que a conduziu até

ali.

—Pai —repetiu este a modo de despedida.

O superior não respondeu e se dirigiu para a visitante.

—Passe, Margheritte. Algum contratempo durante o caminho?

—Nenhum. —Mar limpou a garganta, aquele homem sempre a punha

mais nervosa que o normal—. Só queria reiterar de novo meu agradecimento

pela amabilidade que tivestes comigo ao me oferecer a possibilidade de

acompanhar A...

Não pôde continuar. O religioso o impediu com um gesto.

—Sabe que não é nenhum incômodo. Não podia fazer menos pela

filha de meu querido amigo.

Mar piscou logo que pôde.

Por que aquelas palavras não a comoviam? Devia ser o tom de sua

voz, frio, calculador. Pela voz e pelo olhar.

—Vinha também... Falaram-me que... —Mar tomou ar para acalmar

os nervos e se decidiu—. Minha presença também se deve à entrega da

quantidade estipulada para o sustento durante a viagem —acrescentou

enquanto colocava a mão na bolsa de couro e tirava uma pequena bolsa,

separou umas dez moedas e as colocou sobre a mesa aonde o monge voltara

a se sentar.

O abade as contou com o olhar, depois, entrelaçou as mãos e se

acomodou na cadeira, coberta por um grande travesseiro de veludo granada.

—Leva muito dinheiro.

—Não tema, cuidarei dele.

—Leva outras coisas de valor?

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Mar ficou muda. Isso não esperava.

—Nada muito valioso —comentou com desconfiança—. Só umas

lembranças pessoais.

—Seu pai deve ter deixado alguma de suas criações —sugeriu seu

oponente.

Estava completamente desconcertada. Estava esse homem

convidando a que lhe entregasse seus únicos pertences?

—Apenas um par de coisas sem muito atrativo para outros —insistiu.

—Me mostre isso.

Mar viu cair seu futuro na palma que aquele homem estendia ante

ela. Não ficou mais remédio que colocar a mão na bolsa, tirar a peça e

entregar-lhe.

O abade o desembrulhou com lentidão e o observou com atenção.

—Sem dúvida, trata-se de um magnífico trabalho. Seu pai era um dos

melhores ourives do reino mesmo que esse não fosse o seu destino.

Mar estava cada vez mais confusa. O que queria dizer com aquilo?

Não deu tempo de perguntar. O abade deixou a peça sobre a mesa e de novo

abria a mão para ela.

—Falastes que eram duas coisas.

«Será possível!» E esse era o homem que dizia ser amigo de seu pai,

um que a menor oportunidade tentava despojar a sua filha de seus únicos e

mais apreciados bens?

A contra gosto, voltou a introduzir a mão na bolsa que pendurava no

ombro. Teve que procurar um pouco até localizar o anel e o entregou com

mais ímpeto do que a educação lhe indicava que era razoável.

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O abade o aproximou da vela, que titilava sem descanso sobre a

mesa. Quando a luz atravessou a safira, o reflexo se estendeu pela estadia.

O exame foi exaustivo. Deu várias voltas e o reconheceu por todos os

lados, como se procurasse algo que não apareceu. Assim que Mar intuiu que

o pai Guillelmet já tinha satisfeito seu interesse, abriu a mão. Não se

acalmou até que a peça e o anel voltaram de novo para seu lugar.

Ainda não tinha fechado a bolsa de couro quando o abade retomou

a conversa.

—Fui informado que não chegou sozinha.

—Não —confirmou ela.

Durante todo o caminho pensou como explicar a presença de

Gabriel no monastério, mas não chegou a nenhuma conclusão. E ali estava

sem um argumento razoável para pedir a esse homem que a protegesse

durante uns dias. Os olhos do superior do convento disseram que não ia se

conformar com uma história qualquer. Armou-se de coragem e decidiu

contar a verdade. Quase toda a verdade.

—Trata-se do antigo escudeiro do irmão Roger.

Aguardou que as palavras fizessem o efeito esperado. Ao fim, o

templário também era um velho conhecido daquele homem.

—Continue — urgiu ele enquanto se endireitava no assento.

Ao menos tinha captado sua atenção. Confiava em fazer o mesmo

com o seu pedido.

—Estava na Vila Vétula quando um grupo de soldados os capturou

seguindo uma missiva real.

O rosto do abade se esticou e suas mãos se apertaram.

—Os prenderam?

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Ela assentiu.

— Prenderam todos. Gabriel... o escudeiro — corrigiu— apareceu em

Estella sem saber que meu pai... Eu pedirei que fale com você —resumiu sem

dar mais detalhes.

Era melhor não mencionar que Gabriel fugiu dos captores, e não

uma a não ser duas vezes.

O abade trocou de atitude de repente. Voltou a recostar-se no

respaldo do assento e as mãos retornaram ao regaço, justo debaixo de uma

grande cruz de ouro com incrustações de rubis e granadas que luzia no meio

do peito.

—Têm que descansar, partirão pelo amanhecer.

Despedia-a.

—E o escudeiro?

—Falarei com ele —disse secamente.

Quando a porta se fechou atrás dela, a sensação de que acabava de

sair ilesa da toca da raposa ficou aderida à pele.

Gabriel não havia tornado a ver Mar desde que chegaram ao

monastério, nem sequer tinham atravessado juntos a porta de acesso. Assim

que se aproximaram, um monge postado na entrada fez um gesto rápido ao

criado que os tinha conduzido até Irache. Este convidou Gabriel a lhe seguir

enquanto que o vigilante fazia Mar atravessar para dentro do convento.

Havia descarregado a arca em um pequeno aposento e estava esperando que

alguém se lembrasse de que estava ali. Ficar sozinho em um lugar como

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130

aquele, era algo que fez parte de sua vida por muito tempo. Falar com os

criados, o resto.

Muito tempo depois, quando já pensava em fazer espaço entre a

palha que servia de cama e a comida dos pangarés, vieram busca-lo. O abade

se interessava por ele. Toda uma deferência para um ninguém como ele.

A conversa foi mais do que esclarecedora. Ficou perfeitamente claro

que pela frente teria que se arrumar como pudesse, que o abade daquele

convento, por muito que fosse conhecido da família de Mar e muito

correligionário do irmão Roger, não ia fazer um só gesto para ajuda-lo.

—A situação do monastério não é boa. A ordem perdeu influência e

posses e não pode se permitir em nenhuma circunstância enfrentar o poder

real. Estaremos encantados em oferecer refugio esta noite, até a alvorada —

havia comentado.

Partir com o vento fresco no amanhecer. Como se aquilo fora novo

para ele. Quando Gabriel apelou à amizade com o irmão Roger, o abade

relatou todos e cada um dos temas que estavam em desacordo ao longo dos

anos de relação. Gabriel, aborrecido, se entreteve percorrendo com os olhos

as paredes da estadia em que se encontrava. Só quando escutou a menção do

nome do pai de Mar, retornou ao monólogo com o homem em sua frente.

Concluindo, negou ajuda para auxiliar aos templários, e ainda

recomendou que tivesse muito cuidado em pensar em realizar qualquer tipo

de «mutreta» —como tinha qualificado— se fosse contra as ordens reais,

poderia acabar como eles.

Mas Gabriel sempre tinha preferido confiar em sua intuição antes os

conselhos alheios.

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O que conseguiu do frade foi uma comida decente. Depois da

«gentil» conversa, foi conduzido às cozinhas; dali acabava de sair com a

cabeça fria e o estômago quente.

«Hospital de peregrinos» anunciava a moldura que aparecia na porta,

mas a estadia que colocaram Gabriel para que desfrutasse de um bem

merecido descanso pouco tinha de hospital.

Tratava-se de uma enorme sala dividida em seis espaços quadrados

por uns grossos pilares, que sujeitavam outras tantas abóbadas. Grandes

tochas estavam situadas de tanto em tanto, e que não conseguiam iluminar

aquela desmesurada estadia, apoiadas nas paredes, saturavam de fumaça o

ambiente e contribuíam a encher as paredes de sombras.

Às mulheres e aos meninos eram mantidos na zona mais afastada da

entrada, os homens na mais próxima e, no centro, uns tecidos, profusamente

remendadas estavam pendurados, geravam a privacidade necessária entre uns

e outros.

Gabriel se aproximou do muro mais afastado da saída e se sentou no

chão, quando um de seus companheiros para o pernoite, lhe explicou que ali

dentro paravam todas as pessoas que à manhã seguiriam para Ultrapuertos,

Gabriel soube que Mar se encontrava a pouca distância dele.

Teve certeza quando o tecido próximo a ele se moveu e deixou

aparecer à cabeça de uma jovem. A garota perguntava por um dos homens, o

pai, supôs, até que viu que Mar a acompanhava.

Ele tinha uma melhor perspectiva da zona em que estavam situadas

as duas mulheres. Além disso, a sombra estava a seu favor. Mar estava de pé,

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debaixo de uma das tochas, e se esforçava por distinguir algo aquela

distância. Estava-o procurando. Levantou-se e se aproximou de uma das

colunas para ficar mais visível.

Quando ela o descobriu, disse algo à outra garota e ambas se

dirigiram ao seu lugar. Gabriel deixou passar uns minutos e se encaminhou

atrás delas.

A seu passo, escutou alguns comentários sobre a sorte que tinha

alguns. Sorriu na escuridão, satisfeito de ser o receptor daquelas adulações.

Mar o abordou assim que saiu. A jovem que a acompanhava se

afastou uns passos, seguindo a fachada do sólido edifício e se perdeu na

escuridão.

—O que disse?

—Que?

—O abade. Não falou com você? Disse que o faria.

Gabriel se separou da porta e se mesclou entre os animais ao fundo.

Mar o seguiu.

—O fez —confirmou.

—E?

—Nada.

Bateu no flanco de uma das mulas, que voltou a cabeça para ele.

—Nada?

—O que supunha que ia me dizer? —perguntou, passando a mão pela

garupa—. Bonito animal —acrescentou em um intento de mudar de conversa.

Melhor distraí-la com o seu falatório, antes de confessar que a

decisão de acompanhá-la foi tomada ao suspeitar que alguém atentava contra

a vida dela. Melhor que acreditasse que tinha sido uma tentativa de se salvar,

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antes que soubesse que era ela que estava ameaçada. Ao fim, em umas horas

partiria para a França, e ele se dirigiria a Olite e seus olhares não voltariam a

cruzar-se.

Nunca mais admiraria o fundo do mar em seus olhos.

—Não ofereceu ajuda? —insistiu Mar.

Gabriel virou para ela e deixou escapar uma gargalhada cínica.

—É muito generosa. Eu não sou mais que um vulgar vilão e ele o

grande senhor deste monastério, que, se por acaso não sabe, é o proprietário

de todas as vinhas, montes, terras, homens, fogos, Igrejas e o resto de

conventos daqui até muito além do que sua mente possa imaginar e seus

olhos possam abranger em vários dias. Em resumo: eu não tenho nada que

perder e ele não tem nada que ganhar. A conclusão é que terei que me

arrumar sozinho, tal e como tenho feito até agora.

—O que fará então?

Mar o viu arquear uma sobrancelha e esboçar um sorriso torcido.

—Voltarei para meu ofício anterior —e como ela o observava com

uma interrogação nos olhos, acrescentou—: procurar trabalho.

Mar não pôde dizer uma palavra. Acabava de se dar conta de que ali

terminava seu vínculo, sua relação ou o que fosse que tinham tido as últimas

vinte e quatro horas. Descobriu também que queria levar dele algo mais que

um simples adeus. Segurou uma de suas mãos, aproximou-se dele e ficou nas

pontas dos pés. Um pigarro a suas costas a tirou do atordoamento.

Antoinette, a garota que a acompanhou, a esperava.

—Faz frio — comentou abraçada a si mesmo e com a calada sugestão

de que deviam entrar.

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Mar nem se inteirou do vento gelado que penetrava pela abertura do

pescoço e pelo espaço das mangas.

Olhou para ele.

—Então... —começou.

Gabriel não a deixou continuar.

—Então, até manhã —se apressou a responder.

A viu partir. Se tudo fosse bem, no dia seguinte desapareceria antes

que nenhum dos que estavam no improvisado dormitório abrisse os olhos.

Seria melhor assim.

Não houve sorte. O pior de tudo: foi por sua culpa.

Quando Mar e a garota retornaram à zona das mulheres, ele estava

completamente insone e sem a energia necessária para dormir em algum

lugar e dialogar consigo mesmo e com seus pensamentos. E o solucionou

com rapidez. Só teve que ter um pouco de paciência, esperar que a escuridão

se fizesse mais profunda e a noturna começasse a emergir.

Ao princípio, só foram umas vozes. Depois, o resplendor de uma luz

indicou que não se equivocou. E, um momento mais tarde, encontrava-se ao

redor de uma fogueira e ganhava os primeiros copos de vinho.

Perdeu a noção do tempo bebendo vinho, agitando os dados sobre o

tabuleiro de tric-trac e participando das sonoras conversas dos moços de

quadras e dos «honrados» peregrinos.

Assim, quando conseguiu abrir os olhos à manhã seguinte, todas as

mulheres, incluído Mar, já estavam se preparando para o dia, recolhendo

suas coisas pessoais.

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—Já está pronto —comentou Gabriel depois de amarrar com força

uma das cordas com as que tinha fixado a arca de Mar à traseira da única

carreta que a acompanharia na viagem.

Os monges aproveitavam a ocasião para transportar umas

mercadorias até o monastério de São Salvador de Urdazubi, próximo a

Ultrapuertos, e o abade tinha tido a atenção de permitir que Mar pendurasse

seus pertences na carroça em lugar de sobre uma das bestas.

—Obrigado.

—Não me deve isso. Não teve nenhuma importância —assegurou

enquanto comprovava o último nó que acabava de apertar.

—Não, não só por isso, mas sim por tudo. Por me salvar do filho do

comerciante, por me proteger dos outros homens ...

—Por lhe salvar de mim mesmo? —brincou.

Gabriel tentava oprimir parte da emoção que o ameaçava subir à

garganta. Segurou com força a corda para vencer a tentação de tocar na

bochecha de Mar com os nódulos, passar a mão sob seu queixo, desenhar o

contorno de seus lábios com a ponta dos dedos e reclamar o beijo que ela

tinha estado a ponto de lhe dar umas horas antes. Concentrou-se na mão

feminina que repousava sobre a tampa da arca.

Agora que estava a ponto de partir, Mar se arrependia de não ter

insistido na tarde anterior na ideia fugaz de partir com ele. Só teria que se

esquecer de que era uma moça respeitável e deixar-se levar por seus desejos.

Pelos ideais e os carnais. Com ele, não tinha dúvida, poderia conhecer o

que havia além das muralhas de Estella. Arrependeu-se, mas sabia que um

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não permanece aonde não lhe querem. E Gabriel, deixou claro em várias

ocasiões, que era um daqueles que viajava sem uma mulher.

—Também, e por me salvar de mim —sussurrou ela de uma vez que,

com um dos dedos, seguia o contorno de uma folha de videira esculpida

sobre a madeira.

Foi o sedoso tom de sua voz o que obrigou Gabriel a olhá-la de novo.

Os lábios de Mar iniciavam um sorriso e Gabriel segurou a sua mão e a

levou com ele. Passaram por uma família que discutia em voz alta sobre a

melhor maneira de conseguir conduzir tudo o equipamento em duas mulas;

evitaram um grupo de frades beneditinos que saía da igreja depois de rezar o

terço e de venerar a dourada imagem da Santa María; deixaram passar um

dos criados do monastério que tentava carregar sobre um animal um par de

latas de vinho maior que a própria besta; e quase pisaram em um grupo de

meninos que brincavam de saltar uns ramos tirando pedras sobre elas. E ali

por onde passaram arrancaram mais de um olhar malicioso dos homens e

outra de censura das mulheres.

Estavam entrando de novo no dormitório comum quando Gabriel se

deteve. Antoinette, a garota que Mar fez amizade no dia anterior, e sua mãe

saíam naquele momento. Gabriel deu um passo atrás e obrigou a Mar a ficar

detrás dele sem afrouxar a pressão da mão. Por sorte, a mulher estava muito

ocupada em tirar com a filha uma volumosa trouxa, que continha as mantas

onde tinham descansado ela e seus quatro filhos, e nem os olhou. Só

Antoinette passou seus desconcertados olhos pelo rosto de ambos antes de

seguir a sua progenitora.

O contraste da escuridão interior com a luminosidade do incipiente

dia deixou Mar cega por um instante. Seu torpe sentido, recebeu as risadas

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infantis e as pisadas apressadas de vários meninos que brincavam em um

esconderijo ao fundo. Isso e o calor que desprendia a mão que aprisionava a

sua.

Gabriel parou sem avisar e Mar se chocou contra ele, tentava

analisar o que acontecia, nesse mesmo instante, notou como ele a fazia girar,

empurrava-a contra uma das colunas, segurava seu rosto com as duas mãos e

capturava sua boca. Por completo.

Foi fogo e paixão, foi verde e frescor, foi água, foi vinho, foi terra, foi

branco e preto, foi vermelho e foi brilho, foi sol, foi lua, foi mar. Mas sobre

tudo foi um desejo intenso.

E Mar se deixou levar pela refrescante corrente.

Os lábios se buscavam, as línguas se encontravam, os beijos contavam

tudo àquilo que as mentes não tinham acertado pronunciar. As mãos se

atreveram a explorar aquilo que até então só tinham alcançado com os olhos.

Rosto, cabelo, nuca, pescoço, costas, peito e outra vez o rosto.

E só se detiveram quando ficaram sem fôlego.

—Não esperava isto de uma donzela — falou Gabriel enquanto

ofegava com as mãos apoiadas sobre a coluna.

—Ser donzela não significa ter vivido em um convento toda a vida —

respondeu Mar, recuperando aos poucos o estalo de paixão apenas

parcialmente satisfeito.

Ele se inclinou para frente e descansou a fronte sobre a dela.

—Suponho que sabe que isto é uma despedida —murmurou.

—Não imagino outra melhor —murmurou ela em seu ouvido.

—Acredito que seu pai não teria gostado de saber que...

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—E eu acredito que o irmão Roger tampouco agradaria saber que

você...

Gabriel deixou escapar uma risada, que se perdeu naquele imenso

espaço.

—Mar?

A delicada chamada de Antoinette chegou da entrada.

—Meninos! se apressem! A caravana parte já! —gritou outra voz

feminina.

As vozes e os ecos das carreiras infantis os fizeram voltar para a

realidade.

—Não podia me preparar ontem uma despedida melhor? —sussurrou

Gabriel ao inclinar-se para lhe dar o último e mais tenro beijo.

Mar passou a mão pela áspera bochecha. Depois, passou por debaixo

de seu braço e desapareceu para sempre.

Foi como perdê-la sem havê-la conhecido.

A comitiva já partia quando ela saiu ao exterior. Aproximou a borda

da capa e pôs-se a correr para alcançar o último dos peregrinos que

caminhava capengante, apoiando-se em um cajado. Quando chegou até ele,

avançou um pouco mais para situar-se junto a Antoinette, que lhe deu a

bem-vinda com um tímido sorriso.

Não muito mais atrás, Gabriel percorria o mesmo caminho. Os

seguiria até o cruzamento, o mesmo lugar aonde apenas dia e meio antes

parou e decidiu dar o seguinte passo. Uma vez ali, eles iniciariam a viagem

para o país vizinho e ele... ele retomaria a promessa que tinha deixado

esquecida durante aquelas últimas horas.

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No topo da colina. Arrancou uma fibra de erva e a colocou entre os

lábios enquanto os observava seguir em direção a Ponte a Reina primeiro e a

Pamplona depois. Partiam agrupados, entretanto, já adivinhava a tendência

da fila a se estirar e dos meninos a perder-se entre os campos. Se não se

organizassem, não demoraria muito para parar e esperar algum atrasado.

Atrasou-se até que a silhueta de Mar se perdeu entre a massa compacta do

resto dos viajantes.

E só então seguiu o seu caminho.

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CAPÍTULO 09

A saída mais cedo de Gabriel de Estella, foi tão simples como estava

sendo o seu retorno. Não havia nenhuma razão para preocupar-se e, mais

confiante, achou por bem saudar como um velho amigo, um dos guardas

que tomavam conta da entrada da cidade, a que abrigava a residência real.

O surpreso francês apenas correspondeu com um gesto, tão forçado

que sentiu lástima por aquele moço. Teve piedade de sua desgraça ao se ver

obrigado a acompanhar o infante da França para ser coroado novo rei de

Navarra. Certamente teria preferido ficar em seu país.

França, a nova pátria de Mar.

Seria melhor que apagasse da memória tudo o que tinha acontecido

no último dia e meio. Entretanto, não ia ser fácil, inclusive com a lembrança

de um morto e outro vivo, trancados no porão da casa de Mar. Não sabia

como ia fazer, mas tinha que livrar-se deles. Depois, deixaria de uma vez

daquela cidade e se encaminharia para Olite. Já era hora de cumprir a

promessa que tinha dado aos irmãos. De maneira nenhuma terminaria seus

dias levando sobre as costas o peso de que o irmão Roger morrera na prisão

sem que ele tivesse feito nada para evitá-lo

O caminho para entrar no lar do ourives era fácil. Começava a

resultar rotineiro saltar o pomar, abrir a porta da cozinha e penetrar dentro.

E... também começava a ser repetitivo encontrar sangue no chão daquela

casa. Problemas. A última vez que tinha estado ali, o piso reluzia. Além disso,

a luta tinha acontecido na parte superior e não na cozinha.

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Gabriel se aproximou até o montão de lenha e tirou a faca que

escondeu no dia anterior detrás do monte. Se o homem conseguisse soltar-se

das ataduras, teria que procurar uma arma.

Confirmou que tanto a oficina como a cozinha estavam desertas. As

habitações do piso superior também estavam. Desertas, abertas e revoltas,

como tinha obrigado Mar deixar. E o porão vazio. Até o morto tinha

desaparecido.

Qualquer um que passasse na frente da casa do ourives naquele

instante teria escutado as gargalhadas de Gabriel imaginando o homem

capengando enquanto carregava o seu pouco recomendável companheiro

como se fora um vulgar bêbado. Um problema a menos para solucionar.

Demorou mais de seis horas para voltar a sair da cidade. Podia ter

partido muito antes, mas conteve a impaciência. Chamaria menos atenção

se não partisse logo. Aproveitaria a hora mais próxima ao meio dia, quando

muitos dos camponeses retornavam a suas casas depois de ter vendido parte

da colheita. Destinou aquele tempo para se preparar com algo que

necessitasse —as duas capas que pegou da arca do quarto do ourives viriam

bem— e de outras dispensáveis, embora sempre bem recebidas, como um par

de facas e uma tigela. Abandonou em um canto as duas maçãs que a vizinha

tinha incluído na cesta de comida no dia anterior.

—Os ratos me agradecerão por isso.

E, depois, dedicou-se a passear pela cidade. Quando se aborreceu,

pegou na mão as moedas que ganhou na noite anterior —benditos jogo de

dados—, entrou em vários botequins, bebeu, comeu, brincou com parte da

clientela, sorriu com as brincadeiras das garçonetes e deixou passar o tempo.

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Seis horas mais tarde saía pela Porta de Castilla pela segunda vez em

menos de vinte e quatro horas. Sem se voltar, elevou um braço e disse adeus

aos soldados, aos bêbados, ao filho do comerciante, à senhora Manuela, ao

morto, ao caolho e até ao novo rei. Não acreditava voltar a entrar naquela

cidade, agora já não ficava nenhuma razão para fazê-lo.

—Sooooooo! —Gabriel pulou do caminho com um salto. Um rosto

conhecido, o criado que os acompanhou até Irache, olhava-o divertido—.

Sem dúvida deve estar perdido. Os peregrinos saíram esta manhã em direção

a Pamplona.

—Sei. Deixei-os a salvo faz umas horas —respondeu Gabriel com

graça.

—Aonde se dirige?

—Aonde me levem os pés.

—E seus pés, aonde se dirigem?

—Por agora, por seu mesmo caminho.

—Nesse caso, poderia fazer um favor para eles e deixá-los descansar

um momento.

Não necessitou que repetisse para Gabriel; saltou na carroça que

estava cheia de barris. Dispôs-se a conversar o que fosse necessário para que

o homem, que conduzia a mula, não se arrependesse de havê-lo convidado.

— Vejo que você está acostumado a passar o dia todo viajando.

—Sim. Sou o mensageiro dos frades —comentou enquanto tocava de

novo às bestas e as insistia a continuar—. Não posso me queixar, é preferível

este trabalho que trabalhar no pomar ou limpando os estábulos.

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—Vai muito longe?

—Mais adiante —apontou o criado sem dar mais detalhes.

—O quanto muito longe?

O homem fez um gesto vago com a mão.

—Além de Oteiza.

Não era muito, apenas duas léguas e meia, três com sorte. Bom, era

melhor que nada. Olhou de esguelha os barris que o criado transportava.

Estavam claramente vazios de forma que se balançavam e se chocavam contra

si conforme avançavam.

—Vai trazer vinho?

—Exato.

—De Oteiza? Acho que o monastério possui outras vinhas mais

próximas.

—Tem, e a maioria dos frades bebe o vinho que se tira delas. Mas em

Oteiza têm muitas delas. É mais longe, mas o vinho que se extrai lá é de

melhor qualidade. Só bebem o vinho de Oteiza as pessoas mais distinguidas

—revelou o criado.

—Como o abade.

O homem encolheu os ombros.

—Não fui eu quem disse.

Gabriel soltou uma gargalhada. Depois de tudo teve que invejar o

astuto pai Guillelmet, que deixava muito claro que não era uma pessoa

humilde como ele.

—Há pessoas com sorte.

— Você não é uma pessoa de sorte? Ontem me pareceu que estava

conduzindo uma boa dama.

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—Diz por...? Só era uma... —como definir Mar?, vizinha lhe pareceu

muito frio, amante tivesse sido a palavra perfeita, falsa, mas perfeita—

conhecida.

—Uma conhecida que o deixou plantado assim que pôde.

—Partiu para a França — a desculpou enquanto agachava a cabeça

para evitar se chocar com um ramo que sobressaía no galho.

—Onde sem dúvida encontrará um partido com uma bolsa mais

cheia que você.

De repente, Gabriel teve vontade de convencer que Mar não era

daquele tipo de mulher, entretanto, conteve-se a tempo. A viagem na

carroça, puxadas pelas bestas, por curta que fosse, valia o esforço de seguir

adiante. Além disso, depois de tudo, o homem não estava muito errado;

pensou quando recordou como, depois do beijo, ela o abandou sem olhar

para trás.

—Pode ser, entretanto, eu sei como fazer para que a bolsa se encha

quando se precisa —confessou com arrogância enquanto passava a mão sobre

a capa, sob a qual guardava o dinheiro que tinha ganhado na noite anterior.

—Ontem à noite teve sorte com o jogo de dados.

—Estava ali?

—Impossível não fazê-lo. Monopolizaram a atenção.

—Não percebi que estivesse entre os que observavam.

—É normal —declarou o criado—, você não tinha olhos para nada que

não fossem os jogos de dados e as moedas. E não pense que eu era o único

que estava observando o jogo. Havia um tipo a meu lado, justo atrás de você,

que o olhava com cara de poucos amigos.

—Um tipo?

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—Um muito elegante. Quando se retirou, eu percebi que o estava

seguindo. Pensei que ficaria sem o dinheiro que balançava em sua mão.

Embora, pelo visto —acrescentou, jogando uma olhada significativa em

direção à bolsa que vazia sobre a perna de Gabriel—, Equivoquei-me, claro

que suponho que eles pensavam que partiriam com a caravana esta manhã.

—Eles?

—Ele e o outro com que falava, um disforme que faltava uma parte

do nariz.

O cérebro de Gabriel se negou a processar nada que não fosse à

imagem do homem de nariz cortado segurando e ameaçando Mar. Se o que

aquele homem estava contando e se o que ele acreditava sobre a quem

perseguiam aqueles homens estava certo, ela nunca chegaria a seu destino.

De fato, o mais provável era que não saísse do Reino de Navarra, talvez nem

sequer conseguisse ver o perfil das muralhas dos burgos de Pamplona.

Começou a olhar ao seu redor em busca de uma saída. Mas a

imensidão do terreno, as curvas do caminho, as colinas oscilantes, os

carvalhos e as tufas dos campos recém-arados não davam a respostas que

procurava.

Seria impossível sair dali.

Fazia muito tempo que deixaram para trás a ponte sobre o rio Arga, a

igreja de Santiago, o convento dos Trinitarios, a vila de Ponte e Reina e a

bifurcação para Eunate. E foi então, quando não havia carpinteiros que

acudir, que a roda da carreta escorregasse sobre uma das irregulares pedras

que cobriam a estrada e se precipitasse para fora do caminho. Ficaram

parados no meio de um nada.

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Logo informaram que seria impossível reparar a roda sem as

ferramentas adequadas e com a única ajuda dos braços dos poucos homens

que foram na caravana. Estes se agruparam para estudar todas as

probabilidades. Várias vozes se elevaram e expuseram o temor de passar a

noite fora de uma aldeia. Nem todos os viajantes que estavam pelos

caminhos eram de boa índole; e que aquela era a rota principal de

peregrinação para a tumba do apóstolo Santiago e não era a mais segura. Mas

voltar significava procurar alojamento não só para as pessoas mas também

para os animais e o equipamento; e os monges beneditinos não foram muito

receptivos ante a sugestão de abandonar o carro e a mercadoria. A

possibilidade de deixar os religiosos e que o resto do grupo continuasse o

caminho nem se mencionou.

Mar estava esgotada depois de cinco horas de caminhada, assim

procurou uma boa rocha e se sentou para esperar a decisão. Agradeceu a

chegada de sua nova amiga. Antoinette era a companhia perfeita. Seu bate-

papo ligeiro e seus divertidos comentários sobre cada uma das pessoas que os

acompanhavam, tinha obrigado Mar a se distrair de seus próprios

pensamentos.

—Por que não nos aproximamos até aquele córrego? —sugeriu a moça

em um momento em que a conversa diminuiu entre as duas.

—Logo será de noite e vai chover —anunciou Mar ao vislumbrar as

ameaçadoras nuvens que cobriam os Montes de Mendigorría.

—Falta um momento antes de anoitecer e a tormenta ainda demorará

em cair —insistiu a jovem.

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Mar não estava muito animada a sair do lugar, mas cedeu ao final.

Impossível não fazê-lo, Antoinette fazia a mesma expressão de desamparo de

Teresa.

Passaram por um terreno arado e atravessaram uma rocha cercada

de ervas. No caminho, passaram pela a mãe da garota que retornava junto

com a mulher do padeiro com os seus três filhos pequenos.

—Tomem cuidado! Não se afastem! —gritou enquanto agitava a mão

como saudação.

—Não se preocupem mãe! Retornamos em seguida!

Se meteram no bosque, depois que passaram pelas árvores, a luz

diminuiu grandemente e decidiram voltar para o exterior.

—Sabe que a mulher do padeiro tem quase quarenta anos a menos

que o marido?

—Não acreditei que fossem tantos, mas é notório que ele é mais velho

que ela.

—Eu não me casaria com um homem assim —anunciou a moça.

—Assim, como?

—Assim... Velho —explicou a garota com um estremecimento e um

gesto que deixava poucas dúvidas sobre a repugnância que lhe provocava a

ideia—. E você?

Mar foi mais precavida em sua resposta.

—O certo é que não sei. Não posso assegurá-lo. —Mas quando a

imagem do filho do comerciante retornou a ela, não teve mais jeito que

acrescentar—: Às vezes, um homem jovem pode ser pior opção que outro

com uns anos a mais —disse sem acreditar muito em seu comentário—Mas

não tenho um namorado —ratificou Mar com veemência.

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—Pois eu não acredito que você seja capaz de casar com um velho

como o padeiro. Em troca, com seu apaixonado...

Assim era isso. Era este o motivo, tinha insistido tanto em se separar

do resto, para ter uma conversa longe dos atentos ouvidos das demais

mulheres.

—Não é meu apaixonado — ratificou Mar com veemência.

—Pois parecia quando a beijava esta manhã. E você... —Mar esperou

que chegasse o inevitável—, você também parecia estar desfrutando.

O que dizer agora para uma menina que ainda sonha com ideias

românticas?

—Não diga tolices.

Mas Antoinette não se deixou enganar com aquilo.

—E bem? Desfrutaram?

Ela se rendeu. Não ficou mais jeito depois de notar como o rubor

subia às bochechas.

—Está bem, desfrutei do momento — confessou a contra gosto

enquanto tentava soltar a barra do vestido dos ramos.

Era certo, tinha desfrutado. Mais do que tivesse imaginado, mais,

mais do que tivesse querido. Quando Gabriel a segurou pela mão e a

arrastou consigo até dentro do quarto, sabia o que ia acontecer. E o desejava.

Com todas as forças. Desejava-o desde a noite anterior quando Antoinette os

tinha interrompido, na verdade o desejava desde a manhã anterior quando o

tinha encontrado ao despertar, na cozinha de sua casa sem camisa.

Antoinette deu uns saltos de regozijo.

—Sabia, sabia que estaria de acordo comigo. Sabia que era estupendo,

apesar do que contam as outras mulheres.

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Mar começou a preocupar-se, temia a reação dos pais da garota se, se

inteiravam do bate-papo que estavam tendo.

—Vamos ver, suponho que sabe que não pode ir beijando com

qualquer homem que fique atraída. —De verdade estava dizendo aquilo?—.

Só é correto em sua casa, com seu marido e na intimidade.

E, enquanto o dizia, afogava seus próprios pensamentos.

—Então você?

—Isso... isso era algo especial. —Recordou as palavras do Gabriel—.

Era uma despedida.

Antoinette estava desfrutando. Por completo.

—Pois ficaria encantada que o sobrinho do taberneiro de Viana me

tivesse beijado desse modo. —a moça começou a correr rindo envergonhada

de seu próprio atrevimento.

Mar a seguiu devagar, sem intenção de alcançá-la.

Quando se separou de Gabriel com tanta urgência e partiu correndo

em atrás da caravana que partia, não teve tempo para refletir sobre beijo. Foi

depois, durante a viagem, em um momento que Antoinette se afastou dela

para entreter a seus irmãos menores, quando voltou a pensar nisso. Tinha

sido maravilhoso sentir cem mil formigas percorrendo seu corpo. Tinha sido

maravilhoso notar a umidade de sua boca, a suavidade de seus lábios e a

dureza de sua língua. Tinha sido maravilhoso. E havia se sentido feliz. Mas

ela se afastou dele sem se voltar. Sabia que Gabriel teria saído de sua vida,

mesmo se ela não estivesse partindo para a França. Sabia que ele não era o

tipo normal, não era desses que se estabeleciam em um lugar, não era dos

que se casavam, não era daqueles que sempre faziam o correto. Não, não o

era. E ela, apesar de suas loucas ilusões, sim. Agora se dava conta de que a

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educação cristã que seus pais tinham dado, lhe pesava muito. Tinha desejado

ser a única em dirigir sua vontade, mas não teve a valentia suficiente para

enfrentar um incerto futuro — nem sequer para fazer uma pequena viagem

com suas coisas e seguir o caminho por volta da tumba do Apóstolo como

sempre tinha sonhado fazer.

Ela era uma covarde e Gabriel não. Ela partia e ele ficava. Era melhor

assim.

A observaram descer da colina, estavam escondidos detrás de uma

rocha. Primeiro, descendeu a jovem que a acompanhava e, depois, mais

tranquila, abraçada a si mesmo e apertando a capa, ela.

Seguiram-na com o olhar durante todo o trajeto. Viram-na pisotear

as más ervas que nasciam em uma das terras baldias e, quando começou a

cruzar o campo recém-arado, saíram do esconderijo e a espreitaram na

distância. Mar não suspeitou que vários metros atrás havia alguém

interessado nela.

Quando se aproximou da carroça acidentada, comprovou que as

nuvens se aproximavam com rapidez. Em pouco tempo iria chover.

Da parte traseira da caravana, se escutaram as alegres vozes dos

meninos. Mar abandonou a ideia de se aproximar e ver como seguiam os

trabalhos para o concerto da roda partida e se encaminhou para junto das

mulheres.

—Aguardaremos aqui. A tormenta não demorará em chegar e dentro

de um momento a escuridão nos dará a oportunidade que esperamos —

explicou um dos homens que a seguiam.

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Seu acompanhante assentiu sem dizer uma palavra. Apenas franziu o

cenho. Não fazia nenhuma graça que o homem que o contratou tivesse

decidido lhe acompanhar agora que seu companheiro estava morto. Não

gostava deste francês, embora pagasse melhor que outros.

Chovia, claro que chovia. Na realidade, um dilúvio, como se as

nuvens tivessem absorvido toda a água dos rios e a estivessem jogando de

uma vez. Chovia tanto que os viajantes tiveram que se refugiar debaixo da

carroça. Ao menos, os homens tinham conseguido equilibrá-la ao amontoar

uma pilha de pedras no lugar da roda quebrada. E ali estavam, mais de

quinze meninos e mulheres sentadas, sobre o chão cada vez mais molhado.

Mar estava sentada próxima a lateral. A princípio, quando a chuva

caía sem muita vontade, estava sob o centro do veículo para evitar que as

gotas a salpicassem, mas conforme o resto dos componentes da expedição foi

chegando, preferiu ficar em um dos cantos. Escondeu os pés dentro da saia

do vestido para não molhar muito. Ao menos poderia respirar.

Respirou, claro que respirou. Estudou os lençóis de água que o céu

jogava contra eles, verificou como as gotas se voltavam mais finas e mais

distantes e confirmou finalmente como as nuvens se esvaziaram por

completo e começavam a se dispensar pouco a pouco. Tinha deixado de

chover.

Apesar de tudo, as pessoas que se amontoavam junto a ela esperara

estar seguros de que o dilúvio não ia voltar a cair. Ninguém se moveu até que

uma luz procedente de uma tocha os iluminou por debaixo do carro.

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—Já se pode sair —anunciou um dos monges, mostrando a cabeça por

debaixo das gastas lonas.

Mar se apoiou nas mãos para se deslocar para fora do refúgio.

Quando saiu do amparo das lonas, ficou em pé. O vento, que tinha obrigado

às nuvens se afastassem, envolveu-a e agitou a sua roupa. Começou a tremer.

Estava congelada, imersão até os ossos. Poderia ter se envolvido com a capa

para se aquecer, mas qualquer parte desta, estava mais molhada que a roupa

interior. Precisava trocar de roupa ou corria o risco de cair doente. E a

viagem apenas começou.

À escassa luz do prematuro anoitecer, tentou localizar a voz de

alguém conhecido. Um par de fogueiras brilharam mais adiante. Começou a

caminhar para ali.

—Não a agradaria sair para dar um bonito passeio?

Aquelas palavras, com tão inocente significado, chegaram a seus

ouvidos carregadas de frieza e que a deixou estática. Mas o grito ficou preso

no fundo do peito quando sentiu a ponta de uma faca atravessar os fios da

roupa e chegar até a pele, por debaixo das costelas.

—Nem um só murmúrio, ou esse galã que a acompanha ficará sem

que você o esquente na cama esta noite. Se apoie na carreta!

O reconheceu. Reconheceu aquela voz anasalada. Era o mesmo

homem que invadiu a sua casa, o mesmo que ela tinha golpeado com o

tronco e que tinha deixado preso no porão. O que não deu tempo de

entender foi como e por que chegou até ali. Ele a segurou e a empurrou

contra a carroça sem deixar de apertar a arma contra seu corpo.

O eixo da roda se cravou no meio das suas costas, provocando uma

aguda dor que se estendeu por toda a coluna até a base do crânio. Quando

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pôde respirar, o primeiro que notou foi uma mão penetrando por dentro de

sua capa e percorrendo todo seu corpo com ávida cobiça. Não, outra vez não!

Enojada ante o ultraje que aquele tipo estava tentando fazê-la suportar,

preparou-se para tentar fazer algo em relação ao violento ataque, mas

percebeu então que o interesse do assaltante se centrava na bolsa de couro. A

ponta da faca se separou de Mar e tentava cortar a cinta da bolsa de couro

que levava em seu ombro.

—Já é meu —murmurou com avidez.

Com a certeza de que não era ela que se encontrava em perigo e

disposta a não ser roubada, empurrou o ladrão com todas as forças,

conseguiu que este se afastasse durante um segundo, pegou então a bolsa de

couro para tentar conservar suas únicas posses valiosas. E foi quando escutou

um forte golpe e o agressor pareceu desmaiar. Notou um vulto cair a seus

pés. Sem perder um minuto, saltou por cima dele. Só para se chocar contra

um sólido muro que se elevava na sua frente.

Quis correr, mas alguém com uma força muito superior à sua, a

segurou pela cintura, como se a tivesse apanhado com uma barra de ferro.

Quis gritar, mas alguém tampou a sua boca apertando-a para que nem um

sopro de ar lhe escorresse entre os lábios. Quis ficar, quis espernear e quis se

soltar, mas alguém com uma força surpreendente a colocou por diante dele e

a impediu fugir.

—Não grite — sussurrou ao ouvido o homem—. Será melhor não

alarmar o resto.

A obrigou a se encaminhar por uma das trilhas da vila mais próxima.

Atravessá-la foi difícil. Caminhou na escuridão afundando-se entre os

caminhos molhados, notando como o barro penetrava nos sapatos e

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enlameava os pés. O homem não a soltou em nenhum momento nem

afrouxou a pressão sobre seu corpo nem sobre sua boca. Não sabia para onde

a obrigava a dirigir-se, só se inteirou de que a trilha finalizara porque seus pés

voltaram a pisar em terra dura. Ainda teve que esperar um bom momento

até que as mãos do sequestrador deixaram de aprisioná-la e Mar se sentiu

livre.

Livre e prisioneira de uma vez. Agredida e perdida em meio das

trevas.

—Vejo que não chegastes muito longe em sua viagem — disse o

assaltante em tom irônico.

Mar o reconheceu. E não pôde acreditar que estava certa. Virou

furiosa.

—Você? O que está fazendo aqui?

—Passava por aqui, a vi em apuros e resolvi ajudar — burlou Gabriel—.

Começa a ser um costume em sua vida.

—Me ajudar? Acaba de me sequestrar!

—Essa é a sua opinião. Eu, em troca, acredito que acabo de resgata-la

de entre as garras de seus assaltantes.

Mar franziu a testa.

—Assaltantes?

—Me perdoe se não verifiquei onde podia estar o outro, mas lhe

asseguro que o que a atacou não estava sozinho.

—Eles procuravam você!

—A mim? —perguntou Gabriel sardônico.

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—Ao menos, mencionaram.

—Pois para me buscar se desviaram um pouco de meu caminho, não

vê?

—Me devolva para meus amigos!

—Amigos diz! Não me pareceu que nenhum deles se preocupasse com

você. Se eu não me encontrasse ali, agora estaria morta. Nem estaria me

ofendendo em vez de me agradecer por ter salvado sua vida.

—Está errado. Só queriam a minha bolsa —confessou ela—. Estavam

tentando me roubar.

«Assim é isso», pensou Gabriel. «O que procuram é algo que ela leva.»

—Do mesmo jeito, o caso é que foi atacada. A libertei e ainda não me

agradecestes isso.

Depois de ter roubado um cavalo e cavalgar mais de duas horas

seguidas até quase matar o animal, se deparava com aquilo. Ao chegar, a viu

na colina com a garota com que estava na noite anterior e também viu os

homens. Logo, sem saber como, tinha-os perdido de vista. Quando começou

a chover, ficou de um lado do caminho, e deixou que a chuva o empapasse

por completo enquanto a vigiava; se vigiar era poder reconhecer unicamente

a silhueta do carro, do animal e uns vultos humanos que se apertavam

debaixo dele. A milagrosa aparição do monge com a luz fez que a voltasse a

localizar. O resto só tinha sido esperar um pouco e não perder de vista sua

figura.

—Não teria que me salvar de ninguém se não tivesse invadido minha

casa perseguido pela Guarda Real.

E agora ela estava na sua frente o acusando de ser o culpado de

todos os problemas. Era um completo idiota. A deixaria ali, no mesmo lugar

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que a encontrou e a deixaria que ela se arrumasse sozinha com seus

problemas. Ele não ficava onde não o queriam. Assim, sem pensar duas

vezes, pôs-se a andar. Mar o escutou afastar-se.

—Aonde vai?

—Voltar de onde vim.

A voz chegou mais longe que esperava. Observou a seu redor, mas só

encontrou umas tétricas sombras projetadas pelos arbustos que a rodeava.

Olhou o céu. A lua aparecia por entre as nuvens.

—Irá me deixar sozinha? —disse, infundindo um deliberado tom aflito

à pergunta.

—Acaba de me dizer que se encontra melhor sem minha companhia.

Estava se afastando. Mar trocou de tática.

—Me devolva do lugar que me tirastes a força — ameaçou exigente.

—Volte você. Só têm que esperar umas horas para que amanheça e

retroceder por este mesmo caminho. Depois de um momento, verá a

caravana ao longe. Não acredito tenham arrumado a roda partida. Dará

tempo para retornar junto a eles e poderá continuar com sua excitante vida.

As nuvens se abriram e a lua apareceu no alto. Mar o viu afastar-se

por diante dela. Correu para alcançá-lo.

E quando já estava a ponto de apanhá-lo, ele se meteu detrás de uma

colina e desapareceu sem deixar rastro.

Levava já um bom momento sentada sobre uma pedra, mas Gabriel

não tinha retornado. Não fazia muito que pareceu escutar o tamborilar dos

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cascos de um cavalo se afastando. Era evidente que Gabriel a largou. Estava

sozinha. E imersa até os ossos.

Convenceu-se de que ele não ia emergir da escuridão; aproveitou a

oportunidade em que a lua aparecia de novo e procurou um lugar para

proteger-se. Estava claro que teria que passar a noite ali, no meio do nada.

Por sorte, o lugar que Gabriel a tinha abandonado não era uma zona

selvagem. Saber que não atacaria nenhum animal selvagem era um alívio, já

tinha suficientes problemas com animais de duas patas ultimamente.

Mais adiante, a um lado mesmo do caminho, encontrou umas

rochas. A maior delas se sobressaía sobre as outras duas, parecia um teto.

Não era muito estável, mas teria que valer. As menores estavam debaixo

daquela, pareciam colunas naturais e formavam uma pequena câmara. Era o

melhor lugar que encontraria para proteger-se. Além disso, parte do chão

que cobria ainda estava seco. Todo um milagre. Agachou-se com os pés

encolhidos sob a saia molhada e os braços rodeando as pernas e se apoiou o

que pôde à parede.

Quando estava acomodada — se é que estar dobrada como um oito

podia chamar comodidade—, apoiou a frente nos joelhos e começou a

tremer. De frio. Tremia cada vez que intuía que as gotas voltavam a cair.

Tremia cada vez que o vento deixava passar seu fôlego entre as pedras e

ululava junto a seu ouvido.

Tremeu durante minutos e durante horas. Fez até que se fecharam

suas pálpebras, consumida pelo cansaço e dormiu profundamente.

Despertou com uma mão sobre seu ombro esquerdo. contraiu-se ante

a possível ameaça e esteve a ponto de saltar.

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—Sou eu —murmurou uma presença a seu lado, enquanto a

aproximava dele.

Ela relaxou ao escutar aquela voz. Apoiou-se contra seu peito em

busca do calor que seu próprio corpo tinha perdido momento antes. Sentiu

como a desprendiam da pesada capa carregada de água e a cobriam com um

rígido pano seco.

Sem ser consciente, deixou escapar um suspiro e, voltou a dormir.

Uma hora depois, quando o amanhecer já raiava o horizonte,

Gabriel ainda se perguntava por que, já que não tinha nenhuma dúvida que

Mar encontraria de novo a caravana pela manhã do lugar que a tinha

deixado, retornou para procurá-la.

Quando fechou os olhos e sua cabeça aparou a dela, ainda não tinha

encontrado nenhuma resposta sensata. A única que se apresentava em sua

mente era aquela vez em que tinha fantasiado dormir com ela sob as estrelas.

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CAPÍTULO 10

—Não. Não vou levá-la de volta até eles. Já disse qual é a direção que

têm que tomar para alcançá-los. Não se perderá se seguir minhas indicações

—Eu também já repeti mil vezes que me trouxe aqui à força e,

portanto, é quem me vai devolver.

Gabriel acabou de recolher o tecido esticado com o que haviam se

abrigado aquela noite, graças ao qual conseguiram chegar pela manhã sem se

molharem, e o introduziu na bolsa que pendurara no cavalo. Bateu na

garupa do animal. Era um bom cavalo. Muito corpulento para seu gosto, mas

obediente como poucos.

Lamentou em silêncio não havê-lo podido atender a noite anterior

como merecia um companheiro dessa categoria. Ele sabia melhor que

ninguém a diferença entre passar uma noite tão rude como aquela ao relento

ou fazê-lo em um estábulo seco e rodeado de palha.

—O problema é que imagina que já partiram, e você não quer me

acompanhar até alcançá-los —acrescentou Mar, olhando o sol elevar-se por

cima das colinas circundantes.

—«Meu problema» é que já perdi muito tempo —balbuciou ele entre

dentes.

—Tempo? —Mar o escutou perfeitamente—. Posso saber o que é essa

coisa tão importante que têm que fazer e que o impede de me tratar com

mais nobreza?

—Nobreza diz? —bufou e voltou o rosto para ela com brutalidade—.

Parece pouca nobreza percorrer mais de cinco milhas em plena noite sob

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uma tormenta do demônio para vir resgatá-la assim que descobri que estava

em perigo?

Gabriel não se separou da lateral do cavalo, seu rosto deixava

transparecer que suas palavras a respeito de sua pouca generosidade o

tinham ofendido no mais fundo. Mar sentiu a mudança e deu um passo

atrás.

—Do que está falando?

—E ainda me pergunta isso quando a salvo cada vez que alguém a

ataca?

—Ontem foi uma intenção de roubo. Sem dúvida um ladrão dos que

ameaçam o caminho.

Gabriel teve duvidas se contava a Mar suas suspeitas. Não estava

perguntando? Então se inteirasse de uma vez.

—Era um dos bandidos que entraram em sua casa —proclamou—.

Buscam você.

—A mim? — Mar riu —. Aqueles homens queriam você.

Gabriel elevou uma sobrancelha e fez um gesto com a cabeça para

negar aquela hipótese. Seu semblante não deixava lugar a dúvidas de que

aquilo era sério. Mar paralisou uma careta na boca.

—Em Estella, já suspeitei que eu não fosse à vítima e, depois de

ontem à noite, estou seguro de que é vocês a pessoa que perseguem.

—Mas se eu não tenho...

Levou a mão a bolsa de coura, que apenas umas horas antes tinha

estado a ponto de perder. O gesto não passou despercebido de Gabriel,

entretanto, não faz nenhum comentário sobre o possível conteúdo.

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161

Conduziu o cavalo ao redor das rochas nas que se refugiaram e, sem

pensar duas vezes, subiu com agilidade.

—Vêm? —convidou-a uma última vez, lhe oferecendo a mão para

ajudá-la a subir.

Mar o olhou ausente, como se o que estivesse observando se

encontrasse além dele. Sentia-se como se um espelho com outro atrás

fizessem reverberar sua própria figura até o infinito; como se estivesse

apanhada no centro daquela repetição interminável e não pudesse mover-se.

Se fosse com ele. De novo aquela alternativa. De novo a

possibilidade de trocar sua perspectiva. De novo a possibilidade de cruzar o

horizonte e abandonar a segurança. De novo. E de novo com ele.

Gabriel jogou um último e definitivo olhar. Nenhum dos músculos

do rosto de Mar enviou uma leve resposta afirmativa, assim tocou o animal e

este começou a andar.

Mar o viu partir. Ao contrário da vez anterior, que ela era que partia,

agora era a que ficava. Algo lhe disse que aquela era a definitiva, a última vez

que poderia escolher o que fazer com sua vida, a última opção. Sem pensá-lo

sequer, substituiu na mente as palavras cautela, prudência, decência, reserva,

normalidade, decoro e solidão por façanha, perigo, imprudência, risco,

intrepidez, valentia e paixão. E a ardente despedida em Irache, veio uma

lembrança para ela.

—Me espere!

Não tinha elevado à voz o suficiente para que ele a ouvisse. Mas

Gabriel o fez. Entretanto, nem deu a volta nem deteve o passo. Lançou um

olhar malicioso para o horizonte, seus lábios se franziram em uma careta

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maliciosa ao tempo que se inclinava para diante e acariciava as crinas do

pescoço do animal.

—Amigo, ganhamos esta batalha.

Agradava-lhe a ideia de vê-la caminhar atrás dele, mas tampouco

queria desanimá-la. Assim atirou da brida do corcel para atenuar o passo e

esperou a segunda chamada. Não se equivocou.

—Me espere!

Gabriel sentiu os passos apressados aproximando-se por detrás, teve

piedade dela e deteve o cavalo. Quando chegou a seu lado, esticou a mão de

novo. Mar não a segurou.

—Prefiro caminhar —anunciou, e conforme o disse, o fez.

Ele a alcançou.

—Não pode chegar andando.

Mar elevou a vista para ele.

—Posso. Ontem o fiz.

—Não penso ir à velocidade de seus pés. Já disse que tenho pressa.

—Agora que o menciona, terá a amabilidade de me informar para

onde nos dirigimos?

—À Olite.

Pela forma em que ela o olhou, com aqueles profundos olhos azuis

cravados nele, Gabriel soube que tinha intuído sua intenção.

—Está louco?

—Suba —ameaçou de novo.

—Disse que vou andando.

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Gabriel se aproximou ainda mais para incitá-la a montar, entretanto,

assim que Mar viu os olhos do cavalo em sua direção, deu um salto e se

afastou espantada. Gabriel não pôde controlar um sorriso malicioso.

—Tem medo dos cavalos. Não sabe montar.

Riu dela, até quase cair de costas. Mar o olhava ofendida, o

desafiando a voltar a dizer outra só coisa sobre seus medos pessoais.

—Sei fazê-lo.

—Montar em um burro não é a mesma coisa. Qualquer menino

pequeno o faz —comentou Gabriel quando os espasmos de riso permitiram.

—E o que? Vivo em uma vila. Nunca necessitei.

Ele se obrigou a controlar-se.

—Pois eu acredito que esta é uma boa ocasião para que aprenda —

disse enquanto passava a perna esquerda por cima da garupa e se deixava cair

de um lado.

—Que não passe pela sua mente que vou consentir montar nesse...

nessa torre.

—Não se preocupe. Não é questão de imaginação, mas sim de fé —

conseguiu dizer antes de voltar a estalar em gargalhadas.

E ali estava ela, sentada escarranchada diante de Gabriel, aterrorizada

e agarrada à crina daquele cavalo para não cair e romper o pescoço. A

coluna ficou rígida devido à postura. Ele, em troca, parecia até descansado,

com as pernas pendurando a vários pés do chão. Claro que, além disso, ia

comodamente sentado nos arreios e apoiado nas bridas o impediam que

caísse, enquanto que ela concentrava todos os esforços em tentar não

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escorregar. Mar tinha tentado o convencer de ir em suas costas, dessa

maneira poderia segurar na cintura dele, mas não teve êxito. Assim não ficou

mais remédio que ficar diante dele.

Espiou às escondidas as mãos que seguravam as rédeas. Embainhadas

naquelas duras luvas de couro, apertavam as cintas que sujeitavam a cabeça

do cavalo. De onde tirou tudo aquilo? Quando ela o deixou em Irache não

tinha nada mais que a roupa que vestia e inclusive aquilo ela proporcionou.

Mar se moveu no instável assento em busca de uma postura mais

cômoda.

—Relaxe, não esteja tão rígida, se mova com o cavalo — murmurou ele

ao ouvido—. Suas nádegas lhes agradecerão isso dentro de um momento.

—É muito fácil para você, não?

Mar voltou o rosto para trás com brutalidade e se desequilibrou por

completo. Agarrou de novo o cavalo e tentou tranquilizar-se. Depois de ter

tomado por fim a decisão de trocar sua vida, o último que queria era acabar

seus dias rompendo o pescoço em meio de um caminho qualquer, em um

lugar desconhecido entre Ponte a Reina e alguma parte em direção a Olite.

Um som gutural lhe informou que Gabriel estava se divertindo em

suas costas.

—Sim, é fácil. Ter passado toda a infância e parte da juventude sendo

o escudeiro de um cavalheiro templário favorece alguns costumes.

—Move-se aqui acima com toda segurança.

—O irmão Roger me obrigou a subir em um cavalo quando eu já

roçava com a cabeça no ventre dos cavalos. No princípio me infundia muito

respeito, mas não era um homem que se conformasse com uma negativa.

—Assim o ensinaram a montar.

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—E a todo o resto. Montar não tem nenhum mistério para mim, nem

tampouco arar, cultivar, debulhar ou encerar e não acredito que haja algum

lugar do monastério que eu não tenha lavado e tirado brilho ao menos um

par de vezes cada mês. Obrigou-me a trabalhar, a aprender a guerrear, a

escrever e, é obvio, a estudar as Sagradas Escrituras, em latim. Acredito que

em seu íntimo sempre esperou que eu decidisse entrar na ordem.

—Mas não o fez.

—Não.

Ela tinha feito o comentário anterior com a esperança de que

Gabriel explicasse algo de sua vida, de que esclarecesse a que se dedicava em

realidade, o que era o que fazia para sustentar-se, qual era a ocupação de

cada um de seus dias. Mas não teve sorte. Gabriel deu por resolvida a

questão com seu comentário final.

Passou mais de meia légua até que alguém pronunciou as seguintes

palavras.

—Têm fome? —perguntou Gabriel.

—Para falar a verdade, sim.

No dia anterior não tinha jantado, nem tomado o café da manhã

aquele dia. Um almoço, embora ligeiro, apresentava-se como o melhor dos

prazeres.

—Terá que esperar um pouco mais, mas logo chegaremos a um lugar

que poderá descansar.

O caminho percorrido foi longo, entretanto, aquele último lance

pareceu eterno. Tentou relaxar olhando ao céu. Depois da tormenta da noite

anterior, a manhã tinha amanhecido surpreendentemente luminosa. Os

raios do sol os alcançavam e amenizavam parte do frio do ar. Entretanto,

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tinha que esfregar as mãos de tanto em tanto para evitar o frio. Além disso,

quando divisaram ao longe a capela de Nossa Senhora de Andión, sentiu

como a umidade do ambiente aumentava e a sensação de frio se fez mais

urgente. Aproveitou esse pequeno pretexto para apoiar-se sobre o peito de

Gabriel.

Apesar da sela que se interpunha entre ambos, um estranho bem-

estar se apoderou dela. Gabriel se moveu para acomodá-la. A ideia de

rechaçá-lo ficou completamente esquecida e teve que esforçar-se para não

soltar um suspiro de alívio.

Sabia. Gabriel sabia que cedo ou tarde ia se recostar nele. Sabia

desde que a tinha convencido para que subisse e ela se inclinou para frente,

longe dele, em busca de outra posição menos perigosa. Era muito teimosa,

muito. Depois de tantos anos, seguia tendo o mesmo caráter. Ainda

recordava sua cara de irritação e seu cenho sério na noite quando, ainda vivo

o irmão Pablo, seus pais a enviaram à cama.

E não era a única coisa que se lembrava. Tampouco esqueceu a

pequena figura de camisola, sentada com ele para se inteirar do que tratavam

os adultos no piso de abaixo e, depois, seu ar altivo enquanto caminhava

pelo corredor para o quarto.

A chegada no interior do bosque fez Gabriel sair de seus

pensamentos. Conhecia uma pequena curva do rio do outro lado das

árvores, poderiam descansar um momento e repor as forças. O cavalo

também precisava beber e alimentar-se. Embora não seria prudente que o

cavalo bebesse daquelas águas, não tinha alternativa que deixar. Não era a

primeira vez que via um homem ou um animal retorcendo-se no chão

enquanto que parte de sua existência escapava em forma de asquerosa

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secreção. Mas não havia outra opção, ao menos no momento. Podiam ter

entrado em Mendigorría e chegado até alguma estalagem. No povo, tanto

eles como o cavalo estariam a salvo de águas infectas, mas não queria que

ninguém visse Mar com ele, não enquanto estivessem sozinhos. Não estavam

muito longe de Estella e a nenhum dos dois interessava tropeçar com um

conhecido. Ela, porque sua reputação ficaria comprometida e ele, por... no

caso de. «A gente nunca pode prever quando pode aparecer um bom

samaritano disposto a meter-se nos assuntos alheios», comentou para si.

Saíram de entre as árvores. Troncos escondidos, lisos e suavizados

durante anos pelo rio Arga, empilhavam-se onde a enchente os depositava a

cada primavera. Mais adiante, outra fila de altos arbustos e vegetação variada

separava as rochas da água. Não se via nenhum lugar para se aproximar do

rio.

—Ficamos aqui —disse ao mesmo tempo em que segurava a mão sobre

a sela, tirava a perna por cima da garupa e se deixava cair.

Mar se endireitou quando notou que desaparecia seu apoio.

Gabriel a observava com olhar cauteloso do chão. Sabia o que vinha

a seguir. Iria segurar a sua mão, ela deslizaria, ele a agarraria pela cintura e

acabariam juntos, um contra o outro e olhando-se nos olhos. Sua boca a

menos de um palmo da sua. E ele não resistiria.

Aconteceu como pensou. Pareceu que Mar estava desejando. Ele

nem sequer teve que insistir em que cedesse. Logo que viu que estava

esperando, ela se soltou e se jogou em seus braços.

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Mar deslizou sem que pudesse fazer nada por evitá-lo. Foi como se as

mãos estivessem esgotadas de manter a tensão durante tanto tempo e tivesse

decidido tomar um descanso. Simplesmente, se soltou.

E ela caiu em seus braços.

Com os olhos na altura da parte superior de seu peito, Mar percebeu

como Gabriel respirava pesadamente e sua garganta se afundava a cada

inspiração. Junto ao frenético ritmo de seu próprio coração, escutou

enquanto tragava pesadamente a saliva por sua garganta. O brilho de seu

olhar carregado de avidez disse que não estava equivocada. Ele a desejava.

Igual a ela a ele.

—Disposta a reatar a despedida de ontem? — Gabriel comentou

zombeteiro, enquanto a apertava contra si como se fosse uma vulgar

concubina.

As irritantes palavras e o injustificável gesto foram para Mar como

receber uma bofetada em plena cara. Humilhantes. Teria aceitado de melhor

grau o desdém, a indiferença e até o desprezo. Mas não que pisoteasse sua

confiança e sua segurança. Não menosprezasse sua solidão, sua melancolia,

seus medos e seus desejos. E muito menos rir de seus sentimentos.

Concentrou forças para se libertar de seus braços e empurrá-lo com

todo o vigor que pôde. Pôs a alma naquele rechaço; entretanto, Gabriel não

deu mostra alguma de que o afetasse. Ao contrário, um passo para trás foi a

única reação à violenta fúria; um passo atrás e o olhar sardônico de quem

está convencido de ser irresistível.

—Como se atreve?

Se tivesse uma faca na mão, sem dúvida o teria usado para marcar

com um talho a expressão zombadora de sua cara.

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—Já vejo que não. Que sua atitude variou nas últimas horas. Foi

algum outro moço da caravana, mais disposto que eu a lhe servir?

Essa vez sim, essa vez Mar não se conteve. Sem mediar palavra. Com

toda a raiva que pôde acumular, golpeou-lhe primeiro em uma das

bochechas e logo na outra.

Mas se ela pensava que depois daquilo ia sair ilesa, equivocou-se. De

cheio. Antes que percebesse, ele tinha interceptado o gesto. Apertava-a tanto

que doía. Mar socou para baixo para se soltar sem consegui-lo. Golpeou-o no

peito como último recurso, embora só alcançasse um par de vezes já que ele

voltou a interceptar suas intenções. Segurou o seus braços e os dobrou para

trás. E assim, imobilizada, a apertou contra ele e a beijou. Com fúria. Até

que ela gemeu de dor.

Aquele beijo, completamente alheio a ele e à ternura com que a

tinha despedido apenas vinte e quatro horas antes, a fez sentir-se agredida,

assaltada, ferida. Um desconsolo a encheu por dentro e se mesclou com o

dano físico que Gabriel infligia em seu intento de humilhá-la, tal e como ela

tinha feito com ele instantes antes.

Mar não teve nenhuma oportunidade. Um segundo mais tarde,

Gabriel a soltou com brutalidade, deu a volta e partiu. Quando, a grandes

passadas, entrou no bosque que acabaram de atravessar, amaldiçoava aquele

funesto momento no que, depois de escapar do Guarda Real, vislumbrou

nos olhos de Mar.

Face à cólera que o afogava, não se afastou muito. Em vez de ceder a

seus instintos e abandoná-la a sua sorte, caminhou pelo bosque enquanto se

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dedicava a golpear tudo o que encontrava em seu caminho. Lenha seca,

pequenos ramos e a folhagem que jazia a seus pés saíram voando em

milhares de ocasiões pulverizando-se para todas as direções. Até que por fim,

cansado de lutar contra si mesmo, deixou-se cair, apoiou-se em um velho

tronco cheio de musgo e relembrou os ensinamentos que o irmão Roger o

orientava desde menino: trocar a força pelo julgamento.

Era consciente de que só quando Mar desaparecesse de sua vista e ele

se desprendesse daquela maldita responsabilidade poderia se centrar em

chegar a Olite e cumprir a promessa que tinha feito. Passou dois dias desde

que capturaram os irmãos e só Deus sabia que penúrias teriam passado a

essas alturas. Era terrível esta ordem do novo Rei, pediu em oração, que os

oficiais da casa real não tenham tomado ainda nenhuma medida contra os

templários detidos. Pensou nas horas que ainda demoraria em percorrer as

mais de sete léguas que separavam Mendigorría de Olite se seguisse com

Mar. Por que não a levou de volta à caravana? por que a raptou e a obrigou

que seguisse com ele? Sabia a resposta; porque desde que a tinha visto partir

até que a teve de novo entre os braços não tinha tido nem um instante de

descanso, todos e cada um de seus pensamentos tinham sido para ela. Mas

aquilo não podia seguir assim. Não podia deixar que a necessidade de estar

com uma mulher comprometesse a vida dos religiosos. Tinha uma missão

que cumprir.

Retornou ao claro com passo firme. Quando partiu, o sol ainda não

ultrapassava as copas das árvores que se elevavam a seu redor. À volta, toda a

esplanada estava banhada pelos raios, mas não havia nem rastro de Mar nem

do cavalo. Em troca, dois desconhecidos acampavam sobre o terreno e se

dispunham a preparar o almoço.

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Afogou a ansiedade que pressionava a boca do estômago e se

aproximou dos dois homens.

—Bom dia —saudou com tranquilidade, mas com a mão direita perto

do cinturão de onde pendurava a arma.

Os homens se surpreenderam. Não se precaveram de sua presença

até que ele estava em cima. Gabriel sabia que a maioria das vezes as pessoas

se intimidavam som a sua alta estatura e sua cabeleira farta como uma

ameaça. Aproveitou aquela vantagem. Separou as pernas, apoiou os punhos

na cintura e esperou a resposta.

—Por Deus —respondeu o maior.

Gabriel observou seu semblante. Tinha conseguido justo o que

pretendia, que se sentissem intimidados. Ambos se pareciam sobremaneira.

Pela diferença de idade, Gabriel suspeitou que fossem pai e filho. O homem

foi o primeiro a reagir. levantou-se imediatamente, sem soltar a faca com o

que limpava as vísceras de um dos peixes que deviam ter pescado no rio

instantes antes. Tanto tempo tinha estado fora?

—Procura algo? —grunhiu, colocando-se ante ele e ao moço, que

também se pôs em pé.

Assim que o tipo estava disposto a falar. Gabriel olhou de esguelha

um pouco mais à frente e viu um casal de mulas que carregavam uns

avultados sacos. Mercados ambulantes. E pela desconfiança, não era a

primeira vez que se encontravam com problemas nos caminhos. Seria

melhor trocar de estratégia.

Separou as mãos da cintura e as elevou em sinal de paz. O homem

lhe olhou fixamente durante uns segundos e, depois, pareceu relaxar-se um

pouco.

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—Procuro o meu companheiro e o meu cavalo —comentou Gabriel

olhando para todos os lados—. Os deixei aqui faz um momento.

—Não havia ninguém quando chegamos —resmungou o homem.

A cabeça do moço saiu por detrás das costas do pai.

—Largou o seu cavalo?

Só a ideia de imaginar Mar subindo no cavalo arrancou de Gabriel

um sorriso.

—Moço, acredite em mim se disser que não acho possível.

—Aqui não havia ninguém —insistiu o pai—. E como pode ver, faz já

um tempo que chegamos — comentou, assinalando os peixes.

Nesse mesmo instante, como se tivesse estado escutando a conversa,

chegou o som do relincho de um cavalo.

—Devem ser eles —assinalou Gabriel, voltando-se para a direita—. Será

melhor que vá buscá-los.

Pôs-se a andar para os arbustos mais próximos à água. Custou

encontrar um passo. Abaixou-se um par de vezes e teve que separar os galhos

das amoras e dos espinheiros, que tinham aparecido no caminho. Mas

quando se liberou delas e passou ao outro lado, nem Mar nem o cavalo

apareceram. Esperou até que voltou a escutar um bufar e se dirigiu para ali.

O espaço que separava os matagais, que acabava de atravessar, do rio não era

muito amplo. Caminhava com tato para não dar um escorregão e cair

dentro. Teve que rodear por completo uma língua de terra, que sobressaía e

entrava na água, para encontrá-los. O cavalo estava. Entretanto, Mar não

aparecia por nenhum lado.

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Aproximou-se do animal. Parecia tranquilo. Bebia placidamente,

inclinado sobre as águas. Estalou a língua para chamar sua atenção. O cavalo

elevou a testa e deu uns passos em sua direção.

—Bom menino — tranquilizou enquanto examinava os flancos. Não

tinha nenhum arranhão. Por onde teria passado? Certamente não pelo lugar

que ele passou. Olhou em todas as direções—. Onde se colocou essa

cabeçuda e mal-humorada mulher? —grunhiu.

Afastou-se do cavalo e decidiu avançar. Mar não podia ter ido muito

longe. E tinha razão. Sobre o tronco de um choupo velho, que se inclinava

sobre a água, viu a capa, o vestido e os sapatos. E ainda por cima de todo

isso, a bolsa de couro que nunca se separava. Tudo cuidadosamente

colocado e o bastante afastado como para que não corresse o perigo de

molhar-se.

Mas nem rastro dela. Com cuidado, se apoiou no tronco e se

inclinou para o rio. Não muito, só o necessário para vislumbrar o terreno.

Observou atentamente em uma e outra direção em busca de algum

movimento sobre a superfície que delatasse que Mar tinha tido a espantosa

ideia de nadar um momento. Depois, quando não houve rastro algum que

revelasse sua presença, assustou-se. E se afogou? Uma antiga e esquecida

imagem de um querido —embora logo que reconhecido— rosto, lívido e

inchado até a monstruosidade, estalou-lhe no cérebro. A ideia do que podia

ter acontecido a Mar o assombrou. Mais do que esperava.

Começou a correr. E começou a chamá-la, sem perceber que ela

corria junto ao rio e parecia acompanhá-lo em sua frenética carreira.

Já tinha dado mais de umas trinta pernadas quando a suas costas

escutou um pequeno som que o fez deter-se e voltar-se bruscamente.

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—Não se aproxime!

Gabriel exalou um suspiro. Era ela. Era Mar.

—Está ferida?

— Volte!

—Pelo Senhor, responda!

—Não têm do que se preocupar. Estou bem. —Os ombros de Gabriel

relaxaram—. E agora, tenha a bondade de me dar à roupa.

A tentação foi muita para ele e deu uns passos em direção ao lugar de

onde procedia a voz.

—Como conseguistes entrar aí?

—Não dê um passo mais!

Agora sim, agora sim que se deteve. Agora que já a via perfeitamente.

Em efeito, era ela. Um vulto branco, entre umas moitas, perto do lugar por

onde ele tinha atravessado antes.

Agachou-se até fazer coincidir seus olhos com os dela.

—Está bem? —insistiu. Ela afirmou com a cabeça—. Como se

colocastes aí?

—Ouvi uns passos... tinha visto os homens que chegaram depois de

que você fora. Não é seu problema! —espetou-lhe depois, zangada consigo

mesma porque a tivesse encontrado daquele jeito.

Ficou calada uns instantes. Ele começou a rir ao ver sua irritação e,

muito mais tranquilo por havê-la encontrado sã e salva, ergueu-se de novo

com as mãos na cintura. Depois de tudo não se afogou. Seguia vivinha e

abanando o rabo. E brigando. Tal e como gostava.

—Sim, é meu problema. Se for eu que tenha que te «resgatar» daí

dentro, é meu problema.

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—Faça o favor de aproximar o vestido. —O tom dela tinha diminuído

de intensidade—. E depois venha me ajudar. Meu cabelo ficou emaranhado

nestas sarças e é impossível soltá-lo.

Assim que ela acabou de explicar que estava aprisionada entre o

matagal de ramos, lhe ocorreu uma ideia. Sempre havia uma primeira

ocasião para se aproveitar de um oponente despreparado.

Mar o observou enquanto dava a volta e se encaminhava para o

tronco onde tinha deixado à roupa. Mas o que ela não pôde ver, porque a

postura a impedia, foi que Gabriel passava junto à roupa sem parar e chegava

até os arreios. Pegou a brida, que estava pendurava na testa do animal

enquanto que este pastava tranquilamente, e o tocou para que o seguisse.

Apesar de que Mar se sentia ridícula, respirou quando o viu retornar.

Viu-o chegar, viu-o parar junto à água e o viu aproximar-se. Com as

mãos vazias.

—E meu vestido?

—Caiu na água — mentiu ele enquanto pisava em um arbusto para

poder alcançá-la.

Mar não acreditou. Estava se vingando dela pelas duas bofetadas.

Além de rancoroso, resultava ser ruim e trapaceiro.

—Ai! —gemeu ela a terceira vez que o cabelo agarrou.

—Isto não há quem o solte. Não entendo como conseguistes se

enredar deste modo.

E, antes que Mar percebesse, tirou a faca e, com um golpe, cortou a

metade dos cabelos, por cima dos ombros.

—Mas o que faz?!

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Mar levou a mão ao vazio que tinha deixado o cabelo sem poder

acreditar o que ele fez.

—Agora já pode sair —constatou ele com toda a tranquilidade do

mundo.

—É um bárbaro! —gritou ela enquanto tocava no resto do cabelo que

ainda seguia intacto—. O que fez? Como vou por aí desta maneira?

—Têm razão —afirmou Gabriel torcendo a cabeça para observá-la

melhor—. Está um pouco estranha. Terá que solucioná-lo de outro modo.

E, sem mediar palavra, deu os passos que a separavam dela, agarrou o

resto dos cabelos, calculou com rapidez a longitude do cabelo seccionado e

cortou à mesma altura.

Mar levou a mão à área que acabava de cortar e, quando se

encontrou com o vazio por debaixo das orelhas, apareceram faíscas em seus

olhos.

—Mas...!

Gabriel não a deixou continuar. Tinha que conseguir trocar de

assunto. Algo com não abrisse a boca. Se acontecer, sabia o que viria. Ela

ficaria furiosa e descontaria nele e ele acabaria enfurecido, excitado e

desesperado. E voltaria a beija-la.

E não queria.

Agitou a cabeça para clarear as ideias. Não fazia nem um momento

que tinha concluído que teria que tirá-la de sua vida, e era voltar a vê-la para

abandonar suas próprias decisões.

—Não têm frio? —perguntou, assinalando a camisa que ela vestia

como único objeto.

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Mar esqueceu por completo que estava quase nua. Tirou a roupa

para poder mergulhar na água e limpar-se, embora não fora mais que pernas,

braços, pescoço e rosto. Precisava se limpar do pó que tinha ficado no

corpo. Por instinto, cobriu os seios com as mãos, mas, assim que viu o

intenso olhar de Gabriel, soube que era tarde. Ele já tinha desfrutado do que

se entrevia através do tecido molhado.

—A roupa! —exigiu ela.

—Não acredito que...

—Estou dizendo que me entregue o vestido!

Gabriel se deu por vencido. Não ia escutar, assim seria melhor fazer o

que ela dizia. Aproximou-se da borda e agarrou o tecido verde oliva.

Quando retornou, Mar já sabia que algo ia mal. Aquilo que

pendurava na mão era um trapo, desgracioso, sem forma.

Gabriel estirou o braço e o entregou.

—Aqui o têm.

Ela o tocou sem chegar a agarrá-lo.

—O que aconteceu?

—Caiu no rio.

—É! E os sapatos? e minha bolsa?

Gabriel manteve os lábios apertados para que o sorriso de satisfação

não o delatasse. Certamente, não era das que se deixavam enganar com

facilidade. O ourives haveria sentido orgulho dela. Pôs ar inocente.

—Só foi o vestido —mentiu.

Outra vez aqueles brilhos de fúria tão incitantes.

—E como isso é possível quando estava debaixo do resto das coisas?

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Gabriel evitou a pergunta e deu a volta. Da bolsa de couro que

pendurara no cavalo, tirou a roupa que tinha «conseguido» no estábulo do

botequim de Oteiza, no mesmo lote que os arreios e o resto de suas novas

posses.

—Ponha isso até que seque o seu vestido.

Mar esteve a ponto de replicar outra vez, mas pensou melhor. Em

realidade, não ficava outra opção. O vestido estava empapado e, apesar de

que o sol brilhava, os raios não eram nem de longe tão potentes como fazia

duas ou três semanas. Além disso, o sol desapareceria e teria que esperar ao

menos um dia completo antes que se secasse.

Descalça como estava e sem deixar ocultar a dor que provocavam

algumas das pedrinhas ao caminhar sobre elas, aproximou-se de Gabriel.

Arrancou os objetos da mão e continuou andando o mais firme que pôde.

Não parou até ver-se ao outro lado do corcel. Nem louca voltava a meter-se

entre os matagais. Já havia perdido o cabelo e não pensava desfazer-se de

nenhuma outra parte de sua anatomia.

Jogou uma olhada por cima do lombo do cavalo. Gabriel a tinha

seguido. Com os braços cruzados sobre o peito e as pernas separadas, parecia

um depravado.

—Faria o favor de...?

Mar fez um gesto circular com o dedo indicador.

—Espero que não demore muito em se arrumar —resmungou ele

enquanto voltava-se a contragosto.

Mas Gabriel não era dos que obedecia. Deu a volta, sim, mas a volta

inteira. E se plantou de novo na mesma posição.

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Mar não foi consciente de que enquanto se desfazia da larga camisa e

se metia em outra bastante mais curta, uns olhos cor avelã percorriam com

avidez a suave pele de seus braços e de seus ombros, a delicadeza de seus

tornozelos e a firmeza de suas panturrilhas, ao tempo que desatava sua

cobiça por descobrir o que se escondia mais acima de seus joelhos.

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CAPÍTULO 11

—Cobre a cabeça —sussurrou Gabriel em relação com uma mecha de

cabelo que escapou do capuz que a obrigou a usar— e me siga bem próximo.

—Mas por que...?

—Ao final,o encontrei! —gritou Gabriel assim que pisaram

acampamento dos viajantes—. Meu companheiro se aproximou da borda

para ver se pescava algo. Mas, como podem observar, não se deu tão bem

como vocês.

Mar tinha notado a ênfase especial na palavra companheiro;

entretanto, custou entender o que Gabriel pretendia. Só quando recordou a

nova vestimenta, compreendeu. Queria que fizesse passar por um moço.

Nem o pai nem o filho responderam. Os ignoraram por completo;

comportaram-se como se estivessem diante de um vulgar enganador e seu

comparsa e continuaram comendo e lambendo os dentes à apetitosa carne

branca que sobressaía por debaixo da pele das trutas. A barriga de Mar

começou a agitar-se ante a suculenta imagem.

—Por isso vejo —continuou Gabriel sem dar atenção ao fato de que

ninguém parecia estar fazendo caso algum—, pescastes bem mais do que

podem chegar a comer. Acredito que poderíamos fazer uma boa troca.

Soltou as rédeas do cavalo e abriu a bolsa que pendurava na garupa.

Um mais que apetecível queijo e meio pedaço de pão apareceram em suas

mãos como por arte de magia. E, se por acaso aquilo não fora suficiente para

convencê-los, também extraiu uma boa bolsa cheia de vinho.

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O gesto do Gabriel teve duas rápidas consequências. A primeira, os

olhos do viajante mais velho aumentaram até parecerem uma roda de

moinho e, a segunda, Mar esteve a ponto de desmaiar.

O homem, fazia dias, não provava nada mais que o que ele e seu

filho conseguiam graças à generosidade da natureza. E o queijo não era

dessas coisas que apareciam correndo pelo campo ou pendurado de um

galho. Mas por muito que o viajante desejasse o que Gabriel sustentava na

mão, o sentimento de Mar foi mais profundo e mais visceral. Odiava-o por

deixá-la sem comer enquanto levava aquelas delícias penduradas detrás deles.

Mas o menino foi mais rápido.

—Se fizerem o favor de se aproximar, estaríamos muito agradecidos

de compartilhar nossa comida com alguém que o necessite.

Aquilo era o que Gabriel queria ouvir e se apressou a sentar-se junto

aos homens antes que se arrependessem.

—Não vamos negar a sua amável solicitude. Menino! — dirigiu-se a

Mar—, venha, que também há para você.

Mar custou a reagir. Ainda não tinha assumido a situação em que

Gabriel a meteu. Em um só dia, ficou sem casa, perdeu a oportunidade de

viver com sua família francesa, perdeu a roupa e o resto de seus pertences,

estava longe dos amigos, viajava com um homem que não compreendia e se

debatia entre a vontade de assassiná-lo ou de beijá-lo, foi perseguida por uns

bandidos sem saber que com que intenções tinham e, se por acaso todo

aquilo não fora suficiente, agora teria que passar por um moço.

—Não tem fome —constatou o homem maior.

—É um pouco tímido —se desculpou Gabriel enquanto puxava a

manga da camisa para que se sentasse junto a ele.

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Mas o que esclareceu todas as dúvidas de Mar foi o aroma que

chegou até ela. Acomodou-se ao lado de Gabriel, estendeu a mão em direção

ao bocado que lhe ofereciam e se dispôs a escutar as mentiras que ele estava

a ponto de contar. E isso é o que fez: ouvir e calar.

Assim foi como descobriu que ele, quer dizer, ela, era filho do irmão

de um parente de Gabriel. Seu pai ficou muito doente devido a uma febre

que tinha contraído depois de que uma cobra o mordeu em uma perna

enquanto arava, assim ele, quer dizer, Gabriel, que percorria a área em busca

de bons mercados — Mar notou como evitava especificar a que se dedicava

exatamente — e que casualmente estava passando uns dias em Estella,

ofereceu-se a acompanhá-lo até Olite.

—E quem é o pai do menino? —perguntou o viajante —. estivemos

muitas vezes em Olite e conhecemos muita gente, mas não recordo de tê-lo

visto. Com esse rosto tão... formoso acredito que o teria reconhecido se o

tivesse visto antes.

Mar perdeu a concentração e o líquido do vinho derramou pelo

rosto, apressou-se a limpar o vinho com o dorso da mão.

—É o senhor Juan — ouviu que ele respondia enquanto ela se

apressava a limpar a mão na camisa enquanto dissimulava o tremor do

peito.—, o da praça.

Estava claro que Gabriel tinha bons reflexos e era um homem de

recursos.

—Juan?

—Pai —interveio o filho—, deve referir-se a Juanchín, o Alto, não?

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Todos os olhares se dirigiram a Mar. Ela cabeceou para assentir.

Como se os viajantes estivessem tentando uma armadilha... Uma pergunta a

mais sobre algum outro cidadão de Olite e estavam perdidos.

Mar temeu o pior, mas, se tinham algo mais que perguntar,

deixaram-no esquecido quando Gabriel cortou dois bons pedaços de queijo e

os estendeu. Aquele gesto amistoso pôs fim ao perigo. Os homens

continuaram com seus bocados e a comida finalizou em completo silêncio.

—Para onde se dirigem? —interessou-se Gabriel quando, satisfeito,

apoiou um braço no chão e se recostou sobre ele.

—A Tafalla —respondeu o menino sob o sério olhar de seu

progenitor.

«Não confiam em nós», pensou Gabriel. «Ao menos não de mim»,

retificou. «Sim dela.» Tinha notado que, quando olhavam Mar, os olhos do

homem perdia a tensão que aparecia as vezes que se dirigia a ele.

—Está em nossa rota. E os caminhos não são muitos seguros nestas

frias e escuras noites de inverno.

—Certo —comentou o homem cortante.

Gabriel jogou um largo e intencionado olhar à faca, que tinha

preferido manter de seu lado.

—Nunca é demais um bom amparo —insistiu—. Um nunca sabe com

quem se pode encontrar em uma virada do caminho.

O homem não tirou os olhos dele. Gabriel sabia que estava

analisando suas palavras e avaliando os riscos e os benefícios de deixar-se

acompanhar.

—Veremos —foi à última palavra do vendedor.

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Mas Gabriel percebeu a vitória. Já tinha aberto uma fresta, agora só

ficava afundar um pouco mais no seu intento. Não iria demorar, o

convenceria.

Nesse momento, pai e filho decidiram se separar para aliviar suas

necessidades mais urgentes. Isso lhe daria tempo para preparar o segundo

assalto, pensou Gabriel de uma vez que desviava o olhar e observava Mar.

Descansava tombada sobre as pedras esquentadas pelo sol. Certamente, era o

«moço» mais formoso que nunca ninguém tinha visto. Com as mãos

entrelaçadas e posadas sobre o estômago, a forma do peito era perfeitamente

reconhecível. Deu graças a Deus porque os vendedores se foram e não

pudessem contemplá-la. Assim à vontade, com o rosto relaxado, parecia mais

menina e mais doce. Embora ele soubesse que por baixo aquele rosto

aprazível se escondia uma cólera formidável. Tocou a bochecha no mesmo

ponto que o esbofeteou umas horas antes. «E se oculta também uma paixão

desmedida», pensou quando recordou o beijo arrebatador que tinham

compartilhado em Irache. Seus olhos desceram de novo do rosto até o peito.

Os seios subiam e desciam seguindo o ritmo harmônico da respiração.

Gabriel se retorceu inquieto. Teria que viajar de forma mais cuidadosa em

adiante. Viajar acompanhada assim o requeria. A companhia dos vendedores

seria o melhor.

Ao menos, por agora.

Mar abriu os olhos na escuridão. Doía-lhe tudo. Depois de dois dias

dormindo no duro chão, tinha descoberto no corpo lugares desconhecidos

para ela até então. Quis se virar tentando encontrar na terra qualquer

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pequeno buraco disposto a acomodar o machucado osso do quadril

esquerdo, mas algo o impediu. Algo que a noite anterior quando se retirou

para dormir, separada do resto dos homens, não estava ali.

Alarmada, apressou-se a verificar o que a mantinha aprisionada.

Tocar a mão de Gabriel a inundou na confusão mais absoluta. Porque era

seu braço o que se apoiava em sua cintura e a sujeitava disposto a não deixá-

la escapar; porque era sua compassada respiração que acariciava o seu cabelo;

porque era seu calor o que a tinha esquentado aquela noite.

Esperou uns segundos com os dedos apoiados sobre seu braço.

Dormia. Uma ideia desatinada aconteceu como um raio por sua mente.

Com cuidado para não despertá-lo, voltou-se até colocar-se de barriga para

cima. Gabriel se moveu um instante, até que voltou a manter a sua postura e

apoiou o rosto sobre a têmpora de Mar. Esta esperou uns segundos e rodou

de novo sobre si mesmo. Agora sim, agora o tinha onde queria. Frente a ela

e indefeso.

Na tarde anterior, enquanto caminhavam em silencio ao lado dos

vendedores, tinha passado o tempo pensando em como vingar-se dele. Em

como o fazer pagar a afronta que a tinha infligido com aquele beijo, amargo

e lacerante. E em por que o acompanhava. O que era o que a impedia de dar

meia volta e afastar-se dele para sempre? A caravana já haveria partido de

Ponte a Reina, mas a porta da senhora Manuela estaria aberta para ela.

Voltou a repassar todas as causas que tinha levado a tomar a decisão de

aceitar a solicitude de proteção de sua prima. Retornar a Estella significava o

fim de sua recém-conseguida liberdade já que seu futuro na vila passava por

casar-se com algum viúvo que procurasse uma boa mãe para cuidar dos filhos

que tinha deixado sua jovem esposa falecida. «Não seria a primeira mulher

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na terra que se unisse a um homem por necessidade.» Mas a intenção de

convencer-se a si mesmo do que acabava de pensar foi esquecida quando o

homem que descansava a seu lado suspirou e a fez retornar junto a ele.

Gabriel murmurou um pouco entrecortado, não conseguiu entender.

Mar deslizou a ponta dos dedos pela superfície de seus lábios. Estavam um

pouco ressecados, cheios de pequenos pelinhos que a intempérie, o frio, o

vento e o sol tinham levantado. Com um pensamento completamente

irracional se apoderou de um deles e foi compelida a cura-lo com a boca.

Com a ponta da língua, voltou a percorrer o mesmo caminho que

um instante antes tinha feito sua mão. Sentir a respiração de Gabriel

penetrando nela e fundindo-se com seu próprio fôlego a excitou

sobremaneira. Podia ter parado, qualquer mulher honrada na mesma

situação o teria feito. Mas ela não. Ocorreu-lhe o mesmo que tinha

acontecido na manhã em que se despediram em Irache. Queria mais, mais

dele. Entretanto, a lembrança do agressivo segundo beijo conseguiu nublar o

momento e se deteve. Não, não se arriscaria a voltar a ser denegrida como

tinha acontecido no dia anterior. Assim se dispôs outra vez a lhe dar as

costas e a esquecer daquele louco arrebatamento.

—Não o faça —sussurrou ele—. Não se afaste.

Mar notou a batida das pestanas antes que abrisse os olhos. A

descobriu. Conteve a respiração enquanto ele esfregava o nariz contra o seu

rosto e a aproximava ainda mais com o braço com o qual a sujeitava.

—Despertei —anunciou Mar como se aquilo explicasse a conduta de

uns segundos antes.

—A noite estava fria — foi o único comentário que Gabriel fez ante o

fato de ter se deitado com ela.

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Ela pôde intuir o movimento do braço antes de notar como subia o

cobertor, com o que ambos estavam agasalhados, para abrigar as costas e

parte do pescoço.

—Seriamente?

—Já tinha se deitado quando a noite se empenhou em esfriar. Pensei

que poderíamos compartilhar o casaco.

«O casaco e algo mais.»

—Começa parecer um costume.

—Fica incomodada com isso?

Gabriel depositou um delicado, e apenas perceptível, beijo sobre seus

lábios. Mar demorou em responder.

—Não.

Não pôde se conter e fez o que o seu coração gritava desde que tinha

despertado, apesar de que a sua mente o tinha rechaçado apenas uns

minutos antes.

Agarrou os seus ombros, procurou ansiosa sua boca e se fundiu a ele.

Gabriel se sobressaltou pela surpresa, mas, quando sentiu a umidade

da língua de Mar demandando ansiosa uma resposta, não se fez rogar e se

uniu a ela.

Por um breve instante ou poderiam ter sido horas as suas mãos e suas

bocas se buscaram com cobiça. Rodaram pelo chão. Gabriel se colocou sobre

ela e a aprisionou com as pernas. Mar reconheceu a dureza que apertava

contra seu ventre e se moveu para alojá-la. Sabia o que aquilo significava: ele

a desejava tanto como ela a ele. A euforia a alagou. Aquela não era a

primeira vez que deitava com um homem. A difusa cara de Luis, seu

prometido, apareceu um instante em sua mente, mas desapareceu de

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repente. Uma estranha sensação se apoderou dela. Mar imaginou que

poderia ficar ali o resto da vida.

Gabriel se separou dela para puxar o ar e a olhou com firmeza. Não

podia fazer nada para evitá-lo. Todos os esforços por se afastar caiam por

terra assim que a tinha perto. Afundou o rosto em seu pescoço.

O ruído de uns ramos pisoteados não muito longe acabou com o

momento.

—O dia está a ponto de aparecer —disse Gabriel recuperando o

controle—. Os homens já estão acordando. Será melhor que não nos

encontrem. Não se esqueça de que é um moço —acrescentou enquanto

acariciava seu cabelo.

Mar não teve opção de replicar. Gabriel rodou sobre si mesmo e se

distanciou dela, deixando-a coberta com o pesado cobertor amarrotado e

uma sensação de solidão difícil de explicar.

Mas a sensação durou pouco. Só até avistarem as almenas da

muralha de Artajona e o grupo se uniu a uma nova acompanhante.

O filho do vendedor foi o primeiro em vê-la.

—Pai, olhe —ouviu Mar o que dizia o moço.

Uma mulher morena e roliça estava tranquilamente sentada na beira

do caminho. Recostada sobre um montículo, parecia estar lhes esperando.

Quando a avistaram, a Mar pareceu que seria mais ou menos de sua idade, o

cabelo descoberto indicava que era jovem, mas quando se aproximaram e a

mulher se incorporou, deu-se conta de que era maior do que tinha

imaginado. A cintura já tinha perdido a curva da juventude, os seios estavam

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bem mais baixos do que deveriam e, embora o viçoso rosto não deixasse

aparecer às rugas que delatavam o passar dos anos, as bolsas escuras debaixo

dos olhos testemunhavam que tinha vivido todo tipo de situações.

—Bom dia —saudou ela.

Mar fez um gesto de parar, mas ao ver que o resto de seus

acompanhantes seguiam adiante sem dizer uma palavra, limitou-se a jogar

um olhar de desculpa e continuou andando.

A mulher, pelo contrário, não pareceu perceber o desplante.

Levantou-se com rapidez, agarrou um pequeno maço que jazia a seus pés e

caminhou até ficar ao lado daquele jovenzinho tão atrativo que ao menos

teve a deferência de lhe saudar.

—Aonde vão?

Por um momento, Mar não soube o que responder. «Até a Artajona»,

esteve a ponto de mentir. Não sabia se era seguro revelar o seu destino a um

desconhecido. Embora encontrasse alguém que lhe dirigia a palavra e não a

tratava como a outra carga a mais. Gabriel não havia tornado a falar com ela

desde que fugiu dela naquele amanhecer, apesar de que durante toda a

manhã se adiantava com o cavalo e retornava um momento depois, como

para que comprovasse que ainda estava segura ali. E estava com muita

vontade de obrigá-lo a descer do cavalo, de encurralá-lo contra uma árvore e

de pedir explicações pelo seu insólito comportamento.

Voltou a pensar na mulher que caminhava a seu lado e achou que

não havia nenhuma razão para faltar à verdade.

—Uns a Tafalla e outros à Olite.

—Então, faremos juntos o caminho —comentou com naturalidade,

sem especificar para onde se dirigia.

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E assim foi como Feliciana Erri, uma mulher só e de que ninguém

questionou qual era seu destino, uniu-se a comitiva.

Não chegaram muito longe. Os negócios de pai e filho os obrigavam

a fazer uma parada na vila, cuja muralha se avistava de longe. Não ficariam

muito tempo, pois a prioridade era chegar a Tafalla antes do anoitecer, mas

não podiam deixar passar a oportunidade de fazer negócio, por pequeno que

este fora.

Gabriel decidiu não segui-los dentro da população e se ofereceu a

ficar em um bosque próximo, com parte dos pertences para que os

vendedores não tivessem que perambular pelas ruas com os animais. O pai

duvidou ante a oferta. Um comentário do filho ao ouvido terminou por se

decidir.

Separaram uma mula e a deixaram com Gabriel. Encaminharam-se

ao interior da cidade sem incomodar-se em comprovar se alguém os seguia.

Mar e Feliciana se acomodaram tranquilamente ao pé de um

carvalho.

—Não é muito falador, não? —perguntou a mulher se referindo a

Gabriel, que se encontrava apoiado em outra árvore.

As duas mulheres tinham os olhos fixos nele. Gabriel voltou em sua

direção e Mar soube que tinha escutado como Feliciana perguntava por ele.

A discrição não era um dos fortes daquela mulher.

Mar sustentou o seu olhar até que finalmente Gabriel o separou dela.

Arrancou uma erva do chão e começou a mordiscá-la.

—Não, não muito —aceitou Mar.

—E você é seu...?

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Pela sua expressão, Mar soube imediatamente o que rondava pela

cabeça daquela mulher. Pensava que ela, que ele, era o... «protegido» de

Gabriel.

—Trata-se de um amigo de minha família que teve a generosidade de

me acompanhar até minha casa — se apressou a assegurar, continuando com

o engano que o próprio Gabriel tinha inventado.

A gargalhada da mulher fez que Gabriel se voltasse de novo e lhe

lançasse um severo olhar.

— Acredite! —comentou Feliciana em um sussurro—, sei

perfeitamente o que é o que busca um homem como esse quando olha como

ele o faz com você. E não tem nada de desinteressado.

Mar jogou um olhar de soslaio ao homem que provocava que seus

instintos tivessem vida própria. Mas quando notou que voltava a ser o objeto

de atenção de Gabriel, concentrou-se de novo na mulher que tinha a seu

lado. Cansada de estudar os sentimentos que a levavam uma e outra vez até

ele, decidiu trocar de assunto.

—Já estive nesta cidade? —perguntou Mar com os olhos na muralha

que rodeava a cidade.

—Em Artajona? —Mar assentiu—. Mais que isso. Poderia falar da

mesquinharia de seus homens e da intolerância de suas mulheres. Poderia

contar tudo sobre a falsidade de seus comportamentos e sobre o fanatismo

de seus dirigentes. Poderia assinalar com exatidão os bêbados, os adúlteros e

os farsantes; os caluniadores, os impostores e os enganadores; os ladrões, os

assassinos, mas... melhor fechar a minha boca. Assustei-te.

—Me assustar? Não, não. Eu também nasci e cresci em uma vila. Isso

sim, não deixaria para trás esses habitantes daqui.

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Feliciana soltou uma gargalhada.

—Igual em outros lugares, há gente má e a há boa. Entretanto, como

nesses lugares, também aqui a boa gente se esconde nas casas, fora do

alcance do olhar dos piores —acrescentou em voz baixa inclinada sobre Mar—

. Mas por que não entramos na vila e conhece as pessoas?

Mar assentiu animada, Feliciana levantou com cuidado, ajeitou as

suas saias pegou o seu fardo e se aproximou de Gabriel. Mar a seguiu.

—Vamos nos aproximar da vila —disse a mulher simplesmente,

deixou cair o fardo e ficou à espera que Mar se desprendesse da sua bolsa de

couro.

Mas esta o apertou ainda mais contra ela.

—Acredito que será melhor que fique comigo —se desculpou.

—Está segura?

O tom zombador na voz do Gabriel a pôs em guarda.

—Não me vai acontecer nada —se apressou a dizer —. E muito menos

acompanhada de Feliciana — acrescentou com esperança.

—Lembre-se que não é a primeira vez que tentam levar o que é seu e

«alguém» tem que intervir para impedir. —assegurou ele, arqueando uma

sobrancelha.

Mar cravou os olhos no rosto zombador. Falava com tanto afã do que

levava guardado em sua bolsa ou, pelo contrário, estava fazendo alusão ao

ataque do filho do comerciante? Se tivesse na mão algo além de suas posses

mais apreciadas, iria jogar o objeto na sua cara!

—Eu também acho que faria melhor deixando-o aqui, com seu...

protetor.

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Mar encolheu, mais ainda quando viu aparecer nos olhos de Gabriel

um sorriso malicioso. Contendo a ira, tirou a bolsa pela cabeça e a estendeu.

Teve que morder a língua para não o advertir de que não poderia abri-la.

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CAPÍTULO 12

Mar não recordava o tempo que fazia que não risse tanto. Feliciana

resultou ser muito mais divertida do que tinha imaginado. Cada pessoa com

que cruzavam em seu vagabundear pela vila tinha alguma história. Não

guardou nenhum defeito para si, nenhum falatório nem nenhum segredo.

Segundo sua amiga, o número de filhos bastardos, de homens adúlteros, de

mulheres manchadas, de amantes encobertas e de padres amancebados que

se encontravam naquela cidade superava em muito as coisas que

aconteceram em Sodoma e Gomorra.

Em efeito, conhecia a perfeição a todos os habitantes da vila. E eles a

ela.

Deixando à parte o fato de que Feliciana não tinha conduzido pela

rua principal da população e de que tinha observado os olhares de desprezo

das mulheres e as de desejo de seus maridos quando as olhavam, o passeio

tinha sido do mais entretido.

Ambas evitavam falar de si mesmas. Feliciana por falta de costume,

fazia já muitos anos que seus pensamentos mais ocultos tinham deixado de

interessar a alguém; e Mar, por medo de que sua acompanhante descobrisse

que em realidade era uma farsante.

Enquanto saíam da cidade por detrás dos vendedores, com os que se

encontraram ao abandonar a vila, Mar não pôde controlar a curiosidade que

aquela mulher provocava.

—E agora, Feliciana, para onde encaminham seus passos?

A mulher se limitou a dar de ombros.

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—É hora de voltar para Olite. Ali tenho umas amigas. Mais adiante,

quem sabe? A qualquer outro lugar, sempre que for em boa companhia —

acrescentou, piscando o olho enquanto passava uma mão pelas costas de

Mar—. Isso sim, se um homem como esse —comentou, examinando o bosque

onde ficou Gabriel— me olhasse como ele o faz com você, não duvidaria em

me perder com ele e acompanhá-lo sem me importar aonde se dirigisse.

Mar se deu conta de que Feliciana se divertia tentando escandalizar

ao jovenzinho que acreditava que ela era. Era fácil saber a que se dedicava;

aquelas clarificadoras palavras, o faminto brilho de seus olhos e seu sorriso

zombador que dançava na comissura dos lábios, indicaram à perfeição qual

era a profissão que se sustentava. Nunca até então tinha estado com uma

mulher de «má vida». E o certo era que não parecia muito pior que algumas

mulheres honradas.

A curiosidade e a sensação de poder transpassar a linha que a

moralidade fixava pesaram mais em Mar que o recato com o que tinha sido

educada. Lembrou-se de Antoinette e de suas incansáveis perguntas, quando

a interrogava pelo beijo de Gabriel. Nesse preciso momento estava se

comportando como ela, mas não se importou.

—Vejo que não procura marido.

—Marido? —perguntou Feliciana assombrada—. Acaso se está

oferecendo? —As bochechas de Mar se avermelharam ante seu descaramento.

Nem em um milhão de anos se imaginou que fora interpretar mal suas

palavras daquela maneira. Mas a mulher logo a tirou de seu estupor—. Não

tema —Rio lhe deixando claro que estava de brincadeira—. Faz umas horas

que tomei a decisão de buscar um bom homem e não me enredar com o

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primeiro que aparecer. Embora o primeiro seja tão delicado como você ou

tão arrumado como seu «amigo».

Mar não sabia por que, mas aquela conversa já não a coibia.

—Não duvido de que o encontrará. Outras o têm feito antes que

você.

Sua companheira torceu a boca.

—Ocorre às vezes, embora eu ainda esteja por conhecer algum casal

desses. Um conselho, procure uma boa mulher. Um homem, embora seja

como o seu, não é companhia para um jovem como você. Sempre será

melhor montar a uma mulher que ser montado por um homem. —

Acariciou-lhe a linha da mandíbula—. Eu poderia lhe mostrar muitas coisas.

—Acabou de me dizer que eu não lhe interessa. Além disso, prefiro

me deixar ensinar por alguém mais...

—Antissocial.

—E arrumado, tal e como você acabou de indicar.

Pai e filho se voltaram quando as risadas de Feliciana se elevaram. E

assim, entre brincadeiras e risadas, chegaram ao lugar de encontro.

Mas nem Gabriel nem o cavalo apareceram por nenhum lado. O

resto sim. Estava à mula e a carga, e também o fardo de Feliciana.

Estava tudo, tudo menos a bolsa de couro de Mar.

—Onde está?

A voz de Mar continha a urgência e o temor que a tinha sacudido ao

descobrir o desaparecimento de Gabriel.

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—Não tema — aconselhou Feliciana alcançando-a _ o encontraremos

bêbado em qualquer dos botequins de Artajona.

A explicação de Feliciana podia ser certa. Ao fim, ela não tinha nem

ideia se Gabriel era dos que desperdiçava o dinheiro pelas adegas. Podia ser;

entretanto, Mar teve a certeza de que ele foi levando suas coisas.

Recordou sua determinação de liberar os templários. Foi, estava

segura. Custou a tragar saliva. Não sabia se doía mais que tivesse lhe roubado

ou que tivesse partido sem ela. Mas se partiu com a bolsa de couro, ele

conhecia o que havia no interior. O fardo de Feliciana ficou no mesmo lugar

e na mesma posição em que a proprietária o deixou.

—Não, não. partiu. Não vê!?

Feliciana não deu um passo para trás, apesar da violência do moço,

mas sim o agarrou por um braço e o levou detrás de uma árvore. Ninguém

tinha que ver como o jovem perdia o controle. Nunca se deve mostrar

debilidade diante de estranhos. Essa era um dos ensinamentos que ela

aprendeu ao longo dos anos sozinha, com as dificuldades.

—Se tranquilize!

—levou o meu dinheiro e meus...!, e ainda me pede que me acalme?

—São suas coisas o que vos inquieta? Eu diria que a perda de seu

«amigo» pesa mais que a preocupação por seus pertences. Acredite, que ele

tenha que desaparecer é o melhor que pode acontecer. O contato entre dois

homens não é muito popular entre as pessoas. Volto a repetir, será melhor

que busque uma boa empregada que o ensine o que ainda falta por saber.

Mar não pensou duas vezes e arrancou o chapéu que cobria sua

cabeça desde o dia anterior.

—Não sou um homem! — falou—. Sou uma mulher, igual a você.

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Feliciana, que durante sua conversa tinha posto uma mão sobre o

ombro de Mar, afastou-se como se uma descarga tivesse atravessado o braço e

deu um passo para trás. Examinou-a durante uns segundos e depois se pôs a

rir.

—Agora explica a fúria em seus olhos cada vez que me aproximava de

você.

O silêncio se instalou entre as duas mulheres uns instantes, o

suficiente para que umas vozes desconhecidas chegassem até onde estavam.

— Voltou!

Feliciana lhe impediu que cedesse ao impulso de rodear a árvore que

as ocultava e fosse para frente ver quem chegava.

—Não é ele —observou enquanto esquadrinhava entre as árvores.

Um par de homens conversava com os vendedores, que trabalhavam

em excesso em repartir entre as duas mulas à carga que não tinham vendido

em Artajona.

—Então, quem...?

—Fique aqui. E cubra o cabelo —lhe advertiu antes de partir.

Feliciana não teve muito tempo para observar aos desconhecidos; o

ruído de seus passos sobre o tapete de folhas secas a delatou no momento.

Os quatro homens se voltaram. A mulher colocou as mãos na cintura e

preparou a melhor dos sorrisos, embora este não durasse muito, apenas o

momento que demoraram seus olhos em passar os olhos sobre o primeiro

dos visitantes.

Tinha visto coisas desagradáveis na vida, mas poucas como aquela

cara deformada e com uma ferida ressecada e esbranquiçada no lugar de

nariz.

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—O que desejam?

—Perguntam por alguém —balbuciou o pai.

O da cara desfigurada se aproximou dela.

—Procuramos uma moça. Viaja acompanhada por um homem.

—Aqui a única mulher que há sou eu. Não é certo? —perguntou ao

vendedor mais jovem.

O moço assentiu.

—Ela é magra e não muito alta —insistiu o recém-chegado, sem fazer

caso de que acabava de dizer—. Ele é um tipo muito alto e com o cabelo

comprido.

—Não viaja entre nós.

—E aquele? —interrompeu de uma vez e assinalava Mar, que aparecia

por detrás do tronco.

Feliciana nem se voltou.

—«Aquele» é um jovenzinho. Como este —assegurou, assinalando ao

vendedor mais jovem.

—Está segura?

A mulher ignorou a pergunta.

—Por que os buscam?

—Não é seu assunto —resmungou o outro de maus modos.

—O que acontece?

O outro homem falava com um acento estranho. «Seja quem é o que

os quer apanhar, é dos que podem pagar por um tecido da melhor

qualidade», disse Feliciana enquanto olhava com inveja a capa cor azul com a

que cobria suas vestimentas.

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—Nada que não possa solucionar —respondeu o da cara mutilada—.

Mas parece que não os conhecem.

—Allons-e! Allons-y!8 —ordenou o outro se voltando.

—Têm razão. Aqui não há nada que mereça a pena.

Nem um só músculo se contraiu no rosto da mulher. Unicamente

quando os homens já tinham partido, inspirou, moveu a boca levemente e

cuspiu ao chão. Com todas suas vontades. «Gentinha.»

Logo que os desconhecidos desapareceram, os vendedores

retomaram a tarefa e ela deu meia volta e retornou junto a Mar.

A mulher se equivocou em uma coisa. Mar sim se atreveu a aparecer.

E os tinha visto. E tinha reconhecido o homem que a tinha atacado em sua

casa e que Gabriel tinha rendido. Tinha visto o homem com a cicatriz no

nariz. Outra vez.

Feliciana a encontrou sentada no chão. Tinha o chapéu entre as

mãos e o apertava nervosa.

—Já se foram —anunciou.

—Me buscavam.

Agachou-se junto a Mar e colocou uma mão sobre a sua para lhe

infundir um pouco de quietude.

—Por que, agora que ele partiu, não retorna a sua casa? Acredite-me,

será melhor enfrentar a ira de seu pai que confrontar o que a espera por

esses caminhos de Deus.

Mar saltou como uma mola de suspensão e ficou em pé.

—Se não se incomodar, a acompanharei até Olite.

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CAPÍTULO 13

Assim que a garota da estalagem fechou a porta da habitação, Gabriel

deixou as duas bolsas sobre a imunda cama de armar e se aproximou da

janela. Apesar de sua altura, teve que ficar nas pontas dos pés para abri-la e

conseguir ver algo. Uma descascada chaminé se elevava ante seus olhos. Por

detrás desta pôde vislumbrar a cobertura da igreja de São Pedro, aonde tinha

passado várias vezes aquela tarde.

Tinha percorrido as ruas de Olite durante horas em busca de

alojamento. Mas ou não havia nada disponível ou o que lhe ofereciam era

muito caro. Teve muito pouca sorte ao chegar à cidade no mesmo dia que o

rei ia para confirmar o juramento da vila e coincidindo com a celebração da

feira de dois de novembro. Assim em nenhuma dos botequins tinha

encontrado nem um simples catre onde passar a noite. E tinha acabado ali:

em um cômodo de uma hospedaria imunda no bairro menos recomendável

de Olite.

Jogou uma última olhada ao espesso céu e voltou para enfrentar ao

inevitável. «Isto é um asco», pensou enquanto percorria com os olhos o

diminuto buraco que ficava entre as quatro paredes que o rodeavam. Um

desigual catre, um assento com três pés notoriamente torcidos e um balde

situado no meio da estadia eram o único mobiliário. Elevou os olhos ao teto

e percebeu o frescor da noite por uma ranhura entre a madeira e a palha.

Por isso tinha o balde a seus pés. Lançou um suspiro e rogou para que não

chovesse antes de abandonar aquele lugar. Pagar para terminar molhado

como se tivesse ficado na noite no meio do campo aberto era o último que

podia acontecer.

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Soltou a capa com um gesto brusco e a depositou ao lado das bolsas.

A bolsa de Mar chamou sua atenção. Desprezou uma pontada de

culpabilidade com a mesma rapidez com a que um falcão alcança sua presa.

Quando Mar deixou a bolsa de coura para que guardasse, não pode conter a

curiosidade de ver o que era aquilo que escondia com tanto zelo e que os

que a perseguiam tinham tanta vontade de conseguir.

E tinha encontrado aquelas duas joias. E com o dinheiro.

Gabriel deu a volta no saco e o conteúdo se dispersou sobre a cama.

Embora já as tivesse examinado, não resistiu a voltar a fazê-lo. A peça era um

delicado trabalho. Não cabia nenhuma dúvida de que era obra de seu pai.

Mas o que mais tinha chamado à atenção era o anel. E mais que o anel em

si, a decoração em torno da pedra. Sabia que a flor de lis era o emblema da

monarquia francesa. O que tinha que ver ela com a realeza daquele país?,

perguntou-se enquanto passava o dedo indicador pela polida superfície da

safira.

A tonalidade da pedra fez que seu pensamento vagasse para outro

lado. Era da mesma cor azul profunda que tomavam seus olhos ao anoitecer.

Um ruído no exterior do quarto o salvou de rememorar o rosto de

Mar e da culpa por havê-la deixado em um caminho com desconhecidos e

sem dinheiro. Recolheu o que tinha estendido sobre o leito e começou a

pensar onde guardar tudo aquilo. O dinheiro já estava diminuindo, teve que

deixar o cavalo em um estábulo na entrada da vila enquanto ele permanecia

nela, mas mesmo assim ficava o suficiente para ser um bom alvo para os

bandidos da cidade. Não queria levá-lo com ele. Qualquer feira atraía a

indivíduos de toda condição. E não era estranho ver pelas ruas dezenas de

mendigos, falsos doentes, prostitutas, pervertidos descarados, e antigos

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203

frades que ainda não se desprenderam do trabalho mendicante e da tigela na

mão. E todos eles com a ideia de «reunir» o dinheiro que os permitisse

subsistir nos próximos meses. E, além disso, estavam os cidadãos que não

desperdiçavam nenhuma oportunidade para engrossar seu próprio

patrimônio. Ao atravessar a porta de entrada, o primeiro que tinha feito o

estalajadeiro foi lançar um olhar enviesado a suas bolsas. Estava certo de que

assim que abandonasse o edifício, alguém, provavelmente até a mesma garota

que o conduziu até ali acima, faria uma visita a aquele quarto.

Olhou a seu redor sem encontrar nenhum vão para esconder aquilo.

Pegou o assento, aproximou-o da janela e subiu nele. Demorou uns segundos

até conseguir manter o equilíbrio. Depois, ficou nas pontas dos pés, tirou

um braço e começou a apalpar a parede pelo exterior.

Uma greta percorria a fachada em direção ao telhado por cima do

estreito vão. E era suficientemente larga como para que pudesse introduzir a

mão. Serviria-lhe. A peça, o anel e umas algumas moedas não fariam muito

volume.

Desceu do banco e pois mãos à obra. Introduziu as joias na bolsa do

dinheiro e se assegurou de que estava bem fechada. Estava a ponto de colocá-

lo na fenda quando se precaveu de que se era tão profunda como lhe

pareceu havia uma grande probabilidade de que o pequeno embrulho

deslizasse para longe de seu alcance. A falta de outra coisa, agarrou a faca da

bolsa de Mar e o introduziu na abertura até que ficou firme. Deslizou a

corda que fechava a bolsa com muito cuidado pelo punho. Deteve o impulso

quando encontrou resistência. Não queria que a peça sofresse nenhum dano.

Ao que parece, tinha chegado até o fundo da greta. Apalpou para se

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204

assegurar de que o vulto não sobressaía do perfil da parede, de modo que

ninguém percebesse da rua.

«Trabalho perfeito», pensou ao mesmo tempo em que afastava o

assento da janela. «E agora o que me trouxe aqui», acrescentou empurrando

à veneziana.

O golpe que deu nesta ao fechar impediu que as vozes de Feliciana e

de Mar alcançassem seus ouvidos.

—Já chegamos —proclamou Feliciana diante da quarta porta da ruela

em que estavam.

A via estava ao mesmo lado da muralha e Mar não ignorava que

aquilo só podia significar uma coisa: que o bairro que se encontravam não

era precisamente o mais seleto de Olite.

Elevou a vista para cima com dissimulação. O buquê de flores seca

que estava pendurado sobre a porta proclamava a gritos o tipo de mulheres

que habitava naquele lugar.

—É aqui?

Arrependeu-se de ter falado. Não tinha conseguido controlar o tom

de voz e deixou entrever a reserva que tinha em passar a noite naquela casa.

Por sorte, Feliciana não pareceu escutá-la. Ou, se o fez, não se

incomodou em responder nem perdeu o tempo em golpear a porta para se

fazer notar. Simplesmente empurrou e entrou. Estava claro que aquele era

seu território.

O estreito e escuro portal e a estreita escada intimidaram um pouco a

Mar, ficou de lado para deixar passar por ela os hóspedes.

Ainda vestia roupas de homem e teve a precaução de continuar com

o capuz para que ninguém pudesse identificá-la, jogou uma olhada aos lados

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da rua. O forte golpe de uma janela se fechando em algum lugar por cima

dela e fez entrar apressada, antes que a porta daquele lugar batesse em seu

nariz.

Feliciana e os dois saltimbancos, com os que tinha encontrado na

saída de Tafalla quando elas se despediram dos vendedores, já tinham

desaparecido na parte superior da escada. Correu para alcançá-los.

—Garotas! Olhem quem veio! — gritou uma voz feminina.

No piso de acima, escutaram os ruídos de passos apressados e o

barulho de vozes de mulher. Não passou muito tempo antes que cinco

figuras aparecessem no vão que dava acesso à moradia.

—Se afastem, ou vou ter que dizer aos meus convidados que terão

que descansar em outro lugar —disse Feliciana, empurrando sem olhar a

nenhuma das garotas.

As moças se afastaram para um lado. Todas, menos uma; uma com o

cabelo claro e emaranhado, que vestia uma camisa que tinha passado por

melhores momentos. A mulher ficou no meio do corredor com as mãos na

cintura interrompendo o passo.

—Que surpresa! Pensávamos que a esta altura a Grande Feliciana

estaria na câmara de algum nobre senhor coberta de presentes. Verdade,

garotas?

—Suponho que estaria saboreando ter ficado com meu quarto.

Equivoco-me, Elvira?

A tal Elvira atravessou com o olhar a seu competidor; entretanto, não

se moveu do lugar. Mas Feliciana estava acostumada a lidar com seu

ressentimento e sua inveja. Não se intimidou e seguiu adiante como se não

houvesse obstáculo algum que pudesse detê-la. Quando chegou ao lado de

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sua rival, empurrou-a com um forte golpe em um ombro e a deslocou contra

a parede. Depois, sem olhá-la sequer, fez um gesto ao resto das mulheres as

animando a que a seguissem.

—Vamos, garotas. Deem as boas-vindas a meus amigos tal e como

vocês sabem.

Mar e os dois músicos se viram rodeados por quatro mulheres de

distintas idades que os empurravam entre risadas para o fundo da moradia.

Passaram na frente de dois quartos que Mar logo que entreviu,

embora, entre as sombras, pôde notar que continham pouco mais que um

catre posado no chão.

Feliciana parou na porta da cozinha ao mesmo tempo em que uma

das mulheres, a mais jovem, uma garota de pele branca, olhos afundados e

olhar triste, segurou na cintura de Mar. E esta não teve tempo de reagir

quando sentiu que o chapéu, que ocultava seu cabelo e a sua condição,

desaparecia da cabeça.

Feliciana apareceu a seu lado como por arte de magia.

—Já é hora de que deixe de se esconder. —dirigiu-se ao resto e

acrescentou—: Esta é Margheritte. Compartilhará minha antecâmara.

A moça que ainda rodeava a cintura de Mar se separou dela como se

queimasse. O resto ficou paralisado um instante para prosseguir com seu

bate-papo imediatamente depois, como se nada tivesse acontecido. Com

certeza, essa não era a coisa mais estranha que viu entre estas paredes,

pensou Mar antes de estudar a habitação que a tinham introduzido.

A cozinha era pequena; pequena e pobre. Em apenas duas prateleiras

cabiam todos os utensílios das seis mulheres —contando a Feliciana— que

habitava naquela casa. Umas tigelas empilhadas, umas colheres, umas facas e

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uma panela eram todos os utensílios que havia. Nem rastro de taças,

nenhum assado, prancha alguma, nada à vista. Quando Mar localizou o

primeiro buraco no tijolo cru da parede que dava à rua, ao lado de uma das

vigas que sujeitavam a fachada, deixou de procurar nada mais.

Estava claro que ali não podia ficar por muito que Feliciana quisesse.

Não teria que estar muito lúcida para dar conta de que se aquelas mulheres

não tinham nem para sobreviver elas mesmas, muito menos dava para

manter convidados. Nem que fosse por um só dia.

Mas qualquer decisão que Mar tivesse que tomar nesse momento se

viu interrompida por uma forte portada e passos na escada. As garotas

cruzaram vários olhares interrogativas ao mesmo tempo em que no corredor

se escutavam uns sussurros e na porta da cozinha aparecia a cara sorridente

de Elvira.

—Têm sorte, Feliciana. Acaba de chegar e já atraístes a um de seus

melhores clientes —anunciou irônica—. Você irá atender ou vai pedir a sua

nova amiga que a ajude no serviço?

—Seja o que esteja fazendo, deve ser algo importante já que leva meia

manhã sem desviar o olhar do mesmo ponto.

Gabriel observou à garota que acabava de deixar o almoço na sua

frente. Supôs que seria a filha do estalajadeiro. Era jovem, quase uma

menina com a expressão infantil, a baixa altura, o peito incipiente e o

quadril estreito; entretanto, sentia-se o suficiente adulta para paquerar com

os clientes. Mas ele não tinha nenhuma vontade de sorrir à primeira menina

que pusesse os olhos.

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Baixou a vista para afastar-se de seu olhar alegre, de suas bochechas

avermelhadas —estava certo de que acabava de beliscá-lo e de que seus lábios

estavam inchados —com certeza recém-mordidos— e se concentrou no

almoço, fazendo caso omisso da conversa que a menina tentava manter.

O prato continha um líquido ambarino com uns corpos flutuando

sobre ele, que Gabriel não pôde reconhecer. Entretanto, não pensou duas

vezes e começou a comer. Não passava de sebo rançoso o prato, mas, ao

menos, estava quente, pensou com o primeiro gole de líquido que passou

pela garganta. «Já é algo.» E algo era muito melhor que nada.

A garota ainda permaneceu junto a ele uns instantes mais, até que

teve a convicção de que aquele desconhecido, que tanto tinha chamado à

atenção quando entrou no botequim umas horas antes, não tinha nenhuma

intenção de centrar seu interesse nela. Gabriel sentiu a corrente de ar que

provocava a jovem ao voltar-se com desenvoltura e afastar-se. Voltou a elevar

a vista para posá-la no mesmo ponto que tinha antes que a garota o

interrompesse.

Além da porta do botequim, no outro lado da Praça dos Teobaldos,

encontrava-se o lugar que tinha que penetrar. Ainda não sabia como nem

por onde, mas estava certo que era aquela mesma tarde, ou no dia seguinte,

estaria dentro daqueles robustos muros em busca dos irmãos templários.

O Palácio Real de Olite era um edifício retangular. Não muito

grande, não muito alto, não muito impressionante. Na realidade com um

aspecto muito menos intimidante que outros, se não fosse pelas cinco torres

que se elevavam para o céu, como ameaçadores vigilantes. Na parte dianteira,

à esquerda, encontrava-se a Torre da Cegonha e, à direita, outra menor; no

centro do edifício, a Torre dos Milagres, a maior das cinco; e na parte

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traseira, a um lado, a de São Jorge, que conforme o informaram, guardava a

seus pés a capela palatina, e, no outro extremo, a única que importava nesse

momento, a Torre da Prisão.

O edifício estava situado na zona mais alta da vila. A estrutura estava

integrada perfeitamente ao casario da vila, pela parte traseira o terreno caía

em um não muito escarpado desnível para os bosques que rodeavam o rio

Cidacos. Tinha-o memorizado. Podia ser um bom lugar para ocultar-se se as

coisas complicassem.

A chegada do rei à Olite tinha gerado um grande movimento ao

redor do palácio e, pela porta principal e as duas posteriores, entrava e saía

um abundante elenco de personagens diferentes. Em geral, eram criados

encarregados de esquentar e acondicionar as estadias para a corte, cidadãos e

camponeses dispostos a prover todo tipo de comodidades e provisões ao

novo monarca e a corte. O grande número de pessoas que se moviam em

torno do castelo era um ponto a favor do êxito de sua missão. Embora a

presença real houvesse trazido consigo uma grave dificuldade: a vila estava

infestada de soldados.

Gabriel se inclinou sobre a mesa sem afastar os olhos do vai e vem da

praça. Dois vigilantes, colocados aos lados da porta, interceptavam a todo

aquele que tentava acessar o recinto. Naquele momento, um homem se

aproximava dos guardiões com uma gaiola pendurando em cada mão. Uns

passos atrás dele, um menino saltava despreocupado sem parar de falar com

a ave que transportava. O homem o parou um instante e urgiu que andasse

depressa. O moço correu até ficar mais próximo e parou na porta de acesso.

Mas os soldados os mandaram rodear os muros do palácio com um gesto.

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Gabriel seguiu com os olhos naquelas figuras até que desapareceram pelo

caminho da parte posterior do edifício.

—São meu tio e um de meus primos.

Absorto como estava no que acontecia fora do botequim, Gabriel

não tinha percebido que a filha do estalajadeiro havia tornado a situar-se a

seu lado e desdobrava de novo seu amplo sorriso em torno dele.

—Vai a palácio?

—Vão oferecer pombas a corte. Meu tio é um dos melhores criadores

da zona, sabe?

—E esta é uma boa oportunidade para fazer negócio.

—A melhor. O palácio está cheio de centenas de bocas que alimentar

e de cavalheiros que distrair. Nestas ocasiões é quando terá que aproveitar. —

Assinalou a seu redor—. Vê, todas as mesas estão cheias. E meu pai e eu

vamos encarregar de que siga assim até que passe a feira.

Gabriel ficou surpreso que uma menina tão jovem como aquela

falasse com palavras mais próprias de um adulto que de alguém de sua idade.

—Vejo que é muito interessada no negócio.

—Meu pai diz isso. E também meu tio —acrescentou, assinalando para

a esquina pela que tinha desaparecido seus familiares—. terminaste?

Gabriel impediu que a moça levasse a tigela. Aquela conversa era

muito interessante.

—Todos já estão servidos —indicou fazendo um gesto para o resto das

mesas nas que só se viam cabeças agachadas sobre os pratos. Deu um gole na

jarra que continha o mesmo vinho aguado que estava bebendo toda manhã e

se afastou para um lado—. por que não se senta?

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Ela jogou uma olhada em busca de seu pai. O homem tinha

desaparecido por uma porta no fundo do botequim, Gabriel supôs que

estariam os fogões.

—Está bem, mas só uns minutos, para descansar um pouco —

acrescentou ela e agitou as pestanas como uma paquera antes de sentar no

banco.

Gabriel esboçou um sorriso. «As escuras nuvens começam a abrir-se»,

pensou e se dispôs a emprestar toda a atenção a aquela menina.

Tinha! Tinha a maneira de penetrar no palácio! Raiava a noite

quando o plano começou a tomar forma. Havia ficado várias horas em

vigilância, mas ao final as coisas começavam a encaixar.

Agora que estava mais animado, a ideia de passar outra noite naquela

pocilga a mercê dos percevejos não parecia tão mal. Com a mente limpa e o

coração animado, dispôs a voltar para os últimos metros que o separavam de

sua hospedagem. A rua estava quase às escuras, só a tremente claridade que

escapava de uma das janelas abertas do bordel punha um pouco de luz no

caminho.

Notou que a porta do prostíbulo estava entreaberta. Das duas uma,

ou o último visitante tinha pressa por encontrar-se entre os acolhedores

braços daquelas «damas», ou elas mesmas a tinha deixado aberta com a

esperança de que algum viajante errante como ele não resistisse aos prazeres

que prometiam e cruzassem a soleira.

Gabriel duvidou se aceitaria a chamada que a escuridão fazia do

outro lado da rua. Fazia tempo que não estava com nenhuma mulher, muito

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tempo para desdenhar o convite de passar um momento sem pensar em

nada mais que no quente momento.

O eco das alegres vozes das garotas chegou até ele como o urgindo a

tomar uma decisão. Apalpou a bolsa que escondia debaixo da capa. Tinha

dinheiro e tinha tempo. Por que não o fazia então? Por que não entrava na

casa e subia as escadas sem se preocupar em nada mais?

A resposta era singela. Gabriel sabia, embora não queria reconhecer.

Só tinha que fechar os olhos para vê-la. Só tinha que pensar nela para sentir

as curvas de Mar adaptando-se a seu corpo enquanto se beijavam, a

suavidade de seus cabelos lhe fazendo cócegas na bochecha enquanto ele

permanecia deitado a seu lado, a prazerosa sensação ao notar o quente fôlego

de sua respiração enquanto fingia dormir e a fúria de seu olhar. Isso só. Só

tinha que pensar.

«Maldita cabeça.» Lançou um último olhar à janela aberta antes de

voltar e entrar a toda pressa na hospedaria em busca do refúgio da habitação.

Subiu as escadas de dois em dois, enquanto os degraus rangiam sob

seu peso. Não cruzou com ninguém pelo caminho. Melhor, assim não teria

que se incomodar em saudar. Nem percebeu que subiu dois pisos até que se

encontrou encima.

Tão absorto estava em tentar afastar as visões que o tinha assaltado

na rua que se aproximou da porta do quarto sem precaver-se de que a jovem

criada o seguia angustiada.

—Senhor! Espere um momento...

Não houve mais tempo. Gabriel abriu a porta.

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De costas a ele, um tipo encapado puxava de dentro do tecido

rasgado da bolsa do couro. Braçadas de palha estavam pulverizadas pelo

chão.

—Mas que...?

Não pôde dizer mais. Nem sequer notou o forte golpe que o deixou

sem sentido. Caiu... Como se o céu tivesse jogado um fardo cheio de pedras.

—Aidez-moi! — ordenou o que tinha atacado Gabriel.

Nariz Cortado saiu do quarto justo quando a mulher se inclinava.

— Se afaste daqui, intrometida! —vociferou.

A garota se encolheu aterrorizada.

—O senhor... —gaguejou.

—Fora! —bramou de novo—. Ou acaso quer acompanhá-lo?

Aquelas palavras acabaram com o jogo da moça, que começou a

caminhar para trás sem perder de vista daqueles homens. Estes não se

moveram até que a viram desaparecer escada abaixo. Então, agarraram

Gabriel pelos pés, arrastaram-no dentro da habitação e fecharam a porta.

Mas Gabriel não permaneceu no chão muito tempo; entretanto, foi

o suficiente, pois quando voltou a si, tinham revisado a fundo os escassos

pertences e o largaram.

—Senhor, senhor — escutou uma voz e sentia que alguém umedecia as

suas bochechas.

Era como se lhe houvessem socado o crânio com um porrete e a

existência estivesse escapando por aquele buraco. Fez um esforço para abrir

os olhos apesar da dor. E se encontrou com um roliço e rosado rosto

inclinado sobre ele.

—Que...? —conseguiu balbuciar.

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—Não me reconhece? Menos mal que voltou a si. Pensei por um

momento que acabaria no cemitério —tagarelou a criada.

—O que aconteceu?

—Uns homens vieram e reviraram a habitação. Você os surpreendeu

e o golpearam. Quis avisá-lo. Encontra-se melhor? —perguntou quando viu

que tentava levantar.

Gabriel fez um gesto de dor.

—Me ajude —pediu.

Quando sentiu que suas costas se apoiavam na borda da cama,

deixou cair à cabeça para trás e fechou os olhos. Tudo dava voltas.

—Não fale agora — aconselhou a garota—. Foi uma boa luta.

—Os viu? —perguntou.

—Quando cheguei já estava no chão —se limitou a responder—.

Molho seu rosto um pouco mais?

Ele elevou uma mão para impedir que o molhasse. Ela pareceu

decepcionada; entretanto, ficou de joelhos e com as mãos unidas sobre o

colo.

Passou um bom momento antes que Gabriel fosse capaz de ficar em

pé e de pensar em condições.

—Avisastes ao estalajadeiro?

—Não acho necessário.

—Como que...? Atacaram-me e você não pensa que...!

Calou-se de repente porque acabava de descobrir que sua bolsa estava

pendurada no mesmo lugar que ele a deixou e achava pelo volume que tinha

o mesmo peso.

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—Acreditem, não serviria de nada —indicou ela com cara de

resignação—. O vi falando com os homens antes que chegasse.

—Canalha! Estou certo que pagará por isso.

O olhar da garota não deixava lugar a dúvidas. O estalajadeiro tinha

aceitado de boa vontade uma «gratificação» por lhes indicar qual era a

habitação e por fazer a vista gorda ante qualquer «incidente».

—Vos falta algo? —perguntou ela ao notar que examinava a seu redor.

Gabriel recordou as joias que tinha escondido na greta da fachada. O

certo era que não sabia. Instintivamente seus olhos voaram até a janela.

Estava aberta, embora ele soubesse firmemente que estava fechada quando

saiu àquela manhã.

Ficou em pé de um salto, mas teve que segurar o leito para não cair.

Ergueu-se como pôde.

—Será melhor que vá antes que seu amo descubra onde está —disse

impaciente para ficar só e confirmar a piores suspeita.

A moça deixou escapar uma gargalhada.

—Não acredito nisso. —Gabriel arqueou uma sobrancelha sem

compreender—. Sou sua mulher —acrescentou ela com tristeza antes de

desaparecer pela porta e partir escada abaixo.

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CAPÍTULO 14

—Daqui se dirige à esquerda e toma a primeira rua que encontrar a

sua mão direita. Quando chegar à muralha, segue em direção sul e

encontrará com o Portal de Tudela. Sai da vila, espera no exterior durante

um momento e volta a entrar. Eu lhe aguardarei no meio da Rua Maior, na

esquina com a de São Pedro. Quando me vir, não se aproxime. Se mantenha

afastada de mim. Não quero que ninguém pense que me acompanha.

Na cozinha, vestida com roupa de mulher e com um lenço tampando

seu curto cabelo, Mar escutava as indicações de Feliciana sob as risadas

burlonas do resto das garotas. Desde que chegara a Olite não tinha dado um

só passo fora daquela casa. Feliciana não tinha permitido; não queria que

ninguém a relacionasse com as garotas do bordel. Mas ela tinha insistido em

sair dali. Queria perambular pelas ruelas da cidade e ver como era, queria

saber a que se dedicava a população daquela cidade.

Ao menos isso era o que tinha contado a Feliciana. E não tinha

mentido de tudo. Embora o que a calou era que tinha que encontrar um

lugar para trabalhar. Porque necessitava dinheiro. Não podia seguir por mais

tempo vivendo da caridade de umas mulheres que vendiam seus favores para

conseguir um pouco de pão duro para levar a boca.

Além disso, Gabriel estava naquelas ruas. E precisava encontrá-lo,

precisava encontrá-lo antes que os soldados o capturassem. Ninguém, nem

sequer o Guarda Real, ia lhe privar da satisfação de tirar as suas vísceras com

suas próprias mãos. Por ladrão. Por traidor. Por mentiroso. Por pisoteá-la

como a uma desprezível aranha.

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—Está me escutando?

Mar voltou em si.

—Sim, claro — mentiu.

Feliciana a observava com cara de poucos amigos, plantada diante

dela com os braços na cintura.

—Saia da cidade e volte a entrar. Ninguém tem que se inteirar de que

está nesta casa. Ficou claro?

Mar ia responder que sim, que tinha entendido à perfeição, mas

Elvira desviou sua atenção. Levantou-se. Parecia zangada.

—O que tem que fazer, já que está aqui alojada sem soltar uma só

moeda, é voltar a vestir-se de varão e deixarem vê-la saindo e entrando desta

casa o quanto que possa. —voltou para olhar ao resto de suas companheiras—.

Os clientes atraem a outros clientes. Se os homens desta cidade descobrem

que estamos muito ocupadas, virão em turba para solicitar nossos favores.

—Pois eu não vejo como a visita que te faz todos os dias esse

miserável do fabricante de vinho sirva para algo que não seja para afastar a

outros clientes —disse Feliciana ao tempo que assinalava uma mancha

azulada na bochecha de Elvira.

Um silêncio invernal caiu sobre a cozinha; silêncio que Feliciana

aproveitou para fazer um gesto a Mar e sair da cozinha.

—A ódio! — foi o último que escutou Mar enquanto abandonava o

lugar atrás de sua amiga.

Um momento mais tarde, entrava na cidade com uma cesta

pendurada do braço. Atravessou a ponte por cima do fosso e penetrou por

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218

debaixo do Portal da Tudela, tal e como Feliciana tinha indicado.

Entretanto, fez caso omisso aos conselhos de se comportar mais

discretamente que pudesse e caminhou pela Rua Major sem deixar de

examinar aos viajantes com os que cruzava.

Havia alguns homens, poucos. A maioria forasteiros, supôs pelas

roupagens. Mas, em geral, eram mulheres que voltavam do mercado com os

cestos cheios. Também havia meninos, que caminhavam junto a elas

agarrados às saias, e meninas agarradas pelo braço cochichando divertidas,

atentas a tudo o que acontecia.

Não teve que andar muito até ver Feliciana no lugar marcado.

Acelerou o passo. Mas quando a mulher viu sua intenção de aproximar-se

dela, voltou-se e começou a caminhar. Mar se deteve então, esperou a que a

mulher se adiantasse uns passos e, depois, continuou detrás dela, com

cuidado para manter certa distância entre ambas.

A vila não lhe surpreendeu absolutamente. As ruas não tinham nada

que as diferenciasse das de Estella: iguais saguões, iguais balcões, iguais casas

e iguais pessoas. Por isso ficou impressionada quando a via finalizou. Aquilo

não se parecia com nada do que tivesse visto, pensou fazendo caso omisso do

azedo aroma que alcançava suas fossas nasais.

Diante dela se encontrava uma torre coroada por um enorme

relógio. Mulheres e homens, cristãos e judeus passavam de um lado ao outro

da cidade por debaixo da mesma. Era como se dentro da cidade houvesse

outra cidade, com suas muralhas, seu comércio e suas casas. Mas antes de

entrar nela, tinha que passar por outra ponte. Uma enorme, que circulavam

pessoas e animais como se fosse à rua. Aproximou-se do bordo para

confirmar que o que estava observando era certo e não uma mera ilusão.

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219

Em efeito, o fosso estava seco por completo e perto da entrada, que

sustentavam a ponte, dois comerciantes tinham instalado seus negócios. A

seus pés, havia uma enorme polia sustentada por um ferro que se cravava na

terra. Mais abaixo, um homem ajudava a um pobre animal que puxava uma

corda que estava presa a uma imensa pedra quadrada com os lados

perfeitamente alinhados. Mar viu assombrada como a rocha aparecia e se

elevava até a borda.

—Agora suba! —gritou o trabalhador da pedreira ao mesmo tempo em

que segurava a corda para que a pedra não caísse no vazio.

—Qualquer dia irá machucar a um viajante! Não viu à dama?

—Mil anos viva, mil anos terão algo do que me acusar! Não pode

calar por uma vez?

Outro homem, apoiado sobre um barril, repreendia ao entalhador.

Mar descobriu então o que era esse aroma ácido e forte que tinha notado ao

abandonar o amparo da Rua. O outro negócio que estava junto à entrada era

uma adega.

«Curioso lugar», pensou enquanto observava como o trabalhador de

pedreira fazia um gesto grosseiro a seu companheiro de local e começava a

subir pela escada que conectava o fosso com a rua.

—Onde se meteu? —escutou a suas costas—. Faz um momento que

deixei de te ver.

Mar deu a volta. Feliciana tinha abandonado a cautela inicial e

decidiu falar em público.

—É a primeira vez que vejo negócios debaixo de uma ponte.

Feliciana apareceu e lançou uma olhada ao que Mar assinalava.

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220

—Não são os únicos ai. Em total são cinco. Suponho que a cidade

cresceu tanto que saiu da antiga muralha, esvaziaram o fosso. Imagino que

seria então quando começaram a utilizar os túneis que ficaram debaixo das

pontes. Se não fossem por eles, teria desaparecido aqui como aconteceu em

outras partes da cidade.

Mar dirigiu a vista para onde a mulher indicava. A sua esquerda, no

lugar que devia estar à continuação do buraco que tinha aos pés, abria-se

uma praça alargada. O desnível se preencheu até conseguir estar ao nível da

rua. E sobre esse terreno se concentrava uma multidão. Ao fim e ao cabo, era

dia de mercado.

—Viemos comprar, não?, a que esperamos?

—Detrás de mim, como indiquei.

—Mas se já...

Feliciana já não a escutava.

Ao se aproximar da esplanada foi como entrar em um palácio

atapetado de cores. Castanhas, avelãs e nozes ocupavam uma parte muito

importante do chão. O resto estava misturado pelas verduras próprias do

momento. Verdes alcachofras, laranjas cabaças, brancas couves-flores,

vermelhos pimentões, cebolas e outras hortaliças multicoloridas pintavam o

chão das cores da estação outonal.

Divertiu-se. Feliciana era uma boa compradora; tocava tudo o que

lhe interessava. E discutia. Por tudo. Não se calava nada. Que se estas

castanhas têm mais pintas que minha tia —Deus a tenha em sua Glória—

quando morreu de varíola, que se estes buracos parece feito pelo Diabo em

pessoa —se benzeu—, que se estes pimentões são tão grandes e estarão tão

duros que posso fazer um vestido com a pele...

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Mar mantinha a todo o momento um par de pessoas mais à frente, o

suficientemente longe como para que ninguém a relacionasse com Feliciana,

mas o bastante perto para escutar o que a mulher dizia e poder desfrutar com

suas ocorrências. Nas ocasiões nas que algum dos lojistas se dirigia a ela, fazia

um gesto vago que indicava que só olhava e seguia caminhando. Depois,

quando Feliciana abandonava a cruzada que tinha cercado e continuava pelo

mercado, seguia-a de novo.

Mar estava tão absorto nos avanços de sua amiga que não se inteirou

de que na praça havia alguém mais que não se interessava nem em frutas

nem em verduras nem em hortaliças. Nem nas pessoas que ali se

encontravam. Só havia uma pessoa que a seguia com atenção e sem a perder

de vista. E essa pessoa era ela.

Gabriel a tinha descoberto fazia um tempo. Que Mar estivesse em

Olite entrava dentro do possível. Entre Olite e Tafalla havia apenas uma

légua e meia, uma distância que percorreria com facilidade em um par de

horas de caminho. Observou-a com detalhe. Por um lado, alegrava-se de que

tivesse deixado para trás as roupas masculinas; não havia dúvida de que os

vestidos de mulher lhe sentavam muito melhor. Embora não podia negar

que a forma em que as meias marcavam suas curvas tinha alegrado a vista... e

algo mais. Entretanto, seguia acreditando que seria mais seguro que seguisse

parecendo um jovenzinho em vez da mulher que era.

Nesse momento, Mar se aproximou de dois músicos guias de ruas,

que atuavam no meio do mercado, e Gabriel a perdeu. Estirou o pescoço

para voltar a localizá-la. Precisava tê-la no campo de visão. Foi então quando

Feliciana o descobriu as seguindo. O olhar de ódio que a mulher lhe dirigiu

resultou mais eficaz que se lhe tivessem jogado nas águas de Ega em época de

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degelo. Ficou rígido e fixo no chão, observando como agarrava Mar por um

braço e a arrastava longe dele.

Por sua parte, a protetora de Mar rezava para que Gabriel se desse

por informado de que não ia permitir que voltasse a aproximar-se daquela

garota e continuasse lhe fazendo dano. Como que se chamava Feliciana Erri.

—Decidistes deixar de lado a prudência que antes pregava? —inquiriu

Mar estupefato ante a reação da mulher.

Feliciana ficou sem palavras por um instante. De nenhuma maneira

ia contar que encontrou com o culpado de todos seus problemas.

—Nem pensar. É simplesmente porque parastes na frente de uma

mulher que detesto, uma vulgar estelionatária que sempre cobra mais do que

joga no cesto.

—Você e seus afetos —rio Mar alheia à alta figura masculina que se

elevava não muito longe dela.

—Voltemos para o nosso caminhar —a cortou Feliciana ao tempo que

se punha a andar.

Não pôde dar muitos passos. Os histriões tinham finalizado a

atuação e se aproximaram da Feliciana muito excitados.

—Amanhã no palácio... —escutou Mar.

—Nós? —gritou Feliciana louca de contente.

E tão absorto estava Gabriel em Mar, Mar na Feliciana e Feliciana no

que estavam contando que nenhum percebeu de que na praça havia duas

pessoas que não procuravam frutas nem verduras nem nenhum dos

indivíduos que havia naquele lugar.

Nenhum, exceto um homem de uma altura fora do comum e a

garota que despertava todo seu interesse.

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Mais tarde, Gabriel seguia dando voltas ao que aconteceu no

mercado. Seguia os passados do criador de aves quando se encontrou com

elas de repente.

E ainda estava aturdido. Aturdido pelo vazio que tinha aberto no

meio do peito ao ver Mar. Era a mesma aterradora sensação que percorria o

corpo quando se sabia rodeado de água; como se o que fora a acontecer não

dependesse dele mas sim de uma força desconhecida que chegava de não

sabia onde. Estava aturdido. Aturdido por saber que só sua presença

provocava nele uma impressão tão forte.

A teria podido tocar com só o estirar do braço. O teria feito se não

fosse por... — como se supunha que se chamava aquela mulher?—. De uma

coisa estava certo, de que Mar estava bem defendida com ela que se tivesse

consigo a seu lado, o procurado mais feroz do reino. Não podia havê-la

deixado com melhor amparo, embora houvesse um ponto negativo se sua

intuição não falhava. E este lhe dizia que a mulher não era precisamente um

modelo de virtudes. Entretanto, Mar era já adulta e podia tomar suas

próprias decisões. Se tinha tomado a determinação de partir para França,

não acreditava que houvesse ninguém que a obrigasse a ficar junto a aquela

mulher.

Recordou de novo que a tinha despojado do dinheiro que levava e

que provavelmente a colocou em uma situação complicada. Por sorte, os

ladrões que o tinham atacado na pensão não tinham dado com o paradeiro

da bolsa. Encarregaria de lhe devolver todos seus pertences quando aquilo

acabasse. Mas ainda não tinha chegado o momento. Não até que estivesse

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seguro de que os homens que as ambicionavam tivessem desaparecido.

Enquanto isso, Mar estaria melhor sem elas. O fazia por sua própria

segurança.

A filha do estalajadeiro o tirou de suas reflexões.

—Pareceu gostar da comida, pois decidistes voltar hoje por aqui.

Gabriel reagiu com prontidão.

—Não posso negar que saciara minha fome com seu estupendo

guisado, assim decidi voltar a desfrutar dele e de sua grata presença.

Sentiu-se satisfeito quando viu que o rubor aparecia nas bochechas

da jovem. Chegou disposto a conseguir toda a informação possível. E, ao

parecer, não ia resultar muito trabalhoso.

—Vou pegar a comida — comentou ela, tentando controlar o

nervosismo.

Demorou mais do que o previsto. Gabriel a viu perambular pelo

salão atendendo as nem sempre amáveis exigências do resto da clientela. Viu-

a servir vinho, limpar mesas, repartir tigelas, ignorar galanteios e evitar

obscenos açoites no traseiro. Sua impaciência já estava chegando ao limite

quando a viu aproximar-se com uma terrina fumegante na mão.

—Começava a pensar que tinha se esquecido de mim.

—De você? Nada disso. O guisado estava no fogo. Faltava uns

minutos. Além disso, estava acabando com alguns clientes antes de vir lhe

servir —acrescentou com voz insinuante enquanto colocava a comida na sua

frente.

—Perfeito, assim poderá dispor de mais tempo e me acompanhar

enquanto almoço.

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—Espero ter —respondeu ela sentando-se a seu lado, igual tinha

feito no dia anterior.

Gabriel segurou a colher e começou a comer ante o atento olhar da

garota.

—Que tal os negócios de seu tio? No palácio, refiro-me —explicou ante

a estranheza da garota—. Ontem os vimos entrando na lateral dele.

Ela pareceu recordar.

—Ah, sim! Você já tinha ido quando eles retornaram para anunciar

que levariam frangos e galinhas à cozinha do castelo.

—Obterá um bom negócio, levando em conta o número de pessoas

que acompanham ao monarca.

A garota lançou um assobio ao mesmo tempo em que agitava a mão

para acima e abaixo.

—Imagine. Meu tio dá pulos de alegria.

—Sabe por acaso até quando fica nosso novo rei?

—Espero que por muitos dias —disse ela sem deixar de vigiar aos

fregueses que enchiam o salão.

—Claro, claro. Quanto mais dias permaneça na vila, melhor será o

negócio familiar. De todas as maneiras —acrescentou como se acabasse de se

dar conta—, nas ruas não se vê muitos homens de armas. Acompanham ao

rei muitos soldados?

A garota encolheu de ombros.

—Não sei. Em qualquer caso, meu pai não deixaria que me

aproximasse de nenhum dos franceses. E menos de um soldado.

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—É natural —comentou Gabriel sem deixar de pensar que se o

estalajadeiro saísse da cozinha naquele momento, também a obrigaria a

afastar-se de seu lado.

—Eu tampouco o faria, embora pudesse. São estranhos, note que até

trouxeram suas próprias pombas. Como se em Navarra não tivéssemos

pombinhos iguais ou melhores que os seus!

—Pois isso sim terá sido uma desilusão para seu parente. Se me

recordo, ontem entravam no castelo com uma jaula. Suponho que com

intenção de oferecer as aves como presa para os falcões reais.

—Sim, mas meu tio não se deu por vencido. Tem intenção de voltar

amanhã com uma amostra de suas melhores aves.

Gabriel sorriu de soslaio. Aquilo era precisamente o que estava

esperando desde o começo. A moça acabava de servir a possibilidade de

entrar no palácio em uma bandeja de prata. Agora só faltava saber uma coisa

mais.

—Se for trazer muitas aves, terá que necessitar de ajuda para

transportá-las. Espero que não more muito longe.

—Por sorte, não muito. Vive fora da cidade, apenas a um quarto de

légua saindo pelo Portal de Tafalla. Sua casa se reconhece seguindo os

abrigos dos pássaros. No caminho, tem como ouvir o contínuo cacarejar das

pombas.

Aquelas palavras soaram como música celestial nos ouvidos de

Gabriel.

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Quando abriu a porta da cabana, pensou que não ia suportar aquela

pestilência e preferiu ficar fora. Mas um momento mais tarde, seus pés eram

uma parte de pedra e não sentia as mãos. Além disso, o nariz gotejava cada

vez que uma baforada de fôlego saía de sua boca. Assim, rendeu-se e entrou.

Apesar de que tentou fazer o menor ruído possível, a batida das asas

dos pássaros assustados se ouviu como um trovão na silenciosa noite.

Avançava devagar, com cuidado, pisando com a planta do pé antes de dar o

seguinte passo. Caminhava com as mãos estendidas, para não se chocar.

Com o tato percebeu na parede uma superfície rugosa e pegajosa, quando

chegou ao fundo parou. Avançou então para a esquerda. Alcançou o outro

lado, descendeu de costas pela parede até sentar-se no chão.

Estava certo de que quando saísse dali ninguém teria dúvida que ele

era o dono daqueles pestilentos animais. Ninguém em seu são julgamento, à

exceção de alguém que vivesse deles, aguentaria aquele fedor. Utilizou o

manto para cobrir-se, enterrou a cabeça dentro dele em um inútil esforço de

afastar aquele nauseabundo aroma e se dispôs a passar uma noite quente,

mas acordado.

Equivocou-se. Quando amanheceu, o dono do lugar entrou, ainda

dormia em um sono pesado.

—Venham, venham, bonitas —foi o primeiro som que ouviu e o que o

obrigou a despertar de repente.

O homem permanecia com os braços estendidos; parecia um

espantalho. Por sorte, estava muito ocupado em acariciar as plumas dos

pássaros que posavam em seus braços para fixar-se naquele vulto escuro e

imóvel que tinha aparecido no pombal.

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Entre a fresta da capa, Gabriel espiava os movimentos do tio da

taberneira. Não podia levantar-se agora. Não estava em condições de

surpreendê-lo. Tirou a faca da bolsa e esperou que se apresentasse uma

ocasião mais propícia.

O criador colocou a mão em um saco que estava em sua cintura e

começou a jogar os grãos no ar.

Todas as pombas que havia ali dentro começaram a voar em torno

dele, havia tantas que por um momento a figura do homem desapareceu

ante os olhos de Gabriel. Este não pensou duas vezes e aproveitou a

oportunidade.

Colocou-se a seu lado de um salto e, antes que o tipo percebesse o

que estava acontecendo, tinha-o a sua mercê; bem preso, com o fio da faca

por debaixo da orelha e o braço esquerdo em torno do pescoço.

—Um só movimento e é homem morto —sussurrou—, nem dará

tempo de ver como ponho fogo em suas amigas.

Gabriel esperava alguma reação, um intento de defender-se ou algo

assim. Nada aconteceu. O homem ficou imóvel e com os braços estendidos,

tal e como estava quando entrou no pombal. Ao que parece, tinha muito

apego à vida... ou a seus pássaros.

—O que... o que deseja de mim? Eu... eu sou um humilde criador de

pássaros. Não... não tenho riquezas.

—Deixe de falar! —ordenou girando-o para obrigá-lo a sair dali—. Se

encaminhe para a casa!

O homem não resistiu e começou a caminhar sem deixar de tremer.

Seria o melhor criador de aves da cidade, mas a valentia não era uma de suas

virtudes.

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A porta da moradia estava aberta. Gabriel o empurrou para dentro.

—Uma palavra mais alta que o normal e chorará a perda de sua

família o resto da vida — advertiu assim que passaram pela soleira.

Como Gabriel esperava, ali não havia ninguém à exceção dos

animais domésticos. A sala ocupava um dos lados do piso inferior do

edifício. Um boi e uma vaca os olharam com olhos tristes. Gabriel viu vários

aros de ferro com cordas penduradas e supôs que não fazia muito tempo que

a panela foi levada para o fogo, diante de vários dos inquilinos do estábulo.

Pelo aroma, intuiu que a pocilga não estava muito longe.

—Isto é tudo o que temos. Pode levar os animais, mas não nos façam

mal, lhe rogo —implorou o homem a ponto de chorar.

—Chamem a sua mulher.

—Não, não.

Gabriel apertou a faca um pouco mais e o prisioneiro deixou de

mover-se. Não tinha intenção alguma de lhe ferir, mas isso era algo que ele

não tinha por que saber.

—Chamem a sua esposa —repetiu zangado.

—Mulher —disse o homem sem voz. Gabriel não teve mais que

apertar a arma de novo para fazê-lo recuperar o juízo—. Mulher, vem cá!

—O que quer? —respondeu uma voz feminina de acima.

—Vêm pra baixo! — exclamou Gabriel.

—Vêm já disse!

Ouviram uns passos.

—Pode me dizer qual é a razão pela qual não pode você subir e tem

que ser eu a...?

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À mulher quebrou a fala e se deteve no meio da escada. Seu marido a

olhava com olhos aterrados e estava prisioneiro de um desconhecido que o

ameaçava com uma faca.

—Desce! —ordenou Gabriel— e entre na sala. Não acontecerá nada se

fizerem o que digo.

A mulher obedeceu, aproximou-se até a parede e voltou. Apertava as

mãos com força.

—Os meninos...

—Cale, mulher!

—Vou amarra-los com essas cordas! —ameaçou Gabriel o marido ao

mesmo tempo em que o soltava.

Uma vez que a proprietária da casa esteve atada, Gabriel fez o mesmo

com ele.

—O que é o que pretende de nós? —voltou a gemer.

—Chamem o menino —acrescentou Gabriel sem dar nenhuma

explicação.

O casal se olhou aterrado. Gabriel sorriu levemente. Melhor assim, o

terror era a melhor arma. Quanto mais medo tivessem, mais tempo

demorariam em reagir.

—O menino? —perguntou o homem com voz tremente.

—Aquele que o acompanhava ao palácio o outro dia.

Os olhares de confusão do casal foram muito eloquentes. O que

queria aquele desconhecido com eles?

—Alberto, filho, desça imediatamente!

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Em uns segundos, um menino moreno, de uns doze anos, olhava

Gabriel com os olhos como pratos e a boca entreaberta. Ainda tinha o rastro

do sonho noturno em seu rosto.

—Onde estão pai e mãe?

Gabriel voltou à cabeça para a sala. O moço seguiu o olhar.

—Se desejar que não lhes aconteça nada, será melhor que faça o que

ordeno — ameaçou Gabriel, o agarrando pelo pescoço—. Compreendeu-me?

—Sim, senhor —sussurrou com os olhos fixos no chão.

—Então me escute. Pegue as pombas que seu pai ia levar esta manhã

ao palácio. Se sair tudo bem e dentro do previsto, em umas horas estará de

volta são e salvo, e você e sua família se liberarão de mim para sempre.

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CAPÍTULO 15

Dez, nove, oito, sete, seis...

Gabriel contava os passos que os separavam da zona posterior do

castelo, por onde o menino tinha indicado que seu pai e ele tinham entrado

da vez anterior.

Gabriel sustentava em uma mão uma jaula com três das aves que o

moço tinha escolhido. O menino levava as outras duas. Criou uma história;

não tinha que sair de sua boca outra coisa que: seu pai estava doente e que o

homem que o acompanhava era um de seus tios. Mas, em qualquer caso,

sujeitava-o com firmeza pelo ombro.

Cinco, quatro, três, dois, um.

A porta da Torre da Prisão estava fechada; entretanto, Gabriel não

fez nem um só gesto que delatasse sua decepção. Havia outros dois acessos

nos fundos do edifício. Acelerou o passo. Menino e homem chegaram à

esquina do palácio, giraram, E... encontraram-se com quatro soldados que

impediam o passo.

—Arretez!10 —exclamou um enquanto fazia claros gestos para que

retrocedessem.

Gabriel reconheceu um deles; formava parte da tropa que tinha

participado da captura no convento e levado os templários.

Por sorte, teve a precaução de ocultar o cabelo sob uma touca que

estava atada sob o queixo. Encolheu os ombros tudo o que pôde com a

esperança de rebaixar sua altura uns centímetros e baixou os olhos.

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—Nos espera o falcoeiro para examinar estes animais —explicou

ocultando o rosto detrás da jaula.

—Vous NE pouvez ps passer11.

O moço fez intenção de retroceder, mas Gabriel o impediu.

—Precisamos ver o falcoeiro — insistiu.

Não houve mais palavras. Os soldados se adiantaram e os

empurraram contra os muros do castelo. O ruído metálico da jaula que

levava Gabriel ao se chocar contra as pedras e o bater de asas das assustadas

pombas se apagou com o ruído que foi produzido com a chegada da

cavalaria.

—NE bougez pas!12

Gabriel ficou quieto. O que viu o deixou petrificado.

Os irmãos templários desciam das carretas. Viu a carreta parar, eles

descerem e os viu passar, um detrás de outro, na frente de seus olhos.

Estavam todos: o irmão José, o irmão Juan, o irmão Clovis, o irmão

Benjamim, o irmão Santiago, o cozinheiro... Procurou com avidez ao ancião

que tinha sido um pai para ele. Respirou quando o encontrou. O irmão

Clemente o ajudava a caminhar para a Torre da Prisão. Quando passaram na

sua frente, Gabriel pôde ver que seu tutor se apoiava no comendador, e este

o sustentava como podia, levando em conta sua também lamentável situação.

Não tinha passado nem uma semana da última vez que os viu e parecia que o

céu trouxe vários anos para eles.

Alarmado, deu um passo para frente. Os quatro guardas se juntaram

automaticamente e formaram uma parede entre ele e os prisioneiros. Os

olhos do irmão Roger se voltaram para os soldados e foi então quando o

descobriu. Gabriel o viu abrir a boca e voltar a fechá-la sem que tivesse saído

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dela som algum. Ninguém, exceto Gabriel, foi consciente da negativa que o

ancião lhe dirigiu antes de baixar o olhar e continuar a marcha.

O monge estava esgotado. Tinha o rosto sofrido e os olhos fundos. E

arrastava os pés. Imagens dos danos que podiam ter infligido neles, naquele

dia que ele os abandonou a sua sorte, atravessaram a mente de Gabriel e lhe

deu forças para acabar o que tinha começado. Entraria no castelo e os tiraria

dali, custasse o que custasse.

Calculou as possibilidades que tinha se avançasse com a faca e

atacasse a navalhadas os quatro homens armados. Nenhuma. Não podia

fazer nada. Mas ficar inerte vendo passar os religiosos a menos de três passos

na sua frente e sem poder auxiliá-los não entrava em sua mente.

Assim fez uma última tentativa. Agarrou o menino pelos braços, deu

um empurrão nos militares que o impediam de continuar e se dispôs a

seguir os templários.

Não chegou muito longe. Ficou parado no lugar quando sentiu a

ponta de uma lança no meio das costas.

Acabou-se. Acabou a aventura, acabou a iniciativa, acabou a

liberdade, acabou a vida.

Teve seis dias de trégua. Seis dias que Mar cruzou em seu caminho.

—O que temos aqui? Se for o moço que conhece por seu nome todos

os rapazes do reino! Vejo que trouxestes uns bonitos exemplares de

pombinhos, tal e como me prometeram. Deixe-me vê-los. —Uma nova e

grossa voz apareceu. Gabriel teria gostado de dar a volta. Se tivesse a

segurança de que aquele maldito francês não o ia trespassar com a lança

como tantas vezes tinha feito ele mesmo com as lebres que caçava—.

Preciosos animais, sim senhor. Seu pai, bem pode estar orgulhoso de você.

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235

Se continuarem assim, em uns anos serão renomado falcoeiro maior do

reino.

—Seu pai o faria se estivesse segurança de que vai poder ver crescer o

moço —respondeu Gabriel com voz cavernosa.

—Mas o que está acontecendo aqui? —escutou quando deixava de

sentir a ameaçadora pressão.

Tentou dar a volta para ficar de frente com o que acontecia em torno

dele, mas não pôde. Um forte empurrão o fez avançar.

—O que...? — começou a dizer tentando manter o equilíbrio.

—Não voltem e sigam caminhando —sussurrou o falcoeiro—. Chegam

tarde! Estava-lhes esperando! O rei está desejoso de sair para caçar estas

maravilhas que trouxestes!

Deixaram de lado a porta pela qual tinham desaparecido os

templários e seguiram adiante, para a entrada destinada aos domésticos do

castelo. O primeiro dia de sua chegada a Olite, Gabriel tinha visto entrar e

sair às criadas com os desperdícios da cozinha e jogá-los no escoadouro atrás

do palácio.

Avançaram rente à parede até que encontraram a entrada: um

grande arco que mantinha uma enorme porta.

—Aqui?

O homem se adiantou e deu três fortes golpes. Era exata à ideia que

Gabriel teve dele ao escutar sua voz. Agora se explicava por que os soldados

não tinham feito nada para detê-los. Ninguém em seu são julgamento se

atreveria a encarar aquele homem. Era quase tão alto como ele, mas o dobro

de largura. Se fosse um pouco mais largo não entraria pela porta que tinha

na sua frente.

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Este voltou a golpear a porta. Essa vez teve êxito. Um moço apareceu

imediatamente.

O falcoeiro se afastou para que passassem. Gabriel virou antes de

entrar. Os soldados tinham desaparecido.

—Malditos estrangeiros! —balbuciou o gigante ao seu lado antes de

segui-lo.

A estadia em que entraram não eram as cozinhas, como Gabriel

tinha suposto. Era parte das cavalariças, na verdade, a sala de espera da

mesma. Montões de palha e de cevada se alternavam no chão em qualquer

parte, alguns moços trabalhando em excesso com umas largas forcas,

empilhando e limpando até os estábulos situados no final da estadia.

Calculou que poderia haver mais de vinte cavalos.

Bem, já estava dentro. Agora devia andar com muito tato. Falaria

com o falcoeiro como se interessasse pelo negócio das pombas para fazer

tempo. Tinha que encontrar uma maneira de ficar ali dentro. Embora ainda

faltasse superar a primeira opção. E decidiu fazê-lo o quanto antes.

Aproximou-se do moço, que se distraiu com o movimento em torno dos

covalos, e o segurou pelo pescoço.

—O pai do moço, meu irmão mais velho, tem estado doente, com

febre e me pediu que acompanhasse o menino com os animais.

—Perfeito. Agora veremos se essas joias que trouxestes são as que seu

irmão me prometeu —respondeu o outro, dirigindo-se para a seguinte

estadia—. Sigam-me.

—Estou certo que vai ficar satisfeito. São uns excelentes animais —

comentou Gabriel, cruzando pelo mesmo espaço que tinha entrado o

falcoeiro.

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237

O pátio era retangular e estava completamente pavimentado.

Tinham saído pela parte central de um dos lados mais largos. Em frente,

uma fila de colunas separava o átrio de uma galeria que se conectava com

outro lado. Gabriel não acreditava ter se confundido, estava certo que por

trás do corredor estava à porta principal, a praça e o botequim na qual tinha

passado tantas horas de vigilância. A chegada de uma fila de guardas o

persuadiu a desviar a atenção para outra coisa. Nas lajes do piso havia quatro

buracos talhados com grades e, um pouco mais à frente, o poço. Gabriel

elevou a vista. O edifício só se elevava um piso para cima de suas cabeças.

Imaginou que ali se encontrariam as estadias da corte e as habitações reais. E

supôs que nem o rei nem nenhum dos homens nobres que se alojavam ali,

tinham intenção de ver, ouvir ou tocar em um prisioneiro. Limitaria a busca

à planta baixa e aos porões.

—Por aqui —indicou o falcoeiro.

Passaram pelo o poço. Na frente deles, uma criada se dirigia para as

cozinhas com um cântaro apoiado na cintura sob o atento olhar de vários

soldados que a observavam além das colunas. Gabriel seguiu o movimento

de seus quadris.

O ruído de um jarro fazendo-se pedacinhos contra o chão o obrigou

a voltar para a realidade. De longe, chegaram vozes de mulheres que não

pôde entender.

Não soube se foi por que ele tinha afrouxado a pressão sobre o

garoto ou a presença da guarnição deu ao moço a valentia que necessitava,

este se liberou com uma forte sacudida, soltou a jaula e correu para os

soldados.

—É um impostor! —gritava sem se deter —. apanhou a minha família!

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Em um instante, Gabriel estava rodeado por um círculo de lanças

que ameaçavam lhe deixar com o corpo como um coador, se apenas se

movesse.

—Qui êtes-vous?13

Gabriel não teve que responder. Outra pessoa se encarregou de fazer

as apresentações.

—Gabriel!!

O grito afogado procedia da porta da cozinha; da mulher que tinha

se chocado com a que voltava com o cântaro cheio; e mais precisamente da

única que desejaria que estivesse muito longe de ali.

De Mar.

—Está louca?

Feliciana estava com Mar dentro da cozinha e segurava seus ombros

contra a parede para evitar que retornasse ao pátio. Até esse momento não

tinha dirigido a palavra —seguia com a ideia de que ninguém as relacionasse—

, mas depois do grito não teve mais jeito que intervir para que não se

delatasse.

—Acabam de detê-lo!

—Sei, o vi perfeitamente, igual a você.

—Tenho que fazer algo para ajudá-lo!

—Não compreende? É um prisioneiro do rei, e você também será se

alguém perceber que o conhece — comentou sem deixar de olhar a seu redor

para ver se alguma das garotas que perambulavam por ali se deu conta do

que tinha acontecido do lado de fora.

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—É você que não entende. O prenderão, irá para a masmorra mais

profunda e o reterão ali por sabe Deus quanto tempo.

—Por penetrar em um palácio com um menino e umas pombas?

Mar demorou em responder. Pensou na possibilidade de se calar e

não mencionar nada do que Gabriel tinha confessado em Estella. Mas se

algo tinha ficado claro naqueles poucos dias, era que quando aquela mulher

decidia fazer uma amiga, era para sempre e sob qualquer circunstância. Podia

confiar nela.

—É um fugitivo.

Feliciana a soltou e deixou cair os braços, aturdida.

—Como?

—Quando o conheci, fugia da justiça.

—Fugia?, ladrão?, assassino?, por... por estupro?

—Não, não, não. Por estar no lugar equivocado. Por querer ajudar a

seus amigos.

—Pois irá ter que me explicar isso porque não entendo como um

homem acaba no cárcere real quando tenta ajudar aos outros.

Mar tomou ar e começou.

—Ao que parece, o rei mandou prender todos os cavalheiros

templários de Navarra.

—Não me diga que era um deles...? —perguntou. Calou-se de repente.

Mar imaginou as palavras da Feliciana. «E você com seus encantos fez

com que abandonasse a ordem.»

—Quer fazer o favor de escutar sem me interromper?

—Está bem. Sou toda ouvidos.

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—Estava de visita no convento que os cavalheiros templários têm

perto de Ponte Reina quando a Guarda Real os deteve e os levaram.

Inclusive ele.

—E como é que estava livre?

—Escapou quando os transladavam para aqui.

—Foi então quando decidiram fugir juntos.

—Não, não, não. Veio a minha casa em busca de refúgio. Por isso o

conheci.

—E quando tempo passou que tudo isto aconteceu?

—Faz uma semana.

—Uma semana? E está disposta a perder a vida por um homem que

conheceu a pouco tempo, que a roubou e a deixou no meio do campo a sua

sorte. —Feliciana se apoiou na parede junto de Mar—. Por sermos mulheres

merecemos todos os males que nos acontecem? Às vezes não temos solução.

Quando eles irrompem em nossa vida, os deixamos passar.

—Isto não tem nada a ver com o que sugere.

—Acredite em mim, só tive que o observar um par de vezes para saber

do que falo. E acontece o mesmo com você.

—Não, não, não. Não entende. Ele me salvou quando o filho do

comerciante quis... e quando entraram aqueles homens em minha casa e

quando me atacaram na caravana —acrescentou confundida.

—Aqueles homens?

—Eram os mesmos que apareceram no bosque em Artajona e que

vocês enganaram.

—A perseguem por ordem de seu pai?

Mar deixou escapar um suspiro.

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—Meu pai não enviou ninguém para me buscar. Faleceu faz meses.

E... Eu e Gabriel não temos nada que ver com o que imaginastes.

—Não se engane. As mulheres quando são agradadas, damos

obrigado, mas não jogamos a vida como você está desejando fazer. —Mar não

soube o que responder e ficou calada—. Falou que levaram os monges?

—Trouxeram-nos para Olite. Encontram-se neste castelo. Gabriel

pretendia liberá-los.

—Com a ajuda de um menino e uns pássaros? —Aquilo era muito. A

mulher se sentou no degrau da porta—. Está louco e a contagiou com a

loucura.

—Não fale assim.

—E o que quer que diga de um homem que se mete em um castelo

que está custodiado pelas tropas reais para tirar das masmorras a uns monges

por muito amigos que sejam?

Mar não respondeu. Feliciana se perguntou que mais podia dizer.

Ela, que se caracterizava por ser sempre a última a falar, ficou muda.

Certamente não estava esperando aquilo. Nunca teria imaginado que Mar

estivesse metida em semelhante confusão. E não acreditava quando falava

dos motivos que queria ajudar Gabriel. Não havia mais que olhar aos olhos

quando o mencionava para saber que não era agradecimento precisamente o

que sentia. Malditos homens! Deus os criou sozinho para complicar a vida

das mulheres.

—Provavelmente não aconteça nada —aventurou—. Ninguém tem por

que saber que é a mesma pessoa que fugiu dos guardas nem que intenções

tinham ao entrar aqui.

Agora foi Mar que tentou esboçar um sorriso irônico.

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—Parece ter esquecido que aspecto tem. Recordando: a pessoa mais

alta que conhecem e com o cabelo mais comprido que já viram em um

homem.

—Pode ter cortado.

Mar a olhou com o cenho franzido. Mas não pôde dizer nada mais

porque um ciclone em forma de cozinheiro baixo e rechonchudo e com um

caráter de cães interrompeu a conversa.

—O que fazem aí paradas? De quem terá sido a ideia de colocar

mulheres na cozinha? Pensam que vou pagar a jornada sem fazer nada? Já

estão confabulando. Você —acrescentou assinalando Mar— ajudará Sancha a

recolher os pedaços do jarro do pátio e a secar o chão. Depois, acabem de

encher todos estes cântaros —acrescentou, assinalando uma fila de enormes

recipientes que chegava quase acima da cintura—. E você, venha comigo.

Acabam de me avisar de que temos mais bocas para alimentar, se por acaso

não tínhamos bastante trabalho.

Feliciana olhou a jovem pela última vez e seguiu o homem. No

fundo, alegrava-se da interrupção. O trabalho viria bem para Mar. Com um

pouco de tempo daria conta de que tentar fazer algo por Gabriel era

impossível. Teria que se arrumar sozinho, como tinha feito até então.

—Não posso acreditar que me convenceu para fazer isto —balbuciou

Feliciana a Mar quando uma dúzia de cabeças se voltou para elas.

Entre as duas, estava um caldeirão de líquido morno que flutuavam

partes de cebolas e outras verduras dificilmente identificáveis. O frio da rua

tinha formado sobre a superfície da sopa uma nada apetitosa capa.

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—Se cale —sussurrou Mar com os olhos baixos e sem parar.

De acordo com as indicações da mulher que lhes tinha entregado a

ração diária para os prisioneiros eram muito precisas: não parar em nenhum

momento, não olhar para os soldados, não responder a seus comentários.

Resumindo: seguir em frente, direto para a porta da Sala de Guardas e

depois desta à Torre da Prisão; e passar despercebidas, quanto mais rápido

melhor.

Mas uma coisa era querer e outra muito distinta poder. E elas

seguiram as instruções até onde puderam. Tropeçaram em uns pés com suas

pernas, seu tronco e seus fortes braços. Mar apertou os dentes. Sem levantar

a vista, rogou para que Feliciana fizesse o mesmo que ela e para que aquele

bruto que acabava de interromper seus passos, fosse para o lado.

—Hoje estamos com sorte, enviaram duas empregadas em vez do

corvo que está acostumado a vir.

Mar se surpreendeu com os guardas que não falavam em francês.

Gabriel deu a entender que todos os soldados que acompanhavam o rei

eram franceses, mas agora via que estava equivocado.

—Eu ficaria melhor com a empregada e a sua mãe —respondeu

alguém em algum lugar da sala.

Escutou-se um coro de risadas masculinas.

—Alguém pode ficar com a mãe que eu me encarrego da filha —

acrescentou aquele que as tinha parado, enquanto segurava Mar pelo braço.

Ela esqueceu então a prudência inicial e se agitou para se soltar.

Sentiu como a sopa salpicava os seus pés quando o caldeirão balançou com o

brusco movimento.

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—Solte! — gritou Feliciana e proporcionou ao gigante um forte

empurrão.

As risadas de uns instantes atrás se transformaram em silêncio. A ira

subiu ao rosto do soldado como uma corrente. E Mar viu que a corrente

estava a ponto de transbordar-se quando seu braço se elevou com fúria. Ia

golpear Feliciana.

—Qu’est-c qu’IL passe ici?14

Mar e Feliciana se voltaram. Quatro soldados acabavam de aparecer

na galeria. O que tinha falado parecia o chefe. Uma cota de malha cobria

todo o seu corpo, os braços e as pernas. Levava em uma mão as manoplas de

argolas de ferro que acabava de tirar e mantinha a outra mão sobre o punho

da espada que pendurava da cintura.

—O que está acontecendo aqui? —repetiu de novo, pronunciando as

palavras com dificuldade.

O homem que acossava Mar e Feliciana abandonou o ar ameaçador e

se afastou sem pigarrear. Estas se olharam furtivamente, endireitaram a

panela e seguiram adiante.

Ninguém as parou, ninguém lhes dirigiu uma só palavra, ninguém as

olhou sequer. Mas Mar não respirou até que não desapareceram do pátio,

atravessaram a Sala de Guardas, chegaram à base da torre e começaram a

descer.

—Um animal, uma besta, um jumento, isso é o que é! —recitava

Feliciana a cada degrau que desciam.

—Se cale —implorou Mar—. Está me deixando nervosa com esse

praguejar —acrescentou, apoiando de novo a mão no frio e úmido muro para

evitar cair.

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Feliciana se deu conta, insultar aquele energúmeno evitava pensar

no que poderia acontecer quando voltassem a passar por eles.

—Já devemos estar chegando. Isto pesa mais que a alguns pecados.

—Pois não era pelo alimento que nos abordaram —comentou Mar

sarcástica —. Com essa comida aqui é que irão morrer de fome, e o vão

conseguir em poucos dias —acrescentou sem deixar de pensar na formidável

altura de Gabriel.

—Certamente que a alimentação que o monarca oferece aos

«convidados» não vai consumir as reais arcas.

Tinham chegado a uma espécie de patamar. Uma porta fechada e

sem o batedor era o único acesso que havia para não se sabia onde.

—Será por aqui?

—Quem desce? —chegou de mais abaixo.

—A comida para os prisioneiros! —respondeu Feliciana.

—Continuem descendo!

Já estavam chegando. Os nervos que Mar estava contendo no centro

do estômago se descontrolaram. Um formigamento subiu pelas pernas, e os

braços ficaram sem forças. Na penumbra, olhou Feliciana. Esta encheu seus

pulmões, soltou o ar com força e assentiu.

—Adiante.

Começava o trabalho.

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CAPÍTULO 16

Desceram com decisão os quinze degraus que faltavam na escada e se

depararam com um lugar que se mostrava maior e com mais luz que o

patamar anterior.

As feições de Mar se iluminaram. Estavam com sorte. Só havia um

guarda. Um baixo, obeso e velho, sentado em um assento de madeira,

descansando contra a parede e com cara de aborrecido. Duas lanças jaziam

apoiadas em um canto da estadia, não muito longe de onde ele estava.

Mar observou o corredor que saía dali e observou os alicerces do

castelo. Preferiu não pensar nos anos que passaram para escurecer as pedras

do chão nem na umidade que sustentava a ferrugem das paredes nem no que

encontraria mais a frente.

—Trazemos a comida dos prisioneiros — anunciou Feliciana.

—Deixem aí e vão embora — ordenou o guardião, assinalando o

centro da sala.

Ambas se olharam assustadas. Fim do trabalho. Aquilo tinha sido

tudo? Para ganhar tempo, depositaram a panela no chão, como o guardião

indicou.

Mar se dirigiu a Feliciana com olhar interrogante. Feliciana a

tranquilizou em silencio antes de voltar-se.

—Ordenaram-nos que não retornemos sem a panela. O cozinheiro é

muito exigente e necessitamos deste trabalho — se aproximou do guarda com

o andar sinuoso —, e estou certa de que não deseja que este seja nosso último

dia no palácio.

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Mar viu como o rosto do soldado se transformava de felicidade. Um

momento mais e um rastro de saliva escorregaria pelo canto de seus lábios.

Feliciana se aproximou ainda mais dele balançando os quadris.

—Não é a norma —conseguiu balbuciar o homem.

—Poderia me encarregar de realizar todos os dias este trabalho.

Acredito que você também estaria interessado de que fosse dessa maneira.

Equivoco-me? Além disso, até poderíamos convencer a minha companheira

de que ela se encarregue de repartir a ração dos prisioneiros. Dessa maneira,

poderíamos ter um pouco mais de tempo para nós. Não está de acordo?

—Claro...

Mar não soube se o homem tinha cedido à sugestão. Feliciana já o

tinha encurralado contra o muro.

—Nesse caso, vou ajudar a transportar a comida até as celas e já

retorno. Não parta — murmurou junto a seu ouvido ao mesmo tempo em

que passava uma mão entre as pernas do homem e a apertava com

suavidade.

Um risinho feliz escapou da boca do guarda. A mulher deu a volta

com rapidez e chegou até onde Mar esperava.

—Vamos rápido —sussurrou—. Tentarei o entreter o quanto puder.

—Mas...

—Segure a alça do caldeirão! Não queria ver esse homem? Vamos

rápido com isso!

Mar obedeceu. Agarrou a alça com força e, juntas, penetraram no

corredor.

—Não se ponha em perigo... —aconselhou Mar quando o colocaram

no chão.

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A mulher lhe beliscou a bochecha e piscou o olho.

—Não se preocupe menina, já saí de piores situações. Encontre

Gabriel; desse aí fora, eu me encarrego — acrescentou antes de voltar-se.

Mar se obrigou a não pensar no que sua amiga estava a ponto de

fazer por ela e pôs mãos à obra.

Pela luz que chegava da habitação em que estava o guarda entreviu o

que havia naquele corredor. Aproximou-se da primeira das portas que ficava

a sua esquerda.

—Gabriel! —chamou o mais baixo que permitiu sua voz—. Gabriel!

Ouviu um ruído apressado do outro lado da madeira e notou algo

viscoso e frio que roçava sua bochecha. Afastou-se imediatamente com um

gesto de repulsão.

—Quem é? —perguntou alguém de dentro da cela.

Entre as trevas, Mar viu os dedos de uma mão saindo pelo mínimo

buraco, só o suficiente para que entrasse a comida.

—Procuro Gabriel... Está ai com vocês?

—Não. Eu...

Mar não parou para escutar o que o homem dizia.

—Agora lhe trarei algo de comer —acrescentou e se pôs a correr

passando para a seguinte cela.

Revisou-as uma a uma. Todas estavam vazias com exceção da que

ocupava o pobre homem que tinha falado. Teve piedade dele e voltou até a

masmorra.

—Me dê à tigela — indicou de uma vez que colocava a mão pela

abertura esforçando-se em não prestar atenção aos gemidos do soldado que

ficou com Feliciana.

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Encheu a tigela até e o passou de novo. A tigela desapareceu de sua

mão no mesmo instante que a passou pelo buraco. Mar o escutou sorver a

sopa com ansiedade.

—Procuro um homem que capturaram esta manhã.

O homem sugou outros quatro sorvos antes de responder.

—Passaram por aqui. O levaram para o final do corredor.

Ela apoiou a frente na úmida madeira.

—Não está em nenhuma das celas.

—Seus gritos se ouviam mais à frente.

Mais à frente. O túnel continuava. Retrocedeu para segurar a trava e

a tirou do suporte. Olhou para trás. Sua amiga arrumou um jeito de afastar o

soldado da entrada do corredor. Não veria nada do que fizesse.

Correu pelo corredor. Havia uma curva no fundo, e, depois dele,

outra galeria. Mar ficava a cada momento com mais medo de que alguém a

descobrisse.

O túnel não era muito comprido, mas para Mar pareceu eterno. Em

frente à tocha, o que via além estava escuro, caminhava com uma mão

apoiada na parede. Encontrou outra volta no muro ao mesmo tempo em que

chegavam umas vozes apagadas. Parou de repente e se aproximou da parede,

enquanto se assegurava de sustentar a luz o mais afastada possível dela, para

que ninguém a descobrisse antes do tempo. Tinha que tentar averiguar o que

era o que falavam. Com cautela, apareceu na esquina.

E o que intuiu entre as trevas a deixou com o coração apertado.

O corredor se abria em um espaço mais largo, logo que iluminado;

um espaço suficiente para abrigar duas enormes celas, uma em frente da

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outra, separadas entre si pelo corredor e as grossas barras que penetravam

nas vísceras da terra.

Quando Mar assegurou de que não havia ninguém vigiando os

prisioneiros, decidiu avançar. Aproximou-se da cela da direita. Nenhum dos

homens que ali se encontravam fez intento algum para levantar. A maioria

deles estavam sentados no chão, com as costas apoiada na parede. Um par

deles jazia deitado sobre umas braçadas de palha que alguém tinha

amontoado com a ideia de amenizar os rigores da estadia.

Mar só podia vislumbrar sombras ao invés dos homens. Introduziu a

tocha pelos ferros e a moveu de um lado a outro. Os religiosos elevaram o

braço para proteger os olhos da luz cegadora.

—Gabriel! —sussurrou Mar.

—Mar?

Ela virou bruscamente levando a luz consigo.

Ali estava, na outra cela. Tinha o rosto sujo e o cabelo grudado no

rosto. Segurava os ferros da grade, como se o arcanjo tivesse descido dos céus

para salvá-lo.

— Que bom que o encontrei — confessou ela, aliviada.

—O que faz aqui?

—Estou servindo na cozinha e... Vi quando o capturaram — explicou

ela enquanto colocava uma mão sobre as dele.

—Sei. Eu também a vi. Mas o que faz na prisão? Como entrastes?

—Trouxe-lhes comida. Tenho que voltar.

Soltou Gabriel e pôs-se a andar.

—Não parta!

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Gabriel tentou segurá-la. Mas Mar voltou pelo corredor e corria em

busca do caldeirão com o único sustento diário daqueles homens. Alcançou-

o em um instante. Segurou com força pela alça e se dispôs a retornar.

—O encontrou?

O prisioneiro, que havia indicado para onde se dirigir, a observava

pelo estreito buraco.

—Sim, está no fundo, como disse. Sua tigela, vou colocar mais sopa.

Aquele pobre homem bem merecia um pouco mais de comida.

A encheu de novo e, depois, pôs-se a andar com a pressa que

permitia o peso que transportava.

Não parou nem quando pisou em algo brando que soltou um agudo

chiado antes de afastar-se correndo pelo túnel.

E em um instante estava de volta e tão angustiada que não pôde

observar a expressão aliviada no rosto de Gabriel quando apareceu pela

galeria.

—Suas tigelas —se dirigiu aos monges da primeira cela que tinha

examinado.

Um deles, o único que se vestia de negro, levantou-se e se aproximou

dela.

—Não dispomos de nenhuma.

Ela se voltou e olhou a seu redor. Uns passos mais à frente, várias

terrinas de madeira se empilhavam de qualquer maneira no chão.

Recolheu todos os que havia e começou às encher as inundando no

caldo agora frio. O comendador as agarrava quando ela as estendia e as

entregava ao resto dos irmãos. Quando acabou com o primeiro grupo,

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continuou com o do Gabriel. Em poucos minutos, o caldeirão estava vazio e

os monges bebiam o único sustento diário.

—Está tudo bem? —perguntou, agachando-se junto de Gabriel quando

viu que este já tinha acabado de comer —. O maltrataram?

—Um par de golpes nada mais. Nada fora do normal. Os irmãos

estão pior. Ficaram quase uma semana no convento de São Francisco,

interrogando-os, antes de trazê-los aqui. O irmão Juan e o irmão Roger estão

muito débeis, esgotados física e mentalmente. E o pior é que ainda não

sabem quais são os critérios da acusação.

—E você? Do que o acusam?

Gabriel passou por cima do alarme na voz de Mar.

—Do mesmo que eles. O capitão da guarda me reconheceu quando

me capturaram. Suponho que sou fácil de identificar.

Mar teve paralisado todos os músculos. Até esse momento teve uma

secreta esperança de que a única acusação fora a de ter entrado no palácio

fazendo-se passar por outro homem.

Mas Mar não pôde pensar mais porque uma figura apareceu de

repente pela galeria.

—Menos mal que a encontro! Temos que sair daqui!

Muito tempo depois de que Mar tivesse desaparecido arrastada por

Feliciana, Gabriel ainda mantinha os olhos fixos na escuridão.

—Parece que a visita da moça mexeu com você.

O irmão Roger se aproximou até ele em silêncio, deixou-se cair junto

a seu tutelado pesadamente.

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—Não deveria ter se movido. Está mais bem recostado — comentou

Gabriel, acomodando-se a seu lado.

—Mesmo que por uma vez, estou de acordo com você. Mas quem

algo quer...

—... algo custa — finalizou Gabriel, ao recordar o dito que o ancião

sempre repetia quando era menino.

Se não fosse pelo lugar que se encontravam, a situação até teria sido

divertida. O velho se tornou curioso. Faria-o sofrer um momento. Fechou os

olhos, apoiou a cabeça no muro e se dispôs a esperar o seguinte movimento.

—Conhecia a moça —disse o ancião depois de um momento.

—Assim é —confirmou sem dar mais explicações.

—Converteu-se em uma linda mulher.

Gabriel abriu os olhos na escuridão.

—Converteu-se? A reconheceu... — compreendeu.

—Margheritte Roux, filha de Alienor Roux, ourives principal da vila

de Estella. Impossível não reconhecê-la, é o retrato vivo de seu pai.

—Sim, mas muito mais atrativa.

—Não me atrevo a perguntar o que faz ela aqui. Segundo minhas

últimas notícias deveria estar a caminho da França. Seus parentes a esperam.

Gabriel estava confuso.

—Suas últimas notícias? Estivestes a espiando por acaso?

Sabia que o irmão Roger conhecia o ourives e a Mar, sabia desde que

fazia dez anos, desde aquele desgraçado dia em que o irmão Pablo foi

assassinado, mas de nenhuma maneira imaginou que o monge continuasse

tendo notícias dela. Menos ainda depois da morte de seu pai.

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—Digamos que me interessa o que a aconteça. Irá me contar como

Margheritte chegou a conhecê-lo e por que está de criada neste castelo?

Gabriel levou as mãos à cabeça e esfregou o cabelo. Por onde

começar? Por onde começasse não ia se livrar das recriminações de seu tutor.

Sabia o que lhe diria: que ele era o único responsável por Mar não se

encontrar a salvo ao lado dos peregrinos.

Assim que contou os fatos.

Como esteve em sua casa com a intenção de procurar refúgio; como

a protegeu quando apareceram os assaltantes; que não a abandonou até estar

na caravana a caminho da França; como se inteirou de que voltaram para

atacá-la; por que tinha tomado à decisão de levá-la consigo a Olite; e como a

tinha deixado a salvo nas mãos de Feliciana.

Contou-lhe os fatos e não falou dos sentimentos.

A ansiedade sentida ao tocá-la na primeira noite; o medo quando

encontrou o filho do comerciante acossando-a; a paixão desatada por seus

beijos; o aterrador vazio quando soube que estava de novo em perigo; a

ternura ao localizá-la dormindo entre as rochas; a ira quando ela o golpeou; a

diversão quando teve que liberar seus cabelos dos ramos; e o desejo, de novo

o desejo, cada vez que a via, cada vez que a cheirava, cada vez que a tocava

ou, simplesmente, cada vez que imaginava.

Não houve recriminações. O irmão Roger estava muito preocupado

por outras questões para reprovar seu proceder.

—O que querem os homens que a perseguem? Diz que não

conseguiram o que procuravam, por que sabe?

Havia ansiedade na voz do religioso.

—Porque está em meu poder.

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—Com você? Aqui?

Gabriel riu do seu pesar.

—Acha que sou tão inconsciente? Não, não. O anel está bem

guardado. Escondido no lugar mais seguro da cidade.

—O anel? —O ancião parecia confuso—. Alienor disse que o escondeu

em uma peça, não em um anel.

Gabriel levantou a vista do imundo chão quando o compreendeu.

—Assim era uma peça, parecida com uma tabuleta. Encontram-se

juntos.

—Ela o conhece?

—O lugar, quer dizer? Não. Levei comigo. Era o mais seguro.

—Agora o perseguirão. Eles não retrocederão em sua busca. É muito

valioso —murmurou o religioso.

A cólera de Gabriel chegou ao monge com claridade.

—Me irá contar por que isso é tão valioso e por que esses tipos estão

empenhados em consegui-lo.

O irmão Roger inspirou fundo antes de começar, agora era ele que

teria que confessar-se.

—Alienor Roux era um dos netos de Teobaldo I «O trovador».

—O rei? —perguntou Gabriel estupefato.

—Sim, rei de Navarra e conde de Champanha. Pois bem, Teobaldo I

prometeu ceder Navarra a sua filha Teresa como dote por seu enlace com

Jean I Roux, conde da Bretanha. Mas não pôde ser. O rei da França, ao que

Teobaldo I devia vassalagem como conde de Champanha, ofendido por ter

casado a sua filha sem seu consentimento, iniciou uma luta com este. Até

chegaram a intervir em favor da batalha, Gregorio IX, e Teresa de Castilla,

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sua própria mãe. Anos depois, Teobaldo II, o filho que Teobaldo I teve com

sua segunda esposa, conseguiu que o rei da França lhe vendesse os direitos

sucessórios por 30.000 libras anuais e se coroou rei de Navarra.

—E a família do Margheritte ficou sem o reino.

—Nem todos aceitaram muito bem. Jean I Roux, o avô de Mar, lutou

durante anos para que o reino voltasse para a família, embora se rendesse no

final de seus dias. Entretanto, depois de um tempo, outros retomaram suas

aspirações.

—Alienor?

O irmão Roger negou com a cabeça.

—Não, ele era o sexto filho. Seu irmão mais velho, Juan.

—E o que tem Mar com tudo isto?

—Tenha paciência — aconselhou o monge antes de continuar—. Juan

era consciente de que o trono de Navarra estava fora de suas possibilidades,

assim decidiu ser rei na sombra.

—Como?

—A mãe de Juan e de Alienor, Teresa, tinha em seu poder um selo.

Um selo que naquele tempo, quando ainda era a herdeira de Navarra, seu

pai lhe entregou em segredo e que nunca devolveu a seu meio-irmão

Teobaldo II quando este alcançou o trono.

—Isso é o que esses tipos andam procurando.

—Sim.

—Mas como se encontrava em poder de Alienor se ele não era

aspirante ao reino?

O monge suspirou.

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—Essa é outra história e aí é onde entro eu. Alienor Roux, o irmão

Pablo e eu fomos amigos de infância. Amigos e confidentes. Conhecíamos as

aspirações do velho Jean para conseguir o trono da França e as mutretas da

família para fazê-lo. Todos éramos segundos filhos, não iríamos herdar título

nem terra alguma e, portanto, estávamos destinados ao exército ou à vida

religiosa. Já sabe o que aconteceu com Pablo e comigo, mas Alienor era

distinto. Ele não abraçava nenhuma das duas opções. Não estava disposto a

morrer nas mãos de supostos inimigos que não conhecia, nem a matar ser

algum. A vida religiosa tampouco era uma opção para ele; gostava muito das

mulheres.

—Podia ter tido ambas as coisas — constatou Gabriel, fazendo

referência a alguns religiosos que optavam por não privar-se dos prazeres

terrestres.

—Não Alienor, ele não —assegurou o monge—. Tinha uma retidão

moral fora do comum. Por isso fez o que fez.

—Que foi...

—Partiu. Desapareceu com o selo. Estava enojado das intrigas

palacianas, das conspirações políticas, das confabulações nas que a palavra

veneno soava muito mais que assuntos relevantes. E o que mais lhe

repugnava era que membros de sua própria família participassem de quase

todas elas. Não podia evitar que seu irmão mais velho fora um dos

impulsores das mesmas, assim fez desaparecer uma das ferramentas mais

poderosas que Juan tinha. Foi e levou o selo com ele.

—Veio direto para Estella?

—Antes perambulou pela França uns anos. Passou por Conques e por

Limoges. Foi nessas cidades onde aprendeu o ofício que tanto gostava e que

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durante tantos anos lhe proporcionou o sustento. Pouco a pouco, foi

seguindo os passados do Apóstolo e chegou até aqui. Um dia apareceu em

Vila Vétula. Sabia que Pablo e eu nos tornamos templários. Conforme nos

disse, visitava todos os conventos que a ordem tinha por onde ele passava

com a esperança de encontrar um rosto amigo.

Gabriel recordou então a morte do irmão Pablo.

—Então, aquela vez... quando nos atacaram...?

—Temo-me que sim. Estávamos a ponto de perder o selo. Alienor o

deixou sob nossa custódia anos antes. Os camponeses nos tinham advertido

da presença de estranhos rondando pelo convento. Esse dia, o irmão Pablo e

eu decidimos que era o momento de devolver o selo, a ordem já tinha

muitos conflitos com a coroa francesa para acrescentar outra mais. E uma de

semelhante envergadura.

—Assim que o entregaram.

—E ele o escondeu nesta peça, é uma tabuleta.

—Por que não o destruiu?

—A avareza é um dos pecados capitais mais comuns e a família uma

das limitações mais poderosas. Dinheiro, simples dinheiro, o dinheiro que se

pode conseguir, as riquezas que se pode obter. Era a única herança que

Alienor podia deixar para Margheritte.

—Não disse isso para ela.

—Eu sabia, o pai Guillelmet sabia.

Gabriel fez um gesto de desagrado. Não tinha boa lembrança da

entrevista com o abade de Irache. Um homem muito ardiloso para seu gosto.

—Que papel tem o beneditino nesta história?

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—Pouco depois de que Margheritte nascesse, o monastério do Irache

encomendou um cálice de Alienor. Sua amizade começou então e não

cessou até o fim de seus dias. O pai Guillelmet e eu mesmo estávamos

autorizados a contar a história a Mar quando chegasse o momento. Quando

o abade me informou que sua prima, a filha do Juan, fez contato com ela e

que esta decidiu retornar para a sua família, decidimos não dizer nada por

sua própria segurança. Era melhor que ignorasse a posse de tão valiosa carga

que levava.

—Embora isso significasse ocultar o perigo que podia espreitá-la e

custar sua vida — recriminou Gabriel.

—Confesso que essa possibilidade nunca passou por minha mente.

Depois do ataque que matou o irmão Pablo, as coisas pareceram acalmar-se.

O mesmo Alienor me contou anos depois que não houve nenhum intentado

para conseguir o selo. Supusemos que o tempo das intrigas tinha terminado.

—Até agora —murmurou Gabriel.

—Por isso —continuou o irmão Roger sem atender o comentário de

seu tutelado—, quando o pai Guillelmet me avisou de que o tio de Mar havia

falecido e de que uma de suas primas a reclamava, alegrei-me. A jovem teria

um lugar aonde refugiar-se e o sustento assegurado. Não era necessário que

soubesse nada da pedra nem do que significava.

—Mas as coisas mudaram em uma semana.

—Isso parece. Margheritte deve saber onde escondestes o selo.

Gabriel estava de acordo. Embora apenas para que Mar pudesse

entregá-lo em troca de sua própria vida.

Era necessário.

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CAPÍTULO 17

—Faça o favor de se concentrar no que está fazendo — replicou

Feliciana a Mar—. É o terceiro copo de farinha que joga na massa. Irá

conseguir que nos mande embora.

Mar se incorporou, esticou as costas e passou o dorso da mão pela

frente. Uma esteira de farinha se estendeu sobre suas sobrancelhas.

—Me perdoe. Não sei o que me acontece, mas não consigo me

concentrar no trabalho. Deve ser porque não pude dormir bem esta noite.

Feliciana deixou de mover as mãos sobre os futuros doces e a

encarou.

—Não sabe o que acontece? Eu lhes direi isso. Têm a cabeça lá —

explicou, jogando um significativo olhar para o chão— em vez daqui —

acrescentou, dando uma palmada na superfície sobre a que trabalhavam.

—Têm razão. Não paro de pensar em como conseguir abrir aquelas

barras.

—Está louca?! —sussurrou Feliciana, alarmada ante a segurança que

emanava de Mar. Aproximou-se dela tudo o que pôde—. Escute-me bem, só

repetirei isso uma vez: não-pode-fazer-nada-por-ele.

—Faz um momento —continuou Mar sem atender o que sua amiga

acabava de dizer—, quando fui ao poço pegar água, estive falando com um

dos soldados e me disse que...

—Que têm feito o que?

—Falar com um dos guardas —repetiu incomodada pela interrupção—

e me contou que com certeza interrogarão Gabriel hoje. Tenho que tirá-lo

dali antes que aconteça.

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—E com que desculpa irá voltar? Sabe que suas rações não estarão

preparadas até o entardecer.

—Vocês acredita que estará o mesmo guarda?

—Não estará pensando em distraí-lo?

Mas Mar seguia sem escutá-la.

—Se consigo descer logo, disporei de mais tempo já que não

coincidirei com a mudança de guarda, como nos aconteceu ontem.

—Não acredito que possa fazê-lo.

—O que? Entretê-lo um momento como você fiz até encontrar o

momento de incapacitá-lo? Farei! Não tenha a menor duvida.

—Não é tão fácil como pensa. Terá que ter um bom estômago para

consentir que um tipo como aquele ponha a mão em cima de você.

Mar se apoiou sobre a mesa ao mesmo tempo em que seu rosto ficava

rígido.

—Sei. Esquece-se de onde estive vivendo estes últimos dias. —Notou o

gesto de irritação no semblante de Feliciana e pôs uma mão sobre o braço de

sua amiga para suavizar as palavras que acabava de pronunciar—. Acredite se

disser que aprendi mais da valentia humana desde que a conheci, que no

resto dos anos anteriores de minha vida. Já tomei a decisão.

E dizia a sério.

—Vou te acompanhar.

—Nem pensar. Não vou te pôr em perigo também. Além disso,

necessito de você aqui, para que possa passar. Isso sim, terá que me ajudar a

esconder sob o vestido uma grossa vara de ferro que tirei dos estábulos.

—Deveria pensar mais um pouco. Não têm nenhuma possibilidade de

tira-lo lá de baixo.

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Mas Feliciana não tinha nada que fazer. Nada do que dissesse ia

convencê-la. A noite tinha sido muito longa e Mar tinha tido muito tempo

para refletir. E tinha chegado à conclusão de que, por muito que o pensasse,

nada do que lhe ocorresse ia ser medianamente eficaz. Assim tinha decidido

atuar e deixar o desenlace à graça divina.

—Se golpear o suficientemente forte na base do crânio, cairá como

um pêssego amadurecido.

Feliciana se debatia entre a vontade de agarrar Mar pelos ombros e

agitá-la com insistência para que o bom julgamento retornasse a sua cabeça e

a de orgulhar-se ante a perseverança da jovem. Nunca teria imaginado que

debaixo daquele aspecto de garota aprazível houvesse uma determinação

mais sólida que a do tronco de um carvalho centenário.

—Está louca —disse ao fim, derrotada ante a firmeza do olhar de

Mar—. Pretende arriscar sua própria existência por um homem que acaba de

conhecer.

—Feliciana, há pouca gente neste mundo a que eu deva algo. E

Gabriel é um deles. Faço isto só porque sou uma mulher agradecida —

apontou de uma vez quando retomava o trabalho que lhe tinham atribuído.

—Eu diria que é uma mulher apaixonada —resmungou Feliciana,

enterrando suas mãos na farinha.

Quando Mar quis inteirar-se do que havia dito, Feliciana rezava uma

oração para encomendar a sua amiga a Santa Brígida.

Mar tinha «resgatado» uma panela de ferro da cozinha. Tinha

aguardado que o cozinheiro estivesse o suficientemente atarefado para não

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263

perceber que uma vulgar criada como ela desaparecia de sua vista e, depois,

conduziu a garrafa até o poço e a encheu de água.

Atravessou o pátio, direto à Sala de Guardas, disposta a entrar no

reino dos soldados.

Teve sorte. Estava vazia. Ao que parece, a manhã era mais propícia

que à tarde para organizar saídas de vigilância.

Enquanto caminhava sobre os quadrados de ladrilhos de barro

cozido que cobriam o chão, pôde examinar os utensílios que guardavam

naquela estadia e que no dia anterior não tinha podido apreciar.

As lanças se estavam alinhadas e apoiadas em um canto. Havia altas e

curtas, com a ponta em forma de folha ou completamente reta, com forma

de faca ou acompanhadas de uma tocha. Umas davam mais medo e outras

menos, mas Mar não teve nenhuma dúvida de que uma topada com

qualquer que levasse uma daquelas na mão seria letal.

Desviou o olhar para a outra parede e encontrou um canto cheio de

espadas, adagas e floretes. Amontoados no chão, havia vários daquelas armas

tão mortíferas.

—Está claro que, na guerra, tudo é permitido —murmurou enquanto

afastava a vista dos mortais instrumentos e a posava sobre uma tosca mesa

que se encontrava junto à porta que dava acesso à Torre da Prisão no

interior do castelo.

Passeou com rapidez os olhos sobre as aterradoras maças e suas

temíveis bolas de ferro, teve atenção aos dardos que se usavam como

projéteis para as molas de suspensão e se deteve sobre dois montões de

escudos.

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Em um, empilhavam-se os menores e redondos. No outro, os de

forma quadrada, embora arredondados por um dos lados mais curtos. As

cores vermelha e azul do emblema da coroa de Navarra se distinguiam com

precisão. Mas Mar não estava ali para apreciar os detalhes decorativos,

quanto mais rápido saísse dali, menos risco correria de que algum indesejável

cruzasse seu caminho.

Penetrou na frieza da torre e uma estranha euforia se apoderou dela.

Tinha cruzado a Sala de Guardas sem nenhum contratempo. Tinha

conseguido sair triunfante na primeira etapa.

Deixou a panela no chão para manter a força antes de descer.

Confirmou que a saída da torre que dava para a rua, estava fechada como

imaginava. Gabriel teria que percorrer o mesmo caminho que ela tinha feito

para sair dali. Teria que atravessar toda a parte do castelo que os soldados

reais acampavam a vontade.

Preferiu não pensar nisso. O primeiro era conseguir tira-lo da cela e

depois... depois veria.

Apalpou o pau que Feliciana tinha posto por debaixo do vestido e

que percorria a coxa até a cintura. Não tinha se movido. Decidiu esperar

estar no primeiro porão para tirá-lo, apenas se algum dos guardas aparecesse

de repente e perguntasse que fazia ela com aquele pau.

Agarrou de novo o caldeirão e começou a descer. Mas quando pisou

no primeiro patamar, encontrou-se com algo que a confundiu. A porta, a

mesma do dia anterior que se encontrava fechada, estava aberta. De par em

par. E Mar se achou diante de outro arrepiante corredor. O que havia ali

dentro? Nada bom, aventurou a escutar os gemidos que chegaram do fundo.

A imagem de Gabriel encolhido enquanto seus captores o golpeavam sem

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compaixão lhe revolveu o estômago. Teve que fazer um grande esforço para

não entrar por aquele corredor e ir em sua ajuda. Devia manter a serenidade.

Não havia nenhuma razão, além de sua própria histeria, para pensar que

Gabriel não estava ainda na masmorra em que o deixaram. Respirou fundo

um par de vezes e deixou que seu coração se acalmasse. Apressada, subiu a

barra da saia, soltou os laços que prendia o pau por debaixo da saia e o

soltou. Trocou de opinião, seria melhor estar preparada.

Sentir o contato da rugosa aspereza daquele tronco serviu para

tranquilizar-se. Tinha a largura certa para poder segurá-lo com comodidade.

O jogou várias vezes fazendo-o saltar sobre a palma.

«Posso fazê-lo», disse enquanto segurava de novo a panela e retomava

a descida.

Não chegou ao final. Dos quinze degraus que a separavam do

soldado, sobraram-lhe dez.

Uma luz tremente se aproximava para ela. Apoiou a madeira contra a

parede, oculta atrás do corpo e, sem pensar sequer, balançou o caldeirão

disposta a utilizar todas as armas que estavam em sua mão para fazer frente

ao inimigo. Quando sentiu que alguém punha o pé no primeiro degrau da

escada, Mar jogou o conteúdo da panela.

Mas em vez de encontrar com o velho e gordo guarda do dia anterior

se encontrou com Gabriel.

Com a cara empapada a menos de um palmo dela.

A partir desse momento, tudo aconteceu tão depressa que Mar não

deu tempo nem de percebê-lo. Sentiu um puxão que quase lhe arranca o

braço e a panela desapareceu de sua mão. Gabriel deu a volta. Com o

primeiro impacto, fez saltar a lança de entre as mãos do soldado que o seguia

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e, com o segundo, este desapareceu da vista de Mar. O seco som que fez a

cabeça do guarda quando aterrissou sobre as duras pedras do piso inferior

não deixou lugar a dúvidas de que a queda tinha terminado com outro de

seus problemas.

Um instante depois, os dedos de Mar brigavam com as cordas que

estavam presas nos braços de Gabriel. O sentinela miserável tinha amarrado

com força, e Mar lutava às escuras para afrouxar os nós. Com muito custo,

no final conseguiu.

O beijo a pegou despreparada, entretanto, logo que sentiu a dureza

dos lábios de Gabriel sobre os seus, se atirou nele, em busca do calor de sua

boca.

Foi como voltar para casa. As palavras não fizeram falta alguma. Seus

lábios lhe disseram que não se preocupasse, que tudo estava bem, que aquele

pesadelo estava a ponto de finalizar. E sua língua, sua ávida língua, expressou

o quanto sentia a sua falta.

—Nunca acreditei me alegrar tanto de voltar a me encontrar com seus

olhos —sussurrou Gabriel quando se separou dela.

—Nem eu.

Era certo.

—Vamos, já perdemos muito tempo —indicou ele de uma vez que

agarrava sua mão e a tirava daquele lugar.

O carcereiro estava torto no chão, de lado e com as pernas em uma

estranha posição. Uma escura mancha se estendia por debaixo da cabeça. O

caldeirão e a lança jaziam a seu lado.

Gabriel empurrou o guarda com a ponta do pé. O robusto corpo

desabou sobre as costas e ficou olhando o teto para sempre com o olhar

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vazio. Mar afastou a vista do rosto sanguinolento e fixou nas mãos de

Gabriel que lutava para tirar uma chave da bolsa que pendurava da cintura

do morto.

Outro puxão de Gabriel lhe recordou que não era momento para ter

piedade de ninguém nem para pensar em outra coisa que não a urgência

com a que atuar. Entraram no primeiro dos corredores, que mantinha as seis

celas que Mar tinha examinado no dia anterior. Gabriel segurou a única

tocha que iluminava o túnel e correram para o fundo sem deter-se. Entraram

na segunda galeria e Gabriel diminuiu o ritmo de repente. Mar se chocou

contra ele.

—Mas o que...

—Bestas imundas —balbuciou ele, agitando a tocha de um e outro

lado no nível do chão.

Mar não teve que perguntar o que estava fazendo. Os chiados de

vários ratos fugindo ante as chamas que se aproximavam lhe deram a

resposta. Estremeceu ao pensar que tinha passado por esse mesmo lugar às

escuras e sem ser consciente da quantidade daqueles imundos animais que

proliferavam a seu redor.

—Irmão Clemente! —gritou Gabriel quando alcançaram a zona onde

os templários estavam encerrados.

—Gabriel! O que faz aqui? Onde está o irmão Roger? —perguntou o

responsável pelos religiosos, ficando de pé e aproximando-se das barras.

—Não há tempo para explicações — cortou enquanto tentava, sem

muito êxito, introduzir a chave que acabava de roubar na oxidada fechadura.

Não demorou muito em ouvir o clique que anunciava que tinha ganhado a

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partida—. Vamos sair daqui —disse ao mesmo tempo em que separava um

dos lados da grade.

Nenhum dos monges fez ameaça algum de se mover. Todos

permaneceram no mesmo lugar e na mesma posição em que estavam quando

Mar e Gabriel tinham aparecido.

—Vamos ficar —constatou o comendador.

Gabriel deu um passo atrás, como se o tivessem golpeado com uma

maça. Depois, pôs-se a rir.

—É uma brincadeira.

—Parte, e leve a moça antes que descubram.

Gabriel não estava disposto a obedecer, e ainda menos que a vida

daqueles bons homens dependia dele. Voltou e abriu também o ferrolho da

segunda das celas.

Com o mesmo resultado.

—É inútil, filho —insistiu o irmão Clemente ante a porta aberta—.

Está decidido. Assumiremos nosso destino. Assim o quer a ordem e assim o

quer Deus.

—Acaso não o veem! Eles vão matá-los. Vós mesmos me narrastes os

horrendos crimes dos que lhes acusam. De heresia, de adorar ao bezerro de

ouro e de sodomia! Sabe que não concederão nenhuma oportunidade para

se defenderem e, entretanto, seguem empenhados em levar como heróis.

—Não é nossa pretensão passar à história como mártires a não ser

entrar no reino de Deus como seus servos no momento que o Senhor o dita.

E se esse momento chegou, assim seja.

—Amém —fizeram coro em voz baixa o resto dos irmãos.

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—Nossos dias de luta terminaram —continuou o comendador ante a

cara exasperada de Gabriel—, Na Terra Santa. Se alguma vez matarmos ou

ferimos alguém o fizemos hasteando a bandeira da fé e da cristandade.

Somos os cavalheiros de Cristo e o que tenhamos que sofrer, faremos em seu

nome.

Uma réplica apareceu nos lábios do Gabriel, mas para Mar não ficou

nenhuma dúvida de que a decisão daqueles valorosos homens era definitiva

e nada do que dissessem, nenhum dos dois poderia mudar. Se Gabriel não ia

tomar uma decisão sensata, ela teria que tomá-la.

Aproximou-se até ele.

—Vamos —murmurou—. antes que apareça alguém.

O religioso se voltou para ela.

—Obrigado, filha. Vão com Deus. Saiam daqui com vida.

A bondade e a ternura que Mar vislumbrou nos aquosos olhos do

ancião a comoveram até o mais profundo de seu ser. Mar não pôde dizer

nada e se limitou a assentir. Tragou saliva e respirou fundo para controlar a

angústia que ameaçava brotar de seu interior. Depois, sem pensar duas vezes,

deslizou uma mão na de Gabriel, entrelaçou seus dedos com firmeza, pegou

a tocha de sua mão, deu meia volta e se dispôs a tirá-lo dali fora como fosse.

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CAPÍTULO 18

Embora para sua sorte não ia ser ela a única que decidisse dar os

seguintes passos, porque quando chegaram aonde deixaram o soldado

morto, Gabriel já tinha reagido.

—Vamos levar isto —disse enquanto se agachava para recolher a arma

do chão—, ele já não a necessita. E para você...

Mar fixou o olhar para o lugar que no dia anterior viu as duas lanças,

mas não estavam com sorte. De novo com as mãos vazias.

Ou não?

—Um pouco mais acima deixei uma vara que trazia comigo. Não é

muito grande.

—Terá que servir —acrescentou Gabriel, dirigindo-se para a saída.

Mar recordou algo.

—Um momento —se desculpou voltando por onde tinham chegado.

—Aonde vai? —perguntou alarmado.

Mar correu pelo corredor da primeira das celas. Muita umidade,

disse enquanto tentava deslocar a fechadura para trás. Custou, mas no fim

abriu com um chiado seguido de um golpe seco.

—Ajude —pediu a Gabriel.

Este conteve a impaciência e apoiou o quadril para que a madeira

cedesse.

—Senhor! —exclamou quando colocou a cabeça naquele buraco

escuro.

Mar entrou na cela.

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—Está aí? Ouve-me?

Algo frio e pegajoso roçou o seu pescoço. Mar virou para trás por

puro instinto e caiu sobre Gabriel, que estava reste a suas costas. Um

espectro apareceu na frente deles.

—Mas o que...? —balbuciou Gabriel.

Liberou-se de Mar e se dispôs a olhar para o rosto daquela espantosa

aparição.

—É a garota de ontem? A que trouxe a comida? —disse o prisioneiro

com voz áspera.

Ao contrário do que tinha parecido no dia anterior, o homem não

era um velho. Apenas um pouco maior que ele, calculou com dificuldade

devido à imundície que cobria o rosto dele.

—Está livre —respondeu Mar.

—E ele? —perguntou com desconfiança.

—É também um prisioneiro.

—E o guarda?

—Esse não nos incomodará mais —respondeu Gabriel—. por que está

aqui? —perguntou enquanto o examinava à luz da tocha.

—Por roubo.

Assim era um pobre diabo. Não seria nenhuma ameaça, decidiu.

Poderia até dar uma mão para eles se encontrassem com alguém lá fora.

—Se for vir conosco, vamos andando! —ordenou.

O homem não perguntou o que aconteceu ao carcereiro.

Simplesmente lhe jogou um olhar e o ignorou.

A subida foi curta. Gabriel ia primeiro com a tocha, Mar o seguia

escoltada pelo caçador, que fechava a comitiva. Gabriel parou na metade da

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subida e um instante depois o pau que Mar tinha abandonado retornou a

suas mãos. Sentiu-se aliviada. Ter algo com o que se defender, lhe devolveu

parte da segurança que tinha perdido na subida.

Tinham outra coisa a seu favor: o silêncio com que se deslocavam.

Os sapatos de couro que tanto Gabriel como ela calçavam facilitavam o

avanço sigiloso. Nem o que dizer do outro prisioneiro, que cobria os pés

unicamente com sua própria pele.

Ao alcançar o primeiro patamar, a tensão de Mar aumentou e

começou a respirar freneticamente. Com a porta exterior da Torre da Prisão

fechada, chegar ao piso superior significava ter que entrar na Sala de

Guardas. Que ela a tivesse encontrado vazia antes, foi uma grande sorte, se

estivesse ainda sem os soldados seria um milagre da mesma magnitude que a

multiplicação dos pães e os peixes.

Mas Gabriel não tinha a mesma ideia que Mar sobre qual era a

melhor maneira de sair dali. Em vez de continuar subindo, meteu-se pelo

corredor, pelo mesmo espantoso corredor que procediam os arrepiantes

sons.

Mar tentou detê-lo segurando seu braço e fazendo um gesto em

direção para cima, mas Gabriel não se deixou convencer. Era muito claro

para onde se dirigia. Ainda ficava uma coisa por fazer antes de sair dali.

Deixou a tocha em uma reentrância na parede e começou a

caminhar por ela. O resto do grupo o seguiu com a mesma cautela.

Quanto mais avançavam, mais se aproximavam do lugar de onde

procediam os ruídos, e quanto mais se aproximavam mais nítidos se faziam

os sons. Estes saíam de uma estadia que dava ao corredor. Dentro havia

várias pessoas.

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—Deste velho não irá tirar mais nada —se ouviu—. Por que não

tentam com o outro, o responsável pela ordem?

—Hissez-lui plus.15

—Se continuar mais, ele vai desmaiar, então não terá mais nada que

acrescentar a sua acusação.

—Faites-le!16

Ouviu-se o lento avanço das rodas de uma carreta carregada até os

batentes seguido de um choro apenas audível. Mar rogou para que aquele

gemido não fosse humano. Mas tinha uma vaga noção de quem poderia ser.

Tocou as costas de Gabriel. Observou seu rosto à luz das chamas.

Tinha o olhar aquoso e todos os músculos do rosto a ponto de quebrar-se de

tão tensos.

—O irmão Roger? —perguntou.

Não necessitou resposta, bastou ver aquele olhar ferido.

—Vem alguém —disse uma voz mais jovem—. Deve ser o gordo.

—Pois já deveria estar aqui. Faz um tempo que foi buscar o

prisioneiro novo —comentou o que tinha falado antes—. De repente, com

carne fresca para torturar, este francês deixa em paz o velho durante um

momento. Francês, trazem outro prisioneiro!

Mas ninguém passou sob o arco de entrada.

—Gordo, é você?

—Está certo que ouvistes algo? —insistiu o mais jovem.

—Alguém falou aí fora faz um momento.

—É a sua vontade de sair daqui e tomar um bom copo de vinho! —

respondeu o companheiro.

—Acha que estou louco? Verá!.

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Escutaram uns passos. Gabriel pegou a vara de madeira das mãos de

Mar e firmou ao seu lado, como uma lança. Mar Esta encolheu, como se

segurar uma arma fora o que levava fazendo os últimos vinte anos de sua

vida, e ficou para trás.

—Gordo! O que faz que não...?

A madeira bateu contra o rosto do soldado.

—Entra —insistiu Gabriel.

Mar tinha deixado de pensar no que estava acontecendo e se movia

por puro instinto. Uma mescla de euforia e insensata intrepidez, esquentou

os seus nervos. Se não saísse com vida, ao menos brigaria.

Com um salto, passou o soldado que jazia no chão sem sentido. Nem

se incomodou em comprovar os danos que a pancada causou nele. Estava

claro que, fosse quem fosse o que encontrassem ali dentro, eram inimigos. E

não iriam ter nenhuma consideração nem com os fugitivos nem com sua

salvadora, e ela tampouco os teria consideração.

Mar esperava outra fria e minúscula cela, mas se equivocou por

completo. Era escondida, mas a sala era grandiosa. Necessitaria ao menos

três homens, um sobre o outro, para alcançar o teto. Os finos raios de luz,

que penetravam pelas claraboias escavadas no teto, conseguiam iluminar

apenas que uma pequena área. O resto da estadia continuava tão tenebrosa e

escura como as masmorras que já conhecia. Reconheceu o lugar. Deviam

estar debaixo do castelo. Tinha visto os buracos no chão do pátio. De fato, a

primeira vez que a tinham mandado ao poço pegar água, tinha estado a

ponto de colocar o pé entre os barrotes que os cobriam.

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Apesar da escassa claridade, observou os diversos utensílios que

estavam pendurados nas paredes e os que se ordenavam sobre várias mesas e

pôs-se a tremer. Estavam na sala de torturas do castelo.

Um comprido assento ocupava no centro do salão, com várias filas

de tiras de couro, cheios de pontas agudas. A ponta de um dos extremos e as

correias do outro ilustraram sobre o tipo de dano que provocaria. Por sorte,

o irmão Roger não estava amarrado em uma das pontas. De fato, custou-lhe

localizá-lo. Ao fundo, onde a luz quase desaparecia, viu umas figuras. Três

soldados e outro indivíduo os observavam sem compreender o que estava

acontecendo.

Gabriel se aproximou deles e os ameaçou com a vara de madeira.

—Solte o prisioneiro!

Mar o seguiu e, enquanto avançava, aproveitou para examinar os seus

inimigos. Respirou mais tranquila quando viu o que tinham entre as mãos.

O indivíduo, que se vestia luxuosamente, sustentava um livro aberto e uma

pluma. Não havia rastro de armas. Um dos soldados segurava uma corda

suspensa do teto. Os outros dois também estavam desarmados.

Mar elevou o olhar para o que estava pendurado no outro extremo

da corda. E encontrou o irmão Roger, suspenso no ar pelos braços a dezenas

de pés por cima de suas cabeças.

E então começou o caos.

O soldado soltou o que segurava. Mar viu como o cabo se deslizava

com rapidez para cima ao tempo que um sibilante som chegava até ela. A

arma de Gabriel rodou pelo chão e este se equilibrou sobre o corpo do

religioso para evitar que o ancião caísse contra a pedra.

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O impacto do corpo inerte o arrastou na queda e ambos desabaram

sobre as lajes. Gabriel, que tinha ficado debaixo, moveu-se e se colocou sobre

ele à espera que o ataque chegasse. Mas nada aconteceu. Ao que parece, nem

o velho nem seu protetor interessavam muito. Olhou para monge. Respirava.

Fez caso omisso dos ruídos que chegavam e, com cuidado, arrastou-o a um

canto da área mais escura da sala. Vivia, mas seus braços formavam uma

posição estranha. Tinha o aspecto pálido e a respiração estava fraca e falhada.

—Fique aqui —murmurou junto a ele—. Agora está a salvo —mentiu.

O ancião insinuou uma piscada e Gabriel soube que estava

consciente e que tinha escutado suas palavras. Graças a Deus.

Mas o que encontrou quando se levantou conseguiu que lhe

arrepiassem os cabelos da nuca. Mar estava sendo atacado por dois dos

soldados.

Sustentava com firmeza a lança que tinha passado para ela, mas

estava claro que não tinha nem ideia de como usá-la. E embora soubesse,

Gabriel duvidava de que tivesse a força necessária para conter o embate dos

soldados. Por sorte, estava perto de uma poltrona de dura madeira e, embora

o móvel não tivesse sido fabricado pensando precisamente na comodidade

do réu, o respaldo era bem largo para servir de escudo. Brigar contra uma

mulher não era algo que um homem fizesse muito frequentemente, assim os

soldados se limitavam em um momento a divertir-se a perseguindo com

lanças, entre risadas provocadoras.

Gabriel percorreu o chão com o olhar, mas não conseguiu localizar o

pau que tinha soltado, em troca, quando levantou a cabeça, seus olhos

posaram em uns quantos arcos pendurados na parede. Mais próximo, havia

uns enormes barrotes. Teria que valer. Um bom golpe com aqueles ferros

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seria melhor que nada. Antes das arrancar do suporte pôde vislumbrar outro

soldado e ao indivíduo vestido de azul. Desfrutavam do espetáculo, cercando

Mar contra a parede. Conforme parecia, consideravam que dois homens

eram suficientes para acabar com uma simples mulher. O caçador furtivo

tinha desaparecido.

Gabriel correu em auxílio de Mar. Mas uma leve ordem do secretário

e tinha o terceiro soldado na sua frente. Por alguma estranha razão, o

soldado desprezou a lança e pegou a adaga. «Melhor assim», disse enquanto

apertava com força os barrotes. Sua única possibilidade seria luta corpo a

corpo.

Investiu contra o inimigo ao tempo que lançava um bramido

tormentoso. Deslocou-lhe vários metros até que se chocaram contra a

parede, na luta, arrastaram vários palmos até encontrarem um aparelho de

tortura. Tudo aconteceu como Gabriel desejava. A preocupação do soldado

em não cair sobre o mortal aparelho foi maior que o temor contra o

adversário. Assim abandonou o possível ataque e concentrou todo o esforço

em que suas costas não roçassem nas afiadas pontas agudas que se

sobressaíam do instrumento de tortura. Essa era exatamente a intenção de

Gabriel e sua oportunidade mais segura. Deixou cair todo seu peso sobre ele.

O homem se dobrou para trás como uma vara de salgueiro.

O alarido retumbou sob a abóbada do teto. Gabriel não parou para

comprovar os danos do competidor, arrancou a adaga de entre seus agora

débeis dedos e voltou. Bem a tempo de ver que aos oponentes de Mar

apagaram o sorriso da boca. O grito do companheiro, os tinha feito ser

conscientes de que aquilo era sério. E atuaram em sequencia. Um deles

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fincou a lança em uma das pernas da cadeira que protegia Mar e a atirou

para o lado, o outro interceptou Gabriel no meio da sala.

«O momento chegou», disse Mar ao mesmo tempo em que

interpunha a lança entre ela e o jovem soldado.

—Não se afaste muito dele! —advertiu Gabriel—. Não lhe dê essa

oportunidade!

Mar o compreendeu em seguida. Quando mais afastada se

mantivesse, com mais força poderia atacar o guarda e a ferida seria maior.

Tinha que controlar a distância e se manter afastada, o suficiente para estar

fora do alcance da lança. Ele não arriscaria lançar a lança e perdê-la, a menos

que estivesse seguro do dano que iria infligir.

Mar manteve a posição, segurou a sua arma com as duas mãos e a fez

oscilar por um lado e outro, disposta a afastar qualquer estocada que o

soldado lhe lançasse.

«Boa garota», disse Gabriel antes de retornar a seu próprio problema.

Satisfazia-lhe a integridade que Mar enfrentava a situação.

Investidas aconteceram sem cessar. Gabriel saltava de um a outro

lado, esquivando todos os ataques do novo inimigo. Tentava seguir o

conselho que tinha dado a Mar e não se afastava muito dele, mas manter a

situação tinha um preço e o corte que recebeu por cima do joelho começava

a doer. Rezou para que fosse melhor que o inimigo. Por sorte, Mar contava

com uma lança e poderia manter a distância mais facilmente.

Entretanto, Mar desapareceu de sua mente quando uma chama azul

intensa chegou da direita. O secretário — ou o que fora o outro indivíduo—

tinha decidido que as coisas se tornaram muito difíceis e que era hora de dar

a voz de alarme.

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—Aonde acha que vai?

O caçador furtivo apareceu. A mancha azul se deteve. Gabriel não

pôde apreciar com o que ameaçava ao escrivão que tinha interrogado ao

irmão Roger, mas fora o que fosse tinha funcionado.

Aquela distração foi sua perdição. Uns instantes depois, o soldado o

tinha onde queria. Gabriel soube que foi vencido assim que notou que suas

costas roçava o muro pontiagudo. Tinha desperdiçado a oportunidade e

permitiu que a balança se desequilibrasse contra si. Compreendeu que o

soldado era um bom militar quando o olhou nos olhos e observou a vitória

em suas pupilas. Ele não desperdiçaria a vantagem. Viu-o dar uns passos para

trás, empunhar a lança na frente do peito e lançar-se contra ele soltando um

grito vitorioso. Gabriel se segurou à única arma que ainda tinha em seu

poder, como se uma tosca arma pudesse servir para sair daquela situação

desesperada.

Mas descobriu que Deus tinha decidido dar um pouco mais de

tempo a um tipo de homem como ele. O soldado jazia no chão, desabado,

com uma flecha sobressaindo entre as costelas. Um pouco atrás, o fugitivo

sustentava um pequeno arco entre as mãos. Um lugar vazio na parede

indicava o lugar de onde tinha conseguido a arma.

O resto foi singelo. A Gabriel não custou mais que dez pernadas,

uma faca e um só talho para liberar Mar de toda ameaça.

—Está bem? —sussurrou com ternura enquanto apalpava seu rosto,

pescoço e braços para assegurar-se de que não tinha sofrido dano algum.

Mar, em vez de responder, enterrou o rosto em seu peito. Gabriel a

abraçou e esperou que os batimentos de ambos os corações se acalmassem.

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Entretanto, uns passos apressados e um braço azul desaparecendo

pela porta da sala lhe recordaram que aquele não era o momento adequado

para a ternura.

—Vamos sair daqui — disse enquanto a obrigava a separar-se dele.

Mar correu atrás de Gabriel até o lugar onde jazia o irmão Roger. A

pesar do lamentável aspecto do ancião, conseguiu ao menos se sentar,

utilizando as costas como apoio.

Gabriel se ajoelhou e começou a cortar a corda, que ainda atava seus

braços, com uma faquinha que pegou em uma das mesas. As feições do

religioso revelavam dor a cada movimento.

—Irmão, acredita que poderá caminhar?

O suspiro que o monge exalou deixou claro que não. Não havia mais

que um olhar para dar conta da verdadeira gravidade do dano que tinha

sofrido. Até o peso de seu próprio espírito era muito para ele.

—Vá sem mim —disse em um murmúrio apenas audível.

Mar sabia que Gabriel não o faria, que não o abandonaria. Sabia.

Gabriel não o deixaria. Mas, embora não tivesse falado, ficou claro a firmeza

de sua intenção de tirá-lo dali só olhando o seu rosto. Teve piedade do

ancião e decidiu lhe conceder um pouco mais de tempo para se recompor.

Tocou o ombro de Gabriel, fez um gesto para que a acompanhasse e

se separou uns passos. Este a seguiu a contra gosto.

—O que acontece?

—Deveríamos pensar primeiro em como vamos sair daqui. Não

acredito que o irmão esteja em condições de fazê-lo por seu próprio pé.

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—Irei carregá-lo.

—E por onde escaparemos?

—Pelo mesmo lugar que entraram.

—Terá que atravessar a Sala de Guardas. A porta da torre que dá ao

exterior estava fechada quando desci.

O caçador fugitivo, que ficou a princípio afastado deles, uniu-se à

discussão.

—Além disso, o homem que escapou já teria dado aviso. Não

demorará em aparecer os soldados.

—Então —disse Gabriel com integridade—, não ficará mais jeito que

lhes atacar.

Mar não parou a analisar em que momento a sensação de medo

tinha sido substituída pela necessidade de estar livre. Era como se as últimas

palavras do irmão Clemente junto à tensão da luta tivessem desenterrado sua

antiga aspiração de viver intensamente.

—Não se posso evitar.

Começou a percorrer as paredes da zona mais escura da estadia.

Gabriel a seguiu.

—O que está fazendo?

—Procurando algo.

—Algo como o que?

—Não sei. Algo. Algo que não tenhamos visto antes.

Gabriel deu uma bufada grave e se separou dela.

—Você! —gritou dirigindo-se ao caçador—. Como o chamam?

—Juan, senhor.

—Bem, Juan, me ajude com isto.

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Mar os viu derrubar uma das mesas e arrastá-la para perto de onde

estava o irmão Roger. Estavam se prevenindo para fazer frente ao ataque dos

guardas, mas ela se negava a pensar que tinha chegado o fim e continuou

com o que fazia. Já não via nada, avançava apalpando a gélida e úmida rocha

coberta de musgo. Tinha que haver algo, algo...

Quase cai no chão. Diante dela não havia nada. A parede tinha

desaparecido. Tinha que ser aquilo. Tinha encontrado.

Voltou-se com rapidez, atravessou correndo a sala e saiu pela porta

com uma grave imprecação de Gabriel ressonando nos ouvidos. A tocha que

tinham deixado no meio da galeria, ainda iluminava. «O homem de azul

devia ter muita pressa para partir para não haver a levado», pensou enquanto

a segurava.

—Que diabos...?

Gabriel relaxou o semblante quando viu Mar, a ponto de entrar de

novo.

—Me acompanhem. Quero que vejam algo.

Juntos comprovaram que a estadia continuava mais à frente do final

da sala.

—É uma cova, aproveitaram as grutas originais para instalar nelas as

masmorras.

—Até onde acha que chegarão?

—Se tivermos sorte, longe daqui e se não...

—Saiamos por aqui. Não temos nada que perder.

Gabriel duvidou um instante. Ao fim, decidiu-se. Aproximou do

caçador, que farejava os instrumentos de tortura mais mortíferos.

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—No fundo há uma saída. Vamos — anunciou e, sem esperar resposta

alguma, aproximou-se até onde o irmão Roger descansava.

Mar também tinha chegado até ele. Gabriel poderia manipular o

religioso com mais cuidado com luz da tocha.

—O que é isso?

O caçador assinalava um buraco que se abria a menos de dois pés do

chão, por cima do irmão Roger.

Gabriel agarrou a tocha de Mar e a colocou dentro do buraco seguida

por sua própria cabeça.

—Trata-se de um passadiço. Não se vê o final, mas parece que segue

adiante um bom trecho.

—É largo?

—Não muito, mas suficiente para que uma pessoa avance por ele se

caminha agachada.

—Então...?

A pergunta procedia do caçador.

—Pela cova —afirmou Gabriel.

—Pela cova —confirmou Mar.

Nesse mesmo instante escutaram as vozes. Os soldados já estavam ali.

Não havia tempo para pensar. Olharam-se em silêncio e assentiram.

Foi à mudança de opinião mais rápida de sua vida.

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CAPÍTULO 19

Mar ainda não entendia como pôde esconder-se em tão pouco tempo.

Primeiro tinha entrado o caçador e depois ela. Não houve tempo para

perguntar como Gabriel ia introduzir o monge no estreito buraco, pois teria

que caminhar apoiado sobre as mãos e os joelhos. O caso era que ele estava

ali. Detrás dela.

—Pelos túneis! — ouviu-se.

Mar deixou de respirar quando escutou os passos dos soldados

dirigindo-se para eles. Sabia que não podiam vê-los facilmente, mas, apesar

de tudo, encolheu-se na escuridão. A única arma que contavam era o arco

que Juan, o caçador, pendurou no ombro. E nem sequer estava certa de que

tinha flechas.

Os guardas se aproximaram tanto da parede que a claridade das

tochas iluminou o princípio do reduzido túnel. Por sorte, os soldados

estavam tão certos de que tinham fugido pela cova que não tentaram outra

possibilidade.

Ninguém se moveu até que o ruído dos passos dos perseguidores se

transformou em um mero ruído procedente do interior da caverna.

—Em boa hora decidimos nos colocar aqui —murmurou Mar mais

para si mesmo que para o resto.

—Não fique muito animada. Não sabemos se a gruta é profunda.

Voltarão para verificar possíveis locais para fuga e então descobrirão por

onde fugimos.

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—Com um pouco de sorte, estarão entretidos bastante tempo —

respondeu ela enquanto rogava para que suas palavras se convertessem em

realidade.

—Silêncio! —balbuciou o caçador—. Retornam!

Calaram e puderam escutar novas vozes. Ao menos dois homens

tinham voltado para a sala.

E um bom momento depois descobriram que o tinha feito para ficar.

—Temos que seguir.

Mar custou a entender o que Gabriel havia dito. Esteve de acordo.

Não podiam ficar ali. Se o fizessem, os caçariam como a ratos. Não era mais

que uma questão de tempo.

Aproximou-se de Juan e repetiu o que Gabriel tinha indicado. O

caçador não pensou duas vezes e se adiantou. Embora Mar e o outro fugitivo

avançassem com certa urgência, o irmão Roger seguia lento. Gabriel

continha a impaciência pois não queria arriscar a causar nenhum sofrimento

a mais para o irmão. O ancião não movia um dos braços e temeu que

estivesse quebrado. Nem sequer se atrevia a apalpar-lhe já que qualquer som

suspeito alertaria a quem fora que se instalou na boca do túnel.

Mar já tinha perdido a noção do tempo transcorrido e, entretanto,

olhava para trás, ainda podia ver a luz procedente da entrada. Logo que

tinham progredido. O irmão Roger se chocou contra ela, que tinha parado, e

deixou escapar um gemido.

—Qu’est-c que c’était?17

Mar não alcançou a entender as palavras, mas compreendeu o

significado imediatamente. Os soldados os tinham ouvido. O coração

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começou a galopar. Embora não por muito tempo. O sangue gelou as veias

quando «um pouco» não muito longe deles, lançou um penetrante chiado.

—C sont dê rats18.

Ratos. Nunca poderia se acostumar a eles. Viver ao lado de um rio e

estar habituada a vê-los não tornava mais fácil suportá-los. Entretanto, aquela

era a primeira vez que se alegrava em compartilhar espaço com semelhantes

animais.

Esperaram outro momento para que os franceses relaxassem um

pouco antes de seguir. Quando continuaram, o único som que cortava o

espesso silêncio era a barra da túnica do monge ao roçar-se contra o chão

cada vez que se movia.

Para não ficar louca com a ideia de que em qualquer momento os

soldados descobririam por onde tinham fugido e os capturariam, decidiu

contar. E já tinha contado uma por uma toda a produção de uvas de Navarra

desse ano quando determinou que preferisse enfrentar uma horda de

franceses com a lança em riste, que seguir calada. Avisou ao irmão Roger de

que ia parar, ficou de lado como pôde e esperou que o monge passasse por

ela. Justificou-se com um «tenho que falar com...» que ninguém ouviu e ficou

atrás do religioso.

—Como acha que está o irmão?

—Segue vivo, não?

—Pensa...?

Gabriel a cortou cortante.

—Irá melhorar.

—O braço...

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Mar sentiu Gabriel perto dela, o calor de seu fôlego penetrava pela

abertura do pescoço. E se preparou, preparou-se para sentir seus lábios.

Mas nada aconteceu.

—Se nos apanharem — Gabriel disse com voz rouca—, me prometa

que dirá que foi obrigada a fazer isto.

—Mas...

—Têm que lhes convencer de que você só desceu com a comida e

que a forçamos a nos liberar. Prometam-me isso

—Farei —disse Mar depois de um momento.

Ouviu-o suspirar.

A conversa finalizou e Mar seguiu avançando enquanto umas

lágrimas mudas se fundiam com as lajes sobre as que se arrastava.

Juan confirmou o que o resto já tinha notado. Tinham deixado de

caminhar na mais espessa escuridão para avançar entre as sombras. A figura

do companheiro de fuga era um pouco visível. De qualquer forma, ainda

custou um bom trecho para chegar a uma área em que seus traços fossem

identificados, e, um bom tempo a mais para alcançar um setor em que

poderiam ficar em pé e esticar as costas doloridas.

—Chegamos a algum lugar.

—Doem-me todos os ossos do corpo —confessou Mar enquanto dava

uns passos com o fim de desentorpecer as pernas adormecidas.

Seus companheiros, entretanto, deviam ser feitos de outra matéria

porque nenhum dos dois parecia muito afetado pelo tempo transcorrido

naquela postura. O caçador se apoiava no muro despreocupadamente e

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examinava o arco que havia pegado. E Gabriel... Gabriel tinha todos os

sentidos atentos em descobrir se o irmão Roger se encontrava em condições

de continuar.

Quando os músculos de Mar reagiram, aproximou-se até o ancião.

—Como está?

—Esgotado.

—Teremos que esperar que se reponha.

Gabriel olhou a seu redor.

—Neste lugar? De jeito nenhum!

E, antes que Mar pudesse comentar algo mais, dirigiu-se ao caçador.

—Juan, me ajude a carregar o irmão.

O furtivo abandonou o exame da arma, a pendurou ao ombro e se

aproximou deles. Entre ambos, conseguiram pôr em pé o religioso. Mar o viu

abrir os olhos. Estava consciente. Não pôde decidir se isso era uma sorte ou

uma desgraça para o homem. Mas quando o viu esboçar um sorriso em

direção a Gabriel e este dedicar uma carícia, alegrou-se de que não tivesse

perdido a lucidez.

Custou-lhes bastante mover o monge e acomodar o braço para que

não sofresse mais que o necessário. O religioso continha a dor sem

pronunciar palavra, mas o gesto de seu rosto, demonstrava a agonia pela qual

estava passando.

—Adiante —disse Gabriel pouco depois, quando o irmão pareceu

repor-se.

Os homens abriram a marcha. Mar preferiu ficar na retaguarda.

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Conforme caminhavam, a claridade se fez mais intensa e Mar

observou como tinha ficado a roupa do religioso depois de todas as penúrias

dos últimos dias. A parte inferior da túnica parecia farrapos.

Não tiveram que esperar muito tempo para encontrar o que

procuravam. A saída estava diante seus olhos. Tão real quanto o que brilhava

do outro lado do buraco era a luz do sol.

Só que para sair dali tinham que solucionar vários problemas. Para

começar, tinham que pensar em como subir o poço de mais de trinta pés que

se elevava sobre suas cabeças e, depois, em como passar entre as barras que

bloqueavam a saída. Isso, por não falar das nulas possibilidades que tinham

de sair daquele buraco sem que ninguém notasse que os fugitivos apareciam

no meio do pátio do castelo.

—Aqui há uns suportes para subir — informou Mar depois de

examinar as paredes.

Em realidade, eram apenas umas fendas na rocha, com diferente

altura umas de outras. Subir resultaria trabalhoso, mas não impossível. E

antes que os outros pudessem dar-se conta, o caçador já estava escalando e

subia com a alegre agilidade de quem vê de perto a liberdade.

Por um instante, pela cabeça de Mar passou a ideia de que, se tivesse

a possibilidade, ele os largaria e os deixaria ali, mas seus temores eram

completamente inúteis. O homem desceu com a mesma facilidade com a

que subiu.

—Aí acima está o pátio —confirmou—. A grade está selada, mas o

cadeado está em muito mal estado. Um bom golpe poderia fazê-lo saltar.

—Me ajudem com o irmão. Acredito que tenho algo.

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Os dois homens voltaram a sentar ao monge. Gabriel procurou sob a

vestimenta e tirou uma faquinha curta.

Juan recebeu o instrumento com satisfação.

—Servirá —assegurou a empunhando com a mão direita—. Agora só

tenho que assegurar de que as mulheres deixem o local.

—Mulheres! Que mulheres?

Mar acabava de ter uma intuição.

—As que conversavam em cima de mim —respondeu o caçador,

assinalando para cima.

—Podiam ser as que trabalham na cozinha?

—Não sei. Suponho —acrescentou o homem, encolhendo os ombros.

Sem esperar um momento a mais, Mar colocou um pé na primeira

das fendas, uma mão na superior e começou a escalar. Demorou um instante

em respirar ar fresco. E outro mais em escutar a risada da Feliciana.

A cabeça de Mar dava voltas a toda velocidade em um intento de

encontrar a maneira de chamar a atenção de sua amiga.

Mas outra pessoa se adiantou.

—O que fazem aí tagarelando em lugar de trabalhar?!

Os gritos do cozinheiro atravessaram todas as estadias do castelo.

Mar soube que os milagres existiam quando viu aparecer o rústico

tecido cor de açafrão de Feliciana por cima de sua cabeça.

Não pensou duas vezes, tirou uma mão por entre os ferros e segurou

nela. Tudo o que pôde.

—Mas o que...?

Outro puxão.

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—Me sapato desatou— se desculpou Feliciana com a companheira—.

Se Adiante, já te alcanço.

—Se apresse, esse homem é capaz de deixá-la na rua sem pagar o

trabalho de hoje.

—Já cuidarei dele, esse mal nascido não me fará uma sacanagem —

respondeu enquanto se agachava e simulava amarrar as cintas do calçado.

—Feliciana! —sussurrou Mar.

—Mar! São vocês?

—Feliciana, me escute! —cortou Mar.

—Fale.

—Estou aqui embaixo com o Gabriel, o monge e outro homem.

Conseguimos escapar, mas temos que sair por aqui, não podemos voltar

atrás. Já explicarei isso mais tarde. Necessito que o pátio esteja vazio, para

que ninguém nos veja quando sairmos.

—Mas como...?

—Tentaremos, embora o religioso esteja muito mal e quase não pode

caminhar. Compreendeu tudo o que digo?

—Perfeitamente. Faz um momento que não se veem homens por

aqui, mas me assegurarei. Prometa-me que não fará nada até que eu a avise.

A espera foi eterna. Assim que Mar desceu até onde os homens a

aguardavam, recordou de novo dos soldados que os perseguiam. Quanto

tempo levaria para que descobrissem o túnel? Todos os sons que chegavam

lhe pareciam proceder do corredor que acabavam de percorrer.

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Olhava para cima a cada instante debatendo-se entre o desejo de ver

o vestido de Feliciana voltasse a tampar a luz que os iluminava e o medo que

alguém a descobrisse.

Sem poder aguentar por mais tempo a angústia que provocava a

sensação de estar aprisionada, levantou-se de repente.

—Voltarei a subir —informou a quem queria ouvi-la.

—Vai com cuidado —respondeu Gabriel que estava atrás do corpo do

irmão Roger, ao que mantinha apoiado sobre o regaço.

Juan logo levantou os olhos da flecha com que brincava sem cessar.

Ele também estava nervoso.

Não tinha subido nem um terço do caminho quando algo caiu do

exterior e se chocou contra suas costas.

—O que foi isso? —perguntou quando conseguiu segurar nas

extremidades.

—É uma corda — respondera alguém.

«Feliciana», pensou Mar e começou a subir o mais depressa que seus

membros permitiam.

Chegou acima sem fôlego. Feliciana a esperava no mesmo lugar e na

mesma posição em que a tinha deixado.

—A corda é para que subam o templário — disse enquanto simulava

voltar a atar o calçado.

—Temos um jeito de saltar o cadeado — informou Mar.

Não teve como explicar como iria fazer porque a mulher já voltava a

falar.

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—Perfeito, essa era uma das coisas que eu não tinha solução. Ainda

terão que esperar um momento mais antes que possam sair — advertiu—.

Necessito de mais tempo.

—Bem, mas se apresse, os soldados estão nos procurando.

—Então é por isso que o pátio ficou deserto.

—Como saberemos quando é o momento?

—Não se preocupem, informarei vocês.

Tinha razão, souberam. E não estavam despreparados.

Enquanto esperavam, decidiram começar içar o monge. Aquilo seria

o mais trabalhoso e todos estavam de acordo que os quatro teriam que estar

em cima, preparados para sair daquele buraco o mais rápido possível.

Gabriel fabricou um arnês que sujeitou ao redor da cintura do

religioso e depois o passou entre suas pernas. O resto da corda a utilizariam

para elevá-lo entre os dois homens. Mar os seguiria e se asseguraria de que o

irmão não se balançasse e me chocasse contra as paredes.

Se já era complicado que uma pessoa alcançasse a saída por seus

próprios meios, fazê-lo preso a um peso morto era uma tarefa quase

impossível.

O poço estreito resultou ser uma tortura para o trabalho. Houve

momentos que Gabriel e Juan tiveram que se apoiar um no outro para evitar

cair. Mar, preocupada com a segurança dos três homens, sustentava o ancião

de abaixo em um intento de aliviar o peso dele. Já chegavam acima quando

notou que o templário subia de forma contínua e sem muito esforço.

—O que aconteceu? —murmurou com medo que as vozes se ouvissem

do exterior.

—Juan chegou acima, passou a corda por uma das barras.

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Mar rezou para que o pátio seguisse deserto. E para que Feliciana

aparecesse quanto antes. Não resistiriam naquela situação muito tempo

mais.

Foi como se o céu tivesse ouvido suas preces porque a salvação

chegou em forma de uma chuva de grão que regou aos quatro.

—Estúpido! —escutou-se a voz da Feliciana—. avisei que tomasse

cuidado!

—Mas senhora... —tentava desculpar um menino, que Mar supôs que

seria um dos pajens das cavalariças.

—Não se mova muito que vai desequilibrar a carga! Cuidado! Cui...!

Já adverti...!

O resto das palavras foi abafada por um saco que cobriu a boca do

túnel por completo.

—Juan, agora! Golpeie o cadeado! —gritou Gabriel assim que

compreendeu que aquela era a oportunidade que esperavam. O saco de grão

e as vozes da mulher afogariam o som dos golpes sobre o fechamento sem

que alertassem a todo o castelo.

Juan passou a corda para Gabriel. Este deu várias voltas ao redor do

braço e deixou cair parte do corpo para conseguir manter o religioso na parte

superior do poço.

Quatro fortes golpes foram suficientes para que o ferro saltasse e se

precipitasse ao vazio. Mar o escutou golpear-se contra o chão e um raio de

esperança a alagou.

Apenas se inteirou do resto. A luz entrava pelo buraco, alguém abria

a grade, Feliciana dizendo «depressa, depressa», a luz que lhe feria as pupilas.

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Alguém estendeu uma mão, Mar agarrou esta, e em um instante, se

encontrava fora sob as ordens de Feliciana.

A mulher tirou um manto escuro que levava por cima do corpo e o

colocou sobre as costas do religioso. O avental também acabou ao redor da

cintura do monge. Ao menos, serviria para tampar a túnica de cor branca.

Com uma touca cobriu o grisalho cabelo e parte da espaçada barba. O irmão

Roger, esgotado como estava, logo que sustentava a cabeça e todos seus

rasgos ficavam virtualmente ocultos à vista de olhares curiosos. Teria que

valer com aquilo.

—Você, carregue isso —disse para Juan e a Gabriel—. Levem aos

estábulos! —ordenou-lhes, assinalando a direção que deviam tomar.

Enquanto Mar e Feliciana se apressaram a sustentar ao irmão Roger

pela cintura para que não caísse, os dois homens seguraram o que a mulher

tinha indicado e desapareceram sob o peso dos maiores sacos de grão que

Mar tinha visto.

No chão, ainda ficava outro, um cuja carga se esparramou sobre as

lajes. Um enorme talho o percorria de cima abaixo. Mar não duvidou de

quem era o culpado daquele corte.

Todos ficaram em marcha. Os homens diante, elas detrás.

Atravessaram a porta que separava o pátio da sala de espera das cavalariças e

toparam com um moço.

Feliciana não deu tempo ao menino nem para respirar.

—Estão demorando muito! —gritou—. tive que ir pegar dois homens

da cozinha para reparar o desastre que organizastes.

Juan e Gabriel não se detiveram. Caminhavam para um montão de

grão fingindo obedecer às ordens daquela mal-humorada mulher.

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296

Mar notou que o resto dos pajens mantinham a cabeça encurvada e

trabalhavam em excesso com a tarefa encomendada. Estava claro que

nenhum deles tinha intenção de sofrer na própria carne a cólera daquela

mulher.

—É que... —balbuciou o menino.

—Recolham antes que «alguém» se inteire de que tiram grão das

cavalariças!

—Mas se foi você que me disse...

—Está me desafiando? —inquiriu Feliciana ao mesmo tempo em que

dirigia um olhar glacial—, Mas antes abra a porta. Como vê, uma das

cozinheiras está doente e precisa retornar a sua casa —acrescentou elevando a

voz.

Mar ficou com o coração acelerado, se o pajem dava conta de que em

realidade não era uma mulher...

Mas não, o moço, farto do tom autoritário de Feliciana, decidiu que

o melhor era contentá-la. Assim se dirigiu para a entrada sem atender a nada

mais, soltou o tronco que a bloqueava, abriu-a com um puxão e a sustentou

com firmeza.

Mar sentiu que Feliciana avançava e começou a caminhar. Apenas

restavam um par de passos para atravessar a porta quando sua amiga soltou o

monge de repente. Mar quase cai arrastada pelo peso do ancião.

—Você, e você! —ouviu a Feliciana—. Ajude à moça com a cozinheira.

_ Se cuide e muita sorte — sussurrou ao mesmo tempo em que

apertava o braço—. Já sabe onde me encontrar.

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297

Apenas deu para Mar responder um direto «obrigado» e, um

instante depois, estava no exterior do castelo. A porta se fechou detrás dela

com um forte golpe.

Estava fora. E Juan e Gabriel, a seu lado.

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CAPÍTULO 20

A descida pela rampa, que eram jogados os refugos da cozinha real foi

mais penosa do que Mar teria imaginado. Tentava passar sobre os

desperdícios com a maior rapidez possível. De vez em quando sentia que um

de seus pés se afundava até o tornozelo e, quando isto acontecia, apertava as

mandíbulas e seguia caminhando sem olhar para chão, mais rápido que

podia para não deixar Gabriel atrás. O avanço de Gabriel era muito mais

lento que o de seus companheiros de fuga, pois carregava o irmão Roger. O

ancião mal se sustentava em pé, era praticamente carregado pela cintura.

Além disso, coxeava.

A suavidade com que o sustentava, fez Mar recordar a conversa que

Gabriel tinha mantido com Teresa e a ternura com a que tratou à menina.

Fazia tanto tempo!

Juan, em troca, parecia ter mais pressa que os outros em afastar-se o

quanto antes da prisão do castelo porque já pisava em chão firme quando

eles ainda se encontravam na metade da rampa cheia de resíduos duvidosos.

Mar exalou um suspiro de alívio quando seus pés tocaram terra dura.

Esperou que Gabriel e o religioso acabassem a descida e se unissem a ela.

Ficaram os três sozinhos. O caçador tinha desaparecido.

—Para onde nos dirigiremos?

—Você para lado nenhum. Agora mesmo rodeie a vila e volte para

entrar nela como se fosse uma cidadã a mais, como se nunca tivesse estado

dentro desse palácio.

Page 299: Ana iturgaiz - sob as estrelas

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Mar não pôde acreditar o que estava ouvindo: estava-a jogando de

lado. Ela, que tinha arriscado sua própria vida para salvar a dele!

—Nem pensar. Eu vou acompanhar vocês. Necessita-me para atender

ao irmão.

Gabriel se inclinou para ela.

—Me escutem bem, sei que não há ninguém neste reino que ganhe

em teimosa, mas asseguro que não irá vir conosco. Agradeço tudo o que têm

feito por mim, entretanto, aqui acaba nossa relação, aqui acaba nosso

vínculo. Volte para junto de Feliciana. Ela lhes dará proteção até que possa

partir de Olite.

Gabriel se calou de repente, antes que lhe rasgasse a voz. Já era

suficientemente duro ter a certeza de que, com o monge naquelas condições,

tinham pouquíssimas possibilidades de fugir. De maneira nenhuma ia

arriscar a segurança de Mar, permitindo que ela fugisse com eles. No bordel

estaria muito mais segura. Ninguém procuraria uma das criadas do palácio

na casa mais pública da cidade.

Cravou os olhos nela. E assim, com a cara manchada, o cabelo

saindo por debaixo da touca e o vestido sujo e rasgado, soube que a única

imagem que levaria pelo o resto de sua vida, se a sorte o ajudasse a fugir,

seria perambular pelos caminhos relembrando aquela imagem.

Mar sustentou o seu olhar. Tinha os olhos brilhantes. De fúria,

supôs. Estava a ponto de replicar quando Gabriel deu meia volta e se afastou

dela. Com cuidado, meio curvado com o peso do religioso, encaminhou-se

para a floresta.

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Gabriel dava um passo atrás de outro consciente do que acabava de

expulsar de sua vida, sabendo que ele mesmo tinha feito isso, e com a

convicção de que todas as estrelas do firmamento se apagaram para ele.

Não era o momento de lamentar-se, não era o momento de parar,

não era o momento de lamber as feridas, não era o momento de olhar para

trás. Acabava de fugir do cárcere real, arrastava um homem moribundo e era

perseguido pelos soldados do Reino de Navarra e parte dos da França.

Concentrou todo seu esforço em não parar.

Saltava os troncos que estavam pela frente cada vez com mais

frequência; pisou em folhagem cada vez mais espessas; atravessou a claridade,

cada vez mais fraca. E esqueceu. Esqueceu e seguiu adiante.

Apesar de ser um homem forte, o peso do corpo do irmão estava

começando a cansar o seu corpo; seus braços estavam dormentes. Ao

princípio, o irmão Roger fazia um esforço em tentar caminhar por si mesmo,

mas fazia um tempo que Gabriel o levava pelo braço. Pensava em fazer um

descanso quando encontrou uma ravina.

Depositou o monge no chão enquanto procurava o lugar mais

apropriado para descer os escassos vinte pés que tinha na sua frente. À

direita, a colina se suavizava levemente e as árvores estavam suficientemente

separadas, para não correr o risco de se chocar contra elas por acidente. A

umidade do rio próximo deixava notar no tipo e a quantidade da vegetação.

Carvalhos e ramos estavam a sua frente, e deixaram para trás salgueiros e

fresnos. As chuvas dos últimos dias forrou o chão com uma capa de folhas

úmidas que o leve sol de novembro não tinha conseguido secar.

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—Irmão, um pouco mais —insistiu ao monge enquanto tentava lhe

levantar—. Poderá descansar quando chegarmos lá em baixo.

—Filho, não posso mais. Deixe-me aqui e parte, agora que pode —

sussurrou o ancião apenas movendo os ressecados lábios.

—Sabe que não vou deixá-lo — afirmou Gabriel, o agarrando com

firmeza pela cintura.

O latido dos cães ao longe, terminou decidindo. Teria que descer por

ali, por aquela rampa sem ter as mãos livres para agir a qualquer

contratempo.

A descida foi muito mais lenta que o esperado. O peso do religioso o

desestabilizava muito e tinha que firmar cada pé antes de dar o seguinte

passo. A possibilidade de escorregar ou de tropeçar em algum buraco do

terreno oculto sob a folhagem, o fazia ser ainda mais cuidadoso.

E enquanto isso... os latidos estavam cada vez mais perto.

Tanto que no último lance abandonou toda prudência e deixou que

os pés deslizassem. Esteve a ponto de se chocar contra umas raízes que se

sobressaíam da terra. Por sorte, viu-as no último momento e passou por cima

delas como pôde. Solo para encontrar-se diante do que mais temia nesta

vida.

O rio Cidacos passava na sua frente.

Sentiu o terror percorrendo a nuca e subindo pelo couro cabeludo.

Um suor frio umedeceu suas mãos.

Não pôde afastar os olhos do movimento das águas, enquanto em

sua mente voltava a aparecer à imagem, tantas vezes recorrente, do rosto

inchado e deformado de seu pai, o dia em que o tiraram de outro rio, de

igual transparência e aparente tranquilidade.

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Aos latidos dos cães somava agora o som de vozes humanas. Mas

Gabriel não ouvia nada, não escutava nada, não era consciente de nada,

além do audível rumor da aterradora corrente que fluía em sua frente. Nem

sequer notou que alguém o seguiu. Não notou seus passos nem tampouco

sua presença. Até que esse alguém lhe tocou, e o calor de uma mão

transpassou a sua roupa e penetrou os poros da pele.

—Entre na água! Estão a ponto de chegar!

Gabriel olhou para Mar como faria um demente, sem compreender o

que acontecia.

Não entendia o que ela fazia ali, e muito menos o que era o que lhe

dizia.

—Não há alternativa. Gabriel! Os cães estarão aqui em breve —

insistiu quando viu que não se movia—. Faça pelo irmão Roger, faça por

mim!

Gabriel voltou os olhos para ela, e de novo para o rio. Depois,

pareceu despertar de um sonho longínquo e deu um passo atrás.

—Não posso.

Mar o olhou sem chegar a acreditar o que estava ouvindo. Ela teria

que agir. Abraçou o monge e o carregou nas costas. Afundou-se na água sem

pensar um momento. Estava fria, muito fria, espantosamente fria.

—Iremos ficar atrás desses juncos — sussurrou ao ancião sem estar

certa de que a escutava.

Conforme se aproximaram da margem e iam para dentro do rio, o

fundo ficou mais pastoso e os pés afundavam no lodo. Mar começou a sentir

medo. Concentrou-se em não se deixar levar pela correnteza e perder o

ancião.

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Quando chegou ao lugar planejado, descobriu que o junco não era o

suficientemente alto para ocultá-los por completo. Assim não ficou mais

alternativa que afundar-se na água até o pescoço.

Sustentar o monge no alto para manter a cabeça pra fora, custou um

esforço gigantesco, suas forças estavam no limite.

Bem a tempo. Os cães pararam na frente deles. Saltavam e ladravam

agitados. Onde teria se metido Gabriel? Rogou para que tivesse se afastado

da borda. Escutou as vozes depois de um tempo. Parecia a voz de ao menos

umas quatro pessoas que se aproximaram da margem.

—Devem ter se escondido por aqui —comentou uma delas entre

ofegos.

Mar afundou o queixo na água.

—Eu não vi nada —disse outro—, mas se os cães de caça saíram

correndo, não podem estar muito longe.

O repicar de uns cascos acabou com a tranquilidade dos quatro

homens.

—Será melhor que os encontremos ou servirão nossa cabeça em uma

bandeja de prata para o jantar.

—Vira-latas! A procurar, a procurar. — ouviram-se latidos seguidos de

uns passos apressados.

Os cavaleiros demoraram pouco tempo para chegar e, menos ainda,

em partir. Passaram pela margem do rio sem parar.

Os ecos das pegadas dos cavalos fazia tempo que tinham deixado de

ressonar e, entretanto, Mar ainda permaneceu no mesmo lugar um

momento mais.

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Começou a sair do rio quando sentiu irmão Roger se mover. Não

podia deixá-lo ali na água por mais tempo. Já estava chegando à borda

quando Gabriel apareceu do nada e se apressou em ajudá-la com o ancião da

borda.

O colocaram no chão assim que o tiraram do rio. Sua respiração era

fatigada e estava lívido. Logo abria os olhos.

Gabriel colocou uma mão sobre seu peito.

—Está esgotado. Precisa descansar. Tenho que lhe levar a algum lugar

para que possa repor-se, aonde haja alguém que cuide de você.

—E a você? Quem cuidará de você? —murmurou Mar em clara alusão

a seu recente comportamento.

Gabriel ficou em pé de um salto, como se acabasse de ser mordido

por uma víbora.

—O que faz aqui? Por que nos seguistes? Não disse para você que

fosse? —gritou fora de si—. Por que está aqui?

Mar esteve a ponto de cair ante aquela ira tão irracional.

«Por você!», quis gritar. «Porque não suporto a ideia de passar um só

instante sem ver você, porque não entendo o mundo sem escutar você,

porque quero tocar a suas costas e percorrer com os lábios as ferida que têm

nela, porque quero afundar minhas mãos em seus cabelos e notar seu cabelo

deslizar-se entre meus dedos, porque quero ver você sorrir uma vez mais,

porque quero fazer você rir, me alimento quando olho para você, porque me

custa respirar quando não está por perto e quando olho para as estrelas e

estão longe de mim, dói-me estar viva.»

—Porque sabia que o irmão necessitaria de ajuda —pronunciaram

seus lábios com uma falsa tranquilidade .

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Gabriel não pôde lançar a réplica que tinha preparado. Alguém lhe

adiantou.

—Para umas pessoas que se ocultam dos soldados, estão agindo

muito mal.

—chegamos.

Mar levantou a cabeça depois de passar por entre uns matagais que

Juan tinha aberto como por encanto, encontravam-se diante de um

deteriorado refúgio, que com muita dificuldade podia chamar cabana.

Foram conduzidos até ali depois da discussão no meio do bosque. Ao que

parece, aquela era uma das proteções que ao longo dos anos como caçador

furtivo, tinha construído para se proteger das inclemências do tempo e para

se esconder quando necessário. Conforme lhes informou, fazia muito tempo

que a subsistência de sua abundante prole dependia dos mantimentos que

graciosamente «doavam» as arcas reais, já que o rio Cidacos cercava Olite e as

terras que este banhava eram propriedades da coroa.

—É segura? — perguntou Gabriel na entrada da choça.

—Sim, se estiverem atentos — confirmou Juan enquanto limpava as

braçadas de ramos que ocultava a entrada do abrigo—. O rio passa perto, se

as coisas se complicam poderão despistar os cães entrando dentro dele.

Gabriel teve que agachar-se para poder entrar. Com o peso do corpo

do irmão Roger teve que entrar de lado. O religioso tinha perdido o sentido

ao sair da água. Graças à aparição do caçador conseguiram movê-lo.

Restos de uma fogueira e pequenos ossos dispersados a seu redor

indicaram que Juan não fazia muito tempo que a tinha utilizado.

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Deitou o ancião sobre um leito de erva seca que encontrou a um

lado da porta.

—Aguente, têm que aguentar —sussurrou ao religioso passando o

dorso da mão sobre a bochecha deste.

Quando saiu ao exterior, Juan já estava se despedindo. Mar escutava

com atenção as últimas indicações sobre como deixar cair os troncos

estrategicamente colocados para que os arbustos impedissem a entrada no

refúgio e se fechassem de novo e ficasse oculto a olhos alheios.

—Vá —comentou Gabriel.

O outro fez um gesto afirmativo.

— Quatro dias longe de casa são suficientes para convencer a minha

mulher de que está melhor comigo que só —brincou.

Gabriel se adiantou, segurou o seu antebraço e apertou sua mão em

um gesto de reconhecimento à ajuda que lhes tinha emprestado.

—Obrigado por tudo.

O caçador encolheu os ombros.

—O devia à senhora. Uma última coisa —disse antes de desaparecer—;

escondido em um dos cantos encontrarão pederneira, embora tenham que

esperar ao anoitecer para acender o fogo.

Não lhes desejou sorte, não valia a pena, os três sabiam que o destino

de todos não dependia de si mesmos, mas sim de uma vontade mais elevada.

Um instante depois, o caçador partiu. Sozinhos, de novo.

Gabriel não demorou em se afastar de Mar. Esta o encontrou onde

imaginava, sentado no chão ao lado do templário.

—Deveríamos tirar essas roupas molhadas —comentou ela—. Do jeito

que estamos molhados, não nos fará nenhum bem.

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Gabriel teve que lhe dar a razão. Todos precisavam se livrar daquelas

roupas molhadas ou, em do contrário, em breve acabariam como o monge.

Conseguiram sentar o irmão Roger entre os dois. A cabeça do

religioso caiu pesadamente sobre seu peito. Nem as dores que lhe infligiram

ao tirar o braço machucado da túnica o fizeram reagir. Custou-lhes, mas ao

final, conseguiram deixa-lo só com uma leve túnica.

—Está ardendo —se alarmou Mar quando tocou a pele.

—Só precisa descansar. Em umas horas, estará melhor.

Mar não estava nada segura da possível recuperação do monge, sobre

tudo, tinha em conta que não havia maneira de encontrar o pulso. Gabriel

não queria reconhecer, mas o irmão Roger se debatia entre a vida e a morte.

E eles não podiam fazer outra coisa a mais que esperar.

Gabriel saía e entrava da choça, sentava e voltava a levantar. Mar

estava acomodada com as costas apoiadas na lateral do fundo da cabana e o

observava do chão.

—Vou acender fogo —disse Gabriel na quinta vez que entrou.

—Juan disse que não era conveniente. Poderiam nos localizar pela

fumaça.

—Não podemos continuar assim tão molhados. Cobriremos o

barraco com a roupa que tirarmos do corpo e a fumaça permanecerá aqui

dentro. O sol ainda demorará para desaparecer. Entre o calor de seus raios e

o da fogueira poderemos secar nossas roupas.

Gabriel estava certo, quando as chamas começassem a crepitar no

refúgio, estariam quentes. Muito quentes.

Fazia um momento que Mar tinha começado a pensar que aquilo

não era nada bom para o doente. A pequena choça se encheu da fumaça que

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não podia escapar devido ao rústico teto, que estava coberto pela capa e a

túnica do templário, seu próprio vestido e as roupas de Gabriel, inclusive os

sapatos estavam secando sobre suas cabeças. Mar estava suando, só ficou com

a camisa, assim decidiu sair do barraco novamente. Alcançou os matagais e

se dirigiu em direção ao rio. Levava na mão a touca que Feliciana tinha

colocado sobre a cabeça do ancião durante a fuga. Aquela era a quarta vez

que a molhava. Não lhe ocorria outro modo de baixar a estremecedora febre

que mantinha o religioso na borda da morte. Só faltava inundar por inteiro

o corpo do ancião no rio Cidacos.

Descalça, aproximou-se com cuidado da margem do rio. Gabriel

seguia sentado sobre uma rocha um pouco mais longe. Tinha um joelho

erguido, a expressão séria e os olhos perdidos por cima das árvores que se

alinhavam na margem oposta. Colocou o trapo na água, jogou uma última

olhada em Gabriel e retornou. Ele não fez nenhum gesto que indicasse que a

tinha visto e Mar esteve segura de que nem se precaveu de sua presença.

Equivocava-se totalmente.

Gabriel sabia que estava ali, a menos de vinte passos dele. Tinha-a

ouvido descer pelo atalho antes de vê-la aparecer entre os ramos. Pode

observar com toda claridade a preocupação gravada em seu rosto.

Teria que ir, sair daquele minúsculo lugar, se afastou o máximo que

pode, de modo que ainda estava protegido pela mata, tudo para se afastar

dela. Ou teria perdido a cabeça. Se houvesse tornado a olhá-la uma vez mais,

se houvesse tornado a observar como a camisa molhada rodeava seu corpo,

se houvesse tornado a apreciar o magro pescoço, a excitante nuca, os

turgentes montículos de seus seios, seus braços, suas pernas, seus pés, sua

cara, sua boca, seus olhos..., aqueles olhos... Não, não teria podido conter-se

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e teria feito amor ali mesmo. Sem pensar em nada mais. Sem importar que

seu venerado tutor agonizasse a seu lado, sem preocupar-se com os homens

que lhes perseguiam, sem lhe interessar o futuro, sem recordar o passado,

pensando apenas naquele momento, naquele instante. Neles.

Tinha que ficar afastado. E ficou em um lugar que lhe provocava

calafrios. Preferia se atormentar com os seus próprios terrores para tentar se

esquecer daquele ardor que lhe percorria a alma cada vez que a via.

Tentaria por ela e pelo irmão Roger. Por ele mesmo.

Mas não, o engano não tinha funcionado. Impossível tirá-la da

cabeça e com frequência escutava seus passos, advertindo a sua chegada, a via

agachar-se e a observava voltar. E enquanto isso, entre idas e vindas até o rio,

só pensava nela. De nada servia escutar o rumor da água, em vez de

estremecimentos devido ao seu passado, sentia uma vontade imensa de

arrancar o tecido que a ocultava de seus olhos, de nada servia olhar para a

corrente, pois, em vez do rio furioso com a imagem do corpo inchado de seu

pai, só via seu corpo molhado inclinado sobre o leito do rio com a grama

recém-molhada.

—De nada me serve — gemeu ao mesmo tempo em que lançava um

sonoro murro à rocha em que se sentava. «De nada», pensou enquanto

esfregava os nódulos feridos.

Muito tempo depois, Mar corria angustiada em direção ao rio

quando topou com Gabriel, que, um pouco mais sereno, retornava à cabana.

—O irmão —ofegou—, acredito que está pior. Faz um momento voltou

a si.

—Como não me avisou?

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—Ficou sozinho um instante e, em seguida, voltou a ficar sem

sentido.

Gabriel pôs-se a correr para o refúgio.

A respiração do monge era agitada. Muito agitada. O peito se elevava

bruscamente e a garganta se afundava a cada tortuosa e sibilante inspiração,

entretanto, e a pesar do esforço, era como se não conseguisse que o ar

alcançasse os pulmões.

—Irmão —sussurrou Gabriel ficando de joelhos junto a ele—, irmão,

estou aqui.

A voz de seu tutelado fez reagir o religioso, que abriu os olhos

lentamente.

—Gabriel —murmurou.

Este teve que aproximar-se do ancião para poder entender as

palavras.

—Não fale.

—Sempre foi como um filho para mim, nunca deixei de lhe querer

apesar de sua rebeldia. — Gabriel tentou desfazer o nó que tinha na

garganta—. chegou minha hora e me alegro de que seu rosto seja o último

que veja.

—Não diga isso. Não vai morrer — assegurou com convicção

enquanto apertava a mão do templário.

—Deixe ao menos que eu parta em paz. Não tema. Levo muitos anos

me preparando para prestar contas ante o Senhor e viver a vida eterna junto

a Ele. Essa é a meta que me iluminou ultimamente.

—Não, não, não. Ainda ficam muitos anos para me repreender e

muitos mais para censurar minhas ações.

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Mas dos lábios do religioso só saiu uma prece.

—«Igual Jesus ofereceu seu corpo por mim, eu estou disposto a

oferecer minha alma por meus irmãos.»

Depois, fechou os olhos e voltou a precipitar-se na inconsciência.

Mar tinha entrado detrás de Gabriel e observava a cena apoiada no

arco da porta. Limpou a lágrima que caía pela bochecha. O mais doloroso

era ver como Gabriel negava para si, o que estava a ponto de acontecer.

Gabriel manteve a mão ossuda do religioso agarrada a sua durante

um momento, logo, depositou-a com delicadeza sobre o peito, levantou e

ficou parado na entrada da cabana.

Ali o encontrou Mar quando atravessou a entrada do barraco.

Mantinha-se de costas, firme e impávido, com os braços cruzados e as pernas

separadas.

Aproximou-se dele, apoiou uma mão em suas costas e pronunciou as

únicas duas palavras que não queria dizer.

—Sinto muito.

O templário acabava de suspirar diante de seus olhos.

Ele não disse nada, mas ela sentiu como seus músculos se esticavam

por todo o seu corpo. Ouviu-o respirar profundamente várias vezes e depois

voltou para junto do irmão. Mar ficou emocionada, com uma profunda

tristeza e a última palavra do monge se agitando em sua memória.

—Se cuidem.

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CAPÍTULO 21

Gabriel desapareceu assim que comprovou que o irmão Roger

abandonou a vida. Mar não o seguiu, com toda probabilidade preferiria estar

sozinho. Ao menos era o que ela desejou, depois da morte de seu pai; que a

deixassem em paz. Assim fez o que a compaixão lhe obrigava e o deixou

chorar sua pena a sós, sem testemunhas.

Mas já havia passado muito tempo e ele não retornava. As sombras

do entardecer não demorariam em chegar. Não podiam ficar ali, tinham que

partir. Logo os soldados deixariam de buscá-los, se é que ainda o faziam —

não haviam tornado a escutar aos cães próximo ao rio—, e aquela seria a

melhor hora para fugir. Não podiam esperar muito mais, já que o sol não

demoraria para desaparecer por detrás da vila, a escuridão tomaria conta do

bosque e não poderiam se orientar.

Comprovou que o vestido estava seco no teto da cabana e o puxou,

caiu do telhado e o colocou, passando pela cabeça. Os sapatos estavam muito

mais alto e não conseguiu alcançá-los, decidiu ir procurar Gabriel.

Encontrou-o no mesmo lugar e na mesma posição em que tinha

permanecido toda a tarde; havia tornado a se sentar na rocha. Mar

estremeceu apesar de estar vestida. Fazia frio. Ali em baixo, a umidade do rio

era muito mais intensa. Arrependeu-se de não ter colocado sobre os ombros

a capa que Feliciana havia colocado nos ombros do religioso.

Aproximou-se de Gabriel esfregando os braços. Subiu na rocha até

onde ele se encontrava e se sentou a seu lado. Gabriel nem se alterou.

—Deveríamos partir.

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—Têm razão —afirmou ele sem fazer um só gesto.

—O quanto antes.

Ele ainda ficou um bom tempo prostrado, antes de se mover e,

quando o fez, a ignorou completamente e pôs-se a andar.

A raiva de Mar foi aumentando conforme percorriam o leito do rio.

Ele a estava tratando como um caçador e seu cachorro, estava se sentindo

como um cachorrinho atrás do dono. Poderia cair ao rio e se afogar e ele

nem se inteiraria.

Quando Mar atravessou os matagais que ocultavam o barraco,

Gabriel já estava vestido. Viu-o agarrar seus sapatos e os jogando, ela os

pegou em pleno voo. Gabriel não notou o olhar de ódio que lhe devolveu,

porque já tinha se virado. Estava nesse momento descendo do teto a túnica

do templário e entrando na choça.

Parecia que estava procurando por alguma coisa dentro da barraca.

Não podia estar apagando a fogueira porque ela já havia se encarregado de

cobri-la com terra quando descobriu que os vestidos estavam secos.

—O que está fazendo?

Agora que as brasas tinham desaparecido, começava a ver algo dentro

da cabana.

—Venha e me ajude.

Mar se aproximou hesitante.

—O que está...?

Interrompeu quando apalpou o corpo ainda morno do irmão Roger.

Suas mãos tropeçaram com a cruz vermelha costurada sobre o peito.

A raiva que tinha sentido contra Gabriel diluiu em seu sangue e as lágrimas

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assaltaram as suas pálpebras. Gabriel o estava vestindo, envolvendo o

amortalhando.

O ajudou, apenas para ter uns minutos para se repor que por outra

coisa. Não queria ficar chorando, precisava ter a mente clara. Ainda tinham

que sair do bosque, ainda tinham que procurar um lugar onde passar a

noite. E ainda tinha que decidir o que ia fazer com sua vida. E com ele.

Quando o monge ficou envolvido, a confusão de Mar ficou

completa. Gabriel o pegou em seus braços e o levava para o exterior da

cabana.

—O que pretende fazer com o irmão?

—Vou levá-lo.

—Ficou louco?

Sim, estava, tinha perdido a razão.

—É um templário! Um cavalheiro de Deus! Acaso não o veem? —

gritou ele fora de si—. É um soldado que ficou metade da vida lutando para

que Terra Santa não caísse em mãos dos infiéis. Um homem que viveu

sozinho para honrar a Igreja e a cristandade. Está muito equivocada se

acredita que vou o deixar aqui jogado para que os animais deem conta dele.

Vou levá-lo, para lhe dar à sepultura que merece um homem como ele.

Mar se adiantou, foi até Gabriel e lhe agarrou pelos braços.

—É o gesto que o honra — sussurrou —. O fará, dará seu descanso. Só

lhes peço que reflita. Você não pode sozinho com o corpo do irmão. E eu

não acredito ser de muita ajuda. Como pensa transportá-lo?

—O colocarei em meus ombros.

—Se levar irmão com você, avançará muito devagar. Não falta muito

para que caia a noite. Em apenas poucas horas não poderemos continuar e

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teremos que parar no meio da floresta. E então sim, estaremos os três

indefesos à espreita das bestas. Pense bem. Teremos tempo de sair do bosque

se formos sem ele. Amanhã poderá voltar a buscá-lo com uma mula. — Mar

nem se expôs em contar onde passariam a noite, de onde arranjariam uma

mula e nem quão difícil seria para um fugitivo voltar para o lugar, que o

andavam procurando. Esperou que Gabriel tampouco o fizesse—.

Manteremos a cabana segura e tamparemos os buracos para proteger o dos

animais.

—De acordo. Parte você. Eu fico com ele —insistiu teimoso.

—Não é o que ele quereria —murmurou Mar—. O irmão Roger não

gostaria de saber que com sua morte, a única coisa que conseguirá, será que

passe o resto de sua vida trancado em uma masmorra. Pensa que seu último

desejo foi que ficassem velando seu corpo em vez de ficar a salvo? Tenho

certeza, se ele pudesse, ele voltaria a morrer mil vezes, se com isso

conseguisse salvar você.

Mar não soube qual dos argumentos o tinha convencido, mas

Gabriel voltou a depositar o corpo do monge no chão.

—Traga o manto.

Ela não perguntou para que o queria, com medo dele se arrepender

do que ia fazer. Saiu ao exterior correndo e desprendeu a capa do teto.

—Aqui.

Gabriel atou os extremos do manto aos quatro grossos troncos que

sustentavam a cabana. E construiu uma rede, que se elevava mais de dois pés

por cima do chão.

—Me ajude a levantá-lo.

Page 316: Ana iturgaiz - sob as estrelas

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O colocaram sobre o tecido. A figura do religioso pareceu muito

menor para Mar, como se naquelas últimas horas tivesse encolhido até quase

desaparecer.

Mar encabeçava a marcha, Gabriel a seguia. Nas ocasiões em que ela

olhou atrás, o encontrou pisando em suas próprias pegadas. Mas não

transcorreu muito tempo até que o teve a seu lado. Durante um momento

caminharam juntos, tão juntos que se ela tivesse esticado a mão teria pegado

a dele, e ele nem teria percebido. Estava totalmente ausente. Tinha deixado

de contemplar o lugar e, agora, seus olhos só se detinham nos ramos mais

baixos das árvores ao lado do estreito caminho. Não passou muito tempo até

que Gabriel a deixou para trás. Mar desistiu de lhe seguir e desistiu de lhe

entender.

—Não faz nem um quarto de hora que pretendia ficar velando o

corpo do monge e agora está com pressa de sair daqui — balbuciou ao lhe ver

desaparecer na seguinte curva do caminho.

Alcançou o mesmo ponto no que o tinha deixado de ver. Estava

sozinha. De tudo.

«Está me pregando uma brincadeira», disse e olhou a seu redor

esquadrinhando as árvores mais próximas a ela. Tinha desaparecido sem

deixar rastro.

Saiu do caminho e se aproximou de um dos troncos. Não estava.

Deu uns passos e apareceu outra trilha. Tampouco. A seguinte era muito

estreita. Impossível que se escondesse ali. No quarto, tampouco se

encontrava, nem no quinto, o sexto e o sétimo.

Page 317: Ana iturgaiz - sob as estrelas

317

—Não tem graça alguma —disse em voz alta.

Os únicos que se assustaram com suas palavras foram um par de

pássaros que bicavam pelo chão e que saíram voando para o amparo dos

ramos mais altos.

—Se pretende me assustar, lhe asseguro que não está conseguindo —

repetiu subindo o tom.

Desta vez, nem as aves se importaram. Não se escutava nem um só

ruído. A floresta que a rodeava parecia um cemitério. Começou a preocupar-

se.

—Gabriel, não temos tempo para estas tolices — comentou para o ar,

tentando conter a insegurança.

—Quer calar sua boca de uma vez?

—Onde estava? —perguntou ao mesmo tempo em que se virava para

Gabriel, que tinha aparecido ao seu lado de repente.

—Comprovando algo —disse ele sem dar mais explicações—. Acaso se

alarmou?

—Quem? Eu?

—Quer baixar a voz!

—E você quer deixar de me dizer o que tenho que fazer?

—Irá conseguir que nos descubram.

Mar olhou para todos os lados.

—Quem? Não irá me responder?

Não o fez até que a conduziu monte acima e a escondeu atrás da

árvore mais larga que havia visto.

—Acredito ter escutado ruídos —lhe confessou então.

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318

—Os cães? Acredita que depois de tanto tempo, seguirão rastreando o

bosque nos buscando?

—Não sei, mas não podemos descartar nenhuma possibilidade —

murmurou junto a seu pescoço.

Mar evitou pensar na sensação que o fôlego de Gabriel provocava em

sua pele e se concentrou no perigo que antecipava.

—Não escuto nada.

—Shhhh...

—Aí fora não há ninguém.

—Shhhh...

—Não acredito que sigam nos buscando.

—Shhhh...

—Acredito que somos as únicas pessoas que há no bosque —anunciou

ao mesmo tempo em que virava para encontrar os braços do único ser

humano a menos de duas léguas de distância.

Seus corpos deviam estar separados por uma capa de ar mais magra

que a casca de um ovo de codorna, mais fina que a asa de uma libélula, mais

ligeira que a pétala de uma rosa, mais leve que as sementes de um dente de

leão balançadas pelo vento, mais...

A mente de Mar bloqueou. Nada que não fosse Gabriel existia para

ela. Nada que não fosse aquelas mãos passeando por seu cabelo emaranhado,

nada que não fossem aqueles dedos percorrendo o perfil de sua boca, nada

que não fossem aqueles olhos cravando em suas pupilas, nada que não fosse

aqueles umedecidos lábios entreabertos.

—Acredito... —balbuciou—, acredito que não há ninguém.

—Shhhh —obteve toda resposta.

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E aquela foi o sinal, o sinal que arrasou todo seu julgamento.

Cruzou as mãos atrás do pescoço de Gabriel e apanhou seus lábios

com avareza. Queria tudo dele. Queria a luz de seu olhar, a risada de sua

boca e sua barba já crescida. Queria o brilho de seus olhos, a forma de suas

orelhas e seu afiado queixo. Queria a curva de seus ombros, seus largos

braços e suas palmas calosas. Queria seu torso, suas costas e seu ventre. E lhe

ver caminhar. O queria por inteiro, e o que era pior, o queria sozinho para

ela.

E aí acabou tudo, todos os pensamentos. Mar se inundou em Gabriel

e deixou de pensar. Só existia ele, ela e ele. E sua boca. Aquela cálida boca,

aquela úmida língua, aquele refúgio que a fazia perder a cabeça.

De novo, as sensações foram assaltadas, vividas e tantas vezes

desejadas.

Não soube quando, mas em algum momento se agarrou a ele,

abraçou seu corpo, o atraiu para ela. Sentir a dureza de seu corpo sobre o seu

foi como dar alimento a uma faminta e água ao sedento, como dar apoio ao

aleijado e consolo ao desventurado. Aquele contato encheu um vazio que

desconhecia ter. E isso a assustava ao mesmo tempo em que a enchia de

entusiasmo.

Mas o que mais lhe alegrou foi saber que ele também padecia

daquela ansiedade que lhe agarrava as vísceras e as oprimia com força, que

também sentia aquela necessidade que a ameaçava se afogando se não a

saciava e...

Mar voltou a inundar-se nas sensações.

Mas algo aconteceu que acabou com aquele instante de felicidade.

Algo fácil de intuir e difícil de aceitar.

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— Olha o que encontramos, os cães de caça fizeram um bom

trabalho! Duas presas de caça bem grandes.

Os encontraram.

Os animais saltavam excitados ao redor da presa. Mar e Gabriel

continuavam abraçados com a única ideia de que os latidos dos cães ficassem

bem longe deles.

—Tragam aqui! —gritou alguém do caminho.

O homem mais próximo a eles, que os tinha descoberto, aproximou-

se e sujeitou a dois dos cães pelo pescoço para lhes deixar passar.

—Já ouvistes, andando!

Mar se separou de Gabriel para acatar a ordem, mas este a sujeitou

pela cintura com firmeza.

Começaram a descer. Os animais saltavam em torno deles. Mar se

apertou contra Gabriel.

No atalho não havia apenas um homem, a não ser três mais. Na

túnica, à altura do peito, luziam o escudo vermelho e azul com os ramos e as

flores de lis que os identificava como servidores de palácio.

Mas nenhum era soldado. Mar deixou escapar um suspiro de alívio.

Gabriel não relaxou a tensão.

—O que fazem aqui? —repreendeu um deles—. Isto é território de caça

do rei.

—Somos forasteiros. Só estamos de passagem — mentiu Gabriel.

—E onde estão suas coisas? —respondeu o homem enquanto dava

voltas a seu redor—. Eu vejo que não levam nenhuma bolsa. Sabem a pena

que se aplica aos que como vós invadem a propriedade do rei? —acrescentou

dando um golpe em Gabriel em um ombro.

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—Deixa-os, García! Não vê que escaparam de seus esposos para se

aventurar no bosque? — riu o outro.

De repente, dois dos cães, os mais nervosos, lançaram-se em uma

carreira desenfreada. O resto dos cães o seguiu em turba. Estavam fora de si.

Um deles lançou um uivo estridente e agoniado. Todos os olhares se

dirigiram para ele. Um animal se afastava por detrás da primeira linha de

árvores.

—Um cervo!

—Não o deixem escapar! —gritou outro dos serventes.

—Mas o que fazemos com eles?

—Deixa-os em paz, García! O rei não demorará em chegar e ficará

mais feliz, se puserem o veado assando na brasa que o entregarem este par de

pombinhos.

O tal do García duvidou um instante.

—Se afastem daqui se não quiserem acabar nas masmorras do castelo

— ordenou antes de sair correndo atrás de seus companheiros.

,

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CAPÍTULO 22

—Imaginem a animação que se formou! 0 patife tentou me acusar

diante de tudo, mas eu me defendi bem. Assegurei que tinha sido um

engano, que o que eu tinha pedido era que me ajudasse com um saco de

farinha fina e que se ele tinha entendido «comida fina» e tinha suposto que

era a dos cavalos, era problema dele.

—E eles acreditaram? —perguntou divertida uma das garotas do

bordel a Feliciana.

A mulher soltou uma gargalhada.

—O que você acredita? Não me vê aqui, vivinha e abanando o rabo?

—Estou certa que utilizou algo mais que a língua para sair dessa —

acrescentou Elvira com voz grave da porta.

Feliciana nem se incomodou em se levantar do assento.

—Você sabe muito bem que sou a melhor neste negócio —respondeu

com descaramento.

—E para que? —continuou a outra com desprezo dirigindo-se a suas

companheiras—. Para salvar seus amigos e pôr todas vocês em perigo.

—Acredita...? Acredita que virão buscá-los aqui?

As palavras de Elvira assombraram o resto das garotas. Seus rostos,

antes alegres, refletiam agora temor.

—Não fiquem preocupadas. Ninguém aparecerá para buscá-los.

Tiveram oportunidade, mas não os capturaram.

Entretanto, Elvira não ia deixar escapar a oportunidade de pôr

Feliciana em um apuro.

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—Isso foi porque não sabiam que eram fugitivos. Estou certa que a

estas alturas os soldados estão revisando todas as casas da vila. Temos que

entregá-los antes que os encontrem entre nós.

Feliciana estava farta de escutar insensatezes. Levantou-se de um salto

e encarou Elvira.

—Ninguém desta casa vai deixar escapar uma só palavra sobre eles.

Ouviste-me bem? Mantenha a boca bem fechada.

—Está —respondeu Elvira a menos de um palmo dela— é uma casa

pública. Em qualquer momento pode aparecer qualquer cidadão e descobri-

los. Não será minha culpa se alguém os reconhecer.

—Correremos esse risco, mas você morda sua língua de víbora e fique

atenta em dizer uma palavra sobre meus convidados — ameaçou, pondo o

dedo indicador na altura dos olhos.

Elvira sabia quando dar por perdida uma batalha. Trocaria de

estratégia. Já chegaria a hora de cobrar todas as afrontas.

—Onde irá receber agora que ficastes sem quarto?

—Isso não é seu assunto. Asseguro-lhe que não vou pedir a você que

me cubra.

A conversa se interrompeu nesse ponto. No fundo do corredor, Mar

abria a porta da habitação. Quando chegou à cozinha, Elvira já se afastava

pelo corredor e Feliciana havia tornado a ocupar seu assento. Mar tinha

escutado as vozes das mulheres. Não tinha conseguido averiguar o motivo da

discussão, mas o podia imaginar. Desejou que a mulher não se metesse em

problemas por sua culpa.

—Venho buscar a panela — explicou para romper o silêncio.

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Aproximou-se do o caldeirão que fumegava sobre o fogo e o colheu

com a ajuda de seu próprio vestido. Todas as cabeças a seguiram. Saiu da

estadia tentando esboçar um sorriso de desculpa.

—Trago a água —anunciou enquanto empurrava a porta com o

quadril.

Gabriel virou a cabeça para ela um instante, mas retornou à janela

em seguida. Estava na mesma posição desde que tinham chegado, ausente,

com os braços cruzados e os olhos fixos na greta que se abria na fachada da

estalagem.

A estadia não era grande, mas, como Mar bem sabia, era a maior da

casa e a única que contava com um leito em condições. A cama era uma

robusta estrutura de madeira com uma alta cabeceira ricamente esculpida e o

colchão mais o fofo que Mar já tinha visto. Feliciana tinha assegurado que

fora o presente mais valioso que recebeu. Ao que parece, um mercador de

vinhos, que tinha vivido em Olite mais de uma década, havia se apaixonado

por Feliciana quando ainda era jovem e a mandado fazer especialmente para

ela. «Para mim e para ele», tinha explicado entre risadas. «Até enviou um

saco de plumas de ganso que veio além de Ultrapuertos para preencher o

colchão.»

Além da cama, a estadia não contava com nenhum móvel com

exceção de um arca aproximada da parede da janela onde Gabriel se

encontrava. Aos pés da cama, no chão, estava a Cuba que Feliciana os tinha

emprestado, um tecido para se secarem, uma tigela e uma pouco de sabão.

Um pequeno pedaço de madeiro com uma vela acesa situada sobre o baú era

o único ponto de luz que contava a habitação.

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Mar se aproximou da tina e derrubou o conteúdo da panela com

cuidado para não salpicar. Uma baforada de vapor subiu e umedeceu seu

rosto.

—Já está preparado —anunciou.

Gabriel não se moveu nenhum só de seus músculos e Mar deixou

escapar um suspiro. Não haviam tornado a se falar desde que retornaram a

Olite. Em algum momento se quebrou o fino laço que os unia e ela não

sabia quando nem por que. Voltou-se para abandonar a habitação.

Retornaria mais tarde, depois que ele tivesse finalizado o asseio.

Deu um pequeno passo em direção à porta, quando ouviu o golpe da

janela ao ser fechada.

—Fique. — Aquilo tinha sido uma súplica. Mar se voltou muito

devagar—. Fica comigo esta noite.

Gabriel deu uns passos em sua direção, agarrou o caldeirão que

pendurava inerte de sua mão e o deixou de lado sem soltá-la. Começou a

brincar com seus dedos.

—Por que? —murmurou ela.

—Porque necessito de você.

Mar conteve um soluço. Ela também o necessitava. E ele não sabia

quanto.

Gabriel continuou lhe acariciando as mãos sem se decidir a dar o

primeiro passo. Quando por fim levantou a cabeça, encontrou com o rosto

de Mar. Pequenas gotas ficaram presas no cabelo. À luz da vela, parecia como

se as estrelas tivessem descido para formar um diadema em torno de seu belo

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rosto. Uma mecha se soltou do resto e se aderia à bochecha, justo no lugar

que uma mancha de sujeira lhe obscurecia a pele.

—Necessita um bom banho — disse enquanto separava do rosto a

mecha de cabelo.

Ela sorriu.

—Diz isso, porque não podes te ver. Você necessita de um banho

muito mais que eu.

—Essa é precisamente a razão pela qual deve ser você a primeira em

tomar banho. Minha sujeira prejudicaria a possibilidade de que possa se

lavar depois.

—Não estou de acordo. Se eu...

Gabriel soltou uma gargalhada. Iluminando o coração de Mar .

—Irá passar o resto da noite discutindo?

A referência ao que ia acontecer entre eles a seguir ficou pendurando

no ar um breve instante. Até que ela tomou uma decisão. Agachou-se e

tocou a água.

—Muito quente para mim. Pode estar melhor para você.

Mar não quis analisar se Gabriel havia resolvido que ela deveria se

lavar primeiro, para vê-la se roupa ou realmente queria prestar essa gentileza.

Como não parecia que Gabriel estivesse muito de acordo com o seu

comentário, começou a subir a saia, mas não chegou muito acima. Seus

braços não eram o suficientemente compridos para tirar o vestido pela

cabeça.

—Não sou uma camareira mas posso ajudar — comentou

descontraído Gabriel.

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Mar agradeceu a brincadeira. Estava muito nervosa, muito mais do

que tinha suposto, e as brincadeiras diminuíam a tensão.

A camisa de Gabriel tampouco demorou muito em desaparecer e

Mar pôde admirar de novo o musculoso corpo. Só que aquela vez não tinha

que se esconder para fazê-lo. Com o dedo indicador riscou um arco por cima

de seu peito e descendeu lentamente até o umbigo. Ele segurou a sua mão,

impedindo que continuasse.

—Não continue — sussurrou inclinado sobre ela —, a menos que

queira que a água se esfrie antes que entremos nela.

Ela estremeceu.

—Entre então — pediu a contra gosto.

Ele se desprendeu dos sapatos e das meias. Mar não pôde se conter e

o seu olhar iniciou o caminho para baixo. Mas não chegou muito longe.

Gabriel a agarrou pelo queixo e a obrigou a olhar em seus olhos. E assim,

com as pupilas cravadas em sua retina, deu um passo para trás e obedeceu.

Como Mar tinha indicado, a água queimava. Apesar de tudo, sentou-

se na tina. Ficava muito pouco espaço. Estirou um braço para alcançar o

sabão, mas ela já o tinha entre as mãos. O arrebatador sorriso confirmou que

a temperatura não rebaixaria o ardor que lhe corria por dentro. Nada lhe

faria perder o desejo de tê-la debaixo dele. Assim fechou os olhos, apoiou-se

no borda da tina e se dispôs a gozar.

E Mar, também.

Ao não ter seu olhar observando o que fazia, banhá-lo resultava mais

fácil. Começou esfregando de forma enérgica, com a aparente segurança de

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quem leva anos fazendo isso, mas depois, depois, rendeu-se a seu próprio

desejo e decidiu desfrutar do momento. Com toda a tranquilidade que pôde,

percorreu cada curva do peito, dos braços e do pescoço. Avançava com

lentidão, devagar, intercalando leves pausas.

—Se incline para frente.

Gabriel obedeceu. Um jorro de água caiu pela cabeça e outro pelas

costas. Deixou escapar um suspiro. Notou os dedos de Mar delineando a

ferida, aquela com a que tinha chegado ao monastério dias antes. Uma

pontada de dor lhe alcançou ao recordar as reprimendas do irmão Roger

quando a tinha visto. Mas sentir os lábios de Mar beijando, conseguiu que

lhe nublasse a mente a tudo o que não fosse ela. Necessitava aquela mulher

e a necessitava já.

Levantou-se sem avisar, agarrou o tecido e se secou com rapidez, o

suficiente para não gotejar sobre o piso. Depois, lançou o pano ao chão para

que lhe servisse de tapete e saiu da tina.

—Acredito que é a sua vez — indicou com a voz rouca pelo desejo.

Mar deixou que a despisse.

Perceber o tecido da camisa deslizando-se por seu corpo foi um

suplício. Sentir seu olhar acariciando a sua pele, uma tortura. Uma gostosa

tortura.

Quando esteve nua, Gabriel deu um passo para trás. A luz da vela lhe

permitiu ver o que sabia que encontraria debaixo da roupa que acabava de

jogar no chão. Era como tinha imaginado e sonhado. Os ombros marcavam

uma reta perfeita do pescoço; os peitos, pequenos e turgentes, elevavam-se

erguidos. Teve que se controlar para não passear a palma da mão por seu

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ventre e pela curva do quadril, e apertá-la contra ele. Não pôde evitar que sua

masculinidade ecoasse de seus pensamentos mais íntimos.

Mar também aproveitou o momento para contemplá-lo por inteiro.

A sensação, que tinha se instalado no estômago quando rogou que ficasse,

converteu-se agora em uma tensão voraz. Era mais que evidente que Gabriel

estava cheio de desejo por ela.

—É preciosa.

—Não acredito que com esta sujeira toda...

Silenciou-a colocando um dedo sobre seus lábios.

—Isso vamos solucionar em um instante — disse ao mesmo tempo em

que a segurava e a colocava dentro da água.

Não a deixou sentar-se. Como ela tinha feito com ele, agarrou o

sabão e começou a esfregá-la. Muito depressa, muito ansioso. Não podia

esperar, era muito pouco apenas a acariciar com o sabão, precisava tê-la por

inteiro, sentir aquelas pernas enredadas ao redor de seus quadris e seu cabelo

lhe acariciando o peito.

Tão ávido que estava para terminar com o banho, que a Mar deixou

escapar uma risada. Gabriel ficou paralisado.

—Sinto... —disse sobressaltado—. Sei que não deveria... que você...

Virou de costas para ela, para deixar de vê-la e poder respirar.

Mar se enxaguou depressa e saiu da tina. Aproximou-se dele sem

preocupar-se com os pingos de água que deixava com os seus passos no chão.

Abraçou-o pela cintura.

—Não sou uma garotinha inocente.

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Não precisou dizer mais. As palavras falavam por si só. «Não sou

virgem, estou aqui por própria vontade, nós tiremos as máscaras, eu também

vos desejo.»

Gabriel esperou que o som se diluísse no ar. Virou seu corpo para

encontrar o seu penetrante olhar e depois, arrasou sua boca. Com força, com

fúria, com desejo, com desespero e ansiedade. E Mar se uniu a ele. Nas

pontas dos pés, segurou seu pescoço com força e se fundiu com ele. Nas

pontas dos pés, travou uma batalha com a língua dele. Nas pontas dos pés,

desejou ser possuída por ele e diluir-se em seus ossos. E ali continuou. Até

ficar sem fôlego.

Gabriel se separou dela ofegante. Foi um instante, o suficiente para

reaver o fôlego e voltar ao ataque. Queria absorver sua essência, ficar com

sua energia, inundar-se em seu corpo e que todo o resto desaparecesse de sua

mente. Queria que o mundo parasse e eles continuassem girando no

universo.

Os beijos permaneceram sem parar. Em seu afã por aproximar-se do

leito, Mar deu um passo para trás, Gabriel foi com ela. Chocaram-se contra a

tina e a água se esparramou sobre seus pés descalços.

—Acaso quer voltar a me banhar? — protestou Gabriel com a cara

afundada em seu ombro.

Ela riu sem soltá-lo e seguiu avançando com os braços de Gabriel

rodeando-a por inteiro. Ali onde ele a tocava, provocava um cataclisma. Mar

estremecia de prazer.

Um passo mais e tropeçaram de novo.

—Onde está a maldita cama? — grunhiu esta vez.

Mar soltou uma gargalhada.

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—Acredito que é isso que têm atrás de suas costas.

Gabriel a conduziu até ficar na lateral do leito, sem deixar de beijá-la.

E quando esteve seguro de que tinha encontrado o que procurava, se sentou

e colocou Mar entre as suas pernas.

Ela soube imediatamente que aquele era seu apoio, seu lugar, sua

morada. Ali era onde queria estar o resto da vida, entre aqueles braços e com

sua cabeça apoiada no regaço.

Gabriel deitou na cama a arrastando consigo. Com um rápido

movimento a mais e a teve a sua mercê, debaixo dele e com as mãos presas

sobre a cabeça. Estava livre para desfrutá-la por inteiro.

Baixou a cabeça sobre na altura do peito enquanto se regozijava ao

escutar a pesada respiração. Quando apanhou seu seio, Mar deixou escapar

um gemido, que só mostrou a sua avidez, seu desejo. Soltou um dos braços

que mantinham Mar presa, assim, com a mão livre, pôde explorar cada curva

de seu corpo. Mar se perdeu em uma nebulosa de prazer.

Até que seu próprio corpo lhe pediu mais.

Lutou para se libertar da prisão. Gabriel atendeu o pedido e a soltou.

Ela se apressou a agarrar as nádegas dele e apertá-lo contra si.

Olharam-se por um instante. Gabriel formulou uma muda pergunta,

Mar respondeu com um sorriso. E ele se introduziu nela.

Havia dito a verdade, não era virgem, mas a única relação que teve

com seu prometido não a preparou para o que aconteceu depois.

Quando Gabriel deslizou para dentro dela, teve medo. Medo de não

saber como fazer, medo de não poder reagir, medo de falhar. Mas os beijos

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úmidos de Gabriel percorrendo o seu rosto, limparam qualquer dúvida que

carregasse. Procurou sua boca e a fez dela.

Ele demorou um pouco para voltar a se mover. Encaixou as mãos nas

de Mar, que o acolheram com vontade, e empurrou com suavidade. Os

quadris femininos se elevaram em busca de mais. Gabriel lhe ofereceu o que

ambicionava, e em uns instantes, ambos alcançaram um ritmo muito

prazeroso. Notar que Mar dava rédea solta a seus desejos, o inflamou de

excitação e desejo. Gabriel não podia parar, Mar não queria que o fizesse. Os

rítmicos movimentos aumentaram de intensidade. Envolveu-os um delírio

sem igual, entusiasmo, fúria, um frenesi que os obrigou a seguir sem parar.

Houve um momento que Mar pensou que já não suportaria mais, seu corpo

e sua mente estavam a ponto de se partir, mas o fez; continuou o

acompanhando até que notou como os músculos de Gabriel ficavam mais

tensos e os espasmos de prazer o transportavam além das estrelas.

Debilitado, Gabriel se deixou cair sobre ela. Demorou em se

recuperar, e em assumir o controle dos pensamentos. Era consciente de que

as coisas não tinham acabado como esperava, estava claro que Mar não o

tinha acompanhado até o final, tinha ficado para trás em algum lugar do

trajeto.

Soltou a mão que mandinha Mar presa e se deitou de lado, disposto

a solucioná-lo.

Mar tentou lhe deter.

—Mas o que...?

—Confie em mim — murmurou Gabriel —. Só relaxe.

Foi apenas com um toque firme, um contato naquele lugar íntimo e

Mar subiu até o firmamento.

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Foi como cavalgar em uma planície sobre um cavalo descontrolado,

com o vento lhe açoitando o rosto, para cair depois em um precipício

interminável e aterrissar em um montão de erva recém-cortada. E foi assim,

precisamente assim, porque estava com ele.

Não disseram nada, não se moveram até que, algum tempo depois,

quando Mar deixou de tremer, o ritmo de seu coração se normalizou.

—Vai esfriar — sussurrou Gabriel, com o seu corpo ainda apoiado ao

lado de Mar.

Estavam sobre a cama, nem sequer tiveram tempo para colocar

alguma roupa.

—Igual você.

Gabriel deu um puxão e descobriu o leito. Mar se apressou a entrar

debaixo dos lençóis, sem poder segurar o sorriso que ainda mantinha. Ele a

seguiu agradado e voltou a colocar o cobertor sobre eles. Nenhum dos dois

notou a aspereza da tosca manta.

—Mais aquecida? — sussurrou a mantendo perto de si.

—Ainda não.

Ele a beijou com suavidade. Várias vezes.

—E agora?

—Ainda não —respondeu ela, aproximando-se ainda mais.

Ele a segurou pelo traseiro e a manteve unida a ele. E assim ficaram,

Gabriel a acariciava languidamente a curva de seu quadril e lhe rodeava com

seu braço. Até que Mar sentiu de novo a força de sua virilidade entre as

pernas.

—Melhor assim? —retomou a brincadeira.

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—Não o suficiente —respondeu Mar, divertida, antes de responder

com um beijo.

Gabriel se colocou sobre ela.

—E agora?

Mar não pôde evitar que um gemido afogado subisse até sua garganta

e o fogo voltasse a assolar todos e cada um dos poros da pele. Abriu as

pernas para acolhê-lo.

—Agora, está bem melhor.

Na realidade, estava com Gabriel onde queria.

—Sabe? —comentou ele com tom despreocupado enquanto percorria

com a língua a base de sua garganta—, não entendo como fora tão

desconsiderada no dia que cheguei a sua casa. Obrigando-me a dormir no

chão.

— E o que esperava que fizesse se acabavam de me atacar? Que

oferecesse para passar a noite a meu lado? — continuou ela o jogo ao mesmo

tempo em que marcava com os dedos os músculos de suas costas.

—Teria sido muito amável de sua parte. Eu lhe teria recompensado.

—De que maneira?

—Assim — disse ele enquanto depositava um beijo no pescoço.

Mar enredou as pernas entre as suas.

—E...?

— E assim — acrescentou enquanto segurava um de seus seios e

lambia o mamilo.

Ela introduziu as mãos entre seu cabelo com a respiração agitada.

—E...?

—E assim — ele continuou a doce tortura, mordiscando o outro.

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Mar não pôde controlar o que seu próprio corpo pedia e elevou os

quadris em busca de um maior contato.

—E que mais? —ofegou.

—E assim — adicionou ele ao mesmo tempo em que descia sua mão

acariciando a área do umbigo dela. A pressão em seu ventre começava a ficar

insuportável

— E assim — continuou enquanto enredava os dedos entre os

encaracolados pêlos femininos.

— E assim — prosseguiu o avanço notando a cálida umidade que

brotava de seu desejo por ele. — E assim — insistiu enquanto riscava círculos

no centro de seu prazer—. E assim — repetiu por última vez com dois dedos

penetrando firmes em seu interior.

As costas de Mar se arquearam em busca de mais. Suas mãos e dedos

eram suficientes. Não o queria longe, não o queria fora. Queria-o sobre ela.

E dentro, muito dentro.

—Venha para mim — conseguiu dizer.

Gabriel se surpreendeu o quão fácil era se deslizar em seu interior.

Ela começou a se mover antes que ele. Elevava os quadris exigindo aquilo

que só ele podia lhe dar. Pensar que o desejava tanto dessa forma, se

entregando por completo, deixando de lado toda a precaução, comoveu

Gabriel mais do que imaginava.

Não houve mais reflexões. Seus corpos se uniram em uma luta em

que estavam destinados a entender-se.

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CAPÍTULO 23

Amanheceu e ainda estava acordado. Não tinha dormido por toda a

noite. Muitos pensamentos, muitas emoções, muitas decisões, muitos

problemas. Havia refletido por várias horas, mas, por fim, tomou uma

decisão.

Abandonou o refúgio do leito e se levantou. Sentiu uma pontada,

aonde havia o corte no tempo que ficou na sala de torturas. Coxeando, se

aproximou até aonde tinha ficado a camisa jogada na noite anterior, a

agarrou e a pôs. Virou a cabeça para a cama; Mar continuava dormindo.

Abriu a janela. Era um frio amanhecer. A corrente de ar que penetrou na

habitação o fez estremecer.

Cravou o olhar na casa de frente e admitiu para si que a decisão já

estava tomada, antes que ele e Mar... Mesmo assim tinha dado muitas voltas,

mas sempre levava ao mesmo lugar.

Era o melhor. O melhor para ela, o melhor para todos.

Escutou os sinos da igreja de São Pedro chamando a manhã. Não

podia esperar mais. Fechou a janela com mais força que desejara; o golpe

soou como o disparo de uma mola de suspensão e Mar se reanimou dentro

da cama.

Aguardou uns instantes antes de voltar a se mover. Não tinha muito

tempo, queria deixar tudo resolvido antes que ela despertasse.

Terminou de se vestir. Depois, aproximou-se da porta com sigilo e a

abriu. O corredor estava deserto, esperava que a casa também. Por sorte, o

resto das habitações estavam fechadas e na cozinha não havia ninguém. A

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casa ainda não tinha despertado. Chegou até as escadas e começou a descer

às escuras. Avançando, alcançou o portão e tentou abrir. Estava trancado.

Apalpou até encontrar a madeira que o bloqueava e a retirou. A porta se

abriu com um chiado.

A gélida temperatura lhe recordou onde havia ficado a capa que

abrigou o corpo do irmão Roger no dia anterior. Uma pontada de dor

somou a pesada decisão que armazenava no coração na noite anterior,

quando decidiu que o melhor seria seguir o caminho a sós.

Quando colocou um pé na rua, a porta da estalagem, a mesma

imunda hospedaria em que se alojou e da que deixou apressadamente, abriu-

se e dela saíram duas figuras. Feliciana era uma delas. Gabriel reconheceu o

homem que se pendurava na cintura da mulher. Era um dos vendedores que

tinha visto na praça no dia que as seguiu pelo mercado. Pareciam felizes.

O sorriso de Feliciana congelou assim que o viu. Gabriel notou como

elevava uma das sobrancelhas e torcia o rosto. A mulher não falou, ele

tampouco.

Não podia deter-se, tinha coisas que fazer. Deu meia volta e começou

a percorrer a rua com os olhos de Feliciana fixos em suas costas.

Resgatar a bolsa de Mar foi fácil.

Para sua sorte, o trabalhador da pedreira não era um homem

desconfiado nem muito observador e as coisas continuavam no mesmo

buraco na mesma parede, atrás da mesma pedra que tinha ocultado três dias

atrás. «Não falta nada, nem a tabuleta nem o anel nem as moedas», disse

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338

enquanto lançava umas moedas sobre a palma da mão, e após as guardou

para si.

Uns ruídos no exterior do quarto lhe recordou que a cidade

despertava. Saltou com precaução dos batentes de pedra aonde se pendurou,

e que quase alcançavam o alto do cômodo, saiu ao exterior disposto a contar

qualquer mentira que desculpasse a ousadia de se introduzir em um quarto

alheio.

O bodegueiro acabava de chegar. E se ficou surpreso ao ver sair da

casa um desconhecido vizinho em vez de seu mais fervoroso inimigo, não

demonstrou absolutamente.

—Não o espere até que o sol apareça entre os telhados. Não conheço

nenhum indivíduo mais folgado que esse — explicou com desprezo.

Gabriel balbuciou algo em relação ao pouco interesse que alguns

homens tinham por seu próprio negócio e se dirigiu à escada. Abandonou o

fosso seco e, em um par de saltos, se encontrou novamente no nível da rua.

No breve espaço de tempo que tinha permanecido no quarto do

trabalhador de pedreira, a vila tinha voltado para a vida. As portas da cidade

haviam se aberto e as mulheres dos lavradores começavam a chegar com o

fruto dos pomares nas costas. Acelerou o passo. Tinha que acabar com

aquilo antes que Mar despertasse. E antes que alguém o reconhecesse.

Evitou andar pelas ruas principais e caminhou na lateral da muralha.

Fez bem. Nenhuma alma saiu em seu encontro. Entrou na rua do bordel.

Respirou tranquilo quando a viu deserta. Nem rastro de Feliciana. Não sabia

por que, mas se sentia incômodo na frente daquela mulher. Era como se

pudesse ler a sua mente. «Com um pouco de sorte ainda está com o aquele

vendedor», pensou antes de empurrar a porta da casa mais pública da vila.

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As velhas escadas rangeram apesar dos esforços que fez para evitar

fazer um só ruído. Tampouco a madeira do corredor lhe ajudou a se manter

em segredo. O estalo das fitas de seda se escutava a cada passo que dava.

Chegou até a porta da estadia em que tinha deixado Mar sem que

ninguém tivesse saído de algum dos outros quartos.

Exceto por uns finos raios de luz que a mal ajustada janela deixava

passar, a habitação seguia virtualmente às escuras. O perfil imóvel de Mar

debaixo da manta lhe indicou que ainda não tinha despertado. Rodeou a

cama e se aproximou da arca. Soltou a bolsa que estava atada a cintura e a

colocou sobre a arca com cuidado. Iria sair dali como tinha entrado: como

um furtivo, como um ladrão, como um delinquente.

Mas ao chegar à porta, não pôde evitar e virou. Seu estômago

encolheu.

A abandonava. E renunciava à única possibilidade que tinha de ser

feliz. Sabia. E o aceitava. Mas isso não fazia que fosse menos doloroso. Como

eram as palavras que o irmão Roger lhe havia dito? Que rogava para que

encontrasse uma boa mulher que o obrigasse a se estabelecer. «O que nunca

saberá o velho é que a tenho. A meu lado e, entretanto, tão longe.»

Quem ele era ? Um “joão” ninguém. O que tinha? Nada

absolutamente. O que podia oferecer? Caminhar errante de um lugar a outro

em busca de um trabalho que lhe servisse para conseguir o sustento diário.

Onde iriam viver? Na rua; no chão; em galinheiros emprestados; debaixo das

pontes; com sorte, em um celeiro; e com a terra por baixo e o firmamento

como único amparo por cima de suas cabeças. Até então, os templários

sempre tinham estado ali. O monastério tinha sido um refúgio quando o

necessitava, os monges não imaginavam os seus infortúnios, porque ele

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nunca confessou, mas em algumas ocasiões as visitas coincidiam com os

momentos de muita necessidade. Ficava apenas poucos dias, o suficiente

para esquentar os ossos, esquentar o estômago até sentir saudade de

retornar aos caminhos.

Mar não o merecia, não merecia aquela vida, sua vida. Teria mais

possibilidades de ser feliz sem ele. O dinheiro que a devolvia, lhe daria para

subsistir uns meses, poderia voltar para Estella, certamente que a família

vizinha não a abandonaria. Além disso, tinha sua família, a francesa. Poderia

retomar os planos e partir para França, ao lar daquela prima, ao lugar aonde

se dirigia quando ele a separou da caravana. A imagem dos homens que a

perseguiam reapareceu em sua memória. Tinha-os esquecido por completo.

Recordou a tabuleta e o que o irmão Roger tinha contado. Supunha-se que

era o que os assaltantes procuravam, e que estava com ela.

Voltou a dirigir-se à arca. Tirou a tabuleta e o colocou por dentro da

camisa, preso ao cinturão. Se os tipos apareciam, Mar sempre poderia

explicar que o tinham roubado.

Ao ir colocar a bolsa sobre o baú, esta escorregou. Gabriel tentou

apanhá-la no ar. «O ruído deve ter despertado todos os gatos vagabundos da

vizinhança», pensou enquanto recolhia apressado a bolsa do chão. Todos,

menos Mar, que apenas se agitou em seu sono, isso sim, voltou em direção à

saída e tentou sair.

Gabriel teria preferido uma briga em um botequim cheia de

aragoneses alinhados contra ele, que voltar a observar aquele rosto.

Não pôde evitar, se aproximou da cama e se sentou nela. Vê-la dessa

maneira, dormindo, abandonada no sonho, provocou-lhe uma emoção que

nunca havia sentido.

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Soltou o que tinha na mão, estendeu o braço e tocou o seu cabelo.

Arrependia-se de ter sido tão cruel ao haver cortado seu cabelo de uma

forma tão brusca. Deslizou os nódulos pela bochecha. Era tão suave.

Desenhou o perfil dos lábios e sentiu o calor de seu fôlego escapando entre

eles. Não pôde, não quis se esvair daquele enfeitiço, inclinou-se para ela e a

beijou.

Pela última vez.

Gabriel não chegou longe. O destino decidiu que já tinha desafiado à

sorte muitas vezes e o deteve na forma de uma Feliciana contrariada.

—Você vai embora — ouviu quando passou na frente da cozinha.

Estava claro que o estava esperando. A mulher se sentou justamente

em frente da porta, e o aguardava com as feições irritadas, os cotovelos

apoiados na mesa e as mãos unidas. Era a viva imagem de uma loba

encolerizada protegendo a um de seus cachorrinhos.

Gabriel optou por entrar. Pelo o que conhecia dela, não era das que

permitiam um não por resposta. Além disso, devia a ela a ajuda para sair do

castelo.

—Sim —respondeu direto.

—Sabe que a sua ausência doerá nela.

—Não é a primeira vez que resulto ser uma decepção para ela.

—Não... Não é —confirmou Feliciana ao recordar que a tinha

abandonado no caminho levando todas as suas coisas—, Mas agora será pior.

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—Irá superar.

—Irá, mas não é esse o problema. Você sabe.

—Será melhor assim.

—Nem sequer vai ter a coragem de dizer o porquê.

Não era muito difícil imaginar que estava partindo às escondidas, só

não poderia ver o seu rosto.

—Há coisas que é melhor não falar, não preciso que seja entendido —

se desculpou.

Embora em seu foro íntimo, reconhecia que o que estava fazendo era

uma covardia.

—Não é seu caso. Ela é uma mulher excepcional.

—Essa é a razão pela qual eu vou embora —resmungou —. Ela merece

algo melhor; algo melhor que viver com um vagabundo que se vende ao

melhor trabalho para poder comer, algo melhor que perambular com um

viajante que não sabe o que vai encontrar pelos caminhos, alguém que em

uma noite pode viver como um senhor e em outra ter que pedir para

conseguir uma parte de toucinho, algo melhor que compartilhar o chão com

quase nada além de poucas mantas, ou ter sorte em uma noite jogos de

dados e encher as mãos de moedas e dois dias depois ter que pedir igual a

um mendigo.

—Não duvido que ela saberá escolher seu próprio caminho, mas você

a está privando de poder escolher por si própria. E asseguro que às vezes a

felicidade não está em ter um teto sob o qual se proteger, o celeiro cheio de

palha, a horta repleta de hortaliças e o curral abarrotado de animais. Vocês

têm que saber melhor que ninguém, pois vocês é que escolheram a vida que

levam.

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Gabriel ficou tenso. Aquelas palavras lhe doíam mais do que seria

capaz de reconhecer. Sempre tinha rido das reprimendas que o irmão Roger

lhe jogava pelo mesmo motivo. Entretanto, agora era diferente; aquela

mulher tinha aberto os seus olhos. A vida que tinha escolhera para si era

uma porcaria. E estava tocado em sofrê-la solitariamente.

—E eu lhes asseguro que às vezes um se equivoca com respeito aonde

pode estar à felicidade e achar que pode escolher pelo o outro — respondeu

com as mãos apertadas para não se deixar levar pela dor lacerante que lhe

atravessava o peito.

—Não é o caso de Mar.

—Isso é exatamente o que acontece.

Feliciana tentou atacar por outro lado.

—Ontem arriscou sua própria liberdade por você.

Gabriel ficou com um nó na garganta e não pôde responder até um

momento depois.

—Nunca o esquecerei.

—Mas não é o suficiente.

—Na verdade, o que fizemos ontem... é muito. É precisamente por

isso por que tenho...

Feliciana não o deixou continuar.

—Você não quer isso.

E não sabia só pelo timbre de sua voz e pela confirmação de suas

palavras, mas sim porque os tinha ouvido rir durante toda a noite. Ela

carregava sobre as costas muitas noites passadas com uma multidão de

homens e se estava certa de alguma coisa, era de que um homem e uma

mulher que não estavam apaixonados não riam enquanto faziam amor.

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—Isso não tem importância.

—Não irá trocar de opinião.

—Não.

Feliciana se rendeu.

—Parta então, antes que ela se levante.

Gabriel o fez, e foi.

—Cuidará dela? —murmurou, se virando da porta.

Feliciana, que seguia sentada na mesma posição em que a tinha

encontrado apenas uns minutos antes, assentiu. Gabriel desapareceu de sua

vista. Escutou-o chegar ao piso de abaixo e sair.

«E me encarregarei de recolher os pedaços.»

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CAPÍTULO 24

Mar despertou debaixo do cobertor. Tinha dormido muito bem. Fazia

meses que não despertava tão descansada. «Descansada e dolorida»,

murmurou assim que se estirou e sentiu uma pontada em todos os seus

músculos. Com os olhos ainda fechados, recordou os detalhes da noite

passada; Gabriel, seu tato, seu calor, sua pele, sua ternura, sua rudeza, sua

voz. Virou-se para acariciá-lo e encontrou o lugar vazio.

Já se levantou. Que hora seria?

A janela do quarto estava entreaberta e a claridade indicava que o dia

estava avançado.

Sentiu fome, entretanto, se atrasou em levanta. Ficou um momento

sob a manta se deleitando a sós com o que aconteceu. Teria tempo mais

tarde para compartilhá-lo com o Gabriel. E com Feliciana.

Sorriu ao recordar a excitação da mulher quando chegaram juntos e

ao lhe ceder o quarto para que se asseassem. Estava perdida em seus

pensamentos quando escutou que alguém entrava na habitação.

—É você, Gabriel?

A pessoa que tinha entrado demorou uns instantes em responder.

—Não, Mar. Sou eu, Feliciana.

—É muito tarde! — exclamou envergonhada de que sua amiga tivesse

tido que entrar para arrumar o quarto —. Agora mesmo arrumo —

acrescentou pegando a roupa que estava de lado.

Mas o frescor do ambiente lhe recordou que não vestia nada sobre a

pele e se cobriu de novo, sobressaltada.

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Feliciana se aproximou do vão e o abriu um pouco. O imprescindível

para poder ver seu rosto. Inquieta, aproximou-se até o lugar onde tinha

ficado jogadas a camisa e o vestido de Mar e os estendeu.

—Será melhor que se vista.

Mar assentiu enquanto esticava o braço para receber a roupa. Sentou-

se com as pernas penduradas do leito e começou a vestir-se.

Feliciana começou a secar algumas partes do piso, as que ainda

brilhavam com a água derramada na noite anterior.

—Eu farei isso — disse Mar, apurada, enquanto se agachava.

Feliciana tomou ar. Era o momento. A ajudou a se levantar e a

conduziu até a cama sem dizer uma palavra.

—Temos que conversar.

Más palavras.

—O que acontece?

—Trata-se de Gabriel.

—Vieram buscá-lo! — exclamou, ficando em pé.

A mulher puxou a sua mão e a obrigou a se sentar.

—Não é isso.

—Aconteceu algo ruim com ele?

Feliciana decidiu que depois de tudo não havia nada que explicar.

—Não, não. Só me deixe que lhe conte isso... ele partiu —soltou de

repente.

As pupilas de Mar saltavam dos olhos à boca da Feliciana em busca

de um sinal. Algo que indicasse que o que estava dizendo era uma

brincadeira.

—Não entendo o que você está dizendo.

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—Foi embora bem cedo — explicou — Não vai retornar.

Mar soltou as mãos de sua amiga e começou a se esfregar com elas de

forma insistente.

—E você sabe por quê...

—Porque ele disse que ia embora. O vi partir.

—Mesmo...

Feliciana voltou a segurar as mãos de Mar.

—Me acredite, eu tentei convencê-lo.

—Ele não ficou.

—Não.

—Não é homem que faça o que não deseja — constatou Mar de um

jeito muito tranquilo.

Feliciana esteve a ponto de abraçá-la, mas se conteve. A jovem estava

fazendo um esforço muito grande para manter-se serena e qualquer gesto de

ternura desestabilizaria essa contenção. Assim simplesmente ficou a seu lado.

Os sons da casa as devolveram à realidade. As garotas se levantaram e

começavam seu dia alegres, alheias a tudo.

—Teremos que arrumar o quarto —comentou Feliciana depois de um

momento.

Mar se levantou e rodeou o leito para situar-se do outro lado.

Ambas agarraram a manta pelas pontas, arrumaram a cama.

E ali, em cima do colchão, esparramadas sobre o lençol onde Mar

tinha entregado sua vontade e seu amor, jazia um montão de moedas ao lado

de um saquinho.

Feliciana ficou pálida. Viu Mar estender o braço e deslocar as

moedas com cuidado até formar uma fila. Depois, agarrou a bolsa, deu uma

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volta. Umas quantas moedas a mais, uma dúzia de libras francesas e o anel

que seu pai tinha lhe dado se uniram ao resto do dinheiro.

—Isto é o que valho para ele —balbuciou com voz apenas audível.

—Não acredito que sua intenção fora...

Mar a olhou furiosa.

—Me irá contar agora que sua partida foi o melhor que pôde me

acontecer! Não faz mal, já falo para você. Eu mereço isso, por me deixar

enganar como uma donzela.

Agarrou um punhado de moedas e as meteu no saquinho com raiva.

Dois punhados a mais e todas suas posses estavam guardadas. Colocou o

saco sobre o arca e comentou resolvida.

—Ao menos, me deitar com ele, serviu para algo — apontou enquanto

agarrava a bolsa e começava a sacudi-la com força.

Feliciana esteve a ponto de contar o motivo que Gabriel lhe

confessou na cozinha. Entretanto, não o fez.

Esquecer Gabriel seria menos doloroso se o odiasse.

Tinha sido um almoço do mais desagradável. Todas as garotas

sabiam o que tinha acontecido com ela e Gabriel, apesar de que nenhuma

tinha mencionado. Durante todo o almoço, estavam agitadas, a observando.

Mar não suportava ficar ali aguentando os olhares de pena, partiu para não

escutar o falatório incessante de Elvira, que explicava uma e outra vez a sorte

que tinha tido a noite anterior quando tropeçou com um dos nobres

franceses que acompanhavam o monarca.

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Sentada na mesa da cozinha, Mar tomou o poção medicinal ou

mágica que Feliciana a tinha obrigado a tomar. Ambas sabiam que a

consequência da noite passada com Gabriel não se limitava a um coração

quebrado, mas sim podia ter uma sequela muito mais grave, que se

evidenciaria meses depois. Feliciana não só tinha feito a infusão que acabava

de beber, como tinha entregado um pacote com a mescla que uma mulher

preparava especialmente para as garotas, e que tinha que tomar durante os

próximos sete dias. Mar não tinha perguntado o que era. Não faria falta.

Entre outros aromas e sabores mais suaves, pôde distinguir o intenso aroma

e o toque picante da arruda.

—Vou voltar para Estella —disse no mesmo instante quando a última

das garotas saía da cozinha.

Levantou e ficou ajudando Feliciana com o chão. Feliciana soltou o

trapo com o que esfregava as tigelas, que se afundou na água da terrina.

—Eu também acredito que será o melhor. E depois? Pensastes o que

irá fazer depois?

Mar segurou a terrina que Feliciana lhe entregava e encolheu os

ombros.

—Não. Nem sequer sei como vou chegar até lá.

—Isso não é difícil. A questão é encontrar a alguém que vá na mesma

direção que você.

—Sim...

—Agora... O que penso... — Feliciana deixou o trabalho e se

aproximou da porta enquanto secava as mãos na saia—. Ana!

Os passos da mais jovem da casa percorreram o corredor.

—Necessita algo de mim?

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—Você, que é tão devota da Santa Clara, necessita que pergunte às

monjas se conhecem alguém que saia em breve para Estella.

Ana entrou na cozinha seguida por Elvira.

—Por que? É que acaso irá voltar a percorrer os caminhos? —

perguntou esta com ironia.

Feliciana a ignorou por completo.

—Esta tarde posso ir — confirmou a jovem.

—Não, não, necessito que o faça esta mesma manhã.

Elvira voltou a se envolver no bate-papo.

—Tanta pressa tem «ela» por nos abandonar ou é que vai perseguir o

«amado»?

Mar, que tinha permanecido de costas, virou com uma expressão de

desgosto.

—Quer fazer o favor de se calar e partir !? Não têm nada que fazer

aqui! —gritou Feliciana.

A outra mulher fez um gesto de brincadeira e desapareceu de sua

vista.

—Que odiosa! Bem, como estava falando Ana. Mar quer retornar

para Estella e precisamos encontrar alguém que possa a acompanhar.

Melhor hoje que manhã.

—Entendo. Agora mesmo vou.

—Vou com você — Ofereceu Mar.

—Nem pensar. Não põe um pé na rua até o momento de ir —

apontou Feliciana—. Não quero que ninguém lhe veja. Vai Ana, vá o quanto

antes.

—Agora mesmo —respondeu Ana e saiu apressada da cozinha.

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—É uma boa garota, um pouco amalucada e charlatã, mas boa —

murmurou Feliciana antes de voltar para a tarefa.

Um momento depois, Mar pôde comprovar que o comentário de

Feliciana sobre Ana estava certo. Da janela da habitação observou que a

jovem logo que tinha dado dois passos pela rua, já se entreteve. Falava

tranquilamente com uma mulher que varria a rua diante da estalagem. Ao

que parece, tinha muitas coisas que para falarem, porque ambas tinham

abandonado suas tarefas.

Mar continuou as olhando da janela até que se despediram. Mas

Ana, em vez de seguir e desaparecer pela esquina da rua, deu meia volta e

voltou a entrar na casa.

—Feliciana! Mar! — gritava enquanto subia as escadas.

—Já retornaste? Impossível, não teve tempo de chegar até o convento

—comentou Feliciana que tinha saído a seu encontro.

—Não, não —ofegou Ana no meio do corredor.

—O que se acontece?

—A Maria da padaria me disse que amanhã acompanhará a sua irmã

parturiente à casa de seus pais.

—E o que tem que ver isso conosco?

—Que ao parece vivem em Villatuerta. E está perto de Estella, não?

—O que acontece? —perguntou Mar que acabava de unir-se às

mulheres.

—Tudo arrumado. Amanhã você parte —explicou Feliciana—. É o que

desejava.

—Sim.

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Embora fosse o que queria, sabia que se afastar do lugar onde tinha

devotado seu corpo e seu coração a Gabriel e onde tinha compartilhado com

ele as horas mais intensas de sua vida, não ia ser fácil.

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CAPÍTULO 25

Era novembro e o dia estava terminando; entretanto, Gabriel suava

como se estivesse arando a colheita sob o sol de julho. Doíam-lhe os braços.

Agora que o buraco estava bem profundo, se colocou dentro para continuar

cavando, lançar a terra por cima da cabeça era uma tortura para seus ombros.

Mas não podia parar. «Juro por minha honra que esta noite ocupa o posto

que lhe corresponde junto ao Altíssimo», balbuciou enquanto reatava os

esforços.

Uma hora mais tarde já tinha finalizado. Subiu à superfície se

apoiando na pá. O irmão Roger jazia no chão. Em uma vila próxima, tinha

encontrado uma capa velha, mas inteira e a tinha utilizado como sudário.

Aproximou do religioso até o bordo da fossa e, depois, saltou para dentro.

Conseguiu mantê-lo em seus braços e o depositou de barriga para baixo

sobre a terra, como mandava a ordem que se fizesse. Atrasou-se uns

instantes para sair dali, lhe custava se separar dele.

Uma vez do lado de fora, deixou a pá de lado e se ajoelhou.

Começou a ladainha dos treze padre-nossos, mas em algum momento seu

próprio cérebro lhe traiu e abandonou a segurança das repetidas preces, para

rezar com o coração com os seus desejos mais íntimos. E rezou. Como nunca

antes o tinha feito. Pediu por aquele homem que o tinha tratado como a um

filho, por havê-lo deixado morrer na frente de seus olhos, pelo resto dos

irmãos abandonados a sua própria sorte, por seu pai afogado, pela mãe que

nunca conheceu. Rezou por Mar, por sua segurança, por seu futuro e sua

felicidade. E rezou por si mesmo, por sua própria salvação, para poder

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suportar a solidão das noites e a dor dos dias. Rezou, rezou e rezou até que

deixou de reprimir a angústia e os soluços quebraram a serenidade do

cemitério.

Já era noite quando recuperou o aprumo suficiente para acabar com

o trabalho que tinha começado. Virtualmente às escuras, devolveu a terra ao

mesmo lugar de onde a tinha extraído. Na manhã seguinte, antes de

atravessar a porta do convento pela última vez, procuraria uma maneira de

pôr uma cruz sobre a tumba. O irmão Roger não descansaria em uma

sepultura anônima.

Entrou na igreja pela porta que a comunicava com o cemitério.

Segurou a tocha do lugar onde a tinha deixado abandonada horas antes e se

dirigiu à entrada principal do templo. Abrir todas as portas do monastério

abandonado tinha sido uma temeridade, sabia, mas não se importava. O

novo rei da França podia dar todas as ordens que quisesse, entretanto Vila

Vétula era seu lar e aquele jovenzinho imberbe que se proclamava rei não ia

lhe proibir caminhar por ali.

Atravessou o espaço que separava a igreja do monastério e entrou

nele. Segurou o portão com uma madeira, igual os monges levavam fazendo

mais de cem anos, e se aproximou do estábulo.

—O que, amigo? —disse ao cavalo, que tinha recuperado do estábulo

de Olite em que o tinha deixado, enquanto dava umas palmadas na garupa.

O animal lhe agradeceu a visita e voltou à cabeça para ele sem deixar de

ruminar. Gabriel sorriu pela primeira vez aquele dia quando viu as fibras de

feno que se sobressaía de entre seus dentes. Passou a mão pela testa —. Vejo

que já está se alimentando. Vou ver se eu encontro também algo para me

alimentar.

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A cozinha foi à primeira parada. Estava toda revolta. Todos os

utensílios tinham desaparecido. Faltavam as panelas, as jarras, todas as tigelas

e as colheres, as pás, as terrinas, os conchas de sopa, as frigideiras de ferro, a

pá do forno, os cestos, o fole, os dois braseiros que se reservavam para

quando os irmãos adoeciam... Aproximou-se da despensa. Vazia. Quem fosse

que tinha saqueado o convento, não deixou nada. A esse passo, não

encontraria nem um só punhado de aveia que levar à boca.

Tropeçou com algo que estava caído no chão. Aproximou a tocha e

viu uma tigela partida em dois. Aproximou-se até o chão. Dos seis jarros que

sempre se mantinham cheios de água, só ficara um, e estava quebrado; exibia

uma enorme rachadura até debaixo da alça.

Dois vasos quebrados. Aqueles eram todos os vestígios que ficavam

dos cavalheiros de Cristo que tinham habitado ali, fazia apenas sete dias.

Agarrou o recipiente e o agitou. Estava com sorte, ao menos por

aquela noite não teria que se aproximar até a cisterna para matar a sede.

Agitou com alegria o conteúdo do vaso, se desanimou quando o liquido

desceu pela garganta, lhe fazendo doer às tripas quando o conteúdo chegou

até elas e se dispôs a seguir explorando. Tinha decidido abandonar Vila

Vétula antes do amanhecer. Até agora, ninguém lhe tinha visto se

aproximar, nem subir pelas trepadeiras para penetrar na cidade, mas não ia

se arriscar a permanecer mais tempo que o imprescindível. Se os tesoureiros,

os síndicos ou quem levasse as contas reais não tinham aparecido já para

fazer inventário de todas as supostas riquezas que os templários

armazenavam, não demorariam em fazê-lo. E ele não ia estar ali para esperá-

los. Iriam levá-lo, como tinham feito com os domésticos que serviam aos

monges.

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—O que será agora desses desgraçados?

O eco das palavras se propagou pelo corredor do claustro até

dispersar-se na profundidade da noite.

Abrir a sala de monges e saber que nunca mais veria as figuras

brancas dos irmãos inclinados sobre o Evangelho lhe doeu o coração.

Percorreu o recinto com lentidão, saboreando a angústia que lhe provocava

não ter tido a valentia nem o atrevimento necessário para tirar todos os

irmãos da prisão. E só quando se castigou repetidas vezes por sua própria

covardia, continuou com o trabalho.

Primeiro, examinou as dependências comuns: o refeitório, a

biblioteca, a padaria, a farmácia... Tudo estava como imaginava, vazio.

Depois, seguiu com as celas dos irmãos. O tecido que devia cobrir o catre

tinha desaparecido na maioria dos casos e a palha estava pulverizada pelo

chão.

Esteve certo. Aquilo tinha sido obra dos aldeãos, de gente do povo e

que como ele procurava algo para comer e qualquer tipo de ferramenta era

válida, panelas, tecidos ou malha, do jeito que fosse, era um presente do céu.

Alegrou-se de que fora assim, de que os singelos pertences dos monges

tivessem acabado em mãos dos servidores e dos mais humildes e não

engrossando as arcas de algum agente real mais despachado que o resto.

Deixou a habitação do irmão Roger para o final. Passaria a noite

nela. A estadia não tinha nada de especial, nada que a diferenciasse do resto,

mas nela se sentia mais perto do monge. Aquelas seriam as últimas horas que

compartilharia com o ancião.

Quando entrou nela, viu que os ladrões também tinham aparecido

por ali. Juntou a palha e os ramos do antigo colchão de seu mentor,

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357

estendeu-as no chão e se deitou sobre elas. Apenas fechar os olhos. A palavra

que tinha estado lutando por abandonar na cabeça durante todo o dia lhe

golpeou com força em suas lembranças.

Mar.

Gabriel tomou ar, deu a volta e se dispôs a passar outra noite

acordado.

Despertou no meio da noite. Se não soubesse que naquele lugar só

contava com a companhia de seu cavalo, teria acreditado que alguém

pronunciou o seu nome. A luz da lua penetrava pela janela, que deve ter sido

aberta pelo vento. Gabriel ignorou a rajada de ar que o obrigava a encolher-

se de frio e se encolheu de frente à parede.

De nada serviu. Um momento mais tarde e ainda não tinha

conseguido conciliar o sonho de novo e, se por acaso fosse pouco, tremia de

frio.

Levantou-se a contra gosto. Ou fechava aquela janela ou amanheceria

com o cabelo coberto de geada. Tinha dado uns passos quando algo rangeu

sob seus pés nus. O vento tinha empurrado para dentro da cela as folhas

secas da figueira da horta. Mas o seguinte passo lhe confirmou que aquilo

que pisava não era uma folha, não ao menos das que caem das árvores.

Reconheceu a fina textura da pele de cabra suavizada até o

inexprimível para convertê-la em um pergaminho. Este ainda contava com a

cinta que o atava.

Soltou-a e se aproximou da janela. Desdobrou-o com impaciência.

Sem dúvida era a letra do irmão Clemente. Virou o pergaminho e

esquadrinhou a assinatura. A cruz temblaria desenhada junto ao nome do

comendador, clareou todas as dúvidas.

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E atraiu outras novas. Que fazia aquela nota na cela do irmão Roger?

Qualquer um dos soldados podia ter tirado dos aposentos do principal e

havê-la abandonado ali. Ou podia ter sido um dos aldeãos enquanto

espoliavam o convento.

Recordou então que na última visita tinha descoberto o irmão

Clemente entregando uma missiva ao irmão Roger e que este a tinha

escondido entre a roupa quando ele tinha aparecido. Seria a mesma?

Outra rajada de vento, que quase lhe arranca o pergaminho da mão,

recordou qual era a prioridade naquele momento. Fechou a claraboia e se

dispôs a conciliar o sonho. Na alvorada averiguaria do que tratava à missiva.

As horas passavam, Gabriel seguia dando voltas no catre e a aurora

parecia ter entrado em acordo com a lua para não alcançar o dia. E não era o

frio o que lhe impedia de dormir; a culpa por não conseguir voltar ao sonho

era daquele documento.

Não teve alternativa que se levantar e voltar a abrir a janela.

O documento dizia:

Anno Domini millesimo trecentesimo septimo et quot vigesimoquinto

kalendas october. Ao abade do monastério do Iranzu.

Gabriel saltou as palavras de louvor e não parou até que seus olhos se

detiveram em seu próprio nome.

... rogo a você que atendam esta solicitude em favor do portador da missiva,

Gabriel Etayo...

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Apesar das aulas que os irmãos tinham lhe ensinando a ler e escrever

em latim, teve que repassá-la duas vezes para compreender o que dizia.

Quando o fez, se refugiou de novo no lugar que encontrou a carta e a

manteve apertada contra o peito.

No final, se cumpriam os piores prognósticos, aquela seria a segunda

noite que passaria acordado.

Mar esperava no meio da rua para que a taberneira saísse de uma vez.

Feliciana e o resto das garotas tinham insistido em se despedir, e estavam

com ela.

—Hoje não sairá o sol — comentou Ana, olhando as nuvens que

apareciam na parte de céu que os beirais das moradias deixavam à vista.

— Mas para algumas isso não é um impedimento para conspirar —

balbuciou Feliciana.

Todas as olhadas se dirigiram para o final da rua, bem a tempo de ver

Elvira desaparecer pela esquina.

—Mulher, será que vai a um serviço urgente — mofou uma das

moças.

—A casa de alguém que não pôde dormir esta noite — riu outra.

—Seja o que seja, ficaria mais tranquila se a vizinha aparecesse o

quanto antes e partissem de uma vez — respondeu Feliciana em voz baixa

para que Mar não o escutasse.

—Acredita...?

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—A esta altura penso algo, mas certamente não acredito que os

franceses saiam para se entreter com umas desgraçadas como nós. Se até

trouxeram suas concubinas! Pude-as ver com meus próprios olhos.

—Pois eu não fico sem saber o que traz Elvira entre as mãos.

—Ana! — clamou Feliciana para tentar detê-la. Entretanto, a moça já

corria para longe de seu controle.

A mulher se amaldiçoou por ter expressado as suas suspeitas em voz

alta e por não ter podido controlar a jovem. Não queria nenhum problema

com Elvira e menos ainda estando com Mar. Não confiava naquela mulher.

Suspeitava que as brigas dialéticas fossem um incentivo para qualquer

manobra que pudesse imaginar para feri-la. E quanto antes desaparecesse

Mar, melhor. Uma pessoa a menos para machucar.

A exclamação de Feliciana tirou Mar de seus próprios pensamentos.

—Aonde vai Ana?

—Foi saudar uns conhecidos que viu no fim da rua — respondeu.

—Foi rápido, porque já retorna.

Era certo, a jovem se aproximava de novo tirando o chapéu de palha

da cabeça e o jogando sobre os ombros. Quando chegou até elas, se colocou

ao lado de Feliciana com a expressão inocente.

—E bem? — sussurrou a mulher assim que Mar se virou para a porta

do botequim.

—Tinha razão. Está na esquina da rua de São Pedro com dois

homens. Um deve ser o cavalheiro de que falava ontem porque estava com

ricas roupas.

—E o outro?

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—O outro estava de costas, mas pelos buracos que levava nas meias

não era um cavalheiro.

—Pode escutar algo?

Ana negou.

—Não me atrevi a aparecer muito.

O cochicho acabou quando o olhar de Mar caiu sobre elas.

—Não teríamos que voltar a chamar?

—Suba e pergunte a essa mulher se vou ter que esperar toda a manhã

na sua porta — ordenou Feliciana a Ana sem deixar de esquadrinhar a

esquina da rua pela que tinha desaparecido Elvira.

Mas para alívio de todas, a taberneira apareceu na soleira com uma

sacola na mão.

—Já estou pronta!

—Já era hora!

Feliciana se afastou da recém-chegada sem dar outra palavra, se

voltou para Mar e a estreitou entre os braços.

—Não pode imaginar o que estes dias significaram —confessou Mar a

ponto de ficar em soluços—. Não esquecerei nunca o que têm feito por mim.

Feliciana sorriu emocionada.

—Fará, me esquecerá — acrescentou a mulher, limpando as lágrimas

que Mar não tinha podido conter e que corriam pelas bochechas.

—Não. Não o farei.

—Se não esquecer por completo, ao menos o suficiente para que não

vos incomode tanto — acrescentou fazendo alusão à desgraçada relação com

Gabriel —. Recorde o que lhe digo, tudo é questão de tempo. Você só tem

que se concentrar em seguir respirando o minuto seguinte, a hora seguinte, o

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dia seguinte e, ao cabo dos anos, até as piores lembranças acabam

provocando um sorriso quando retornam à mente.

—Vamos? —Impacientou-se a outra mulher.

Não houve tempo para mais. Ana deu um empurrão em Feliciana e a

substituiu para poder abraçar Mar e, depois, fizeram-no também o resto das

garotas.

Quando as viajantes empreenderam a marcha, as mulheres

retornaram ao bordel. Feliciana demorou um último minuto para vê-las

desaparecer pela esquina da rua.

«De volta à realidade», pensou enquanto subia as escadas e escutava o

falatório das moças na cozinha.

Assim que saíram de Olite, a irmã da padeira começou a falar e não

se deteve em toda a viagem. Era uma moça alegre e jovial e com uma

vitalidade que o avançado estado de gestação não tinha podido abrandar.

Seu marido tinha preparado uma pequena carroça, puxada por um burrinho

para que se deslocasse mais comodamente, mas ela insistia que se encontrava

muito bem e foram inumeráveis as ocasiões que descia e cedia o lugar a sua

irmã, a Mar ou ao pequeno criado que as acompanhava com o encargo de

protegê-las de qualquer perigo que encontrassem.

E assim, entre brincadeiras fraternais, falatórios locais, remédios

caseiros, receitas culinárias e comentários sobre os viajantes e descarados que

se alojavam na hospedaria, o dia passou sem que Mar tivesse tempo para

ficar com pena de si mesmo.

—Conte outra vez a história desse homem que golpeou o outro dia.

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—Mas se já sabe o que aconteceu.

—Relate de novo.

—Irmã tem um marido jovem que cumpre seu encargo com

perfeição! —fingiu ficar escandalizada a padeira.

—Se cale e comece — insistiu a grávida.

—É o homem mais bonito e alto que vi nunca — começou para

distração de sua irmã.

—E o melhor é que o tive a seus pés por um momento.

—Não seja cruel! O golpeou e estava sem sentidos no chão.

—Isso é o melhor que pode acontecer a uma mulher. Ter à elegância

em pessoa, inconsciente e a mercê unicamente dos desejos próprios.

Mar não teve mais alternativa que sorrir ante os nada recatados

comentários da futura mãe.

—Por desgraça durou pouco, voltou em si em seguida e se apresou a

me mandar para baixo.

—O descreva.

—Outra vez?

—Sim, pois nossa companheira de viagem não teve a honra de escutá-

lo.

Apesar da cara de resignação da padeira, Mar pôde apreciar que

estava encantada de fazê-lo.

—Já disse que era alto e bonito. Tinha os olhos muito finos, da cor da

terra no inverno; o nariz reto e comprido; os lábios bem formados,

vermelhos como um morango amadurecido; o queixo bicudo; levava a barba

meio comprida, o cabelo castanho e as longas mechas cobriam o pescoço de

um modo muito atraente.

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—Não sente saudades que tenha faltado tempo para ir em seu auxílio.

Mar perdeu o fio da conversa. Sabia perfeitamente de quem era a

descrição daquela mulher. Fazia duas noites o tinha tido entre os braços, se

derretendo entre suas pernas, tinha-o beijado, tinha-o abraçado, tinha-o

amado, faria o que fosse por ele, até ir ao inferno para trazê-lo de volta se

tivesse sido necessário. E ele a tinha rechaçado. A usou para distraí-lo da

aflição da perda da morte do monge, como um tratamento para combater o

frio que provoca a perda de um ser querido e da dor que penetra até os

ossos. A usou como alternativa para aliviar a tristeza dele. Não tinha sido

para ele mais que uma mera enfermeira, analisou pela milésima vez aquela

tarde.

Tiveram que passar a noite pelo caminho. Tinham percorrido mais

de cinco milhas desde que saíram pela manhã e ainda faltavam outras quatro

até Villatuerta. E outra mais até Estella.

Tombada sobre o chão, olhando ao escuro infinito, evitou pensar o

que faria quando chegasse a seu destino, ao mesmo lugar que tinha saído

uma semana antes. Voltava, sim, mas derrotada, desencantada, desiludida.

Apaixonada e abandonada. Ao longe ficavam as infantis ideias de procurar

um futuro mais excitante! Agarrou-se à imagem bondosa da senhora

Manuela e de Isabel, e descartou no momento as explicações que teria que

dar. Já confrontaria esta situação quando chegasse o momento, se ajeitou

enquanto dava a volta e se deitava para fazer encarar outra noite.

Despertou muito antes que o resto. As irmãs jaziam abraçadas sob o

manto que jogaram por cima do corpo. O moço, que tinha se refugiado

depois das rodas do carro, ainda dormia.

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Não obstante, a sorte esteve ao seu lado, que o improvisado

acampamento começou a marcha muito cedo e não teve tempo para pensar.

A jornada transcorreu igual no dia anterior e as léguas passaram com

rapidez sob o folguedo das graças das irmãs. Mar começou a marcha

meditando, mas ante a terceira pergunta maliciosa de suas companheiras de

viagem decidiu dar mais atenção às brincadeiras. Era uma boa maneira de

desaparecer seus próprios problemas. Assim retardou o passo para ficar a

lado das irmãs e se dispôs a entreter-se com a companhia.

E continuou. Até que o povoado de Villatuerta apareceu no

horizonte e o temor ao incerto futuro pesou em sobre seus ombros.

Os caminhos se separavam naquele ponto.

—Nossa mãe estará encantada de poder lhe saudar — assegurou a

padeira depois de atravessar a ponte sobre o rio Iranzu.

—Agradeço o convite, mas estou desejosa de continuar — mentiu

Mar.

—Pode ir — acrescentou à grávida, piscando um dos olhos — . Estou

certa que alguém estará te esperando em Estella, aguardando com ânsia ver

você aparecer.

Mar fingiu se ruborizar com aquele comentário e deu dois beijos

apressados a cada uma delas.

—Não podia ter encontrado melhores companheiras de viagem —

afirmou com a certeza de que o comentário era verdadeiro —. Desejo-vos

todos os parabéns para quando chegar o nascimento — disse à futura mãe.

As irmãs lhe dirigiram um sorriso sincero e Mar avançou para o

caminho de saída da população.

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—Não o faça esperar muito! — escutou justo quando chegava à curva

da rua.

As risadas de suas companheiras de viagem lhe acompanharam

durante a descida do povoado, ao mesmo tempo em que as pedras dos

alicerces do castelo de Olite lhe agitavam o estômago.

Uma légua, trezentas braças e uma jarda depois, as pedras brutas lhe

tinham subido até a garganta e ameaçava, parecia que estava se afogando.

Vinte passos mais e teria retornado. Esteve a ponto de dar de a volta. Mas

fugir era um absurdo, não tinha nenhum sentido.

Tropeçou quando um homem que conduzia uma mula carregada

com duas braçadas repletas de nozes colidiu com ela. O rústico nem se

desculpou. Advertiu que os soldados da porta a observavam com interesse e

se despreocuparam dos outros transeuntes que atravessavam a soleira da

Porta de Castilla.

Nesse instante, uma gota de chuva molhou a sua bochecha. Mar

elevou os olhos para o escuro céu, exalou um suspiro e se decidiu.

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CAPÍTULO 26

Atravessou a rua de São Nicolás com a cabeça coberta pelo capuz da

capa e a vista baixa nos paralelepípedos do chão. Se cruzou com alguém

conhecido, nem percebeu.

Chegou à praça da Casa de Juntas em um suspiro. Ainda não tinha

reunido coragem para bater na porta da senhora Manuela e se enfrentar com

ela, assim tomou o mesmo caminho quando o regente entrou em Estella.

Tinha a esperança de que o novo ourives não tivesse se recuperado

ainda da lesão e ela pudesse refugiar-se em seu antigo lar por umas horas.

Queria ter um pouco de tempo para pensar em como ia explicar o motivo de

ter voltado, e teria que refletir sobre o que iria falar e o que não poderia.

Rodeou as moradias dos habitantes da rua das Lojas pelo exterior.

Passou em cada uma das ruelas que desciam até a via em que tinha habitado

todos aqueles anos e não pariu até ter encontrado com a muralha que

separava o bairro dos francos e dos judeus. Agora sim, não havia mais

alternativa que se encaminhar até a rua principal. Rezou para que o senhor

Nicolás já tivesse fechado a carpintaria e estivesse na cozinha à espera que

sua mulher tivesse lhe servindo o sustento.

Por sorte, a rua estava quase deserta. Já entardecia, as portas da vila

estariam a ponto de se fechar e a maioria dos habitantes terminando a

jornada para se recolheram em suas casas. Todos menos o senhor Nicolás,

que permanecia na oficina, trabalhando incessante, só teria que ter uma vela

iluminando.

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Mar trocou de planos quando viu aberta a porta da carpintaria.

Voltaria até a praça e iria passar pela rua da Casa de Juntas, dessa maneira

não teria que encontrar com ele tão cedo. Deu a volta e fugiu do perigo o

mais depressa que permitiram as pernas. Não chegou longe. A figura do filho

do comerciante retornando pela Ponte do Cárcere a obrigou a repensar sua

decisão recém-tomada. Não podia deixar que aquele ordinário a visse. Não

perderia a oportunidade de perturbá-la. Voltou a percorrer o mesmo

caminho sobre as lajes úmidas até que chegou à esquina da carpintaria e

entrou pelo canto que chegava até o rio. Escondeu-se entre as sombras e

colocou o capuz para se ocultar ainda mais.

Se atravessasse o pomar da senhora Manuela e saltasse o muro,

estaria em casa. Isso se caso Deus tivesse escutado suas preces e a casa não

tivesse sido ocupada. Mas era muito arriscado. Sabia que a porta da cozinha

da mãe de Isabel estava aberta, com razão a panela estava sobre o fogo, como

aconteceria nesta hora. A única possibilidade de entrar na horta dos vizinhos

era se quisesse que a convidassem para jantar. E, certamente, não era o caso.

Esperou uns instantes, mas o filho do comerciante não passou na

frente da ruela. Esperou outro tanto. E um pouco mais. Nada aconteceu.

Decidiu aparecer.

Não pôde evitar fazer um gesto de desgosto quando o viu, um pouco

mais à frente, antes de chegar onde ela estava. Aquele repulsivo homem

parou para conversar com uma pessoa que Mar não identificou. Refugiou-se

de novo na escuridão.

Um momento mais tarde ainda seguiam ali. Todos eles. Os homens

no meio da rua, ela escondida e a senhora Manuela na cozinha.

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—Avô! Diz a sua avó para entrar de uma vez, você vai ter que ir lhe

buscar na oficina.

Mar não pôde evitar sorrir quando escutou o grito de Teresa saindo

da cozinha. Imediatamente, ouviu como o senhor Nicolás fechava de um

golpe a porta que dava para a rua. Um problema a menos. Já podia passar na

frente da casa sem perigo. Agora só restava o filho do comerciante

desaparecer.

Mas, como comprovou muito tempo depois, aquele bruto não tinha

nenhuma intenção de facilitar. Ele e o cupincha seguiam conversando, e o

pior de tudo era que de vez em quando jogavam uns olhares de soslaio na

direção em que ela se encontrava. Descartou sair correndo sem que os

homens a vissem.

—Menina, diga a sua mãe que desça e venha comer! — voltou a

escutar à senhora Manuela.

Mar recebeu a notícia com regozijo. Aquela era a oportunidade que

esperava. De onde estava situada a família logo a veria. Esperou até que os

chiados do banco parecem, indicando que já se acomodaram e, ajudada por

umas pedras que se soltaram da parte exterior, saltou o muro e entrou no

pomar. Passou sobre as couves e as ervilhas com cuidado para não esmagar as

folhas, vez ou outra jogava fugazes olhares para dentro se por acaso alguém

levantasse e a descobria.

Teve sorte. Alcançou a seguinte ruela sem que ninguém a impedisse.

«Agora só falta saber se a casa continua desabitada», disse na frente da parede

de sua própria horta. Só havia uma maneira de averiguá-lo, dar a volta na

casa e golpear a porta. Repetiu o processo e esperava que em poucos

instantes, estivesse dentro da casa.

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Mar observou a fachada traseira da casa que tinha sido seu lar até

uma semana atrás. A escuridão e o silêncio mais absoluto a envolveram.

Aquele era o melhor dos sinais.

Só teve que se esforçar um pouco e com um par de empurrões

conseguiu entrar na moradia. Com dificuldade, alcançou umas finas

madeiras e a pederneira e pouco depois uma pequena chama crepitava ante

os seus olhos. Tirou uma pá da chaminé e, com ela na mão, observou o que

a rodeava. Tudo estava como ela tinha deixado. Não havia presença humana

alguma entre aquelas paredes.

Desprendeu-se da capa molhada, que pendurou do suporte da

chaminé, guardou a pá ao lado, fixou as portas e as janelas com cuidado para

que nenhuma fresta de luz escapasse por elas. Alimentou de novo o fogo

arrojando outros três troncos sobre ele e, depois, procurou algo para comer.

Duas maçãs abandonadas jaziam no chão onde se armazenava a lenha. As

manchas escuras na pele de ambas indicavam que estavam a ponto de ser

mais aptas para os porcos que para ser consumidas por um humano, as

limpou com a saia dizendo que não estava em condições de escolher,

aproximou um dos tamboretes do lar e se sentou nele disposta a dar conta

do banquete.

Sabia que poderiam descobri-la pela fumaça da chaminé, mas isso

seria na manhã seguinte, quando a vila voltasse para a vida. Agora o único

que desejava era ter a noite para organizar os seus pensamentos e para

analisar a situação com serenidade, pensou enquanto que dava uma dentada

na fruta menos danificada.

Mar não tinha chegado à metade da maçã quando escutou o ruído.

Não fazia nem cinco minutos que tinha revisado a casa e a tinha encontrado

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vazia. Aguçou o ouvido para descobrir de onde procediam os sons. Com

sorte, um gato guia de ruas tinha convertido o porão em seu lugar de caça.

Só que os gatos não movem trincos nem tampouco empurram

portas.

Ficou em pé com cautela e pegou o atiçador quando viu que a porta

da oficina se abria lentamente.

—Não se esconda —falou uma escura figura recortada nas sombras—.

Sei quem é você.

Mar ficou emocionada quando escutou a voz infantil. Não reagiu até

que as gordinhas mãos penduraram no seu pescoço.

—Teresa!

Apressou-se a abraçar à menina. Deixou cair o gancho no chão, que

fez um som muito mais estrondo do que o desejado.

—Retornastes! —exclamou a menina enquanto soltava uma risada

nervosa. Ergueu-se entre os braços que a protegiam e ficou muito séria—.

Mãe disse que não iria retornar nunca mais.

—Isso era o que eles pensavam. Eu também —confessou Mar,

soltando os cachos da menina que estavam esmagados ao estreitá-la.

—Aconteceu algo com você? Irá voltar e partir com ele?

—Com ele?

—Com seu prometido. Com o Gabriel. Eu gosto.

Gabriel podia ser o mais encantador dos homens se lhe interessava.

O tinha visto em ação, com ela, com a menina. Um homem de êxito. As

enrolou completamente e ambas tinham caído a seus pés.

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—Sim, suponho —balbuciou com lentidão.

—Veio com você? Está aqui? —acrescentou a menina, olhando a seu

redor.

Mar a depositou no piso.

—Não, não veio. Vim sozinha.

—Ele morreu?

—Como?

—Um de meus tios morreu e minha tia voltou para casa com o avô.

Mar suspirou, recolheu o ferro do chão e aproximou outro assento

junto ao fogo.

—Venha se sentar. —Teresa se deixou levar. Mar começou a falar sem

soltar as suas mãos—. Gabriel não morreu, só partiu.

—Aonde?

—Não sei.

—Se foi sem você? Um prometido nunca parte sem sua noiva.

Quando se vão, se casam e têm filhos.

—Às vezes as coisas dos adultos são um pouco complicadas e

acontecem coisas que fazem que a gente mude.

—Ele a trocou e já não a quer mais.

—Algo assim — acrescentou Mar, encolhendo os ombros.

A menina voltou a abraçá-la.

—OH, Mar! Não fique triste. Eu queria que se casasse com ele, mas

me alegro de que não o tenham feito porque assim retornastes e já não

partirá nunca mais.

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Às escondidas, Mar limpou a lágrima que ameaçava escapar. Tinha

que se controlar ou acabaria sendo consolada por uma menina de seis anos.

Inspirou fundo, compôs seu melhor sorriso e separou de Teresa.

—Jantou?

A menina assentiu.

—A avó fez sopa de couve. Agora está limpando os pratos e o avô

dormiu sobre a mesa. A avó diz que ronca como os leitões do senhor Elías —

acrescentou entre risadas.

—Teresa! —repreendeu Mar enquanto se esforçava para se controlar e

não acabar rindo como a menina—. E você aproveitou para escapar de casa.

—A Vi passar pela horta quando caiu a minha colher.

—O que disse a sua avó?

Teresa fez um gesto cortante.

—Não.

Mar suspirou. Ainda tinha umas horas para planejar a versão que ia

contar e tinha que recordar a informação que tinha dado à menina para não

se contradizer.

—Boa garota.

—A outra vez me escapou.

Mar não entendia ao que se referia à menina.

—O que é o que lhe escapou?

—Gabriel me pediu que não contasse a ninguém que tinha lhe visto,

mas o fiz.

—A quem disse?

—A mãe. E ela o contou à avó e se zangaram muito — explicou com

uma careta.

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—Comigo?

—Sim.

Mar levou a mão à frente.

—Ai, Meu deus!

—Me perguntaram muitas coisas.

—Que coisas?

—Como se chamava, como era, de onde tinha saído, do que o

conhecia...

—E você o que disse a elas?

—Que era muito alto e muito bonito.

—E que mais?

A menina voltou a rir.

—E que tinha o cabelo comprido como das garotas, mas que era um

menino porque ia se casar com você.

Mar não pôde evitar soprar várias vezes. As coisas estavam se

complicando mais. Agora também tinha que explicar a presença de Gabriel.

—E elas o que disseram?

—A avó gritava que estava louca e mãe respondia que não se

preocupasse porque já tinham partido e que certamente nenhum vizinho

teria visto. E me fizeram lhes prometer que não contaria nada a ninguém. E

cumpri.

Mar acariciou o seu cabelo.

—Boa garota.

Ambas ficaram em silêncio enquanto observavam como as chamas

devoravam a madeira. Mar reatou a frugal janta.

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—Não têm mais comida? — perguntou Teresa assim que se deu conta

de que não havia nenhuma panela sobre o fogo.

—Não. Quando cheguei, só encontrei isto.

Teresa não pensou um momento e saiu trotando.

—Vou pedir a avó comida para você! — gritou da oficina antes de se

agachar para voltar a sair pela greta.

Mar se incorporou alarmada e as maçãs rodaram pelo piso.

—Não! Teresa! Não vão! —insistiu enquanto se equilibrava para a

porta da rua.

Lutou com a fechadura até que recordou que a casa estava fechada

com chave. E a chave estava em poder da senhora Manuela. Ela mesma a

tinha entregue antes de partir para que a fizesse chegar ao novo de ourives.

Fora quem fosse que a tivesse nesse momento, não passaria muito tempo

desde que a menina chegasse à casa de sua avó e explicasse o acontecido até

que alguém se apresentasse na casa.

Rendeu-se a evidência. O tempo tinha finalizado. Assim retornou à

cozinha, recolheu as maçãs e se sentou para esperar que a tirassem de seu

esconderijo.

As vozes não demoraram em chegar da rua. Uma voz feminina se

sobressaía sobre as demais. Mar ouvia os sons. Não era da senhora Manuela

mas sim de alguém mais jovem. «Isabel», disse.

Quando escutou o som metálico da chave encaixando na fechadura,

se levantou, se aproximou da entrada e compôs seu melhor sorriso. Os

surpreenderia. Seriam recebidos como faria a digna herdeira da coroa da

França, embora só fosse a parente mais pobre do conde de Bretanha.

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Mas a surpreendida foi ela. E não só porque logo que abriu o portão,

encontrou o rosto da senhora Manuela, mas sim porque esta acompanhava

uma moça. O candil que comportava se elevou à altura do rosto de Mar.

—Margheritte Roux? —perguntou a jovem.

Mar assentiu e a garota se aproximou.

Uma vistosa mulher, que tinha permanecido oculta, apareceu na sua

frente. Vestida de verde esmeralda, se cobria com uma capa azul, a que

tinham acrescentado uns arremates dourados. Os enfeites de seu cabelo, da

mesma cor que do vestido, estavam presos com uma delicada fita. Mas o que

mais lhe chamou a atenção de Mar foi seu semblante emocionado.

—Querida prima! —exclamou antes de se equilibrar sobre ela e

estreitá-la nos braços na frente do olhar atônito da senhora Manuela.

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CAPÍTULO 27

O ímpeto da mulher obrigou Mar a dar um passo atrás. A

desconhecida aproveitou a oportunidade e entrou no interior da oficina

seguida da criada.

O olhar aturdido de Mar passeava do rosto da senhora Manuela, que

continuava na rua sem se decidir entrar ou não para a elegante figura que

acabava de irromper em sua casa. Levava dois dias pensando no que diria

primeiro, quando tivesse que explicar sua presença em Estella e agora,

quando estava diante da vizinha, ficava sem palavras.

—Irá continuar aí parada sem tratar com atenção sua convidada? —se

adiantou a amiga com um gesto sério—. Manhã haverá tempo para

conversarmos —lhe advertiu ao mesmo tempo em que a chave que Mar,

havia sido entregue uma semana antes, voltava para as suas mãos.

—Claro —respondeu tentando atuar com serenidade—, amanhã

contarei o acontecido.

A senhora Manuela não respondeu. Mau sinal.

Mar se atrasou tudo o que pôde. Se aquela mulher era a pessoa que

acreditava, não entendia o que fazia em sua casa quando se supunha que

devia estar esperando-a em Rennes. E se não era... Preferiu não pensá-lo e

fechou a porta à umidade exterior. O ruído ao dar volta à chave lhe pareceu

muito como a pluma do inquisidor que rubrica a sentença de culpa. E o pior

era que ela mesma se trancava com o possível inimigo.

Mas, a ideia de que aquela mulher pudesse ser seu parente próximo,

estimulou a sua curiosidade e a forçou a voltar. A criada e a proprietária dos

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baús, já tinham deixado para trás a oficina e entrava na cozinha. Dirigiu-se

para lá.

A mulher soltava a laçada que atava a capa, salpicando com as gotas

da chuva que ainda caíam.

—Meus baús —ordenou à criada enquanto soltava o objeto úmido a

jovem criada.

A garota a acomodou junto ao fogo para que se secasse e saiu

apressada. Quando passou ao lado de Mar, esta lhe entregou a chave

envergonhada. Ficou tão surpreendida com a visita que nem parou para

pensar que sua prima chegava com bagagem.

—Perdoe minhas maneiras ao chegar a seu lar sem uma nota de aviso

—começou a falar a mulher em castelhano, mas com um forte acento francês.

—É verdade, é você?

—Sua prima, quer dizer?

—Sim.

—É obvio, querida — assegurou enquanto abria um sorriso radiante e

apertava as mãos de Mar para tranquilizá-la—. Sou Blanche de Dreux e vim

lhe buscar para levá-la comigo.

Sem soltá-la, a recém-chegada conduziu Mar até os assentos situados

na frente do fogo, os mesmos que Mar e Teresa tinham estado conversando

fazia um momento, e a obrigou a sentar-se. Trocou para o francês e começou

a narrar os fatos como tinham acontecido.

O enviado que tinha mandado para buscá-la tinha adoecido antes de

sair da França e tinha morrido pelo caminho. Mas ela, Blanche, não tinha

recebido a notícia até um tempo depois e, quando foi informada do

desgraçado sucesso, decidiu que não podia esperar mais para ter à prima

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379

amada a seu lado para sempre. Inteirada de que o infante da França tinha

partido para ser coroado monarca de Navarra, solicitou uma autorização à

corte francesa para viajar com o cortejo real. Partiu com urgência assim que

o salvo-conduto esteve em suas mãos. Tinha alcançado à comitiva real

quando esta já tinha saído de Burdeos.

—E após a acompanhei com o único afã de que chegasse o momento

de lhe encontrar — assegurou Blanche emocionada enquanto a afagava de

novo entre os braços.

Mar logo que conseguiu balbuciar umas poucas palavras de

agradecimento, a abandonou para organizar as questões domésticas.

Muito tempo depois, bem tarde da noite, dava voltas na cama sem

poder conciliar o sonho. Sentia-se culpada. Não sabia por que, mas o zelo do

único membro da família que tinha interesse em conhecê-la não conseguia

comovê-la. Não, não o fazia. Nos últimos sete dias tinham acontecido tantas

coisas, tinha conhecido tantas pessoas e foram revolvidos tantos sentimentos

que não sabia o que desejava. Sua prima tinha vindo para procurá-la, mas ela

não queria acompanhá-la. Deu-se conta disso, assim que foi consciente de

quem era a pessoa que tinha na sua frente. Além disso, desde que Blanche

tinha finalizado o relato só aparecia em sua mente estranhas interrogações,

que não fazia mais que dar voltas e voltas.

Onde tinha aprendido a falar castelhano?

Se o rei e todo o séquito real se alojaram no castelo da vila uma

semana antes, por que não tinha aproveitado esse momento para procurá-la?

Também resultava muita casualidade que a aparição de Blanche tivesse

coincidido com sua volta.

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Embora o assunto que mais lhe intrigava era conhecer a razão pela

qual uma aristocrata da França preferia se estabelecer na casa da filha de um

artesão —por muito parente que esta fosse — ao invés de procurar uma

estadia mais de acordo com sua posição.

Uma semana depois tinha resposta para todas as perguntas.

Sua prima contou que tinha uma especial inclinação para conhecer

línguas novas e que, quando se inteirou de que o irmão mais novo de seu pai

se estabeleceu na Península, lhe surgiu um grande interesse em aprender

aquele idioma.

Com respeito à segunda questão, Blanche tinha feito uma precisa

descrição dos deveres e obrigações diárias dos integrantes das cortes

europeias e deixou claro que seria impossível escapulir dos compromissos

oficiais enquanto estivesse em Estella.

Também tinha explicado que as obrigações do monarca em Navarra

tinham finalizado e que breve, duas semanas a mais, partiriam para retornar

para a França, com elas como integrantes da comitiva.

Mas a última questão seguia no ar, adicionada à lista de incógnitas

sem resolver ainda.

Qual era o lugar que se dirigia quando desaparecia durante várias

horas sem a companhia da criada que a acompanhava? Ela insistia que

percorria um por um os nove templos de Estella; eram expedições que seguia

com a visita à igreja do monastério das Clarisas, pois seu ardor era tão

grande que a obrigava a prostrar-se aos pés da Santa antes de retornar ao

domicílio da rua das Lojas.

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E havia outras coisas que faziam Mar duvidar de que suas afirmações

fossem certas.

Em uma ocasião, em que as três mulheres estavam inclinadas sobre

os trabalhos que Mar tinha desempoeirado do fundo do baú de seus pais,

Blanche lhe tinha confessado com muita aflição, o desconsolo que a tinha

invadido quando o abade do Irache lhe entregou a missiva em que lhe

explicava que a filha de Alienor Roux tinha abandonado os monges que a

acompanhavam e tinha desaparecido do nada.

Mar ficou atônita pelo que aquela declaração significava.

Que fazia o pai Guillelmet entrando em contato com Blanche sem

consultá-la? Além disso, quando e onde tinha entregado aquela suposta nota,

se quando Gabriel a separou pela força do acampamento, sua prima viajava

de um lugar a outro em Navarra? E o que resultava mais intrigante, como

sabia o beneditino que Blanche do Dreux se encontrava em Navarra? Aquela

noite, e depois de dar muitas voltas ao assunto, Mar tinha chegado à

conclusão de que ambos se conheciam de antiga data e de que o abade a

tinha mantido informada dos detalhes da viagem a suas costas.

A pergunta era: por que o tinha ocultado?

Por outro lado, Blanche não tinha sido mais explícita com respeito à

família da França. Os detalhes que sabia de uma semana depois de sua

chegada eram os mesmos já sabia pela correspondência mantida com seu pai

e com ela mesma, apesar de que Mar perguntava pelo resto dos membros

cada vez com mais frequência. E Blanche aproveitava todas as ocasiões para

insistir que se entristecia muito que seu tio não tivesse deixado a Mar como

herança mais que umas simples cartas e um punhado de moedas. Mas ela,

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embora às vezes se sentisse culpada, nunca mencionava a tabuleta que

Gabriel tinha roubado nem o anel que ainda tinha em seu poder.

Assim, cada dia que passava, estava mais incômoda com sua

presença, mais molesta por seus silêncios, mais zangada por suas demandas e

mais inquieta pela resolução de seu próprio futuro.

E se por acaso isso fosse pouco, Blanche tinha tido a nefasta ideia de

contratar o filho do comerciante como servente e guardião.

—Não pode me entender? —exclamou Mar exasperada —. Asseguro-lhe

que esse homem é indigno de que deposite sua confiança nele.

Aquela era a quarta vez no último minuto que fazia a mesma

pergunta sem que sua prima desse a mínima amostra de atender à petição de

que não queria que tivesse trato algum com semelhante infame.

—Não entendo por que o têm em tão pouca avaliação —repetiu

Blanche ao mesmo tempo em que deixava de um lado a costura e se

aproximava da janela da habitação—. Nestes três dias que o tenho a meu

serviço resultou ser de grande ajuda.

Mar aproximou o dedo indicador à boca para chupar a ferida que

acabava de fazer com a ponta da agulha.

—Estou certa disso — balbuciou entre dentes.

—Dizia?

—Dizia, sim — disse, abandonando definitivamente o tecido sobre o

colo —, dizia que não é para se confiar, que sua maldade não tem limites e

que assim que possa, esquecerá a sua lealdade.

«E que teria desfrutado de mim se eu não tivesse detido os avanços

de uma forma um tanto... abrupta e se Gabriel não tivesse me resgatado de

suas garras no dia seguinte.»

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Blanche desviou o olhar do que acontecia na rua e deu a volta.

—Acredito, querida prima, que está cega, em seu comentário, não

haverá nenhum prejuízo. Os sinos de São Pedro já tocam, é a hora de fazer

as visitas vespertinas — anunciou em tom alegre, dirigindo-se para a porta.

Mar ficou sozinha e aflita enquanto repetia a pergunta que a senhora

Manuela lhe tinha feito no dia anterior e que ela tinha deixado sem resposta.

«Moça, ainda quer abandonar sua casa e a seus amigos para

acompanhá-lo?»

Gabriel tinha deixado Vila Vétula no dia seguinte, depois sepultar o

irmão Roger. Passou em Ponte de Reina o estritamente necessário, apenas

para visitar o templo de Santiago e se encarregar da tarefa de alimentar um

pobre durante quarenta dias, segundo a tradição, em honra de seu tutor.

Depois, tinha vagado sem rumo fixo com a carta de recomendação do irmão

Clemente debaixo da vestimenta. Mil vezes tinha tirado a missiva, mil vezes a

tinha lido e mil vezes havia tornado a guardar sem tomar uma decisão.

Entretanto, o entardecer daquele mesmo dia o alcançou no atalho que dava

acesso ao monastério de Iranzu.

No primeiro instante que seu cavalo se aproximou desse lugar teve

um pressentimento; pressentimento que aumentou quando desmontou dos

arreios e, andando, como se fosse um humilde peregrino, atravessou o

estreito caminho para o convento que a Ordem de Císter tinha a menos de

três léguas de Estella.

O abade de Iranzu podia ter feito caso omisso da solicitude que o

irmão Clemente tinha deixado escrita para que procurasse uma boa

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ocupação a Gabriel, mais tinha em conta a delicada situação em que se

encontrava a ordem dos cavalheiros templários. Em vez disso, o acolheram

com amabilidade, lhe deram um teto que se refugiar e tinha lhe

proporcionado um trabalho relacionado com a administração das

propriedades urbanas do monastério. Incluída a de Estella.

Uma pontada de dor lhe atravessou uma parte do peito quando o

nome da vila próxima penetrou em suas reflexões. Fazia mais de duas

semanas que tinha visto Mar e ainda não tinha podido afastá-la do

pensamento. Seria muito mais fácil se tivesse subido no cavalo e tivesse

cavalgado sem descanso para qualquer lugar longe de ali; ao norte, sul, leste

ou oeste; a outros lugares, a outros reinos. Pôr distância, percorrer jardas,

léguas e mais léguas, só com a ideia de estabelecer um oceano de terra entre

ambos.

Pela primeira vez na vida se arrependeu de não ter atendido os

desejos do irmão Roger, de não ter seguido o caminho esboçado por seu

mentor. Guerrear na Terra Santa contra os infiéis lhe parecia uma existência

mais amável que a luta diária que mantinha contra seu próprio espírito, seu

coração. E em vez de fugir e afastar-se dela o mais que pudesse, ficou ali

correndo o risco de vê-la aparecer em qualquer curva do caminho, em

qualquer esquina da vila, em qualquer posto do mercado. Correndo o risco

de encontrá-la de braço dado a um homem normal, com o cabelo encoberto

e um grupo de meninos a seu redor.

Estava sofrendo, sofrendo por não ser este homem, por não poder vê-

la, por não poder tocá-la, porque poderia transcorrer o resto da vida e não

voltar a achá-la. E ambicionando fazê-lo, com toda a alma.

—Já está de novo perdido em suas próprias reflexões.

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As palavras do homem que o acompanhava o devolveram à

realidade.

—Me perdoem.

—Eu gostaria de saber o que é o que lhe abstrai tão frequentemente.

—Nada fora do comum —mentiu—. Dizia que teremos que parar para

passar a noite? Acredita ser necessário?

Seu companheiro de viagem assentiu.

—Será o melhor. Não quero me arriscar a continuar avançando com a

carga que levamos. Além disso, conheço uma estalagem que sem dúvida será

do agrado de um homem sem companhia como você.

Um momento mais tarde, atravessaram o arco pontudo que dava

passagem para a entrada do povoado de Caraoquê e começaram a subir a

rua. Passaram sem parar na frente da Casa de hospedagem, que provia de

albergue aos peregrinos, viajantes e comerciantes que percorriam o reino.

Seu companheiro fez o sinal da cruz na frente da bela capela da igreja de São

Román e seguiu adiante descendo agora por uma estreita rua. Não

demoraram em encontrar o que procuravam.

Na parte mais afastada da vila, de costas à maioria das casas, elevava-

se uma desmantelada hospedaria.

—Já chegamos —confirmou o homem ao mesmo tempo em que

empurrava a desgastada porta.

Gabriel deu um passo atrás quando o calor e o aroma do ambiente

da estadia chegaram até a rua. Ver as mulheres que serviam as mesas e

escutar as gargalhadas dos homens lhe confirmou a classe de lugar que

estavam a ponto de entrar.

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—Aqui? E diz que o dinheiro das rendas estará mais seguro aqui que a

mercê dos bandidos?

—Não sabe que mais vale mais um mau amigo que um bom

desconhecido? Não se inquiete, os monges não vão ficar sem os seus

rendimentos. Amanhã pela manhã sairemos com o mesmo peso com o que

agora entramos. A menos que deseje aliviar parte de sua própria bolsa —

acrescentou, lhe dando uma palmada no ombro e o forçando a entrar —. Ei,

você, moleque! — exclamou em direção a um moço sujo que acabava de

aparecer no ambiente —. Cuide de nossas montarias!

Foram acomodados perto da porta, na única mesa que estava vazia.

Não demoraram em ser servidos.

—Boa empregada, né? —comentou enquanto seguia à moça com os

olhos, como se formasse parte do jantar.

Gabriel se limitou a balbuciar uma resposta e se concentrou no

guisado fumegante que tinham colocado na frente dele.

Mas estava claro que aquela não era a noite apropriada para ficar

refletindo. Não provou nem duas colheradas da comida quando duas figuras

entraram na hospedaria e se dirigiram à única mesa que estava com bancos

livres. A sua.

O casal que se sentou com eles eram um homem e uma mulher.

Gabriel se surpreendeu ao ver que o homem não era desconhecido. Tratava-

se do trovador que tinha encontrado com Feliciana saindo da estalagem de

Olite. Não teve que desviar a vista para notá-la, não precisou ver os olhos

para se dar conta da aversão com a que a recém-chegada cravava o olhar nele.

Acabava de se encontrar com o mais parecido a um inimigo que tenha se

cruzado nos últimos tempos.

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Feliciana Erri estava a menos de dois palmos dele e o observava com

ódio.

Mar retornava a casa da senhora Manuela com Teresa de mão dada.

A mulher as tinha enviado a casa da sogra de Isabel para recolher um cântaro

cheio, resultado da festa que a família tinha organizado na semana anterior.

Enquanto percorria a rua Maior, a menina se entretinha saltando e

cantarolando uma cantiga que Mar não prestava atenção.

—Não me está dando atenção! —exclamou Teresa com um

contundente puxão, aborrecida de ficar se distraindo sozinha.

Mar a olhou.

—Têm razão. O que é o que canta? — perguntou fazendo um esforço

em parecer animada.

—Não importa. Já me aborreci. Vamos correr! E ver quem chega

antes no alto da ponte.

Sem dar a Mar um só instante para reagir, soltou-se de seu cuidado e

começou a correr.

—Teresa! Espere! —Mas a menina já não a escutava—. É uma

trapaceira! —ria ao tempo que corria atrás dela.

Como era de se esperar, Teresa foi primeira em chegar à subida da

Ponte do Cárcere. Mas quando Mar conseguiu alcançá-la, a menina já tinha

se esquecido da provocação e se distraía observando aos peixes que nadavam

tranquilos por debaixo delas, alheios ao exame dos olhos infantis.

—Olhe ali! Aquele sim que é gordo!

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Mar dirigiu o olhar para onde Teresa apontava. Em efeito, ao lado da

borda, justo por debaixo da superfície, flutuava uma das trutas maiores que

já tinha visto. Mas o que lhe alarmou foi o que viu fora da água.

—Se agache! — exigiu enquanto lhe obrigava a se esconder atrás da

mureta de pedra.

—Mas por que...?

—Shhh.

— Brincamos de nos esconder?

Não era má ideia.

—Sim, estamos nos ocultando de umas pessoas que estão aí atrás.

Pode as ver?

A menina ficou em pé.

—Daqueles homens?

Mar lhe baixou a mão.

—Dissimule!

—Tudo bem.

—Pode me dizer o que estão fazendo?

—Estão falando. A esse o conheço! Minha mãe não me deixa me

aproximar dele.

Mar não sentiu saudades. Isabel compartilhava com ela a repulsão

por aquele indivíduo.

—Sim, é o filho do comerciante. Que mais vê?

—Outro... Ai! —gritou a menina, que abandonou a posição e se

abaixou junto a ela.

—O que aconteceu?

—É o homem mais feio que já vi! Parece o demônio.

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Isso mesmo lhe pareceu na primeira vez que tinha estado de frente

ao homem com o nariz cortado.

—Têm razão, mas pode voltar a olhar e me contar o que fazem agora?

A menina atendeu ao pedido.

—Estão olhando para sua casa e a da avó.

Mar se encolheu ainda mais.

—Vêm para aqui?

—Não.

—O que fazem aí escondidas? Faz já um tempo que deviam estar de

volta!

A senhora Manuela subia veloz a ponte pelo lado contrário. Ia em

sua busca. Mar não teve alternativa que se levantar.

—Estávamos... brincando — se desculpou sobressaltada enquanto

agarrava a cesta com os chouriços e a apoiava no quadril.

—Isso, isso. Brincávamos de nos esconder de...

Mas a senhora Manuela não estava para jogos infantis. Tomou à neta

da mão e a arrastou com ela.

—Vamos, que já é hora de estar em casa! Está a ponto de anoitecer.

Parece mentira, Mar, que seja tão maior e tenha tão pouco miolo —

balbuciava a mulher de volta a casa.

Entretanto, esta não atendeu aos protestos de sua vizinha nem

tampouco seguiu à mulher. Não pôde, pois seus pés tinham ficado fixos no

chão e a vista cravada nas costas de uma figura que acabava de unir-se aos

homens que vigiava.

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CAPÍTULO 28

O companheiro de Gabriel tagarelava sem cessar, sem se importar a

quem impunha seus pouco afortunados comentários.

—Um homem não necessita de uma mulher, a não ser para que

cozinhe, limpe a casa, lave a roupa e aqueça a cama.

—Homem, eu não diria tanto — comentou o trovador com cautela.

Gabriel, que tinha deixado de escutar a conversa fazia um momento,

afastou os olhos da tigela e tropeçou com uma parede mais larga e mais dura

que os muros de Jericó. Feliciana o observava com semblante severo. Optou

por voltar para seu prato e a seu silêncio.

—Digo e afirmo. E o melhor é que todas necessitam de um homem a

seu lado.

—Pois lhe posso contar que...

Gabriel não queria, entretanto a olhou outra vez. Ali estava de novo,

com as retinas cravadas nele. Não pronunciou uma só sílaba, mas pôde ouvir

a acusação com claridade. Esperou que a mulher falasse o que estava

pensando. Foi em vão, assim retornou de novo ao jantar.

—Posso assegurar que se não fosse por nós, nenhuma delas teria força

suficiente para seguir adiante.

—Eu, em troca, lhe garanto que conheço muitas que...

Impossível comer em silêncio, com aqueles olhos gritando a palavra

culpado sobre ele. Já era suficiente. Com um movimento brusco, elevou a

cabeça e a desafiou com o olhar. Feliciana não se alterou. Estava furiosa e

que se aguentava, mas a sua vontade era de soltar umas quantas coisas, mas

se continha. Já era adulto para receber lições de moral de ninguém e menos

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daquela mulher, assim preferiu se esquecer dela e de suas mudas

recriminações.

—Frescura! Isso de achar que podem pensar em algo, mas não é mais

que mera fachada. O único que procuram é amparo. Não valem mais que as

palavras que dedicamos a elas, e a «distração» que lhes proporcionamos.

Deveriam agradecer ao Senhor que as reguemos com nossa semente e as

deixemos prenhes. E nem sequer todas servem para isso. — Soltou uma

gargalhada antes de se inclinar para frente como se fosse contar um segredo

—. Poria a mão no fogo se encontrasse uma só que estivesse disposta a

arriscar sua própria segurança por você.

A voz da Feliciana se elevou pela primeira vez aquela noite.

—Pois será melhor que procure uma boa gordura para as

queimaduras porque lhe garanto que um dia destes irá necessitar. Isso, se

tiver sorte. Mas não poderia ficar com uma mulher «com coragem».

Aquilo foi muito. Muitas referências, muitos recriminações, muitos

lembranças.

Gabriel golpeou a mesa com violência e virou para seu companheiro.

—Quer fazer o favor de deixar de dizer tolices?

O homem congelou.

—Mas que mosca o picou?

Não respondeu. Agarrou o copo com ímpeto desmedido e tomou um

longo gole de vinho sem dar conta das gotas que se esparramaram pela

superfície de madeira. Logo, se levantou, arrastando o banco com ele, e

partiu. O comilão ficou em silêncio enquanto as dobradiças tremeram pelo

impacto da porta ao fechar-se.

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Gabriel se sentiu melhor na rua. O frio lhe serviria para entorpecer

os sentidos. Deu uns passos até encontrar um muro e se apoiou nele,

esfregou os olhos e levou a mão à cabeça. Sempre havia dito que o silêncio e

a escuridão lhe tranquilizavam, mas hoje era diferente não tinham efeito,

porque aquelas malditas luzes penduradas no firmamento não faziam outra

coisa que lhe obrigar a recordar outros dias, outras noites.

Permaneceu fora mais de uma hora. De vez em quando, abria a porta

e algum dos clientes do local saíam ou entravam. Nesse instante, voltavam às

risadas, voltavam às vozes, voltava o calor. Mas o que Gabriel precisava era

silêncio, frio e solidão.

Quando entrou de novo, nada tinha mudado, com exceção de que

seu companheiro tinha desaparecido.

Decidido, aproximou-se da mesa que tinha abandonado com tanta

veemência um momento atrás. Feliciana e o trovador continuavam sentados

nela.

—Onde ela está? — se dirigiu à mulher.

—Pensava que o que lhe acontecesse não era de seu interesse.

—Irá me responder?

—Deveria?

Feliciana viu como os dedos de Gabriel se crispavam sobre a mesa.

Bem. Não faria nenhum dano que provasse um pouco de seu próprio

humor.

—Irá me responder. __ Perguntou com os olhos fixos — Retornou a

Estella?

—Você acredita em que?

Os punhos de Gabriel se apertaram com mais força.

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—Eu não acredito em nada —vaiou entre dentes—, simplesmente

estou perguntando por ela.

—Faz uns dias não parecia tão preocupado pela direção que ela

pudesse tomar.

Gabriel jogava faíscas pelos olhos.

—Querer fazer o favor de me responder?

—Não imagina?

—Voltou para Estella — afirmou Gabriel aliviado.

Feliciana viu como ele relaxava os nódulos.

—Com pesar — disse enigmática.

—Se explique.

Feliciana ficou em pé e apoiou as mãos no quadril.

—Quero dizer que não foi graças a você que saiu ilesa de Olite, que

não foi você que a protegeu pelo caminho e que além disso foi muito baixo

em tirar as suas lembranças.

—Fala da tabuleta. Falou dela.

—Apenas a mencionou, mas resultava claro a sua tristeza.

Gabriel não ia explicar agora qual era a razão pela qual ficou com a

tabuleta.

—Sabe se está bem?

Feliciana esboçou um sorriso zombador.

—Se tem tanto interesse, por que você mesmo não comprova se ela

está bem ?

Era isso mesmo que se repetia. Por que? E voltou a dar a resposta que

levava duas semanas repetindo para si mesmo. Por seu bem. Pelo dos dois.

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—Como foram as visitas? — perguntou Mar com amabilidade quando

Blanche penetrou na cozinha.

—Como sempre.

—Em onde estivestes hoje? — insistiu enquanto a prima esperava que

a criada lhe atendesse.

—Já conhece os templos que frequento.

—E... estivestes em todos eles?

—Onde mais estaria? — respondeu a francesa notoriamente

incomodada ante o interrogatório que Mar lhe estava submetendo.

—Certo disso?

Passou um segundo antes que Blanche respondesse.

—Sim, por que a pergunta?

—Por nada, por nada — comentou ao ar e se dispôs a examinar os

irregulares pontos que Teresa tinha dado no velho trapo que Mar tinha

proporcionado para que se distraísse.

—Você gosta? — perguntou a menina.

—Está tudo muito bem, mas agora deve partir para a sua casa. —

Teresa se levantou a contra gosto. Mar se calou até que a menina saiu da

estadia e voltou para sua prima —. começou a chover?

—Não, por que a pergunta? Esta manhã, você mesma afirmastes que

seria um bom dia.

—Então, se aproximou de alguma fonte?

—Não.

—Nesse caso, se aproximaste de Ega.

—Ao rio? E o que eu faria ali?

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A boca de Mar se torceu em uma careta irônica.

—Não sei. Comento isso porque está com a barra do vestido

molhado.

À luz do fogo, deu a sensação de que a tez de Blanche se tornou mais

pálida de repente.

—Uma mulher deixou cair um jarro de água sobre meus pés —

conseguiu balbuciar —. Vou contar para você — se apressou em ordenar à

criada.

—Isso, isso, me conte a verdade, me conte onde e com quem se

encontrara esta tarde de verdade.

Mar se levantou para poder escutar as explicações da moça com

claridade, mas esta se limitou a retroceder sem deixar de apertar mãos. O

irado tom de Mar indicava que não ia se conformar com qualquer meia

verdade. A criada se voltou para a dama que servia.

—Senhora, acredito que deveria dizer a verdade.

—Se cale! Não passa de uma néscia!

—E qual é essa verdade, eu quero saber! — Mar estava fora de si. Que

estivessem me enganando todos esses dias desde que chegaram a minha casa?

Que não viestes aqui com a única ideia de que lhe acompanhe a França? Que

têm alguma intenção oculta? Ou irá me confessar agora que nem sequer é

minha prima? — Não teve que continuar as interrogando, suas expressões já

tinham respondido tudo —. Não é? Não é Blanche de Dreux? — Mar teve que

tomar ar para poder assimilar aquela muda revelação. Depois, prendeu o

braço da farsante que se fez passar por seu parente e a arrastou com ela. A

criada às seguiu envergonhada, com a vista fixa no chão. —. Saia agora

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mesmo de minha casa! —ordenou ao mesmo tempo em que abria a porta

para a rua deserta.

A impostora não deu um só passo. Limitou-se a rir enquanto a

desafiava com o olhar.

—Acredito que terá que voltar a me convidar a entrar —acrescentou

com ironia.

Mar não teve tempo de perguntar o que queria dizer com aquilo

porque uma sombra se elevou na sua frente, bateu com o portão em um

puxão e a rua desapareceu.

—Temo, querida vizinha, que terá que nos convidar também .

Aquela voz, aquela figura. O filho do comerciante e Nariz Cortado

acabavam de entrar de novo em sua existência. Para seu infortúnio.

Sentada no chão, com as mãos amarradas e a boca coberta por um

trapo, Mar escutava às três pessoas que discutiam no meio da cozinha em um

intento de compreender algo que pudesse servir para sair do atoleiro que se

colocou.

—O que estamos esperando para nos desfazer dela? — perguntou

Nariz Cortado, ao mesmo tempo em que olhava Mar com ódio.

—Encontrar o que viemos procurar — acrescentou a mulher com

brutalidade—. Procurem o selo! Tenho pressa!

Agora que não tinha que se comportar como uma grande dama, Mar

pôde apreciar que as maneiras da mulher se tornaram muito vulgares. Como

tinha podido estar tão cega para se deixar enganar com aqueles fingidos e

refinados gestos?

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397

—Agora temos que encontrar em um momento o que você não pode

localizar em duas semanas — resmungou o ladrão enquanto se dirigia às

escadas seguido pelo filho do comerciante.

Os homens desapareceram no piso superior. Os golpes que escutava

indicavam a Mar que a procura não estava sendo delicada. Não demorariam

muito para retornar com as mãos vazias, no fim, naquela casa já não ficava

nada que valesse a pena. As poucas coisas que tinha, ficaram na caravana,

aquela que Gabriel lhe obrigou a se separar. E de Olite só havia trazido umas

poucas moedas e o anel que seu pai tinha deixado. Foi então que se deu

conta.

O anel com a safira! Aquilo era o que queriam.

Até onde sabia, o anel não era uma joia muito valiosa, mas não podia

tratar-se de outra coisa. Não tinha nenhuma outra posse que justificasse que

os malfeitores que a mantinha presa, tivessem mantido aquela farsa durante

tantos dias. Nem sequer estava certa se a joia merecesse o esforço. No

momento que seu pai a entregou, a convenceu de que seu valor era

meramente emocional. Isso em seu caso, que era a filha do ourives. Qual era

o interesse que tinha aquela mulher e qual era a causa que a moveu a se fazer

passar por sua parente e o que faria com o anel?

—Acima não há nada — anunciou Nariz Cortado enquanto descia.

—Imbecis, em alguma parte teve que guardá-lo!

—E por que não perguntamos a ela? — sugeriu o filho do comerciante

que estava atrás do homem —. Não acredito que tardará muito em

«convencê-la» para que nos dê a informação.

A falsa prima se aproximou de Mar e arrancou a sua mordaça de um

puxão. Esta soltou um grito quando sentiu as chicotadas do tecido puído.

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398

— Me diga agora mesmo onde o guarda!

—Não sei a que se refere.

A mulher se agachou diante dela e segurou o seu rosto. Enquanto os

dedos se cravaram nas bochechas doloridas.

—O selo — vaiou —. Não vamos partir daqui até que não nos entregue

isso.

—Terá que encontrá-lo vós mesmo — balbuciou.

Os olhos da mulher cintilaram com ódio e a esbofeteou. A cabeça de

Mar se chocou contra a parede devido à força do impacto.

—Voltem a revirar tudo! Teve que ocultar em alguma parte.

—Mas se já revisamos...

—Fazem de novo! O selo tem que aparecer antes que chegue Sua

Excelência. Hoje ao entardecer finaliza o prazo para encontrá-lo.

Mar chegou à conclusão de que fosse quem fosse «Sua Excelência»

era um homem temível já que a mera menção fez estremecer Nariz Cortado,

que voltou a empurrar o filho do comerciante escada acima.

Escutou os passos dos assaltantes sobre o piso do desvão e todos os

sentidos de Mar se centraram naquele ponto da casa. Estava tão concentrada

no que acontecia no piso de cima que não notou a corrente de ar que

penetrava pela porta entreaberta da oficina e que lhe agitou o cabelo.

—Encontrei! O tenho! O selo! encontrei o selo!

O filho do comerciante tinha encontrado a bolsa.

Mar se sentiu aliviada. Já tinham o que procuravam, agora partiriam

e terminaria o pesadelo.

—Me dê isso! - exigiu a mulher que tinha pulado a metade dos

degraus de um salto.

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399

Mas o filho do comerciante não ia se retirar sem conseguir a

recompensa que ela tinha prometido. Apertou os dedos da mão e apertou o

tesouro no punho.

— Me ofereceram algo.

—É toda sua. — disse a mulher.

Lançou um olhar de desprezo a Mar e estendeu a mão para receber o

anel.

Mar compreendeu qual era o futuro que aqueles malfeitores tinham

planejado para ela. O pânico a invadiu e não conseguiu fazer nada mais que

grudar as costas à parede e elevar os joelhos até o peito em um desesperado

intento de se proteger da fedida cobiça do filho do comerciante, que se

lambia ante a ideia de conseguir tão ansiado prêmio.

Uns golpes na porta detiveram o avanço do agressor.

—Sua Excelência chegou. Bem a tempo. Poderão desfrutar dela mais

tarde — acrescentou enquanto se apressava em voltar para a entrada da casa

de Mar.

O homem que entrou na cozinha tinha o mesmo gesto de irritação

que Mar se lembrava no bosque dos subúrbios de Artajona. Sem dúvida

formava parte da corte. Só em lhe ver, dava para perceber. As roupas, o

porte, tudo nele dizia que na comitiva real aquele homem não cavalgava

muito longe do monarca.

—Voilà19.

O nobre segurou o que a mulher oferecia. Lançou a Mar um rápido

olhar quando passou a seu lado em busca da luz da chaminé.

Deu umas voltas no anel antes de falar.

—Uma faca —reclamou a mulher.

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400

Nariz Cortado tirou de entre a roupa uma tosca navalha, esfregou-a

pelas meias e a entregou.

O cavalheiro não necessitou mais que um par de intentos para

separar a pedra do gancho. Agachou-se com a pedra sobre a palma,

aproximou as mãos à luz e a examinou de perto.

Esteve em pé imediatamente.

—Vous plaisantez?20 —se dirigiu à falsa prima com as mandíbulas

apertadas.

—Uma brincadeira? O que está dizendo?

O homem não respondeu, simplesmente levantou o braço e ofereceu

a pedra à mulher para que a examinasse. Esta tomou em sua palma.

—O que se supõe que é isto que me entregam!? — explodiu ela ao

mesmo tempo em que lançava a pedra contra o chão.

Os dois ladrões se olharam confusos.

—O selo — se atreveu a responder Nariz Cortado —, tal e como

pediram.

—Isso não é mais que uma bagatela! — Assinalou a safira que tinha

rodado pelo chão até debaixo da mesa —. Uma pedra vulgar, sem talho

algum em nenhuma das faces. E o que procuramos é o selo verdadeiro da

coroa de Navarra.

A mente de Mar girava a toda velocidade, mas não conseguia

encaixar as ideias. Se não era o anel o que queriam, o que era? Tinha o

cérebro enterrado em uma nebulosa. A única coisa clara, era que devia se

libertar daquelas pessoas, o mais rápido possível.

—Não está na casa — disse. Todas as cabeças da estadia se voltaram

para ela—. Está... está escondido em um lugar, longe daqui — improvisou.

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A francesa se agachou junto a ela com a cautela de um gato em um

pombal cheio de aves.

—Onde? — sussurrou.

O perverso brilho daqueles olhos limpou todas as dúvidas de Mar

sobre a natureza cruel da mulher que tinha abrigado durante as últimas

duas semanas.

—Em... em... —Mar procurava com toda celeridade um lugar

conhecido e que estivesse o suficientemente longe da vila.

Com a hora que era, teriam que esperar ao amanhecer para sair da

cidade. A noite era longa, iriam dormir e ela poderia pensar em como

escapar. Não tinha mais que conseguir que na casa vizinha notassem que

acontecia algo estranho. Lembrou-se de Teresa e de que todas as manhãs a

fazia uma visita, pensou em Isabel, seu amiga da infância e mãe da pequena,

e depois recordou onde estavam acostumadas a se banhar.

—No moinho de Ordoiz — soltou de repente.

Três pares de olhos se cravaram no filho do comerciante.

— Sei onde está. Conheço muito bem o lugar.

—Alors allons-y21.

A falsa prima acatou a ordem de Sua Excelência imediatamente.

Agarrou o braço de Mar e a obrigou a levantar-se. Impulsionou-a para a

oficina com um empurrão.

—Você vem conosco.

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CAPÍTULO 29

Gabriel estava furioso. Furioso consigo mesmo e furioso com os

soldados. Consigo por ter seguido o impulso do coração e ter evitado o que

lhe ditava a razão, por continuar a amando, apesar das vezes que ficou se

repetindo aquelas duas últimas semanas que tinha feito bem ao se separar de

Mar. E com os soldados por não o haverem deixado entrar em Estella pela

Porta da Castilla, embora lhes tinha jurado que iria ajudar a acudir o leito de

um tio moribundo. Eles tinham limitado a rir dele e a lhe indicar que

ninguém que não tivesse um salvo-conduto real, como ao que parece, tinha

acontecido dez minutos antes com um cavalheiro, transpassava a muralha.

Assim tinha trocado de estratégia e de entrada. Na Porta de São

Agustín tinha mostrado a carta de referência que os cistercienses de Iranzu

tinham lhe entregue depois da realização de seu trabalho e tinha assegurado

que no Colégio de Navarra, onde se encontrava o estudo geral dos

monastérios cistercienses do reino, lhe necessitavam com urgência. Não

houve problemas em convencer os soldados de que era o novo médico do

convento. Tudo teria ido bem se um dos militares não se empenhasse em

acompanhá-lo. Só se despediu dele quando, viu como o cavalo de Gabriel

entrava no estábulo que os monges tinham ao lado do colégio. O problema

era que estava no bairro de San Juan e a casa de Mar no de São Martín, na

ponta oposta da cidade e do outro lado do rio. E agora percorria as ruas da

cidade para conseguir chegar à casa do ourives o quanto antes.

Percorreu a Ponte do Cárcere com duas pernadas e estava a ponto de

embocar na Rua das Lojas quando pensou que a visita de um homem na

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casa de uma mulher solteira não era o mais adequado para sua virtude

pública.

Começou a caminhar pelo centro da rua sem mostrar nenhum

indício do lugar para o que se dirigia. Por sorte, o outono já estava bem

avançado, e a noite avançava, a maioria dos cidadãos se trancavam em sua

casa com a porta fechada.

Alcançou a casa da vizinha de Mar. Recordou que tinha vivido os

últimos seis meses com ela; o mais lógico seria ela pensar que houvesse

voltado por ela, confessar isso com os dois sozinhos.

Mas confessar que queria passar o resto da vida com ela diante de

meia dúzia de desconhecidos não era precisamente o que tinha em mente,

assim implorou ao céu para que Mar se encontrasse sozinha em sua própria

moradia e se dirigiu para ali. Entraria pela lateral da casa do ourives, pela

horta e a surpreenderia.

Saltou por cima do muro e soube que não teve sorte. A intuição se

cumpriu assim que abriu a porta da cozinha. Ali não havia ninguém, mas ver

o fogo crepitando com alegria lhe dotou de uma nova esperança.

«Estará na habitação», pensou e deixou escapar um sorriso. Começou

a subir pela escada com sigilo. Não lhe ocorria melhor maneira de dizer a

Mar que a queria, a colocando sobre a cama e fazer amor com ela. A

imagem daquele corpo nu, molhado e de pé no quarto de Feliciana, nublou

a sua vista e acelerou o seu sangue. Alcançou o patamar do piso superior e

intuiu que aquilo não ia ser tão fácil como tinha previsto.

— Me declarar diante da vizinhança — disse em voz alta soltando uma

gargalhada—. O irmão diria que é a penitência que o Senhor me impõe por

minha má conduta com Mar. E eu estaria de acordo com ele.

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Desceu as escadas de dois em dois e cruzou a estadia em direção à

oficina. Tão entorpecido estava em sua felicidade que nem sequer notou o

leve roce da janela ao fechar-se. Abriu a porta de um puxão e saiu à rua

satisfeito por assumir seu destino.

Golpeou a casa do carpinteiro com a segurança de que uma das vozes

que escutava do outro lado era a de Mar. Sorriu ao imaginar o rosto da

mulher que amava quando o visse aparecer. Seus olhos, sua surpresa, seu

sorriso, seu gozo, seus braços, seus beijos.

—Quem chama? —perguntou a voz de uma mulher dentro da casa.

—Procuro Mar... Margheritte Roux.

—Quem é, e o por que a busca? — interpelou a voz com desconfiança.

«Seu apaixonado, o homem que a quer, seu amante, seu

companheiro, seu devedor, seu protetor, seu amigo.»

—Sou...

Ainda procurava as palavras mais apropriadas para ser pronunciadas

no meio da rua, rodeado de janelas e de portas mal ajustadas, quando a

senhora Manuela apareceu na sua frente. Ao que parece, ela também era da

opinião de que as questões pessoais não precisavam ser pronunciadas em

público.

—Para que quer localizá-la? — inquiriu a mulher com rudeza.

Gabriel ficou na defensiva diante daquela atitude tão agressiva.

—Trata-se de um assunto pessoal.

—Seja quem o informou, deu uma informação errada. A família do

professor Roux habita na moradia do lado.

Gabriel esboçou um ligeiro sorriso ao escutar a palavra «família». A

senhora Manuela e seus desesperados intentos por proteger Mar.

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—Pertenço ao monastério de Iranzu — anunciou para tranquilizar um

tanto à mulher—. Ela não está na casa.

—Não pode ter ouvido.

—Não há ninguém dentro — insistiu Gabriel com mais brutalidade da

que esperava.

Não era questão de dar detalhes sobre a forma em que tinha entrado

na moradia e por que estava certo de que a casa estava deserta.

—Não pode ser. Eu mesma escutei a sua prima quando chegou esta

tarde.

Gabriel esteve a ponto de dizer que não acreditava, tinha apenas

que dar dois passos e empurrar a porta da casa para ver Mar, mas uma voz

chegou detrás da senhora Manuela.

—Partiram.

—Teresa?

—Gabriel! — exclamou a menina ao mesmo tempo em que se jogava

sobre ele.

A senhora Manuela não saía de seu assombro quando descobriu que

sua neta não só conhecia aquele gigante com cabelos compridos, mas sim

inclusive o tratava como se fora um membro a mais da família.

—Menina, volte para a casa! —ordenou com uma atitude que indicava

que não aceitaria um não por resposta.

A menina se soltou a contra gosto.

—Me permite entrar? —sugeriu Gabriel, fazendo um gesto para as

janelas da casa de frente.

A mulher pensou um momento antes de aceitar. Gabriel penetrou

pela fresta da porta, que se fechou atrás dele. Voltou-se para a menina.

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—O que quisestes dizer? Quem se foi com Mar?

—A prima francesa e uma criada — interveio a senhora Manuela.

—Blanche de Dreux — murmurou perplexo.

Não esperava por aquilo. Estava a ponto de conseguir à mulher que

amava e esta escorria como areia entre os dedos. Aquela relação era como a

água e o azeite, sempre tão perto e sem poder chegar a se unir.

—Também havia três homens. Eles a levaram, irá procurá-la? Eu não

gosto desses homens. Tinham cara de maus e gritavam com Mar. E essa

bruxa, também gritava com ela.

—Homens? Que homens!? —O pânico da senhora Manuela era o

pânico de Gabriel. A mulher se inclinou e sacudiu à menina pelos ombros—.

O que diz não faz sentido! Se está mentindo...!

Teresa fez uma careta.

—Eu não estou mentindo! Digo a verdade, ou se não que a Virgem

Muito Santa venha e me leve com ela.

—Menina, que coisas diz! —exclamou a mulher ao mesmo tempo em

que esboçava o sinal da cruz sobre o peito.

—Porque nunca acredita em mim!

Gabriel já estava o suficientemente nervoso para esperar que a

discussão entre avó e neta finalizasse.

—Teresa —disse com doçura—. Irá me contar como eram esses

homens e aonde levaram a Mar. Necessito que me diga tudo o que recorda.

—Eu não gosto dessa mulher, por isso quando quero falar com Mar

entro pela janela e me escondo na oficina até ela ficar sozinha.

—Assim é como viu aos homens.

A menina assentiu.

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—Ela gritava e Mar abriu a porta e disse para que fosse embora, mas

não partiu. Entraram esses homens.

—Como eram? — interrompeu Gabriel angustiado.

—Um deles era muito feio, horrível, e faltava o nariz.

«Nariz Cortado!» Tinha retornado. E ele que tinha pensado que

afastando a tabuleta de Mar solucionava o problema. Como tinha sido tão

estúpido? Acaso os ladrões sabiam que ela já não o tinha consigo? Não tinha

mais desculpa para justificar aquela estupidez, os últimos quinze dias tinha

estado muito ocupado em lamentar a morte de seu tutor e a perda da mulher

que amava, até o ponto de converter-se no culpado da situação em que se

encontrava.

—E o outro?

A menina se voltou para a avó e cochichou algo ao ouvido.

—É o filho de um dos vizinhos — anunciou à senhora Manuela depois

de escutar a sua neta.

—O filho do comerciante.

—O conhece?

—Tive o gosto do vê-lo em uma ocasião —resmungou Gabriel— e não

foi precisamente agradável.

—Esse menino alguma vez teve boas intenções —murmurou a

mulher— E depois, o que aconteceu depois?

—Logo, a mulher gritou muito e os homens procuraram algo. Mas eu

me coloquei debaixo da mesa da oficina, detrás de um cesto, e não me viram

—acrescentou enquanto jogava a Gabriel um olhar de orgulho—. Em outro

momento, chegou o outro homem, o da roupa bonita —continuou ao notar

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a impaciência dos adultos—, e disse que o que eles tinham encontrado não

valia.

—E Mar, onde estava ela enquanto isso? —perguntou Gabriel

angustiado.

—Sentada no chão. Mas quando chegou o homem rico se foram.

—Aonde? Aonde a levaram?

—Davam-me medo —choramingou a menina—, fiquei debaixo da

mesa e tampei os ouvidos para não escutar os gritos. Não saí até que

partiram. —Teresa tirou de detrás das costas a mão direita que mantinha

apertada—. Encontrei isto.

Gabriel agarrou o que a menina lhe oferecia.

O anel de Mar, que o ourives tinha entregue. Estava desmontado, o

aro de um lado e a pedra de outro. Examinou-o uns instantes e, depois, foi

fechando os dedos sobre ele pouco a pouco até que desapareceu dentro da

mão.

—Sabe quando aconteceu tudo isto?

—Foi recentemente porque a menina tinha retornado quando você

golpeara a porta —respondeu a senhora Manuela.

—Faz já um tempo que anoiteceu e as portas da cidade estão fechadas.

Ainda fica a possibilidade de que ainda se encontrem no interior da vila.

—Acredita que poderá encontrá-la?

—Estou certo de que o farei — afirmou Gabriel antes de desaparecer

na escuridão.

A senhora Manuela ainda tremia quando empurrou a sua neta para

o interior do lar. O senhor Nicolás acabava de despertar.

—Quem era esse jovem?

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A mulher não tinha nem ideia, nem sequer o tinha perguntado.

—O noivo de Mar. Veio se casar com ela — respondeu Teresa

satisfeita de ser primeira em dar a notícia—. Avó, não acredita que faz frio

para tomar um banho no rio?

—Espero que não que lhe tenha ocorrido ter se colocado na água

esta tarde!

—Eu não! Mas esses homens disseram que foram levar Mar para

nadar.

Qualquer vizinho que tenha aparecido na janela teria visto à senhora

Manuela, que atravessava a rua das Lojas com as saias arregaçadas, correndo

desesperada atrás de um desconhecido.

Gabriel já tinha chegado à Porta da Castilla quando a senhora

Manuela o alcançou e lhe contou o que Teresa acabava de confessar. Tratou

de manter a calma apesar de que ao receber a notícia seu estômago foi

reduzido ao tamanho de uma avelã.

O primeiro foi confirmar com os guardiões que por ali não tinha

saído nenhum grupo com as características que Gabriel descrevia. Não desde

que o acesso se fechou ao pôr do sol.

Retornou junto à mulher.

—Parte para a sua casa —indicou quando chegaram à altura do único

botequim da rua.

—Nem pensar.

—A Informarei do que descobrir. Eu também a quero, asseguro

disso—confessou ele.

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Algo na voz daquele homem e no brilho de seu olhar convenceu à

mulher de que era sincero.

—Esperarei suas notícias com ansiedade.

Gabriel a viu partir com a cabeça encurvada.

Mas ninguém tinha visto Mar ou aos sequestradores. Nem na cantina

nem na Ponte de São Martín nem nos arredores do Plaza Novo nem na rua

Major nem nas cercanias da Ponte do Cárcere nem no bairro de judeus nem

no bairro dos curtidores. Nenhum dos vizinhos que perguntava pela rua

nem nenhum dos bêbados que interrogou, pôde lhe dar noticia alguma de

Mar e o alarme de Gabriel se converteu em autêntico medo. O única coisa

que aliviava a angústia era o fato de que tampouco ninguém tinha visto

pessoas rondando pela borda do rio Ega, e menos ainda se escutou barulho

algum. Gabriel se convenceu de que se aqueles malfeitores estavam decididos

a acabar com Mar não o fariam no meio da vila aonde qualquer habitante

podia descobri-los mas sim a levariam fora da cidade. Aquilo lhe outorgava

um pouco mais de tempo de vida.

Tempo que, por outra parte, Gabriel acabava de perder percorrendo

a cidade para nada. Tinha dado a volta na vila sem nenhum resultado e

estava retornando à Ponte do Cárcere. Estava a ponto de voltar para Colégio

de Navarra em busca do cavalo quando percebeu um vulto.

—Mar? —pronunciou com temor.

O corpo estendido se agitou ao escutar a chamada. Gabriel se

equilibrou para frente. Estava viva!

Assim que pôs as mãos sobre ela, esta se levantou com uma exalação.

Era certo, estava viva e era uma mulher. Mas... não era sua altura, não era

seu tato, não era seu aroma. Não era Mar.

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—Quem é você?

A figura da garota se apertou contra a ponte. Gabriel a soltou e se

voltou para trás para sair da escuridão e que essa garota visse que não tinha

intenção de lhe fazer nenhum dano.

—Me perdoe. Estou procurando uma mulher, uns bandidos a

levaram de sua casa esta noite.

A jovem não disse nada, embora Gabriel escutasse com claridade o

ruído de sua respiração. Ele já estava dando a volta para partir quando ouviu

a resposta.

—Procura por Margheritte Roux?

—A conhece? Sabe algo dela?

—A encontrará rio abaixo.

Gabriel teria preferido ser torturado e desmembrado mil vezes antes

de escutar aquelas palavras.

—Em... na água?

—Se você se apressar, talvez chegue a tempo. A uma milha daqui

seguindo o rio há um moinho. É aí aonde se dirigem.

—Quem é?

A moça demorou em responder e, quando o fez, Gabriel pôde

escutar o medo ante sua reação.

—Sou a criada da... prima francesa. Abandonaram-me quando foram

embora e não tenho aonde ir. Mas... parte com logo, o mais jovem não

afastava os olhos dela — acrescentou com a esperança de que aquele homem

dirigisse sua fúria contra o filho do comerciante em vez de contra ela.

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Entretanto, o que a criada não sabia era que nada do que dissesse

desataria à ira de Gabriel. Menos ainda de acordo com o que contava, Mar

tinha muitas possibilidades de estar viva.

«Já é suficiente castigo para uma moça dessa idade ficar só e sem

sustento», pensou Gabriel enquanto corria sobre a pavimentação em busca

do cavalo.

Ainda tinha que obter que as portas de Estella se abrissem para a sua

entrada, embora isso não era algo que se preocupasse. Porque nada nem

ninguém que ficasse na sua frente iria lhe deter.

Nem que fosse o próprio diabo.

Levavam mais de meia hora caminhando a passo ligeiro. O filho do

comerciante encabeçava o grupo com uma tocha na mão e dirigia os passos

de Mar, que ainda estava mantida com as mãos atadas. Por sorte, tinham

atendido seus pedidos e tiraram a mordaça da boca assim que se afastaram

de Estella. Detrás dela, Nariz Cortado contribuía iluminando o terreno com

outra a outra tocha. O nobre, montado sobre um elegante cavalo, e a

impostora, que também dirigia seu próprio corcel, não se sabia onde,

fechavam a sinistra comitiva.

Mar conhecia com perfeição o terreno que avançavam. O caminho

do rio era um dos lugares preferidos de algumas jovens da cidade nos dias

mais calorosos do verão.

—Mais depressa! —grunhiu a falsa prima enquanto cutucava Mar

para que não se detivesse —. É que não vamos chegar alguma vez a esse

maldito lugar?

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—Logo o veremos aparecer.

Era certo. Já não faltava nada, o filho do comerciante sabia tão bem

como ela, embora o resto do grupo não parecia se importar muito aonde

chegassem. Nem Nariz Cortado nem o cavalheiro tinham feito o mais

mínimo comentário durante todo o trajeto.

Não demoraram em vê-lo. O atalho finalizava a uns passos mais

adiante para dar passagem a uma esplanada banhada pela água parada que a

represa retinha. O ruído da corrente se escutava com perfeição.

O edifício estava muito pior do que Mar recordava. O teto da

quadra, encostada ao edifício principal, tinha desaparecido quase por

completo e as pedras da parte superior dos muros tinham começado a cair.

O estábulo estava tão deteriorado quanto o resto da instalação, que devia

ajudar ao moleiro no transporte do grão, preferia viver no exterior que

permanecer dentro. O burro virou a cabeça quando passaram na sua frente.

O moinho não estava em melhores condições. Para começar, na

parede havia vários buracos e as partes que faltavam se amontoavam no chão

à espera que alguém as colocasse no mesmo lugar que se desprenderam. A

porta jazia no chão sem as dobradiças. Foi por isso que não encontraram

nenhum obstáculo que lhes impedisse de entrar. O dono da propriedade

roncava com a perna solta estirado no piso.

—Né, você, desperte! —vozeou o filho do comerciante.

Mas como percebeu que o grito não causava reação, deu um bom

chute no meleiro.

O moleiro despertou de repente e se levantou assustado, cambaleou

ao ficar em pé e Mar não custou supor que estava bêbado. O homem

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demorou um instante em se adaptar à luz das tochas. Seu rosto relaxou

quando reconheceu à pessoa que tinha na sua frente.

—Faz um tempo que não me visita.

—Sentia falta —comentou o filho do comerciante com ironia— e

pensei que já era hora de voltar a vê-lo.

—Traz mais companhia do que o normal. — O sorriso sinistro do

moleiro deixou à vista uma boca desdentada—. E pelo que vejo, ao menos

uma delas, vem de boa vontade —acrescentou em alusão à francesa.

Mar conteve um calafrio quando imaginou desgraçadas

circunstâncias que o filho do comerciante chegaria até ali com uma garota.

Nariz Cortado interrompeu o bate-papo da porta.

—Vamos ficar conversando toda a noite?

—Saia daqui —ordenou o mais jovem.

O homem não se moveu.

—Sabe que para que meu corpo descanse sob outro teto, necessito

certa ajuda.

A mão estendida do indivíduo não deixava lugar a dúvidas do que

reclamava. Mas aquela vez não teve sorte. A ameaçadora atitude de Nariz

Cortado ficou muito clara. O bandido não teve mais que aproximar a tocha

do rosto, mostrar as secas feridas e tirar uma faca debaixo da capa.

O moleiro levantou as mãos em sinal de paz e se pôs de lado, lhes

convidando a entrar.

—Tudo bem,tudo bem! Não era necessário que me pedissem isso

dessa maneira.

—Vai! —gritou Nariz Cortado sem sequer o olhar —. Não retorne até o

amanhecer!

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O moleiro se agachou, tirou uma bolsa de vinho de detrás de uns

vultos, lançou um olhar desumano e desapareceu, em companhia de seu

amigo mais fiel. Com ele se afastava a última esperança de Mar de sair

daquele atoleiro.

A francesa partiu atrás do bêbado e Mar ficou sozinha com Nariz

Cortado e com o, mais temível ainda, filho do comerciante. Nariz Cortado

tinha entregado a tocha à francesa. O filho do comerciante também se

desembaraçou da sua; tinha-a fixado junto à viga central do moinho. E

assim, com as mãos livres e o olhar lascivo brilhando nas pupilas, Mar soube

que não tinha escapatória. Não podia confessar que não tinha o selo porque

então não teriam nenhuma razão para conservarem a sua vida, nem podia

lhes ajudar a encontrá-lo porque de verdade, não tinha nem ideia de como

era nem onde estava. Entretanto, o instinto de sobrevivência pôde mais que

qualquer outro sentimento. Alargaria a situação tudo o que pudesse. Algo

como prolongar a vida uns minutos mais.

Mas a impostora voltou a aparecer antes que Mar pudesse dizer ou

fazer alguma coisa.

—Sua Excelência ficará fora. Começa a impacientar-se. A corte parte

amanhã de Navarra e é imperioso que a pedra esteja em seu poder.

—Iremos conseguir — assegurou o filho do comerciante —. Saiam

daqui. — A mulher deve ter pensado que a visão do sangue não era para ela e

acatou a petição —. Você também. Eu me encarregarei de lhe tirar a

informação —acrescentou voltando o olhar para Nariz Cortado.

—Nem pensar.

A desconfiança era patente no desfigurado rosto do malfeitor.

—Asseguro que sei o que faço —insistiu com orgulho.

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—Me permita que o duvide.

—Não é a primeira vez que consigo de uma mulher muito mais do

que ela está disposta a me oferecer.

—Não o duvido, mas acredito que por agora o que lhes arrebatastes se

limita a uns gritos e a sua castidade. Acredito que posso ser capaz de ir mais à

frente.

Nariz Cortado parecia muito seguro de que o filho do comerciante

não era mais que um vulgar violador. Mar estava absolutamente certa.

Pensava —sabia— que a crueldade daquele homem superava à mera «diversão»

de apoderar-se da inocência das filhas dos vizinhos.

—Sou capaz de fazer o que a senhora acaba de mandar. Não necessito

a ninguém que me ajude a finalizar o trabalho.

Nariz Cortado soltou uma gargalhada. Mar aproveitou a distração

para ocultar-se dos homens. Agachou-se para esquivar uma enorme viga que

atravessava a estadia de lado a lado, mas a claridade das luzes não era

suficiente para iluminar aquela zona e, um momento depois, golpeava o

joelho direito com uma das madeiras da estrutura que protegia o molar.

Ficou rente ao muro traseiro, coxeando e com os sentidos alertas na

discussão que estava tendo no interior do moinho e que crescia em

intensidade e virulência.

—Conheço o seu tipo e você atende apenas o que se encontra entre as

pernas. Sei o que acontece na sua mente cada vez que ela aparece na frente

se seus olhos. Não é mais que um sujeito que se deixa dominar pelo que tem

dentro das ceroulas —disse Nariz Cortado com desdém ao mesmo tempo em

que fazia um gesto de desprezo.

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—E você não? Acaso está cego? Deve ser que o mesmo que lhe

arrebatou o nariz e as orelhas, acabou com sua vista..., talvez tenham cortado

«outras coisas».

Depois dessa briga, Mar escutou um ruído de uns pés arrastando-se

sobre a poeirenta madeira e o ruído metálico das folhas de duas facas

chocando entre si.

O coração lhe deu um salto no peito. A única forma de salvação, era

que aqueles canalhas brigassem entre si.

E o estavam fazendo.

Mostrou à cabeça o suficiente para vê-los se moverem em círculos,

estava determinada a sair dali. Ela tinha uma tarefa para realizar e reatou os

esforços para soltar as ataduras.

Um chiado de dor deu asas a sua resolução e intensificou sua tarefa.

Duas navalhadas a mais e o filho do comerciante não voltaria a perseguir

ninguém, nunca mais.

Mar respirava em silêncio, observando a fúria daqueles homens e

rezava para que acabassem por cortar o pescoço um ao outro, pena que os

franceses que aguardavam no exterior não pensavam igual a ela.

—O que está acontecendo aqui! —Os ruídos pararam—. São uns

imbecis! Em vez de fazerem seu trabalho e tirarem a informação que

necessito, se convertem em competidores. Você! — chiou a impostora ao

filho do comerciante, que segurava o braço direito com um gesto de dor—,

Some daqui!

—Mas senhora...

—Imediatamente! —Do seu esconderijo, Mar o viu vacilar durante uns

instantes para, depois, acatar a ordem e desaparecer da estadia —: E você, se

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empenhe ao que viemos a fazer. Sua Excelência está irritado e não é dos que

perdoam os atrasos nem as falhas. Já lhe deu muitas oportunidades.

—Acredito que você tampouco o serviu muito bem nestas semanas —

balbuciou o bandido.

A mulher o olhou com aversão; entretanto, preferiu não responder.

Ela também queria acabar com aquele assunto e sair daquele pestilento lugar

o quanto antes.

— Onde está ela? —perguntou quando se deu conta de que Mar tinha

desaparecido.

—Não pode estar muito longe — grunhiu Nariz Cortado.

—Por aqui não está — escutou mulher dizer.

Mar o viu chegar e se encolheu tudo o que pôde, fechou os olhos e

deixou de respirar. Entretanto, não pôde fazer nada para evitar que a

descobrisse.

—Não procure mais. A garota já é minha — disse Nariz Cortado,

mostrando a cabeça por cima dos fardos que estava escondida.

O homem esticou o braço e a segurou pelo cabelo. Mar deu um coice

e mordeu os lábios em um vão intento de silenciar um gemido de dor. A

violência com que a arrastou para a entrada, deixava claro que estava

furioso. E ela ainda não tinha conseguido soltar as ataduras. As coisas

estavam negras de repente.

A mulher os recebeu com um sorriso na boca. Em silêncio, Mar

amaldiçoou aquela traidora que se deleitava de vê-la naquela situação.

—Já sabe o que é o que têm que fazer. Não me importa como, mas

consiga esse selo. Já!

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419

Nariz Cortado assentiu e apertou a faca com o que tinha ferido ao

filho do comerciante e que ainda sustentava na mão. A mulher se virou com

brutalidade e se dirigiu para a entrada. Deixava-a sozinha com aquele

homem selvagem. Reagiu imediatamente.

—Entrego isso com uma condição.

A francesa soltou uma gargalhada antes de se virar.

—Se por acaso não se deu conta, não está em situação de estabelecer

normas.

—Entregarei-lhes isso apenas se me explicarem por que é tão

importante.

A falsa prima aproximou o rosto a menos de um palmo de Mar.

—Ninguém, escuta bem?, ninguém vai explicar nada para você!

—Então, tenha a certeza de que vai ficar sem o que tanto deseja.

A bofetada fez Mar perder o equilíbrio.

—C’est fini! Agora irá saber quem é Solange de Vigny!

E só então, Mar se deu conta de que o medo que tinha suportado até

esse momento não era nada em comparação com o que ia padecer nas mãos

daquela mulher.

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CAPÍTULO 30

Fazia um tempo que Gabriel se amaldiçoava por não ter perguntado à

criada se o grupo tinha partido caminhando ou se, pelo contrário, levavam

algum tipo de cavalgadura. Tinha perdido muito tempo. Primeiro

percorrendo parte da cidade em busca de seu cavalo e, logo, discutindo com

os soldados da Porta de São Agustín para que o deixassem sair de novo.

Tinha cruzado o rio pela Ponte da Mercê, fora já do perímetro

urbano, e tinha seguido as instruções da moça ao tomar o caminho que

transcorria paralelo ao rio. Segundo seus cálculos já deveria ter chegado ao

moinho.

A noite estava clara e o cavalo respondia aos sinais que Gabriel fazia.

Mesmo assim, não podia obrigá-lo a cavalgar na velocidade que desejava e

estava começando a se desesperar.

—O que acontece? —sussurrou ao corcel quando este diminuiu a

marcha.

A besta moveu a cabeça de um lado ao outro e soprou, foi toda a

resposta. Gabriel observou com cautela a seu redor. Algo havia colocado

nervoso o animal.

Um homem jazia deitado aos pés de uma árvore.

—Diga a seus amigos que não me esquecerei disto —disse o que estava

no chão com a fala vacilante.

Gabriel desmontou com pressa e se agachou junto a ele. Não teve

que comprovar o conteúdo da bolsa para saber que o homem a tinha

esvaziado dentro do estômago.

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—Passaram por aqui três homens e duas mulheres?

A boca do homem se torceu em uma careta, que em outras condições

poderia ter sido um sorriso.

—Boas empregadas. Esse menino não tem mal gosto. Trata-as pior

que às bestas, mas as escolhe bem. Hoje vem com dois. Claro que terá que as

compartilhar com os outros. —deixou escapar uma risita estúpida—. Eu ficaria

com a garota, a mais elegante não parecia ter bom caráter. Gritava muito.

—Onde estão?

O moleiro fez um gesto vago na mesma direção que Gabriel se

dirigia.

—No moinho.

—Fica longe?

—O encontrará em seguida.

Gabriel não esperou mais. Já sabia tudo o que necessitava.

«Encontrei-os», pensou enquanto meditava os passos a seguir.

O bêbado tinha fechado os olhos. Calculou que naquele estado não

seria nenhum perigo para ele assim atou as rédeas dos arreios em uma árvore

próxima e se preparou para percorrer o último lance.

Assim que o moinho esteve à vista, o primeiro que descobriu foi dois

formosos cavalos. Pastavam com toda tranquilidade junto a uma esquálida

mula. um pouco mais à frente, sentado em um banco de pedra, havia um

homem. A aquela distância não pôde precisar nem a idade nem a

corpulência do sujeito e muito menos se estava armado.

Escutava vozes por cima do incessante rumor da água. Várias vozes.

De homem. E de mulher. Concentrou-se nelas. Eram de duas mulheres

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distintas. Apoiou-se em um tronco ao mesmo tempo em que inspirava com

força e notava como o coração voltava a pulsar vigoroso dentro do peito.

Mar estava viva.

Não se via nenhuma luz no interior das ruínas do edifício. A escassa

claridade procedia de detrás deste. Era ali onde deviam estar. Observou toda

a área. Era bem grande, já que o bosque ficava mais afastado. Não havia

nenhuma possibilidade de que se aproximasse até aquele lugar, sem que o

descobrissem.

Desamarrou as cordas da capa e a jogou de lado. Precisava ter o

menor estorvo possível quando começasse a luta. Que ia ser logo. Dentro da

roupa, tirou uma faca que agarrou com a mão esquerda e outra maior

empunhou com a direita.

Decidiu aproveitar a vantagem e avançou no prado com muita

rapidez. Teve sorte. O homem estava mais ocupado consigo mesmo, do que

a noite pudesse proporcionar, em um lugar tão solitário como aquele. Não o

viu até que o teve a sua frente.

Mas era bom. Reagiu com rapidez, assim que intuiu a inesperada

presença. Agarrou a adaga que tinha deixado sobre o assento em que

descansava e se levantou de um salto.

E tinha boa memória. Gabriel notou a surpresa em seu olhar quando

o reconheceu.

—Chegou o herói para resgatar à garota — ironizou o filho do

comerciante sem tirar os olhos de cima.

—Parece surpreso.

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423

—Na verdade estou. Pensei que alguém como você, limitava isso a

desdobrar suas artes amorosas em seduzir às donzelas e às devolver a sua casa

quando se cansava delas.

Gabriel refreou o golpe e apertou as mãos, para não lançar-se sobre

ele. Isso era o que o outro estava desejando.

—Deve estar se referindo a você mesmo — respondeu com

serenidade—. Só que não acredito que o que você faz, seja as deslumbrar com

seus encantos, diria que se limita a estender suas garras e pegar aquilo que

não é oferecido de boa vontade.

O filho do comerciante franziu o cenho ante a acusação. A tática de

Gabriel começava a fazer efeito. A idéia era que seu competidor fosse o

primeiro em atacar, e que o fizesse levado pela ira. Essa era a maneira de

pegá-lo com a guarda baixa.

— Vejo não está a par das, chamemos assim, atividades que sua

antiga concubina aplicou por própria vontade com minha pessoa estes

últimos dias.

Gabriel fingiu uma gargalhada enquanto sentia as lascas do punho

das facas cravando-se nas Palmas.

—Com você? Não tenho nenhuma dúvida de que não consegue o que

ambiciona se não contar com ajuda alheia. Nem sequer reúne o valor

suficiente para fazê-lo sozinho — acrescentou fazendo uma clara referência de

uma vez em que tinha liberado Mar da emboscada da beira do rio. E como

percebeu que o rosto de seu oponente empalidecia à luz da lua, disparou—:

Não é mais que um covarde!

A flecha acertou no centro do alvo.

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O filho do comerciante se lançou para ele como um javali ferido

contra o caçador que sustenta o arco. Gabriel deu um salto e se afastou a

tempo para vê-lo passar ao seu lado. O outro se deteve quando viu a

facilidade com se esquivou. Aquilo o pôs ainda mais furioso e se equilibrou

de novo contra Gabriel, enquanto atirava punhaladas de um lado e outro.

Gabriel afastou as duas primeiras com contundência, entretanto, à terceira

investida notou que o rival não se movia com a mesma firmeza.

Fixou-se então no sangue que empapava a manga da camisa, por

debaixo do cotovelo e como o braço direito estava pendurado inerte junto ao

corpo. Percebeu também a dificuldade que dirigia a arma com a mão

esquerda. Aquele indesejável já tinha tido uma briga com alguém antes de

sua chegada. Alguém que não teve tanta paciência para aguentá-lo. Fora

quem fosse, Gabriel agradeceu. Embora se arrependesse do tempo que

desperdiçou em não ter dado conta antes desses ferimentos. O que tinha

diante de si, não era mais que um verme que se esmaga com a sola do

calçado.

Retrocedeu uns passos, crédulo.

—Vejo que cedestes a outro a amabilidade de ser o primeiro em

saldar contas com você.

—Você acha, que fazer um ferimento, acaba com suas aspirações

sobre mim?

Gabriel vacilou um instante. O faria? Não teve que pensar muito

tempo. A imagem do filho do comerciante passeando com o olhar obsceno

em Mar lhe deu a resposta.

—Não —respondeu terminante enquanto dirigia a larga folha da faca

para o centro do estômago do outro.

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Entretanto, antes que a estocada alcançasse o seu objetivo, a faca

saltou de sua mão, enquanto sentia como se o cavalo e o burro entrassem em

um acordo para chutar seu braço.

Pela segunda vez na vida, encontrou-se cara a cara com a visão mais

nauseante que conhecia.

—Segure isto e recolha a arma! — ordenou Nariz Cortado a seu

afortunado cupincha enquanto erguia a tocha.

—Você! —grunhiu Gabriel sem deixar de esfregar o braço para mitigar

a dor do impacto da pancada.

—Nos encontramos de novo.

—Deveria tê-lo matado quando tive oportunidade.

—Isso é algo do que se arrependerá durante pouco tempo. Só uns

minutos até que meu amigo e eu demoremos em fatiar a sua garganta.

Nariz Cortado tinha razão. A situação tinha mudado. Agora eram

dois contra um. Embora o mais jovem estivesse ferido, sempre poderia lhe

ameaçar pelas costas. E Gabriel ficou unicamente com a adaga menor.

Os outros começaram a avançar e ele a retroceder. Da roupa de Nariz

Cortado desprendiam gotas de água que Gabriel não quis analisar. A cara

zombadora do filho do comerciante não deixava nenhuma dúvida de que

estava desfrutando com aquilo. Não custou muito encurralá-lo. Gabriel deu

vários passos atrás e topou com o muro do moinho. Qualquer arremesso de

seus adversários acabaria com sua vida. Sabia. Mas preferiram saborear a

vitória e atrasaram uns instantes antes de acabar com o prêmio.

E aquilo o salvou. No momento.

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Gabriel apalpava a parede desesperadamente com a mão esquerda e

encontrou o oco da porta. Entrou por ela.

A risada de Nariz Cortado chegou a Gabriel com claridade.

— Saberá nadar?

O filho do comerciante se uniu às gargalhadas.

—Agora veremos o que vai decidir quando tiver que optar entre salvar

sua pele ou a de sua concubina.

Mar. Ouvia-a. Ouvia sua voz de novo. Mais clara, mais perto. Entrava

por um vão que havia em suas costas. Junto a aquele temível som.

Nariz Cortado e o filho do comerciante entraram detrás dele. Gabriel

fechou a mente ao ruído da água saltando entre as rochas e saiu para fora

por aquele buraco.

E topou de frente com o pior pesadelo.

Encontrava-se em uma desmantelada passarela que passava ao longo

da fachada do moinho. Havia um par de madeiras apoiadas sobre outras que

se sobressaíam a modo de vigas do muro do edifício. Entre as pranchas se

podiam ver, ouvir e sentir a água que se precipitava pelo canal, a caminho da

roda.

As ripas de madeira balançavam quando pisou e Gabriel teve que

agitar os braços como um pássaro a ponto de se lançar ao voo para tentar

não cair na água. Apavorado, fechou os olhos e se apoiou na parede. Com

todas as forças.

—Nossa presa não chegou muito longe.

Nariz Cortado passava a cabeça pelo mesmo lugar que Gabriel tinha

passado.

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—Já o temos. Teria que ser um peixe para sair daí —respondeu o filho

do comerciante.

—Talvez um pássaro, porque não acredito que esta roda dai debaixo,

deixe passar um animal dessa envergadura — acrescentou Nariz Cortado,

pondo um pé sobre a primeira das pranchas.

Gabriel conteve o fôlego quando seu corpo oscilou com a vibração

que o peso do malfeitor gerou sobre os troncos. Tragou saliva antes de voltar

a abrir os olhos.

Em efeito, à esquerda, a roda subia e baixava obrigada pela força da

água em um movimento incessante que ameaçava esmagar qualquer corpo

que penetrasse no mecanismo. Afastou a vista da roda. Um canal se abria

por debaixo dele, o fabricaram para desviar a corrente para aquele ponto. Do

outro lado deste, uma represa tentava com muita dificuldade conter o leito

do rio. As últimas duas semanas tinham sido muito chuvosas e as pedras e os

troncos armazenados naquele ponto não conseguiam conter toda a corrente

que transbordava por cima deles. E que molhava Mar.

Porque ela estava ali, de pé, no meio, no alto do dique, com as costas

dobrada por culpa de um pesado vulto que sujeitava entre as mãos.

—Qu’est-c que cet homme fait ici?22

A pergunta procedia de outro homem, um que permanecia na borda,

meio oculto na esquina do edifício. Um pouco mais próximo do moinho,

sobre uma rocha banhada pelo rio, havia uma mulher elegantemente vestida.

Blanche de Dreux, a prima.

—Quem é esse? —traduziu a mulher.

—O fulano que ela viajou até Olite — respondeu Nariz Cortado.

O homem e a mulher intercambiaram umas palavras.

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—Matem!

O delinquente não o pensou duas vezes e avançou uns passos em

direção a Gabriel.

—Nooooo!

O alarido de Mar atravessou o ar frio da noite. Todas as cabeças se

voltaram para ela.

—Sei o que procuram! —gritou Gabriel.

Pronunciou as palavras apropriadas. Conseguiu que toda a atenção

se centrasse nele e se esquecessem por um momento dela. «Se pudesse

retornar à borda e refugiar-se entre as árvores...»

—Está mentindo!

A mulher era desconfiada.

—Não estou! O selo se encontra em meu poder.

—Se for certo o que diz, nos mostre!

Após pronunciar aquela frase, Nariz Cortado foi para o lado da

mulher com a tocha. O bandido começou a nadar rápido em direção a Mar.

—A deixe partir primeiro! Ela não sabe nada, o ourives nunca a

ensinou nem lhe explicou a importância que tinha.

A mulher virou para homem da borda e mantiveram uma agitada

conversa que para Gabriel pareceu interminável. Ver a silhueta de Mar no

centro da represa sem poder expressar o pânico que era perdê-la, atravessou

o seu coração e o partiu em dois. Tão absorto estava em acariciá-la com o

olhar que não viu o gesto que a mulher fez a Nariz Cortado. Notou o

movimento das pranchas quando este retrocedeu, entretanto, não teve

tempo de comprovar o que estava acontecendo. A mulher voltava a dirigir-se

a ele.

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—Acredito que não está em situação de impor condições!

—E você deveria saber que não tenho nada que perder!

Mas, ao pronunciar aquela frase, Nariz Cortado apareceu junto à

mulher com uma tocha na mão. O bandido começou a andar por cima da

represa em direção a Mar.

—Eu acredito que têm algo para perder! —assinalou a francesa—. Isso

que ela carrega nos braços é uma roda de moinho. Um pequeno empurrão e

cairá do outro lado da represa. Tenho entendido que esta zona do rio tem

inumeráveis poças. Não seria a primeira vez que alguém tem vontade de dar

um mergulho de cabeça, tem um acidente e aparece boiando abaixo do rio

uns dias depois.

«Outra vez não, Senhor, não permita que aconteça com ela.»

A mente e o coração de Gabriel começaram então uma carreira vital

em que não chegar à meta significava a morte para Mar e a agonia perpétua

para ele. Calculou o tempo que demoraria em eliminar o filho do

comerciante e descer até a borda, mas o cérebro bloqueou outra vez ante a

visão do fluxo da corrente que saltava ante seus olhos. Nariz Cortado já

tinha chegado ao lado de Mar e a segurava pelo braço.

E ele não sabia o que fazer para evitar sua morte.

De novo foi Mar que o salvou do inferno.

—Por que? por que querem acabar comigo?

A mulher pareceu estupefata ao escutar a prisioneira, mas se repôs

em seguida e começou a rir.

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—Não passa de uma estúpida que não conhece sua própria

condição!

—Pertenço à família dos condes de Bretanha e só por isso mereço que

alguém me explique qual é meu pecado antes que se aplique a sentença.

Imagino — acrescentou sem deixar de olhar o homem da borda—, imagino

que Sua Excelência estará de acordo comigo.

Entretanto, nem o régio cavalheiro nem a falsa prima fizeram ameaça

alguma de satisfazer a petição de Mar, assim Gabriel começou a falar outra

vez. «Ganhar tempo, mais tempo» era seu único pensamento enquanto as

palavras saíam atropeladas de sua boca.

—Ao que parecer, sua prima e esse homem procuram algo que seu pai

deixou para você. Algo muito importante. Um selo real.

—Não o tenho e eles sabem.

—Disse que estava em seu poder e que o encontraríamos aqui!

—Só para se confundirem!

—Trata-se do selo da coroa de Navarra. Não imagina o poder que isso

outorga ao que o possui?

Mar sabia.

—Qualquer documento que se estampe se converterá

automaticamente em legal.

—E, se não me equivocar, sua prima está muito interessada em

conseguir esse benefício.

—Não é minha prima. Não é mais que uma mulher que se faz passar

por ela — espetou Mar com desprezo.

A impostora riu.

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—Sou mais compassiva que ela. E agora que já acabaram as

explicações... —Fez um gesto para Nariz Cortado.

—Isso não esclarece parte das coisas! —gritou Mar que aproveitou para

deixar escapar todas as incógnitas que lhe tinham rondado pela cabeça desde

que aquela mulher chegou a sua casa —. Por que? O que o abade do Irache

em tudo isto? Quem é esse homem? Quem são vocês?

«Boa garota. Siga falando, siga. Confunda-os, os obriguem a prestar

atenção, têm que ganhar tempo, mais tempo.»

Desta vez, o desesperado discurso de Mar fez mais trinca na falsa

prima e em Sua Excelência que um momento antes. A francesa de novo se

voltou para o homem e este deu sua aprovação. Gabriel aproveitou que a

mulher começava a falar para deslizar-se de volta para o interior do moinho,

onde o filho do comerciante estava sozinho.

—Em efeito, é minha senhora, Blanche de Dreux, que me mandou

buscar o selo — escutou que dizia —. O Reino de Navarra seria dos condes de

Bretanha se o pai de sua avó tivesse firmado a promessa dada e o tivesse

entregado como dote. É da família por direito próprio, nunca deveria sair

dela.

—Por que agora? por que não antes?

—Com a rainha Juana falecida, seu filho, Luis I, é um monarca jovem

e inexperiente. Entrar em seu círculo de confiança não foi difícil — confessou

olhando o nobre de soslaio —. O selo real facilitará a redação e assinatura de

alguns documentos.

—Sem a necessidade de que o monarca os revise. Se serve da vida das

pessoas para satisfazer sua cobiça —apontou Mar com desprezo.

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—Não têm nem ideia do que fala — respondeu a mulher com

desdém—. Com esse selo, minha senhora poderá balançar as forças políticas

europeias a seu desejo e as colocar em um ou outro extremo.

Um movimento por cima da impostora fez que Mar desviasse o olhar

para ali, justo para ver Gabriel desaparecer dentro do edifício. Reagiu com

rapidez e continuou falando para distrair à mulher.

—E por que não esperar que eu chegasse a Rennes como estava

previsto? Eu não o quero para nada, o teria entregado a Blanche se me

tivesse pedido isso.

A mulher a olhou incrédula.

—Pensa que teria chegado? A morte de seu pai foi uma sorte para os

planos de minha senhora. No fim, não é a mesma coisa fazer desaparecer ao

irmão do conde de Bretanha que a uma filha desconhecida por todos.

Acompanhar ao rei com o seu séquito por todo o reino foi à desculpa

perfeita para chegar até você.

—Se tinha intenção de me eliminar durante a viagem para ficar com o

selo, por que vieram esses homens em minha casa?

—Que você estivesse viajando enquanto o assalto se produzira era

uma maneira singela de justificar sua morte para o resto da família. Mas Sua

Excelência queria ter o selo o quanto antes. Os caminhos não são seguros e

não queria arriscar-se a que algum outro se adiantasse.

—E o abade? Que parte tem ele em tudo isto?

—A influência de minha senhora alcança inclusive aos lugares mais

remotos. A vida espiritual não é levada muito a sério para alguns religiosos.

Há muitos que não duvidam em inclinar-se na frente de uma bolsa de

moedas. Sobre tudo se estiver bem repleta.

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—Mas no final, se complicou.

—Esses inúteis! Tudo se complicou quando chegaram a sua casa e não

a encontraram sozinha.

—E Nariz Cortado não teve mais alternativa que partir sem a joia.

—Sua Excelência decidiu então acompanhá-lo para se assegurar de

que o selo acabava nas mãos corretas. Mas as coisas voltaram a sair mal.

Desapareceram da caravana.

«Graças ao Gabriel.»

—Mas voltaram a me encontrar.

A falsa prima assentiu.

—Em Olite.

Mar se surpreendeu pela resposta. Tinha-os visto antes, perto de

Artajona, depois que Gabriel a abandonou. Recordou que então estava

disfarçada de homem e que se escondeu detrás de uma árvore. Não a tinham

descoberto.

Mar não resistiu há avivar um pouco mais a aquela espantosa

mulher.

—Estive no castelo. Estive dentro. Trabalhei na cozinha durante dois

dias. —A mulher percebeu o golpe e deu um coice—. tiveram mais ocasiões

das que pensavam em que puderam me apanhar. Como se inteiraram de que

tinha retornado a Estella?

—Graças a uma das mulheres do prostíbulo.

—Elvira.

—Ela avisou a Sua Excelência de que retornava a sua casa.

—E apareceram quase no mesmo tempo que eu.

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—Pensávamos que se confiasse em mim, nós conseguiríamos nos

inteirar de onde guardava o selo.

O orgulho que a mulher pronunciou aquele «nós» esclareceu a Mar a

incógnita de quem era de verdade. «A amante de Sua Excelência, além de

alguém de confiança de minha querida prima.»

—Trocaram de tática.

—Acabava o tempo. O rei e toda a corte retorna a França amanhã

mesmo. —E aquela frase serviu para que a mulher pusesse fim às

explicações—. Basta já de falatórios e de confissões!

—Isso digo eu! Acabou esta farsa! Diga a seu capacho que a solte ou

juro que o rei retornará a França com um cortesão a menos.

Gabriel estava junto à água e apertava a ponta da faca contra o

pescoço de Sua Excelência.

A mulher se esqueceu de Mar para concentrar-se no novo

contratempo.

—Non sãs o bijou23 — balbuciou o francês.

—Só se me entregar o que asseguram ter em seu poder — vaiou ela

com os olhos brilhantes pela ira.

Gabriel apertou a ponta da arma contra a pele do nobre para deixar

claro que ante qualquer movimento suspeito acabaria com uma boa casa no

meio do cangote e utilizou a mão esquerda para mexer na bolsa que levava

na cintura.

As chamas da tocha da mulher fizeram refletir as imagens douradas

da peça e dos anjos quando tirou a tabuleta. Mas ela mantinha olhos para as

pedras que estavam sobre as figuras.

—Aqui o têm. É seu assim que ela retorne à borda.

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—Como sei que o selo se encontra aí?

—Têm minha palavra.

A mulher inspirou duas vezes antes de dar a ordem a Nariz Cortado.

Enquanto isso, Gabriel já estava calculando como sair dali. Sabia que assim

que a tabuleta trocasse de mão, voltariam a estar em perigo. E que houvesse

lua cheia não favorecia a fuga. Olhou de esguelha as árvores próximas.

Entraria no bosque, faria uma prece para o Altíssimo e se esconderiam.

—A traga aqui!

Os ombros de Mar relaxaram ao escutar aquelas palavras. Mas o

descanso durou pouco tempo.

—Esteja certa de que nenhum dos dois dormirá esta noite em sua

cama. Com um pouco de sorte, você farão isso debaixo de mim e ele no

fundo de uma fossa — sussurrou Nariz Cortado com voz ameaçadora, ao

mesmo tempo em que cravava os dedos no braço dela.

Mar não queria que aquele nauseabundo ser a seguisse tocando nem

um só instante mais. Sacudiu-se com fúria sem calcular as consequências. O

peso da pedra bruta foi muito para seus braços. E a pedra caiu no rio.

A arrastando consigo.

O corpo de Mar ao entrar em contato com a água pôs em alerta

Gabriel, que dirigiu o olhar ao centro do dique. Justo no instante que as

águas a tragavam.

Nada mais importou. Esqueceu-se do selo, da mulher, do nobre e de

Nariz Cortado. Esqueceu-se do rei, de Estella e de Olite. Esqueceu-se do

irmão Roger, do comendador e dos templários. Esqueceu-se dele, de seu

passado, de seu presente e de seu futuro. Esqueceu-se de tudo, de tudo

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436

menos do rosto macilento, inchado e desfigurado de seu pai quando o

tiraram afogado do rio Arga.

Correu até a rocha em que tinha visto a francesa pela primeira vez e

pulou para ela. Só para ver como as águas recuperavam as ondulações

naturais pouco a pouco. Saltou de pedra em pedra sem afastar os olhos do

rio. As aterradoras palavras da mulher invadiam a sua mente: «Tenho

entendido que esta zona do rio tem inumeráveis poças», havia dito.

E Mar jazia no fundo de uma delas.

Gabriel ficou louco.

—Malditos! Malditos sejam! Era isto o que desejavam? — bramou

enquanto elevava a tabuleta sobre a cabeça—. Pois agarrem vós mesmos! —

gritou antes de jogá-la no canal.

Não se inteirou de nada mais. Não escutou o grito da mulher nem

ouviu as vozes do nobre nem viu os esforços de Nariz Cortado para parar a

roda nem escutou o rangido da madeira ao triturar a tabuleta. Tudo

desapareceu ante a certeza de que a mulher que amava se afogava perante

seus olhos. Enquanto ele ficava imóvel com os pés cravados na rocha,

incapaz de fazer nada para salvá-la.

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437

CAPÍTULO 31

O primeiro que pensou Mar quando se inundou no rio foi que a água

estava gelada. E depois, que em pouco tempo estaria morta.

Era curioso, mas aquela ideia, em vez de lhe aterrar, lhe reconfortou.

De repente, dava-se conta de que morrer não era tão mau, não tanto como

seguir respirando sozinha, como viver como o tinha feito os últimos quinze

dias, com Gabriel longe dela.

Porque aquela vez não ia ser como as outras, ele não apareceria no

último momento, não a resgataria, não ali, não debaixo da água.

Deixou-se arrastar pela pedra que tinha atada aos braços. Os pés se

chocaram com o fundo antes do esperado. Teria desejado não chegar nunca

ao final, que os últimos instantes de sua vida transcorressem com a mesma

placidez com a que tinham acontecido àqueles breves segundos. Abriu os

olhos e olhou para cima. A luz de uma tocha se movia de um lugar a outro.

Seria Gabriel procurando-a.

Gabriel. Tinha retornado. Por ela.

De repente, ficou claro. E a vida alagou a razão.

Já não queria morrer, não queria desaparecer, não queria que

ninguém chorasse sua perda nem se lamentasse de sua desgraça. Não queria

que derramassem lágrimas sobre seu ataúde. Não.

Queria viver, ficar velha e se encurvar, lamentar-se pelas rugas e que

clareava o cabelo. Queria rir e chorar. Queria correr pelo campo, manchar as

mãos de terra, subir às árvores. Queria... Queria-o. Queria escutar sua voz,

ouvi-lo discutir, enterrar os dedos em seu cabelo e beijar suas cicatrizes.

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Queria segurar a sua mão, deitar-se nua a seu lado e que esquentasse os seus

pés.

Começou a lutar contra as ataduras. Desesperada, esfregou os braços

entre si para tentar afrouxar as ligaduras que a impediam de subir à

superfície e respirar. Doía-lhe o peito. Apesar de que tinha os pulmões a

ponto de estalar, negava-se a respirar. Assim que abrisse a boca estaria

perdida.

A batalha durou pouco. Não aguentaria muito mais, apenas faltavam

uns segundos. Já era tarde para ela. A tentação de se deixar seduzir pela

calma que precede o trânsito à vida eterna era muito intensa. «O fim

chegou», pensou enquanto deixava que as lágrimas se fundissem com a

corrente.

Não soube como tinha acontecido, mas ali estavam. Uns lábios que

apanharam sua boca e a obrigaram a abri-la. Uma baforada de ar novo a

resgatou de cair no último transe. Eram outros dedos, outras mãos lutando

junto aos seus para liberar-se das sujeições que a ancoravam à morte.

Gabriel teve que subir quatro vezes mais à superfície para respirar.

Dois para encher os pulmões e outras duas para os de Mar. Cada vez que

aspirava uma baforada e voltava à superfície, ficava aterrorizado em pensar

que a encontraria morta. Depois de várias tentativas, conseguiu cortar a

corda com a faca.

E em um instante estavam acima. Na borda oposta, entre os juncos,

ocultos de seus captores.

—Está bem? —perguntou Gabriel arfando.

Mar, que se debatia entre ofegos e tosses, limitou-se a assentir com os

olhos cheios de lágrimas.

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Gabriel não a deixou se recuperar. Tomou o seu rosto entre as mãos

e a beijou. Com a agonia de quem esteve a ponto de perder parte de seu

próprio ser. A intensidade do contato logo fez desaparecer a frieza dos lábios

de Mar. Começava a tomar parte na carícia quando Gabriel a soltou de

repente.

Esperou que ela controlasse a respiração e o entendimento antes de

tomar outra decisão.

—Não podemos ficar aqui. Vamos, agora que ainda estão mais

preocupados em localizar o selo que por saber o que foi feito de nós.

—O que fez com a tabuleta?

—Atirei a tabuleta na água do canal. As partes devem descer na nossa

frente.

Gabriel evitou o fato de que a peça, era uma das lembranças mais

queridas de Mar, a agarrou pela mão para saírem dali, e ficou estupefato ao

notar resistência.

Esta vez foi ela que se pendurou em seu pescoço e se fundiu com ele.

Saqueou seus lábios. Provou-lhe, mordeu-lhe. Saboreou sua língua, delineou

seus dentes. Jogou com ele. Até pôr a prova sua integridade.

—Se soubesse qual seria o prêmio por lhe resgatar teria chegado antes

—sussurrou ele, depositando vários beijos sob o lóbulo da orelha.

A risada de Mar, indicou que estava de acordo.

—Não disse que já íamos?

E assim, com um sorriso na boca, ambos deixaram ser arrastados pela

corrente e desceram o curso do Ega durante um trecho.

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—Espero que seja uma suficiente distancia. Não podemos continuar

indefinidamente no rio. Estamos a mais de seis milhas de Lerín — comentou

Gabriel um momento depois, obrigando-a a parar em uma clareira do rio.

—Está certo?

—Tanto que se continuo dentro da água muito mais, acabarei com os

pés dormentes.

Mar se colocou na sua frente e procurou não se apoiar muito no

fundo enlameado e deu em Gabriel um sonoro tapa no ombro. As gotas

saltaram para todos os lados e salpicaram o seu rosto.

—Mentiroso! —Ele a olhou sem compreender nada. O que pensa

agora? —. Sabia nadar e me têm feito acreditar que não sabia fazê-lo!

Gabriel conteve a perplexidade um instante e logo depois explodiu

em gargalhadas.

—O irmão Roger podia ser muito persuasivo quando queria

conseguir algo.

—A água dava um pavor enorme em você! Vi seu rosto. Não pode

entrar no rio quando fugíamos do castelo com o religioso. E, no bosque,

voltei a reparar no sobressalto com o que observava a corrente.

Gabriel separou uma mecha de cabelo que tinha ficado aderido em

seu rosto, atraiu-a para ele e a beijou com delicadeza.

—Está certa. Ao que parece só foi encontrar uma causa

suficientemente importante para desprezar os fantasmas que me rondavam

desde a infância. Agora me ocorrem milhares de razões, mas permanecer

junto a você o resto da existência é a mais importante de todas — sussurrou

junto à boca de Mar. A ela ficou com a pele toda arrepiada —. A seguirei ao

lugar que for. Não me importa onde seja, se aqui, na terra, ou mais à frente,

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seja céu ou seja inferno, mas estarei com você, o resto de meus dias... e de

minhas noites.

Mar quis gritar e saltar até tocar as estrelas. Mas se limitou a fazer o

que pensava se dedicar mil vezes ao dia a partir de então, voltou a beijá-lo.

Com toda sua alma, com todo seu ser, com toda sua vida. Porque estava viva,

porque estava com ele.

Um momento depois, quando seus lábios já estavam saciados de

beijos e seus corpos tensos, decidiram sair dali. Sairiam pela borda oposta.

Mar caminhava na frente. Uns passos a mais e poria os pés sobre a

terra. Estava a ponto de sair quando sua mão roçou algo duro que flutuava

no rio. Deu um salto e se virou assustada.

Gabriel estava a seu lado imediatamente.

—O que é isso? — assinalou ela.

—Isto — pronunciou cada letra com intensidade—, isto é o que sobrou

dele ... Um vulgar delinquente.

—É...?

—O filho do comerciante —respondeu Gabriel à pergunta não

formulada.

—Mas como...?

—Como chegou até aqui?

Gabriel o tinha matado.

Quando Mar e a francesa conversavam, explicou a Mar, foi o tempo

necessário para se livrar dele. E não tinha sido fácil. Quando Gabriel entrou

no moinho pela passarela de madeira, o filho do comerciante estava

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tranquilamente sentado em um dos sacos do armazém, não o pegou

despreparado. Embora Gabriel tivesse a vantagem — aquele mal nascido

tinha o braço direito inabilitado —, o outro era jovem e rápido. Gabriel se

lançou contra ele logo que o viu, mas o homem se levantou com a rapidez de

uma lagartixa disposto a não se deixar alcançar e se esquivou. Gabriel o

prendeu contra a parede. Mas o reflexo de sobrevivência daquele verme

contou a seu favor; se colocando no lado contrário da estadia, no lugar que

ele deveria entrar, diante do vão que ele iria acessar o perigoso balcão, onde

Mar estaria. Gabriel não pensou muito tempo. Só tinha aquela

oportunidade. Mar continuava falando, a escutava por cima do estrondo da

água, mas os franceses logo se cansariam de dar explicações e tomariam uma

decisão. Assim que se equilibrou sobre ele, com a faca na mão. Pôs toda a

alma naquele golpe. E o alcançou pelo lado direito. O ímpeto do choque o

deslocou para trás e o corpo caiu para fora, para dentro do rio. Aquela tinha

sido a última vez que o tinha visto. Gabriel não seguiu o mesmo caminho

porque se segurou na lateral da janela e conseguiu se equilibrar. Depois, deu

a volta e saiu correndo.

—Tão absorta estava no que a francesa te dizia que nem se inteirou

do que acontecia. O resto já sabe. Sua Excelência não me viu chegar e eu

aproveitei para caçá-lo como um coelho.

—E o que fazemos agora?

—Com este verme? —perguntou com um gesto de desprezo.

Gabriel liberou o corpo dos matagais em que se enredou e o

empurrou rio abaixo.

—Que o comam os peixes.

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Sair da água foi pior que estar dentro dela.

—Faz um frio do demônio — comentou Gabriel, esfregando os braços

com força.

—Nos vamos congelar.

Ele se adiantou, atraiu-a para ele e a abraçou.

—Temo que por agora tenha que se conformar com isto — disse com

fingida gravidade enquanto a estreitava entre os braços.

—Acredita se lhes disser que é algo que eu poderia chegar a me

acostumar.

—Está certa disso?

—Completamente.

Gabriel depositou um beijo sobre a ponta de seu nariz e olhou a seu

redor.

—Não podemos ficar aqui.

—Pois não vejo outra opção. Estella é a única vila que podemos ir e

para chegarmos, temos que ir para o outro lado do rio. Isso significa que

estaremos próximos do moinho e que esses canalhas podem nos descobrir.

—Teremos que nos arriscar. Se permanecermos aqui mais tempo com

as roupas molhadas, iremos congelar.

Não tiveram mais alternativa que voltar o trajeto. Embora desta vez,

estavam caminhando.

Para Mar foi uma caminhada eterna. Andavam devagar, pisando com

muito tato para não fazer ruído. A umidade do lugar estava a seu favor, já

que a vegetação da borda e a folhagem estavam bem molhada, de modo que

não quebrasse sob o peso de uma pessoa. Gabriel estava confiante em vê-los

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primeiro se é que os estavam procurando. Era impossível se ocultar com as

chamas de uma tocha em plena noite.

—Shhh! — falou Gabriel. Tinha parecido ouvir um som longínquo.

Mas o único que escutou por cima do murmúrio do rio foi o bater de

dentes de Mar —. Irá ficar doente com essa roupa. Tire o vestido.

—Mas...

—Minha capa ficou perto do moinho. Terá a possibilidade de se

esquentar em breve.

Mar não estava muito convencida, mesmo assim fez o que pediu. Ao

menos se despojaria de parte do peso e avançar seria menos fatigante.

Meia hora mais tarde encontraram o moinho. O outro lado da

borda, estava mais solitário que nunca. Pararam na altura do dique. Para

chegar até Estella, teriam que passar por cima da represa, já que não havia

outro lugar para atravessar se livrando da corrente. Agacharam-se atrás de um

arbusto e aguardaram.

—Parece que se deram por vencidos — murmurou Mar.

—Confiemos que assim seja e que não estejam ocultos à espera de

nosso retorno. Na verdade, não tínhamos outra opção além de voltar aqui.

—Vamos? —disse Mar de uma vez que se levantava.

Gabriel a deteve.

—Eu irei primeiro, você me seguirá e, a na menor suspeita, dê a volta

e escape.

Mar o olhou relutante.

—Nem pensar, não vou deixá-lo sozinho com esses assassinos.

Gabriel a pegou pela cintura, a atraiu para ele e a beijou com

intensidade.

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—Me escutem bem — advertiu quando se separou dela—. É a luz de

meus olhos e a voz de minha garganta, a música de meus ouvidos e a seda de

meus dedos. É a força de minhas pernas e a energia de meus braços. É o

calor de meu peito, é o sangue de minhas veias e o sustento de meu corpo. E

não penso em renunciar a nada disso. Entendeu-me?

—E agora me escute você . Eu não vou fugir e deixar que uns

bárbaros ameacem a abóbada celeste, porque o dia em que você se separar de

meu lado, será como se Deus condenasse o sol, à lua e às estrelas a se

ocultarem no abismo. Seja o que for o que encontremos ali, eu ficarei a seu

lado. Entendeu-me?

Enquanto Gabriel a beijava de novo, Mar se deleitava ao pensar que

aquela era a primeira vez que estavam de acordo em algo.

—Preparada? —disse ele quando se separou dela.

Mar assentiu, sufocada. Começava a ambicionar que todo aquilo

terminasse logo para poder desfrutar ao lado de Gabriel, do mesmo modo

que tinha feito na casa de Feliciana.

—E você? —perguntou enquanto passava o dorso da mão pela áspera

bochecha.

—Depois do banho, isto é um passeio sem importância — brincou ele.

Gabriel pulou sobre a primeira das pedras que formavam a represa e

começou a caminhar. Ela o seguiu. Tentava pôr os pés no mesmo lugar que

ele colocava, para assegurar o caminho. Mas quando chegaram ao centro,

onde Mar tinha escorregado e a água transbordava, Gabriel parou. Mar o viu

vacilar.

—Está bem?

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Gabriel tragou saliva um par de vezes. Não, não estava bem, não

estava nada bem. Um calor ameaçador começou a subir do peito até o rosto,

enquanto a nuca ficava empapava com um suor frio.

—Sim... estou.

—Pode caminhar?

Foi aquele «pode» ou foi a voz de Mar e a segurança que oferecia que

o apressou a seguir?

Introduziu o primeiro pé na água e depois o outro e logo o primeiro

de novo. E continuou dando um passo atrás de outro até que chegou à

borda.

Quando Mar se reuniu a ele, não disse nada, simplesmente se

aproximou e depositou um suave beijo em seus lábios.

—Aqui não há ninguém. Entre no moinho. Já retorno, vou em busca

da capa.

Mar obedeceu.

O manto estava junto às árvores, onde ele o tinha deixado. Ninguém

havia tocado nele. O segurou e retornou ao moinho.

Mar o esperava sentada no chão, de um lado da porta. O único lugar

que a claridade da noite fazia visível.

—Encontraste?

—Se cubra com ela — sugeriu Gabriel enquanto a entregava. Dirigiu-

se ao fundo de edifício—. O moleiro deve ter uma pederneira em algum

lugar.

—Nesta escuridão será impossível que o encontre. Acho que teremos

que esperar o amanhecer para encontra-lo.

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—Se for necessário vou ao bosque para buscá-lo e o coloco de cabeça

no rio para que se limpe e me diga onde o guarda — acrescentou enquanto

revolvia umas madeiras de um canto.

Mar o ouviu resmungar quando golpeou a cabeça contra uma das

vigas mais baixas e voltar a praguejar quando bateu novamente.

—Espero que esses golpes não prejudiquem o seu valor — se atreveu a

insinuar enquanto ele continuava revirando a estadia de costas para a porta.

—Encontrei!

Mar o viu se incorporar de repente. Graças a uma pequena claridade

que penetrava do exterior e avançava para dentro do moinho.

—Gabriel... —sussurrou aterrada enquanto ficava de pé com lentidão—

, Eles... Retornaram.

Ele voltou bem a tempo para ver a silhueta de uma pessoa recortada

sob a soleira. E as de outras três detrás dela.

Levou a mão à cintura, agarrou a faca que tinha encaixado no

cinturão e o apertou com força.

—Mar — balbuciou com firmeza—, parte daqui! Agora mesmo!

—Menina, é você? Está bem?

Mar estava desconcertada. Como tinha chegado à senhora Manuela

até ali?

—O que fazem vocês aqui?

O resto aconteceu tão depressa que nem se deu conta de como tinha

acabado nos braços de sua vizinha, com o senhor Nicolás lhe dando tapinhas

na cabeça e o marido de Isabel e um irmão deste olhando-a satisfeitos.

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—Ai, moça! Quando esse... — fez um gesto impreciso em direção a

Gabriel —, esse moço partiu fiquei muito preocupada. Assim mandei que

Nicolás e o meu genro pedir por ajuda e saímos para lhes buscar.

—Mas como souberam que estávamos aqui?

—Encontramos a criada dessa bruxa. Ela nos disse para aonde a

levavam. Deixaram a pobre menina na rua com este frio. Isabel retornou

com ela para a casa.

—No meio do caminho — continuou o marido de Isabel —, escutamos

sons de cavalos, mas não pudemos reconhecer nada, pois foram para dentro

do bosque.

—E depois, descobrimos aquele homem. — A senhora Manuela fez o

sinal da cruz com um gesto rápido.

—Tinha um corte fundo no pescoço e o deixaram de lado do

caminho.

—Era um com...? —perguntou Mar apesar de que já conhecia a

resposta.

—... Com a cara desfigurada? Sim, esse mesmo —acrescentou o senhor

Nicolás.

—Imagine nosso desgosto quando o encontramos! Pensamos que

tinha sofrido a mesma sorte.

—Menos mal, depois topamos com o moleiro e vimos que dormia

placidamente e que não tinha acontecido nada com ele.

—Nesse momento, a esperança de que esses criminosos tivessem

respeitado suas vidas voltou para mim. E o Senhor escutou minhas preces —

soluçou a senhora Manuela, voltando a apertar Mar entre os braços.

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— Vejo que fizeram o mesmo caminho que eu percorri —interrompeu

Gabriel disposto a não se deixar levar pela emoção da mulher —. Mas como

lhes deixaram sair da cidade?

O marido de Isabel soltou uma gargalhada.

—Entendo que ainda não saiba tanto, mas logo aprenderá que não há

nada que possa deter esta mulher.

Mar deixou passar despercebido o tom divertido que o genro da

senhora Manuela havia dito aquelas palavras. E à senhora Manuela,

tampouco.

Mas a mulher tinha outra ocupação mais importante que repreender

o marido de sua filha. Não afastava os olhos de Gabriel, e seu olhar era

francamente hostil.

—Confio em vê-lo na primeira hora em nossa casa — ameaçou—.

Ficara está noite na casa de meu genro. Espero que manhã tenha uma coisa

muito importante para nos pedir.

Depois, apertou a capa sobre os ombros de Mar e a conduziu até a

porta.

—Senhora Manuela! — clamou para ela, enquanto escutava as risitas

dos homens mais jovens.

—Se cale! — sussurrou a mulher—. Agora que seu pai não se encontra

entre nós, o senhor Nicolás e eu estamos obrigados a cumprir com seu

encargo.

Gabriel elevou a voz para que todos o escutassem.

—Ali estarei! Ninguém em seu são julgamento tentaria me deter. Mas

agora, e antes que a separe de mim, vos rogo que me conceda um instante a

sós com ela. Tenho algo para lhe entregar.

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A curiosidade de Mar crescia, enquanto esperava a decisão da

senhora Manuela. Ao fim, esta se afastou dela e se dirigiu aos homens de sua

família.

—Nós aguardaremos do lado de fora. Que seja um curto momento!

Mar e Gabriel esperaram até que todos tivessem saído.

—Que caráter!

—Não viu nada! — Mar riu —. Mas também, é certo que tem um

coração de ouro.

—E a adora.

—Sim — aceitou Mar—. Como se fosse a minha própria mãe.

Gabriel se adiantou até ela, a tomou nos braços e a beijou com

doçura.

— Como eu. E como a adoro, tenho algo que quero lhe dar antes que

sua família adotiva me «convença» para formar parte dela.

Colocou a mão na bolsa do dinheiro e tirou as duas peças que

compunham o anel do pai de Mar.

—Como chegou a seu poder?

—Teresa o pegou de sua casa. Estava escondida e viu tudo o que

acontecia. Foi ela que nos relatou isso à senhora Manuela e a mim.

—Essa menina...

—Isto também lhe pertence — continuou Gabriel voltando a colocar a

mão no saco.

Ali estava, a pedra que apoiava o Cristo da tabuleta, essa pedra que

tinha estado a ponto de perder a vida e que achava que Gabriel tinha

destruído ao jogá-la no canal do moinho.

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Tremente, aproximou a pedra do dedo indicador e a virou, até

encontrá-lo.

Diante de seus olhos havia o selo da coroa de Navarra. Uma linha

central separava as flores de lis das outras. Tinha nas mãos o poder de dirigir

os assuntos do reino a seu desejo.

—Disse que o tinha destruído.

—Percebi que o selo estava na tabuleta. Separei o selo no dia que

parti de Olite. O Fiz para protegê-la, ia lhe entregar a tabuleta sem o selo. O

irmão Roger me contou à importância que tinha e sabia que a pedra era o

motivo pelo qual eles a perseguiam, mas, depois, pensei em ficar contudo, no

caso de.

Mar estendeu a palma para Gabriel.

—Não o quero.

Gabriel suspirou e o empurrou para ela.

—É seu. Seu pai quis que o tivesse.

—Não, meu pai nunca me ofereceu isso. Fui eu que encontrei a

tabuleta na arca de seu quarto. Ele me entregou apenas o anel e isso é o

quero conservar.

—Deveria pensar bem a respeito disso.

Mas Mar não lhe escutava. Decidida, se aproximou da brecha que

acessava à roda, estirou o braço para trás, tomou impulso e o lançou ao

vazio.

O único som que percebeu foi o relaxante murmurinho da água.

Nem uma batida mas leve. Nada. Como se nunca tivesse existido.

Retornou até Gabriel, estando ao seu lado com seu coração cheio de

felicidade.

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Não pôde resistir e deu um tapa nas nádegas dele e continuou sem

parar para esperá-lo.

Ouviu divertida o coice que Gabriel deu.

—Te espero amanhã há primeira hora. Não falte ou mandarei à

senhora Manuela lhe buscar — advertiu antes de sair pra fora.

Para Gabriel aquelas palavras não pareceram uma ameaça, era o mais

extraordinário presente que poderia ter.

O irmão Roger estaria satisfeito.

FIM

Nota de Revisão(frases em outro idioma)

1 Ordens do rei.

2 Nos ordenou que os conduzamos até a cidade de Olite nesta mesma tarde.

3 Soltem!

4 Cale-se!

5 Estes não causarão nenhum problema.

6 Estou com vontade de urinar. Logo o alcanço.

7 A acompanho. Estes não vão mover-se daqui.

8 Vamos !Vamos !

9 Me ajudem!

10 Parem!

11 Não podem passar.

12 Não se movam!

13 Quem são vocês?

14 O que está acontecendo aqui?

15 Icem mais.

16 Façam!

17 O que foi isso?

18 São os ratos.

19 Aqui está.

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20 É uma brincadeira?

21 Então, vamos.

22 O que faz este homem aqui?

23 Não sem o selo.

EEbbooookkss ddiissttrriibbuuííddooss sseemm ffiinnss lluuccrraattiivvooss ee ddee ffããss ppaarraa ffããss..

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