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Ana Maria Moretzsohn

Como Uma Onda no Mar

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C o m o U m a Onda no Mar

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Ana Maria Moretzsohn

C o m o U m a Onda no Mar

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Editora Tecnoprint S.A., 1989

integralmente os textos origináis.

I S B N 8 5 - 0 0 - 1 1 3 1 6 - 2

Grupo Ediouro EDITORA TECNOPRINT S.A.

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Rodrigo examinou, nervoso, a lista de alu­nos em recuperação, afixada na parede. Cor­reu o dedo na coluna de álgebra, devagarinho,

até topar com o seu número, quase lá no final. Mur­murou um palavrão baixinho. Estava ali: 27 — Rodrigo Sampaio. Rodrigo Sampaio! Ele deu um murro na pa­rede. Sampaio era o outro Rodrigo, número 26. E ago­ra? Era erro de nome ou de número? Droga! Tinha que sofrer pelo menos meia hora, até a secretaria abrir para poder destrinchar a confusão. E ia perder a melhor ho­ra para o surfe. Já eram sete... Com um pouco de sorte só ia conseguir chegar na praia lá para as nove, quan­do tudo quanto era mãe já estaria lá, bandos de filhos pequenos, "engarrafando" o tráfego no mar. Resolveu ir esperar no bar. Comprou um refrigerante e ficou to­mando devagar, pensando nas ondas. Hoje devia es­tar "demais". "Demais."

"Demais" também era a Suzana, que vinha andan­do na direção do bar, abraçada com o Kiko. "Maior ga­ta..." Pena que o romance ali estava rendendo e o Kiko era "gente fina". Rodrigo cumprimentou os dois com um gesto de mão e pensou que o que mais queria nes­sas férias era arrumar uma namorada. Pensou na tur­ma da praia e nas garotas que eram "feras" na "morey-boogie" e em outras, que até surfavam bem. Pensou também nas outras, que preferiam ficar estendidas ao

CAPÍTULO

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sol, exibindo os corpos queimados, com biquínis minús­culos, e suspirou. No fundo não conhecia nenhuma de­las direito. Nem as do colégio. Só por fora, tipo: "oi, tu­do numa boa? Cê dança legal!" E coisas assim. Imagi­nou como seria ter um tempo para ficar com uma ga­rota e conhecer ela direito. Garota amiga, com quem pudesse falar. Falar do que pensava e sentia. E ela gos­tar de ouvir e entender. E ele gostar de estar com ela, e gostar dela. "Gostar de verdade, além do beijo e do abraço. Uma coisa assim de se sentir feliz fazendo nada juntos..." ou "pegar onda" e juntar ao prazer do surfe o pensamento de que na praia havia alguém prestan­do especial atenção nele.

Distraído, Rodrigo mal reparou que sentado a seu lado já estava o Rodrigo Sampaio, resmungando.

— Que que foi? — ele perguntou, um pouco an­sioso e meio com dor na consciência. — Recuperação?

O outro sacudiu a cabeça com cara de enterro. — Três matérias. Meu pai vai ficar uma arara. Bye-

bye férias. Vou ter que enfiar a cara nos livros! Rodrigo engoliu em seco e perguntou rapidinho: — Ficou em Álgebra também? O outro concordou com a cabeça e completou: — Você se livrou, hein? Rodrigo, ainda sem acreditar, insistiu: — Cê viu a lista? Meu número tava lá... O Sampaio levantou-se e fez um gesto de despe­

dida. — Falei com o professor, ele se enganou de nú­

mero. Você passou. Eu dancei... Tô indo. Rodrigo segurou o grito de alegria por puro senti­

mento de culpa, mas quando o outro sumiu de suas vistas deu um pulo e um soco no ar. Estava livre! Livre para curtir um tremendo verão!

Mariana, de vestido branco, olhou irritada para os lados. Detestava esse tipo de solenidade. A mãe, o pai,

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na platéia, estavam com os olhos orgulhosos fixos ne­la, um sorriso maravilhado nos lábios. Marcela, a ami­ga a seu lado, cutucou-a.

— Viu o irmão da Lila? Veio de São Paulo pra for­matura dela. Está estudando engenharia lá... ai, ele é lindo, não é? Lembra que nunca deu bola quando nós éramos crianças? Quem sabe agora?... É bem do seu tipo... intelectual...

Mariana fez um "shhhh" baixinho e deu uma olhada discreta para a família de Lila. Viu o rapaz moreno, meio magro, de óculos. Lindo não era, mas ali em Uberlân­dia qualquer rapaz que viesse das cidades grandes era avaliado com mais benevolência. Eles tinham sempre mais assunto, novidades...

Novamente o seu nome foi chamado e ela teve que andar até a frente do palco, dessa vez para receber o prêmio pelo projeto da feira de ciências. Para ela, a so­lenidade parecia que não ia acabar nunca. Só ela sabia quanto lhe custava atravessar aquele curto espaço até onde estava o diretor, para receber prêmios, menções honrosas, ouvir as palmas, sentir o olhar de todos so­bre ela e ouvir os comentários, quase eco do que escu­tara toda sua vida: "Mas que menina inteligente... apli­cada." Para ela tudo aquilo não significava muito. Gos­tava de estudar e aprendia com facilidade. Era meio cal­ma, e abria mão de divertimentos para ficar em casa estudando, sem nenhum esforço. Prêmios não mexiam muito com sua cabeça. As pessoas pareciam não per­ceber isso e, por vezes, ela ficava com fama de presun­çosa. Seus amigos sabiam que isso não era verdade: mas adoravam fazer brincadeiras e gozações do tipo: "Mariana já leu três enciclopédias inteirinhas..." Menti­ra. Só tinha lido uma, e, mesmo assim, havia pulado alguns verbetes. No fundo quem a conhecia de verda­de sabia que era romântica, sonhadora e passava o ano inteiro esperando as férias, para guardar os livros do co­légio e ir para a fazenda. Lá ela era muito, muito mais

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feliz. Ela voltou ao seu lugar, sorriu para as pessoas que a cumprimentavam, pensou em como os sapatos, de saltos altos, apertados, e em como iria suportar o baile de formatura nessa noite. Enfim, faltava pouco, muito pouco, e no dia seguinte, depois da missa solene, ela poderia finalmente comprar alguns livros, arrumar suas malas e partir para a fazenda. Logo, logo estaria livre. Livre para aproveitar um bucólico e preguiçoso verão!

Rodrigo não podia acreditar, nem se conformar. Não era possível! Depois da virada que ele tinha dado naquele último bimestre, perdido dias e mais de dias de praia, deixando a prancha na casa de um amigo, pra não cair na tentação, estudado feito um louco para pas­sar direto... depois do sufoco que fora esperar o resul­tado da prova de Álgebra!

— Mas mãe... — gaguejou — mas pai... Os dois olharam para ele com ar compreensivo,

mas sem dar margem a qualquer esperança. — Nós sentimos muito, Ro, mas não tem outro jei­

to. Seu avô piorou e você sabe muito bem que se o pai não for para Portugal...

Rodrigo sabia... sabia dos negócios do avô, do tio caçula que não queria cuidar de nada, sabia de tudo... mas e as suas férias?

— Então deixa eu ficar na casa do Marquinhos. A mãe dele sempre insiste... eu...

O pai cortou, objetivo. — Não, meu filho. Nós nem sabemos quanto tem­

po vamos demorar, não vou largar você na casa dos outros.

A mãe contemporizou: — ... e além disso a fazenda da minha prima é

num lugar lindo. Quando você era pequenininho, ado­rava! E tem a Mariana, que é quase da sua idade.

Rodrigo reagiu em cima: — Ah mãe, sem essa... aquela garota é uma mala!

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O pai desviou a cabeça do jornal e riu. Uma mala... cheia de livros... quem sabe você até apren­de a falar por lá... Seu vocabulário anda meio curto... uma mala, que gíria é essa?

O rapaz resmungou: — Ah pai, não vem... Dr. Pedro levantou-se bem-humorado. — Não venho mesmo... Você é quem vai... Pode

arrumar as coisas que amanhã mesmo está de saída. Vera, vê se ele precisa comprar roupa, agasalho...

Vera fez um carinho na cabeça do filho e animou: — É só um verão, meu querido, você tem tantos

pela frente... Rodrigo ficou quieto. Como é que a mãe ia enten­

der que esse ia ser um verão especial. Um verão para o qual ele tinha sonhado tantas conquistas... E a na­morada que queria arranjar? Certamente numa fazen­da não ia ter essa chance!

E ainda por cima... Saiu da sala e se enfiou no quar­to, jogando-se na cama. Olhou os posters de surfe es­palhados pela parede... "Como é que era possível al­guém sobreviver num lugar onde não havia mar?" E ain­da por cima agüentar a chata da Mariana. Fechou os olhos e lembrou-se da última vez em que havia visto a "prima longe". Tinha uns 12 anos e ela uns 10. Garo­tinha metida, que sempre sabia de tudo e era o doci­nho de coco da família. Magrela, com aqueles óculos horrorosos e aquele cabelo espetado. Imagina... Corria até o boato de que ela já havia lido uma enciclopédia. Ah, não... ele não ia agüentar... Provavelmente iria mor­rer antes do fim do verão!

Mariana queria morrer de ódio. — O Rodrigo?... Logo o Rodrigo? A mãe continuou a abotoar o vestido do baile de

formatura. — O Rodrigo, sim... eu não podia dizer não pra

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Vera... você sabe que ela é a minha prima predileta... ela tem que acompanhar seu tio Pedro até Lisboa... o tio Luís é um boêmio e nem se interessa pelos negó­cios da família...

Mariana respirou fundo e interrompeu, tentando esconder a raiva.

— Ai mãe, está muito apertado... Porque que não levaram o Rodrigo junto com eles?

Lila entrou no quarto naquele momento, já de rou­pa de festa.

— Mariana, não está pronta ainda? Boa noite, D. Lulu. Puxa, como a Mariana está linda!

D. Lulu beijou e murmurou: — Você também — mas apreciou, com carinho,

a filha que se olhava no espelho. De repente, era uma moça... O cabelo estava comprido e muito bem corta­do, o vestido longo, de cintura justa, fazia Mariana sentir-se uma mulher... quase ... Achou-se bonita. A lente de contato, que havia sido um estorvo quando começara a usar, já não a incomodava e ela adorara ter-se livra­do do peso dos óculos... e claro que ali também entra­va um pouquinho de vaidade. Sem óculos ela podia botar rímel e uma sombra leve, como fazia agora, o que tornava seus olhos pretos ainda maiores. A mãe sorriu vendo que ela também se apreciava no espelho, mais demoradamente do que de costume.

— E eu que jurava que você nunca seria vaidosa... Mariana sorriu, meio sem graça, enquanto a mãe

saía do quarto, junto com Lila que avisava: — Está todo mundo te esperando lá embaixo. Enquanto acabava de se pentear, Mariana ficou se

lembrando do primo. Quando eram pequenos, eles até se entendiam, ela achava. Era um garotinho louro, um pouquinho calado, mas muito decidido. Depois, passa­ram longo tempo sem se encontrar e, da última vez, uns quatro anos atrás, havia sido um desastre. Ele virara um menino desajeitado, magro demais, alto demais... lou­ro demais... parafina, diziam... e o que era pior... mudo demais... Ela até preferia que não falasse nada, porque,

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quando falava, dizia três ou quatro gírias de surfista, que para ela eram palavras de extraterrestres. Lá se iam por água abaixo os seus planos de um verão em paz! Co­mo é que ela podia conviver com alguém que nem sa­bia falar e que achava que tudo o que realmente im­portava na vida era "pegar onda?" Ela teve a certeza de que não ia agüentar. Provavelmente iria ficar doen­te, trancada no quarto lendo, o tempo que fosse possí­vel. Quanto menos convivesse com aquele ser esquisi­to que se chamava Rodrigo, melhor!

Rodrigo se despediu do pai e da mãe, na rodoviá­ria, com cara de criminoso indo cumprir pena. Fora duro ter que embrulhar a prancha e deixar guardada num canto do quarto, sabia ele lá até quando. Estava levan­do junto com a bagagem um poster do Havaí, o seu preferido, para poder, pelo menos, sonhar com o mar de vez em quando. Na mochila, os bermudões floridos e camisas de malha, além de calças jeans que a mãe o obrigara a comprar, "na marra"; tênis e sandálias, além dos presentes que a mãe estava mandando. Rodrigo achou a mãe meio maluca porque pra Mariana ela ti­nha comprado um biquíni... Pra usar onde? A mãe lem­brara que na fazenda havia rio e cachoeira. Rodrigo achou que mesmo assim era impossível que a menina "curtisse" um biquíni e imaginou como aquela magrela ia ficar horrorosa dentro dele. Azar. Não era problema seu. Sentou-se e da janela deu um tchau pros pais. Re­conhecia que eles eram "legais", mas essas férias for­çadas na fazenda estavam duras de engolir. Tudo bem. Como sua mãe disse, ele teria muitas outras na sua vida.

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A estação de ônibus estava muito movimentada. Mariana sorria com a agitação das amigas Marcela e Lila. As duas estavam pensando que o "primo carioca" era algo de sensacional e ela não se dera ao trabalho de explicar que ele não passava de um garoto bobo, de­sengonçado e espinhento. As três examinavam os pas­sageiros descidos do ônibus Rio de Janeiro — Uberlân­dia. D. Lulu havia se atrasado e estava estacionando o carro. Nem sinal do Rodrigo. Mariana rezou baixinho. "Tomara que tenha desistido!" Lila e Marcela olhavam extasiadas para alguém, lá longe. Mariana chamou as duas.

— Não adianta ficar aqui... vou lá avisar a ma­mãe... Lila ainda distraída apontou:

— Olha ali... que cara lindo! Será que está che­gando, ou partindo? Tomara que seu primo demore bas­tante. Esta rodoviária está bastante animada! — Maria­na olhou, rindo da amiga. Ficou de olho grudado, qua-se sem fala. Louro, pele queimada, um corpo bonito, quase um metro e oitenta de altura. Os olhos claros lhe davam um ar assustado, e o rapaz não sorria. Olhava em volta como se não soubesse o que fazer. Marcela, muito prática, decidiu que ele devia estar perdido, pre­cisando de ajuda. Mariana, depois de um momento de hesitação, caminhou em direção a ele, chegando perto o bastante para constatar o que já desconfiava: ele ti­nha uma pequena cicatriz na sobrancelha direita, resul­tado de um tombo de cavalo que sofrera quando tinha uns seis anos. Ficou sem saber o que falar ou como agir, ainda meio incrédula apesar das evidências: era Rodri­go, e ela não podia deixar de reconhecer que ele mu­dara... e para melhor, para muito melhor! Pelo menos exteriormente.

Rodrigo continuou olhando em volta, sem saber que rumo tomar. Será que o tinham esquecido? Quem sabe tomava o mesmo ônibus de volta? Não... Não ia adiantar fugir. Tinha que telefonar ou pegar um táxi. Pela amostra da estação, as meninas de Uberlândia eram engraçadinhas. Reparou na morena de jeans que se afastara das amigas e parecia até que o olhava. Que

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gata! A mais bonita das três! Não era presunçoso mas tinha quase certeza de que ela olhava mesmo para ele agora, insistentemente... e caminhava em sua direção. Nossa! Mas ela era mesmo bonita demais, diferente das gatinhas do Rio, talvez por causa da pele clara ou do jeito meio calmo, o modo mais macio de andar... Ela estava parando bem à sua frente! E depois ainda diziam que as meninas de cidade pequena eram tímidas, não paqueravam. Ele lhe ofereceu o mais lindo dos sorrisos e ficou meio hipnotizado pelos olhos negros, que não sorriram de volta.

— Rodrigo — ele ouviu sem entender direito. — Eu sou a Mariana, não se lembra mais de mim?

Rodrigo recostou-se à parede, completamente ator­doado.

D. Lulu dirigia o carro pelas ruas de Uberlândia, com Rodrigo ao lado. As três meninas iam atrás. A pri­ma, que ele chamava de tia, falava pelos cotovelos:

— Mas como eu poderia reconhecê-lo? Meu Deus, como quatro anos faz diferença. Você deve estar perto de fazer dezoito, não é? Eu sei, porque a Mariana fez quinze. Mas que rapagão você ficou! Eu sempre disse pra sua mãe, quando você era pequeno... Vera, esse lourinho de olho doce vai dar muito trabalho. Dá ou não dá? Deve ser menina telefonando o dia inteiro atrás de você, não é?

Ele sacudiu a cabeça negando com um sorriso. A tia continuou a falar e, como não dava mesmo chance para ele responder, Rodrigo se distraiu, arriscando uma olhada de rabo-de-olho para o banco de trás. Que faria ele agora? A priminha feiosa virando uma gata e tanto, mas, pelo visto, também se transformara, de menina-modelo, em mulher inteligente, sabe-tudo, de nariz em­pinado... era demais para a saúde dele! Quase caíra para trás quando ela o reconhecera na estação. Depois dis-

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so quase não tinham se falado. As amigas eram boniti­nhas, mas perto dela, ele tinha que admitir, pareciam estrelinhas sem brilho. Que confusão! Se suportar uma prima feiosa e chata ia ser problemático, imagine-se ter que conviver com aquela nova Mariana...

Mariana baixou os olhos e olhou pela janela. Ti­nha certeza de que Rodrigo olhava para ela, disfarça­damente. Não agüentava o ti-ti-ti da Marcela e da Lila, desde que haviam saído da estação.

— Mas ele é sensacional, Mariana. Por que é que nunca nos contou, hein? Escondendo o priminho, é?

Teve vontade de responder que aparência externa não era tudo na vida... Quase tivera um acesso de riso ao ver a surpresa dele quando se apresentara, na esta­ção. Evidentemente, nos últimos três anos, ela mudara tanto quanto ele, e essa mudança o chocara também. Ficara olhando com ar de quem não estava entenden­do nada, para depois se sair com a brilhante frase.

— Oi... legal que cês vieram... Tava perdidão! Meio irritada, ela ouvia a mãe, que não parava de

falar. Tinha certeza de que o Rodrigo, além de ser um surfista sem nada na cabeça a não ser ondas, era cheio de si, só porque era bonito. Ficou com mais raiva ainda das amigas. Não tinham um pingo de vergonha. Não despregavam os olhos dele nem por um minuto, e tra­ziam na testa a expressão estampada:

"Você é o máximo! E a gente tá louca pra desco­brir os segredos dos surfistas cariocas..."

Mariana imaginou que quando a turma inteira se juntasse, ainda ia ser pior. Arrependeu-se de ter convi­dado um grupo grande para passar uns dias na fazen­da. Sacudiu os ombros. Vai ver tinha sido muito me­lhor. Com tanta menina pra dar em cima dele, não ia precisar ficar fazendo sala e conversando sozinha, en­quanto ele respondia de vez em quando com um "Va­leu... Tá limpo... É isso aí...!"

Lila cochichou alguma coisa no seu ouvido. Ma­riana respondeu brusca:

— Sei lá! Sei lá se ele tem namorada no Rio. Per­gunta para ele, ora! — Lila suspirou:

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— Vou perguntar mesmo... hoje na festa. Mariana pensou, em pânico, na festa que a mãe

havia sugerido para apresentar Rodrigo aos amigos. E ela fora obrigada a recusar o convite de Paulo, o irmão da Lila, para sair. Tinham dançado juntos no baile de formatura, ele tinha vinte e um anos e era bem mais interessante do que a garotada local... Suspirou. Os pais não iam deixar mesmo eles saírem juntos sozinhos, e, na falta de opção, quem sabe aceitaria o convite para ir à festa?

D. Lulu parou o carro em frente à casa. — Chegamos! Rodrigo olhou e comentou sorrindo: — Maior mansão, tia! É bárbara! Mariana não conseguiu conter o riso. Rodrigo se

virou e encarou o olhar dela que demonstrava clara­mente que o achava extremamente bobo. "Garota, eu não estou gostando desta situação tanto quanto você — ele pensou, e enviou a mensagem com o olhar — Pretendo ficar na minha. Agora... não me provoca por­que vai se dar mal... Ah, vai..."

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Mariana aproximou-se do piano e tocou algumas notas. Estava irritada com os pais que demoravam para descer e a condenavam a fi­

car ali sozinha com Rodrigo. 0 rapaz examinava a coleção de discos, na estan­

te, pela milésima vez. O silêncio começou a pesar e ela, enchendo-se de coragem, resolveu tentar, mais uma vez, puxar assunto.

— Quer escutar algum, ou não gosta desse tipo de música?

Rodrigo olhou, sorriu e pensou: "Tão simpática sempre... por que que não pergunta se eu quero ouvir disco e ponto? Tem que entrar nessa de... não gosta des­se tipo de música... que droga!" Resolveu não ser inde­licado e respondeu apenas:

— Não, brigado, tô só olhando." Mariana sorriu meio com um ar de "já sabia," que

o irritou ainda mais. Se imaginasse o que ela estava pen­sando naquele momento...

"Imagina se aquele bicho-do-mato ia gostar de mú­sica clássica, música popular brasileira..." Ela não ou­sou dizer tanto, mas não resistiu e sugeriu com ironia:

— Tem rock também... Eu não gosto, não, mas quando dou festa todo mundo pede... Estão aí nessa gaveta de cima.

Rodrigo olhou para a gaveta mas nem se mexeu para abrir.

— Prefiro jazz — ele declarou seco — ou rock

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estrangeiro de boa qualidade. Você tem alguma coisa contra?

Mariana ficou desarmada com a reação dele. Bem feito. Quem mandou ela se esforçar para fazer sala!

— E o que é "rock de boa qualidade" — ela re­solveu ir fundo e comprar a briga — o mais barulhen­to? Eu acho que depois dos Beatles não se fez mais na­da que prestasse... O rock perdeu o rumo. É claro que, de vez em quando, aparece um Dire Straits...

Rodrigo foi até a janela sem responder. Ele era mes­mo um trouxa. O que que estava pensando, que a "madame enciclopédia" não conhecia rock estrangei­ro? Daí a pouco, certamente, ia começar a dissertar sobre jazz...

Mariana prosseguiu falando: — Eu tenho uma coleção de jazz, também, mas

prefiro o "spiritual," mais próximo das raízes negras... o jazz branco...

Rodrigo riu sozinho e resolveu cortar a pose dela. — Pois eu jurava que você se amarrava era nos

Menudos, no Dominó... O risinho dele enfureceu Mariana, que ficou sem

saber o que falar. Gaguejou o que bem podia ser um insulto. Rodrigo atirou-se na poltrona, apreciando a raiva dela, rindo mais. Nesse exato momento entraram os tios. Tia Lulu satisfeita com o riso de Rodrigo e, obviamen­te, mal-interpretando, já veio falando:

— Que ótimo... Vocês estão se divertindo! Maria­na saiu da sala como um raio, depois de lançar com o olhar uma rajada de metralhadora sobre Rodrigo.

— Minha filha, onde é que você... — Preciso telefonar! — ela falou, antes de desa­

parecer. Na sala ao lado, de mãos crispadas sobre o telefo­

ne, ela ficou ouvindo a conversa. A voz simpática do pai tratando com tanta cordialidade aquele sujeito in­suportável.

Tio Jairo olhava satisfeito para Rodrigo. — Rapaz, quem diria que aquele moleque que eu

peguei no colo agora está maior do que eu! Você toma uma cerveja?

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Rodrigo negou, sorrindo. Tia Lulu interferiu: — A Vera já me preveniu... você é daqueles que

não bebem, não fumam... que sorte! Quando é que faz dezoito anos?

Rodrigo aceitou um refrigerante que o tio lhe ofe­receu, e respondeu meio tímido:

— No dia quinze. Tia Lulu reagiu escandalosa. — Deste mês? Ah... e vai estar conosco. Mas que

bom. Podemos fazer uma grande festa na fazenda... — Tia Lulu foi saindo sem dar bola para os protestos de Rodrigo. — Mariana, você precisa saber da novidade... — Ela foi andando em direção à sala ao lado.

Mariana tirou o telefone do gancho e ficou olhan­do, o dedo parado no disco. E agora mais essa! Ainda ia ter que festejar o aniversário dele! Suspirou, desani­mada. Será que só nela ele conseguia despertar tanta antipatia?

Duas horas mais tarde, no meio da festa, ela esta­va se fazendo a mesmo pergunta. Rodrigo, decidida­mente, era o centro das atenções. Não falava muito, mas havia sempre gente em volta dele. E ele sabia dançar! Sem querer, soltou esse comentário na frente de Lila, que reagiu:

— E por que não haveria de saber? Ele não veio de Marte!

Mariana discordou um pouco mas não discutiu. Es­tava achando tão ridículas as amigas cercando Rodri­go, olhando para ele com caras de bobas...

— Você ouviu o que eu disse? De repente, ela caiu em si. Paulo, irmão de Lila,

estava ali falando sozinho, e ela desligada. — Desculpe, Paulo, eu estava distraída. 0 rapaz acendeu um cigarro e continuou: — Eu perguntei se nós dois poderíamos sair um

pouco. Qual é a boate que está na moda, aqui em Uber­lândia?

Com o susto ela quase engasgou, perdendo a po­se sofisticada que estava mantendo. "Boate!" Percebeu

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que fazer pose para rapaz mais velho era faca de dois gumes e resolveu ser sincera, para não haver mal-entendido, e também porque, no fundo, já não estava achando ele tão interessante assim.

— Tem muitas boates na moda, mas meus pais não me deixam freqüentar. A sua irmã também não freqüenta...

O rapaz ficou sem jeito. — Desculpe, eu não tive intenção... é que... bom,

você parece tão mais... e... mulher... que a Lila... Eu até esqueço que são colegas.

Mariana ficou hesitante, sem saber se agradecia ou corria. Ser chamada de "mais mulher" até podia ser um elogio, mas não tinha idéia de como lidar com a situa­ção. Para sua sorte, Lila apareceu e a puxou de lado, cochichando:

— Ele não tem namorada! Mariana reagiu: — Mas eu nunca perguntei se o seu irmão tinha

namorada! — Eu não estou falando do meu irmão, sua bo-

bona, onde é que você está com a cabeça, hein? Eu estou falando do Rodrigo!

Mariana sacudiu os ombros. — Se o Rodrigo não tem namorada, eu posso en­

tender o porquê. Ninguém deve agüentá-lo! Chato, mal-educado, implicante...

Lila interrompeu a amiga: — Pelo jeito, só você é que pensa assim... Olha lá...

— ela apontou para um canto e procurou com os olhos. — Ué? Onde é que ele se meteu?

Mariana sorriu. — Tomara que tenha resolvido ir dormir... Lila já não escutou, saiu para procurar o rapaz. Nes­

se meio-tempo Paulo já estava dançando com Marce­la. João Luís se aproximou e convidou:

— Quer dançar, Mariana? Ela foi saindo na direção da varanda. — Agora não, João Luís, eu estou meio cansada.

— Ficou com pena do rapaz que a olhou decepciona­do. Ela se lembrou, de repente, de um poema de

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Drummond: João amava Teresa, que amava Raimun­do, que amava Lili... Em todo lugar era mesmo assim. 0 Augusto vivia atrás de Marcela, que estava apaixo­nada pelo João Luís que, por sua vez, gostava dela, Ma­riana... que não gostava mesmo de ninguém! Agora Lila também entrava na história, querendo namorar o Ro­drigo que... Ela quase tropeçou de espanto! O Rodrigo estava ali, na varanda, beijando a Eliana! Mas que coi­sa... além de antipático e limitado ele ainda era paque-rador e, pelo visto, nada seletivo! Tinha escolhido jus­tamente a Eliana que, todo mundo sabia, já havia na­morado a cidade inteira! Ela entrou de volta correndo, achando que não fora vista. Rodrigo, porém, vira Ma­riana de relance, danada da vida. Onde é que ele viera se meter! A prima sabidona tinha umas amigas muito malucas.

— E aí? Tirou sua dúvida? — quis saber, soltan­do a garota, que respondeu dengosa:

— Não... não deu pra ver ainda se os cariocas bei­jam melhor do que os mineiros... que tal tentarmos de novo?

Rodrigo riu e foi se afastando. — Outra hora, quem sabe? Agora eu prometi dan­

çar com a minha prima... No momento seguinte ele já estava na sala, puxan­

do Mariana pelo braço. — Ai! Eu não sei dançar música lenta direito, mas

você vai ter que me tirar desta fria... Saíram dançando e Mariana perguntou, sonsa: — Que foi que houve? Rodrigo ainda olhava em volta. — Você tem umas amigas, hein? Aquela tal de

Eliana me chamou lá na varanda, eu vacilei... Mariana cortou irônica: — ... e ela mordeu você! Ah, mas que falta de hos­

pitalidade! Rodrigo fingiu que não percebeu a gozação; ela não

resistiu e continuou provocando. — Aliás você não pode reclamar. Quando era pe­

queno adorava morder! Se eu não me engano, tenho até algumas marcas... Só parou mesmo quando o meu cachorro...

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Rodrigo deu uma gargalhada e completou: — ...me mordeu mas eu mordi ele de volta! Mariana riu também, descontraída. A história fica­

ra no folclore da família. De repente Rodrigo a soltou, no meio da música.

— Valeu! — ele falou apontando Eliana que já dançava com outro rapaz. — Parece que a loucona já tá em outra.

E ele foi embora. Plantada no meio do salão ela engoliu a raiva. Decidiu que não podia dar qualquer mostra de que a companhia de Rodrigo a distraía. Ele, positivamente, era um grosso que não fazia nenhum es­forço para ser agradável. Resolveu manter-se o mais lon­ge possível dele. Só assim se livraria. Ficou remoendo o motivo daquela pose dele, de dono do mundo. Nem falar sabia! "Tá em outra, valeu, vacilei..." Que vocabu­lário ridículo! Lila e Marcela chegaram perto, comen­tando excitadas e interrompendo seus pensamentos.

— Ai, Mariana, como o seu primo é lindo — Lila suspirou. — Um gato, não é, Marcela?

Marcela suspirou também: — Demais... Mariana reagiu num rompante: — Lindo e burro! E o pior é que a burrice dele é

contagiosa! Olha aí vocês duas... Daqui a pouco vão ficar iguaisinhas!

Ela fez uma mímica exagerada de Rodrigo: — Maior vacilo... Cês não tão com nada! — Saiu

pisando duro. As outras duas ficaram olhando sem en­tender direito a razão de tanta irritação.

Mariana contou até dez e se serviu de um refrige­rante. Se tinha as férias inteiras pela frente, e estava obri­gada a dividi-las com Rodrigo, era melhor descobrir a fórmula da convivência pacífica. Talvez a melhor atitu­de fosse dar logo uma "liçãozinha" nele. Colocá-lo em seu lugar, acabar com aquela pose. Mas como? Lá adiante, Rodrigo parecia inconfortável, cercado por al­guns rapazes. Mariana se aproximou curiosa, a tempo de ouvi-lo falar.

— Não. Eu não tou interessado.

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Mariana desconfiou do que estava acontecendo. Um dos rapazes era o Bruno "Tijolo", que encarava Ro­drigo rindo e falava provocando:

— Bem que me disseram que carioca era covar­de... surfista então...

Rodrigo que já se tinha virado para afastar-se, deu meia-volta, lentamente.

— Só gente estúpida briga sem motivo... ou quem tá precisando provar que é forte...

No momento de silêncio tenso que se seguiu, Ma­riana quase saboreou o acontecido. Quem sabe o Bru­no não podia dar ao Rodrigo a "liçãozinha" que ele me­recia. Arrependida, ela afastou a idéia da cabeça, rapi­damente. O "Tijolo" não ganhara aquele apelido à toa. Era campeão de judô, caratê, e esportes similares e, pior do que isso, era conhecido por sua maneira desleal de lutar.

Bruno pulou furioso: — Você acabou de me dar um motivo — berrou

com raiva. Os dois se engalfinharam e caíram por cima dos

canteiros do jardim. A turma do "deixa-disso", encabe­çada por João Luís, não teve nem chance para apar­tar. As meninas correram assustadas. Rodrigo segurou Bruno no chão e falou baixo, mas decidido:

— Vamos brigar lá fora! A turma de Bruno aprovou. Mariana sabia por que.

Lá fora eles não estariam em desvantagem para agir com covardia. Os dois já estavam de pé, ainda agarrados. Lia se aproximou e, com autoridade de dona da festa, empurrou Bruno:

— Vá embora, Bruno. Não é a primeira festa aqui de casa que você estraga; vá embora ou eu chamo o meu pai!

Rodrigo olhou para ela, agressivo: — Pode deixar que não vou brigar aqui dentro! — Nem lá fora — ela falou autoritária. A essas alturas o pai já havia descido, por causa

o ruído da briga. Olhou Bruno e Rodrigo que se se-paravam:

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— Que é que está acontecendo por aqui? Bruno soltou-se. Algumas meninas tentavam ex­

plicar, falando ao mesmo tempo. Rodrigo sorriu para Jairo. — Não foi nada, tio Jairo. — encarou a prima,

meio irônico. — Sua filha já resolveu tudo. Bruno saiu com sua turma. Rodrigo sorriu e cha­

mou Lila. — Vamos dançar? O grupo se dissolveu, Jairo subiu e, aparentemen­

te, tudo voltou ao normal. Mariana encaminhou-se pa­ra Rodrigo.

— O mínimo que você podia fazer era me agra­decer!

Rodrigo, segurando Lila pelo braço, respondeu com ar de surpresa forçada:

— Eu falei pro seu pai que tava tudo limpo. Que você foi fantástica. Queria mais o quê?

Mariana insistiu: — Eu salvei você de uma surra! — Salvou? — Rodrigo sorriu meio desdenhoso.

— Tem certeza? Eu não brigo sem motivo, mas se che­go a brigar não preciso de menina nenhuma pra me li­vrar a cara!

Mariana olhou firme para ele e sentenciou, antes de se afastar:

— Se tivesse me avisado antes... Da próxima vez, não vou interferir. Vou pagar para ver!

Lila esperou ela ir embora e comentou meio tímida: — A fama do "Tijolo" é de brigar sujo. E ele é cam­

peão de tudo quanto é luta. A Mariana só quis ajudar... Rodrigo soltou-a e murmurou com raiva: — Dispenso a ajuda dela! Se pudesse dispensava

a companhia também... E ele foi saindo, esquecido da dança. Lila observou-

o e depois observou Mariana, cada um num canto da sala, e disse para si mesma: "Chiii...que clima! Essas fé­rias prometem..."

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Mariana pôs mais uma blusa na mala, en­quanto Lila falava sem parar:

— Não pode ser, Mariana. Alguma coi­sa deve ter acontecido com vocês na infân­

cia. É trauma... garanto que é trauma. Nunca vi duas pessoas brigarem tanto, em tão pouco tempo! E você nem tem razão... O Rodrigo é legal. Eu acho que você devia...

Mariana interrompeu, empurrando Lila devagar, para chegar até o outro lado do armário.

— Deixa eu pegar as minhas botas, Lila? — foi falando enquanto procurava. — Quando você se for­mar em Psicologia estuda o meu trauma, tá? Não es­tou pedindo conselho. Você tem mania de achar que todo mundo é legal. O Rodrigo é prepotente, e chato...

Lila continuou: — ...e burro, e antipático, e grosso... Você já disse

isso várias vezes. Mas é só você quem acha! Todo mun­do gostou dele. — Riu e completou: — Menos o Bru­no "Tijolo!"

Mariana sentou-se no chão, puxando dois pares de botas.

— Ah, ainda bem que você se lembrou disto. Eu só quis ajudar o Rodrigo e ele me deu o maior fora, lembra-se?

Lila sacudiu a cabeça concordando. — Mas é exatamente disso que eu estou falando.

Você quis ajudar, ele achou que você queria humilhar. A

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falta de tolerância é dos dois lados... e tem que ter um motivo!

Mariana jogou as botas na sacola com força: — O único motivo é ele existir! Ela encerrou a conversa, batendo a porta do ar­

mário com raiva.

De má vontade, Mariana bateu a mala do carro. Não conseguia entender. Rodrigo, de camiseta e ber-mudão de surfista, até ficava bonito. A roupa, estranha para o local, não chocava nem nada. Era como se fos­se parte dele. Uma segunda pele. E bem que devia ser mesmo. Mas, é claro que não ia perder a chance de im­plicar um pouquinho.

— Quando chegar à fazenda tome cuidado pros touros não correrem atrás de você. Eles detestam rou­pas chamativas!

Falou e quase se arrependeu. Aquela vontade in­controlável de provocar o rapaz já estava virando exa­gero, ela reconhecia. Rodrigo sorriu e sacudiu os ombros.

— Vou ficar longe deles — apontou para a baga­gem. — Tio Jairo me arrumou umas botas. São ma­neiras mas não sei se...

— São o quê? — Mariana perguntou interrom-pendo-o.

Ela não tinha entendido realmente a gíria, mas aproveitou a deixa para criticar seu jeito de falar, ainda que indiretamente.

Esperto, Rodrigo percebeu imediatamente e res­pondeu em cima, sem pestanejar, adorando espicaçar:

— Maneiras... cheias de chinfra... bacanas... le­gais... Sacou? — Ao mesmo tempo, ele abriu a porta do carro e fez uma reverência: — Se a senhorita já está pronta para embarcar...

Mariana, entre a raiva e o riso, enfiou-se no carro. Rodrigo sentou-se ao lado dela. Jairo e Lulu chegaram em seguida, com o resto da bagagem. Dez minutos mais tarde, eles rodavam, em direção a Montes Claros.

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Mariana abriu os olhos, assustada, ouvindo a mãe falar:

— Essa daí, para acordar, às vezes só com balde de água gelada! Nunca vi ninguém dormir tão pesado.

Rodrigo riu: — Se quiser eu arrumo o balde! Jairo viu que Mariana já estava acordada. — Como é que é, princesa? Não vai querer to­

mar lanche? Nós vamos entrando. Olho nela, Rodrigo... Mariana murmurou um "já estou indo" e se espre­

guiçou. Rodrigo fez um gesto de mão para o tio, que significava "deixa comigo". Ficou observando a menina de longe. Mais uma vez reparou como era bonita. Tal­vez um pouco "desbotada", para o seu gosto. Bem di­ferente das meninas da praia. Mas bonita... muito, muito bonita. Ela o encarou, deixando claro que percebera que ele a observara. Rodrigo mudou de postura.

— Sabe que você ronca? — falou com ar sério. Mariana reagiu encabulada e gaga: — Eu? — perguntou preocupada. — Ronco mes­

mo? Rodrigo deu uma gargalhada e não respondeu nem

sim, nem não, adorando ter conseguido afligi-la. Mariana saiu do carro. — Você não tem mais nada pra fazer não? — Foi

andando na frente dele. Rodrigo tornou a observá-la, examinando o corpo

de cima abaixo: a blusa de malha, as calças jean colan­tes e as botas. Sorriu aprovando. "Pena que seja tão cha­ta" — pensou. Entraram no restaurante. Ele reparou que rapazes, sentados às mesas, a admiravam e percebeu que um deles já se preparava para dizer uma gracinha. Adiantou-se segurando-a pelo braço, e a conduziu até a mesa onde estavam Jairo e Lulu, enquanto falava bai­xinho, em tom de gozação:

— Nada de dar bola pra malandro! O titio man­dou eu tomar conta de você!

Quase próxima à mesa dos pais, ela fez um enor-

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me esforço para não empurrá-lo para longe. Deu um sorriso amarelo e não teve outra alternativa a não ser aceitar a cadeira que ele, "gentilmente", puxou para que ela se sentasse.

A casa da fazenda apareceu, ensolarada e cerca­da por buganvílias.

— Você está se lembrando daqui, Rodrigo? — Tia Lulu quis saber, rompendo o silêncio.

Rodrigo murmurou que sim. Estava pensativo, al­gum tempo, com lembranças e sentimentos confusos. Não imaginava que chegar ali causasse aquela impres­são tão agradável. Tão longe do mar... Percorreu a re­gião com os olhos e lembrou-se da estradinha de terra que levava até a cachoeira. Fora lá que ele caíra do ca­valo. Alguém lavara o machucado nas águas geladas... Recordações sem data determinada, misturadas, o per­turbavam. As buganvílias coloridas trouxeram de volta flashes de brincadeiras antigas... "Eu te coroo rainha da fazenda..." O som da voz dele, menino. Mas quando?

Mariana olhou para o primo e pensou se Rodrigo também se lembrava do dia em que ele fizera uma co­roa com flores, torcendo os galhos devagarinho, com seu jeito quieto, ferindo-se de vez em quando com os espinhos, sem se importar. Depois ele colocara a coroa na sua cabeça e falara com ar solene. "Eu te coroo rai­nha da fazenda..." Devia ter uns dez anos, e ela oito. Foram as últimas férias em que haviam sido muito feli­zes juntos.

Tia Lulu, como se estivesse adivinhando os pen­samentos dos dois, comentou:

— Vocês costumavam brincar de rei e rainha e fa­ziam coroas com as flores das buganvílias. Estão lem­brados?

Quase ao mesmo tempo, eles responderam: — Não sei — Mariana balbuciou. — Faz tanto tem­

po... — Eu não me lembro de quase nada — Rodrigo

declarou, confuso.

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No banco de trás, os dois ficaram se olhando, ca­da um tendo, cada vez mais clara, a visão daquele mo­mento de infância, a recordação feliz que servia agora como razão para uma trégua. Tio Jairo parou o carro em frente à casa, e, buzinando com força, para chamar os empregados, interrompeu, abruptamente, aquele mo­mento de paz.

* » •

Lulu continuou a falar, zangada, enquanto Maria desfazia a mala.

— Parece criança, Mariana. Eu nunca a vi ser tão antipática com alguém! O Rodrigo é um amor e, além disso, é nosso hóspede.

Mariana rebateu: — Mas eu não fiz nada! A mãe não se deixou enganar: — Não? Como se eu não conhecesse você! Quan­

do empina esse nariz! Que é que está acontecendo? Até onde você vai levar essa guerra fria com o Rodrigo?

A menina começou a abrir gavetas. — Você não pode me obrigar a gostar dele! Lulu se aproximou. — Não, mas posso obrigar você a ser educada. Mariana se defendeu: — É sempre ele quem começa! Lulu abraçou a filha e falou brincando... — Claro... ele fala tanto, não é? Imagino o que não

diz pra provocá-la! Na defensiva, a menina se exaltou: — O pior é isso! O pouco que ele fala é pra me

provocar. Será que só eu é que vejo? Na frente de vo­cês ele é um santo, mãe...

Lulu encerrou a conversa com autoridade. — Chega, Mariana. Se quer que eu receba seus

amigos aqui com prazer, trate de cuidar direitinho do seu primo! E pode começar levando-o para dar uma volta pela fazenda, mostrar o curral, a granja...

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Lulu foi saindo do quarto e, na porta, ainda se vi­rou para uma recomendação final:

— E bem educadinha, está certo? Ela saiu e fechou a porta. Mariana sentou-se na

cama, derrotada. E agora mais essa! Até a mãe estava do lado daquele monstro!

Mariana desceu a rampa do caramanchão. De lon­ge, viu Rodrigo debruçado, olhando na direção do cur­ral. Uma lembrança rápida, insistente, a incomodou. Era ali, naquele caramanchão, o local preferido para as brin­cadeiras dos dois, quando pequenos. A construção re­donda, coberta de trepadeiras, às vezes era um castelo da idade média, outras um forte apache ou o esconde­rijo de heróis que eram perseguidos por terríveis bandi­dos. Ela sorriu, quase sem querer. Era difícil acreditar que aquele rapaz alto, um pouco desajeitado dentro das calças jeans e das botas, era o mesmo menininho louro quieto e valente que, tantas vezes, passeara com ela pelo mundo do faz-de-conta.

De costas, Rodrigo não pressentiu que estava sen­do observado. Ele mesmo estava longe dali, viajando pelo passado. A presença de um bezerro que pastava solitário trouxera-lhe a memória o eco de vozes infantis ressoando por aquele mesmo pasto, vozes que riam e gritavam felizes. Quase podia ver as figuras de duas crianças, correndo dos bezerros que eles fingiam ser tou­ros ferozes. Uma menininha meio medrosa, que sem­pre dava um jeito de prender os cabelos na cerca de arames farpados, fazendo com que ele tivesse que vol­tar atrás, para ajudá-la a se soltar.

Um ruído o trouxe ao presente e, a seu lado, a vi­são da menininha tomou a forma de uma moça, nada medrosa e com os cabelos cautelosamente presos num rabo-de-cavalo. Os dois se olharam algum tempo, sem falar, cada um brigando com os próprios pensamentos e se obrigando a entender que não ganhava nada com aquelas lembranças. Tudo mudara.

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Mariana esforçou-se e conseguiu dar um tom for­mal à sua voz:

— Mamãe me mandou levar você para uma vol­ta na fazenda.

Rodrigo falou meio cínico, para encobrir um certo ressentimento:

— E você não está a fim... Apesar de perceber o ressentimento, Mariana não

quis dar o braço a torcer e reagiu apenas ao cinismo: — 0 meu estado de espírito não é importante. Se

eu não for, ela vai se irritar, vai querer discutir nova­mente comigo e, quando eu venho pra fazenda, tudo o que quero é paz.

Rodrigo caminhou, silencioso, em torno do cara­manchão. Depois de algum tempo falou:

— Não vou curtir atrapalhar sua paz. Fala que eu não quis ir, assim ela não vai te dar nenhuma bronca.

Mariana reagiu meio espantada: — E você vai fazer o quê? Rodrigo começou a descer. — Vou passear sozinho. Mariana correu atrás dele, de repente se dando con­

ta de que sua atitude era muito infantil. Segurou-o pe­la camisa.

— É melhor irmos juntos — falou mais suave. — Faz muito tempo que você não vem aqui. É capaz de se perder.

Rodrigo sacudiu os ombros, mas não discutiu. Dirigiram-se para o curral. Chegaram perto do bezerro que Rodrigo havia visto lá de cima. A menina agachou-se, acariciando o bichinho e falando com voz terna.

— Ele não é lindo? — sorriu embevecida. — Vai ser um tourinho valente, algum dia.

— Lembra quando a gente fingia que os bezerros eram touros e iam nos atacar? — Rodrigo perguntou, num rompante.

— E nós corríamos pelo pasto, feito uns loucos — Mariana riu. — Você era tão convincente, que eu aca­bava acreditando que se não alcançasse a cerca, rápi­do, ia morrer!

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— Medrosa... pirralhinha medrosa! — ele agachou-se perto dela.

— Eu não sou medrosa! E, se quiser, corro mais depressa do que você! Você nem sabe montar a cava­lo. Tem medo, também. Só porque levou um tombo uma vez!

Mariana acabou de falar e ficou quieta, de repen­te. Aquele diálogo não era real. Era uma repetição... "Medrosa... pirralhinha medrosa!" Era assim que ele a chamava, quando queria que ela se zangasse. Era um jogo, uma brincadeira. Ela ficava sentada num canto, emburrada, ou melhor, fingindo de emburrada, espe­rando ele se aproximar para fazer as pazes. E ele sem­pre vinha, sentava ao lado dela e jogava um presen­te no seu colo: às vezes uma manga, colhida no pé, outras uma bala ou mesmo uma figurinha de álbum.

— Mas você me ensinou a montar novamente, não foi? — Rodrigo continuou o diálogo, como se o tem­po não importasse.

Mariana levantou-se devagar. Ela não entendia o porquê, mas a proximidade dele, aquela tentativa de paz, as boas recordações, a incomodavam mais do que as atitudes de provocação que ele tivera até então. Ela caminhou para o curral. Ele a seguiu, perguntando:

— Podemos sair a cavalo? Mariana, virando-se para ele, respondeu, tentan­

do parecer tranqüila: — Hoje já está muito tarde. Mas nós podemos ir

amanhã cedo. Eu vou avisar ao Zeca. Rodrigo encarou-a com um ar estudadamente se­

dutor. — Preferia sair só com você. Amanhã não che­

gam seus amigos? "Só comigo?" — ela pensou. As palavras e o olhar

dele despertaram nela uma sensação nova e engraça­da. Não deixava de ser lisonjeador aquele seu desejo, mesmo sendo ele quem era. E quem era ele mesmo? Ela olhou Rodrigo de alto a baixo. Um rapaz bonito, que

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queria sair a cavalo "só com cia". Meio tímida, ela in­formou:

— Não. Eles só chegam no sábado. Rodrigo substituiu o ar sedutor por um sorriso meio

moleque. — Ainda bem! Tô sem treino e não quero dar ve­

xame. Que que suas amigas iam pensar de mim? Mariana reagiu em cima, sem raciocinar: — O que que minhas amigas... Ela se interrompeu e voou para a porteira do cur­

ral, engolindo a raiva. Como era burra! Por que não aprendia que ele só queria mesmo era zombar dela? A troco de quê achou que ele poderia ter um prazer es­pecial numa saída a cavalo, "a dois"?! Mas a culpa era somente dela, não, ele era um sonso, um... ele tinha feito de propósito, pra ela pensar... Droga! No rompan­te, ao se esticar para destravar a porteira do curral, não tinha prestado atenção aos ramos da goiabeira. O rabo-de-cavalo ficara preso nos galhos. Ela tentou livrar-se, mas não conseguiu.

Num segundo, Rodrigo estava ao seu lado, tentan­do ajudar. Mariana mordeu os lábios e não se deu por vencida. Afastando-o com uma das mãos, com a outra ela tentava soltar-se. Quanto mais tentava mais engan­chada ficava. Rodrigo a segurou pelos ombros e a sa­cudiu um pouco, irritado.

— Quer ficar fria e deixar eu dar uma mão, ou tá a fim de ficar careca?

0 tom dele fez com que ela parasse de se debater. Com cuidado, ele foi desembaraçando os fios, enquanto falava:

— Cê não mudou mesmo! Tem mais cabelo seu nos galhos e nas cercas da fazenda do que na sua ca­beça. Pelo menos com rabo-de-cavalo fica mais fácil. Pronto!

Mariana abriu a porteira e murmurou um "obriga­da", de má vontade. Rodrigo segurou-a, puxando de volta.

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— Por que é que não corta os cabelos bem curti­nhos? É moda lá no Rio, sabia?

Ele ficou segurando o cabelo dela, sorrindo, e emendou.

— Não... não acho boa idéia não. Esquece o que eu falei. Seu cabelo é bacana demais!

Mariana se livrou dele e pensou — "Não adianta tentar me adular. Já aprendi que, quando você elogia, está preparando alguma. Não caio noutra. Nunca mais!"

Rodrigo saiu do quarto, cauteloso, as botas nas mãos, procurando não fazer barulho. Ainda não eram nem cinco horas da manhã. Dormira cedo e bem e de­cidira esperar Mariana no curral. Tinham combinado sair a cavalo às seis. O piso de madeira da casa antiga ran­gia sob seus pés descalços e ele abriu a porta apenas o suficiente para poder sair. Sabia que se abrisse de­mais ela iria ranger... ou rugir, como um leão. Sentou-se na escada e calçou as botas. As lembranças da in­fância agora vinham menos tímidas, mais vívidas. Ele e Mariana haviam se divertido muito juntos. Viviam num mundo à parte onde cada ruído tinha um significado especial, cada momento uma razão particular. E tudo isso apenas os dois entendiam. Eram segredos, parte de um código só deles. Que pena que tinham crescido! Naquele exato momento ele ia descer até a árvore en­cantada para ver a grande pintura do céu... Para as pes­soas comuns ele ia assistir ao nascer do sol sentado na velha mangueira. Para os dois aquele era um ritual que se repetia todos os anos, como se fosse obrigatório, no começo de cada dia. Será que ela se lembrava? Sacu­diu os ombros. Na véspera, ele teve a tentação de convidá-la mas, ao desejar boa-noite, ela mal lhe res­pondera, a cabeça enfiada num livro. Apressou o pas­so, procurando não errar o caminho, na semi-obscuri-dade.

Recostada na mangueira, Mariana ouviu ruídos de passos. Imaginou que fosse o Zeca, chegando mais ce-

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do com os cavalos. Olhou para trás e quase se assus­tou com o vulto alto de Rodrigo. Ele a viu apenas na­quele momento. Por um instante ficaram sem se fa-lar.Rodrigo recostou-se ao lado dela. A mangueira pa­recia muito menor. É claro, eles tinham crescido... Ma­riana prendeu a respiração, quase sem sentir. Ninguém mais, a não ser Rodrigo, dividira aquele momento com ela. Percebeu como isso era importante e ficou emo­cionada. Não podia vê-lo direito, mas adivinhava que ele também não estava insensível. Um início de clari­dade apareceu sobre as montanhas. Rodrigo fez com as mãos uma imitação de corneta e imitou alguns sons suavemente. E então ela teve certeza de que ele tam­bém se lembrava. Falou baixinho:

— O nosso pintor já pegou nos pincéis... — Ele riu e continuou, apontando o clarão no céu: — O nos­so pintor já pegou as tintas...

Lado a lado, eles esperaram o sol que subiu es-preguiçando-se e avisando que ia trabalhar o dia intei­ro.

— Bom dia, senhor sol, Mariana sussurrou. — Bom dia, dona natureza, Rodrigo completou. Os dois se olharam rindo. Estava cumprido o ritual

e eles já podiam começar a viver aquele dia.

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Cavalgando lado a lado Mariana e Ro­drigo cumprimentavam, pelo caminho, alguns empregados. A menina conhecia todos pelo nome e tinha uma maneira afável de fazer per­

guntas a respeito de suas famílias, o que os deixava vi­sivelmente satisfeitos. Rodrigo comentou:

— Como é que consegue lembrar tantos nomes? Ela riu: — Provavelmente porque sou madrinha da maio­

ria das crianças que nasceram por aqui, nos últimos três anos!

Ele ficou silencioso... De certa forma invejava aquela maneira comunicativa. Nem sua turma de surfe ele co­nhecia direito.

A frente deles apareceu uma porteira. Sem descer do cavalo a menina abriu-a, com destreza e apontou para Rodrigo o trecho do "mata-burros":

— Não se distraia, ou seu cavalo quebra a perna. Vá ali pelo cantinho, pela terra.

Rodrigo passou com cuidado e ela fechou a por­teira. Intrigado, ele quis saber se o gado não se aciden­tava, tentando passar pelo "mata-burros".

— Os animais nem tentam — ela explicou — acho que é instintivo.

Eles trotaram por algum tempo. Rodrigo examinou Mariana, de perfil. Ela lhe parecia muito bonita e segu­ra, montando o cavalo.

— Você me lembra...

CAPÍTULO

4

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38 / ANA MARIA MORETZSOHN

Mariana esperou que ele continuasse, antes de per­guntar:

— O quê? Rodrigo sacudiu os ombros. — Esqueci. Como é mesmo que se chamam as

mulheres que brigavam na guerra, montadas a cavalo? Mariana respondeu rindo: — Amazonas! Mas eu juro que não estou armada. — É — ele concordou — hoje não está mesmo. Mariana entendeu a repreensão sutil; sabia que era

o momerrto de se desculpar, mas não teve coragem. O ar ficou mais fresco, indicando a proximidade da ca­choeira. Rodrigo saiu galopando e gritou:

— Estou sentindo cheiro de água! Mariana galopou atrás dele. Momentos depois che­

garam ao final da colina. A visão da cachoeira, do alto, era linda e reconfortante com o sol já quente.

— Nós temos que amarrar os cavalos aqui e des­cer a pé, pela trilha.

— Eu sei — ele concordou. — Ainda me lembro bem.

Desmontou e, antes que tivesse tempo de ajudá-la, ela fez o mesmo, cuidando de amarrar o cavalo. Ele observou, fascinado, a maneira como a menina lidava com o cavalo, com gestos firmes e certos.

Logo os dois começaram a descer, embrenhando-se no pequeno bosque, seguindo a vereda estreita, o ruído das águas tornando-se cada vez mais forte. Adian­te, a trilha ampliou-se e transformou-se num caminho de pedras, parecendo um leito seco de rio. Mariana gri­tou qualquer coisa. Ele parou e a esperou.

— Eu disse que você tome cuidado, há algumas pedras com limo...

Rodrigo respondeu enquanto seguia adiante, cor­rendo, pulando sobre as pedras:

— Eu sei o que estou fazendo! Momentos depois ela se juntou a ele, já defronte

da cachoeira. Ele a encarou. — Você estava mesmo preocupada comigo? Com

medo de que eu caísse? Não posso acreditar!

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Ele falara com o mesmo ar gozador da véspera e ela não perdeu tempo.

— Claro! Eu teria que carregar você de volta! Rodrigo respirou fundo e deu uma gargalhada. — Você tem sempre resposta na ponta da língua...

às vezes isso é irritante! — A menina procurou um lu­gar seco para sentar-se e resmungou, na defensiva:

— Você me provoca... A vida inteira você me pro­vocou. — Ele ficou olhando firme para ela.

— A vida inteira? Mariana fez um rápido exame de consciência. De­

pois da cena do nascer do sol que haviam partilhado, ela não podia mais ficar mentindo... e, se Rodrigo era mais tímido, mais fechado, cabia a ela acertar as coisas. Resolveu dizer tudo sobre o que estivera pensando, tu­do o que achava dele. Quem sabe, uma confissão não melhoraria o clima entre os dois, tomando até possível suportar a convivência? Ele se adiantou e falou, sem lhe dar tempo.

— Chato ter que me agüentar aqui, né? Eu saco isso muito bem. Tem coisas que às vezes não tô a fim de dividir. Como um trecho de praia, lá no Rio, onde quase ninguém vai surfar. É legal, bem cedo. Eu fico ali. Eu e o mar... Mas às vezes eu tinha vontade de ter alguém... — ele mudou o tom — bom, o que eu que­ria dizer é que não tenho culpa de estar atrapalhando suas férias.

Mariana protestou: — Não, Rodrigo, eu ia mesmo dizer... eu acho que

tenho sido meio egoísta, sei lá... Não tenho o direito de ficar criticando você. Eu... eu também sei que prefe­ria estar lá no Rio, na sua praia... Sei que deve estar sentindo falta de seus amigos...

— Peraí... — Ele pegou um pedaço de galho e ris­cou o chão, num gesto que disfarçava um pouco sua timidez. Continuou falando meio aos solavancos, co­mo se arrancando as palavras com dificuldade. — Vo­cê não deixou eu terminar de falar. Eu não queria vir. Eu fiquei na pior... mas quando eu cheguei... Bom...

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Tudo foi surpresa. Você foi surpresa... Mas eu não quis reconhecer, pedir arrego... Se você tinha ficado bonita, devia continuar chata... madame sabe-tudo... eu odiei as últimas férias que passei aqui! E era só disso que eu lembrava. De uma menina de óculos, que vivia com li­vros debaixo do braço, e não queria mais brincar.

Ele\se interrompeu, de repente, e deu um suspiro que significava "Pronto. Falei tudo. Consegui!" Maria­na engoliu em seco, antes de responder:

— Éu também odiei as últimas férias. Eu esperei tanto a sua chegada e... quando você chegou mal olhou pra mim. Disse que eu estava feia, de óculos...

Rodrigo rebateu em cima: — Eu estava com raiva do mundo, eu acho. Rai­

va de ter treze anos e não saber se ainda podia brincar com uma menina... Tinha vergonha de lembrar das coi­sas que fazíamos juntos... Não... eu tinha vergonha era de gostar de brincadeiras tão bobas.

Mariana olhou para ele, encantada. — Acho que nunca ouvi você falar tanto... Sabe

o que eu penso? O que aconteceu conosco, naquelas férias, foi que nós começamos a crescer e não sabía­mos como lidar com isso... Se soubéssemos, tudo isso que você está me dizendo agora teria dito antes! Eu... se você jurar que não vai rir... Eu também me achei hor­rível de óculos mas a sua opinião é que importava... e aí...

— Eu te decepcionei — ele completou, quebran­do o galho de árvore — Desculpa. Você não devia le­var minha opinião a sério — ele completou com ar brin­calhão. — E, por falar nisso, onde é que estão os óculos?

— Aqui! —- ela apontou para os próprios olhos. — Viraram lentes de contato.

— Que bom! — ele comentou sincero. Ela estendeu-lhe a mão e disse, docemente: — Amigos, novamente? Ele apertou a mão dela e sacudiu a cabeça, con­

cordando: — Amigos... Não tenho nenhum presente aqui co­

migo... — ele se curvou beijando-a no rosto. — Vai ter que se contentar com isso.

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Mariana recebeu o beijo e se afastou um pouco. Estava confusa e não queria que ele percebesse. Ro­drigo, mais relaxado, falou num tom gaiato:

— Mas tem um biquíni que a mamãe mandou... - ele a puxou pela mão e começaram a subir de volta. odrigo lembrou-se de como criticara a mãe pela com­ia do biquíni... e decidiu que, positivamente, ele não caria nada mal em Mariana. Nada mal mesmo!

De novo na colina, eles notaram que havia ape-as um cavalo à árvore: o de Mariana. A menina en-ndeu o que havia acontecido, mas não fez qualquer omentário. Rodrigo levou a mão ao rosto e fez uma

eta: — É, eu acho que nem sempre sei o que estou

azendo... amarrei mal meu cavalo... Mariana consolou: — Foi a vontade de chegar rápido à cachoeira. Eu

e levo na garupa. Vem. Rodrigo subiu na garupa, um pouco receoso. — Você garante que não vou levar um coice? A menina riu. — Só perguntando ao cavalo! Segure firme no

santo antônio. Ele segurou e ela, repentinamente, saiu galopan­

do. Rodrigo apertou os olhos. — Mariana... eu... puxa... pera aí, não precisa cor­

rer tanto! Mariana perguntou rindo. — Não vai me dizer que você está com medo! Rodrigo soltou a sela e segurou-a pela cintura. — Com medo eu? Sem essa! Mas tô avisando —

apertou-a com força. — Se eu cair levo você junto! Mariana mal podia se mexer. — Rodrigo, me larga! Eu... eu juro que vou parar.

Já estou parando! 0 cavalo passou do galope para um trote ligeiro,

mas Rodrigo não a soltou e, pelo contrário, começou a deslizar para o lado, tentando derrubá-la, já às garga­lhadas. Mariana ria também, para esconder o medo:

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— Pára! Ela já não sabia se gritava para ele ou para o cava­

lo, e nenhum dos dois obedecia. Rodrigo reparou que à margem da estrada havia um pequeno declive e puxou-a. Rolaram os dois do cavalo, pela grama ma­cia, ele tomando cuidado de protegê-la com o corpo. O cavalo continuou o trote e parou mais adiante. Ma­riana não conseguia ficar séria, mas, quando se viu solta, investiu contra Rodrigo batendo nele, com os punhos fechados.

— Seu... seu monstro! Rodrigo segurou as mãos dela, rindo. — Viu, foi bancar a engraçadinha... se ferrou! Mariana parou de rir e apalpou a perna com uma

careta. Rodrigo olhou preocupadíssimo. — Você... você se machucou? A menina voltou-se para o outro lado, pra ele não

ver seu sorriso, e respondeu com um gemido... Ele fi­cou confuso...

— Desculpa... eu não pensei... Puxa... que brin­cadeira boba... Deixa eu ver sua perna...

Mariana encarou-o, divertida com a preocupação dele, e, de repente, levantou-se, rápida, e saiu corren­do.

— Você sempre acredita, não é? Ele correu, atrás. Os dois começaram a rir. Rodri­

go ajudou-a a retirar a grama da roupa. — Desde pequenininha que você me pega com

essa história de fingir que se machuca! Eles se olharam por alguns momentos. Rodrigo fi­

cou sério. — Já que hoje é dia de limpar a minha barra...

é melhor confessar logo que eu menti. Mariana exami­nou o rosto dele, sem entender.

— Mentiu? Ele ajudou-a a montar no cavalo, enquanto expli­

cava com um tom terno na voz: — Quando a tia Lulu quis saber se a gente lem­

brava da brincadeira das flores. Eu lembrava sim. Eu não esqueci de nada. Nunca.

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Mariana não respondeu... ela também tinha men­tido mas... Rodrigo montou na garupa e passou o bra­ço pela cintura dela, dessa vez sem apertar. Recostada a ele, Mariana sentiu-se estranhamente bem, desejan­do que o passeio nunca terminasse. Confusa, ela gaguejou...

— E melhor segurar na sela... Rodrigo não deu bola. Durante algum tempo fica­

ram em silêncio, o cavalo trotando em direção à casa. Mariana pensou mil coisas, pensou que tinha sido in­justa com ele... pensou que tinha medo de ser justa pa­ra não acontecer o que estava acontecendo agora... fi­car tão feliz por estar perto dele, acreditar, como acre­ditava quando era criança, que só ele era capaz de fazê-la feliz assim. Suspirou sem querer.

— Tá cansada? — ele apontou a casa da fazen­da, com as buganvílias na frente. — Olha, já tamos chegando.

Mariana tomou fôlego. — Não é cansaço... Ro — o apelido de infância

veio sem querer — eu também menti... 0 rapaz riu e, na passagem, cortou um galho de

buganvília e o prendeu no cabelo dela, enquanto dizia em tom brincalhão:

— Eu te coroo rainha da fazenda... mas só se vo­cê não mentir mais pra mim. Tá feito?" A menina virou o corpo na sela e olhou firme para ele.

— Não minto nunca mais. Juro!

"Só se você não mentir mais pra mim!" Deitada na cama, pensava na promessa que fizera a Rodrigo e em como ia ser difícil cumpri-la. Não podia, por exem­plo, contar-lhe como estava se sentindo. Ou podia? Pre­cisava tomar banho e vestir-se para o almoço, mas não conseguia mexer-se. Estava havia já algum tempo dei­tada ali, olhando para lugar nenhum, pensando nos olhos dele, no seu sorriso, seu jeito calmo, no passeio a cavalo... nas coisas que ele havia dito... Levantou-se e abriu a torneira do chuveiro, esperando que o baru-

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lho abafasse seus pensamentos. Entrou na água. Ela não podia estar apaixonada por Rodrigo. Claro que não es­tava... Quando tinha doze anos havia pensado a mes­ma coisa... Será que continuava tão criança, tão boba... Mas naquele tempo o sentimento lhe parecera bem forte e especial. Bobagem. Rodrigo fora seu maior amigo. Ele decididamente não era o tipo de rapaz por quem pu­desse se apaixonar. Fora seu companheiro de infância. Tinham sido felizes até o momento em que a vida... Que coisa mais melodramática... a vida os separara... e, agora que se tinham reencontrado, ela devia estar confusa. Afinal, era mesmo romântica! Entendia tudo agora... Riu. Quem estava certa, afinal de contas, era mesmo a Lila. O trauma! Tinha se decepcionado com Rodrigo uma vez, e não queria que isso acontecesse novamente. Mas é claro que agora era diferente. Agora ela não era mais uma menina insegura, que pensou que fosse morrer, só porque o amigo lhe dissera que ficava feia de ócu­los... Fechou o chuveiro e se enxugou. Mas, por que a opinião dele ainda era importante? Era mesmo e ela não podia negar. Remexeu nas roupas do armário achando tudo velho e feio. As meninas que ele conhe­cia no Rio... como será que se vestiam?

De que era que ele gostava? Ela sempre soubera que sua cor predileta era a vermelha. Pegou uma blusa vermelha. Será que ainda era? Jogou a blusa em cima da cama e concluiu, desanimada, que toda a verdade ela não ia poder contar para ele... não podia contar que estava ali, feito uma idiota, sem conseguir vestir-se por­que não sabia como mais agradar.

Rodrigo olhou para a roupa que trouxera, espa­lhada sobre a cama. Por que é que não tinha seguido o conselho da mãe? Bem que ela dissera que levasse mais roupa. Secou com a toalha o cabelo. Ouviu ruí­dos e pensou em Mariana. Se todos os dias fossem co­mo aquela manhã, não ia sentir falta do Rio, da praia, do surfe.

Mariana. Ela o chamara de Ro, como quando eram

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pequenos... Uma bobagem, mas para ele significava muito. Ele lembrava... ele lembrava... Ele tinha certeza de que a ligação dos dois havia sido muito forte. Pe­quenos, eles se entendiam. Ela adivinhava o que ele pensava. Ele sabia sempre o que ela queria... E ago­ra... Lembrou-se do nascer do sol. E se fosse ela a me­nina que ele estava tanto querendo conhecer neste ve­rão? Conhecer? Riu, enquanto enfiava uma camisa. Na­morar... Isso era bobagem. Ela não ia dar bola... Era tão... tão... O que que ela era, afinal de contas? Bonita, do­ce, inteligente, gata, bacana... E por que ele tinha guar­dado tanta raiva... aquelas últimas férias, ela de ócu­los, não estava tão feia, mas parecia mais velha do que ele, e comportada... e ele não queria mais brincar... e as pessoas dizendo que tinha crescido e ele com tanta raiva disso! Mariana pagou o pato. Foi nela que ele des­carregou tudo... e perdeu a amiga... e a infância, tam­bém, de um certo modo. E agora? Quando era peque­no achava que quando crescesse ia casar com ela. Acha­va, mas nunca tinha dito... com medo de que ela risse. E agora? Cerrou o fecho da calça jeans. Pegou o em­brulho do biquíni. Só tinha certeza de uma coisa. Era nela que ia pensar quando estivesse pegando uma tre­menda onda, daqui por diante... e, se ela estivesse na praia vendo, ele ia ser o cara mais feliz do mundo. Jo­gou o embrulho do biquíni para o alto e o agarrou de novo, sorrindo satisfeito.

Rodrigo bateu o olho em Mariana, assim que ela apareceu na sala. Os cabelos longos estavam presos por um laço vermelho, da cor da blusa. Ele admirou-a aber­tamente e não entendeu por que ela desviou o olhar. Aproximou-se com o pequeno embrulho na mão.

— Mamãe mandou pra você... Rodrigo apontou a blusa e continuou: — É vermelho, também. Eu achei legal, mas se

você não gostar... Mariana abriu o presente enquanto perguntava,

sem muita coragem de encará-lo:

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— Vermelho ainda é a sua cor predileta? Ele sacudiu a cabeça, concordando. Mariana pe­

gou o biquíni e riu: — E bonito... um pouco carioca demais, talvez... Rodrigo olhou, um instante, sem entender, depois

comentou: — Ah, cê tá falando do tamanho... Tia Lulu vai

reclamar? — O que que tem tia Lulu? — Lulu veio falando,

com um prato de carne assada nas mãos. Mariana exi­biu o biquíni. Lulu olhou para Rodrigo e riu.

— E lindo... — piscou o olho para Mariana. — Mas não mostre pro seu pai! O almoço está saindo... pode me dar uma mãozinha?

A menina guardou o presente e foi para a cozinha. Rodrigo a seguiu, sem que ela notasse. Ela dirigiu-se ao fogão, os olhos no chão, pisando apenas na parte branca do piso axadrezado. Rodrigo observou-a da porta e de repente deu uma risada.

— Você ainda acredita nisso? Mariana voltou-se, um pouco sem graça, com uma

tigela de arroz na mão. Aquele era outro segredo deles. Acreditavam que se pisassem na parte escura do piso uma enorme cratera se abriria e eles seriam tragados pela terra. Rodrigo tomou a tigela de arroz:

— Deixa que eu levo isso... Sabe que eu, às ve­zes, quando estou no colégio, na rua... me pego pisan­do só no branco? Não que eu acredite que o chão vai rachar... mas...

Ela riu, encantada com a sinceridade dele, e com­pletou:

— Na dúvida... é melhor não arriscar. Rodrigo concordou sorrindo e virou-se para voltar

para a sala. Ela pegou a travessa com farofa e o seguiu, ambos rindo e equilibrando os pratos, com os olhos no chão, repetindo a brincadeira antiga.

Na sala, Lulu e Jairo já os esperavam, sentados à mesa. Lulu observou, perspicaz, a mudança de clima entre os dois. Ela começou a servir a comida, pergun­tando:

— Vocês madrugaram, hoje... como foi o passeio?

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— ótimo! — Rodrigo respondeu sem pestanejar, o entusiasmo transparente em seu tom. Lulu olhou pa­ra a filha, satisfeita. — Nós fomos até a cachoeira.

Jairo passou a travessa de arroz para Rodrigo. — Eu fiquei assustado. Estava no pasto e vi um

cavalo retornar sozinho. Rodrigo levantou as mãos: — Culpa minha, tio... Mariana interrompeu, defendendo. — Você estava muito ansioso pra chegar à cacho­

eira... Jairo riu. — Ah, esqueceu-se de amarrar o cavalo... Rodrigo concordou, acenando com a cabeça, e

completou: — Deixei o maior furo... mas a Mariana me trou­

xe na garupa. Eles se olharam, ambos pensando no que aquela

manhã tinha significado para os dois, comendo distrai-damente. Lulu observou-os pensativa e esforçou-se para desviar a atenção, comentando com o marido:

— Não se esqueça de dizer ao Zeca que mande a irmã para ajudar D. Marlene. Amanhã chega a turma.

Mariana lembrou-se dos amigos que iam chegar e, estranhamente, sentiu uma ponta de tristeza. Ainda ha­via algumas coisas que gostaria de fazer... só com Ro­drigo.

— Você quer ir até a Fazenda Fantasma, depois do almoço? — perguntou corajosa.

— Ainda existe? — Rodrigo espantou-se. Jairo interferiu.

— Cada vez mais abandonada, mas ainda de pé. Tomem cuidado com os pisos podres...

Mariana sacudiu a cabeça, completando: — ... dobradiças soltas, escadas sem degraus... eu

já sei, pai... — Pode deixar que eu cuido dela! Rodrigo garantiu aos tios e estendeu o prato

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para a tia, meio cerimonioso: — Será que eu posso comer mais? Mariana riu do jeito dele, ora tão seguro e adulto,

sem nenhuma vergonha de expor sentimentos, ora tão criança e tímido, constrangido por pedir mais comida. A cada momento descobria nele mais uma coisa que lhe agradava; concluiu que o sentimento que tivera em criança voltava agora, muito mais forte e, ela descon­fiava, com um novo nome.

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A cozinheira ficou olhando da porta Ma-riana e Rodrigo, que tomaram o atalho da fa­zenda "Fantasma", depois que ela lhes deu sanduíches e uma garrafa d'água.

— Quem diria, D. Lulu? Aquele lourinho miúdo virou esse rapagão! Benza Deus! Parece que eu tô ven­do os dois pulando feito cabritinhos o dia inteiro por aí... a senhora se lembra? Eram unha e carne. Quando um ficava de castigo o outro ficava do lado, até o casti­go acabar.

Lulu chegou até a porta a tempo de ver os dois desaparecerem na curva da estrada. "Eram unha e car­ne" — pensou. Por isso mesmo é que ela não tinha en­tendido as atitudes de Mariana, tratando Rodrigo tão mal... Bem, mas agora parecia tudo bem. Talvez bem demais... Sacudiu os ombros. Precisava conversar com a filha. Não. Se Mariana quisesse, viria conversar com ela. Decididamente naquele assunto não tinha de inter­ferir.

Mariana e Rodrigo caminhavam em direção ao ria­cho, numa comunicação silenciosa; ora ela apontava uma mangueira carregada, e ele subia na árvore rapi­damente pegando algumas frutas, entre risos; ora era ele que mostrava alguma outra coisa cujo significado ela entendia depressa, porque remetia a um mundo que era só deles.

CAPÍTULO

5

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Descalçaram as botas para atravessar o rio e arre­gaçaram as calças. Mariana correu na frente. Rodrigo gritou de longe:

— Não precisa correr. Eu juro que não vou te dar um banho!

Ela alcançou a outra margem. — É melhor prevenir, você sempre me deu banho

atravessando esse rio... Está com fome? — Morto — ele garantiu. Ela se sentou na mar­

gem e abriu o farnel. Rodrigo atacou os sanduíches. Co­meram em silêncio, ele com os olhos pregados nela.

— No que você está pensando? — ele quis saber. — No pessoal que chega amanhã. Rodrigo fez um ar triste. — É... isto aqui vai ficar mais animado. Acho que

eu... Mariana segurou o braço dele cortando a frase. — Não... Você não entendeu. Eu não estou de­

sejando que eles cheguem... pelo contrário. Estava pen­sando no que nós dois podíamos fazer juntos... Eles não iam compreender... nem gostar...

Rodrigo ficou alguns momentos sem falar, alegre por dentro, com a sensação de que estava no topo de uma onda.

— Como procurar casas de duendes nas árvores? Ou pedrinhas de ouro no riacho? — ele sorriu, segu­rou a mão dela com carinho e colocou uma pedra den­tro. — Eles não iam mesmo sacar nada... mas a gente não pode culpar ninguém. E também não tem nada a ver, contar os nossos segredos.

A menina sorriu, observando a pedra que brilhava ao sol. "Os nossos segredos." "Nossos." O pronome pas­sava um afeto quente e reconfortante. Os olhos azuis de Rodrigo estavam mais claros e brilhantes também, e ele os apertava um pouco, por causa da claridade. Ela morria de vontade de passar a mão pelo cabelo dele, louro de sol. Fizera isso tantas vezes mas agora não con­seguia, tinha medo, mas não sabia exatamente do quê...

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medo de que ele não gostasse; medo de que ele, pelo contrário, gostasse. Medo de que, junto com a infância que fora embora, houvessem perdido outras coisas, im­possíveis de serem resgatadas.

— É — respondeu por fim. — Não tem "nada a ver."

O rapaz continuou observando Mariana. Nos olhos dela viu de novo a menininha medrosa que fora um dia. Mas, do que ela podia ter medo agora? Ele segurou sua mão novamente. Sentia-se muito feliz e muito forte e, portanto, como sempre, poderia acabar com os seus receios.

— Do que você tem medo? — perguntou, direto. Mariana respondeu, quase sem sentir: — Não sei direito. Eu acho que tenho medo de

que você diga que fico feia de óculos. — Rodrigo sor­riu. Então ela estava se sentindo como ele... e aquele pensamento o fez ainda mais feliz e mais forte.

— Eu não ia dizer isso nunca... eu acho você a menina mais bacana do mundo. Linda. De qualquer jei­to... Você é demais... — ele sorriu — eu nunca li ne­nhuma enciclopédia... mas eu acho que dá pra você entender o que eu quero dizer... você pra mim é per-

' feita... como uma onda no mar. Mariana entendeu e num gesto instintivo passou

a mão pelos cabelos dele. Algum tempo depois, os dois se levantaram e continuaram a caminhar, de mãos da­das, uma nova etapa vencida naquela viagem de reencontro.

Lulu observou a filha. Mariana estava deitada na rede, um sorriso nos lábios, vendo Rodrigo que ajuda­va o pai e Zeca a vacinar uns bezerrinhos, que se deba­tiam assustados. Rodrigo tentava acalmá-los, sem mui­to sucesso.

— Foi bom o passeio? Mariana murmurou a resposta, sem tirar os olhos

do rapaz: — Demais! Lulu riu.

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— Não era você que detestava gírias? Mariana ficou sem graça e sentiu o sangue no rosto. — O Rodrigo vive falando... eu... acho que isso

pega... Lulu percebeu sua confusão. — É, acho que pega mesmo... Ainda bem que vo­

cê desistiu de brigar com ele. — Olhou para o rapaz lá longe. — É um amor de menino. Menino! Mais alto do que eu. Bom, para mim é um menino mesmo... Você já descobriu por que estava com tanta má vontade?

Mariana suspirou e levantou-se, fugindo à pergunta. — Eu acho que vou até lá, ajudar na vacinação... Lulu reparou que, com a aproximação de Maria­

na, Rodrigo desviou a atenção do que fazia. Os dois sorriram um para o outro, de uma maneira especial. Co­mo quando eram crianças. Cheios de segredos, repar­tindo um mundo no qual não permitiam que ninguém entrasse. Ou ela muito se enganava ou... Ela sacudiu a cabeça, rindo de si própria. A filha era muito pareci­da com ela: romântica... e transparente.

Mariana juntou-se aos três homens, segurou os be­zerros e falou com eles, com calma e paciência, facili­tando o trabalho. Jairo olhou para a filha com orgulho.

— Viu a minha sucessora na fazenda, Rodrigo? Ela não é ótima?

Mariana olhou para o pai, recriminando. — Papai... Rodrigo não disse nada, mas seu olhar disse tudo.

Jairo continuou: — O Rodrigo também tem jeito... Não está pen­

sando em estudar veterinária, está? Se estiver, já tem um emprego garantido.

Rodrigo respondeu: — Eu tava mais a fim de estudar oceanografia...

mas, conforme as condições... — Riu e depois ficou, repentinamente, sério, continuando: — Lembram do ca­chorro lá de casa, o Lion? Fui eu que cuidei dele, dava remédio, aplicava as injeções... mas não adiantou. Mor­reu de cinomose.

Mariana analisou o rosto dele. — E depois disso vocês não tiveram mais nenhum?

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Rodrigo sacudiu a cabeça, negando. — Eu nem quis... Enquanto eles continuavam o trabalho, ela ficou

pensando no quanto ele gostava do cachorro, um wei-maraner de olhos tristes. Tia Vera sempre dizia que eram companheiros inseparáveis e Rodrigo falava muito de­le, durante as férias. Devia ter sentido a perda mais do que fazia parecer.

Meia hora depois os bezerros já estavam todos va­cinados e Zeca os conduziu de volta para o estábulo. Jairo dirigiu-se à escadaria da fazenda, dando a pala­vra de ordem:

— Agora é melhor a gente se livrar deste cheiro de curral, antes do jantar.

Lulu interceptou Rodrigo, no caminho. — Você não vai ainda, queria que visse umas fo­

tos que achei: eu e sua mãe, quando éramos peque­nas. — Lulu abriu um álbum e Rodrigo se curvou, inte­ressado.

— Vem ver, Mariana — ele chamou. A menina riu. — Já vi umas duzentas vezes. Vou tomar meu ba­

nho. Mariana fez um gesto de adeus para Rodrigo. Ele

retribuiu o gesto e respondeu: — Te vejo daqui a pouco, então. Lulu exibiu as fotos, contando a história delas. Ha­

via fotos de Mariana e Rodrigo também, quando crian­ças. O rapaz olhou interessado para uma delas. Os dois de mãos dadas, recostados a uma árvore. Ele tirou a foto do álbum, com cuidado, e examinou-a mais de perto.

— Posso ficar com esta? Lulu sorriu e admirou a ousadia dele. — É claro que pode. — Lulu abriu um envelope

contendo fotos recentes. — Estas são as dos quinze anos de Mariana. Ela estava tão bonita...

Ele pegou as fotos e admirou-as vagarosamen­te. Mariana dançando com o pai, com um dos tios de

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que ele se lembrava mas não sabia o nome, com um dos rapazes que ele conhecera na festa... Inconsciente­mente, ele estava procurando uma foto que respondesse à sua pergunta. Será que ela já tinha um namorado? Algumas fotos de Mariana, sozinha, eram repetidas, e, aproveitando uma distraçãode tia Lulu, ele surrupiou uma delas, enfiando-a debaixo da blusa. Ficou rindo so­zinho do que fizera.

• • •

"Perfeita... como uma onda no mar", Mariana dan­çou pelo quarto, embrulhada na toalha, que imaginou ser um vestido longo e rodado. Não, perfeita não era ela. Perfeito era o mundo agora, maravilhoso... tudo era bom, tudo era bonito, tinha impressão de que se esten­desse a mão poderia tocar no céu negro lá fora, pode­ria voar, ficar horas sem respirar. Desde que Rodrigo estivesse por perto! Vestiu-se rapidamente e pegou um dos livros que tinha comprado. Se ele ainda não tives­se descido, ia ler. Não queria falar com ninguém. Co­nhecia a mãe muito bem. Sabia que ela devia estar des­confiada de que alguma coisa nova estava acontecen­do... mas não queria contar nada.

Quando chegou embaixo verificou que não havia ninguém lá, ainda. Sentou-se com seu livro, mas não conseguiu concentrar-se. Pensou na visita à fazenda "Fantasma". Ela e Rodrigo de mãos dadas, reconquis­tando os esconderijos do passado, recordando as brin­cadeiras e felizes, felizes demais.

Ele se aproximou de repente, surpreendendo-a. Jogou-se no sofá, ao lado dela, e tomou-lhe o livro das mãos, lendo o título.

— Você está gostando? — Ela concordou com a cabeça. Rodrigo comentou, displicente:

— Não gostei do final. É deprimente. Mariana não conteve sua surpresa. — Você já leu? — Li — ele fez um ar maroto. — Eu gosto de ler,

sabia? Apesar de você pensar...

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Mariana o interrompeu. — Desculpe, Ro, eu não tive intenção. Você nun­

ca foi muito amigo de livros, por isso me surpreendi. Ele colocou o livro sobre a mesa. — Você não sabia que acabei lendo por sua cau­

sa? De tanto que você falava. Moby Dick, Vinte mil lé­guas submarinas, O príncipe e o mendigo — eram os seus prediletos, não eram?

Mariana riu, concordando. — Aí peguei o gosto. Mas estou longe de ser um

devorador de livros como você. — Ele mudou o tom — Vi as fotos do seu aniversário. Quem é o cara com quem você tava dançando?

Mariana refletiu um instante. — Saiu nas fotos? Não me lembro. Rodrigo deu um suspiro longo e aliviado. — Se não se lembra é porque não é importante;

namorado, coisa assim... A menina riu. — Não, não é namorado ou coisa assim... deve

ser um dos meus amigos, que vai aparecer aqui amanhã. Rodrigo enfiou a mão no bolso e puxou a foto que

havia furtado. — Dá pra mim? Eu "lalei", mas achei meio bobo

o que fiz... não tive coragem de pedir pra tia Lulu. Ruído de vozes revelou que Jairo e Lulu estavam

se aproximando. Mariana pegou a foto, confusa, ten­tando colocá-la dentro do livro. Rodrigo interceptou seu gesto e botou a foto de volta no bolso.

— Ainda bem que você não pediu pra ela. Ia fi­car me fazendo perguntas...

— Você tem alguma coisa para esconder dela? — ele quis saber, sondando o terreno. A menina levan­tou-se, respondendo sincera.

— Não... Só que eu não ia saber responder às perguntas.

Rodrigo deu um sorriso significativo. — Não tô te entendendo. Se ela quiser saber por

que eu pedi uma foto sua, eu digo...

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Ele fez uma breve pausa, para tomar coragem. Ma-riana ficou escutando, ansiosa.

— Porque... — ele ia falar, quando Lulu e Jairo entraram na sala, Lulu já falando sobre os convidados que iam chegar logo cedo, sobre o que seria preciso or­ganizar. Rodrigo fez um gesto de decepção e pensou que se os tios houvessem demorado mais um pouqui­nho ele... Bom, mais tarde eles teriam tempo para con­versar.

Ficaram sentados na varanda os quatro, conversan­do, depois da ceia. Quando Lulu e Jairo se retiraram para dormir, Lulu pediu que não esquecessem de apa­gar as velas, antes de subir. Estavam sem luz, havia muito.

Deitado no chão da escada, Rodrigo olhava o céu , estrelado. Mariana se balançava na rede devagarinho.

O rapaz olhou para a sala, cheia de sombras estranhas. Mariana perguntou repentinamente:

— Você nunca teve mesmo medo do escuro, ou só fingia pra mim?

— Nunca! — ele respondeu com um ar de goza­ção. — Só quando chovia e trovejava... e não adianta­va a sua explicação científica., como era mesmo? O tro­vão é um estrondo causado por descarga de...

Ela completou, rindo: — ...eletricidade atmosférica. O relâmpago é uma

luz intensa e rápida... O resto da frase eles falaram juntos: — ...produzida pela descarga elétrica entre duas

nuvens. — Eu ficava repetindo isso pra não ter medo —

ela explicou. Rodrigo levantou-se, comentando: — Disso eu desconfiava... — foi até a sala e apa­

gou as velas. Mariana levantou-se da rede, sentando-se na escada. Ele voltou e sentou ao lado dela. — Sa­be, eu tinha mais medo da sombra das velas nas pare­des do que do escuro.

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Mariana brincou: — Disso eu também desconfiava. Ficaram quietos, escutando o barulho da noite. — Sabe — Rodrigo pegou na mão dela — o que

eu tinha planejado pra esse verão era surfar muito e ar­ranjar uma namorada... alguém legal, que me enten­desse, com quem eu pudesse falar. Você diz que eu sou calado, e eu sei que sou, mas é que eu acho que nin­guém tá a fim de me escutar... ou interessado no que eu penso.

Mariana agradeceu à escuridão o fato de Rodrigo não poder vê-la; certamente a decepção estava estam­pada em seu rosto. Tentou parecer tranqüila:

— E você acabou tendo que vir para cá, onde não tem mar, e nem...

Ele cortou ansioso: — Namorada? Eu pensei... Bom, acho que pen­

sei errado... Mariana relaxou e perguntou: — Por que você pegou o meu retrato? — Porque eu pensei que estava pegando o retra­

to da minha namorada — ele respondeu franco. Mariana passou a mão pelo cabelo dele. — Puxa, pensei que você não ia falar isso nunca!

E, sem você falar, como é que eu podia ter certeza? Rodrigo, num rompante, deu um pulo, um soco

no ar e um grito de felicidade. — Quer dizer que você quer... que você é? Mariana o segurou, contendo-o: — Shhh... Você vai acordar a casa inteira... Imediatamente ouviu-se o ruído de uma janela se

abrindo, e a voz de Jairo, preocupado. — Que foi que houve? — Os dois começaram a

rir baixinho. Rodrigo falou, abraçando Mariana pela cintura.

— Não foi nada, tio Jairo, desculpe... É que eu descobri que daqui dá para se ver o mar...

— O mar? — Jairo resmungou. — Eu acho que

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está na hora de vocês subirem para dormir. Ele fechou a janela. Lulu quis saber o que havia

ocorrido e ele repetiu a explicação, comentando: — Tá biruta... ver o mar daqui... — Acomodou-

se novamente para dormir. Lulu ficou pensativa e sor­riu. Devia ser mais alguma das brincadeiras dos dois que só eles próprios entendiam.

Na varanda, Rodrigo e Mariana permaneciam abra­çados.

— Dormir? — ele falou baixinho. — Você acha que consegue?

Mariana balançou a cabeça, negando. — Nem eu — e completou: — Vamos dar uma

volta. Eles saíram abraçados e felizes, Mariana pensan­

do em como, de repente, o céu estava estrelado e a fa­zenda era um lugar muito mais maravilhoso do que ela imaginara. Ela falou com carinho:

— Ro, há muito tempo que eu não me sentia tão feliz... eu acho que mesmo que esses dois dias foram os mais felizes da minha vida!

Ele apertou o braço e disse apenas: — Que coincidência!

Já era quase meia-noite quando eles se despedi­ram, na porta do quarto dela. Rodrigo perguntou, meio melancólico, sussurrando:

— Amanhã como é que vai ser... com tanta gente? Ela sorriu. — Nós nunca dividimos nossos segredos com ou­

tros. Pra que mudar? Ele concordou: — É verdade. Mas duvido que não descubram... Ela sacudiu os ombros: — Se descobrirem... mas eu não quero sair por

aí, espalhando aos quatro ventos... ei, eu e o Rodrigo estamos namorando... e eu estou feliz... e eu gosto de­le... eu gosto dele mais do que tudo no mundo. Ouvi­ram?

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Rodrigo segurou o rosto dela. — Eu não ouvi direito. Dá pra você repetir a últi­

ma parte? Mariana repetiu devagar, separando as palavras: — Eu gosto dele mais do que tudo no mundo! Ele aproximou o rosto e a beijou, um beijo terno

e longo,, que acelerou o coração dos dois. Em seguida ficaram se olhando*por um momento. Rodrigo deu um enorme'suspiro e falou antes de se afastar:

— Como é que eu pude pensar que a melhor sen­sação do mundo era pegar uma onda? Eu também gosto de você. Não, eu acho que vou ter que dizer uma coisa careta, mas é isso aí, não tem como te explicar de ou­tra maneira. Eu amo você, Mariana. Amo. Adoro. — Ele foi se afastando de costas, e abriu a porta do seu quarto. — Sonha comigo — ele murmurou antes de entrar.

Mariana não conseguiu responder. Enviou um beijo com a mão e entrou no seu quarto, pisando em nuvens e pensando ouvir ressoando pelos campos da fazenda a repetição do que seus lábios nem diziam. "Eu estou apaixonada..." Apaixonada!

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Dois jipes repletos subiram, sem esforço, o caminho íngreme que levava à entrada da casa. Perfilados na varanda, Jairo, Lulu, Ro­drigo e Mariana aguardavam os convidados.

Num momento o silêncio da manhã se encheu de sau­dações, surpresas e risadas. Rodrigo tentou manter-se meio afastado, mas Mariana o puxou na direção dos outros. Lila, como de costume, falava sem parar, con­tando as peripécias da viagem, o pneu que havia fura­do duas vezes, ao mesmo tempo em que se desculpa­va e explicava que, apesar de não ter avisado, trouxera o irmão Paulo.

— É que ele ia voltar para São Paulo e mudou de idéia... aí...

Lulu a interrompeu: — Você fez muito bem, Lila... sabe que é de casa. Jairo voltou-se para o rapaz, completando: — Se você enjoar da meninada, pode sempre

juntar-se aos adultos! Paulo riu e olhou furtivamente para Mariana, que,

mais adiante, ao lado de Rodrigo, conversava com o res­to da turma.

— Eu tenho a impressão de que não vou enjoar não...

Lulu ouviu a frase e percebeu o olhar. Um sinal de perigo acendeu-se rapidamente no seu cérebro. Si­lenciosamente desejou que aqueles dias transcorressem em paz.

O "resto da turma" eram: Marcela; seu irmão Jú-

CAPÍTULO

6

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nior, irrequieto e novidadeiro, como convinha a seus dez anos; Augusto — o sempre palhaço Augusto!; João Luís, calmo e pacífico, e Cristiana, eternamente sofisti­cada e preocupada com a aparência.

O par de horas seguinte foi dedicado à distribui­ção de quartos, instalação e reconhecimento de terre­no. Rodrigo achou em Júnior um fã incondicional e o garoto passou a segui-lo de um lado para o outro, fuzilando-o com perguntas sobre o Rio e sobre surfe e vibrando ao descobrir que Rodrigo também sabia an­dar de skate. Não sossegou enquanto não arrancou do rapaz a promessa de ensinar-lhe alguns truques.

As meninas, instaladas no quarto de Mariana, trans­formado em "dormitório", abriam as malas, comentan­do roupas e novidades.

Cristiana imediatamente tomou um banho, alegan­do que estava empoeirada da viagem, e substituiu a rou­pa com que chegara por um conjunto de linho branco. Mariana riu.

— Cris... Você está linda, mas eu não sei se vai conseguir se manter impecavelmente branca por muito tempo...

Cris sacudiu os ombros, enquanto pingava perfu­me francês atrás da orelha:

— Não tem importância, eu trouxe muita roupa... o essencial é estar sempre chique!

As outras riram. Lila comentou: — Se é para conquistar o meu irmão tire o cavali­

nho da chuva... o desejo súbito que ele teve, de adiar a volta e vir para cá, tem um nome: Mariana.

Mariana assustou-se e gaguejou: — Eu? — Ah Mariana, vai dizer que você não sabia! —

Marcela escovou com força os cabelos encaracolados. — Sorte minha, porque se você ficar com o Paulo, o João Luís é capaz de prestar atenção em mim!

Mariana fez um gesto irritado. — Eu não vou ficar com ninguém! Eu... — ela ti­

nha certeza, se era melhor falar sobre ela e Rodrigo, ou

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não. Antes que pudesse decidir, Lila interrompeu, jogando-se na cama com a mão no coração:

— Vocês podem ficar com quem quiser, contan­to que não olhem para o Rodrigo. Nossa! Eu passei es­ses dois dias pensando nele sem parar... quando che­guei aqui o meu coração disparou... ele é o cara mais lindo que eu já vi na minha vida! Eu estou completa­mente apaixonada!

Mariana reagiu, sem conseguir esconder a irritação, mas disfarçando o susto:

— Pára de falar bobagem, Lila. Que criancice! Vo­cê nem conhece ele direito. Ninguém se apaixona as­sim, da noite pro dia!

— Ah, Mariana, só porque você tem implicância com o seu primo, não consegue ver as qualidades dele, não vai querer que eu também... — Lila respondeu e levantou-se decidida: — Não quero nem saber. Estou de­cidida a conquistar esse carioca, custe o que custar.

Mariana abriu a porta do armário e ficou remexen­do dentro, com raiva e vontade de rir, tudo ao mesmo tempo. "Não consigo ver as qualidades dele! Ah, meu Deus... se ela soubesse — pensou. — E agora o que é que eu faço?"

» • *

Quando as meninas chegaram à varanda, os ra­pazes estavam sentados olhando Rodrigo que fazia evo­luções no skate de Júnior, estimulando, pacientemen­te, o garoto a repeti-las. As meninas se juntaram à pla­téia.

Paulo se aproximou de Mariana. — Vamos deixar as "crianças" se divertindo e sair

para dar uma volta? Eu preciso falar com você. Mariana, um pouco aflita, respondeu com polidez. — Depois, Paulo. Nós combinamos dar uma vol­

ta na fazenda, todos juntos — ela enfatizou as duas úl­timas palavras.

Cristiana sentou-se ao lado de Augusto, tomando

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cuidado para não amarrotar seu traje. O rapaz comen­tou gaiato:

— Vai ser um verdadeiro show ver você desfilan­do numa passarela de estéreo, Cris.

Todos riram, mas a menina continuou impávida na sua pose. João Luís apontou para Rodrigo, e se dirigiu a Mariana:

— Seu primo é mesmo bom nisso aí. Quem me dera ter coragem de aprender, parece uma emoção e tanto!

Mariana não respondeu, os olhos orgulhosos e sor­ridentes acompanhando as evoluções de Rodrigo. Mar­cela não perdeu tempo e aproveitou para o adular.

— É coisa para criança, João Luís, é por isso que você não tem coragem... mas garanto que, se quisesse, aprendia logo!

Cris e Mariana trocaram um olhar enquanto Lila, passando por elas, foi na direção de Rodrigo e do me­nino. De longe, Mariana percebeu que Lila estava fir­me na sua intenção. Para conquistar Rodrigo ela ia fa­zer qualquer coisa. Até tomar aula de skate.

Rodrigo ouviu divertido o tagarelar incessante de Lila. Júnior puxava-o pela manga, não escondendo o desagrado que a interrupção da menina lhe trouxera.

— E claro que eu ensino — o rapaz respondeu educadamente — mas agora não dá. Parece que a Ma­riana combinou um giro por aí. — Ele voltou para a va­randa com os dois no seu rastro.

Todos o felicitaram pelo show. Paulo perguntou, num tom de brincadeira, mas, carregado de ironia:

— Você gosta de emoções perigosas, não é? Vai ver, quer ser piloto de fórmula um quando crescer!

Rodrigo não detectou a ironia, ou fingiu que não, e, sem perder a esportiva, perfilou-se ao lado de Paulo. Era quase uma cabeça mais alto do que o outro.

— E você? O que é que pretende ser quando crescer?

Augusto respondeu imediatamente: — Ele... ele quer ser alto! E estourou na gargalhada, acompanhado pelos ou-

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tros. Paulo ia reagir com cara feia mas, nesse momen­to, Lulu chegou, seguida de uma empregada, com uma bandeja com suco e bolo. Mariana foi ajudar a servir. Lila, "prestativa", levou um pedaço para Rodrigo, que, para infelicidade dela, passou-o a Júnior. Mariana entregou-lhe então um outro prato. Lila olhou espan­tada, era a parte mais queimada do bolo... Rodrigo acei­tou sem reclamar. Lila ficou tão indignada que não per­cebeu o olhar tranqüilo e conivente que os dois troca­ram. Ela puxou Mariana do lado.

— Que absurdo! Como é que você faz isso com ele?

Mariana espantou-se: — Isso o quê? Lulu aproximou-se a tempo de ouvir a frase revol­

tada de Lila: — Deu bolo queimado pra ele! Mariana riu. Lulu olhou e entendeu, explicando,

enquanto continuava a distribuir o suco: — O Rodrigo adora bolo queimado, desde peque-

nininho. Lila ficou sem graça. Marcela juntou-se às amigas. — O seu primo é um santo. Agüentar o Júnior! Lila replicou mal-humorada: — Vê se diz para o seu irmão desgrudar um pou­

co, senão eu nem posso chegar perto! Mariana desculpou-se e afastou-se, aquele assunto

estava começando a incomodá-la. Marcela examinou Ro­drigo, que se levantara para devolver o prato de bolo e cruzara com Mariana. Viu que os dois se olharam por al­guns momentos, trocaram algumas palavras em voz bai­xa e sorriram. Ela comentou, um pouco espantada:

— ô Lila, você tem certeza de que a Mariana e o Rodrigo se detestam?

Lila olhou na direção dos dois, pensativa; já havia notado uma mudança no comportamento da amiga com o primo, e não estava entendendo direito. Observou Ma­riana e achou-a positivamente diferente, mas, cautelo­sa, não fez nenhum comentário.

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Paulo, também, do seu canto, avaliava Rodrigo. Um sexto sentido o avisava de que o rapaz podia ser um empecilho à conquista de Mariana. Devia ser desses pri­mos que agiam como irmão mais velho, sentindo-se res­ponsável pela "priminha". Confiava na persistência de sua própria irmã para desviar a atenção do rapaz e dei­xar seu caminho livre. Admirou Mariana, que ajudava a recolher os pratos e copos vazios. Não tinha certeza, mas ela parecia fasciná-lo mais do que há dois dias, co­mo se alguma coisa a tivesse transformado. Os olhos brilhavam, o sorriso estava deslumbrante e ela tinha um ar calmo e feliz que a tornava ainda mais bonita.

Indiferente à observação de que era alvo, Mariana refletia que precisava conversar com Rodrigo a respei­to de Paulo e Lila. Talvez nem devesse mencionar Pau­lo. Era fácil para ela acabar com as ilusões do rapaz, de­monstrando seu desinteresse. Agora... Lila era uma outra história. Ao mesmo tempo em que achava que devia prevenir Rodrigo, não queria ser desleal com a amiga. Talvez o melhor mesmo fosse dizer logo a verdade.

Rodrigo, um pouco afastado do grupo, escutava a conversa interminável de Júnior, meio distraído. Seguia Mariana com os olhos. O fato de saber que ela era sua namorada ainda o deixava meio incrédulo, zonzo de tan­ta felicidade. Era reconfortante saber que eles podiam se comunicar em silêncio, por cima das vozes e risadas de todos e que, mesmo não estando ao lado dela, um fio invisível e indestrutível os unia, mas ainda era pou­co. Sentiu um desejo enorme de tirá-la dali, nem que fosse por alguns momentos. Sorriu e olhou para o re­lógio. Tinham marcado um encontro na gruta, um lu­gar secreto dos dois que não estava no itinerário do pas­seio pela fazenda. Suspirou pensando que ainda falta­vam duas horas. Duas longas horas.

Mariana olhou o relógio. Rodrigo já não estava ali, havia algum tempo, e ela só tinha cinco minutos para chegar à gruta na hora marcada. A turma estava distraí-

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da, observando os pintinhos novos, recém-saídos da chocadeira. É claro que iam sentir sua ausência, mas depois arranjaria uma desculpa qualquer. Começou a afastar-se silenciosamente e imaginou, divertida, o que Rodrigo havia feito para conseguir driblar o Júnior. Cor­tou caminho pelo estábulo, pulando o portãozinho. Nem reparou que Paulo a seguia, a uma certa distância. Atra­vessou correndo o pomar e desceu a escadinha antiga, seguindo na direção da ruína que, na época da escra­vidão, havia sido uma senzala. Avistou o pequeno la­go, em frente à gruta. Havia círculos concêntricos na água, e ela sabia muito bem o que isso queria dizer. Da pequena gruta, Rodrigo estava jogando pedrinhas, co­mo sempre fora o seu costume, tentando fazê-las "qui-car" na superfície lisa do lago o maior número de vezes possível. Contornou o lago e o encontrou, recostado no vão da gruta, um montinho de pedras brancas na mão. Rodrigo abriu um sorriso e os braços quando a viu. Mariana correu para o seu abraço.

— Pensei que não chegasse nunca! — Ele despe­jou as pedrinhas que rolaram pelo chão. — Tava morto de saudades.

Mariana riu: — Mas nós estivemos juntos a manhã inteira! — Juntos? — Rodrigo resmungou. — Tanta gen­

te pra você atender... Ela gracejou: — E você? Tão ocupado "brincando" com o Jú­

nior? Alias, como é que você escapuliu? Rodrigo fez um ar maroto. — Eu disse pra ele que havia um tesouro escon­

dido na fazenda. Ele queria detalhes e eu o mandei pro­curar o Zeca.

Um ruído fez com que eles voltassem a cabeça. Não descobriram de onde vinha. Mariana comentou, preo­cupada:

— Eu andei pensando. Nós não temos por que nos esconder... e eu acho melhor...

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Rodrigo cortou, brusco: — Aquele cara... o Paulo... tá a fim de você. Te

cerca o tempo todo, poxa! Quis até te ajudar a montar no cavalo. Quase que eu encarei e mandei ele tirar a mão de minha garota.

Mariana riu: — Não precisava nem falar. Do jeito que você o

afastou e o olhar assassino que deu pra ele... acho que ficou bem claro! E eu tenho uma novidade... a Lila está apaixonada por você.

— Como é que é? — Rodrigo olhou espantado. Mariana continuou: — Ah, Ro. Não vai me dizer que você não notou! Rodrigo levou a mão ao coração: — Juro que não — e completou com ar gaiato:

— Se bem que eu sei que ninguém resiste ao meu char­me! Mariana fingiu-se de emburrada, e afastou-se um pouco:

— Eu não estou achando graça nenhuma. Ela é minha amiga, não queria que ficasse chateada comigo.

Rodrigo a puxou de volta: — Ah, Mariana... qual é? A garota nem me co­

nhece! Cê quer que eu faço o quê? Sinto muito, mas não posso dar bola pra ela... a minha namorada é mui­to ciumenta!

Mariana reagiu: — Sou mesmo! Rodrigo repetiu: — Minha namorada — examinou com ternura o

rosto dela, como se ainda não acreditasse naquilo. — Daqui a pouco tão nos procurando... e o pior

é que se descobrirem vão ficar fazendo piada... quero te curtir em segredo, ainda. É muito melhor!

Eles se beijaram devagar, esquecendo que existia alguma coisa no mundo além daquele momento e de­les dois. Uma voz infantil cortou a manhã, vinda sabe Deus donde: "Ro dri go ooooo." Um ruído de passos rápidos nem foi percebido pelos dois. Novamente o no­me de Rodrigo ecoou. Sem nenhuma vontade, eles in­terromperam o beijo.

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— Parece que já notaram a nossa falta — Maria-na suspirou. Rodrigo olhou para o relógio.

— Três horas. Mesmo lugar. Não falte! Ela fez continência e murmurou: — Sim, chefe. Eles tomaram o caminho de volta.

• • *

— Não é possível! — Lila reagiu irritada com o ir­mão. Paulo sentou-se no sofá. Os dois conversavam afastados do resto da turma.

— Você não acredita se não quiser. Eu vi. Segui a Mariana e vi. Estavam se beijando e, se você quer sa­ber, numa felicidade de dar inveja. Tive a impressão de que nem se lembravam de que a gente existe... ou me­lhor de que o mundo existe. Chegamos tarde, irmãzi-nha. Eu, por mim, saio desta guerra.

Lila retrucou com violência: — Eu não! Droga! Por que é que Mariana sempre

consegue tudo! É a primeira aluna, é a mais bonita, to­do mundo gosta dela... o Rodrigo... Eu quero o Rodri­go pra mim!

Paulo sorriu, adulto: — Deixa de ser boba. Aproveita as férias e, quem

sabe, tenta o Augusto, ou o João Luís... — continuou, implicante. — Se bem que eles também têm uma que-

dinha pela Mariana. No fundo têm razão. Ela é sensa-cional mesmo.

Nesse momento Mariana surgiu correndo sala a dentro, seguida por Rodrigo.

— Ganhei — ela gritou. — Cheguei primeiro! E não vai dizer que você deixou... é mentira!

Os dois riam felizes, um pouco desligados do que estava acontecendo em volta.

— Não vou dizer nada, mas que eu te dei uma vantagem, dei! E, além disso, o caminho da mangueira é mais curto!

Ele falou e se atirou na poltrona. — Não é!

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Mariana se atirou ao lado dele. De repente nota­ram que, de um modo ou de outro, estavam sendo ob­servados por todos.

— Onde é que você tava, Rodrigo? Te procurei por toda parte — Júnior perguntou, quebrando o clima.

— Eu? — Rodrigo respirou fundo e parou de rir. — Tava procurando a Mariana.

Lila se aproximou, engolindo a raiva. — E você, Mariana? Estava onde? — Procurando o Rodrigo! — ela respondeu com

cara limpa. Augusto interferiu: — Ainda bem que vocês se acharam! A gargalhada geral dissolveu o assunto. Júnior fa­

lou, como se procurando apoio: — Eu queria ir na tal Fazenda Fantasma. Tá todo

mundo dizendo que é bobagem, que não existe. Fala­ram que não existe tesouro também!

Mariana puxou o garoto. — Existe, sim. Uma vez, quando eu era da sua ida­

de, quase encontrei o tesouro! Rodrigo trocou com ela um olhar meigo: — Só não encontrou porque caí de um muro e

me machuquei. A gente teve que desistir e voltar, por­que mal dava para eu andar.

As atenções ficaram novamente concentradas nos dois.

— E por que é que vocês não voltaram depois? Mariana segredou: — É porque o tesouro é mágico, ele vive mudan­

do de lugar... Júnior fez careta. — Ah, eu não acredito nisso! Mas a Fazenda Fan­

tasma existe! Rodrigo levantou-se: — É claro que existe. Já fomos lá milhares de ve­

zes — olhou para Mariana. — Ontem mesmo... Marcela interferiu, lançando um olhar para Lila.

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— A Lila estava louca para conhecer. Quem sabe você não leva ela e o Júnior, Rodrigo?

Rodrigo hesitou por alguns segundos. Mariana olhou para Marcela, percebendo que a outra estava ten­tando ajudar Lila na conquista de Rodrigo. Refletiu que aquela situação precisava ser esclarecida mesmo, antes que desse confusão. Paulo aproximou-se.

— Se é um passeio interessante, vamos todos. Augusto apontou Cristiana que entrava na sala, to­

da arrumada, de vestido claro: — E se não tiver fantasma lá a gente leva o nosso

particular. Risadas e brincadeiras animaram o ambiente e o

passeio foi marcado para depois do almoço. Mariana foi para a cozinha encomendar um farnel, já que a ca­minhada duraria mais de uma hora e eles, na volta, iriam fazer um piquenique.

Foi já na hora do almoço que ela recebeu um bi­lhete, rabiscado às pressas. Depois de lê-lo, sem que nin­guém percebesse, ela não conteve uma sonora garga­lhada, que chamou a atenção de todos. Infelizmente, ela não pôde explicar o motivo do riso, satisfazendo a curiosidade geral. Só Rodrigo, o autor do bilhete, per­maneceu tranqüilo. Ele havia escrito: "Mesma hora, no quarto do enforcado, na Fazenda Fantasma. Românti­co, não é? mas garanto que só nós dois vamos ter co­ragem de entrar lá. Este namoro tá virando história de suspense! Te adoro! Ass.: O surfista ex-solitário."

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No quarto, Marcela e Cristiana escolhiam roupas para usar no passeio. Mariana, defronte do espelho, prendia os cabelos, cantarolando.

De repente ela tirou do bolso da jeans o bilhete de Ro­drigo e o leu de novo, com um sorriso nos lábios. Lila, que até o momento estava meio emburrada numa pol­trona, levantou-se e tentou pegá-lo. Mariana, rápida, im­pediu o gesto, guardando o bilhete de volta no bolso.

— Cartinha de amor...? Você está com segredinhos agora, é? Nunca escondeu nada antes. — Lila falou, com um certo rancor na voz.

Mariana respondeu com ternura: — Você tem razão... mas é... Bom, Lila. Há cer­

tas coisas que são diferentes... uma hora dessas a gen­te conversa.

Marcela se intrometeu: — Ih, Lila, deixa de ser metida... — voltou-se, gaia­

ta, para Mariana: — Jura que não é do João Luís? A menina riu: — Juro. Cristiana amarrou um lenço nos cabelos. — Aposto que é do Paulo. Ele está amarrado na

Mariana. Lila voltou-se, hostil. — Imagine! O meu irmão tem mil namoradas mui­

to mais velhas e interessantes! Marcela reagiu: — Você tá azeda! Hoje mesmo tava dizendo que

ele ficou aqui só por causa dela! Cristiana suspirou:

CAPÍTULO

7

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— É Lila, você anda tão mal-humorada... Será que é por que um certo gato, de cabelos louros e olhos cla­ros, não está te dando bola?

— Na certa! Marcela interferiu, rindo. Lila fez um gesto brusco e saiu do quarto, irritada.

Mariana sentou na cama, aflita. Marcela e Cristiana vie­ram consolar:

— Ah, não liga! Depois passa... Marcela sugeriu: — Por que você não ensina pra ela como conquis­

tar o Rodrigo? As coisas de que ele gosta... Mariana olhou para as duas, meio atônita: — Eu não posso. Marcela e Cristiana ficaram sem entender, como

se aguardando uma explicação. Mariana continuou: — Eu queria falar pra Lila, mas tive medo de que

ela ficasse chateada comigo... — Ela suspirou e falou, rápido, antes que perdesse a coragem: — O bilhete é do Rodrigo. Ele e eu...

Marcela interrompeu com um grito: — Eu sabia! Eu via o jeito de vocês dois o tempo

todo como se estivessem ali com a gente, mas não esti­vessem de verdade, entende? Aquela coisa de roman­ce que a gente vê em filme. Como se pra vocês o mun­do não importasse... Ah, que coisa mais romântica! Aposto que vocês são apaixonados desde crianças!

Cristiana estranhou. — Como é que é? Mas então por que você tratou

o Rodrigo tão mal, desde que ele chegou? Mariana sorriu. — É uma história comprida. Peças que a vida nos

prega... um dia eu conto. Agora eu só quero saber de uma coisa: que é que eu faço com a Lila?

Marcela foi drástica: — Diz na cara dela. Beija ele na frente dela.

Pronto! Cris balançou a cabeça. — Ah, Marcela, você sabe muito bem que a Ma-

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riana não vai fazer isso. Vai ficar com pena. Deixa que ela acaba descobrindo sozinha. Seja não descobriu, por­que do jeito que anda...

Mariana ficou mais animada: - Será?

Meia hora mais tarde eles atravessavam o riacho. Todos pareciam se divertir muito. Rodrigo ficou algum tempo procurando pedrinhas no fundo do rio, as cal­ças arregaçadas. Júnior o seguia, fiel.

— Que legais! São diferentes das outras! — o ga­roto observou. Rodrigo concordou:

— Claro. São de ouro. Olha só como brilham! Jú­nior riu, incrédulo:

— Ah, você acredita mesmo nisso? Rodrigo não respondeu. Juntou as pedrinhas e foi

na direção de Mariana. Segurou a mão dela e colocou lá as pedrinhas, observando:

— Mais umas pra nossa coleção. O Júnior não tá acreditando que são de ouro...

Mariana sorriu e contou pro garoto que as pedri­nhas eram de uma princesa que, um dia, distraída, as perdera naquele caminho. E tanto chorara, tanto cho­rara, que o caminho se transformara num rio. Júnior riu, achando tudo aquilo uma grande bobagem, mas olhou desconfiado para a mão de Mariana, pensando que pareciam de ouro mesmo, brilhando sob o sol.

Observando os dois, de longe, Marcela comentou com Cristiana, quase sem querer:

— Eles não são um casal lindo? Lila reagiu, voltando-se para as duas: — De que vocês estão falando? As duas escapuliram rindo, sem dar resposta. Augusto e João Luís tentaram atrair peixes, jogan­

do na água farelo de pão. Rodrigo olhou para o céu. Nuvens negras se formavam, por cima das montanhas.

— Acho melhor andarmos depressa — avisou. — Vem muita chuva aí.

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Mariana acrescentou: — É, mas se formos rápidos, chegamos à Fazen­

da Fantasma antes do toró! Saíram todos andando depressa. Rodrigo levava

Mariana pela mão, protegendo-a dos galhos. "Até pa­rece que ela não está acostumada a andar sozinha por aqui!" — Lila pensou, ao ver a cena, remoendo a sua raiva.

Augusto contava piadas pelo caminho, divertindo todos. Uns dez minutos mais tarde o sombrio casarão da Fazenda Fantasma surgiu ao longe, cercado, como os castelos medievais, por uma enorme fossa onde corria uma água escura.

Ao ver a ponte pênsil que conduzia à casa, Paulo recuou.

— Acho melhor ficarmos por aqui. Não há nenhu­ma segurança para atravessarmos!

Os outros gozaram. Augusto retrucou: — Só porque tá estudando engenharia resolveu

meter o pau no trabalho dos colegas? Taí, acho a ponte bacana. Deve ser emocionante atravessar...

Rodrigo foi o único que concordou que o estado da ponte era precário, mas sugeriu que passasse um de cada vez. Afinal, a altura não era grande e, no máxi­mo, o que poderia acontecer era tomarem um banho de água suja.

Júnior concordou e, afoito, foi atravessando. Ro­drigo passou em seguida, para ficar do outro lado, aju­dando quem chegasse. Em meio a brincadeiras e afli­ções disfarçadas, todos conseguiram passar.

Entrar na fazenda pulando uma janela era o desa­fio seguinte. A porta principal era pesada e já não se abria, havia muitos anos. Na enorme sala viam-se mó­veis cobertos por panos encardidos, que algum dia ha­viam sido brancos. Marcela cobrou:

— Mariana, e a história dessa fazenda, qual é? É Fantasma por quê?

Mariana, sem responder e com ar enigmático, co­meçou a arrastar um móvel. Rodrigo se aproximou e

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ajudou-a. Empurraram um painel na parede. Uma sali-nha pequena, com uma lareira e móveis antigos, apare­ceu. Os outros olharam admirados. A menina convidou-os a entrar. Lá dentro estariam mais bem acomodados.

Sentados em círculo, ouviram-na contar, com um misto de respeito e encantamento, que crescia à medi­da que a história se desenrolava.

— O dono daqui era um homem muito supersti­cioso. Uma cigana lhe disse que, no dia em que termi­nasse de construir essa casa, ele morreria; por isso sem­pre inventava mais um quarto, um muro, uma ala, pas­sagens secretas... Tão entretido ficava em ludibriar a morte que não dava atenção a sua mulher, uma moça da cidade, simples mas muito linda, e muitos anos mais nova do que ele. Ela, então, se apaixonou pelo jardi-neiro, um rapaz bonito e da sua idade. O dono da fa­zenda descobriu e matou-a, enterrando o corpo num canteiro do jardim. Disse ao jardineiro que ela havia via­jado e pediu-lhe que preparasse aquele canteiro com mudas bem bonitas, pra que ela, ao voltar, já encon­trasse tudo florido. O jardineiro, saudoso, tentava fazer o tempo passar mais depressa dedicando-se a isso, mas, por mais que se esforçasse, não conseguia fazer brotar coisa alguma naquele canteiro especial. Um dia, ele re­solveu substituir toda aquela terra por outra, de melhor qualidade, na esperança de assim conseguir que as mu­das vingassem. Quando removeu a terra, o infeliz des­cobriu ali enterrado o corpo de sua amada, e compreen­deu, imediatamente, quem era o criminoso. Desespe­rado, saiu correndo e, trabalhando sem parar, terminou as paredes de um quarto que estava sendo construído, em menos de meia hora, ficando assim a Fazenda to­talmente pronta, pois, como o dono contava que o tra­balho ia levar ainda uns três dias, não havia determina­do que se começasse qualquer outra construção. Ao des­cobrir o quarto terminado, o fazendeiro correu pela fa­zenda, escondendo-se nos aposentos, fugindo pelos la­birintos, certo de que a morte estava nos seus calcanha­res. Tinha tanto medo que não comia, nem dormia, e

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acabou enlouquecendo e se enforcando no último quar­to construído. O jardineiro, por sua vez, deitou-se no canteiro, abraçado a sua amada, e ficou ali, ao sol e à chuva, até que um dia ele se misturou a ela e à terra, e ali cresceu um maravilhoso roseiral...

As meninas suspiraram. Mesmo Lila que remoía a irritação com o fato de Mariana concentrar, como sem­pre, a atenção geral ficou impressionada. Júnior se me­xeu, inquieto... Os rapazes, com exceção de Rodrigo, riram benevolentes. Júnior pigarreou:

— Isso deve ser só uma lenda... Rodrigo se aproximou de uma janela e a abriu, re­

pentinamente. Todos puderam ver, num jardim inter­no, um lindo roseiral em flor, cuidado e viçoso, nada parecido com o resto dos jardins da fazenda, decaden­tes e abandonados.

— E como é que você explica isto? — ele pergun­tou, dirigindo-se a Júnior.

Mesmo os rapazes, que estavam céticos, deixaram escapar expressões de espanto. Marcela se agarrou a Cristiana, falando:

— Nossa, chegou a me dar um arrepio... Augusto fez cara de quem ia contar uma de suas

piadinhas, mas cocou a cabeça e desistiu. João Luís en­carou Mariana, com ar de dúvida.

Rodrigo virou-se de costas para eles e sorriu para a menina, sem que percebessem.

— Se quiserem, eu levo vocês ao quarto do en­forcado...

Júnior olhou para todos. — Eu não vou... Tô com medo e não tenho ver­

gonha de confessar. Paulo pousou a mão no ombro do garoto. — Medo eu não tenho, mas a minha mãe sem­

pre disse que é melhor deixar os mortos descansarem em paz. — Ele olhou para Rodrigo com um brilho de compreensão no olhar. — Deve haver outras coisas in­teressantes para se ver por aqui.

Mariana sorriu, piscando o olho para Rodrigo.

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— É claro que há. Muitas salas, quartos; a cozi­nha é enorme, cheia de enfeites, estátuas engraçadas...

Cristiana pulou. — Então vamos ver estas aí... Deus me livre de

cadáveres e tragédias... Marcela concordou com ela e todos acompanha­

ram Mariana, que seguiu na frente, como se fosse um guia.

Passaram por salas e corredores. Num determina­do momento, Rodrigo apontou um corredor escuro, que terminava numa escada íngreme.

— O quarto do enforcado é lá em cima, mas, sem brincadeira, a escada está podre e é perigosa. Melhor não ir lá mesmo.

Todos concordaram e seguiram adiante. Em pou­co tempo já estavam familiarizados com a geografia do lugar e se separavam, divertindo-se com as passagens secretas ou com detalhes da ornamentação. Tinham marcado fazer o piquenique na enorme cozinha, den­tro de uma hora.

Rodrigo recostou-se a uma pilastra e sorriu. Ma­riana já não estava por ali. Ele virou-se e foi se afastan­do devagar.

Lila percebera o momento em que Mariana saíra. Olhos grudados em Rodrigo, ela correu em sua dire­ção quando viu que ele também ia embora. Barrou-lhe o caminho e segurou seu braço, falando veemente.

— Não vai embora, eu., fiquei morrendo de me­do com aquela história...

Rodrigo suspirou, um pouco impaciente. — Não tem nada... Os fantasmas aqui nunca ata­

caram ninguém... Olha, o seu irmão tá lá na biblioteca com a Marcela e o Júnior...

Ele tentou conduzi-la até lá, os olhos nos pontei­ros do relógio. Mariana já devia estar esperando... Lila resistiu, veemente:

— Eu quero ficar com você, Rodrigo... eu tenho que te dizer uma coisa. Olha, eu sou amiga da Maria­na... mas não acho justo o que ela faz com você. Fala mal. Diz que você não passa de um surfista, bonito e burro... Tá se divertindo às suas custas!

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Rodrigo saiu andando, tentando se livrar do fala-tório dela. Lila, irritada, tratou de jogar sua última car­tada.

— Ela tá dando bola pro meu irmão, que ele me contou. Gosta de rapaz mais velho. Foi sempre assim...

Rodrigo parou e voltou-se devagar, encarando Li-la com desprezo.

— E você disse que é amiga dela! Fica na tua, Li-la! Acho que já deu pra você sacar que eu e a Maria-na... Bom... Vou fingir que nem escutei o que você me falou. Tô indo...

Lila ficou sem ação, engolindo as lágrimas de raiva.

Abraçados, Mariana e Rodrigo riam divertidos. O rapaz quis saber:

— Quer dizer que você gostou da minha atuação? Abri a janela pra mostrar as roseiras com bastante sus-pense?

Mariana concordou: — Você foi um verdadeiro artista! Quase que eu

ria e estragava tudo. Nunca vi você tão compenetrado. Fiquei foi com pena do Júnior... tadinho...

Rodrigo balançou a cabeça: — Tudo bem. Depois eu levo um papo com ele.

Afinal, nós não inventamos nada... A menina cortou, completando: — Só não contamos que um velhinho maluco vem

todo dia cuidar das roseiras... Eles pararam de rir e ficaram se olhando um tem­

po. Mariana reclamou: — Você custou pra chegar... pensei que também

estivesse com medo do enforcado! Rodrigo titubeou. — Eu tive que conversar com uma pessoa... Mas

agora tá tudo bem... Rodrigo olhou em volta do quarto, sem móveis. — Sabe, quando eu era pequeno, sonhava que

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um dia ia ter dinheiro pra comprar essa fazenda, e mo­rar aqui...

Mariana teve um estremecimento. — Eu... não sei... esse lugar me assusta um pou­

co... fico fazendo brincadeiras mas... Rodrigo a abraçou. — Eu sei. Mas não precisa se preocupar. Nós não

vamos morar aqui. Ela sorriu, encantada, ao pensar neles dois, jun­

tos, morando em algum lugar. Lá debaixo ouviram ruí­dos de passos e, ocasionalmente, alguém perguntava por um deles.

— Acho que já é hora do piquenique. — Ela fa­lou, e levantou-se puxando ele pela mão.

— Acho que já é hora da gente abrir pra todo mun­do que tá namorando — ele declarou, decidido.

— Eu tive que contar pras meninas... mas, pra Lila, não pude... Ela tá tão esquisita comigo... — Mariana explicou.

Rodrigo cortou: — Agora ela já sabe. Mariana não fez nenhum comentário, mas suspi­

rou aliviada. Desceram as escadas e atravessaram o cor­redor. De mãos dadas caminharam pra cozinha. Todos já estavam reunidos, abrindo a cesta de comida. De uma maneira ou de outra reagiram à entrada de Mariana e Rodrigo, de mãos dadas. Júnior, ao contrário dos ou­tros, não estranhou. Veio logo falando, excitado.

— Vocês tavam querendo nos enganar! Fui lá no jardim e encontrei um velhinho... Ele disse que cuida das rosas todos os dias. Há muito tempo.

Rodrigo riu e passou a mão no cabelo do garoto, despenteando-o.

— Espertinho. Tá certo... a gente não falou do ve­lhinho... mas o resto da história é verdade!

— Enforcado e tudo? — o menino indagou. — Enforcado, assassinada, jardineiro e tudo... Não

é que a gente quisesse enganar ninguém... Só que não

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estávamos querendo que vocês fossem no quarto do enforcado...

Paulo se adiantou. — E não precisa dizer por que. Estavam a fim de

ficar sozinhos... — ele riu, de modo simpático. — Deu pra entender logo! Ou vocês acham que tenho medo de fantasmas?

Augusto fez cara gaiata: — Ah, então o Paulo sabia disso aí... — apontou

Rodrigo e Mariana com um gesto. — E eu achando que era um covardão. Chamei pra ir no tal quarto e ele me veio com desculpa de que era perigoso, depois a esca­da cedia... eu quebrava a perna... Bando de...

Todos riram, menos Lila que fazendo um gesto de irritação saiu da cozinha correndo, ao mesmo tempo em que gritava:

— Perdi a fome! Mariana ficou preocupada e teria ido atrás dela, se

Rodrigo não a segurasse. — Deixa, Mariana — Marcela falou. — A Lila é

assim mesmo... daqui a pouco ela volta... João Luís aproximou-se dela, começando a abrú

os sanduíches. — É isso mesmo. Nós já estamos morrendo de fo­

me... Cristiana começou a ajudá-lo. Imediatamente Paulo aproximou-se de Rodrigo <

Mariana e desculpou-se. — Você conhece a minha irmã muito bem, Ma

riana... Às vezes faz umas bobagens, mas é uma garot; legal.

Mariana concordou com um gesto de cabeça. Au gusto, bem-humorado, pôs fim ao problema:

— E se ela não quer, melhor... Sobra mais par; a gente.

Esfregou as mãos e atacou os sanduíches. Risada gerais alegraram o ambiente e, num instante, Lila esta va esquecida e todos comiam com apetite.

Na sala de visitas, Lila batia, irritada, com os pu

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nhos na parede. Estava morrendo de raiva de todos. Principalmente de Mariana. Esta era a maior culpada. Tinha que fazer alguma coisa e ia fazer... Não sabia o quê, mas ia fazer... Um trovão forte a fez estremecer. É se... Ela sorriu satisfeita com a idéia. Ia voltar pra co­zinha e fingir que estava tudo bem. Depois se vingaria...

Abraçado a Mariana, na cozinha, Rodrigo comen­tava:

— O melhor é arrumar tudo e se arrancar! Esta chuva já devia ter caído...

Quando Lila entrou, ele se interrompeu, quase sem sentir, mas logo continuou.

— Se estiverem a fim de encarar a estrada, vai ter que ser agora.

Concordando, os outros começaram a se arrumar. Mariana entregou a Lila um copo com suco e um

sanduíche. A menina aceitou, agradecida, tentando pa­recer tranqüila.

— Vê se come rápido — o irmão, Paulo, falou. — Vai chover e ninguém tá com paciência pros seus chili-ques, não...

Mariana fez um gesto para Paulo, aflita com a si­tuação. Não queria que a amiga se sentisse pior do que já devia estar se sentindo.

— Você pode ir comendo pelo caminho, Lila... — ela disse para consolar.

Novo ruído de trovão apressou-os ainda mais. Na confusão da saída, Lila demorou-se um pou­

co. Enfiou a mochila por baixo de um dos panos que cobriam os móveis da sala, sem que qualquer pessoa percebesse. Depois, pulou rapidamente a janela.

— Mariana — Lila chamou, aflita. Mariana, uma das últimas do grupo, voltou-se e caminhou até Lila.

— Eu esqueci a minha mochila... e estou com as­ma... o meu remédio está lá dentro. Avisa que eu voltei pra buscar...

Mariana viu que os outros já estavam afastados. — Vou com você, depois nós alcançamos o pes­

soal...

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Ela saiu andando de volta para o casarão. Lila a seguiu, escondendo um sorriso maldoso.

Lá adiante, o grupo prosseguia em fila indiana. Ro­drigo ia à frente. Por último ia a distraída Cristiana, que não percebeu que Lila e Mariana já não estavam mais lá.

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— Você se lembra onde deixou? Foi na cozinha? — Mariana indagou de Lila. Lila fez um ar de quem tentava se lembrar. — Acho que não... Ah, talvez na biblioteca...

ou naquela capelinha... Procura na biblioteca você... eu vou... — Lila foi falando e já se dirigindo à capelinha.

Mariana entrou na biblioteca, olhando em volta. Um ruído a fez virar-se, reclamando.

— Não feche a porta, Lila, pode emperrar... Mas a porta já estava fechada. A menina correu

e bateu. — Lila! Do lado de fora Lila passou a tranca. Mariana con­

tinuava batendo: — Isso não tem graça! Vamos nos atrasar e pode­

mos nos perder dos outros. Lila, mochila na mão, gritou antes de pular a jane­

la. — Eu ainda encontro eles! Agora... você... Vai ser

bom passar a noite com os seus fantasmas... — Você ficou maluca? Abre essa porta, Lila! Que

brincadeira mais boba... — Mariana se recostou à por­ta, incrédula... já não se ouvia qualquer ruído vindo de fora.

— Lila... Seria possível que ela houvesse tido coragem? Um

trovão retumbou. Mariana olhou em volta. Lila fizera tudo de cabeça pensada. Aquele era o único aposento da casa de onde não se podia sair, que não tinha co-

CAPÍTULO

8

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municação com qualquer outro. Mariana olhou as enor­mes estantes que iam quase até o teto e resolveu escalá-las. A biblioteca, sem janelas, recebia claridade através de vidros fixos, colocados a volta do teto. Ela alcançou-os e conseguiu ver, através do vidro sujo, o grupo que já ia longe. Não dava para reconhecer ninguém. Era ape­nas uma fila de abrigos de chuva coloridos, ao qual aca­bava de se juntar mais um: o vermelho, de Lila. Maria­na prendeu a respiração. Quem sabe alguém notaria?... Aguardou um momento, mas a fila seguiu no mesmo passo. Ela bateu na janela, chamando, mesmo saben­do que de nada adiantaria.

— Rodrigo... Rodrigo... Como resposta ela só obteve um clarão de raio e

mais trovões que sacudiram os vidros. Assustada ela des­ceu de onde estava. Pensou na infantilidade de Lila... Tudo aquilo era por causa de Rodrigo? O que é que ela esperava ganhar? Se o objetivo era vingar-se, ela cer­tamente havia conseguido o que queria, Mariana pen­sou, nada pior do que ficar ali, sozinha, a tempestade se aproximando...

— Ai, Rodrigo, — ela murmurou, fechando os olhos — por favor... vem me buscar...

A chuva começou a cair, forte. Lila, já ao lado de Rodrigo, comentou.

— É melhor andarmos mais depressa... Rodrigo virou para trás. Quase não dava para en­

xergar ninguém. Mariana, que conhecia a região como ele, devia estar fechando a fila. Ele decidiu que passa­ria este encargo a Paulo. Sabia que ela detestava tem­pestades... Correndo ele foi na direção do final da fila. Lila, agoniada, percebeu o que ia acontecer, mas não conseguiu impedi-lo. Rodrigo não achou Mariana e fez o caminho de volta, procurando com atenção. Uma sen­sação estranha o invadiu. Não era possível... Chamou:

— Mariana... Paulo parou. — O que foi que houve?

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Rodrigo gritou, rápido: — Vamos parar... Ei, todo mundo! O grupo foi parando, e o seguiu até um local onde

as árvores, de copa densa, abrigavam um pouco da chu­va.

— Alguém viu a Mariana? Rodrigo aflito, tirou o capuz de Cristiana. — Eu achei o tempo todo que você era ela... os

abrigos são da mesma cor... João Luís e Marcela se aproximaram preocupados. — Mas onde ela pode ter ido? — Marcela quis

saber. Júnior, que chegou naquele momento, olhou pa­

ra Lila que se mantinha afastada. — A última vez que eu vi, ela tava voltando pra

Fazenda com a Lila. — Ele apontou a menina com o dedo acusador.

O grupo olhou para Lila aguardando. — É mentira — ela declarou fria. — O Júnior tá

inventando! O garoto investiu furioso: — Eu? — virou-se para Rodrigo, o rosto verme­

lho de raiva. — Rodrigo, cê tem que acreditar. Elas vol­taram pra fazenda logo que nós saímos... achei que ti­nham esquecido alguma coisa, depois vi a Lila ao seu lado, e pensei — ele se interrompeu, aflito. — É ela... Ela que tá mentindo... deixou a Mariana pra trás... não esperou... vai ver que ela caiu... vai ver tá machucada... nessa chuva...

O menino falava ansioso, expressando a aflição si­lenciosa de todos.

Rodrigo sacudiu Lila, irritado. — Há quanto tempo foi isso? Lila tentou, inutilmente, se soltar, mas Rodrigo a

segurava com firmeza. — Eu não sei... eu não fiz nada... não tenho cul­

pa... Paulo se aproximou da irmã, enraivecido. — Eu não posso acreditar que você tenha feito isso

de propósito...

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Os outros se entreolharam. Eles acreditavam... Rodrigo largou Lila. — Eu vou voltar. Paulo, leva os outros até aquele

bar na estrada. Não tem errada. Segue reto pela trilha que cê vai dar lá. Com sorte vocês acham alguém pra dar um recado na fazenda do tio Jairo pro jipe buscar vocês...

— Mas, e a Mariana? E se tiver acontecido qual­quer coisa? — alguém perguntou. Rodrigo já tomava o caminho de volta, o corpo tenso, o rosto agoniado.

— Não aconteceu nada. — Lila revelou, num rom-pante. — Vocês não precisam íazer tanto drama! Ela ficou na fazenda... foi só uma brincadeira...

Todos olharam, abismados. Rodrigo deu meia-volta e encarou a menina, com

ar de quem ia assassiná-la. Trovões e chuva mais forte fizeram com que ele saísse correndo... O mais impor­tante era chegar até Mariana o mais depressa possível.

Mariana examinou o conteúdo de sua mochila: al­guns sanduíches, um livro, grampos, pente, caixinha de primeiros socorros, vidros de mostarda, maionese, ket-chup... biscoitos salgados, biscoitos doces... garrafa tér­mica com suco. De fome ela não ia morrer, certamen­te, mas a sua preocupação não era com isso. As velas haviam ficado na mochila de outra pessoa. Estava já escuro, por causa da chuva e... — ela estremeceu com o pensamento — passar a noite ali, sem luz...

Sentou encolhida numa enorme cadeira de leitu­ra. Recordou momentos felizes que passara ali com Ro­drigo, na infância. Essas lembranças sempre a confor­tavam, e ela estava precisando de conforto. Não era lá muito corajosa e estava louca de vontade de chorar... de medo, de raiva. Já perdera as esperanças de ser res­gatada. Fazia algum tempo que estava ali, e ninguém iria procurá-la no escuro. Sem querer pensou na moça que um dia fora dona daquela fazenda e estava enter­rada debaixo do roseiral... quase viu o rosto dela, as-

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sustado diante de seu assassino. Apertou os olhos e sa­cudiu a cabeça, espantando o pensamento. Começou a chorar, limpando as lágrimas, com ódio de si mesma, por ser tão boba.

Queria dormir... queria que o tempo voasse... que­ria Rodrigo! Encolheu-se mais na cadeira, fechou os olhos. Pensou neles dois, correndo e rindo por aquela sala, a chuva batia nos vidros, um trovão a deixou ain­da mais angustiada. "Não é chuva — ela pensou — é o ruído do mar... e esse barulho... devem ser lanchas... e eu estou numa prancha com Rodrigo... e o sol está quente... e..." Ela começou a soluçar... aquela brinca­deira de imaginar coisas boas quando estava com me­do não dava mais certo... era uma bobagem infantil, que não servia para nada! Só pra criar falsas ilusões. Na­quele momento mesmo, a voz de Rodrigo, chamando por ela, ao longe, parecia quase real. Mas não era. Não tinha nem certeza se estava dormindo ou acordada. "Mariana..." Ele a chamava, por cima do ruído das on­das, deslizava suave até junto dela, atravessando a areia branca. "Mariana..." Ela abriu os olhos. O chamado era insistente e nem parecia sonho. "Mariana!" Bem acor­dada ela deu um pulo. Louca de alegria correu para a porta.

— Eu estou aqui — gritou. — Na biblioteca! Ro­drigo! Rodrigo! Eu estou aqui!

Momentos depois ele a abraçava, enquanto ela contava, atropeladamente o que havia acontecido.

— Shhh... — ele a acalmou. — Vamos esquecer a biruta da Lila. Tá tudo bem agora.

Mariana reagiu... — Tudo bem? A gente não pode voltar com essa

chuva... tá trovejando e tá escurecendo... e... Rodrigo colocou a mão em seus lábios, fazendo ela

calar-se e sorriu. — Não vai dizer que tá com medo... eu não tô

aqui? Foi puxando ela pela mão. — Sabe o que eu aprendi com o mar? Quando as

coisas estão ruins pro nosso lado, não adianta ficar lutan-

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do contra... a gente se cansa e acaba se afogando... o melhor é ficar calmo, boiar e esperar...

Mariana deu quase um sorriso: — Mas com sol e de dia... é mais fácil... As velas

ficaram com você? Rodrigo remexeu na sua mochila, tirando uma co­

leção de objetos os mais diversos. — Não... mas os fósforos ficaram... Mariana pegou uma caixa colorida. Haviam várias

iguais. — Que que é isso? Rodrigo riu: — Parafina, pra prancha de surf... esqueci de ti­

rar da mochila antes da viagem... não me serve muito aqui, não é?

Os olhos de Mariana brilharam. — Bobo! Parafina! Eu nem acredito! — ela procu­

rou em todos os cantos e acabou achando um pedaço de barbante. Rodrigo bateu na testa entendendo:

— Puxa... parafina... vela... você sabe fazer? Mariana riu. — Claro. Não é só o mar que ensina coisas, não.

Os livros também ensinam... Algum tempo depois eles foram para a pequena

sala da entrada. Improvisaram um piquenique no chão, e comeram, à luz de velas. Toda a aflição havia desa­parecido, e eles conversavam felizes, esquecidos de tu­do, até agradecidos por aquele momento. Rodrigo co­mentou, aconchegando-se a ela:

— E nós que fizemos tanto esforço para conseguir ficar um pouco sozinhos, hein?

Ambos riram. Mariana olhou preocupada através da janela. A chuva não parava de cair.

Rodrigo entendeu o olhar dela. — Lembra do que eu disse... não adianta brigar

com as ondas... amanhã a chuva vai ter passado... Ela suspirou e recostou, fechando os olhos. Na ver­

dade não tinha mais nenhuma pressa de ir embora. Re-

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fletiu sobre Rodrigo que, como sempre, lhe transmitia uma sensação de tranqüilidade. Fora assim a vida in­teira, e ela teve certeza que fora amor a vida inteira. Ele sempre fora e sempre seria parte de sua vida. Abriu os olhos e viu que ele a olhava com ternura.

— Que que você está pensando? — ela quis sa­ber. Rodrigo riu:

— Eu ia perguntar a mesma coisa... Mariana falou tranqüila: — Eu estava pensando que amo você... muito. Ele a beijou com carinho antes de responder. — E eu estava pensando como a sua amiga Lila

é boba por não ter percebido que nada mais nesse mun­do pode afastar a gente... nem pessoas, nem palavras, nem distância...

Mariana o abraçou, concordando em silêncio.

A claridade da manhã entrou pela janela, junta­mente com o ruído da buzina do jipe. Rodrigo acenou da janela, Mariana, enroscada em um sofá, abriu os olhos se espreguiçando. Não sabia direito onde estava. O ruído da buzina e as vozes da mãe e do pai a desper­taram de vez. Num instante ela se juntou a Rodrigo, à janela, acenando para fora. Jairo murmurou um "gra­ças a deus". Lulu gritou debaixo, apreensiva:

— Vocês estão bem? A visão dos dois sorridentes tornava a pergunta um

pouco desnecessária e ela respirou fundo, ao ver Ro­drigo passar o braço em torno da filha.

— Estamos descendo! — ele gritou. Lulu olhou Jairo com o rabo do olho. Ainda bem

que ele não tinha idéia do que estava acontecendo en­tre Rodrigo e Mariana porque, conservador do jeito que era, seria até capaz... Os dois meninos pularam a jane-

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la. De mãos dadas caminharam na direção do casal. Ro­drigo olhou muito sério para Jairo e declarou com ar solene.

— Tio Jairo... eu quero casar com a sua filha. Lulu abriu a boca espantada. Jairo não escondeu

o susto e ficou olhando, sem saber o que dizer.

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Mariana e Lulu se entreolhavam impa­cientes, do lado de fora do pequeno escritó­rio da fazenda, cuja porta estava fechada. Ma-

iou o relógio. — Meia hora, mamãe... não acha que estão de­

morando muito? Lulu passou a mão no cabelo da filha. — Quem manda? Culpa de vocês mesmo. Você

já imaginou o que o seu pai pensou quando, depois de passarem a noite juntos, o Rodrigo se saiu com aquele pedido?

Mariana riu. — Coitado do papai... o Rodrigo estava tão ino­

cente que nem passou pela cabeça dele... mas a senhora não se assustou...

Lulu concordou. — Eu já sabia do namoro... ou você acha que nasci

ontem? A bem da verdade eu soube disso a vida intei­ra. Muito antes de você... Mesmo no tempo em que você dizia odiar o Rodrigo...

Mariana murmurou: — Eu acho que eu também sabia... só não queria

acreditar... e também, eu achava que ele não gostava de mim. Ai, mãe... e essa porta que não abre!

Como se respondendo aos rogos dela, a porta abriu e Jairo e Rodrigo surgiram rindo. Mariana e Lulu os questionaram com os olhos, ansiosamente. Jairo pigar-reou:

CAPÍTULO

9 riana ol

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— Agora que já está tudo explicado e muito bem explicado, eu acho bom vocês dois irem conversar. Só você Rodrigo pode fazer a Mariana entender os meus motivos...

Mariana olhou meio decepcionada para o pai e quis perguntar alguma coisa, mas Rodrigo a puxou pela mão, levando-a de lá.

Lulu olhou para o marido. Jairo pigarreou, mais uma vez, comovido.

— O Rodrigo é um rapaz bom... como não se vê mais por aí... mas eles são tão crianças ainda...

Lulu recostou no marido. — Ninguém vai casar amanhã, Jairo... e, além dis­

so, o amor faz amadurecer... Jairo concordou com a cabeça. — E o Rodrigo me convenceu de que já está es­

perando há dezoito anos! — riu. — Você não imagina o entusiasmo dele. Queria levar a Mariana pro Rio, dis­se que vai entrar de sócio numa fábrica de pranchas com um amigo, e ficar rico em dois tempos... eu não posso aprovar... mas que eu invejo a disposição dele, ah isso eu invejo...

Lulu balançou a cabeça sorrindo. — Eu espero que vocês tenham chegado a um

acordo que seja bom para todo mundo... Na varanda Rodrigo repetia para Mariana. — Eu concordei... acho que é melhor para todo

mundo! Mariana sacudiu a cabeça. — Não... Você ficar aqui, trabalhando na fazen­

da? Não... Você não vai agüentar, Rô, longe do mar... Eu não quero...

Rodrigo a beijou, interrompendo-a. — Longe do mar, mas perto de você... Mariana levantou-se: — De jeito nenhum... Três anos, Rô... Nós pode­

mos esperar... a gente se escreve, se telefona, se vê nas férias, nos feriados... Ficar longe e sentir saudades não dói tanto quando a gente se ama...

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Rodrigo a abraçou, com muita ternura. — Se você pode agüentar, eu também posso...

porque eu tenho mesmo medo de não me acostumar... mas se você quiser eu fico, eu tento...

Ela sacudiu a cabeça com firmeza. — Nós estivemos separados tanto tempo, achan­

do que um não gostava do outro e sobrevivemos, não foi? Três anos... são só três anos...

Mariana, de vestido branco, encaminhou-se até a frente do palco. O diretor esperou que seu responsável se dirigisse até lá, e estendeu-lhe o canudo, para que ele fizesse a entrega. Lulu e Jairo olhavam de longe, orgulhosos. Um murmúrio de agitação fez-se ouvir na platéia. Afinal de contas, não era comum que o mari­do entregasse o diploma a sua jovem esposa, no dia seguinte ao do casamento. Rodrigo beijou Mariana e desceu do palco. A cerimônia continuou mas os dois já não estavam mais ali. Como sempre, seus olhares se encontravam em silêncio num mundo que era só de­les... e eles se sentiram felizes, muito, muito felizes...

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Romances de Amor Edijovem O amor entre os jovens é o tema central das obras aqui reunidas. Todas elas escritas por nomes consagrados da

Coleção Edijovem. São textos que discutem, em uma linguagem moderna e atual, problemas como o

relacionamento afetivo, a escola, os amigos, a relação com os pais e todos os demais assuntos que são fundamentais

na vida dos adolescentes.

ADRIANA A Espera do Amor

• • N." 63703 - SSS Blanca só tinha 16 anos e com­preendeu que era cedo demais para assumir um compromisso mais sério. Ela gostava de Mar­co, mas o temperamento pos­sessivo do rapaz não se harmo­nizava com o dela.

D'ALFENAS, ÜGIA Luna e Marco

• • N."> 52091 - SSS Luna 6 uma mocinha cheia de belos sonhos. Estudante de Ar­quitetura, ela é Idealista e tem grandes planos para sua vida. Mas a Imagem do jovem artista Marco, que ela conheceu em uma exposição de pintura, não apagou-se de sua memória. Agora que os dois se reencon­traram ela descobriu que Marco também guardara a sua Imagem na lembrança.

ELIZABETH, MARIA Ensina-me a Viver

• • N.° 41032 - SSS Quando a família de Beatriz se viu em dificuldades financeiras, ela foi a que mais sofreu. A Im­posição de casar-se com o rico Dlogo não a agradava, ela já ha­via conhecido Marcos.

Escalada de Amor •• N * 13706 - SSS

No primeiro encontro Adriana sentiu que a mãe de Breno não aprovava o seu namoro com o rapaz. Ajudada por Isis a mãe do rapaz tez tudo para afastar os dois.

ELIZABETH, MARIA Livre Para Viver

• • N.° 11381 - SSS As más companhias colocaram Beto em uma situação multo complicada. Envolvido com dro­gas ele precisou de multa torça para superar o vicio e refazer sua vida ao lado de Lulsa.

Melodia de Amor • • N.° 83702 - SSS

Filha de pais separados Rosa Maria entendla-se melhor com o pai. A mãe era uma pessoa au­toritária que pretendia conduzir o futuro da filha.

Mana Eluabeth

Melodia àe 1 Amor

Meu Amor É Tímido • • N.» 73708 - SSS

Quando Banca conheceu Al­berto, sentiu que o rapaz gosta­va dela sinceramente, mas o re­torno de Jorge levou dúvidas ao seu coração.

Nada Ê de Graça na Vida • • N.° 20299 - SSS

Uma história de amor que já en­cantou várias gerações de leito­res em todo o mundo, adaptada à realidade do Rio de Janeiro de nossos dias.

Um Dia, o Amor • • N.° 41967 - SSS

Francisco velo morar na capital para continuar seus estudos. A chegada dele provocou uma re­viravolta na vida de Marllla. Ele foi uma surpresa para a jovem e mimada garota.

INGBER, LUlZA Quando os Sonhos se

Realizam • • N.° 93701 - SSS

A vida de Cristina transformou-se com a mudança para o Pio. Uma nova escola, novos amigos e a descoberta do amor.

MENDES, SULEMA A Afilhada da Princesa

•• H: 21453 - SSS A história de Gracinha é Igual a de multas outras moças pobres do Interior nordestino. A família foi obrigada a translerlr-se para o sul, onde as dificuldades fo­ram multas. Mas Gracinha esta­va disposta a lutar com todas as suas forças para vencer no sul. Nem mesmo a grande decep­ção sofrida com Aurélio foi ca­paz de destruir o seu sonho.

O Amor e as Pedras •• N.° 38247 - SSS

Paulo havia feito um juramento. Recuperar a fazenda dos pais. A paixão por Patrícia põe em ris­co seus planos. Ele está dividi­do entre o amor e a fidelidade ao seu juramento.

Amor da Minha Vida •• N* 42049 - SSS

Gabrleta éumalovem alegre, co­rajosa e lutadora. A separação dos pais e o Internato não mo­dificaram o seu temperamento corajoso. Foi com essa coragem que ela acabou conquistando Jerõnlmo. Um amor juvenil que anos mais tarde retorna para sempre.

Os livros de um S custam o mesmo, os de SS custam 2xS, os de SSS 3xS e os de SSSS 4xS.

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Como Uma Onda no Mar

Rodrigo, que adorava o surf, aborreceu-se quando, por circunstâncias imprevistas, teve de trocar suas férias nas ensolaradas praias cariocas pelo sossego de uma fazenda no interior mineiro, onde, para maior contrariedade, imaginava ter novos desentendimentos

com a prima que conhecera na infância. De igual modo, a mocinha se lembrava apenas de um menino desajeitado que viria perturbá-la quando se preparava

para gozar melhor o verão junto às amigas. No entanto, ambos notam que estão completamente

mudados e ficam presos por uma afeição que não se desfaz ante o pernóstico Paulo que tenta atrair a

jovem e a invejosa Lila que procura em vão perturbar o coração de Rodrigo.

Os livros de bolso da Ediouro sâo publicados a preços acessíveis e formatos convenientes. Além de leves e portáteis cabem no bolso de

um paletó ou na bolsa de uma mulher.

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