Ana Paula Loução Martins - repositorium.sdum.uminho.pt · A Ana, o João e o Zé Boavida tornam a...
Transcript of Ana Paula Loução Martins - repositorium.sdum.uminho.pt · A Ana, o João e o Zé Boavida tornam a...
-
Ana Paula Louo Martins
Dificuldades de Aprendizagem: Compreendero Fenmeno a Partir de Sete Estudos de Caso
Maro de 2006
Universidade do MinhoInstituto de Estudos da Criana
-
Maro de 2006
Ana Paula Louo Martins
Dificuldades de Aprendizagem: Compreendero Fenmeno a Partir de Sete Estudos de Caso
Universidade do MinhoInstituto de Estudos da Criana
Tese de Doutoramento em Estudos da Criana,rea de Educao Especial
Trabalho efectuado sob a orientao de
Professor Doutor Lus de Miranda CorreiaInstituto de Estudos da Criana, Universidade do Minho, Portugal
Professor Doutor Daniel P. HallahanCurry School of Education, University of Virginia, EUA
-
DECLARAO
Nome: ANA PAULA LOUO MARTINS
Endereo Electrnico: [email protected] Telefone: 253 601 233
N. do Bilhete de Identidade: 8160595
Ttulo da Tese de Doutoramento: Dificuldades de Aprendizagem: Compreender o Fenmeno a Partir de Sete Estudos de Caso
Orientadores:
Professor Doutor Lus de Miranda Correia
Professor Doutor Daniel P. Hallahan
Ano de concluso: 2006
Ramo de Conhecimento do Doutoramento:
Estudos da Criana, rea de Educao Especial
DE ACORDO COM A LEGISLAO EM VIGOR, NO PERMITIDA A REPRODUO DE
QUALQUER PARTE DESTA TESE/TRABALHO.
Universidade do Minho, / /
Assinatura:
-
i
AGRADECIMENTOS
Durante os ltimos trs anos fiz um trajecto com muitos apeadeiros de
alegria, de enamoramento, de amor, de trabalho, de emoo, de frustrao, de
conhecimento prprio e alheio, de desespero, de prazer, de lazer. s muitas
pessoas que gastaram energia, saber e tempo a partilhar comigo algumas
destas paragens quero prestar os meus sinceros e profundos agradecimentos:
queles que na Fundao para a Cincia e a Tecnologia, me concederam a
bolsa de estudo durante os trs semestres em que estive nos EUA. Ao
Professor James Patton por me ter dado o primeiro empurro para a
problemtica da identificao das dificuldades de aprendizagem em termos de
fenmeno a investigar. Paula Canavarro pela inspirao ao nvel da
redaco que me fez sobreviver a uma daquelas fases em que tudo parecia
escuro e sem resoluo. Ao Professor Covert por me ter despertado para o
paradigma naturalista. Ao Professor Osrio pela facilitao do programa
NVivo, pelas preciosas sugestes, incentivos e inmeras perguntas de difcil
resposta. Ao Professor Varela de Freitas pelas valiosas sugestes que fez ao
captulo da metodologia. Ana Serrano pela amizade e pela leitura final que
fez a este documento. Ana Paula Pereira pelo incentivo, sugestes e
confiana amiga que sempre me deu. Maria Maria da Luz, Sandra, ao
Ernesto, ao Dr. Miguel e ao Dr. Loureno pelo apoio dado naquelas fases em
que a impresora se revoltava. Anabela pelo apoio bibliogrfico de ltima
hora proporcionado de l do outro lado do Atlntico e pela amizade de longa
data. Helena pelas longas conversas sobre as coisas da vida e sobre as
coisas do doutoramento, que tanto me fizeram rir e me ajudaram a libertar
fantasmas e a seguir em frente. Ao Joo Flix pelas excelentes sugestes e
ensinamentos na edio deste documento escrito. Aos Professores John Lloyd
e James Kauffman pelo que me ensinaram sobre a educao especial, as
dificuldades de aprendizagem e a actividade de docente e de investigadora.
Ao Professor Daniel Hallahan pela disponibilidade que sempre teve para me
orientar, ensinar, baralhar e incentivar. Ao Professor Lus de Miranda
-
ii
Correia, um pioneiro, um especialista, um defensor dos alunos com
dificuldades de aprendizagem em Portugal, pela amizade e pelo apoio pessoal
e profissional que sempre me concedeu. Aos meus amigos Cindy, Josh, Jin,
Stephen, Caty, Sujith, Kevin, Antnio, Kelly, Olga, Amy, Jeramy, Cenk,
Cynthia, Ben, Seungah, Ilka e Filipa que vindos de partes diferentes do globo,
me acompanharam em experincias emocional e culturalmente carregadas de
ingredientes valiosos que me tornaram mais autntica e me levaram a
aprofundar as minhas razes. Ana pela amizade, pelos almoos e jantares de
comida portuguesa comprada na internet, pelos passeios e pelas vrias idas ao
movie club. Vera e ao Ricardo pelos momentos de lazer que to bem
organizaram e me proporcionaram, e para onde muitas vezes me tiveram de
arrastar, e especialmente pela amizade e pelo carinho, pois sem eles o ltimo
ano e meio teria sido mais triste. Vera, agradeo ainda a preciosa e
indispensvel ajuda na verificao do texto final e a disponibilizao de um
lugar sossegado onde pude terminar esta jornada. Ana Boavida que com
imensa amizade, alegria, simpatia, empatia, disponibilidade e sabedoria
emocional e cientfica me ajudou a superar momentos de cansao, de
desanimo ou de desorientao, bem como a desfrutar de momentos de alegria.
A Ana, o Joo e o Z Boavida tornam a minha vida menos solitria e mais
feliz. Aos sete Professores que colaboram no estudo, conversando,
partilhando perspectivas e validando os resultados. Sem a enorme
disponibilidade e saber que todos demonstraram, este trabalho no teria sido
possvel. Aos meus pais que com pacincia e compreenso souberam apoiar-
me durante este tempo.
Estas pessoas contriburam de forma preponderante para o conhecimento
que hoje tenho sobre o tema das dificuldades de aprendizagem, mas
contriburam igualmente para o conhecimento que fiz do meu eu. As prximas
pginas so um reflexo deste duplo conhecimento. A todas, muito obrigada.
Paula
-
iii
RESUMO
Este trabalho tem por finalidade contribuir para a sistematizao e o
aprofundamento do conhecimento que existe em Portugal sobre o campo das
dificuldades de aprendizagem. Estudei as transformaes educativas
observadas ao longo do tempo, a terminologia, as definies, os critrios de
identificao, o apoio a prestar aos alunos, as perspectivas internacionais que
predominam e os desafios que se apresentam ao campo. Influenciada pelo
paradigma naturalista, tal como defendido por Lincoln e Guba, desenvolvi
uma investigao bsica que assentou nas realidades percepcionadas de sete
profissionais doutorados que leccionam, investigam, fazem clnica e escrevem
sobre dificuldades de aprendizagem. Os dados foram recolhidos atravs de
entrevistas parcialmente estruturadas, de resposta aberta, e de anlise de
documentos. O conhecimento adquirido sintetizado, primeiro, sob a forma
de sete estudos de caso, nos quais apresento factualmente as perspectivas
individuais dos participantes, utilizando o mais possvel a sua voz. Depois sob
a forma de cruzamento dessas perspectivas, trao as diferenas e as
similaridades entre os participantes e interpreto e discuto, luz da investigao
e do debate internacional, as suas perspectivas enquanto grupo. Por fim, este
conhecimento sistematizado sob a forma de concluses.
De acordo com os resultados deste estudo, o campo das dificuldades de
aprendizagem em Portugal, visto atravs das perspectivas dos participantes,
evidencia escassa progresso devido ausncia de envolvimento
governamental e de defesa dos direitos dos alunos, supremacia das teorias de
ensino que valorizam a maturao e o construtivismo e a determinadas
caractersticas da populao portuguesa. O termo dificuldades de
aprendizagem polissmico e sinonmico, tendo associado trs conceitos,
cinco termos sinnimos e seis possveis combinaes de critrios de
identificao. consensual que a identificao dos alunos com dificuldades
de aprendizagem deve ter por base o sentido clnico dos profissionais e a
-
iv
participao dos pais. Existe falta de consenso em relao ao estatuto legal da
definio de dificuldades de aprendizagem, unanimidade quanto necessidade
de apoio especializado nas escolas, para beneficio dos alunos e da sociedade, e
varincia quanto forma de conceptualizao desse apoio. Esta disperso na
conceptualizao do apoio aos alunos apresenta pontos de discordncia e
pontos de concordncia. Os desacordos so relacionados com o local onde o
apoio proporcionado, com quem deve ser responsvel por o organizar e o
prestar e com o tipo de formao dos profissionais envolvidos. Os consensos
referem-se ao facto de, apesar de o professor titular de turma ter uma funo
primordial no apoio, no poder sozinho lidar com a diversidade da turma, de
ser difcil prestar uma interveno especfica individual na sala de aula, e de
ser necessrio que especialistas colaborem nesse apoio. Como desafios para o
futuro, os participantes indicam a formao, a conceptualizao do apoio aos
aluno nas escolas, a investigao, a produo de materiais, testes e programas,
a consciencializao social e poltica, a desconstruo de modelos tradicionais
de conceptualizao das dificuldades de aprendizagem, o aumento da
responsabilidade do sistema educativo no que respeita o sucesso dos alunos e a
disseminao de informao cientfica.
No global, as perspectivas dos participantes permitem-me concluir que
em Portugal, embora com diferentes designaes, as dificuldades de
aprendizagem so reconhecidas como um fenmeno real, que a sua
identificao conceptualizada mediante a utilizao de um modelo clnico e
que o apoio aos alunos considerado necessrio, embora conceptualizado de
diferentes formas. Paralelamente, conclui-se a existncia de um campo no
qual subsiste a supremacia da teoria e do cientfico sobre o poltico, o social e
o educativo, e onde pertinente a criao de um Instituto Portugus para o
Estudo das Dificuldades de Aprendizagem, que promova e assista a
investigao e a disseminao dos seus resultados, bem como a advocacia.
Palavras Chave: Dificuldades de Aprendizagem, Portugal, EUA,
Paradigma Naturalista, Mtodos Qualitativos.
-
v
ABSTRACT
With this study I intend to contribute to the systematization of the
existing knowledge in the field of learning disabilities in Portugal and to add
to that knowledge. Therefore, influenced by the naturalistic paradigm, I
developed research based on the multiple realities of a purposive sample of
seven educational theorists who teach, research, conduct clinics, and write
about learning disabilities. Using partially structured open-ended interviews
and documents as data gathering sources I addressed themes that included the
evolution of the learning disabilities field, terminology, definitions, the
identification criteria to be used, educational services delivery
conceptualization, the international perspectives that may be influencing the
national field, and future challenges. The knowledge I obtained from this data
collection was analyzed and then synthesized and reported in order to reflect
the themes of the study. First, in a seven case studies format, which were
written in a factual analytic level using, as much as possible, the natural
language of the respondents. Second, in a cross case format, in which I
pointed similarities and/or differences between participants perspectives and
interpreted it within the international research and debate context. Finally, I
present the conclusions to reflect what I found and had to say in what concerns
the knowledge gained about the field of the learning disabilities in Portugal.
The results of this study suggest that the learning disabilities field in
Portugal has had a small evolution due to lack of involvement by
governmental and parental and/or professional advocacy groups, the
supremacy of the constructivist conceptual model, the use of the
developmental theory in our schools, and a permissive cultural pattern. It also
shows that the learning disabilities term has associated five synonyms terms
and three types of concepts, and that there are six different combinations of
students identification criteria. There is consensus that the identification must
be based on clinical judgment with parental participation, instead of
qualitative measurements based on cutoff criteria. There is not agreement
-
vi
concerning the legal status for a definition, but all the participants support the
need of services for students with learning disabilities, due to benefits for them
and to the society. However, there is variance in this service delivery
conceptualization. Specifically there is disagreement on the environment
where the service must be delivered, on who must be responsible for the
service delivery, and on teacher preparation. There is agreement that although
the regular teacher has primary participation in the service delivery, she or he
can not alone deal with the class diversity, that it is difficult to individualize an
intervention for students with learning disabilities in the classroom
environment, and that specialists are needed in intervention. The participants
indicated the following challenges for the learning disabilities field in
Portugal: to improve teacher preparation, to conceptualize a service to support
students with learning disabilities in schools, to produce research, materials,
tests, and programs, to increase social and political concern for students with
learning disabilities, to deconstruct traditional models of understanding
learning disabilities, to provide a more responsible educational system when
concerning students with learning disabilities, and to produce and disseminate
scientific information.
At the conclusion of this study, I found that all the participants view
learning disabilities as a real phenomenon, that the proposed identification
process is based on clinical judgment, that all agree on the need for support for
students with learning disabilities, and that there is no agreement on how these
support should be organized. Furthermore, the findings show that the learning
disabilities field is more theoretical than political, social, or educational, and
that there exists the need for a Portuguese Institute for the Study of Learning
Disabilities.
Key Words: Learning Disabilities, Portugal, EUA, Naturalist Paradigm,
Qualitative Methods.
-
vii
NDICE
AGRADECIMENTOS ................................................................................................................ I RESUMO................................................................................................................................... III ABSTRACT................................................................................................................................. V INTRODUO..........................................................................................................................15
A UNIVERSALIDADE DAS DIFICULDADES DE APRENDIZAGEM .. .................16 FINALIDADE, OBJECTIVOS E PRESSUPOSTOS ....................................................18 ORGANIZAO E CONTEDOS................................................................................20
A NATUREZA DO CAMPO DAS DIFICULDADES DE APRENDIZAGE M ...................23 EVOLUO TERMINOLGICA, CONCEPTUAL E OPERACIONAL... ..............26
Perodo da Fundao Europeia (18001920)..............................................................26 Perodo da Fundao Norte-Americana (19201960)................................................28 Perodo da Emergncia Norte-Americana (19601975) ............................................29
Gnese do Termo Dificuldades de Aprendizagem e Elaborao das Primeiras Definies ..............................................................................................................30 Envolvimento do Governo .....................................................................................35 Dinamizao do Minimal Brain Dysfunction: National Project on Learning
Disabilities in Children..............................................................................................35 Criao do National Advisory Committee on Handicapped Children................40 Introduo da definio conceptual de dificuldades de aprendizagem na
legislao....................................................................................................................43 Proliferao de Programas de Interveno.............................................................44 Fundao de Associaes de Pais e de Profissionais .............................................45
Perodo da Solidificao Norte-Americana (19751985)...........................................46
O Estatuto Legal que Garante a Elegibilidade para Servios de Educao Especial: A Aceitao da Noo de Insucesso Acadmico Especfico e Inexplicvel..........................................................................................................47 As observaes clnicas de Hinshelwood, de Morgan e de Orton.......................48 A investigao de Rutter e Yule...........................................................................57
A Definio Conceptual e os Critrios Federais de Elegibilidade: A Adopo da Noo de Discrepncia......................................................................................59 Mtodos Estatais para a Quantificao da Discrepncia........................................63 Reaco do National Joint Committee on Learning Disabilities Definio Federal....................................................................................................................67 Produo de Investigao.......................................................................................71
Perodo da Turbulncia Norte-Americana (19852000) ...........................................73
Consolidao da Definio Conceptual .................................................................73 Definio da Association for Children and Adults with Learning Disabilities...74 Definio do National Joint Committee on Learning Disabilities.......................80 Definio da Individuals with Disabilities Education Act, re-autorizao de
1997............................................................................................................................81 Produo de Investigao.......................................................................................82 Preocupao com os Procedimentos de Identificao: Crtica Quantificao da Discrepncia ......................................................................................................86 Debate Sobre a existncia de um continuum de ambientes educativos..................95 Ps-modernismo.....................................................................................................95 Preocupao com os Procedimentos de Identificao: A Aco Governamental ..97
-
viii
Perodo da Iniciativa Norte-Americana para as Dificuldades de Aprendizagem (20002005) ..................................................................................................................98
Iniciativa Para as Dificuldades de Aprendizagem: A Preparao..........................99 Iniciativa Para as Dificuldades de Aprendizagem: O Debate Sobre a Identificao dos Alunos......................................................................................100 A avaliao dos processos intrnsecos como modelo de identificao ..............100
A complexa tarefa de definir o termo processos intrnsecos................................102 Dfices no processamento intrnseco como causa ...................................................103 das dificuldades de aprendizagem ...........................................................................103 Problematizao da utilizao dos processos intrnsecos ........................................104 como modelo de identificao .................................................................................104
A resposta interveno como modelo de identificao ...................................106 As razes ..................................................................................................................107 As quatro fases da interveno baseada na discrepncia dupla ...............................109 A validao emprica da discrepncia dupla............................................................117 Problematizao da utilizao da resposta interveno ........................................121 como modelo de identificao .................................................................................121
Iniciativa Para as Dificuldades de Aprendizagem: Os Consensos........................128 Iniciativa Para as Dificuldades de Aprendizagem: As Recomendaes...............134 Definio e Critrios Federais: Individuals with Disabilities Education Improvement Act, re-autorizao de 2004 (P.L. 108-446)...................................136
PENSANDO A SITUAO EM PORTUGAL A PARTIR DA REALIDA DE DOS EUA...................................................................................................................................139
As Aces Governamentais.........................................................................................141 A Aco Conjunta de Pais e Profissionais.................................................................150
METODOLOGIA ....................................................................................................................157
A INFLUNCIA DO PARADIGMA NATURALISTA.............. .................................158 O DESIGN DO ESTUDO ...............................................................................................178
Participantes................................................................................................................179 Recolha e Anlise dos Dados......................................................................................182
Recolha dos dados..............................................................................................183 Anlise dos dados...............................................................................................189 Reduo dos dados.............................................................................................190
APRESENTAO DOS RESULTADOS.....................................................................193
APRESENTAO DAS CONCLUSES E DAS RECOMENDAES..................195
CONFIDENCIALIDADE...............................................................................................195 CRITRIOS DE CONFIANA.....................................................................................197
Mtodos para Assegurar a Credibilidade.................................................................198 Triangulao ......................................................................................................199 Sesses de resumo ..............................................................................................200 Validao pelos participantes ............................................................................201
Mtodos para Assegurar Transferibilidade..............................................................202 Descrio minuciosa do contexto.......................................................................202
Mtodos para Assegurar a Confirmabilidade e a Dependabilidade.......................203 O dirio reflexivo ...............................................................................................203
-
ix
APRESENTAO DOS RESULTADOS: AS PERSPECTIVAS DOS SETE PARTICIPANTES...................................................................................................................205
ALFA................................................................................................................................207 A Pessoa .......................................................................................................................207 O Percurso Profissional..............................................................................................208
A Formao inicial e ps-graduada na rea das dificuldades de aprendizagem ..208 A investigao no mbito das dificuldades da leitura, da escrita e dos problemas de comportamento ..............................................................................209 As dificuldades de aprendizagem na docncia universitria................................212
Perspectivas Sobre a Evoluo do Campo das Dificuldades de Aprendizagem: Fala-se Mais do Que se Faz ........................................................................................215 Perspectivas Sobre o Conceito de Dificuldades de Aprendizagem.........................217
Diferenciao entre dificuldades de aprendizagem e distrbios de aprendizagem .......................................................................................................217 A definio de distrbios de aprendizagem includa em decreto-lei: Sim, porque no? ..........................................................................................................221 Uma definio que me parece bastante equilibrada da Associao para Crianas e Adultos com Distrbios de Aprendizagem.........................................223
Perspectivas Sobre o Estabelecimento de Elegibilidade para os Alunos com Dificuldades de Aprendizagem ..................................................................................225
Apoiar os alunos com distrbios de aprendizagem imprescindvel...................225 O apoio aos alunos com distrbios de aprendizagem pode ser dado pela educao especial .................................................................................................226 Trs critrios de identificao ..............................................................................229
Perspectivas Sobre a Terminologia: Prefiro o Termo Distrbios de Aprendizagem .............................................................................................................234 Perspectivas Sobre os Desafios Futuros no Campo das Dificuldades de Aprendizagem: Equipas Especializadas e Diversificadas no Apoio s Escolas.....235 Em Sntese ...................................................................................................................236
BETA................................................................................................................................238
A Pessoa .......................................................................................................................238 O Percurso Profissional..............................................................................................239
A formao em psicologia educacional como dinamizadora do interesse pela rea das dificuldades de aprendizagem ................................................................240 As publicaes como servio de apoio comunidade .........................................241 A prtica clnica e a docncia universitria..........................................................242 As parcerias nacionais..........................................................................................243
Perspectivas Sobre a Evoluo do Campo das Dificuldades de Aprendizagem: No Tem Havido uma Poltica Continuada e Sria .................................................244 Perspectivas Sobre o Conceito de Dificuldades de Aprendizagem.........................247
As competncias no acadmicas fazem parte do meu conceito de dificuldades de aprendizagem...................................................................................................247 A definio de dificuldades de aprendizagem em decreto-lei: Era fundamental e constituiria um grande passo em frente .............................................................250 A definio que utilizo mais a da Lei Pblica americana..................................253
Perspectivas Sobre o Estabelecimento de Elegibilidade para os Alunos com Dificuldades de Aprendizagem ..................................................................................254
Os alunos so os que mais beneficiam da existncia de um apoio formal ...........255 O acompanhamento aos alunos deve, em geral, ser feito por professores titular de turma com formao........................................................................................255 Dois critrios de identificao..............................................................................256
-
x
Perspectivas Sobre a Terminologia: O Termo Dificuldades de Aprendizagem Perceptvel, Mas Cabe L Muita Coisa .....................................................................260 Perspectiva sobre os Desafios Futuros no Campo das Dificuldades de Aprendizagem: Da Produo de Critrios de Identificao Formao de Professores ...................................................................................................................261 Em Sntese....................................................................................................................262
GAMA...............................................................................................................................264
A Pessoa........................................................................................................................264 O Percurso Profissional ..............................................................................................265
A formao inicial em educao fsica e a ps-graduada em dificuldades de aprendizagem........................................................................................................265 A actividade na rea da psicopedagogia e da psicomotricidade...........................267 A regncia e docncia da disciplina de dificuldades de aprendizagem ................269 A investigao no mbito da psicomotricidade, da educao cognitiva e das dificuldades de aprendizagem...............................................................................271 As parcerias nacionais e internacionais ................................................................272
Perspectiva Sobre A Evoluo do Campo das Dificuldades de Aprendizagem: H Muito a Fazer.........................................................................................................275 Perspectivas Sobre o Conceito de Dificuldades de Aprendizagem .........................277
A componente no verbal faz parte do meu conceito de dificuldades de aprendizagem........................................................................................................277 A legislao deve ser clara ...................................................................................281 A definio que rene a minha aprovao a do National Joint Committee on Learning Disabilities.............................................................................................283
Perspectivas Sobre o Estabelecimento de Elegibilidade para os Alunos com Dificuldades de Aprendizagem...................................................................................284
Se no tratamos desta situao comprometemos o desenvolvimento do pas ......284 A partilha como chave do sucesso do sistema de apoio .......................................285 Seis critrios de identificao ...............................................................................287
Perspectivas sobre a Terminologia: H que Fazer um Grande Esforo para que o Termo no Estigmatize ............................................................................................292 Perspectiva sobre os Desafios Futuros no Campo das Dificuldades de Aprendizagem: Da Formao Disseminao da Informao...............................293 Em Sntese....................................................................................................................297
DELTA .............................................................................................................................299
A Pessoa........................................................................................................................299 O Percurso Profissional ..............................................................................................300
A formao em Psicologia, a docncia e a investigao ......................................300 A rede europeia de investigao sobre dificuldades de aprendizagem.................302
Perspectivas Sobre o Conceito de Dificuldades de Aprendizagem .........................303 O conceito de dificuldades de aprendizagem pressupe a existncia de dois subgrupos..............................................................................................................303 No compete legislao definir o que uma dificuldade de aprendizagem ......306 Em relao definio de dislexia identifico-me com a perspectiva inglesa.......311
Perspectivas Sobre o Estabelecimento de Elegibilidade Para os Alunos com Dificuldades de Aprendizagem...................................................................................311
Apoiar para que o desenvolvimento humano se processe ....................................311 Fazia sentido a existncia de um tutor..................................................................312 O sentido clnico dos profissionais como critrio de identificao ......................314
Perspectivas Sobre a Terminologia: Os Termos Internacionalmente Aceites so Dislexia e Discalculia...................................................................................................316
-
xi
Perspectiva Sobre os Desafios Futuros no Campo das Dificuldades de Aprendizagem: Da Adequao de Materiais Responsabilizao do Sistema.....317 Em sntese ....................................................................................................................319
ZETA................................................................................................................................321
A Pessoa .......................................................................................................................321 O Percurso Profissional..............................................................................................322
A formao em Psicologia ...................................................................................322 A regncia e a docncia de disciplinas na formao de professores e de psiclogos.............................................................................................................323 A investigao no mbito dos problemas de comportamento e de aprendizagem325 O servio de apoio comunidade ........................................................................326 As parcerias nacionais e internacionais................................................................326
Perspectiva Sobre A Evoluo do Campo das Dificuldades de Aprendizagem: No Atendimento Estamos Mais ou Menos na Mesma .............................................327 Perspectivas Sobre o Conceito de Dificuldades de Aprendizagem.........................329
As dificuldades de aprendizagem s existem porque existe escola .....................330 Uma certa postura legislativa pelo menos empurra as pessoas para qualquer lado.......................................................................................................................332 Apresento dois tipos de definies.......................................................................334
Perspectivas Sobre o Estabelecimento de Elegibilidade para os Alunos com Dificuldades de Aprendizagem ..................................................................................335
A existncia da definio adequada importante para a promoo atempada do apoio.....................................................................................................................336 um servio de educao regular e no de educao especial............................336 Quatro critrios de identificao ..........................................................................343
Perspectivas Sobre a Terminologia: A Substituir, s por Problemas de Aprendizagem .............................................................................................................349 Perspectiva sobre os Desafios Futuros no Campo das Dificuldades de Aprendizagem: Da Importncia dos Primeiros Anos de Escolaridade Aposta no Apoio Precoce.........................................................................................................349 Em Sntese ...................................................................................................................351
CAPA................................................................................................................................353
A Pessoa .......................................................................................................................353 O Percurso Profissional..............................................................................................354
A formao e prtica no mbito da Psicologia e da Psicopedagogia em Portugal, Frana e Inglaterra ................................................................................354 O Centro de Orientao e Observao Mdico-Pedaggica: Um Centro plurisisciplinar......................................................................................................357 A docncia universitria: A construo de um centro de investigao e a valorizao de parcerias nacionais e internacionais.............................................360
Perspectivas Sobre a Evoluo do Campo das Dificuldades de Aprendizagem: No tenho visto grande progresso ao longo do tempo.............................................361 Perspectivas Sobre o Conceito de Dificuldades de Aprendizagem.........................364
As dificuldades de aprendizagem so na sua maioria dificuldades de ensino......364 Seria muito perigoso existirem orientaes legislativas sobre a definio de dificuldades de aprendizagem ..............................................................................369 Gosto de seguir definies abrangentes...............................................................371
Perspectivas Sobre o Estabelecimento de Elegibilidade para os Alunos com Dificuldades de Aprendizagem ..................................................................................372
Se no existir uma interveno pluridisciplinar o impacto negativo.................372
-
xii
A preveno resolve a maior parte das dificuldades de aprendizagem, excepto as de um grupo mais restrito.................................................................................372 O que me agrada so instrumentos do tipo da Classificao Internacional da Funcionalidade, da Incapacidade e da Sade .......................................................377
Perspectivas sobre a Terminologia ............................................................................380 Perspectiva sobre os Desafios Futuros no Campo das Dificuldades de Aprendizagem: Da necessidade de se Desconstruirem os Modelos Tradicionais Necessidade dos Professores Ensinarem Todos os Alunos ......................................381
SIGMA..............................................................................................................................383
A Pessoa........................................................................................................................383 O Percurso Profissional ..............................................................................................384
A actividade no mbito da educao fsica e da psicomotricidade.......................384 A docncia como dinamizadora do interesse pelo campo das dificuldades de aprendizagem...............................................................................................................385
A investigao no mbito das dificuldades de aprendizagem no verbais ...........386 As parcerias nacionais e internacionais ................................................................387
Perspectivas Sobre o Conceito de Dificuldades de Aprendizagem .........................387 Mais importante que o conceito que o aluno encontre uma resposta para as suas dificuldades...................................................................................................388 A definio de dificuldades de aprendizagem em decreto-lei: Sim, mas duvido que tenhamos estruturas para seleccionar as crianas ..........................................389 A definio mais consensual a do National Joint Committee on Learning Disabilities............................................................................................................390
Perspectivas Sobre o Estabelecimento da Elegibilidade para os Alunos com Dificuldades de Aprendizagem...................................................................................390
importante intervir precocemente......................................................................391 O apoio deve ser dado pela educao especial .....................................................391 Diferenciao entre critrios de identificao a usar na investigao e na prtica escolar...................................................................................................................395
Perspectivas Sobre a Terminologia: -me indiferente, desde que nos entendamos e que os alunos tenham apoio................................................................401 Perspectivas Sobre os Desafios Futuros no Campo das Dificuldades de Aprendizagem: Da Compreenso de que as Dificuldades de Aprendizagem so Respostas Especficas Importncia da Ontognese...............................................402 Em Sntese....................................................................................................................403
APRESENTAO DOS RESULTADOS: O CRUZAMENTO E A DISCUSSO DAS PERSPECTIVAS DOS PARTICIPANTES...........................................................................405
A EVOLUO DO CAMPO DAS DIFICULDADES DE APRENDIZAGE M ........406 A DEFINIO CONCEPTUAL E A OPERACIONALIZAO DE DIFICULDADES DE APRENDIZAGEM....................................................................410
A Polissemia e a Sinonmia do Termo Dificuldades de Aprendizagem..................412 As Componentes do Conceito de Dificuldades de Aprendizagem...........................416 A Operacionalizao do Conceito de Dificuldades de Aprendizagem em Ambientes Educativos.................................................................................................421 A Operacionalizao do Termo Dificuldades de Aprendizagem em Investigao426 As Influncias Internacionais.....................................................................................427 O Estatuto Legal do Conceito....................................................................................429
A ORGANIZAO ESCOLAR E O DESENVOLVIMENTO DOS ALUNO S COM DIFICULDADES DE APRENDIZAGEM ................... ......................................433
A Necessidade de Servios de Apoio aos Alunos.......................................................433
-
xiii
A Conceptualizao dos Servios de Apoio para os Alunos com Dificuldades de Aprendizagem.............................................................................................................435
OS DESAFIOS DE UM FUTURO INCERTO.............................................................440 Em Sntese........................................................................................................................442
CONCLUSES E RECOMENDAES..............................................................................447 PONTES PARA O FUTURO .................................................................................................464 REFERNCIAS.......................................................................................................................467 ANEXOS...................................................................................................................................487
NDICE DE FGURAS
Figura 1. Modelo bi-dimensional para o estudo da evoluo histrica (1800-1974) do campo
das dificuldades de aprendizagem (Wiederholt, 1974, p. 105). ..........................................24 Figura 2. Perodos histricos (1800-2000) do campo das dificuldades de aprendizagem
(Hallahan & Mercer, 2001). ................................................................................................25 Figura 3. Padro de desenvolvimento da investigao naturalista (adaptado de Lincoln &
Guba, 1985, p. 188)...........................................................................................................159 Figura 4. Processo seguido na escrita dos resultados (adaptado de Yin, 2003b, p. 50). ............172 Figura 5. Modelo interactivo de anlise de dados (adaptado de Miles & Huberman, 1994, p.
12). ....................................................................................................................................189 Figura 6. Sistema de categorias e subcategorias. .......................................................................193 Figura 7. Resumo das perspectivas de Alfa. ..............................................................................237 Figura 8. Resumo das perspectivas de Beta...............................................................................263 Figura 9. Resumo das perspectivas de Gama.............................................................................298 Figura 10. Resumo das perspectivas de Delta............................................................................320 Figura 11. Resumo das perspectivas de Zeta. ............................................................................352 Figura 12. Resumo das perspectivas de Sigma. .........................................................................404 Figura 13. Aspectos que impediram a evoluo do campo das dificuldades de aprendizagem
em Portugal. ......................................................................................................................406 Figura 14. Relao entre os trs grupos de alunos....................................................................413 Figura 15. Seis combinaes de critrios de identificao. ......................................................422 Figura 16. Duas combinaes de critrios de identificao em investigao. ...........................426 Figura 17. Sntese das perspectivas dos participantes sobre a existncia de uma definio
legal de dificuldades de aprendizagem..............................................................................432 Figura 18. Cinco formas de conceptualizar o apoio...................................................................436 Figura 19. Desafios para o campo das dificuldades de aprendizagem......................................440 Figura 20. Sntese das perspectivas dos sete participantes. ......................................................446 Figura 21. Continuum de um apoio escolar s dificuldades de aprendizagem com base no grau
de resposta interveno (adaptado de Gresham, 2002, p. 503). .....................................457
-
xiv
NDICE DE QUADROS
Quadro 1. Guia de Classificao, Sndromas de Disfuno Cerebral (Clements, 1966, p.10).....37 Quadro 2. Proporo dos No Respondentes no Fim do Estudo, Identificados pelo Critrio da
Discrepncia Dupla, pelo Critrio de realizao e pelo Critrio de Taxa de Crescimento (adaptado de McMaster et al., 2003) .................................................................................120
Quadro 3. Estabelecimento de confiana: Comparao entre paradigmas (adaptado de Lincoln e Guba, 1985, p. 328 e de Erlandson et al., 1993, p. 133) .................................................197
Quadro 4. Eventos que Contribuiram para o Desenvolvimento do Campo das Dificuldades de Aprendizagem (Adaptado de Ariel, 1992; Bender, 2004) .................................................409
Quadro 5. Perspectiva Sobre a Alterao do Termo Dificuldades de Aprendizagem e Sugestes ...........................................................................................................................414
Quadro 6. Definies Internacionais Mais Utilizadas................................................................428
-
A Natureza do Campo das Dificuldades de Aprendizagem
15
INTRODUO
Neste estudo abordo o tema das dificuldades de aprendizagem,1 que tem
intrigado e desafiado muitos profissionais do campo da medicina, da
psicologia e da educao e que muitos tm considerado dos mais
incompreendidos, controversos e complexos. A meu ver, se j muitos o
disseram e escreveram, poucos o tero explicado como Ysseldyke e Algozzine
o fizeram num artigo intitulado LD or not LD: Thats not the Question!,
publicado nos EUA, em 1983, no Journal of Learning Disabilities. Como
nota introdutria os dois autores referem que, quando lhes pediram para
preparar um pequeno artigo sobre a definio de dificuldades de
aprendizagem, estremeceram. Depois, indicam que quando quiseram
responder questo, Quem tem dificuldades de aprendizagem?, aquilo que
primeiro lhes ocorreu foram as seguintes linhas de uma cano dos Beatles:
Her name was McGill. And she called herself Lil. But everyone knew her as
Nancy. A mim ocorre-me dizer que, tal como acontece com a personagem da
1 No presente trabalho, traduzo para a lngua portuguesa o termo ingls learning disabilities (LD), por dificuldades de aprendizagem, seguindo o que fazem, por exemplo, Correia (1991; 1992; 1997; 2002; 2004b; 1999), Cruz (1999) ou Fonseca (1984; 1999). Entendo-o, sempre, no sentido do conceito norte-americano, excepto nos momentos em que introduzo a voz dos sete participantes que neste estudo comigo partilharam as suas perspectivas sobre o fenmeno das dificuldades de aprendizagem em Portugal.
-
Introduo
16
cano dos Beatles, tambm sobre as dificuldades de aprendizagem, aqui e
alm, existem olhares mltiplos. sobre estes olhares mltiplos que o
presente trabalho incide.
A UNIVERSALIDADE DAS DIFICULDADES DE APRENDIZAGEM
A investigao tem evidenciado que a problemtica das dificuldades de
aprendizagem universal, ou seja, ocorre em todas as lnguas, culturas e
naes do mundo (Lerner, 2000). A literatura sobre esta problemtica
produzida na Austrlia, no Canad, na Alemanha, na Inglaterra, nos EUA, no
Japo, na Holanda, na Sucia, na Finlndia, na Noruega ou em Portugal (ver,
por exemplo, Bravo-Valdivieso & Muller, 2001; Correia, 2004b; Elkins, 2001;
Fonseca, 1996; Gunther, 2001; Klassen, 2002; Lundberg & Hoien, 2001;
Masayoshi, 2001; Stevens & Werkhoven, 2001; Vianello & Moniga, 1996;
Vogel, 2001; Wedell, 2001; Wong & Hutchinson, 2001), em conjunto com a
investigao comparativa, tem, igualmente, mostrado que existem muitas
diferenas na forma como cada pas compreende o fenmeno das dificuldades
de aprendizagem, na terminologia usada e no modo como a escola se organiza
para responder s necessidades e caractersticas dos alunos. Adicionalmente,
tem revelado que, mesmo quando a terminologia utilizada coincide, as
definies conceptuais e operacionais podem ser diferentes. Tem, igualmente,
revelado que, num mesmo pas, existem diversas definies utilizadas em
simultneo e que h alguma similaridade na histria inicial do campo em
alguns destes pases (Vianello & Moniga, 1996; Vogel, 2001). No que
respeita Portugal, a lei omissa em relao definio e aos critrios de
identificao desta problemtica e, como tal, o conjunto de alunos com
dificuldades de aprendizagem no , formal e explicitamente, beneficirio de
-
Introduo
17
um qualquer apoio especializado nas escolas regulares. Paralelamente,
existem professores doutorados que nas Universidades portuguesas se tm
dedicado formao, investigao e produo de literatura neste mbito.
Assim, embora nas universidades se tenha vindo a produzir conhecimento
cientfico sobre o tema, a nvel poltico parece no haver reconhecimento da
existncia destes alunos.
Contactei com o tema das dificuldades de aprendizagem, pela primeira
vez, h cerca de 14 anos atravs da frequncia da disciplina Dificuldades de
Aprendizagem na Faculdade de Motricidade Humana. Esta disciplina marcou-
me, quer pela complexidade da temtica, quer pelo entusiasmo que o professor
colocava na forma como nos ensinava. Mais recentemente, a docncia desta
disciplina a professores do 1 Ciclo do Ensino Bsico, na Universidade do
Minho sob a orientao do Professor Lus de Miranda Correia, potenciou o
meu interesse pelo campo. De facto, a leccionao desta e de outras
disciplinas relacionadas, as formaes que promovi para professores ou para
equipas de apoio educativo, as conferncias a que assisti, as conversas que tive
com colegas, com pais e com crianas, proporcionaram-me valiosas
experincias que me alertaram para o facto de, dia aps dia, os alunos com
possveis dificuldades de aprendizagem lutarem constantemente com a leitura,
a matemtica, a escrita, a frustrao, a baixa de auto-estima e at as retenes.
Paralelamente, toda esta experincia fez-me ouvir professores que no tinham
com quem colaborar, que no sabiam que critrios utilizar para identificarem
os alunos, que no tinham materiais para usar, que no conheciam estratgias
para ensinar; fez-me escutar depoimentos de pais que no percebiam o que se
passava com os seus filhos ou no encontravam solues satisfatrias no
sistema de ensino pblico.
O conhecimento intuitivo do fenmeno das dificuldades de
aprendizagem em Portugal, o qual fui adquirindo com as experincias
anteriormente mencionadas, juntamente com o conhecimento racional sobre a
falta de sistematizao e de informao sobre o que caracteriza o campo das
-
Introduo
18
dificuldades de aprendizagem, sobre o escasso conhecimento das perspectivas
daqueles que tm investigado, tm ensinado e podem exercer alguma presso
sobre o poder poltico, sobre a inexistncia de uma definio formal, de
critrios de identificao e de servios especializados de apoio aos alunos com
esta problemtica, impulsionou o meu interesse pelo tema e justifica a
pertinncia deste trabalho, cuja finalidade, objectivos e pressupostos apresento
de seguida.
FINALIDADE, OBJECTIVOS E PRESSUPOSTOS
No seu global, a presente dissertao representa o culminar de um
trabalho que tem por finalidade contribuir para a sistematizao e o
aprofundamento do conhecimento do fenmeno das dificuldades de
aprendizagem em Portugal. Fao-o olhando para as perspectivas de sete
professores universitrios doutorados, que fazendo investigao, clnica,
ensinando e/ou escrevendo sobre o assunto, podem compreensvel e
abrangentemente abordar os temas em estudo e contribuir, de uma forma
mpar, para ajudar a caracterizar o campo das dificuldades de aprendizagem
em Portugal. O termo perspectivas aqui entendido como a maneira de
considerar, de ver, de encarar o tema em estudo. Assim, relativamente aos sete
participantes, tive por objectivos conhecer, descrever, compreender e explorar:
- Como observam e sentem o que se tem passado ao longo do tempo no
campo das dificuldades de aprendizagem, em Portugal?
- Como tm, no contexto nacional, denominado, definido e
conceptualizado as dificuldades de aprendizagem?
- Como conceptualizam, no contexto nacional, a educao dos alunos
com dificuldades de aprendizagem?
-
Introduo
19
- Como perspectivam, internacionalmente, o conceito de dificuldades de
aprendizagem?
- Quais os desafios que visionam para o futuro do campo das
dificuldades de aprendizagem em Portugal?
Este estudo representa uma investigao bsica, na medida em que
procurei conhecer e compreender a natureza de um fenmeno sobre o qual
pouco se tem investigado (Patton, 2002). Fi-lo, partindo de uma viso
naturalista tal como a que proposta por Lincoln e Guba (1985) e,
consequentemente, aceitando que as realidades existentes no que diz respeito
ao fenmeno em estudo so mltiplas, construdas e holsticas. Fi-lo
consciente de que ao investigar as perspectivas dos sete participantes, iria,
inevitavelmente, encontrar divergncias, levantar questes mais do que
encontrar respostas, e ter dificuldade em fazer previses ou controlar
determinados aspectos, embora pudesse chegar a um determinado nvel de
compreenso do que estava a estudar. Fi-lo consciente, tambm, de que este
estudo lida com realidades percepcionadas, na medida em que a realidade de
cada participante conhecida a partir do seu ponto de vista, sempre parcial e
incompleta, organizada a partir de experincias tidas junto de um nmero
limitado das partes que constituem o todo, e passvel de ser interpretada
diversamente quando vista por diferentes prismas. Fi-lo, ainda, aceitando que
existe uma relao, uma interaco e uma influncia mtua entre mim e cada
um dos participantes; tenho a noo de que esta interaco e influncias no
podem ser eliminadas do processo de investigao, pelo que as utilizei como
oportunidades a explorar para valorizar este trabalho, procurando que, em
conjunto, crissemos os dados e os resultados da investigao. Alm disso, fi-
lo aceitando a generalizao naturalistaintuitiva, psicolgica e construda
com base em conceitos como o da cognio, da abstraco e da compreenso,
por aqueles que esto interessados em faz-lo. Por fim, fi-lo aceitando que os
-
Introduo
20
meus valores (no sentido de critrios, de perspectivas) influenciam este estudo
e que, por tal, tenho de os ter em conta e de lidar com as suas influncias.
ORGANIZAO E CONTEDOS
Este trabalho est organizado em cinco captulos que se seguem
Introduo. O primeiro dedicado anlise e sntese de informao
resultante da investigao, da prtica e da teoria que, internacional e
nacionalmente, tm permitido a acumulao de conhecimento sobre o
fenmeno das dificuldades de aprendizagem. Constatando que nos EUA se
tm debatido com grande paixo as questes das dificuldades de aprendizagem
e produzido muita investigao (Klassen, 2002) que serve como referncia em
vrios pases, incluindo Portugal, descrevo e analiso a evoluo que se tem
operado ao longo do tempo nos EUA no campo das dificuldades de
aprendizagem. Com base no trabalho de Hallahan e Mercer (2002) procuro
fazer sobressair o conjunto de eventos, de perspectivas e de influncias que
tm promovido o aparecimento e o aperfeioamento de aspectos relacionados
com a terminologia, com o conceito, com os critrios de identificao e com o
apoio aos alunos com dificuldades de aprendizagem. Assim, trao o historial
do campo, primeiro na Europa e depois nos EUA, e caracterizo a actualidade,
nomeadamente a origem, o desenvolvimento e os resultados da The Learning
Disabilities Initiative2 (Iniciativa para as Dificuldades de Aprendizagem). Ao
longo desta abordagem, olho e fao sobressair, os aspectos que melhor se
adaptam, complementam, ou valorizam os temas que procuro estudar atravs
das perspectivas dos sete participantes nacionais. Termino este captulo, tendo
2 A The Learning Disabilities Initiative, financiada pelo Office of Special Education Programs, decorreu nos EUA em 2000 e 2001, com o objectivo de promover um debater alargado sobre campo das dificuldades de aprendizagem.
-
Introduo
21
por referncia a anlise da realidade dos EUA, para reflectir sobre a situao
portuguesa, referindo e problematizando as aces do governo e dos pais.
O segundo captulo centra-se na metodologia que utilizei para realizar o
estudo. Descrevo e justifico as opes metodolgicas que, com base na
finalidade, nos objectivos, nos recursos e nas minhas caractersticas pessoais
fui fazendo ao longo do estudo. Apresento o conjunto de directrizes e
consideraes epistemolgicas que me orientaram e descrevo o processo de
recolha e de anlise de dados, bem como a forma de apresentao de
resultados, de concluses e de recomendaes. Por fim, indico quais os
critrios e as tcnicas que utilizei para procurar garantir a credibilidade
cientfica deste estudo de carcter naturalista.
Os dois captulos seguintes so dedicados aos resultados obtidos com a
investigao que realizei. No terceiro captulo apresento-os sob a forma de
sete estudos de caso factuais, que procuram dar a conhecer as perspectivas
individuais dos participantes sobre os temas em estudo. No quarto incluo-os
num formato de cruzamento, de exame de diferenas e de similaridades, bem
como de discusso no contexto do debate e da investigao internacional
contidos no primeiro captulo deste documento.
Dedico o quinto e ltimo captulo deste trabalho apresentao das
concluses, procurando caracterizar o campo das dificuldades de
aprendizagem em Portugal nas vertentes focadas na investigao, bem como
construir pontes para investigaes futuras.
-
A Natureza do Campo das Dificuldades de Aprendizagem
-
A Natureza do Campo das Dificuldades de Aprendizagem
23
A NATUREZA DO CAMPO DAS
DIFICULDADES DE APRENDIZAGEM
Desde o incio do sculo XIX que a problemtica das dificuldades de
aprendizagem tem vindo a intrigar e a captar o interesse de vrios profissionais
do campo da medicina, da psicologia e da educao. A anlise do trabalho
produzido ao longo de mais de duzentos anos permite constatar que muitas das
teorias, das tcnicas e das controvrsias que actualmente esto relacionadas
com a identificao, a etiologia e a interveno na rea das dificuldades de
aprendizagem tm prevalecido, de uma forma ou de outra, ao longo dos
tempos. O trabalho sobre o historial norte-americano do campo das
dificuldades de aprendizagem foi bem organizado e sintetizado por vrios
investigadores (ver por exemplo Ariel, 1992; Bender, 2004; Hallahan &
Mercer, 2002; Lerner, 1989, 2000; Mercer, 1997; Torgesen, 1991, 1998;
Wiederholt, 1974). Destaco em primeiro lugar, aquele que considerado um
clssico: a pesquisa e a sntese produzida por Wiederholt, em 1974. Este autor
reviu a contribuio daqueles que entre os anos de 1800 e 1974 produziram
literatura ou aplicaram tcnicas de diagnstico e de interveno em larga
escala. Como resultado, elaborou um modelo histrico para o estudo do
-
A Natureza do Campo das Dificuldades de Aprendizagem
24
campo das dificuldades de aprendizagem (ver Figura 1) que compreende duas
dimenses: uma relativa s fases de desenvolvimento do campofase da
fundao, da transio e da integrao; e outra relativa ao tipo de
problemticas que despertaram o interesse dos profissionaislinguagem
falada, linguagem escrita e processos perceptivo-motores (Wiederholt, 1974).
em vrias publicaes americanas sobre a histria do campo das
Figura 1. Modelo bi-dimensional para o estudo da evoluo histrica (1800-1974) do
campo das dificuldades de aprendizagem (Wiederholt, 1974, p. 105).
Saliento, tambm, o trabalho informativo, exaustivo (Harry, 2002; E. W.
Martin, 2002), srio e til para qualquer reformulao da legislatura, das
polticas de orientao ou dos procedimentos de actuao (Britt, 2002) que
Hallahan e Mercer apresentaram em 2001 no contexto da Iniciativa para as
Dificuldades de Aprendizagem. Os dois investigadores, reconhecendo a
influncia de outros profissionais (nomeadamente de Lerner, 2000; Mercer,
1997; Wiederholt, 1974), conceptualizaram e organizaram a histria do campo
das dificuldades de aprendizagem nos EUA em cinco perodos (ver Figura 2):
Osgood 1953
Wepman 1960
Kirk 1961
Myklebust 1954
McGinnis 1963
Eisenson 1954
Monroe 1928
Kirk 1940
Gillingham 1946
Spalding 1957
Fernald 1921
Lehtinen 1941
Cruishank 1961
Kepart 1955
Getman 1962
Barsch 1965
Frostig 1964
Gall 1802
Bouillaud 1825
Broca 1861
Jackson 1864
Bastien 1869
Wernicke 1881
Marie 1906
Head 1926
Hinshelwood 1917
Orton 1925 Goldstein 1927
Staruss e Werner 1933
Campo das dificuldades de aprendizagem 1963-
Fase da Fundao
Fase da Transio
Fase da Integrao
Fases Tipo de Problemticas
Linguagem falada Linguagem escrita Processos perceptivo-motores
-
A Natureza do Campo das Dificuldades de Aprendizagem
25
Perodo da fundao europeia (18001920), perodo da fundao (1920-1960),
perodo da emergncia (19601975), perodo da solidificao (19751985) e
perodo da turbulncia (19852000).
Figura 2. Perodos histricos (1800-2000) do campo das dificuldades de
aprendizagem (Hallahan & Mercer, 2001).
Tal como sugerido por Hallahan e Mock (2003), cada um destes
perodos ilustra os interesses, as teorias e os instrumentos que caracterizam o
campo das dificuldades de aprendizagem em diferentes pocas. Em conjunto,
eles evidenciam o progresso e servem de guia para aqueles que procuram
distinguir o trigo do joio num campo to complexo como o das
dificuldades de aprendizagem.
No presente estudo incluo esta perspectiva histrica, essencialmente
norte-americana, por quatro razes. Primeiro, porque concordo que
imprescindvel conhecermos o passado para melhor compreendermos a
natureza das dificuldades de aprendizagem (Kavale & Forness, 1995).
Segundo, porque sem este conhecimento podemos repetir erros que outros
cometeram ou at redescobrir ideias j bem documentadas. Terceiro, porque,
assim, podemos mais eficazmente empenhar-nos no aumento e no
aperfeioamento do conhecimento na rea das dificuldades de aprendizagem
(Wiederholt, 1974). Quarto, porque a histria norte-americana do campo das
dificuldades de aprendizagem ajudar-me- a pensar a realidade portuguesa.
Saliento que, ao escrever estas pginas, me senti como uma espectadora que
estava muito afastada daquilo que aconteceu no passado, muito prxima do
18001920 Perodo da Fundao Europeia
19201960 Perodo da Fundao
19601975 Perodo da Emergncia
19751985 Perodo da Solidificao
1985 2000 Perodo da Turbulncia
-
A Natureza do Campo das Dificuldades de Aprendizagem
26
que acontecia no presente, e sem uma noo clara do que acontecer no futuro,
no campo das dificuldades de aprendizagem. Por isso, seguindo o conselho de
Kauffman (1981), alerto para o favorecimento de um pormenor em relao a
outro ou para alguma superficialidade em certos aspectos.
Assim, este captulo tem dois objectivos. O primeiro apresentar a
evoluo terminolgica, conceptual e operacional do campo das dificuldades
de aprendizagem, nos EUA. O segundo pensar a realidade portuguesa
partindo da anlise que fao realidade norte-americana que descrevi.
EVOLUO TERMINOLGICA, CONCEPTUAL E OPERACIONAL
O trabalho de Hallahan e Mercer (2002) servir-me- de referncia na
organizao desta seco, que tem por objectivo descrever o conjunto de
eventos, de perspectivas e de influncias que tm promovido o aparecimento e
o aperfeioamento de aspectos relacionados com a terminologia, com o
conceito e com os critrios de identificao das dificuldades de aprendizagem.
No final desta seco acrescento a esta referncia histrica de Hallahan e
Mercer, a descrio do perodo actual, o qual denomino de Perodo da
Iniciativa para as Dificuldades de Aprendizagem.
Perodo da Fundao Europeia (18001920)
Este primeiro perodo da histria do campo das dificuldades de
aprendizagem foi dominado, por um lado, pela investigao no mbito das
-
Fundao Europeia (1800-1920)
27
leses cerebrais adquiridas por adultos em consequncia de acidentes cerebrais
vasculares ou de incidentes em situao de guerra; e, por outro lado, pela
procura da localizao das funes sensoriais, perceptivo-motoras e
lingusticas no crebro humano (Hallahan & Mercer, 2002; Lerner, 1989,
2000; Wiederholt, 1974). Os investigadores europeus descreveram as
caractersticas comportamentais que encontraram em pacientes adultos que
tinham perdido a capacidade de falar ou de ler. Paralelamente, a anlise
postmortem feita ao crebro destes indivduos permitiu que se correlacionasse
a funo perdida com a rea que evidenciava estar lesionada (Lerner, 1989,
2000; Wiederholt, 1974). Embora tenham ocorrido vrias descobertas no
campo da neurologia, este intervalo de tempo foi caracterizado pela existncia
de teorias, de dados clnicos e de hipteses contraditrias relativamente
localizao das funes cerebrais. Foi ainda caracterizado pela falta de
entendimento entre os profissionais quanto etiologia e aos efeitos, no
comportamento humano, de determinada leso cerebral (Wiederholt, 1974).
Neste perodo, tanto os investigadores, como os pais, comearam a tomar
conscincia de que os comportamentos exibidos pelos adultos com leses
cerebrais eram, bastantes vezes, idnticos aos das crianas que experienciavam
problemas nas aprendizagens escolares. Como resultado, levantou-se, pela
primeira vez, a hiptese de estas crianas apresentarem leses cerebrais
(Wiederholt, 1974).
Saliento que, segundo Wiederholt (1974), as hipteses que comearam a
surgir, neste perodo, relativas etiologia, classificao e ao tratamento das
desordens perceptivo-motoras, da linguagem falada e da linguagem escrita,
foram elaboradas com base em estudos clnicos exaustivos, cujos resultados
foram depois generalizados para a populao. Embora limitadas pela
tecnologia existente no sculo XIX, estas hipteses de trabalho elaboradas por
diversos investigadores (ex., Franz Gall, John Bouillaud, Carl Wernick,
William Broadbent, Adolf Kussmaul, Pringle Morgan, Paul Broca, John
-
A Natureza do Campo das Dificuldades de Aprendizagem
28
Hinshelwood) tm servido como pontos de referncia at aos dias de hoje
(Hallahan & Mock, 2003). Igualmente importantes para a evoluo do campo
foram os vrios artigos e livros sobre dificuldades de aprendizagem ao nvel da
leitura publicados nos ltimos anos deste perodo (Hallahan & Mercer, 2002).
Perodo da Fundao Norte-Americana3 (19201960)
No perodo da fundao, que segundo Hallahan e Mock (2003)
corresponde ao perodo de transio conceptualizado por Wiederholt (1974), o
trabalho produzido pelos europeus comeou a interessar os profissionais dos
EUA. Ainda que a investigao sobre as funes e as desordens cerebrais no
tenha sido interrompida (Lerner, 2000; Wiederholt, 1974), os investigadores
passaram, neste perodo, a focar-se nos ambientes educacionais, especialmente
nos programas de interveno (Hallahan & Mock, 2003). Deste modo, durante
os anos correspondentes a esta poca, os profissionais da sade, da educao e
da psicologia pouco ou nada se ocuparam de adultos com leses cerebrais.
Antes, empenharam-se na elaborao de programas de interveno para
crianas com possveis leses cerebrais, ou, como eram popularmente
denominadas na altura, com disfuno cerebral mnima (Wiederholt, 1974).
Este trabalho, desenvolvido essencialmente ao nvel do diagnstico e da
interveno, resultou no aparecimento de instrumentos de avaliao e de
tcnicas de interveno que foram altamente pertinentes para o crescimento do
campo das dificuldades de aprendizagem nos anos 60 e 70 (Hallahan & Mock,
2003; Lerner, 1989, 2000; Wiederholt, 1974). Tais tcnicas e instrumentos
foram, na sua maioria, produzidos com base em suposies emergentes no
perodo histrico anterior e em experincia clnica individual dos
3 designao que Hallahan e Mercer (2002) deram a este e aos restantes perodos acrescento o termo norte-americano.
-
Fundao Norte-Americana (1920-1960)
29
investigadores, existindo, assim, pouca investigao relativamente sua
eficcia (Wiederholt, 1974).
Os investigadores norte-americanos que se destacaram durante este
perodo centraram-se no estudo das dificuldades da leitura e da linguagem
ex., Samuel Orton, Grace Fernald, Marion Monroe, Samuel Kirk, bem como
no das dificuldades da percepo, da perceptivo-motricidade e da ateno
ex., Kurt Goldstein, Heinz Werner, Alfred Strauss, Laura Lehtinen, William
Cruickshank, Newell Kephart (Hallahan & Mercer, 2002; Wiederholt, 1974).
Perodo da Emergncia Norte-Americana (19601975)
Tal como referi anteriormente, no final do perodo da fundao os
investigadores tinham j desenvolvido instrumentos para a identificao e para
a interveno junto de alunos com dificuldades de aprendizagem.
Paralelamente, tinham tambm conhecimento suficiente para reclamarem um
conceito especfico que, no tendo sido ainda referido como dificuldades de
aprendizagem, prometia emergir no domnio pblico a qualquer momento
(Hallahan & Mock, 2003). Como tal, durante o perodo que decorreu entre
1960 e 1975, o campo das dificuldades de aprendizagem foi caracterizado pelo
aumento do interesse e da ateno da sociedade civil e do governo, pela
introduo de nova terminologia e definies, pela formao de associaes de
pais e de profissionais e pela expanso de programas educacionais, com uma
nfase particular no processamento psicolgico e no treino perceptivo
(Hallahan & Mercer, 2002; Hallahan & Mock, 2003). Assim, foram muitos os
esforos que, individualmente, ou em grupo, pais, profissionais e governo
desenvolveram, no sentido de promoverem o crescimento do campo (Hallahan
& Mock, 2003).
-
A Natureza do Campo das Dificuldades de Aprendizagem
30
Gnese do Termo Dificuldades de Aprendizagem e Elaborao das
Primeiras Definies
At aos anos 60, os termos disfuno/leso cerebral mnima, dificuldades
de aprendizagem neuropsicolgicas, dislexia, ou dificuldades perceptivas,
entre outros, foram utilizados pelos profissionais, quando se queriam referir a
um conjunto de caractersticas que mais tarde seriam denominadas por
dificuldades de aprendizagem (Correia, 1991; Cruickshank, 1981; Hammill,
Leigh, McNutt, & Larsen, 1981, 1988; Kirk, 1963). Para uma melhor
compreenso da dimenso dos termos que at aos anos 60 tm maior
significado histrico, apresento de seguida parte de uma listagem elaborada
por Fonseca4 (1984):
- dificuldade de leitura adquirida (Lordat, 1843); - impercepo (Broadbent, 1872; Jackson, 1876); - cegueira verbal congnita (congenital word blindness)(Kussman, 1877; Hinshelwood, 1900);
- dificuldades especficas da leitura (Morgan, 1896); - dislexia (Berlin, 1898); - dislexia especfica e estrefossimbolia (Orton, 1937); - distrbios perceptivos (Strauss & Lehtinen, 1942); - neurfrenia (Doll, 1951); - alexia congnita evolutiva; - sindroma de Strauss (Stevens & Birch, 1957); - aprendizagem lenta (slow learner) (Kephart, 1954); - dislexia (clumsy child); - dificuldades visuomotoras; - hiperactividade; e - disfuno cerebral (Bax & Mackeith, 1963). (p. 225-226)
Uma vez que, na poca, nenhum destes termos era unanimemente aceite,
a partir de certa altura tornou-se claro que era necessrio encontrar um outro
que melhor descrevesse a problemtica em causa (Lerner, 2000). Samuel Kirk
contribuiu largamente para o surgimento desta nova terminologia. Em 1962
utilizou o termo dificuldades de aprendizagem (learning disabilities), na
primeira edio do livro Educating Exceptional Children (Correia, 1991;
4 Ver Clements (1966) ou Cruickshank (1981) para mais exemplos.
-
Emergncia Norte-Americana (1960-1975)
31
Hallahan & Keogh, 2000; Hallahan & Mercer, 2002; Hallahan & Mock, 2003;
Hammill, 1990; Kirk, 1963; Kirk & Kirk, 1983), que se tornaria no manual
acadmico mais utilizado na poca (Hallahan & Mercer, 2002). Neste livro, as
dificuldades de aprendizagem, includas no captulo dedicado paralisia
cerebral e s desordens associadas, foram definidas da seguinte forma:
Dificuldades de aprendizagem referem-se a um atraso, a uma desordem ou a uma imaturidade no desenvolvimento de um ou mais processos da fala, da linguagem, da leitura, do soletrar, da escrita ou da aritmtica, resultantes de uma possvel disfuno cerebral e/ou distrbio emocional ou comportamental, e no resultantes de deficincia mental, de privao sensorial ou de factores culturais ou pedaggicos. (Kirk, 1962, p. 263)
Em Outubro desse mesmo ano, este termo e esta definio (com
pequenas alteraes) foram divulgados num artigo publicado na revista
Exceptional Children, por Samuel Kirk e Barbara Bateman. Adicionalmente,
neste artigo os autores apresentaram dois estudos de caso que personificavam
o tipo de diagnstico para as dificuldades da leitura que ambos investigavam e
proclamavam na altura (Kirk & Bateman, 1962).
Em 6 de Abril de 1963, um conjunto de pais, preocupados com a
escassez de programas educativos que fizessem face aos problemas dos seus
filhos, reuniu-se numa conferncia que denominaram Exploration Into the
Problems of the Perceptually Handicapped Child (Correia, 1991, 1992;
Cruickshank, 1981; Hallahan & Mercer, 2002; Kavale & Forness, 1995; Kirk,
1970; Wiederholt, 1974). Para esta conferncia foram convidados vrios
oradores, entre eles Myklebust, Kephart e Kirk (Kirk, 1970). Segundo
Hallahan e Mercer (2002), Kirk destacou-se de entre todos, ao fazer um
discurso que ficou para a histria por introduzir, no domnio pblico, o termo
e a definio de dificuldades de aprendizagem. Nesta sua comunicao,
denominada de Behavioral Diagnosis and Remediation of Learning
Disabilities, Kirk comeou por dizer que sabia que um dos principais
objectivos da conferncia era encontrar um termo que se aplicasse no s a um
-
A Natureza do Campo das Dificuldades de Aprendizagem
32
determinado conjunto de crianas, mas que servisse, tambm, de denominao
para a associao nacional que os pais pretendiam fundar (Kirk, 1963, 1970).
Salientou, de seguida, que no sabia se podia ajudar a audincia, porque
considerava que a terminologia a utilizar dependia dos objectivos especficos
da associao. Logo, sugeriu que se o objectivo era investigar a etiologia dos
problemas das crianas, ento deveriam utilizar um termo de cariz
neurolgico, mas se o propsito era promover servios, ento, a denominao
deveria ter um cariz educativo (Kirk, 1963, 1970). De seguida, Kirk discursou
sobre a sua averso utilizao de rtulos e alertou os participantes para os
perigos de tal utilizao:
H algum tempo que tenho vindo a sentir que os rtulos que atribumos s crianas nos satisfazem, mas so de pouca importncia para elas. Parecemos ficar satisfeitos quando damos um nome tcnico a determinada condio. Tal transmite-nos a satisfao de encerrar um ciclo. Pensamos que conhecemos as respostas se pudermos dar um nome ou um rtulo crianalesionada cerebralmente, esquizofrnica, autista, deficiente mental, afsica, etc. . . . o termo leso cerebral, do ponto de vista da gesto e do treino tem pouco sentido para ns. Ele no me diz se uma criana esperta ou estpida, hiperactiva ou hipoactiva. Ele no me d qualquer tipo de pista para a gesto ou para o treino. . . . Adicionalmente no nos indica as causas, pois a designao de uma criana com leso cerebral no nos indica o porqu da criana ter adquirido essa leso, nem como que ela ficou assim. Muitas vezes me pergunto porque razo tendemos a utilizar termos tcnicos e complexos, quando mais exacto e mais significativo descrever o comportamento. . . Gostaria de vos alertar sobre a utilizao compulsiva de rtulos. (Kirk, 1963, p. 2-3)
Ironicamente, no pargrafo seguinte do seu discurso, Kirk introduziu
aquele que se viria a tornar, de longe, um dos rtulos mais utilizados na
educao especial (Hallahan & Mercer, 2002, p. 22):
Recentemente utilizei o termo dificuldades de aprendizagem para descrever um grupo de crianas que apresentam desordens no desenvolvimento da linguagem, da fala, da leitura, e das competncias de comunicao necessrios interaco social. Neste grupo, no incluo as crianas que apresentam handicaps sensoriais tais como a cegueira ou a surdez, porque temos mtodos para lidar e treinar os cegos e os surdos.
-
Emergncia Norte-Americana (1960-1975)
33
Tambm excluo deste grupo as crianas que apresentam deficincia mental generalizada. (Kirk, 1963, p. 3)
Segundo Kirk (1963), utilizando esta definio, ele e os seus colegas
estavam a desenvolver mtodos de avaliao e a descrever as caractersticas
das competncias de comunicao das crianas com dificuldades de
aprendizagem. Tal dar-lhes-ia, depois, pistas para a elaborao da
interveno. No sentido de ilustrar o que estava a dizer, Kirk terminou o seu
discurso com a apresentao de estudos de caso.
Cruickshank (1981) considerou a introduo do termo dificuldades de
aprendizagem um dos acidentes mais interessantes da nossa profisso (p.
80). que Kirk, embora alertando para a sua averso aos rtulos, procurou
responder quilo que eram os desejos do grupo que o ouvia: encontrar um
termo para denominar a problemtica dos seus filhos e a associao que
queriam formar. Desta forma, sublinhou que o termo dificuldades de
aprendizagem chama a ateno para os problemas acadmicos das crianas e
para a forma como elas so ensinadas, enquanto que o termo leso cerebral
chama a ateno para a etiologia do problema (Kirk, 1963, 1970); ou seja,
Kirk sugeriu que os rtulos mdicos no eram apropriados quando se
queriam descrever dfices educativos (Kavale & Forness, 1995, p. 58).
Nessa tarde, termos como leso cerebral e incapacidade perceptiva foram
discutidos e ponderados pelos participantes, mas a votao acabou por
terminar a favor do termo dificuldades de aprendizagem (Kirk, 1970).
Consequentemente, a nova associao foi denominada de Association for
Children with Learning Disabilities (ACLD) (Correia, 1992; Hallahan &
Mercer, 2002; Hallahan & Mock, 2003; Hammill, 1993; Kavale & Forness,
1995; Kirk, 1970, 1981; Wiederholt, 1974).
Esta conferncia, em especial o discurso de Kirk, teve efeitos
surpreendentes. O campo das dificuldades de aprendizagem tinha, ento, um
nome genrico que podia abarcar uma variedade de problemas acadmicos, e
-
A Natureza do Campo das Dificuldades de Aprendizagem
34
uma organizao de pais e de profissionais dedicada defesa dos interesses
dos indivduos com esta problemtica (Hammill, 1993). Pode dizer-se, com
alguma certeza, que o campo das dificuldades de aprendizagem, enquanto
entidade, comeou nessa altura (Hammill, 1993; Kavale & Forness, 1995;
Kirk, 1981). Nos anos 70, durante um discurso em que reflectia sobre os
pecados que considerava ter cometido no que respeita ao campo das
dificuldades de aprendizagem, Kirk reconheceu que a advocacia que fez para a
utilizao do termo, at altura, tinha provocado tantos problemas como
trazido benefcios (Kirk, 1970).
Em 1964, Barbara Bateman apresentou, numa conferncia no Kansas,
uma definio de desordens de aprendizagem (learning desorders). Uma nova
verso foi publicada em livro, no ano de 1965, num captulo que tinha por
objectivo a descrio de um modelo de diagnstico para as desordens de
aprendizagem:
As crianas que tm desordens de aprendizagem so aquelas que manifestam uma discrepncia educativa significativa entre o seu potencial intelectual estimado e o seu nvel actual de realizao, relacionada com desordens bsicas no processo de aprendizagem, as quais podem, ou no, ser acompanhadas por disfunes demonstrveis no sistema nervoso central e que no so secundrias a deficincia mental generalizada, a privao educacional ou cultural, a distrbio emocional severo ou a perda sensorial. Frequentemente, estas desordens de aprendizagem incluem-se numa ou mais dos seguintes tipos de desordensproblemas de leitura, distrbios visuo-motores e desordens da comunicao verbal. (Bateman, 1965, p. 220)
Esta definio de Bateman tem um grande valor histrico, na medida em
que voltou a introduzir a ideia da utilizao da discrepncia entre a realizao
actual e o potencial intelectual como modo de, formalmente, se identificarem
alunos com dificuldades de aprendizagem. Esta noo de discrepncia, que
tinha sido introduzida por Monroe no perodo da fundao com o objectivo de
identificar alunos com dificuldades de leitura, mas que tinha sido pouco
utilizada, passou a estar intimamente ligada identificao das dificuldades de
-
Emergncia Norte-Americana (1960-1975)
35
aprendizagem, aps a nfase que Bateman lhe deu (Hallahan & Mercer, 2002;
Hallahan & Mock, 2003).
Envolvimento do Governo
No incio dos anos 60, o governo federal norte-americano comeou a
demonstrar interesse pelo campo das dificuldades de aprendizagem,
particularmente pela definio do conceito (Hallahan & Mercer, 2002;
Hallahan & Mock, 2003). Desta forma, financiou o projecto Minimal Brain
Dysfunction: National Project on Learning Disabilities in Children e fundou o
National Advisory Committee on Handicapped Children (NACHC), cujas
contribuies vou descrever nas duas seces seguintes deste trabalho.
Dinamizao do Minimal Brain Dysfunction: National Project on Learning Disabilities in Children
A 1 de Outubro de 1964, nasceu oficialmente o projecto Minimal Brain
Dysfunction: National Project on Learning Disabilities in Children (Clements,
1966). A denominao deste projecto nacional, por si s, reflectia a diviso
que predominava no campo, relativamente validade e relevncia da
atribuio de causas neurolgicas s dificuldades de aprendizagem (Hallahan
& Mercer, 2002, p. 24). No mbito deste projecto, vrias agncias federais,
em conjunto com a Easter Seal Research Foundation, co-fi