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A INFLUÊNCIA DO ELEMENTO NEGRO NA NOSSA NACIONALIDADE Ana Paula Puzzinato (UEL/Afroatitude) Vanderci de Andrade Aguilera (UEL/LET) Resumo: Os africanos chegaram ao Brasil aos milhões e deixaram marcas indestrutíveis em nossa língua nesses três séculos e meio em que aqui permaneceram. Partindo dessa afirmação e de que para o conhecimento de uma comunidade faz-se necessário o estudo de sua língua, que está intimamente relacionada ao seu contexto cultural, esse trabalho tem como objetivo verificar onde se situa, com maior força, a herança lingüística deixada pelo negro, considerado o elemento responsável pelo estabelecimento e difusão de traços da pronúncia das classes populares. Para tanto tomará como base para a constituição do corpus os registros constantes das cartas de três atlas publicados, Atlas Prévio dos Falares Baianos (APFB-1963), Atlas Lingüístico de Sergipe (ALSE-1987) e Atlas Lingüístico da Paraíba (ALPB-1984), buscando verificar se a origem africana dos dados coletados é confirmada na obra de PESSOA DE CASTRO (2001) e nos verbetes constantes de FERREIRA (1986) e HOUAISS (2004). O referencial teórico que embasa o trabalho diz respeito, sobretudo, a Coutinho, Chaves de Melo, Silva Neto e Castro em suas respectivas obras: Pontos de gramática histórica (1958), A língua do Brasil (1981), História da língua portuguesa (1988) e Falares africanos na Bahia: um vocabulário afro-brasileiro (2001). Palavras-chave: Africanismos, cultura, Atlas Lingüísticos, dicionários. Abstract: Africans arrived in Brazil in millions and left indestructible marks in our language during these three and a half centuries while here remained. Departing from such statement and from the fact that knowing a community is necessary for studying its language, which is closely related to its cultural context, this article aims to check where is situated, with greater strength, the linguistic heritage left by the black immigrants, considered the responsible element for the establishment and spreading of pronunciation features in more popular social classes. For doing that, it will take as its main basis for building up the corpus the found registers in the cartographic sheets in three published atlases, the “Atlas Prévio dos Falares Baianos” (APFB - 1963), the “Atlas Lingüístico de Sergipe” (ALSE-1987) and the “Atlas Lingüístico da Paraíba” (ALPB - 1984), searching to check if the African origin of the collected data is confirmed in the works of PESSOA DE CASTRO (2001) and in the dictionary entries found in FERREIRA (1986) and HOUAISS (2004). The theoretical references that serve as the main basis for this study is related above all to Coutinho, Chaves de Melo, Silva Neto and Castro in their

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A INFLUÊNCIA DO ELEMENTO NEGRO NA NOSSA NACIONALIDADE

Ana Paula Puzzinato (UEL/Afroatitude)

Vanderci de Andrade Aguilera (UEL/LET)

Resumo: Os africanos chegaram ao Brasil aos milhões e deixaram marcas indestrutíveis em nossa língua nesses três séculos e meio em que aqui permaneceram. Partindo dessa afirmação e de que para o conhecimento de uma comunidade faz-se necessário o estudo de sua língua, que está intimamente relacionada ao seu contexto cultural, esse trabalho tem como objetivo verificar onde se situa, com maior força, a herança lingüística deixada pelo negro, considerado o elemento responsável pelo estabelecimento e difusão de traços da pronúncia das classes populares. Para tanto tomará como base para a constituição do corpus os registros constantes das cartas de três atlas publicados, Atlas Prévio dos Falares Baianos (APFB-1963), Atlas Lingüístico de Sergipe (ALSE-1987) e Atlas Lingüístico da Paraíba (ALPB-1984), buscando verificar se a origem africana dos dados coletados é confirmada na obra de PESSOA DE CASTRO (2001) e nos verbetes constantes de FERREIRA (1986) e HOUAISS (2004). O referencial teórico que embasa o trabalho diz respeito, sobretudo, a Coutinho, Chaves de Melo, Silva Neto e Castro em suas respectivas obras: Pontos de gramática histórica (1958), A língua do Brasil (1981), História da língua portuguesa (1988) e Falares africanos na Bahia: um vocabulário afro-brasileiro (2001).

Palavras-chave: Africanismos, cultura, Atlas Lingüísticos, dicionários.

Abstract: Africans arrived in Brazil in millions and left indestructible marks in our language during these three and a half centuries while here remained. Departing from such statement and from the fact that knowing a community is necessary for studying its language, which is closely related to its cultural context, this article aims to check where is situated, with greater strength, the linguistic heritage left by the black immigrants, considered the responsible element for the establishment and spreading of pronunciation features in more popular social classes. For doing that, it will take as its main basis for building up the corpus the found registers in the cartographic sheets in three published atlases, the “Atlas Prévio dos Falares Baianos” (APFB - 1963), the “Atlas Lingüístico de Sergipe” (ALSE-1987) and the “Atlas Lingüístico da Paraíba” (ALPB - 1984), searching to check if the African origin of the collected data is confirmed in the works of PESSOA DE CASTRO (2001) and in the dictionary entries found in FERREIRA (1986) and HOUAISS (2004). The theoretical references that serve as the main basis for this study is related above all to Coutinho, Chaves de Melo, Silva Neto and Castro in their

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respective works: Pontos de gramática histórica (1958), A língua do Brasil (1981), História da língua portuguesa (1988) and Falares africanos na Bahia: um vocabulário afro-brasileiro (2001).

Keywords: Africanisms, culture, Linguistic Atlases, dictionaries.

Introdução

São de fundamental importância os estudos sobre a época da colonização portuguesa,

que trouxe consigo do continente africano, à força, como braço necessário ao processo

colonial, populações e suas línguas de origem para os interiores brasileiros, estas

últimas praticamente desaparecidas, mas que foram fundamentais na formação do

português brasileiro que aqui se constituía.

Após o descobrimento do Brasil, a necessidade de mão-de-obra para trabalhar a terra

trouxe ao nosso país os negros da África, que passaram a ser considerados fator

apreciável na vida econômica. Os africanos para cá trazidos vinham de muitas regiões

da África. Os nativos eram embarcados em navios onde se misturavam aos outros

negros da mesma maneira apresados. Eram submetidos, na condição de escravos,

durante a travessia do oceano Atlântico, a duras condições, o que causou a

mortandade de grande parte deles. Os negros chegaram em grandes quantidades e

entre eles estavam principalmente os sudaneses – nagôs e jejes – (que se

estabeleceram na Bahia) e os bantos (estabelecidos em outros Estados do Norte além

do Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais). Chegando aqui, foram entregues aos

fatigantes trabalhos na lavoura e mineração e aos afazeres domésticos. Na Bahia, com

irradiação para Sergipe, foram distribuídos para os campos e plantações de cana-de

açúcar, fumo e cacau, para os serviços domésticos urbanos e, posteriormente, para os

serviços de mineração da zona diamantina. No Rio de Janeiro e em São Paulo foram

encaminhados para as fazendas açucareiras e cafeeiras da Baixada Fluminense e para

os serviços urbanos. Em Pernambuco, Alagoas e Paraíba trabalhavam nas plantações

de cana-de-açúcar e algodão. No Maranhão, com irradiação para o Pará, trabalharam

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na cultura do algodão. Em Minas Gerais, com irradiação para o Mato Grosso e Goiás,

foram encaminhados para os trabalhos de mineração, durante o século XVIII. As

mulheres auxiliavam nos serviços de casa e desempenhavam o papel de amas. Os

negros foram de grande importância na vida dos portugueses, pois, além do trabalho

que desempenharam também participaram de sua vida familiar. A massa escrava foi

distribuída nacionalmente, em proporções variadas, mas conseguiu estabelecer, no

Brasil, uma sociedade escravista que durou quase quatrocentos anos. E a esta grande

massa escrava foi imposta uma nova língua, que não era a sua e que não lhe foi

ensinada, mas que passou a utilizar para comunicar-se e sobreviver. Sabemos que

“...quando dois povos se encontram e passam a viver um ao lado do outro através de

séculos há sempre interinfluência, mas com predomínio do mais forte e do mais

civilizado” (SILVA, 1984, p.10). Porém, esse predomínio não é absoluto, pois “... o povo

menos forte e menos civilizado perfilha a língua do mais forte e do mais civilizado, mas

amoldando-a às suas tendências” (SILVA, 1984, p. 11). A forma mais representativa da

influência negra se deu por meio da língua oral, uma vez que não lhe foi ensinado a

expressar-se por escrito. Como os negros africanos não conheciam nosso léxico,

passaram a denominar coisas à sua volta com termos de sua própria língua,

assimilando uma estrutura gramatical simplificada do português e ocasionando

interferências lingüísticas na língua portuguesa.

“... falou-lhe o idioma, como o diabo o ajudou, naturalmente

deturpando-o, desfigurando-o, modificando-lhe articulações,

simplificando-lhes a morfologia, reduzindo-lhe desinências” (MELO,

1981, p.74).

Segundo Melo (1981, p.74), a influência africana no português popular do Brasil foi

vertical, mais profunda e menos extensa que a do tupi cuja ascendência foi horizontal,

com um vocabulário mais numeroso. E que ao africano, muito mais do que ao índio, se

deve a tendência às simplificações e reduções das flexões e algumas ‘deturpações’

fonéticas extra-românicas notadas na fala popular brasileira. Sua influência na sintaxe

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da língua normal e culta no Brasil foi imperceptível, deixando apenas vestígios na fala

popular, que resistiu ao nivelamento lingüístico do contato com os brancos de origem

portuguesa. Para Melo, é evidente ter havido alguma influência africana no Brasil, uma

vez que não foram poucos os negros que aqui aportaram. Fala-se em torno de quatro

milhões, importados da África, a maioria da região austral e alguns da região sudanesa.

Misturados à população brasileira, o predomínio foi dos nagôs na Bahia e dos bantos

nas outras regiões. Tanto o nagô, falado na Bahia, quanto o quimbundo, falado nas

outras regiões, eram desprovidos de flexões, o que levava Melo a acreditar que essa

era a causa da tendência a simplificações, que alteraram o tipo de concordância.

“... deste modo, natural seria que, adotando o português como “língua

segunda”, imprimissem neles os africanos as marcas dos seus antigos

hábitos lingüísticos, executando-o, não apenas com sotaque peculiar e

deformador, senão que também simplificando-lhe a morfologia com reduzir-

lhe as flexões” (MELO, 1981, p. 76)

A influência das línguas africanas no léxico foi muito menor que a do tupi, mas para

Melo, por maior que pudesse ser em nada desfiguraria a língua portuguesa uma vez

que não é o vocabulário que caracteriza uma língua e sim a estrutura. E que devemos

ver esse contato do português com essas várias línguas africanas, a respeito do

vocabulário, como um enriquecimento para a língua portuguesa.

Além da análise de Melo, verifica-se que Coutinho (1958) reconhece a influência

africana como real na formação da nossa nacionalidade, apesar de não se poder

precisar a extensão dessa influência na fonética e sintaxe da nossa língua.

“A escassez de documento escrito, a não ser o imitado de modo sem dúvida

imperfeito por autores de obras regionais, a remotidade da época da

escravatura, não havendo já sequer um remanescente afro-negro, empecem

sobremaneira a eficácia de pesquisa e observação para se determinar a

influência do escravo no fonetismo e no ritmo da fala popular. Todavia

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estamos certos de que o negro contribuiu grandemente para os modificar na

América” (Jacques Raimundo apud Coutinho, 1958, p.358)

Segundo Coutinho (1958, p. 358), o influxo negro nem foi o mesmo nem igualmente

duradouro em todas as regiões, e das línguas pelos negros faladas, as que mais se

destacaram, por parecerem ter exercido maior influência no português do Brasil e

também pela quantidade de pessoas que as falavam, é o quimbundo, falado pelo grupo

banto, que, segundo ele, se concentraram em Pernambuco e outros Estados do Norte,

no Rio de Janeiro, em São Paulo e Minas Gerais; e o nagô ou iorubá, falado pelo grupo

sudanês, que teve seu ponto de irradiação principalmente na Bahia, comprovado pelo

vocabulário regional.

Na terceira obra analisada, História da língua portuguesa (1988), Silva Neto afirma que

a influência africana, assim como outras, no português do Brasil, tem sempre sido

exagerada, talvez pelo desejo de exaltar a riqueza do nosso vocabulário ou de

demonstrar a diferença que resultaria no reconhecimento de uma língua brasileira, uma

vez que esta foi sempre comparada com o português de Portugal. Para o lingüista,

alguns autores diziam ser africanismos palavras que, por exemplo, já existiam,

comprovadamente, no português de Portugal.

“Os resultados das investigações ficaram muito obscurecidos pela má

colocação dos problemas, tão importantes e sedutores, da influência de uma

língua noutra. Rigorosamente falando, uma língua não age sôbre outra, visto

que as línguas não têm existência fora dos homens que a falam: a

interferência lingüística é um dos aspectos de aculturação, isto é, dos fatos

que decorrem do contacto dos homens que possuem culturas (e portanto

línguas) diferentes” (Silva Neto, 1988, p.594)

Ocorrendo esse contato e, conseqüentemente, essa interferência, os indivíduos

passam a ser bilingües. É nessa fase que os sistemas podem interpenetrar-se, fazendo

surgir inovações que podem se disseminar por todo o território, caso encontrem

condições sociais favoráveis. Silva Neto afirma, entretanto, que a linguagem decorrente

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do contato dos brancos com os negros, a linguagem inculta, nos grandes centros, foi

sendo pouco a pouco eliminada em benefício de uma linguagem culta e aperfeiçoada,

mas ainda sobrevive nas regiões rurais, principalmente nas áreas mais isoladas.

Castro, em sua obra Falares africanos na Bahia: um vocabulário afro-brasileiro (2001),

defende que a influência africana é mais profunda do que se admite no processo de

configuração do perfil da língua falada no Brasil e das diferenças que a afastaram do

português falado em Portugal. Para a autora, as línguas africanas ficaram

resguardadas por sistemas lexicais, que foi a parte que se mostrou mais resistente à

mudança, sob a forma de língua-de-santo, ou num repertório menor nas linguagens

encontradas em vários núcleos do país onde se abrigaram quilombos. De acordo com

o esboço de um mapa etnológico, presente na obra de Pessoa de Castro (2001, p.47),

os africanos do grupo banto além de mais numerosos foram os que se espalharam por

todas as regiões brasileiras, enquanto os jeje-mina se concentraram no Maranhão,

Pernambuco, Bahia, Minas Gerais, ao lado dos banto; e no Rio de Janeiro, ao lado

também dos nagô-iorubá. Pode-se afirmar, portanto, que a contribuição do banto foi

mais significativa que a dos três outros grupos.

“No que concerne à influência dos povos de língua banto, ela foi mais

extensa e penetrante por também mais antiga no Brasil. Isto se revela pelo

número de empréstimos léxicos de base banto que são correntes no

português do Brasil – uma média de 71% – e pelo número de derivados

portugueses formados de uma mesma raíz banto, inclusive os de conotação

especificamente religiosa, sem que o falante brasileiro tenha consciência de

que são de origem banto”. (Castro 1981 apud Moura, 1984, p.45)

As investigações dessa pesquisadora partiram das manifestações folclóricas e dos

falares africanos correntes na região. Afirma que se encontram aportes lexicais tanto

antigos - que entraram para o domínio da língua portuguesa no período colonial e que

já estão totalmente integrados ao sistema lingüístico do português – como os

contemporâneos - que ainda estão em processo de trânsito contínuo para o português.

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Dentre os antigos, encontramos aquele associados ao regime de escravidão e aqueles

introduzidos por elementos novos como fauna, flora, alimentação, religião, etc. Dentre

os contemporâneos, a maioria é proveniente do candomblé, uma das religiões

africanas, estas que ainda são consideradas “lugar de manifestação, conservação e de

difusão do legado lingüístico negro-africano” (Lébéné Philippe Bolouvi 1994 apud

Petter, 2002, p. 134). Bolouvi concorda com a maioria dos estudiosos africanistas que

vêem na religião o foco de irradiação e transmissão do léxico de origem africana no

português do Brasil.

Embora muitos autores sejam cuidadosos ao admitir em que extensão a convivência

íntima com o negro influenciou a nossa língua, ninguém negava que palavras africanas

tivessem entrado no português do Brasil, porém punha-se dúvida que esses

empréstimos alcançassem contingente significativo, capazes de servir à causa dos que

proclamavam a autonomia lingüística da nossa variante. Para Emilio Bonvivi (Centre

National de la Recherche Scientifique), apesar dos inúmeros trabalhos publicados e

consagrados hoje acerca da questão dos empréstimos, os resultados são pouco

satisfatórios, e cita duas razões principais:

“... por um lado a incerteza que pesa sobre os dados levantados no Brasil,

em particular a ausência de um inventário sistemático de empréstimos

cobrindo toda a extensão do país, mas também a não distinção, que é no

entanto necessária, entre os termos usuais, integrados, hoje, totalmente no

estoque lexical do português do Brasil, falado ou escrito, e os termos de

especialidade, notadamente os atestados nos cultos ditos afro-brasileiros;

por outro, a insuficiência de conhecimentos diretos dos dados lingüísticos

do continente africano...” (Bonvini, 2002, p. 156)

Conforme Castro (2001), temos que recuperar o passo da história que perdemos, isto

é, admitir que o africano adquiriu o português como segunda língua e foi o principal

responsável pela difusão da língua portuguesa em território brasileiro. Esses povos

introduziram na cultura brasileira, por meio de suas diversas línguas, sua visão de

mundo, seus valores e costumes. E com o passar do tempo, os termos aportados

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dessas línguas foram conquistando espaço, dando grande acréscimo à nossa carga

cultural, e hoje integram a língua portuguesa.

Sendo as línguas “... os mais seguros e mais duradouros documentos da acção dos

homens através do tempo e através do espaço” (SILVA, 1984, p.07), torna-se

necessário que esses falares sejam estudados e analisados antes que desapareçam

por completo sem que se faça um estudo científico e um registro para a história da

língua. Daí a importância de um atlas lingüístico.

Silva Neto (1957, p. 37) define um atlas lingüístico como um conjunto de mapas em que

se registram os traços fonéticos, lexicais e morfossintáticos característicos de uma

língua num determinado âmbito geográfico.

Em estudo anterior, esta pesquisadora em formação desenvolveu o trabalho A

presença de africanismos na língua portuguesa do Brasil, publicado em co-autoria com

a orientadora do Projeto (Puzzinato e Aguilera: 2006), no qual analisa como alguns

lingüistas tratam a influência dos falares africanos no português do Brasil.

A propósito desse estudo foram pesquisados os atlas da Bahia – Atlas Prévio dos

Falares Baianos-APFB (Rossi: 1963 ), de Sergipe – Atlas Lingüístico de Sergipe-ALSE

(Ferreira et alii: 1987) e da Paraíba – Atlas Lingüístico da Paraíba-ALPB ( Aragão &

Menezes: 1984) cujas informações básicas registram-se abaixo:

Atlas Prévio dos Falares Baianos

O APFB, sob a coordenação de Nelson Rossi, foi o primeiro atlas lingüístico publicado

no Brasil. O corpus foi recolhido, in loco, em 50 localidades do estado da Bahia, das

quais 13 foram sugeridas por Nascentes (1958). O questionário constituiu-se

inicialmente de 2.965 perguntas, mas foi aplicado um extrato de 184 questões a todos

os informantes, posteriormente. As respostas foram distribuídas pelas localidades e

numeradas de 1 a 50. De acordo com Mota (2005, p. 22), foram inquiridos dois

informantes por localidade, totalizando 100 informantes. Destes foram selecionados

aqueles que fossem naturais da localidade e filhos de pais da localidade também,

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ligados a atividades rurais, que tivessem tido pouco ou nenhum afastamento do local

em que nasceram.

Atlas Lingüístico de Sergipe

Neste estudo podemos considerar o ALS como o segundo atlas publicado. Já estava

pronto para impressão em inícios de 1970, mas só veio a ser publicado no ano de

1987. Este Atlas, assim como o APFB, foi coordenado por Rossi e elaborado pela

equipe de Ferreira. A rede de pontos foi composta por 15 localidades (7 delas

sugeridas por Antenor Nascentes), numeradas de 51 a 65, no sentido sul-norte, dando

seqüência à numeração dos pontos da Bahia. Seus informantes, assim como seus

pais, são da própria localidade e se dedicam, principalmente, à atividade agrícola.

Atlas Lingüístico da Paraíba

O Atlas da Paraíba (ALPB) foi o terceiro atlas regional a ser publicado, no ano de 1984,

coordenado pela professora Maria do Socorro Silva de Aragão, e realizado

conjuntamente com a professora Cleuza Palmeira Bezerra de Menezes. O corpus foi

recolhido in loco. A rede de localidades abrange 25 municípios como base e mais 3

municípios satélites por base, num total de 100 municípios. A numeração das

localidades nas cartas foi feita na ordem leste-oeste e norte-sul. O questionário

aplicado foi dividido em duas partes: uma geral com 289 questões e uma específica

com 588. A parte geral compreendia os campos semânticos a terra, o homem, a

família, habitação e utensílios domésticos, aves e animais, plantação, atividades

sociais. A específica se referia aos cinco principais produtos agrícolas do Estado:

mandioca, cana-de-açúcar, agave, algodão e abacaxi. Segundo Aragão (2005, p. 78),

em cada município foram inquiridos um mínimo de três e máximo de dez informantes,

sendo eles nascidos na localidade ou no município, filho de pais nascidos na região,

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tendo entre 30 e 75 anos, com nível de instrução variando entre analfabeto e primário

completo.

A propósito deste trabalho, foram escolhidas, para análise, três cartas lingüísticas, uma

de cada Atlas estudado (carta 087 do APFB, 092 do ALSE e 094 do ALPB). A variante

lexical escolhida boi, referente à menstruação, que se encontra registrada nos falares

das três áreas geográficas e, a título de curiosidade, nas línguas rituais de vários cultos

afro-brasileiros, como por exemplo, na fala dos Erês, que são entidades infantis que o

iniciado no candomblé costuma receber geralmente ao sair do transe de possessão

dos santos. A linguagem que esses erês usam pode ser acompanhada de gestos

chulos e palavrões, geralmente termos referentes a comportamentos e órgãos sexuais.

A maioria é de base banto e já está integrada ao português do Brasil na condição de

gíria ou na linguagem popular.

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O levantamento dos dados dos atlas e a consulta a dois dicionários levaram aos

quadros abaixo. Indica-se a colocação da variante nos espaços baiano, sergipano e

paraibano.

Quadro I – Distribuição diatópica da variante regional boi para menstruação.

BOI PONTOS %

APFB 2; 3; 5; 6; 7; 10; 11; 12; 13; 14; 15; 16; 17; 18*; 19; 20; 21; 22; 23;

24; 25; 26; 27; 28; 29; 31; 34; 35; 37; 38; 41; 43; 44; 46; 47; 48;

49; 50.

76%

ALSE 51; 52; 56; 59. 27%

ALPB 3; 6; 7; 9; 13; 14; 15; 16; 17; 19; 20; 21; 23; 25 56%

Quadro II – Lexicalização da variante em três dicionários consultados

FERREIRA [do latim bove] [Bras; N.E. V. Menstruação]

HOUAISS [N.E. infrm. Menstruação].

CASTRO (banto) (LP) -s.m. Ver bode.

Bode: (FB) (LP) -s.m. menstruação. Var. boi.

Kik. mbodi/

Kimb. mboji

A denominação menstruação apresenta-se, nos três Atlas, sob a variante fonética boi,

com um alto índice de produtividade em 56 localidades, ou seja, 38 pontos da Bahia,

portanto 76% do total de pontos lingüísticos; 4 pontos de Sergipe, caracterizando 26%;

e 14 pontos da Paraíba, caracterizando 56% de ocorrências. A forma com asterisco

refere-se a boiada, derivada de boi e presente apenas no APFB. Ferreira (1986) atribui

a boi, na acepção de animal mamífero, a origem latina bove, e considera também

brasileirismo corrente no Nordeste do país referente à menstruação. Houaiss (2004)

registra como brasileirismo da linguagem informal nordestina. Castro (2001), no

entanto, informa tratar-se de palavra de origem banta, que encontra formas

semelhantes no kikongo e quimbundo. Essa pesquisadora apresenta uma descrição

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bem mais detalhada da variante selecionada, principalmente por ser uma doutora em

línguas africanas, indicando onde ocorre a maior produtividade, as várias acepções

(boi, bode), as formas paronímicas (LP: linguagem popular da Bahia, incluindo termos

de manifestações folclóricas e alguns ocorrentes em outros falares regionais

brasileiros), (LP: linguagem popular, regional brasileira, termo dicionarizado), (FB:

formação brasileira/híbridos, decalques; derivados) e, o que é mais importante, a língua

de origem (banto) e a correspondência em outras línguas africanas (kikongo e

quimbundo).

Comparando-se em Ferreira e Houaiss, não só boi, mas também as demais variantes

de base africana constantes do APFB, do ALSE e do ALPB, verifica-se que, raramente,

fazem referência a uma língua africana específica

A maioria se refere a “africanismo”, como categoria identificadora da etimologia do

termo, ou “possivelmente”, “provavelmente de origem africana”, “talvez sejam oriundos

de alguma língua africana”, “do africano”, “do africano?”, “de origem africana”, “de

0%

10%

20%

30%

40%

50%

60%

70%

80%

APFB

ALPBALSE

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origem africana?”, “de origem africana decerto”, “de possível origem africana”, “de

provável origem africana”, “talvez de origem africana”, “etimologia provavelmente

africana”, “etimologia africana” (Petter, 2002, p. 137 e 140), sem indicar a fonte das

palavras e suas correspondentes em outras línguas da África. Reconhecem seu étimo

africano, mas sem nenhuma outra categorização. Observa-se também que muitos são

inseguros na indicação de muitos étimos, referindo-se a eles como: “de origem

controversa” ou “de origem obscura”, ou recorrem a outro autor que sugere um étimo,

não se comprometendo com a informação (Petter, 2002, p. 140). Ou ainda, aparecem

sob a rubrica de brasileirismo, mostrando a identificação da região onde é de uso

corrente. Segundo Petter, os primeiros trabalhos sobre a diferença entre o português

do Brasil e o português de Portugal observaram que o primeiro difere pela incorporação

de termos de origem indígena e africana, decorrente do contato de falantes de línguas

diversas e da necessidade de denominar realidades novas encontradas na América. A

essas peculiaridades foi dado o nome de brasileirismos, termo que passou a rotular as

inovações lingüísticas do português brasileiro, segundo Petter, desde o dicionário de

Moraes e Silva, de 1789, persistindo até hoje como uma classificação para verbetes

nos dicionários de línguas.

“Em sentido lato, qualquer fato de linguagem (fonético, mórfico,

sintático, lexical, estilístico) próprio do português do Brasil; sob o ponto

de vista lexical, palavra ou locução (dialetismo vocabular) ou acepção

(dialetismo semântico) privativa do português do Brasil” (Houaiss 2001

apud Petter, 2002, p. 507).

Em trabalho anterior, Puzzinato (2006) analisou as obras de Amaral (1920), Nascentes

(1922) e Marroquim (1934) e constatou que a influência africana é maior nos falares

nordestinos do que no carioca e paulista, segundo dados registrados nos vocabulários

das respectivas obras e, igualmente, que a maioria das palavras é tratada por esses

autores como africanismo, de forma genérica. Analisando as cartas dos Atlas da Bahia

(APFB) e de Sergipe (ALSE), principalmente aquelas que poderiam trazer variantes de

Page 17: Ana Paula Puzzinato - uel.br Paula... · considerado o elemento responsável pelo estabelecimento e difusão de traços da ... que trouxe consigo do continente africano, à força,

base africana, verificou-se que ambos os atlas contém vocábulos do banto, quimbundo

e quicongo. A consulta aos dicionários indicaram um tratamento genérico para a

etimologia das palavras, principalmente em Ferreira. Castro (2001) demonstrou ser

uma obra segura e adequada para o estudo do léxico do português do Brasil no que se

refere a palavras procedentes das várias línguas africanas.

Em busca de uma conclusão, esta pesquisa procurou esclarecer que:

(i) os três atlas lingüísticos registram de forma muito produtiva a variante boi para

menstruação, demonstrando tratar-se de forma bastante difundida em todas as regiões

dos três estados analisados;

(ii) os lexicógrafos mais conhecidos, como Ferreira e Houaiss, seguem o caminho mais

curto, não buscando a etimologia da palavra e simplificando as informações do verbete.

(iii) estudos mais recentes, como os de Petter e Castro, trazem à luz informações

importantes sobre a herança lingüística deixada pelo negro, considerado o elemento

responsável pelo estabelecimento e difusão de traços da pronúncia das classes

populares.

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