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 ANÁFORA ASSOCIATIVA - ALGUMAS QUESTÕES Dissertação de Mestrado em Linguística Portuguesa Descritiva apresentada à Faculdade de Letras da Universidade do Porto Maria Cândida Cantiga Esteves dos Reis Martins Porto / 2001

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ANFORA ASSOCIATIVA - ALGUMAS QUESTES

Dissertao de Mestrado em Lingustica Portuguesa Descritiva apresentada Faculdade de Letras da Universidade do Porto

Maria Cndida Cantiga Esteves dos Reis Martins

Porto / 2001

Aos meus filhos, Carla, Joana e Eduardo

Em memria do meu Pai

AGRADECIMENTOS

Quando, aos quarenta e oito anos, empreendi a tarefa que me trouxe at aqui, pouca gente acreditou em mim. No foi fcil todo o percurso que agora culmina mas a minha vontade em prosseguir superou a de desistir. Os meus agradecimentos a quem me apoiou e que passo a nomear: Prof.a Doutora Ftima Oliveira por ter aceitado o convite para me orientar e pela fora que me incutiu na recta final, quando o cansao se apoderou de mim, sem a qual eu no teria chegado aqui. Muito obrigada. Prof. Doutor Srgio Matos, o meu primeiro professor de Lingustica que me fez despertar o gosto por estas andanas. Professora Doutora Maria da Graa Pinto, minha professora, minha madrinha de Curso e minha amiga, referncia muito importante no meu percurso acadmico. Professor Doutor Mrio Vilela, meu professor de Lingustica a quem devo as bases de Semntica que me permitiram continuar os estudos nessa rea. Dr Joo Veloso, igualmente meu professor, mas, sobretudo, meu colega de trabalho e um grande amigo. Professores dos Seminrios da parte curricular deste Mestrado: Prof.a Doutora Ana Maria Brito, Prof.a Doutora Ftima Oliveira e Prof. Doutor Srgio Matos. Colegas do Mestrado, Antnio, Paula e Sofia, as pessoas mais importantes durante a fase de elaborao desta tese e a quem devo muita gratido e boa amizade pela coragem e nimo com que sempre me motivaram. Colegas da Licenciatura com quem passei momentos muito agradveis, nomeadamente, a Dlia, uma grande companhia. Alguns funcionrios da FLUP que nutriram por mim muita estima e carinho. Prof.a Doutora Henriqueta Costa Campos, Dr3 Helena Trigo e colegas do Mestrado de Teoria do Texto que iniciei na Faculdade de Cincias Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Aos meus filhos, dedico-lhes o meu trabalho e esforo. Eles sabem que, sem eles, nada faria sentido e julgaro o passo que decidi dar h 8 anos atrs. Ao meu marido, pela compreenso e colaborao com que aceitou o empenho que pus nesta tarefa e sem as quais esta teria sido muito mais difcil. Para a minha Me e irmos, nada mudou. Sou apenas eu. Uma ltima homenagem ao meu Pai, sempre orgulhoso nos seus filhos, que teve ainda a alegria de me ver licenciada. Est hoje aqui comigo.

NDICEINTRODUO1

CAPTULO 1 - QUESTES GERAIS E ALGUNS TIPOS DE ANFORA Introduo 1.1- Questes de mbito geral 1 . 1 . 1 - Anfora, texto e discurso 1.1.2-Anfora eDeixis 1.1.3 -Anfora e Referncia 1.1.3.1 - Referncia e Sentido 1.1.3.2- Referncia e condies de "felicidade" 1.1.3.3- Incompletude referencial 1.2- Alguns tipos de Anfora 1 . 2 . 1 - Anfora correferencial 1.2.2 - Anfora nominal correferencial 1.2.3 - Anfora pronominal correferencial 1.2.4 - Anfora pronominal no correferencial Concluso CAPTULO 2- ACERCA DE ANFORA ASSOCIATIVA Introduo 2.1 - Anfora Associativa vs Anfora no Associativa 2.2 - Algumas definies de Anfora Associativa 2.3 - Anfora Associativa e Metfora 2.4 - Algumas concepes sobre Anfora Associativa 2.5 - Modelo pragmtico-cognitivo da Referncia 2.6 - Tese lxico-estereotpica - Kleiber 2.7 - Tese discursivo-cognitiva - Charolles 2.8 - Acesso ao "Antecedente" 2.8.1 - Tipos de "Antecedente" 2.8.2 - Localizao da expresso "antecedente" 2.8.3 - Factores de acesso ao "antecedente" 2.9 - Anfora Associativa como fenmeno inferencial 2.9.1 - Como se faz a inferncia? 42 42 43 45 48 49 50 51 53 55 58 59 60 61 32 33 37 39 41 14 16 24 26 28 30 14

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2.9.2 - Alguns tipos de inferncias 2.9.3 - Tipos de suporte responsveis pela inferncia 2.9.4 - Inferncia na comunicao verbal Concluso CAPTULO 3- ALGUNS TIPOS DE ANFORA ASSOCIATIVA Introduo 3.1 - Anforas Associativas Meronmicas 3.1.2- Tipo de relao 3.1.3 - Noo de parte 3.1.4- Parte vs ingrediente 3.1.5-Parte vs pea 3.1.6 - Parte intrnseca vs no intrnseca 3.2 - Condio de alienao 3.3 - Princpio da congruncia ontolgica 3.4 - Anforas Associativas Locativas 3.4.1 - Tipo de relao 3.5 - Anforas Associativas Actanciais 3.5.1 - Tipo de relao 3.5.2 - Propriedades da relao actancial 3.6 - Anforas Associativas Funcionais 3.6.1 - Tipo de relao 3.6.2 - Propriedades da relao funcional Concluso CAPTULO 4- ANFORA ASSOCIATIVA EM TEXTOS Introduo 4.1 - Anlise do Corpus 4.2 - Sntese dos resultados 4.3-Algumas Questes Concluso CONCLUSO BIBLIOGRAFIA

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Si le lexique peut aider mieux comprendre l'anaphore associative, l'anaphore associative peut en retour aider mieux dcrire le lexique.(Kleiber, 2001)

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INTRODUO

Apesar de o gosto pela Lingustica me ter acompanhado ao longo da licenciatura, o meu interesse particular sobre Anfora manifestou-se quando iniciei os Seminrios de Semntica do Mestrado em Lingustica Portuguesa Descritiva. Pareceu-me um fenmeno complexo e, em virtude dessa complexidade que envolvia frases simples, construes absolutas1, frases complexas e textos, comecei por perguntar o que uma Anfora. A resposta no de fcil soluo e tentei procurar, na literatura, respostas e definies. Parece unnime que, em termos latos, uma relao entre uma expresso cuja interpretao est sempre dependente de outra, podendo ocorrer em unidades que vo desde a frase simples ao texto/discurso. Segundo Campos & Xavier (1991), h na constituio de qualquer texto relaes estruturadoras de natureza sintctico-semntica que lhe conferem o seu carcter de unidade de significao, distinguindo-o de um aglomerado de palavras ou de frases alinhadas. Dessas relaes estruturadoras, as mesmas autoras definem um determinado tipo de relao abstracta de localizao entre dois termos A e B do texto, tais que a interpretao referencial de A (termo localizado) s possvel na medida em que A retoma, total ou parcialmente, a interpretao referencial de B (termo localizador). A relao assim definida geralmente designada por relao anafrica, relao de anfora ou, simplesmente, anfora. Mas o que especialmente me interessou foi a anfora a nvel do texto/discurso que se pode considerar como uma relao estruturadora de natureza sintctico-semntica e de dependncia referencial entre diferentes elementos, inter ou intrafrsicos, contribuindo para o seu carcter de unidade de significao. , por isso, um fenmeno de natureza sintagmtica responsvel pela coeso no encadeamento dos enunciados e, nesta medida, em muitos casos e pelo menos em parte, responsvel pela construo de sentido de um texto ou discurso, contribuindo para a sua coeso e coerncia de modo a que os mesmos formem uma unidade de significao e sentido.Construes intrafrsicas constitudas, em geral, por particpio e nome, correspondentes ao Ablativo Absoluto latino e que ocorrem frequentemente no Portugus.1

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Segundo Maingueneau (1997:19-20), o estudo da coerncia e da coeso de um texto constitui o objecto da lingustica textual afirmando o mesmo autor que em geral, considera-se que a coeso resulta do encadeamento das proposies, da linearidade do texto, enquanto a coerncia se apoia na coeso, mas tambm faz intervir normas gerais, no lineares, ligadas em especial ao contexto e ao gnero do discurso.. Para alm disso, considera ainda que analisar a coeso de um texto apreend-lo como um encadeamento, como uma textura (Halliday e Hasan 1976:2), em que fenmenos lingusticos muito diversos fazem progredir o texto e, simultaneamente, asseguram a sua continuidade por meio de repeties.. De entre esses fenmenos, elipses, conectores, inferncias e outros, fazem parte as unidades anafricas ou catafricas que se interpretam graas a outros constituintes colocados antes (anfora) ou depois (catfora) no cotexto: pronomes, substituies lexicais, etc., sendo uma relao assimtrica. Mas a coerncia de um texto no depende exclusivamente da coeso, como alis, Maingueneau (1997:21) adverte: (...) um texto pode evidenciar sinais de uma coeso perfeita sem que por isso seja coerente. Para que um texto se diga coerente deve estar relacionado com uma inteno global, com uma finalidade *elocutria2 ligada ao seu gnero de discurso. isso que permite ao coenunciador adoptar um comportamento adequado ao seu ponto de vista: conforme um enunciado se apresentar como uma publicidade, uma receita de cozinha, um poema surrealista..., a sua coerncia ser estabelecida por vias muito diferentes. A coerncia passa tambm pela identificao do tema do texto, daquilo que ele trata no interior de um certo universo (fictcio, histrico, terico...).. Sobre a questo da coerncia textual, um outro autor, Fonseca (1988:7), considera que ela generalizadamente invocada como dimenso basilar do Texto, ou mesmo como propriedade que separa o Texto do no-texto, tomado este como arbitrria ou desconexa sequncia de frases e, nessa medida, depende tambm do universo de conhecimento dos interlocutores. (Fonseca, 1992). Mas uma questo fundamental saber em que circunstncias ocorre Anfora, o que, devido complexidade do problema e considerando que h vrios

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Termo conforme traduo na obra citada. 2

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tipos de anfora, no admite uma s resposta nem respostas lineares. Contudo, pode dizer-se que ocorre quando entre duas expresses se estabelece uma relao de ligao entre termos em que pode haver nalguns casos correferncia, noutros no. Em princpio, a interpretao referencial de uma expresso s possvel na medida em que retoma (total ou parcialmente) ou evoca, no caso das indirectas, incluindo a Associativa, a interpretao referencial da outra. Uma outra questo, relacionada com a anterior, prende-se com a finalidade, ou seja, para que ocorre. Como afirma Oliveira (1988:1), A anfora , em princpio, um dispositivo utilizado pelas lnguas naturais com a finalidade de evitar uma certa redundncia ou at repetio, e que consiste na utilizao de expresses semanticamente simplificadas em vez da expresso lexical inicialmente usada, embora a autora advirta para o facto de esta concepo no poder conduzir ideia de que a anfora seja, fundamentalmente, um fenmeno sintagmtico e se esquea a contribuio de outras expresses que ocorrem no texto. Como vimos, portanto, a Anfora existe para estabelecer coeso e coerncia sem redundncias nem repeties mantendo e confirmando o centro de ateno j estabelecido na linearidade do texto ou discurso, constituindo, como afirma Silva (1998:253), um fenmeno lingustico estreitamente ligado dinmica textual, na medida em que contribui para assegurar a progresso do texto, instituindo-se como um dispositivo da sua coeso.. Nesta medida, podemos concordar com Fonseca (1988:8) segundo o qual A construo do texto pelo locutor representa a linearizao, sujeita aos esquemas formais de cada lngua, de uma totalidade de significao por ele intendida3, cumprindo uma determinada funo de comunicao num quadro enunciativo especfico.. Resta perguntar como ocorre tal fenmeno. Tambm no fcil a sua delimitao, pois a ocorrncia de uma Anfora pode verificar-se no s em frases simples e construes absolutas mas, principalmente, com algumas condies e restries, em frases complexas de estruturas vrias e em textos.

Expresso encontrada, em Fonseca, na obra citada. 3

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Estas e outras questes, que acabei de citar, comecei por coloc-las a mim prpria e isso suscitou-me um grande desejo de as aprofundar. Comeando por recolher pequenas frases, fui tomando conscincia das potencialidades com que podemos usar o material lingustico, com maior ou menor subtileza, para os mais variados efeitos. De pequenas frases, passei a textos e, aps algumas hesitaes relativamente ao corpus a analisar, decidi-me pelo que aqui apresento numa tentativa de reflectir, em especial, no comportamento anafrico envolvendo nomes e nominais abstractos. Esta tendncia ficou a dever-se constatao de que alguns nominais eram introduzidos por descries definidas ou outro tipo de elementos que lhe conferiam o trao [+definitude], sem terem sido previamente introduzidos no discurso, o que me levou a investigar as razes de tal comportamento. Optei, fundamentalmente, por exemplos retirados de textos escritos de uma revista mensal pois, na literatura com a qual tomei contacto, a maior parte dos exemplos foram "construdos" pelos seus autores para apresentarem o fenmeno servindo-se, essencialmente, de nomes concretos e contveis sem modificadores adjectivais ou preposicionais. Tal escolha no invalida a minha concordncia com Kleiber para quem a construo de exemplos uma escolha metodolgica para minimizar os riscos que advm de uma omnipotncia do discurso em detrimento da opo "semntica", percurso que ele tem traado e quer continuar a percorrer, como ele prprio, muito recentemente, afirmou: Une consquence additionnelle de notre option smantique est de baliser le parcours que nous allons suivre.. (Kleiber, 2001:6).

Ao longo do meu trabalho, sempre que considerei pertinente, fui transcrevendo exemplos originais dos seus autores, particularmente em Francs, lngua quase exclusiva da literatura consultada.

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Recolhi oito textos de uma seco, intitulada Olho Vivo, que tem como objectivo informar, de forma aligeirada, os leitores acerca de descobertas que podero ter aplicaes tcnicas, de desenvolvimento cientfico ou outras. Tratei de observar como que os mesmos foram apresentados e que relaes referenciais eram estabelecidas entre eventos, estados ou propriedades e os vrios nomes e nominais a eles associados. O que o corpus evidencia que qualquer texto o reflexo de uma actividade comunicativa e a estrutura do "comunicado" recorre a fenmenos anafricos de vrios tipos porque dos nossos esquemas cognitivos no s fazem parte elementos que denotam entidades concretas como tambm elementos que podem estar conotados com o trao abstracto. Nesta medida, reflecti no que so nomes concretos e nomes abstractos e procurei algumas definies em Gramticas de diversos tipos e em alguns textos tericos que passo a transcrever4. Os substantivos que nomeiam pessoas, coisas e animais chamam-se substantivos concretos; ex.: Francisco, Maria, Lisboa, Tejo, mesa, cadeira, leo, tigre. Os substantivos que nomeiam aces, qualidades e estados separados das pessoas, coisas e animais chamam-se substantivos abstractos, ex.: trabalho, alvura, doena.. (Gomes, 1921:31). Os nomes de coisas, pessoas, ou animais so substantivos concretos; e os de aces, estados, ou qualidades, considerados em si, separadamente das pessoas, coisas, ou animais a que digam respeito, chamam-se substantivos abstractos.. (Torrinha, 1943-1944:62). Segundo Mateus et ai. (1989:54), (...) Pode-se, portanto, considerar nominais como verdade de tipo superior a nominais como urso: reportando-nos oposio tradicional concreto/abstracto, atribuiramos aos ltimos a propriedade concreto e aos primeiros a propriedade abstracto. Em Cunha & Cintra (1994:97), no captulo 6 sobre Derivao e Composio, pode ler-se o seguinte Os substantivos derivados, geralmente nomes abstractos, indicam qualidade, propriedade, estado ou modo de ser..

Transcrevi todos os sinais tipogrficos das definies, conforme os originais, como o emprego de maisculas, negros e itlicos. 5

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Para esta definio, so apresentados como exemplos, entre outros, os seguintes nominais: crueldade, gratido, altivez, beleza, alegria, velhice, altitude e doura. Na mesma Gramtica, no captulo 8 intitulado Substantivo (1994:177-178), a distino a seguinte Chamam-se CONCRETOS os substantivos que designam os seres propriamente ditos, isto , os nomes de pessoas, de lugares, de instituies, de um gnero, de uma espcie ou de um dos seus representantes (...). D-se o nome de ABSTRACTOS aos substantivos que designam noes, aces, estados e qualidades, considerados como seres (...). Segundo Borba (1992:245), Por uma questo metodolgica, os nomes foram agrupados em dois conjuntos: concretos e abstractos, entendendo-se os primeiros como aqueles que tm referente no mundo dos objectos, e os segundos como aqueles que, no tendo referente, constituem-se em eventos, atos, estados relacionados a seres, coisas ou estados de coisas. Tradicionalmente, os Nas5 tm sido tratados em correspondncia com verbos e adjectivos, de que derivam por nominalizao (cf. O galo canta > o canto do galo, Ana bela > A beleza de Ana)..

Claro que estas e outras definies congneres no so, de forma alguma, suficientes para tratar o fenmeno anafrico, no interior de um texto, mas revelam uma necessidade de fazer a distino entre nomes de entidades concretas e nomes de entidades abstractas e, se existe essa necessidade, ela deve-se a diferenas de comportamento lingustico entre eles. De acordo com Lopes (1971:197), esta oposio em concretos e abstractos, que tem sido aceite na generalidade, demasiado simplista, opinio corroborada por Borba (1992:256) para quem a diviso pode ser provisria pois a anlise dos contextos mostra que necessrio considerarem-se graus de abstratizao e/ou concretizao.. Tambm na lngua espanhola, segundo Bosque (1999:7), a diviso entre Sustantivos abstractos y concretos muito polmica.Cf. o autor, "Nas" uma abreviatura de "nomes abstractos". 6

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Sobre os critrios clssicos em que se baseia a classificao e considerando uma oposio conflituosa, o mesmo autor prossegue Los nombres abstractos son, segn la tradicin, los que designan las entidades a las que no atribumos una existncia real, en palabras de Bello. Constituyen, pues, las cualidades que atribumos a los objetos suponindolas separadas o independientes de ellos (Bello 1847:103). El gramtico venezolano, y con l otros muchos, se refiere a los sustantivos deadjetivales y deverbales (sus ejemplos son verdor, redondez, temor, admiracin). El trmino 'abstracto' significa etimologicamente separado, como recuerda el prprio Bello, puesto que tales sustantivos - se dice - designan entidades separadas de las cosas mismas, esto es, caractersticas o propriedades suyas relativas a su forma, tamano, color, composicin, uso, valor, apreciacin, interpretacin y otras muchas nociones igualmente predicables de los objetos. Pueden verse descripciones muy similares en muchas otras gramticas tradicionales. Poas distinciones gramaticales resultan tan escurridizas como esta cuando se sale de los ejemplos ms claros que cabe proponer para cada una de las dos clases. Como veremos, existen serias dudas sobre si tiene sentido mantener propiamente la distincin, puesto que muchos indcios hacen pensar que la clasificacin debe sustituirse por otras de abarque ms especfico.. (Bosque & Dmonte, 1999:45). A viso simplista, como muito bem disse Lopes (1971), acerca da oposio entre nomes concretos e abstractos, comea a fazer-se sentir em trabalhos na literatura dos ltimos anos. assim que afirma Rio-Torto (1997:815) (...) a estrutura semntica dum produto genolexical apresenta-se como um potencial de significao sobre o qual operam factores co(n)textuais, orientando-o ou restringindo-o.. Esta pequena recolha leva-me a concluir que, relativamente formao de nomes abstractos, no so de excluir diferenas morfolgicas assim como a articulao entre a formao morfossintctica e o valor semntico.

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De entre os vrios tipos de Anfora, escolhi a Associativa Nominal e resolvi fazer dela o meu objecto de estudo e reflexo. Como j disse, senti um especial fascnio pelos nominais que esto conotados com o trao [+abs] e coloquei trs questes que me pareceram fundamentais:

Ser que os nomes e nominais abstractos tambm podem ser "antecedentes" e desencadear uma cadeia anafrica associativa?

Que tipo de nomes ou nominais podem ocupar lugares associativos com "antecedentes" desse tipo?

Como se comportaro, em Anfora Associativa, nomes com modificadores quer adjectivais quer preposicionais?

A existncia de termos definidos em lugares associativos que so introduzidos via um "antecedente" com o trao [+abs] leva-me a concluir que se possa estabelecer anfora associativa ou associao anafrica6, entre nomes ou nominais que, pelo menos superfcie, no denotam entidades concretas e discretas com autonomia referencial como, por exemplo, mesa, livro, flor, etc. Este tipo de entidades, para alm de outras, tem a caracterstica de poder ter limites perfeitamente definidos e observveis, directamente, pelo nosso sistema visual. Ao contrrio, s se pode chegar a um conceito, por exemplo, ao conceito de honestidade, atravs de observao de conjuntos de entidades honestas uma vez que os predicados no podem ser apreendidos por ostenso. Parece-me que no cerne do problema esto questes referenciais ou de referncia que convm aclarar. Na verdade, a enunciao de uma expresso referencial definida singular, segundo Searle (1981:39), serve para isolar ou identificar um objecto ou uma entidade, ou um elemento particular, com a excluso de outros objectos, a respeito do qual o falante poder ento dizer alguma coisa ou fazer uma pergunta, etc. Chamaremos expresso referencial a qualquer expresso queVeja-se Bouyer & Coulon (1991:322) a propsito da inverso dos termos sugerida por J ean-Emmanuel Tyvaert.

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sirva para identificar uma coisa, um processo, um acontecimento, uma aco ou qualquer outro tipo de ser individual ou particular. As expresses referenciais designam objectos particulares; respondem s perguntas: Quem?, O qu?, Qual? pela sua funo, e nem sempre pela sua forma gramatical superficial ou pela maneira segundo a qual desempenham a sua funo, que se reconhecem as expresses referencias.. Conforme o mesmo autor, preciso fazer uma distino entre as expresses referenciais definidas singulares e as indefinidas singulares, pois importante distinguir os usos referenciais dos usos no referenciais de expresses indefinidas. Por outro lado, Searle considera tambm que necessrio estabelecer a distino entre expresses referenciais particulares e universais, isto , entre expresses como, segundo ele, O Everest, esta cadeira por oposio a o nmero trs, a cor vermelha e a embriaguez. Porm, existe uma relao entre os universais e as expresses predicativas na medida em que um universal, seja ele qual for, deriva do carcter significante do termo geral correspondente e, por isso, de acordo com Searle (...) para ter a noo de um determinado universal, necessrio conhecer a significao, ser capaz de utilizar o termo geral correspondente (e, consequentemente, a expresso predicativa correspondente). Isto , para compreender o nome de um universal, necessrio compreender a utilizao do termo geral correspondente.. (Searle, 1981:159-160). Um indcio dessa dependncia dos nomes de propriedade em relao a termos gerais encontra-se no facto de os nomes de propriedade serem, quase sempre, derivados (cognates)7 dos termos gerais correspondentes: por exemplo, sbio engendra sabedoria, gentil engendra gentileza, etc., e, nessa medida, impossvel que uma lngua contenha a noo de gentileza, sem conter uma expresso que tenha a funo de gentil, mas poderia perfeitamente conter gentil sem ter gentileza.. (Searle, 1981:159). A partir do momento em que percebemos que possuir a noo de um determinado universal algo que depende de saber como utilizar o predicado

Veja-se, a este propsito, a definio de cognates: Diz-se de duas ou mais palavras que so cognatos, ou palavras cognatas, quando resultam de evolues divergentes, em lnguas de uma mesma famlia, a partir de uma base etimolgica comum.. Xavier & Mateus (orgs), p. 81. 9

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correspondente ou que os universais so parasitrios em relao s expresses predicativas, que essas so anteriores aos universais, certas questes tornam-se mais claras. Essa anlise dos universais explica como as condies semnticas requeridas para fazer referncia a universais diferem totalmente das condies semnticas para fazer referncia a particulares. Enquanto a identificao de um particular exige que o locutor disponha de um facto contingente, a identificao de um universal exige que o falante conhea a significao do termo geral que se encontra subjacente ao termo singular abstracto utilizado para fazer referncia ao universal em questo. (Searle, 1981). Sobre esta questo, Kleiber (1999a:86) chama syncatgormatiques aos nomes que denotam entidades que se caracterizam pela sua dependncia ontolgica face a outras ocorrncias como demonstra a seguinte definio Il y a d'abord les noms drivs de verbes ou adjectifis (M. Riegel, 1993) ou du moins reconnus comme ayant un rapport avec les adjectifs et les verbes, tels blancheur ou explosion. Une occurrence de blancheur ou d'explosion n'est pas indpendante, rfrentiellement parlant, comme l'est une occurrence de chien. Elle implique en effet que quelque autre entit ait la proprit blancheur ou ait explos.. Nesta perspectiva, a ocorrncia de expresses lingusticas que denotam propriedades ou eventos no se pode separar das entidades que elas implicam e a elas esto associadas pois, segundo Kleiber, suprimir o portador de uma propriedade ou o agente ou paciente de uma aco suprimir certamente, e ao mesmo tempo, a ocorrncia da propriedade ou da aco. Deste modo, propriedades e eventos so crucialmente solidrios do tipo ontolgico da entidade de que dependem. Essa dependncia constitui um factor a considerar e coloca uma outra questo que a necessidade de articular a Semntica com a Morfologia, fundamentalmente a Derivacional, e mesmo com a Sintaxe. Conforme Oliveira (1996:375-376), Um aspecto tambm importante a ter em conta em semntica lexical diz respeito s regras de formao de palavras, nomeadamente a morfologia derivacional. (...) As regras de formao de palavras so semelhantes s regras sintcticas uma vez que especificam as categorias das expresses de entrada, as operaes sobre essas expresses e a categoria10

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das expresses de sada. Mas, contrariamente ao que se passa com as regras sintcticas, as regras morfolgicas derivacionais tm como sada palavras potenciais que no precisam de estar num qualquer lxico mental.. Relativamente Morfologia Derivacional, tm surgido na literatura, e assumido particular relevo, vrios trabalhos sobre o Portugus e que me interessa destacar, em particular o de Rio-Torto (1997:815-816), pela ligao que estabelece entre Morfologia e Semntica. Como me parece muito relevante o que diz, passo a cit-la: (...) de acordo com o princpio da composicionalidade, a estrutura semntica de uma unidade lexical compsita ancora-se na relao que entre si os seus constituintes tecem. Mas no se circunscrevendo mera conjuno dos seus constituintes, a estrutura semntica de um produto genolexical apresenta-se como um potencial de significao sobre o qual operam factores co(n)textuais, orientando-o ou restringindo-o. Tal como outras unidades sgnicas cuja interpretao fortemente condicionada pelo contexto, tambm o clculo da significao dos produtos genolexicais depende da estrutura interna destes e do contexto em que ocorrem como, por exemplo, tipo semntico e argumentai do predicado verbal, valor aspectual deste, classe semntica dos SNs que funcionam como argumentos externos e internos do SV, a natureza da determinao que afecta os nominais, a natureza dos complementos verbais e nominais, os tempos verbais usados, a natureza dos adverbiais e dos adjectivos. Para alm destes factores, para a interpretao de um enunciado concorrem ainda os conhecimentos prvios do mundo e os conhecimentos entretanto activados pela apreenso do texto.. Em relao Sintaxe, num estudo acerca da ordem de palavras no SN em Portugus em comparao com as lnguas germnicas, envolvendo Ns deverbais eventivos, l-se o seguinte: Os Ns eventivos como destruio, invaso. ocupao designam um processo ou um evento enquanto os resultativos como relatrio, trabalho designam, nas palavras de Grimshaw 90, "o "output" de um processo ou um elemento associado com o processo" (p.49). A diferena entre valor resultativo e valor eventivo parece dever-se conjugao de dois tipos de factores: traos semnticos dos prprios Ns e factores contextuais, como a natureza dos predicados verbais, do tempo, da determinao, do nmero, da natureza dos adverbiais e dos adjectivos.. (Brito, 1996a:82).

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Segundo Brito (1996b:78), (...) a interpretao resultativa e a interpretao eventiva s so verdadeiramente actualizadas em funo do contexto, no s ao nvel da forma do SN (em especial a natureza do DET e do nmero que afectam este tipo de Ns) como ao nvel de outros factores frsicos.. Em Portugus, a distino clssica entre uma leitura eventiva e uma leitura resultativa no suficiente para captar certas subtilezas de interpretao de algumas nominalizaes. Assim, contrariamente a essa posio, geralmente assumida na literatura, da possibilidade das duas leituras, mantendo a natureza aspectual dos verbos correspondentes, Brito & Oliveira (1995:78) consideram uma terceira leitura, uma leitura individual. Neste ltimo caso, o comportamento lingustico do nominal perde as propriedades predicativas do verbo de base, comportando-se linguisticamente como um nome no derivado com propriedades referenciais. Tal como disse Milner (1982:9-10), (...) un nom "abstrait" n'est pas moins associable un segment de ralit qu'un nom concret, simplement le segment n'est repr de la mme manire..

Para alm desta Introduo, fazem parte deste trabalho 4 Captulos onde se abordam questes consideradas importantes para o estudo da Anfora Associativa. No Captulo 1, subdividido em 2 partes, so apresentadas, na primeira parte, questes de mbito geral, acerca do enquadramento da Anfora no texto e/ou discurso e sua ligao com outro fenmeno que, frequentemente, lhe est associado, a Deixis. Seguem-se algumas consideraes sobre a Referncia e o Sentido e a sua importncia para a interpretao do fenmeno anafrico em geral. A segunda parte do mesmo captulo dedicada a casos de Anfora em que h correferncia entre os termos, nomeadamente, Anfora nominal e pronominal, e a casos em que a referncia indirecta mas que, para alguns autores, entre eles Kleiber, no rene condies para ser considerada Anfora Associativa.

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Relativamente ao Captulo 2, apresentado o fenmeno que, na literatura, conhecido por Anfora Associativa. Neste captulo, vo ser abordados os aspectos principais tais como o critrio da disjuno referencial e o do processo inferencial, indispensvel sua interpretao. Estes so, talvez, os pontos principais que justificam um tratamento distinto dos outros tipos de Anfora. O facto de no haver correferncia entre os seus termos tem levado a perspectivas diferentes no s relativamente prpria definio como maneira como visada a Referncia. So, assim, expostas, neste Captulo 2, duas teses, a lxico-estereotpica e a discursivo-cognitiva, na medida em que servem de suporte anlise que pretendo fazer. Abordam-se, ainda, outros factores como o acesso ao termo "antecedente", a sua localizao e os suportes que podem conduzir s inferncias necessrias interpretao da Anfora Associativa. Em seguida, uma vez que na literatura possvel estabelecer alguns tipos de Anfora Associativa, esses tipos e as suas principais caractersticas so apresentados ao longo do Captulo 3 pois os mesmos mostram-se particularmente relevantes para a anlise do Corpus e resultados de que me vou ocupar no Captulo 4. Desta forma, o Captulo 4 dedicado apresentao do Corpus que constitudo por textos onde se procede a uma anlise do fenmeno da Anfora Associativa, envolvendo os tipos de nomes que apresentei na Introduo, e onde se faz uma breve sntese de resultados obtidos. Antes da Concluso, apresento algumas Questes que me foram levantadas pelo objecto de estudo que seleccionei e que ficam em aberto para um possvel aprofundamento.

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CAPTULO 1 - QUESTES GERAIS E ALGUNS TIPOS DE ANFORA

Introduo

Este Captulo est organizado em duas partes, abordando-se, na primeira, questes de mbito geral e, na segunda, alguns tipos de anfora associados correferencialidade. Assim, em virtude de o fenmeno ser, essencialmente, perspectivado como elemento de coeso, apresentado, em primeiro lugar, o seu enquadramento no texto e/ou discurso bem como a sua estreita ligao ao fenmeno da Deixis. Estas questes levam a abordar a problemtica da Referncia e do Sentido e a relevncia da mesma relativamente ao xito ou fracasso do acto lingustico, em geral. Na segunda parte, so apresentados alguns tipos de Anfora em que h correferncia entre os termos, nomeadamente, a nominal e a pronominal, e outros em que a Referncia indirecta, dependendo da interpretao do tipo de pronome ou lexema, em especial, em frases de tipo genrico.

1.1 - Questes de mbito geral

1.1.1 - Anfora, texto e discurso

Segundo Cornish (1990:81), a anfora no deve ser concebida como uma relao essencialmente textual mas analisada como um meio indispensvel a todo o acto comunicativo, elaborao de um discurso em construo pelos seus participantes, isto , os elementos anafricos, presentes no contedo verbal de um texto, sobretudo grupos nominais definidos, pronomes de terceira pessoa, demonstrativos, elipses, etc, desempenham igualmente um importante papel

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Anfora Associativa - Algumas Questes discursivo. Com efeito, o texto um "viveiro"8 de ndices que vai permitir ao interlocutor reconstruir o discurso que o locutor ou escritor ter construdo. O discurso ser, ento, um conjunto de actos enunciativos dispostos hierarquicamente para um determinado fim e do qual fazem parte no s a estrutura lingustica organizada, constituda pelo texto, mas tambm outros actos de comunicao nos quais a linguagem verbal est ausente, como gestos, olhares, piscar de olhos, franzir de sobrancelhas e muitos outros sinais paralingusticos. Este autor considera tambm que pertinente a distino entre texto e discurso na medida em que o primeiro deve ser entendido como um produto e o segundo como um processo. Assim perspectivado, o discurso constitui uma interpretao provisria e probabilstica da parte do destinatrio que, para ter xito, mobiliza conhecimentos do mundo, convenes que regem comportamentos sociais assim como o contexto em que o mesmo se desenrola. O discurso ser uma construo dinmica em constante modificao medida que so introduzidas novas entidades, novas propriedades ou so estabelecidas relaes novas entre as entidades introduzidas, quer atravs de predicao quer por inferncia ou ainda quando uma interpretao de um elemento textual j formulada seja revista luz de uma interpretao efectuada posteriormente. A distino entre texto e discurso tambm se encontra em definies do Dicionrio de Termos Lingusticos como, por exemplo, a seguinte: Do ponto de vista da pragmtica, discurso refere o modo como os significados so atribudos e trocados por interlocutores em contextos reais. Num discurso particular, os enunciados so compreendidos por meio de referncia a um conjunto particular de ideias, valores ou convenes que existem fora das palavras trocadas. Esta noo ope-se noo de texto que encarado como pertencente ao domnio do sistema lingustico e como produto, enquanto discurso pertence ao domnio da linguagem em uso e visto como processo.. (Xavier & Mateus (orgs): 129). A articulao entre texto/discurso e anfora tambm corroborada por muitos outros autores como Fonseca (1988) que afirma o seguinte: a totalidade

Trad, de "vivier", termo utilizado pelo autor.15

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de significao intendida pelo locutor s se torna disponvel no e pelo texto efectivamente concretizado, atravs da reconstruo - quase sempre meramente aproximativa - que dela faz o receptor, ou Kleiber (2001) para quem as expresses anafricas, particularmente as indirectas e associativas, apresentam uma parte de informao antiga (a que fornecida pelo seu antecedente) e uma parte de informao nova (constituda pela nova entidade introduzida), o que representa um modo de progresso textual particularmente interessante, pois a mesma expresso assegura ao mesmo tempo a continuidade e a novidade. Parece-me, por isso, correcto afirmar que toda a linguagem verbal, quer escrita quer oral, recorre a fenmenos anafricos e que os mesmos devem ser entendidos numa perspectiva pluridisciplinar, tal como a prpria linguagem. Na verdade, a produo verbal lingustica o reflexo de actividades cognitivas e no se pode dissociar de factores vrios (histricos, sociais, culturais, e outros) implicados na forma como percepcionamos, categorizamos e armazenamos na memria o mundo que nos rodeia. Partindo do princpio de que uma das funes da linguagem a referencial9, e que a mesma tem como objectivo primordial a intercomunicao, a anfora surge como um instrumento e um meio ao servio dos falantes que lhes permite no s produzir como compreender enunciados, mediante a interpretao desses vrios factores. Na verdade, o conjunto de estruturas cognitivas mais ou menos estveis que vai servir de ponto de partida para as construes conducentes produo e interaco comunicativas ulteriores.

1.1.2 - Anfora e Deixis

Estreitamente ligado ao fenmeno da Anfora pode ocorrer um outro fenmeno, a Deixis, elemento coordenador e estruturador do discurso cuja funo , tal como na Anfora, chamar a ateno dos participantes no acto daUma das seis funes de um esquema atribudo a Jakobson e que, segundo ele, a funo predominante porque serve para designar objectos e atribuir-lhes significaes. Cit in Holenstein (1975:219). 16

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comunicao. Contudo, a gnese de ambos os fenmenos parece estar directamente ligada ao poder de abstraco dos seus utilizadores. Seja para o modelo inatista seja para o construtivista, a aquisio e o desenvolvimento da linguagem verbal o resultado de um processo complexo responsvel pela construo de toda a representao do mundo e de todas as invariantes que vo permitir a comunicao com tudo o que ela tem de dinmico. Dado que, no processo de aquisio, a compreenso precede a produo, quando o indivduo consegue categorizar, estabelecer nexos, relaes de temporalidade, causalidade, subordinao, entre outras, conseguindo passar da descrio narrao, forosamente se vai servir de elementos anafricos para estabelecer relaes de dependncia referencial. Essa capacidade ocorre no terceiro estdio, de acordo com a teoria do desenvolvimento cognitivo de Piaget, denominado estdio das operaes concretas, quando a criana domina transformaes, em situaes novas, e se encontra na posse de uma poderosa invariante semntica a par de todas as outras invariantes. Segundo Papalia et ai. (2001:420-424), durante o perodo escolar, (7-12 anos), existem avanos nas capacidades cognitivas como, por exemplo, as capacidades de classificar, agrupando em categorias e incluindo em classes, resolver problemas indutivos e dedutivos, fazer julgamentos sobre causa e efeito, seriar, inferir transitivamente e conservar. Esta capacidade de conservao, nos termos de Piaget, a que leva o indivduo a uma descentrao, no se deixando influenciar por alteraes a nvel perceptivo, e a compreender princpios como identidade e reversibilidade. Nesta medida, as autoras afirmam que pelos 7 anos de idade, segundo Piaget, as crianas entram no estdio das operaes concretas. So menos egocntricas e so capazes de usar operaes mentais para resolver problemas concretos (actuais). As crianas so agora capazes de pensar logicamente, porque podem ter em considerao mltiplos aspectos de uma situao, em vez de se concentrarem num nico aspecto.. (Papalia et ai. (2001:420). Na verdade, segundo Cornish (1990:83), experincias feitas por Karmiloff-Smith (1980) em dois grupos de crianas francfonas e anglfonas de idades compreendidas entre 4-6 anos e 6-9 anos, a quem foi pedido que contassem uma histria de seis imagens, revelaram que as do grupo etrio mais baixo17

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descreveram o que se passava em cada imagem separadamente e utilizaram, para isso, a estratgia ditica, introduzindo de cada vez um novo mundo ou espao referencial, empregando advrbios demonstrativos e pronomes pessoais de terceira pessoa. As suas descries verbalizadas eram, simultaneamente, acompanhadas de gestos paralingusticos, designando com o dedo os referentes visados sem qualquer ambiguidade. Pelo contrrio, as crianas do grupo etrio mais elevado, introduziram a personagem principal atravs de um grupo nominal indefinido, marca de existencialidade, retomando-o pela estratgia anafrica e distinguindo-o dos outros participantes da histria. Esta estratgia, segundo Karmiloff-Smith, permite observar a sensibilidade a uma hierarquia no discurso e a necessidade de coordenar a ateno do interlocutor em funo dessa hierarquizao. (Cornish, 1990:84). Para avaliar a coeso em histrias, idnticas experincias foram feitas com crianas portuguesas, com idades pr-escolar e escolar entre 6 e 8 anos, em grupos de 60 cada, tendo sido estudadas as suas produes orais. Segundo Pinto (1987:95), foi usado como material uma representao pictrica de uma histria com trs imagens para garantir que o principal referente, o protagonista, assim como outros referentes/objectos pudessem ser mencionados mais do que uma vez. De entre os resultados obtidos, foi destacado pela autora: A ligao imagem surgir relacionada com o emprego de conectores, sendo esse emprego marca de boa organizao textual nas crianas mais velhas quando se constata que o conector utilizado, para alm de interligar imagens, interliga concomitantemente momentos importantes da histria. Este comportamento manifesta j uma maior centrao no discurso, em virtude da capacidade crescente de descentrao que se vai verificando. (...) O poder de descentrao da criana permitir-lhe- passar a prescindir dos mesmos meios para preencher as suas estruturas. Do mesmo modo que se distancia da imagem, a criana aprende tambm a desprender-se do seu prprio texto, tornando a sua produo mais variada, muito embora mantendo a coeso que lhe conferida pela componente estruturai da sua lngua.. (Pinto, 1987:112-113). Assim, tambm no desenvolvimento cognitivo da criana, na sua relao com a linguagem, se pode verificar que h etapas distintas para o uso de18

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marcadores diticos e anafricos, sendo estes posteriores queles. S com um verdadeiro domnio de marcadores anafricos que os seus enunciados se podem constituir em textos.

Estes e outros estudos permitem chegar ao conceito e s vrias definies de anfora havendo quase unanimidade no essencial e que consiste no seguinte: para o estabelecimento de uma anfora necessrio a existncia de um termo ou expresso referencial, denominado "antecedente", e um outro termo ou expresso que obtenha a sua referncia desse "antecedente", denominado termo ou expresso anafrica. Sendo a anfora uma relao de interdependncia referencial entre antecedente e termo anafrico, torna-se necessrio formular as condies em que a mesma pode ocorrer. No constitui problema quando a interpretao do referente de uma expresso anafrica assenta, sobretudo, na sua localizao relativamente ao "antecedente" introduzido no contexto lingustico. Assim, uma expresso considerada anafrica quando necessrio recorrer a uma meno anterior para encontrar o seu referente, marcando, assim, a continuidade com um referente j colocado no foco de ateno existente. Este tipo de referncia endofrica (encontrada no material lingustico, pela introduo prvia no universo textual ou discursivo) versus exofrica (encontrada fora do material lingustico, nas coordenadas espcio-temporais do universo da enunciao) tem-se mostrado suficiente, segundo alguns estudiosos, para a distino entre Anfora e Deixis. Entre eles, encontra-se Cornish (1990:82) que diz o seguinte a este propsito: Au niveau du discours, la fonction de l'anaphore se dfinit par rapport la dixis: toutes deux reprsentent des moyens de coordonner, de "mettre sur la mme longueur d'onde" l'attention des participants l'acte de communication (cf. Ehlich, 1982). Alors que la fonction prototypique de la dixis est de dplacer le centre d'attention (le "focus") existant vers un nouvel object du discours, celle de l'anaphore est de maintenir et de confirmer le centre d'attention dj tabli.. Esta diferena entre Anfora e Deixis j mencionada por gramticos latinos conforme Oliveira (1988:44) que comenta isso afirmando tambm que para esses gramticos, (Dionsio de Trcio e Apolnio Dscolo), Anfora (...)19

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entendida como uma referncia a objectos que figuraram previamente no discurso ou so geralmente conhecidos, enquanto deixis consiste numa referncia a objectos que ainda no so conhecidos ou no foram introduzidos no discurso.. No deixa de ser curioso e sintomtico o facto de elementos anafricos, em especial, pronomes pessoais de terceira pessoa e artigo definido, terem, em algumas lnguas romnicas e germnicas, derivado de pronomes demonstrativos, no tendo, por isso, perdido uma funo ditica mesmo quando ocorrem anaforicamente, conforme afirma Cornish (1990:83) Ces pronoms et cet article synchroniques ont en effet un fond de dicticit sous la forme de leur trait morphologique dfini (...) e sobejamente conhecido pelos estudos de deriva histrica. Tambm Danon-Boileau (1990:97-107) considera que, se deixis e anfora partilham certos marcadores, porque essas operaes, por vezes, tm um campo em que se recobrem mutuamente. Efectivamente, as operaes referenciais de deixis e de anfora partilham uma "sensibilidade" ao contexto ou situao de enunciao que as diferenciam do funcionamento dos designadores rgidos do tipo "nome prprio". Por outro lado, tanto uma expresso ditica opem-se, conjuntamente, operao referencial introduzida por um demonstrativo como uma expresso anafrica introduzida pelo artigo definido introduzida pelo artigo indefinido. assim que Danon-Boileau (1990:98) considera que contrairement l'article indfini, l'anaphore comme la deixis permettent de dcrocher la construction rfrentielle d'un argument de la relation que cet argument entretient avec le prdicat de l'nonc en cours.. (Danon-Boileau, 1990:98). A ilustrar esta afirmao, so apresentados como possveis, em contextos favorveis, a ocorrncia do definido e do demonstrativo, em enunciados como (1) e (2) contrariamente ao emprego do indefinido em (3): (1) Le voyageur sans bagages n'est pas parti. (2) Ce voyageur sans bagages n'est pas parti. (3) *Un voyageur sans bagages n'est pas parti. Com a distino entre deixis forte e deixis fraca, o mesmo autor considera muito tnue a diferena entre deixis fraca e anfora. Em ambos os fenmenos, a20

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construo da referncia pe em jogo um cruzamento de dois eixos. Um dos eixos constitudo pelo "tipo" do qual a referncia construda constitui uma ocorrncia e esse "tipo" que cria o parentesco e uma proximidade entre as duas operaes. O segundo eixo permite constituir uma "tela de fundo", seja relativamente ao contexto da primeira meno (no caso da anfora) seja relativamente situao de enunciao (no caso da deixis fraca). O que aproxima a anfora e a deixis fraca que o contedo de informao que permite discriminar uma ocorrncia um "tipo" (um conceito) que definido fora de tudo (enunciao e contexto). De esse ponto de vista, no h diferena entre uma e outra. O que permite distinguir uma da outra o modo de constituio do lugar sobre o qual se opera a discriminao entre ocorrncias de "tipos" diferentes. No caso da anfora, esse lugar definido por uma predicao anterior (contexto) e no caso da deixis fraca definido pela situao correspondente ao enunciado onde figura a expresso ditica. (Danon-Boileau, 1990). Os dois fenmenos foram tambm objecto de uma anlise em Kleiber (1991) privilegiando princpios de referncia, isto , tendo em conta prioritariamente o modo como o referente identificado. La dimension de localisation texte/situation et le critre cognitif de la saillance ne sont pas pour autant abandonner, ni l'une ni l'autre, mais doivent tre considrs comme des effets rsultant de procdures rfrentielles spcifiques lies aux diffrents types des marqueurs rfrentiels..(Kleiber, 1991:16). Assim, o lugar da residncia do bon10 referente aparece como um critrio pertinente (Kleiber, 1994:7). O problema resolve-se sem grande dificuldade para as expresses anafricas, pronomes em particular, quando o referente localizado via um antecedente no contexto lingustico, anterior no caso da anfora e posterior no caso da catfora, bastando procurar o antecedente em questo para o recuperar e resolver assim o fenmeno. Esta aproximao localizante das expresses referenciais ope as anforas s expresses chamadas diticas r ou embrayeurs12, cujo referente Termo utilizado em Kleiber (1994:7). Termo que, segundo Maingueneau (1997:38), atribudo a Biihler. Optei pelo termo francs embora tenha encontrado a palavra embraiadores numa traduo portuguesa de Maingueneau (1997:37-38): Chama-se embraiadores s unidades lingusticas cujo valor referencial depende do envolvimento espcio-temporal da sua ocorrncia..11

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recuperado na situao de enunciao e separa estes dois tipos de expresses dos SN com referncia absoluta (C. Kerbrat-Orecchioni, 1980) como os nomes prprios, por exemplo, cujo referente no localizado nem no texto nem na situao de enunciao. A oposio entre expresses anafricas que constroem as suas referncias remetendo para o interior do enunciado e expresses diticas que as encontram em relao situao de enunciao foi um critrio dominante na literatura. Actualmente, as fronteiras entre os dois fenmenos no se mostram to estanques na medida em que esta posio, acerca da localizao do referente dentro ou fora do contexto lingustico, no suficiente e tem havido nos ltimos anos muitos pontos de divergncia. o que nos diz Kleiber (1994:8) La situation est aujourd'hui beaucoup moins sereine. On ne tient plus pour totalement satisfaisante, quelque vertu qu'elle pt avoir, la conception localisante classique en matire d'anaphore et de pronoms. Les travaux de ces quinze dernires annes, quelle que soit leur origine, linguistique, psychologique ou informatique, ont en effect clairement montr que la rponse qui consiste dire que le rfrent d'une expression anaphorique se trouve dans le contexte linguistique s'avrait de toute faon trop courte, puisque rien n'tait dit sur la faon de retrouver le bon antcdent, et que, beaucoup plus grave, le morceau de solution propos n'tait mme pas adquat.. Com efeito, h empregos recenseados como anafricos pela definio textual que a aproximao memorial analisa como diticos o que leva a concluir que o que difere o modo como perspectivada a "salincia"13 referencial de um novo objecto. (Kleiber, 1994). Para alm disso, parece tambm haver desacordo sobre a prpria definio do fenmeno anafrico14, em particular sobre os processos de interpretao referencial e os mecanismos de interpretao.

Traduo de "saillance", termo tcnico usado como critrio para a definio da anfora como fenmeno memorial. Na verdade, para o termo "antecedente" podemos encontrar na literatura uma diversidade de designaes, tais como: "Dclencheur d'antcdent" em Cornish, 1990 e Hawkins, 1978 Cit in Kleiber et al. (1991a:7). "Source" em Corblin, "Antcdent" em Kleiber e Kempson, "Expression d'appui" em M.-J. Reichler-Bguelin e "Trigger/dclencheur" em J. A. Hawkins e Cornish. Cit. in Kleiber et al. (1991 a:17). 22

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questo do que a Anfora, as respostas, segundo Kleiber (1994:21), so de dois tipos. Por um lado, h os que vem na anfora um fenmeno textual, por outro os que pem em primeiro plano um factor cognitivo e ter, ento, uma aproximao memorial. Esta aproximao memorial renuncia ao critrio textual, considerado nico na acepo clssica, e promove o critrio de salincia prvia para definir a anfora. O modo de conhecimento do referente que tem o interlocutor um factor determinante e a anfora torna-se um processo que indica uma referncia a um referente j conhecido, isto , um referente presente ou manifesto na memria imediata.15 Se se renunciar ao critrio textual, adoptando um critrio memorial do fenmeno, a oposio anfora/deixis no uma diferena de localizao texto/situao mas uma distino memorial. Assim, no h necessidade de haver um antecedente no texto para que se fale de anfora podendo o carcter "saliente" do referente anafrico provir de uma outra fonte como a situao e inferncias que se possam retirar do texto e/ou da situao. (Kleiber, 2001). A vantagem imediata de uma definio em termos de continuidade referencial cognitiva (textual ou no) permitir uma anlise unitria em que o contexto extralingustico imediato seja, juntamente com o texto, uma das fontes de alimentao possveis da memria imediata e possa estar na origem de um emprego anafrico. Contudo, a concepo da Anfora, como fenmeno textual, a mais conhecida e define uma expresso anafrica como uma expresso cuja interpretao referencial depende de uma outra expresso (ou de outras expresses) mencionada no texto e, geralmente, chamada seu "antecedente". A interpretao referencial da expresso anafrica deve necessariamente realizar-se pela tomada em conta do "antecedente", no exigindo que a relao entre este e a expresso anafrica seja uma relao de correferncia. (Kleiber, 1994). Ao invs, esta condio que faz depender a interpretao referencial da expresso anafrica de um "antecedente" exclui casos de correferncia noSegundo estes autores, chamada (...) univers de discours J. Lyons (1980), mmoire discursive (A. Berrendonner (1986) e M.-J. Reichler-Bguelin (1989), modle contextuel P. Bosch (1983), modle du discours F. Cornish (1986, 1988 et 1990) ou ainda focus S. Garrod and A. J. Sanford, (1982).. Cit. in Kleiber (1994:25).15

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anafrica constitudas por expresses interpretveis de forma independente, isto , autnomas. Embora o estudo da anfora em termos sintcticos seja tambm relevante, no a viso estritamente sintctica que aqui me interessa, pois, como diz Kleiber (1994:21), muito restritiva (...) la rponse technique donne par la thorie chomskyienne de Gouvernement et liage, qui restreint, comme on sait, l'anaphore aux seules anaphores lies, dfinies par les conditions de liage A et B.. Tendo em conta o que foi dito, a tendncia actual dos estudos que descrevem os processos de interpretao referencial , com efeito, fazer crer cada vez mais na dimenso pragmtica mostrando que os referentes so encontrados por clculos inferenciais pondo em jogo o contexto da enunciao e o saber partilhado e no por regras fixas ou convencionais agarradas s expresses que libertam quase mecanicamente os seus referentes. (Cf. Kleiber, 1994).

1.1.3 - Anfora e Referncia

Estritamente associada ao fenmeno anafrico encontra-se a questo da Referncia, como alis j estava implcito no ponto 1.1.2. Considerada a definio de Anfora, em sentido lato, como uma relao entre termos ou expresses referenciais textuais e/ou discursivas, que se encontram relacionados ou dependentes entre si, tentarei enquadr-la e descrev-la, fundamentalmente, na sua dimenso semntica, associada ao significado e sentido que os elementos lingusticos podem assumir ou no com o mundo real. Na verdade, conforme Fonseca (1988:11), os objectos, factos, acontecimentos, situaes...que reconhecemos no mundo em que estamos mergulhados surgem-nos, no como realidades isoladas, antes interligadas por um complexo de relaes. (Isto mesmo se cumpre em qualquer mundo possvel que, enquanto seres inteligentes, fazemos projectar). Tal decorre da

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apreenso cognitiva, da ordenao intelectiva a que subtemos o mundo, ou seja, da conceptualizao do que nos rodeia e do que experimentamos. Constitui o acto lingustico uma referncia a esse mundo intelectivamente ordenado, que justamente se molda, em diferentes solues formais, nos signos integrantes de cada uma das LNs16 . Dada essa ntima ligao a questes de referncia, interessa desde j um pequeno apontamento sobre o que, em alguma da muita literatura existente, se entende por "referncia". Com efeito, muitas reflexes e estudos se tm feito por filsofos, lgicos e linguistas acerca do que a "Referncia" e, consequentemente, os referentes, tendo em vista, sobretudo, o seu estatuto de ser ou no considerado um fenmeno pertencente Lingustica. neste sentido que Milner (1982:9) diz que la notion de rfrence ne cesse pas de donner lieu discussion depuis que le langage a t constitu comme un ensemble bien dfini, ayant au moins une proprit distinctive: celle justement qui consiste dsigner. (...) On s'accorde reconnatre que dans certaines conditions les squences linguistiques peuvent tre associes certains segments de ralit, qu'elles sont dites dsigner et qui sont leur rfrence.. Ainda recentemente, Kleiber (1999b: 15) retoma a questo, perguntando: Que faut-il faire du rel en linguistique? A-t-il une place ou non dans le domaine smantique?, respondendo que, por um lado, nada tem a ver, mas d'un autre ct, si l'on accepte que parler, c'est dire quelque chose, le quelque chose en question, que l'on ne peut viter, nous pousse rpondre positivement: oui, le rel est partie prenente dans le commerce linguistique, puisque c'est sur lui que s'exerce notre dire.. Segundo Kleiber, a concepo "standard" da referncia apoia-se e repousa no axiome d'existence, isto , se as expresses lingusticas tm um referente porque esse referente existe, sendo a referncia uma relao lngua-mundo que estabelece a ligao entre uma poro ou segmentos do mundo real e expresses lingusticas. Uma tal concepo depara-se com o obstculo que constituem certas expresses que denotam entidades fictcias ou imaginrias. preciso estender o

Cf. o autor, LNs uma abreviatura de "lnguas naturais".

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acesso da referncia a outros mundos ou universos para alm do mundo real, alargando a definio inicial para a integrar esses mundos possveis. A referncia torna-se, ento, a funo pela qual um termo lingustico remete para um objecto do mundo extralingustico, real ou imaginrio. Porm, e conforme Kleiber (1999b), o acesso aos mundos possveis passa necessariamente pelo mundo real.

1.1.3.1 - Referncia e Sentido

Associado ao fenmeno da "Referncia", um outro conceito introduzido pelo lgico alemo Frege, o do "Sentido", se imps na Lingustica actual e tem sido objecto de estudo de vrios autores. Apesar de no ser um objectivo do meu trabalho aprofundar essa questo, necessrio abordar o problema pelas implicaes que ambos os fenmenos tm no estabelecimento de relaes anafricas.

Como se pode ler em Lopes (1971:265), G. Frege, um dos criadores da lgica simblica, fez uma distino clssica entre Bedeutung (denotao, segundo terminologia inglesa; referncia ou designao de um objecto, ou de um valor proposicional V, F) e Sinn (sense em ingls, distinto meaning, que menos especfico; em portugus sentido, que o aspecto semntico e intensional de um termo ou proposio). Utilizando um exemplo clssico, as expresses estrela da manh e estrela da tarde referem-se a um mesmo objecto, fazem a mesma referncia ou designao (Bedeutung, denotation), mas no se equivalem em sentido, intenso (Sinn, sense).. Esta distino que , simultaneamente, uma separao entre "referncia" e "sentido" passa a predominar desde ento porque veio permitir dar resposta a problemas que se colocavam interpretao de determinadas expresses dotadas de "sentido," mas desprovidas de "referente", entendido este como objecto do mundo real.

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Segundo Ducrot (1972:27), o objecto de Frege no texto Sens et rfrence 17foi estabelecer um paralelo entre as proposies e os nomes. Tout nom (en entendant par l des expressions de forme trs diverse, comme Pierre, ce livre, l'toile du soir) est destin dsigner un rfrent, un object de la ratit distinct de lui. Mais il ne dsigne cet objet qu'en donnant une certaine description. C'est cette description, au moyen de laquelle le nom prsente la chose, qui constitue, selon Frege, le sens du nom. Ainsi les trois noms cits plus haut n'ont pas le mme sens que les trois suivants, mais ils ont - ou peuveut avoir - le mme rfrent: le cousin de Marie, le seul objet rouge sur cette table, l'toile du matin.. Para Frege, um objecto tudo aquilo a que uma expresso nominal no singular se pode referir, quer seja uma propriedade, uma qualidade, um nmero ou o que quer que seja. A referncia a um conceito, pelo contrrio, nada mais do que a atribuio de uma propriedade por meio de um predicado gramatical. (Searle, 1981). De acordo com Vilela (1995:345), (...) a lingustica (cfr. Lyons 1977) construiu as suas designaes na mesma linha: "referncia" e "sentido". Entende-se por "referncia" a relao ao extralingustico, aos "referentes", e por "sentido" a relao ao intralingustico (...). Conforme Oliveira (1996), foi na sequncia desta distino proposta por Frege que surgiu uma outra distino paralela, atribuda a Carnap (1947): "extenso" e "intenso" correspondentes, respectivamente, a "referncia" e "sentido". Muito recentemente, Kleiber (1999b:51) tenta encontrar uma soluo satisfatria para o "par" sentido e referncia que abre novas perspectivas tanto Semntica como Pragmtica. Segundo o mesmo autor, o "sentido" no todo construdo, uma parte convencional. Esse sentido convencional no pode ser unicamente diferencial ou negativo, no homogneo mas apresenta-se como descritivo (referncia virtual ou aproximao prototpica) ou instrucional, podendo uma expresso lingustica depender desses dois modelos de sentido. Para toda uma srie de expresses, esse sentido referencial, isto , concebido como um conjunto de condies de

Traduo de Sinn und Bedeutung, artigo de 1892. 27

Anfora Associativa - Algumas Questes aplicabilidade referencial e os traos que compem esse sentido so objectivos naquilo em que eles so intersubjectivamente estveis. A sada para o real encontra-se preparada tanto pelo sentido referencial como pelo processual; nos dois casos pode falar-se de "mode de donation" ou de "mode de prsentation" do referente. A diferena entre os dois que um apresenta o referente por descrio enquanto o outro indica os processos para o encontrar. Estas concluses acerca da noo de sentido constituent une base fructueuse pour aborder la rfrence aux tages infrieurs, notamment au palier immdiatement en dessous, celui de la dnomination et de la catgorisation.. (Kleiber, 1999b:51). Penso que, apesar da enorme relevncia destas questes para o estudo semntico, elas envolvem outros aspectos que se afastam do meu objecto de estudo. No entanto, esta distino, proposta por Frege, particularmente interessante para as construes de Anfora Associativa que irei contemplar mais frente.

1.1.3.2 - Referncia e condies de "felicidade"18

Retomando um pouco o que j foi dito, um certo nmero de expresses chamadas referenciais, nomeadamente as nominais, tm por funo referir, o que faz da referncia um fenmeno lingustico. Contudo, a parte propriamente lingustica da referncia o sentido das expresses referenciais, o que Milner (1982) chama a sua referncia virtual. A referncia actual, por seu turno, pertence ao mundo e o problema da referncia em geral, o do lao entre referncia virtual e referncia actual, no poder depender unicamente da Lingustica. Nesta ptica, se o estudo da referncia virtual da instncia da Lingustica, mais particularmente de uma parte da Semntica, a Lexicologia, o estudo do fenmeno da referncia, da relao entre referncia virtual e referncia actual, depende do estudo do uso da linguagem, da Pragmtica.

Veja-se Reboul, (1994:125). 28

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Conforme Reboul (1994), pode considerar-se que a referncia o objecto de um acto que Searle, no seu livro sobre os actos de linguagem, chama Acto Proposicional, predicao. Assim, a referncia, na medida em que depende do uso da linguagem, pode ser descrita da seguinte maneira Rfrer quelque chose, c'est utiliser un terme singulier avec l'intention (partie de l'intention communicative) d'indiquer son auditoire l'objet de l'attitude que l'on exprime.. (Reboul, 1994:126). Este acto, como todos os actos de linguagem, pode ser coroado de xito ou fracassar. Para examinar as condies desse sucesso, Reboul retoma duas noes desenvolvidas por Donnellan: "speaker reference" e "semantic reference". Enquanto a referncia semntica o objecto determinado pelo seu sentido lexical, referncia virtual da expresso referencial, a referncia do locutor o objecto particular ao qual o falante tinha a inteno de referir pelo emprego dessa expresso referencial. Um acto de referncia s bem sucedido se a referncia semntica e a referncia do falante coincidirem. Esta distino no corresponde a dois empregos diferentes de uma mesma expresso referencial mas a dois aspectos diferentes de um mesmo acto de referncia. Na opinio de Oliveira (1987:128), Pode talvez supor-se que aquilo a que Donellan (1978:47-68) chama speaker reference seja elucidativo de algumas ocorrncias, no sentido de permitir apreender a referncia atravs do que o falante tem em mente e que para ele se reveste da evidncia psquica individualizadora de um vivid name (Kaplan, 1969:178-214); mas, num acto de referncia consumado, isso implica uma condio griceana (Schwarz, 1979); o alocutrio apreende o referente na medida em que apreende a inteno, por parte do locutor, de lhe indicar esse mesmo referente.. Na verdade, todo o produto verbal (projectado, obviamente, numa dada LN) configura, assim, uma mensagem marcada naturalmente por uma verosimilhana semntico-referencial, isto , uma mensagem conforme ao estado de coisas desenhado pelo saber acerca do mundo partilhado pelos falantes enquanto seres inteligentes. Quer isto dizer que a actividade verbal se subordina imediatamente e sempre a princpios gerais que regem o conhecimento pois, na sua perspectiva, existem dois tipos de actos proposicionais: o acto proposicional de referncia e o acto proposicional de

29

Anfora Associativa - Algumas Questes das coisas, a ordenao intelectiva do mundo, o exerccio do pensamento.. (Fonseca, 1992:60).

1.1.3.3 - Incompletude referencial

Um ltimo aspecto a abordar, relativamente interpretao do fenmeno anafrico, o que se relaciona com a dependncia referencial entre as expresses envolvidas. Com efeito, o assunto tem sido tratado na literatura como por exemplo Corblin (1985, 1987) e Cornish (1990), havendo consenso sobre as expresses no gozarem de autonomia referencial. Neste sentido, para Corblin (1985:191)19 Globalement, on a donc anaphore, lorsqu'une structure manifeste in situ une incompletude dtermine pour une position; cela ne peut se concevoir naturellement que par comparaison avec la structure complte, car c'est seulement ainsi qu'on peut spcifier une incompletude dtermine. Le moteur de l'anaphore serait la ncessit de se ramener, grce au contexte, une structure complte chaque fois que celle-ci ne l'est pas.. Por outro lado, ainda de acordo com Corblin (1987:9) se um referente recentemente mencionado retomado pelo grupo nominal, existe uma conexo contextual e, se h essa dependncia contextual, em virtude de uma exigncia interpretativa no satisfeita de uma incompletude; a conexo fixa o que exigido para que a forma se torne saturada. Esta noo de saturao, "herana fregeana"20, permite distinguir os dois tipos de relao com dependncia contextual, o fenmeno da correferncia e o fenmeno da anfora: (...) un rapport d'identit ventuel entre deux termes dont les interprtations sont indpendantes; s'il s'agit de rfrence, on parlera de co-rfrence1920

Cit. inKleiber, (1994:23).

Veja-se, a este propsito, a definio (...) De la fonction, prise sparment, on dira qu'elle est incomplte, ayant besoin d'autre chose, ou encore insature(...). Cit. in Corblin, (1987:9). 30

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(...) un rapport de dpendance en vertu duquel B tire

ncessairement son interprtation d'une mise en connexion A, A saturant l'interprtation de B en fixant un de ses termes: on parlera alors d'anaphore.. (Corblin, 1987:10).

Como se pode ver, embora a relao de correferncia possa ser um dos critrios definitrios para o estabelecimento de anfora, as noes de anfora e de correferncia no so equivalentes. Como tambm afirma Reboul (1994), se a correferncia indispensvel para um certo tipo de anforas, especialmente a nominal e a pronominal, a anfora no indispensvel correferncia e as extenses das duas noes no coincidem totalmente. A diferena entre os casos em que h correferncia e anfora pronominal e os casos em que h correferncia sem anfora pronominal dependem do estatuto referencial do pronome de terceira pessoa, privado de referncia virtual e, portanto, de autonomia referencial, embora tambm possa haver anfora sem correferncia. Esta especificidade faz da anfora pronominal uma relao assimtrica entre dois elementos cujo estatuto referencial no equivalente contrariamente relao de correferncia que simtrica. Ainda conforme Reboul (1994:107) La relation d'anaphore, si elle implique celle de corfrence, ne peut s'y rduire: elle a aussi besoin d'une autre relation, asymtrique celle-l, la relation de reprise qui lie un terme autonome rfrentiellement un terme non autonome rfrentiellement, le premier prcdant le second, le second tirant sa rfrence actuelle du premier, d'o la corfrence.. Segundo Kleiber et al. (1991a), a definitude dos SN definidos em lugar anafrico associativo no provm, como nos empregos dos definidos

correferenciais, de uma meno anterior do seu referente, pois leur interprtation parat ainsi de prime abord plus problmatique que celle des descriptions dfinies compltes ou que celle des incompltes corfrentielles. Elles introduisent un rfrent nouveau, puisqu'il ne s'agit pas de SN dfini de deuxime mention, mais

31

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le prsentent sur le mode du dfini ou du connu, puisque leur incompletude exige une saturation rfrentielle21 (...).

1.2 - Alguns tipos de Anfora

1.2.1 - Anfora correferencial

O tratamento do fenmeno anafrico desde h muito que objecto de vrias reflexes, nem sempre consensuais, numa tentativa da sua delimitao e formalizao. Farei aqui uma breve anlise desta questo, tendo em conta uma perspectiva primordialmente semntica.

Muitos autores tm definido o fenmeno naquilo que ele tem de essencial e que a relao correferencial estabelecida entre dois termos. Porm, no basta que a relao entre os termos seja uma relao de correferncia mas que essa relao seja assimtrica e no transitiva. Para uma melhor compreenso, convm, como primeira abordagem, fazer a distino entre a Anfora nominal e a Anfora pronominal, dois tipos de anfora correferencial muito comuns, cujo funcionamento se pode explicar pelas noes de referncia actual e referncia virtual com que Milner (1982) distinguiu os elementos de uma qualquer lngua natural. Partindo da sua teoria, a cada unidade lexical individual ligado um conjunto de condies que deve satisfazer um segmento da realidade para poder ser a referncia de uma sequncia em que intervir crucialmente a unidade lexical em causa. Este conjunto de condies descreve um tipo ou classe de referncia possvel. Para exprimir esta situao, poder-se- recorrer aos termos seguintes: o segmento da realidade associado a uma sequncia a sua referncia actual; o21

Cf. Reboul, (1994:120), (...) Kleiber entend par saturation rfrentielle ce que Milner (1989) entend par saturation smantique: savoir le fait que le sens lexical de l'expression rfrentielle concerne suffise ou ne suffise pas dterminer son propre rfrent.. 32

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conjunto de condies caracterizando uma unidade lexical a sua referncia virtual. (Milner, 1982). Esta posio no se afasta muito de Carvalho (1970:145-146), embora com terminologia diferente, para quem a significao virtual e a significao actual haviam j sido objecto de estudo ao mencionar que (...) cada sinal possui primeiro uma significao virtual, constante, que chamaremos significao propriamente dita ou pura significao, e realiza por outro lado, em cada situao concreta, em cada um dos actos em que materialmente se produz, uma significao actual, a que daremos o nome especfico de designao. Para cada sinal h assim uma significao virtual nica que seguidamente se realiza em tantas significaes actuais quantos os actos significativos concretos em que o mesmo produzido e percebido, o que vem a equivaler a uma infinidade de significaes actuais.. Assim, enquanto as unidades lexicais tm uma referncia virtual e uma referncia actual, os pronomes de 3a pessoa so no autnomos, desprovidos de referncia virtual prpria, dotados apenas de referncia actual. Conforme Milner (1982:18), Il y a relation d'anaphore entre deux units A et B quand l'interprtation de B dpend crucialement de l'existence de A, au point qu'on peut dire que l'unit B n'est interprtable que dans la mesure o elle reprend - entirement ou partiellement - A. Cette relation existe quand B est un pronom dont la rfrence virtuelle n'est tablie que par l'interprtation d'un N" que le pronom rpte. Elle existe galement quand B est un N" dont le caractre dfini - c'est--dire le caractre identifi du rfrent - dpend exclusivement de l'occurrence, dans le contexte, d'un certain N" - en fait, gnralement, le mme du point de vue lexical.. Vamos ver em que situaes pode ocorrer cada um desses tipos.

1.2.1 - A n f o r a nominal correferencial

Assim, o tipo fundamental da relao anafrica nominal a sucesso de duas unidades lexicais cuja primeira, indefinida, designa uma referncia actual

33

Anfora Associativa - Algumas Questes

no identificada mas inclui-se num enunciado que a identifica e cuja segunda, definida, designa uma referncia identificada pela nica relao de retoma. O caso tpico o de Um N...o A/. De acordo com Milner (1982), tratando-se da mesma unidade lexical, a relao de correferncia estabelecida sem que seja requerida qualquer informao no-lingustica. Vrios exemplos aparecem na literatura: (4) Ontem caiu um avio em Frana. O avio voava a baixa altitude.22 (5) Un chien tranait par l. Le chien avait l'air perdu.23 Para Corblin (1987:127), este tipo de relao em que h repetio da mesma unidade lexical constitui uma anfora "fiel" por oposio a "infiel" em que as unidades lexicais dos termos constituintes se encontram numa relao de sinonmia ou mesmo de hiperonmia. C'est uniquement en tant que rptition d'une mention qu'une forme peut tre dite fidle ou infidle.. Quando as unidades lexicais so diferentes, e referencialmente autnomas, um outro tipo de anfora nominal contextual pode ocorrer. uma relao que no exige correferncia nem virtual nem mesmo actual, sendo perfeitamente interpretvel sem informaes suplementares. o caso, por exemplo, do enunciado: (6) Un boeuf paissait; le quadrupde...24 em que tanto o anaforizante como o anaforizado tm necessariamente uma referncia actual. O efeito da anfora nominal identificar o referente actual do anaforizante, no fornecer-lhe uma referncia virtual. O carcter definido do segundo nome, a sua referncia actual, depende da introduo anterior do primeiro nome includo num contexto identificante. A sucesso no pode ser invertida sendo, por isso, assimtrica porque o segundo termo funciona como inclusivo relativamente ao primeiro:

Oliveira, (1988:30). Corblin, (1987:127). Milner, (1982:38).

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(7) *Un quadrupde passait; le buf... A interpretao deste fenmeno pode exprimir-se em termos de referncia virtual. Une unit nominale est inclusive par rapport une autre, si la rfrence virtuelle de la premire est toujours inclusive dans celle de la seconde (...). (Milner, 1982:26). Assim, um segmento da realidade que satisfaa condies para ser referncia actual da segunda, satisfaz sempre as condies para ser referncia actual da primeira. Em (3), o anaforizante, le quadrupde, termo inclusivo, apesar de autnomo e provido de referncia virtual prpria, correferencial do anaforizado, Un boeuf, pela relao das suas referncias virtuais. Segundo Milner, nesta situao pode falar-se de anfora lexical porque tal possvel devido prpria natureza lexical das unidades, competncia lingustica dos falantes e no a situaes extralingusticas25. A ordem em que ocorrem essas unidades e a incluso, caso particular de interseco referencial, permitem a relao anafrica. Com efeito, a interseco referencial um subcaso da relao de correferncia, conforme Milner (1982:12) que afirma que (...) deux rfrences peuveut tre distinctes et nanmoins avoir quelques traits communs: il y alors intersection rfrentielle, avec comme cas particulier l'inclusion.. Esta posio no se afasta da de Corblin (1987:127), relativamente denominada anfora infiel, que a exemplificou da seguinte maneira: (8) Un chien tranait par l. L'animal avait l'air perdu. Para este autor, a expresso definida, l'animal, no reenvia meno introduzida, Un chien, mas ao conjunto de um domnio de interpretao. Contudo, algumas restries se colocam a este tipo de anforas nominais. No pode ocorrer anfora nominal sempre que o anaforizado seja um termo genrico ou um termo quantificado porque uns e outros no supem a ideia de

Cf. Milner, (1982:27). 35

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repetio. Essa impossibilidade relativamente ao genrico fica a dever-se ao facto de no ser o N que o genrico mas o seu referente. (Milner, 1982:36). (9) *Un cheval est un mammifre...le cheval se laisse domestiquer.26 (10) *Tout homme est mortel...l'homme rve d'immortalit.27 Quanto s expresses quantificadas, Chevalier (1966)28 observou que numerais cardinais e outros quantificadores podem funcionar como prdterminantes quantificantes e no referenciais. Para que a expresso se torne referencial necessrio uma operao de actualizao. Segundo Coseriu (1967:293), a actualizao a operao determinativa fundamental. Os nomes que integram o saber lingustico no so actuais mas virtuais, no significam objectos mas conceitos. Enquanto pertencentes linguagem, um nome nomeia um conceito que , precisamente, o significado virtual do mesmo nome e s potencialmente designa todos os objectos que cabem sob esse conceito. Fora da actividade lingustica sempre nome de uma essncia, um ser ou uma identidade que pode ser identidade pertencente a vrios objectos reais, possveis ou eventuais. A actualizao a operao mediante a qual o significado nominal se transfere da essncia existncia. Essa transformao da designao virtual em designao actual, chamada denotao, necessita de operaes determinativas ulteriores como a individualizao, a localizao e a quantificao sempre que se queira orientar a denotao at grupos eventuais ou reais de entidades particulares dentro das possibilidades referenciais de um nome. Conforme o mesmo autor, a quantificao a operao mediante a qual se estabelece simplesmente o nmero ou numeralidade29 definida ou indefinida das entidades denotadas. (Coseriu, 1967:298). Tambm Guillaume30 define o artigo na lngua francesa como (...) le signe de la transition du nom en puissance au nom en effet (...). De uma maneira geral, le nom est pris dans le discours soit en extension, c'est--dire en largissementMilner, (1982:36). Milner, 1982:36). Cit. in Corblin, (1987:11). Trad, de numeralidad, na obra consultada. Cit. in Valin (org.), (1973:40). 36

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dans un champ d'extension que le contexte suggre, soit en anti-extension, c'est-dire en trcissement dans le champ d'extension considr. Le mouvement d'extension est rendu par l'article le. Le mouvement contraire d'anti-extension, par l'article un.. (Valin, (org.) 1973:39-40).

1.2.3 - Anfora pronominal correferencial

Segundo Milner (1982:20), a anfora pronominal usual uma combinao de correferncia e retoma, perfeitamente interpretvel a partir do contexto lingustico. A relao estabelecida entre uma unidade autnoma dotada de referncia virtual e actual e um elemento no autnomo, sem referncia virtual prpria. Esta posio acerca da interpretao a partir apenas do contexto lingustico no consensual. A ideia fundamental que os dados lingusticos no bastam para aceder ao referente visado. Contrariamente posio defendida por Milner (1982), a anfora pronominal no directamente interpretvel a partir unicamente do contexto lingustico sem outras informaes relativas aos segmentos designados. Outros factores como acessibilidade ou pertinncia entram em linha de conta para a sua interpretao31. Conforme Kleiber (1994), para quem toda a anfora de certa forma inferencial, a sua interpretao no se faz em geral de forma automtica, tanto mais que considera que Reboul (1989) apresenta um conjunto de exemplos que confirmam a importncia da parte pragmtica na atribuio do referente a uma expresso anafrica, principalmente o papel do lao inferencial numa tal atribuio. Segundo a teoria de Milner (1982:20), na anfora pronominal o pronome , por definio, desprovido de referncia virtual prpria, tirando-a do nome que ele anaforiza. Assim,

Cf. Kleiber, (1994).

37

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Termos dotados de referncia actual e referncia virtual prprias nomes comuns.

Termos dotados de referncia actual prpria desprovidos de referncia virtual - pronomes.

A referncia actual do anaforizado pode ou no ser identificada ou identificvel. Tanto anaforizante como anaforizado no tm necessariamente uma referncia actual; basta que o anaforizado tenha referncia virtual, podendo ser definido ou indefinido, especfico ou genrico. Tal explica ocorrncias do pronome pessoal em situaes que, como vimos, no so possveis nas anforas nominais como em (9) e (10): (11) Un cheval est un mammifre, et il se laisse domestiquer.32 (12) Tout homme est mortel, et il rve d'immortalit.33

Em Portugus, se o nome, um cavalo, for interpretado no como termo particular mas como um termo de espcie, pode ser anaforizado por um pronome pessoal no plural, desde que se trate, na primeira frase, de um contexto definitrio:

(13) Um cavalo um mamfero, eles deixam-se domesticar. (frase genrica).

Quando na relao anafrica, o termo anafrico no tem realizao lexical, isto , corresponde a uma categoria vazia (caso do pronome), fala-se de elipse e de termos elpticos como no exemplo seguinte, embora em Portugus seja uma questo de sujeito nulo:

(14) Todo o homem cr que ( ) mortal.

Estes so tipos particulares de anfora pronominal mas tm em comum a incompletude referencial do segundo termo.32 33

Milner, (1982:37). Milner, (1982:37).

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Relativamente designao de "antecedente" para o primeiro elemento, o mesmo no se mostra muito apropriado nos casos em que o pronome o precede, surgindo outras terminologias na literatura: "On parie d'anaphore lorsqu'un lment, par exemple un pronom, exige d'tre interprt par emprunt un terme du contexte proche, lorsqu'il y a dpendance ncessaire d'un "anaphorique" un antcdent qui se comporte comme une source." (Corblin 1985 page 126)34. Com efeito, para Kleiber (1994), o termo source, tem a vantagem de nada dizer relativamente sua localizao no discurso.

1.2.3 - Anfora pronominal no correferencial

Expostos at aqui dois tipos de anfora, nominal e pronominal, que a literatura apelida de "directa", pela relao de correferncia entre os termos, um outro tipo de anfora pronominal se pode estabelecer em que a referncia indirecta e, por isso, merece um tratamento e uma ateno distintos. Com efeito, a ocorrncia de pronomes em lugares anafricos que no retomam directa e totalmente o referente do termo antecedente, sendo, por isso, um fenmeno de referncia textual indirecta ou mesmo inferencial, tem levado a posies divergentes na literatura com autores como Berrendonner e Charolles a enquadr-lo como um tipo de Anfora Associativa. Essa posio vai contra a de Kleiber que exclui dos lugares associativos todo o tipo de descries definidas introduzidas pelo pronome pessoal ou demonstrativo. O problema da identificao de anforas no correferenciais delicado porque as mesmas constituem um tipo de anforas indirectas e inferenciais mas no satisfazem a condio de disjuno referencial, critrio definitrio das anforas associativas. Um dos casos mais comuns aquele que tem como antecedente um referente especfico e como termo anafrico um referente genrico. Trata-se, segundo Kleiber (1999a:70), de ocorrncias de pronomes textuais genricos indirectos, como os exemplos ilustram:Cit. in Soule-Beck, (1990:337). 39

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(15) J'ai achet une Golf, parce qu'elles sont robustes.35 (16) J'ai adopt un chat, parce qu'ils sont affectueux.36 Neste tipo de anfora indirecta, a importncia do determinante e, especialmente, do quantificador pe em evidncia o emprego textual no paradigmtico do pronome genrico indirecto. Compare-se a inaceitabilidade do exemplo (17) relativamente ao (18): (17) ?J'ai adopt ce chat, parce qu'ils sont affectueux. (18) J'ai adopt un chat, parce que les chats sont affectueux.37 Em (18), o enunciado comporta um SN genrico pleno, havendo, tal como em (15) e (16), uma relao entre uma ocorrncia especfica e a classe genrica qual ela pertence.

Um outro tipo possvel de anfora indirecta o emprego do pronome que Kleiber classifica de "collectif ou "grgaire" e que pode ser ilustrado em exemplos como: (19) Paul est all au thtre. Ils jouaient du Corneille.38 Apesar de o referente da expresso anafrica, ils, poder ser interpretado pelo vis de um outro referente j mencionado, au thtre, necessrio precisar o estatuto da relao que une os dois referentes implicados que, segundo Kleiber (1999a:70), para ter validade no deve ser apenas contextual mas, de certa maneira, genrica.

35 36 37 38

Kleiber, (1999a:70). Corblin cit. in Kleiber, (1994:13). Kleiber, (1994:13). Kleiber, (1999a:70). 40

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Concluso

Pelo exposto, em consequncia da estreita relao estabelecida entre Anfora e Deixis, no texto e/ou discurso, considera-se importante perspectivar o fenmeno no s tendo como critrio uma aproximao textual mas tambm uma aproximao memorial. Relativamente questo da Referncia e ao conceito de Sentido, a ela associado, ambos se mostram particularmente relevantes para a distino entre o que possa ser considerado intra ou extralingustico, pontos fulcrais para a interpretao do fenmeno anafrico. Outra questo muito importante considerar o tipo de relao anafrica como uma relao assimtrica, distinguindo-a da relao simtrica de correferncia entre os termos uma vez que a dependncia referencial de um termo relativamente a outro uma imposio para que se estabelea a relao. Em relao aos tipos de Anfora correferencial ou de referncia indirecta, a apresentao que deles se fez, neste Captulo, permite estabelecer uma passagem para o estudo da Anfora Associativa que tem como primeira condio a disjuno referencial. Nestes tipos de anfora apresentados, o que interessa tambm reter o facto de haver a possibilidade da integrao dos seus termos em categorias formais, quer os termos sejam homogneos (N...N) quer heterogneos (N...Pro), uma das grandes dificuldades quando h disjuno referencial como na Anfora Associativa.

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CAPTULO 2 - ACERCA DE ANFORA ASSOCIATIVA

Introduo

Exposto at aqui o fenmeno lingustico anafrico interpretvel pela relao de correferncia (virtual, actual ou ambas) entre os termos, e de um tipo de relao de referncia indirecta, um outro tipo de Anfora pode ocorrer tendo como condio necessria a disjuno referencial, referncias distintas ao ponto de no terem trao comum. (Milner,1982:15). Com efeito, esta condio da disjuno referencial fundamental para a distino entre Anfora Associativa e os casos em que h correferncia ou referncia indirecta, abordados no Captulo anterior, embora no seja a nica nem, talvez, a mais importante. Outras condies a que deve obedecer a relao vo ser apresentadas neste Captulo. Dado que a interpretao dos termos se faz por associao, e no por retoma, a Anfora Associativa um fenmeno que exige mecanismos inferenciais e essa uma condio sem a qual no possvel o seu estabelecimento, para alm da definitude do termo anafrico, considerada tambm indispensvel. A questo da interpretao deste tipo de Anfora tem levado a abordagens diferentes, tanto da referncia como do fenmeno em si, e a teses paralelas que, seguidamente, abordaremos neste Captulo.

2.1 - Anfora Associativa vs no Associativa

Apesar de a interpretao de uma anfora associativa ser distinta dos outros tipos de anfora e haver, por isso, pontos de divergncia, existem tambm alguns pontos de contacto que passo a esquematizar:

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Anfora Associativa - Algumas Questes

(i) Relao e consequente encadeamento entre termos como factor de coeso e coerncia. (ii) Definitude do termo anafrico. (iii) Relao assimtrica. Quanto aos pontos de divergncia, passo a apresentar alguns: (i) Disjuno referencial. (ii) A anfora ocorre no por retoma mas por associao. (iii) Impossibilidade da categoria pronome em lugar de anafrico (na concepo estreita da relao). (iv) Possibilidade de termos no realizados lexicalmente (o "antecedente" em certos tipos de Anfora). (v) Necessidade de informaes, fora do contexto lingustico, apoiadas em inferncias.

2.2 - Algumas definies de Anfora Associ