Anais 2015 | GT1 e GT2

356
Anais do I Seminário Internacional de Educação Integral : observando realidades e construindo compromissos Lúcia Helena Alvarez Leite Levindo Diniz Carvalho (orgs.)

description

 

Transcript of Anais 2015 | GT1 e GT2

  • Anais do I Seminrio Internacional de Educao

    Integral: observando realidades e construindo

    compromissos

    Lcia Helena Alvarez Leite Levindo Diniz Carvalho

    (orgs.)

  • I Seminrio Internacional de Educao Integral: observando realidades e construindo compromissos

    GT1 - Cidade e Territrios Educativos | Coordenao: Prof. Juarez Melgao Valadares (FaE/UFMG)

    GT2 - Currculo, espaos, tempos e saberes | Coordenao: Profa. Tnia Resende (FaE/UFMG)

    GT3 - Gesto, Poltica e Financiamento | Coordenao: Marlia Barcellos Guimares (Proex/UFMG)

    GT4 - Sujeitos da Educao Integral | Coordenao: Prof. Levindo Diniz Carvalho (UFSJ)

    GT5 - Educao Integral e Diversidade | Coordenao: Prof. Paulo Nogueira (FaE/UFMG)

    GT6 - Educao Integral, Concepes e Prticas | Coordenao: Prof. Lucia Helena Alvarez Leite (FaE/UFMG)

    Anais do I Seminrio Internacional de Educao Integral: observando realidades e construindo compromissos

    Coordenao: Levindo Diniz Carvalho e Lcia Helena Alvarez Leite

    Projeto grfico e diagramao: Rassa Pena

    Organizao: Camila Said, Maria Clemncia Silva, Engracia Tropia, Sandro Vincius Sales do Santos

    Anais do I Seminrio Internacional de Educao Integral: observando realidades e construindo compromissos / Organizao: Lcia Helena Alvarez Leite e Levindo Diniz Carvalho Belo Horizonte: UFMG Faculdade de Educao, 1 edio, 2015. 1316 p.

    Publicao produzida pelo TEIA Territrios, Educao Integral e Cidadania.

    1. Educao. 2. Tempo integral. 3. Educao integral.

    I. Leite, Lcia Helena Alvarez. II. Carvalho, Levindo Diniz. III. Universidade Federal de Minas Gerais, Faculdade de Educao.

    ISBN: 978-85-8007-087-3

  • Anais do I Seminrio Internacional de Educao

    Integral: observando realidades e construindo

    compromissos

    Lcia Helena Alvarez Leite Levindo Diniz Carvalho

    (orgs.)

  • 4SUMRIO

    GT1 A cidade do patrimnio e a infncia: o

    programa Mais Educao/PME e a experincia participante sob uma perspectiva de conflitos corporais na cidade de Pelotas (RS) 15

    A rua como espao potencializador 35

    Afetar a cidade: a experincia da formao de professores na educao integral e a incorporao de novos territrios educativos

    Criando situaes de inveno marginal: da trajetria da cor trajetria do corpo

    Educao integral e territrio: dilogos e sentidos da prtica na formao de professores

    Escola e sociedade: uma parceria em prol da educao integral

    Contribuies mtuas: cidade-escola, escola-bairro, casa-escola. O caso da Escola Municipal Maria Teresa em So Joo del-Rei, num processo de ensino-pesquisa-extenso

    Aprender na cidade: as potencialidades pedaggicas das aulas passeio

    Apreender na cidade e com a cidade: os dispositivos mveis de comunicao

    49

    108

    115

    130

    94

    66

    77

    Museus e crianas pequenas uma relao encantadora

    Relao da comunidade com os/as estudantes da Escola Integrada no trajeto realizado da escola at o local de realizao das atividades

    Relato de experincia: territrios em rede. A interveno pedaggica transformando a sala de aula

    137

    149

    160

  • 5 Educao integral, ampliao do tempo escolar e aprendizagem: desafios para escola pblica

    Prticas matemticas de uma escola de tempo integral: a proposta de uma disciplina potencializadora de aproximaes

    Reflexo acerca do Programa Mais Educao na cidade de Jaguaro (RS)

    Os desafios enfrentados por uma escola municipal de Salvador (BA) na realizao de atividades ligadas ao Programa Mais Educao

    O cotidiano da escola de tempo integral discutindo concepes e experincias da prxis docente

    Tempo escolar: mudanas, limites e possibilidades na escola pblica

    Os significados do tempo na educao integral: uma anlise a partir dos documentos do Programa Mais Educao

    Pontes para o Futuro: metodologias e estratgias para o fortalecimento de polticas de educao integral

    Educao e(m) tempo integral: representaes de professores e alunos do terceiro ciclo da rede de ensino de Belo Horizonte 191

    207

    219

    280

    297

    323

    340

    308

    GT2A prtica interdisciplinar na construo da

    proposta curricular da escola de tempo integral na rede pblica estadual do Par 177

    232

    243

    258

    Educao integral: educando em quatro dimenses

    Organizao do trabalho pedaggico em jornada ampliada: escolhas e negociaes a partir do relato de experincia do Centro Pedaggico da Escola de Educao Bsica e Profissional da UFMG

  • 6GT3Experincia da Escola de Educao em

    Tempo Integral de Caxias do Sul (RS)

    A relao entre a universidade e as polticas de ampliao da jornada escolar

    Dedicao Exclusiva ao Magistrio - Uma estratgia para a Educao (em tempo) Integral

    Federalizao da educao bsica: alternativa possvel para uma educao integral?

    Integrao de polticas sociais: o que prope o Programa Mais Educao?

    Guia de Polticas de Educao Integral: orientaes para implementao no municpio

    O processo de implementao do Programa de Escola Pblica Estadual de Tempo Integral: o caso da Escola Augusto Meira

    A poltica de educao integral e(m) tempo integral nos 10 anos de governo do Partido dos Trabalhadores

    Programa Mais Educao in loco: o perfil das escolas atendidas pela poltica em Minas Gerais

    Projeto Educao em Tempo Integral: anlise das prticas de gesto do programa em duas escolas do norte de Minas Gerais

    Um olhar sobre a educao integral na rede municipal de Porto Alegre (RS)

    O custo da educao integral em escola de tempo integral na rede municipal de educao de Goinia (GO)

    359

    373

    418

    429

    443

    459

    474

    490

    507

    523

    538

    399

  • 7GT4Contextos possveis da Educao Integral: a

    formao do sujeito como novo educador de arte

    Corpo e infncia na escola em movimento: Etnografia em uma escola da rede municipal de Belo Horizonte

    Educao e voluntariado no Programa Mais Educao (PME)

    A formao continuada de monitores do Programa Mais Educao: experincia em uma escola pblica municipal

    O Programa Mais Educao: as repercusses da formao docente na prtica escolar

    O voluntrio do Programa Mais Educao: um estudo exploratrio

    Orientadores familiares: (re)aproximando a famlia da educao infantil

    Prticas educativas no Programa Mais Educao em Filadlfia (BA): anlise das vivncias e perspectivas

    Programa Mais Educao: mais de qual educao?

    Sentidos e significados atribudos pelas famlias insero das crianas de 6 a 8 anos no Programa Escola Integrada

    O sentido atribudo s experincias de educao integral pelos estudantes no municpio de Itabora

    557

    572

    588

    602

    615

    631

    665

    680

    695

    710

    649

  • 8GT5O Programa Mais Educao e o dilogo com

    a educao popular do campo

    Programa Escola Integrada: ampliao do direito dos alunos com deficincia a uma educao de qualidade

    Felix Gonzalez-Torres: o amor acima de tudo

    O canto da diversidade - Linguagens artsticas superando preconceitos

    A educao escolar e a educao das mulheres auw (xavante): um conflito educacional

    A escola de tempo integral na interzona: territrios e no lugar, da diversidade sexual e de gnero

    Curso de aperfeioamento de professores na educao integral: experincias e reflexes

    729

    744

    752

    760

    774

    792

    806

  • 9GT6A educao integral e suas confluncias

    com a educao popular 837

    A necessidade da educao integral em tempo integral nos sistemas e nveis da educao escolar brasileira: a utopia possvel!

    Ampliao do tempo escolar: uma poltica no contexto da prtica escolar no Brasil e na Argentina

    Aspectos da educao integral e em tempo integral nas teorias anarquistas e pragmatista

    Bairro educador - uma experincia de educao integral na cidade do Rio

    Circo, arte/educao e cidadania: ampliando as possibilidades educativas

    Darcy Ribeiro e educao em tempo integral: processo civilizatrio frente de seu tempo

    Educao (em tempo) integral: levantamento e anlise da produo acadmica em educao

    Construo coletiva da proposta poltica pedaggica da educao escolar em tempo integral para as escolas organizadas em ciclos de formao e desenvolvimento humano da rme - goinia: a educao integral enquanto poltica pblica

    Desafios implantao de projetos de ampliao da jornada escolar: o que dizem as publicaes?

    855

    870

    886

    902

    920

    966

    996

    951

    982

    Educao de tempo integral: desafios na implantao da rede estadual de ensino em Palmas (TO)

    Educao integral em escolas de ensino fundamental: uma reflexo acerca das concepes e das polticas pblicas em curso

    Educao integral e escola de tempo integral: contribuies do Curso de Aperfeioamento em Docncia na Escola de Tempo Integral | Par

    1014

    1040

    1026

  • 10

    Educao integral ou ensino fragmentado? A Escola de Tempo Integral e sua trajetria experimental no municpio de Corumb (MS)

    Educao integral: estudo comparativo em escolas pblicas e privadas

    Educao Integral: uma anlise do Programa Tempo de Escola, de So Bernardo do Campo (SP)

    Escola Integrada: uma experincia de formao docente?

    Gesto coletiva na Oi Kabum! B: a construo de saber pelo fazer compartilhado

    Escola de tempo integral na rede estadual de ensino de Gois: escola do conhecimento ou do acolhimento?

    Experincias compartilhadas: as prticas, metodologias e estratgias de orientao do Programa Escola Integrada da UFMG (PEI-UFMG)

    1051

    1063

    1074

    1105

    1136

    1089

    1121

    O tempo integral na educao infantil: uma anlise de suas concepes e prticas no estado do Esprito Santo

    Parceria universidade e rede municipal na implementao da educao integral em tempo integral

    Parceria ONG-Escola: uma experincia de ao e interveno em uma comunidade de Belo Horizonte (MG)

    Repensando a caminhada...

    O Programa Bairro-escola da Prefeitura de Nova Iguau (RJ) e o processo de construo do currculo: experincias de escolas da rede municipal de ensino

    Percursos da educao integral: em busca da qualidade e da equidade

    1152

    1189

    1178

    1217

    1165

    1202

  • 11

    Educao integral, escola tcnica e o mundo do trabalho: dilemas de jovens mulheres

    O carter potente e transformador da educao de tempo integral vinculada formao para o trabalho em sentido pleno: experincias vividas

    Experincias e perspectivas dos jovens do ProEMI: at que ponto eles se empoderam dos espaos educativos nessa nova modalidade de ensino?

    O ensino do teatro na Escola Estadual Hermes Pintos Affonso: uma oficina do Programa Mais Educao

    1237

    1267

    1256

    1280

    Seo especial

  • 12

    Apresentao

    A ampliao do tempo dirio de permanncia na escola ou em atividades por ela coordenadas, na direo do tempo integral, um forte movimento em curso no cenrio educacional brasileiro. Programas e projetos so implantados e se expandem nas redes pblicas de ensino, adotando diferentes formatos que, por sua vez, revelam concepes distintas. O debate sobre educao integral se intensifica. Tempos, espaos, saberes, currculos, educadores, famlias, comunidade, territrio, cidade, gesto, financiamento, infncias, juventudes, diversidade... so como peas de um caleidoscpio que compem diferentes imagens em cada realidade.

    Tambm os estudos acadmicos sobre educao integral/em tempo integral proliferam. Buscam observar essas realidades, compreender seus condicionantes, seus avanos, limites e contradies, buscando contribuir para a construo de compromissos efetivos com a garantia de direitos.

    O I Seminrio Internacional de Educao Integral: observando realidades e construindo compromissos foi organizado pelo Observatrio da Educao Integral da FaE/UFMG e teve como objetivo contribuir para a divulgao e a discusso de experincias e estudos sobre a temtica, proporcionando o debate e a troca de experincias dos participantes. O objetivo era ser um frum criativo e crtico que fortalecesse o compromisso da educao integral com a justia, a democracia e a incluso social.

  • 13

    GT1

    Cidade e Territrios Educativos

    Coordenao: Prof. Juarez Melgao Valadares

    (FaE/UFMG)

    Essa temtica destina-se a relatos e trabalhos que pesquisam e discutem a reinveno dos lugares e espaos utilizados pelos estudantes

    na educao integral: os novos usos do espao escolar, o bairro

    como territrio educativo, a cidade como espao de aprendizagem. O

    nosso olhar se volta para o potencial educativo dos territrios e suas

    interaes com o currculo escolar.

  • 14

  • 15

    A cidade do patrimnio e a infncia: o programa Mais Educao/PME e a experincia participante sob uma perspectiva de conflitos corporais na cidade de Pelotas (RS)

    Daniela Lopes de Carvalho | IGC/[email protected]

    Luciana Terra Manzan Queiroz | IGC/[email protected]

    Sidney Gonalves Vieira (Orientador)UniversidadeFederal de Pelotas

    [email protected]

    Resumo

    A inteno deste artigo refletir sobre as relaes socioespaciais e culturais das crianas do ensino fundamental (2 a 5 ano) da Escola Municipal Carlos Laquintinie quanto esttica patrimonial da cidade de Pelotas, Rio Grande do Sul, na qual a escola reside, e sua interferncia paisagstica na percepo temporal da cidade, pelas crianas, enquanto palco de conflitos estticos. O trabalho gira em torno das experincias cotidianas na escola mediadas pelas alunas de graduao da UFMG Daniela Carvalho e Luciana Terra, enquanto estiveram em Mobilidade Acadmica. Essas vivncias foram materializadas a partir de atividades ldicas e artsticas com os alunos atravs de oficinas que giravam em torno da discusso sobre a cidade, principalmente enquanto cidade do patrimnio, instigadas pelo Programa Mais Educao, que uma estratgia do Governo Federal de induzir a ampliao da jornada escolar nas redes estaduais e municipais de

    1. Graduanda em Geografia Licenciatura (IGC/UFMG).

    2. Graduanda em Geografia Licenciatura (IGC/UFMG).

    3. Professor Ps-Doutor do Departamento de Geografia da Universidade Federal de Pelotas (RS).

    1

    2

    3

  • 16

    educao, bem como aprimorar a organizao do currculo, na perspectiva da Educao Integral.

    Os corpos dessas crianas, na medida em que vivenciam a cidade, escrevem nela sua prpria memria, em variantes que independem do conceito de Patrimnio Histrico-Cultural, onde acabam por contemplar patrimnios criados pelos prprios alunos numa relao mais afetiva e subjetiva do que quando so dispostos frente a patrimnios institucionalizados. Essa relao entre o valor da memria e a histria tambm incorpora nosso relato, no momento que se pauta para quem serviria ou para qu se serve o Patrimnio Histrico-Cultural de uma cidade, na medida em que se indaga como a educao patrimonial deve ser incorporada nas instituies de ensino pblico para que os sujeitos no fiquem merc de exaltar smbolos e simbologias do passado sem uma postura crtica diante das intervenes urbanas, alm de buscar a valorizao das singularidades locais percebidas e valorizadas pelo prprio sujeito.

    Assim, estabelecem-se, sobretudo, identidades complexas no espao urbano. Salienta-se uma preocupao em evidenciar o cotidiano espontneo dessas crianas que esto, em sua maioria, em situao de vulnerabilidade social. Alm disso, buscamos vivenciar e perceber significados exprimidos no cotidiano da Escola enquanto lugar de tempo integral e os meandros que esses sentidos propiciam na formao humana das crianas.

    Palavras-chave: Infncia, Corporeidade e Patrimnio-Histrico.

    1.Cidade e infncia: as relaes corporais com os espaos

    na infncia que o nosso corpo estabelece o primeiro contato com o corpo do mundo, sendo esse contato, exprimido em diversas corporeidades. Refletimos aqui sobre corporeidade, quando indagamos as prticas urbanas vivenciadas pelo corpo e relacionadas s nossas experincias, ou seja, nossa trajetria contada em nossos meandros corporais. As vivncias

  • 17

    propiciadas pela e com a rua, principalmente na infncia, nos possibilita memrias coletivizadas que por sua vez, constri nossos caminhos e nos formam enquanto sujeitos do mundo.

    A cidade lida pelo corpo como conjunto de condies interativas e o corpo expressa a sntese dessa interao descrevendo em sua corporalidade, o que passamos a chamar de corpografia urbana. A corpografia uma cartografia corporal (ou corpo-cartografia, da corpografia), ou seja, parte da hiptese de que a experincia urbana fica inscrita, em diversas escalas de temporalidade, no prprio corpo daquele que a experimenta, e dessa forma tambm o define, mesmo que involuntariamente o que pode ser determinante nas cartografias de coreografias ou carto-coreografias. (JACQUES, Paola Barenstein, 2007).

    As marcas deixadas pela nossa trajetria na infncia circunscrevem direta ou indiretamente nossos caminhos ao longo da vida. Contudo, quando relacionamos esses viveres ao contexto de Lugar - categoria geogrfica que possibilita uma sensibilizao sobre nossa vivncia afetiva com o espao, no sentido de uma relao intrnseca entre o lugar vivido e o nosso lugar de dentro, afetuoso - compreendemos que a esttica nos espaos, os seus mecanismos de construo, sua histria e as relaes que se estabelecem neles, modificam, evidentemente, essas marcas individuais ou coletivizadas pelos sujeitos.

    Por sua vez, o lugar, onde a vida acontece, o acontecer da histria, onde se d a existncia do mundo. Os acontecimentos histricos e existenciais do mundo decorrem da presena ativa do corpo nos lugares. O lugar , portanto, lugar-corpo. Por isso, quando se busca retirar de um lugar essa condio, isto , quando os sentidos que assim o qualificavam ficam esvaziados, h um prejuzo na qualidade do espao. Esse deslocamento pode, sobretudo, se dar pela via simblica, por meio de recursos estticos, atingindo e subvertendo usos. (HISSA, Cssio; NOGUEIRA, Maria, 2013, p. 64).

    Sendo assim, percebe-se uma ponte, que no s de passagem, mas de uma relao entre o corpo do sujeito em

  • 18

    construo e o lugar-corpo, que se imprimem simultaneamente em significados.

    1.1 A cidade gua

    Contamos nossa experincia participante, inspiradas por algumas crianas de Pelotas - cidade histrica, fundada em 1812 com o nome de Freguesia de So Francisco de Paula situada no sul do Rio Grande do Sul, de porte mdio, com cerca de 300.000 habitantes, palco de situaes climticas extremas e taxas altssimas de umidade, localizada envolta de um corpo hdrico que se confunde com o mar (no que no se enxerga seu fim no horizonte), mas se apresenta como laguna, e ainda chamada de Lagoa dos Patos pela maioria da populao.

    Os habitantes convivem ainda com o Canal So Gonalo , rio que margeia a regio do bairro Porto de Pelotas que faz fronteira com o centro da cidade, alm de ser o local onde residem em sua maioria, as crianas do Projeto Mais Educao. Esboaremos mais sobre o projeto e as crianas nos prximos tpicos do artigo, porm no possvel no cit-las, pois, referenciam nosso olhar em todo o processo de escrita.

    O Porto de Pelotas e todos os outros Portos possuem caractersticas comuns, principalmente no que tange ao sentimento de passagem que eles proporcionam. O Porto

    Figura 1. Mapa de Pelotas, localizao do bairro Centro e Porto.

    4

    4. A Laguna dos Patos um grande corpo hdrico com 10.144 km e 265 km de extenso mxima, localizado no litoral sul do Rio Grande do Sul, Brasil, pertencente Plancie Costeira do Rio Grande do Sul. Esta grande laguna o mais importante corpo aqufero da Plancie Costeira com predominncia de gua doce, mas com salinizao no vero.

    5. O Canal So Gonalo estende-se atravs de uma plancie sedimentar de formao recente (Holoceno), com um curso particularmente sinuoso. Possui uma extenso de 75 km, com larguras variveis em torno de 200 metros e profundidades tambm variveis, numa mdia de 6 metros.

    5

  • 19

    um lugar, em sua essncia, de vivncias de passagem, de abertura s novas vistas, novas margens, de novas possibilidades. um lugar potico em sua natureza, carregado de subjetividades. No entanto, a regio Porturia da cidade da Laguna tem singularidades que instigam nossas reflexes, pois ao adentrarmos em suas reas, notamos um sinal evidente de esvaziamento. Vazio de circulao de pessoas, de mercadorias, de novidades. E suas arquiteturas histricas, com casas,

    galpes e prdios abandonados, instigam ainda mais esse carter nostlgico do lugar. claro que essa falta de vida muito se d a reduzida utilizao do Porto, porm no somente, pois, trata-se de um descaso das autoridades, principalmente no que se refere populao residente ali, que em sua maioria so de camada popular.

    Do porto ao centro, v-se um abismo invisvel, subjetivo, ao passo que verbalizado pelos sujeitos que ali escrevem diariamente seu corpo na histria. A regio porturia faz parte de um processo longo de segregao scio-espacial contraditrio, pois foi a primeira regio habitada da cidade, e mesmo o local passando atualmente por um processo de ressignificao e revalorizao dos seus patrimnios, pela interveno da Universidade Federal de Pelotas e grupos privados, ainda assim configura-se uma rea hoje abandonada e manifesto de uma segregao aparente. Essa segregao visvel no s na precariedade das estruturas

    Figura 2. Fotos da regio porturia de Pelotas. Fotos: Lucas Panitiz

  • 20

    (saneamento, pequenos aglomerados de casa), mas pela maioria negra e parda que habita as regies mais precrias do Porto .

    Em nossas primeiras conversas com as crianas da escola Carlos Laquintinie, situada na rea Porturia de Pelotas, j podia se perceber na oralidade de suas falas, uma bem desenhada conscincia do papel do porto na configurao da cidade. A p, do porto ao centro, 10 minutos bastavam, mas da forma como os alunos expressavam, esse tempo parecia mais longo, de uma realidade distinta de um lugar para o outro:

    No comprei ainda o material, minha me s vai no centro no final da semana.

    Professora, faltei de aula porque fui no centro ontem.

    No sei do que voc fala, porque quase no vou ao centro.

    Esse retrato fica ainda mais marcado quando andamos pelos dois bairros em questo, e verificamos as relaes entre a histria, revivida em sua arquitetura, e os seus moradores. H pela cidade, principalmente nos caminhos entre o Centro e o Porto, uma enorme vida histrica, desenhada nos prdios e das casas de estilo ecltico, em sua maioria tombados desde 1955 (rodap), e recontadas pelos seus moradores mais antigos. O que chama ateno exatamente a apropriao do tempo passado por alguns e o desengajamento que outros possuem ao se manifestarem frente s construes histricas. Evidentemente, essas contradies so congruentes s classificaes econmicas da populao e das possibilidades de se reconhecerem nesses espaos. Esse distanciamento no somente fsico, mas ideolgico das prprias crianas nas quais vivemos a experincia no Programa Mais Educao, em relao aos intitulados Patrimnios Histrico-Culturais da cidade, nos fez reinventar novos conceitos e questionar as experincias corporais conflitantes na cidade do patrimnio.

    6. Segundo o jornal regional, Dirio Popular, os dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica (IBGE) mostram que se h uma cidade no interior do Rio Grande do Sul que merece o ttulo de cidade negra, esta Pelotas. Com uma comunidade formada por 51.567 pessoas o municpio possui a maior populao absoluta de negros ou pardos do estado, com exceo de Porto Alegre.

    6

  • 21

    2. As crianas da Escola Municipal de Ensino Fundamental Carlos Laquintinie e o projeto Mais Educao

    Nos intervalos escolares, enquanto a sala dos professores soa um silncio agonizante em meio aos sons da televiso, no pequeno ptio da escola as crianas se agrupam em hierarquias - idades, gneros, renda ao mesmo tempo em que se conhecem e se relacionam entre o bairro Porto e suas histrias de vida. (Luciana Terra)

    Fundada em 07 de setembro de 1922, a Escola Municipal Carlos Laquintinie localizada na regio porturia de Pelotas, instalada em um prdio histrico da cidade, cuja arquitetura se harmoniza com os prdios ao seu redor, formando um pequeno circuito quanto possibilidade de se enxergar o passado. O espao interno da escola tmido, e a medida que se adentra o local via um longo corredor, perceptvel que o prdio histrico no acomoda com conforto os sujeitos que ali atuam, porm o pequeno espao torna-se grandioso quando o percebemos como um lugar de trocas de saberes que ali construmos junto as crianas do PME.

    Figura 3. Mapa Escola Carlos Laquintinie para orientao do pblico na Exposio Eu e o Mundo.

  • 22

    O Projeto Mais Educao foi implantado na escola Laquintinie em agosto de 2013, incorporando ao cotidiano das crianas mais tempo-espao dirio, por meio de aulas ligadas a artes em geral (desenho, pintura, dana, stencil, graffitti) e educao fsica, ainda que, para o ltimo, as instalaes da escola Laquintinie s conseguem abarcar esportes de pequeno porte, dado ao pequeno tamanho do ptio escolar. Programas como o Mais Educao:

    (...) coincidem na oferta de mais tempo-espaos de educao para as infncias e adolescncias populares. Mostram a conscincia poltica de que ao Estado e aos governos cabe o dever de garantir mais tempos de formao, de articular os tempos-espaos de escolarizao com outros tempos-espaos de seu viver, de socializao. Programas que ampliam o dever poltico do Estado e do sistema educacional. (ARROYO, Miguel, 2012).

    De modo que esse tempo a mais de socializao disponibilizado na escola abre portas para trocas antes no vivenciadas para todos os sujeitos que escrevem sua performance na escola, bem como para a comunidade em geral. Esse novo tempo-espao permitiu uma aliana, por exemplo, da nossa vivncia, alunas de geografia UFMG em Mobilidade Acadmica na UFPEL com experincia de outrora em artes visuais, com a escola Carlos Laquintinie, e continua a experienciar com a entrada de mais dois monitores-professores da escola de artes da Universidade Federal de Pelotas. Alm de propiciar aos pais dos alunos e comunidade em geral, participao nos diversos encontros e eventos construdos por esses profissionais juntamente com a coordenao do PME e diretoria.

    Figura 4. Ao lado esquerdo da foto v-se Escola Carlos Laquintinie. Foto: Luciana Terra

  • 23

    O PME na escola Laquintinie, atualmente coordenado e apenas possibilitado devido ao modo plural e inclusivo que a profissional Ventania trabalha - nomeamos em homenagem fora da mesma e aos ventos caractersticos do clima de Pelotas se concentra nas crianas que necessitam de mais tempo na escola, poucos estes por obterem dificuldades cognitivas e estarem em processos de reforo escolar, muitos por necessitarem de um tempo maior longe de casa, dado s realidades que deixam esses sujeitos em extrema vulnerabilidade social, ou melhor, por enfrentarem condies de injustias sociais.

    A escola Carlos Laquintinie se desenrola em fios bem prprios, principalmente no que tange a sua lgica propiciada por ser uma escola de tempo integral, que surge como um espao de vivncia durante a maior parte do tempo desses alunos. Ventania, assim que chegamos escola, nos contou de forma bem informal, em conversas pelos corredores, um pouco sobre a histria de cada aluno participante do PME, e os problemas que eles enfrentavam em seus contextos familiares. As histrias no eram fceis de serem escutadas. Doa a dor de cada um. Assim, nossa vontade aumentava ainda mais, de comear ali um projeto realmente transformador e que significasse algo para eles, alguma coisa que houvesse um reconhecimento pelas crianas. Fora o desejo, obviamente, de fazer parte de um processo de formao de sujeitos que transbordavam potencialidades.

    Nossos palcos de processos criativos e de inspirao, dentro das oficinas de arte, na qual ministramos, foram duas salas pequenas: a sala do Projeto Mais Educao que mais pra frente apelidamos de sala Rascunhos e a sala de artes da escola que tambm apelidamos de Cidade. Criamos nestes espaos, com ajuda de Ventania, e da gesto em si da escola, em termos de materiais, um cantinho interessante para se viver arte, claro que dentro das limitaes que a prpria escola havia, tanto estruturais, quanto do prprio entendimento da importncia de se reinventar novidades.

    Os momentos do programa/oficina eram divididos entre tempos em que os alunos no estariam em seus momentos escolares regulares. Desse modo, segue-se a idia de que ao invs de estarem sofrendo dificuldades em casa ou na

  • 24

    rua, estariam conosco trabalhando em projetos artsticos. As turmas eram divididas por anos escolares, portanto, 1, 2 e 3 ciclo, ou seja, dividamos os momentos dessa forma: 1 ano, 2 e 3 ano, 4 e 5 ano e 6 ano. Os alunos de anos escolares acima, se distribuam em trabalhos ligados a educao fsica nos momentos do Mais Educao. Ento, a escola seguia essa rotina, de segunda a quinta, dias em que aconteciam os projetos. No podemos deixar de exprimir a enorme admirao que sentimos em relao merendeira da escola, que contribua para que as crianas pudessem permanecer em trabalhos escolares, e se alimentarem da melhor forma possvel, mesmo com todas as dificuldades de se cozinhar diariamente com pouqussimas variedades de alimentos. Muitas daquelas crianas esperavam ansiosamente pela alimentao, que freqentemente, poderia ser a nica do dia.

    O processo de pensar e planejar o que exploraramos em nossos trabalhos com as crianas foi de fato, difcil, porm, enriquecedor. O planejamento, juntamente com a metodologia necessita evidentemente, estar diretamente relacionado s vivncias no cotidiano dos sujeitos nos quais ir se relacionar, sobretudo quando se trata de um movimento mais livre e menos fechado que so as oficinas. Queramos explorar as diversas angstias e os conflitos corporais vivenciados em uma cidade como Pelotas, atravs da arte, da inspirao e do processo de criao em espaos de liberdade. O fato de estarmos em duas nos momentos das oficinas, propiciava possibilidades de experimentar mais, arriscar trabalhos que necessitavam de um acompanhamento mais individualizado das crianas.

    Dessa forma, a escolha dos temas a serem abordados com as crianas foi se consolidando ao longo de trabalhos iniciais que desenvolvemos com eles, sobretudo, a partir de uma tentativa de reconhecimento do eu de cada um e do outro. Inicialmente, os trabalhos que realizamos foram no intuito de favorecer o pensamento coletivo e crtico sobre o outro e a sociedade, a escola, atravs de desenhos, pinturas e a prpria exposio verbal, que favorecia uma interlocuo dentro do espao-tempo nos momentos das oficinas. Alm disso, a construo de um pensamento crtico fomentava cotidianamente um fomento de

  • 25

    corporeidades dentro e fora da escola. A princpio sofremos certa resistncia das crianas, o que consideramos natural, via o prprio histrico de abandono que eles possuem no contexto familiar e na prpria escola. Pensavam e chegaram a verbalizar que seramos as prximas que mais cedo ou mais tarde iriam embora, e os deixariam. Tnhamos que conquist-los e mostr-los que no importasse o tempo que estivssemos com eles, esse tempo seria grandioso e repleto de carinho, afeto e aprendizado.

    A idia de construirmos nossos trabalhos dentro da perspectiva de conflitos corporais entre as crianas e a cidade, sendo Pelotas uma cidade de Patrimnio Histrico, se deu a partir dessas primeiras atividades que realizamos, pois foi um trabalho de percepo das demandas e das angstias dos meninxs, que por sua vez, nos proporcionou questionamentos, principalmente por esse ser um dos principais motivos pelo qual realizamos nossa mobilidade para a cidade. Alm disso, houve o intuito de vivenciar na Universidade Federal de Pelotas e nas ruas, como se dava a concepo de Patrimnio, nos contextos das cidades urbanas, e como exprimem as corporeidades estabelecidas atravs dessas relaes.

    Nesse sentido, como num toque do destino, nos ltimos seis meses de nossa experincia na cidade, atravs da participao no Programa Mais Educao, compreendemos que Pelotas mais do que nunca, se encontra no somente como reflexo de um tempo passado, memorizado em sua arquitetura, mas encontra-se num tempo presente tambm, em cada criana, sujeito no qual convivemos.

    3. Duas mineiras pisando em terras planas

    Caminhar por Pelotas no tarefa difcil, vide que a cidade se situa numa plancie costeira e suas ruas largas so excelentes para passeios a p e de bicicleta, meio de transporte, alis, que utilizamos durante o tempo que vivenciamos o local. As ruas em paraleleppedo trepidavam no s o volante do nosso meio de transporte, mas nos transportavam para outra poca,

  • 26

    tempo de um presente latente em experincias novas, misturadas a estruturas fsicas de outrora, paradas no tempo; patrimnios histricos circunscritos por toda a cidade.

    Casares transformados em museus, teatros, bibliotecas pblicas. Um calado no centro da cidade onde carro no permitido - nesse momento tudo agua nossa percepo - s se escuta o barulho dos passos e conversas entre as pessoas; o cheiro dos crepes e de um patrimnio possvel de se deslumbrar tambm com o paladar: os famosos doces de Pelotas, que junto ao patrimnio histrico-arquitetnico, atrai o turismo para regio. O doce figura numa zona de importncia enraizada, onde formigas feitas de concreto se espalham pela cidade e so smbolos da maior feira cultural de Pelotas: FenaDoce.

    Assim que chegamos a Pelotas, e logo depois num movimento mais intenso, quando comeamos a ministrar oficinas s crianas do PME, a FenaDoce era abordada diante de muita ansiedade pela sua espera, alm de salientar um de seus patrimnios evidenciados nesse grande evento anual. Ao passo que como duas recm-chegadas, ainda que j na cidade h alguns meses - carregadas de uma vivncia que no aquela - nossa expectativa foi na direo do que conhecamos, e se aproximou de outros eventos pblicos, principalmente no que se relacionavam com os festivais das cidades histricas de Minas Gerais, como em Ouro Preto, Tirandentes, So Joo Del Rey. A FenaDoce se aproximou e propagandas alardearam a grande feira doce e de artesanatos de todo o Estado do Rio Grande do Sul, mas para nossa surpresa, o evento aconteceu longe do centro da cidade, sem aproveitar quaisquer esttica patrimonial espalhada pelas diversas regies da cidade, e localizando-se na sada de Pelotas, num grande ambiente fechado, onde s adentrava quem pagasse, e alm da entrada, qualquer pensamento de consumo, at no que se relacionava a shows e interpretaes mltiplas, eram taxados.

    Na escola Carlos Laquintinie, este evento foi tratado com prioridade, com seu ambiente interno decorado em meio a quindins de isopor e pinturas de formigas espalhados pelo corredor da escola, no que foi nesse, o primeiro momento

  • 27

    em que o patrimnio cultural foi abordado pela instituio . A prefeitura disponibilizava apenas 1 nibus para que toda escola participasse da Fena, e como o contingente de alunos era superior ao nmero de assentos, foi adotado pela diretoria uma espcie de meritocracia aos alunos: s visitaria a feira os alunos considerados os melhores (melhores notas), numa postura socialmente desagregadora e desmotivadora, causadora de desconforto entre as crianas e no ambiente escolar em geral. Os questionamentos provenientes desse cenrio foram iminentes: seria Pelotas uma cidade que socializa seu patrimnio cultural? Existe algum papel socializador desse patrimnio? Talvez no que diz respeito a mexer com os sentimentos dos sujeitos, e faz-los esperar por um evento onde poucos podero de fato usufruir, diramos que um papel que escancara o modo como as prticas pblicas so confundidas, atreladas, com o setor privado em Pelotas, espalhando a desigualdade na cidade.

    No nosso percurso de turista, os museus gratuitos na Praa Coronel Osrio era uma realidade cristalizada, mas no nosso cotidiano como moradoras e professoras nas oficinas de arte da Escola Carlos Laquintinie, a gratuidade na entrada dos casares era um pormenor, dado que a dificuldade de acesso das crianas era caracterizada por um no pertencimento do lugar. Nenhum dos nossos alunos havia entrado nos casares abertos ao pblico da Praa Osrio; um dos cartes postais da cidade, que as crianas tiveram grande dificuldade de reconhecimento quando pedimos para que identificassem uma fotografia area do local.

    De acordo com Leite (2004), os centros histricos que passam por processos de gentrificao so objetos de polticas urbanas e culturais que buscam recuperar seu patrimnio cultural para torn-lo passvel de reapropriao por parte da populao e do capital. Apesar dessas localidades serem dotadas de grande capacidade de convergir sociabilidades pblicas, geralmente so segmentadas tendo seu uso voltado para camadas mais elitizadas, como o uso extensivo do lazer e do turismo. (LEITE, Rogrio P. apud TEOBALDO, Izabela Naves Coelho, 2010, p. 144).

    7. Segundo a coordenao do Programa Mais Educao da Escola Carlos Laquintinie, no h nenhum projeto regimentado, no que tange educao patrimonial na escola.

    7

  • 28

    Pelotas vive em meio s redues de IPTU para quem manter a fachada preservada como poltica patrimonial, a elitizao do antigo carnaval de rua cada vez mais modificado e engaiolado pela prefeitura e o esvaziamento da cidade via polticas pblicas de revalorizao urbana (como a retirada dos comerciantes locais e taxao absurda nas lojas do mercado pblico da cidade) ou esvaziamento do movimento dos corpos pela cidade nos finais de semanas e feriados, em uma cidade repleta de grandes praas abertas. Quando perguntamos as crianas do PME, em uma segunda-feira, qual foi o programa do final de semana, frequentemente nos respondiam:

    No fiz nada, s fiquei em casa.

    Assisti televiso.

    Andei de bicicleta no passeio de casa.

    Portanto, o no viver a cidade se esbarra no no pertencimento nela, sobretudo, mostra que em uma cidade marcada pelo patrimnio histrico como Pelotas, a importncia de se conservar uma histria que simbolicamente, nada tem a ver com a corporeidade dos sujeitos que nela habitam, pode contribuir com a segregao e gentrificao de determinado ambiente daquele espao. Deborah Nuez (2011) chama ateno para a restrita quantidade de fontes com bom contedo sobre Educao Patrimonial, onde a produo de um texto no que se embasa junto s referncias bibliogrficas, perde em discusso e novidades por se repetirem demasiadamente nos escritos relacionados educao patrimonial. Junto a essa questo, se costura tambm a necessidade do cuidado em como esse tema ser repassado, para que no se caia na armadilha de valorizar o patrimnio rumo gentrificao, fortalecendo ainda mais a idia dos espaos histricos se tornarem novos focos da especulao imobiliria visto locais que j foram comprometidos e completamente modificados graas revitalizaes e valorizao do patrimnio, como no Pelourinho, BA, e em Fortaleza no Centro Drago do Mar.

    8. Dissertao de mestrado Educao patrimonial nos bastidores do processo. A formao dos agentes multiplicadores e as metodologias de ensino aplicadas na apreenso de bens culturais: O caso de So Joo Del-Rei/Minas Gerais.

    8

  • 29

    4. Conflitos corporais-sociais na cidade de Pelotas. Como esses conflitos foram exprimidos no contexto das oficinas do PME?

    A criana que fui chora na estrada. Deixei-a ali quando vim ser quem sou;

    Mas hoje, vendo que o que sou nada, Quero ir buscar quem fui onde ficou.

    Ah, como hei-de encontr-lo? Quem errou A vinda tem a regresso errada.

    J no sei de onde vim nem onde estou. De o no saber, minha alma est parada (...)

    (Fernando Pessoa)

    Tendo em vista as questes conflitantes j comentadas nos tpicos anteriores, que se manifestam ao vivenciarmos um cotidiano na cidade de Pelotas, essas se tornavam cada vez maiores, na medida em que nossos trabalhos com as crianas do PME iam se costurando nas experincias entre o corpo e a cidade. O no reconhecimento do corpo desses sujeitos, relacionados ao corpo urbano, esttico, da cidade, possibilitava compreenses fortes sobre o questionamento das identidades construdas em termos de coletividade e cultura. No havia por parte das crianas a concepo de cidade, atrelada a prpria cidade em que eles viviam. Isso se mostrou principalmente nos trabalhos artsticos que desenvolvemos que buscavam instigar perguntas diversas sobre Quem sou eu? Quem minha cidade? Quem sou eu, em minha cidade?. Percebamos que quanto mais travamos o caminho da busca pelo passado, atravs da esttica de Pelotas, mais afastvamos de um encontro com a verdadeira identidade das crianas de camada popular da cidade.

    Alguns trabalhos que construmos juntamente com as crianas do 2 ao 5 ano foram pontuais para que pudssemos ampliar debates nos momentos das oficinas. Em especial uma atividade de pintura em papel, na qual pedimos s crianas que pintassem ali a viso delas de cidade, nos trouxeram fortes indagaes, pois quase no se viu no trabalho, elementos ligados

  • 30

    ao patrimnio histrico, que base da viso da cidade de Pelotas. Embora, tenham aparecido em todos, elementos urbanos que de fato v-se em Pelotas, como automveis, placas de sinalizao, o que predominou nas artes pintadas pelos meninxs, foram grandes prdios (arranha-cus), grandes avenidas, indstrias, elementos estes, que associamos as grandes metrpoles, mesmo que se tenha, evidentemente, em cidades de porte mdio, como no caso das que eles residem. O que queremos dizer que chegamos concluso de que a concepo de cidade que as crianas da E.M Carlos Laquitinie possuem, muito est associada s grandes metrpoles, mesmo que a maioria delas nunca tenha conhecido alguma. Os elementos histricos da cidade de origem deles, quase que no aparecem nos trabalhos. Refletimos que esses fatores dar-se-ia pela influncia da prpria mdia, mas tambm a falta de reconhecimento dos patrimnios da cidade, como de carter pblico e vinculado cidade e ao cidado.

    Figura 5. Pintura sobre cartolina realizada por uma criana da escola. Foto: Daniela Carvalho

    Figura 6. Pintura sobre cartolina realizada por uma criana da escola. Foto: Daniela Carvalho

  • 31

    Pensamos, aps os novos elementos que as crianas trouxeram nos trabalhos abordados neste tpico, que seria necessrio um profundo entendimento sobre a construo de uma sociedade e como se apresenta na esttica de um lugar, porm partindo de uma lgica do indivduo, esse plural, social e mediador de construes de identidades culturais, pois antes de no se reconhecer nos espaos de sua cidade, a falta de reconhecimento d-se principalmente em relao ao seu papel enquanto sujeito em sociedade. Foi dessa forma, que elaboramos juntos: monitoras-crianas, projetos artsticos que buscavam um relacionamento com o eu, e nesse sentido, questes como etnia, raa, gnero e famlia, estiveram no cerne das prticas pedaggicas trabalhadas. Escolhemos uma parte do nosso corpo humano- a face, pois ela traz uma simbologia importante quanto concepo de identidade, e, alm disso, atravs do nosso rosto que estimulamos corporeidades conectadas as nossas outras partes corporais.

    Realizamos diversas atividades que possibilitavam conexes entre os corpos das crianas aos corpos do mundo como, por exemplo, o exerccio com as crianas de se desenharem, da forma como so e em suas peculiaridades. Esse exerccio gerou em todos ns diferentes conflitos exprimidos nos trabalhos que ali se desenvolviam, sobretudo porque esse exerccio de se perceber e se sentir como sujeito no exercitado de forma a estreitar os laos entre o espao e os sujeitos. Problemticas relacionadas a conflitos tnicos estiveram presentes tambm, de modo que as crianas, em sua maioria negra (rompendo com a viso errnea de que no Rio Grande do Sul no h negros), no exploraram suas marcas faciais tnicas. O negro era sempre cor de pele (rosa) ou marrom escuro, os olhos castanhos, eram sempre verdes, os cabelos crespos, eram sempre lisos, com raras excees. A noo de reconhecimento social em termos do sujeito: pobre, cidado pelotense, ficou evidente, ao passo que ao discutirmos com eles os motivos pelos quais suas razes sociais no se encontravam nas feies desenhadas, findvamos sempre na falta de uma coletivizao identitria. A partir de incansveis discusses, refazendo os trabalhos, criando outros, e na medida em que o cotidiano das oficinas nos abraava, fomos realizando

  • 32

    processos de desconstruo de imposies estticas, e uma construo de uma pensamento crtico em relao a prpria esttica da cidade.

    Figura 7. Pintura sobre tela realizada pelas crianas da escola. Foto: Luciana Terra.

    5. Consideraes Finais

    Nosso maior comprometimento com a realizao desse trabalho foi deixar registrado, como uma marca no tempo, as diversas corporeidades exprimidas pelas crianas da Escola Carlos Laquintinie, em temporalidades tecidas pelas dificuldades em se manifestarem em meio s represses, inclusive estticas. Nas experincias participantes que tivemos com os sujeitos aqui evidenciados, nos foi dado como aprendizado a reflexo de que h conflitos corporais fortes entre o lugar e o corpo, principalmente quando no edificado um reconhecimento entre ambos, proporcionando enclaves sociais e novas perspectivas corporais nos espaos. Todos esses conflitos foram notoriamente vistos nos trabalhos realizados dentro dos tempos-espaos do Programa Mais Educao, e redimensionados em termos de construes de saberes sobre o nosso papel enquanto sujeito ativo na sociedade.

    Em meio s novas construes de valores, principalmente no que tange ao cotidiano proporcionado pelas relaes na modernidade, em um trabalho que realizamos com as crianas,

  • 33

    quando perguntamos a elas: o que voc considera como seu patrimnio histrico? obtivemos respostas interessantes, no sentido de que afirmava as indagaes que construmos coletivamente. As respostas foram muitas e em uma cidade com patrimnios histricos tombados pelo IPHAN , os verdadeiros patrimnios que se mostraram nos desenhos das crianas estavam relacionados ao cotidiano de cada uma, vivido efetivamente, e reconhecido como seu lugar afetivo ou um local de encontro, que pudesse ser eternizado. Nota-se na figura baixo os verdadeiros patrimnios de duas crianas: sua antiga casa e a pista de skate da praa.

    Figura 8. Desenho Meu Patrimnio, pintado por duas crianas do Programa Mais Educao.

    Referncias

    ARROYO, Miguel. O direito a tempos-espaos de um justo e digno viver. In MOLL, Jaqueline et al. Caminhos da Educao Integral no Brasil: direito a outros tempos e espaos educativos. Porto Alegre: Penso, p. 1-2, 2012.

    BARROS, Lnderson Antria; GONALVES, Sidney Viera; LIHTNOV, Dione Dutra. Anlise da percepo da paisagem na regio do bairro Porto na cidade de pelotas e as transformaes recentes produzida pela requalificao urbana. Universidade Federal de Pelotas, Pelotas, 2010.

    9. Instituto do Patrimnio histrico e Artstico Nacional.

    Fonte: Portal IPHAN.

    9

  • 34

    HISSA, Cssio Eduardo Viana; NOGUEIRA, Maria Luisa Magalhes . Cidade-corpo. Revista da Universidade Federal de Minas Gerais, v. 20, p. 55-77, p. 64, 2013.

    JACQUES, Paola Berensteisn. Corpografias urbanas o corpo enquanto resistncia. In: Cadernos PPGAU FAUFBA. Resistncias em espaos opacos. Ano 5, nmero especial, Salvador: 2007.

    NUNEZ, Deborah Coimbra. Educao patrimonial nos bastidores do processo. A formao dos agentes multiplicadores e as metodologias de ensino aplicadas na apreenso de bens culturais: o caso de So Joo Del Rey/Minas Gerais. Universidade Federal de Pelotas, Pelotas, 2011.

    TEOBALDO, Izabela Naves Coelho - A cidade espetculo. Sociologia: Revista do Departamento de Sociologia da FLUP, Vol. XX, 2010, p. 137-148.

    Webgrafia

    Instituto de Patrimnio Histrico Nacional. Disponvel em: http://portal.iphan.gov.br/portal/montarPaginaSecao.do;jsessionid=BDE19FA65F53325AA185F12CD8E19D8F?id=18108&retorno=paginaIphan. Acesso em: 20/09/2014.

    MILHEIRA, Rafael Guedes. A laguna dos patos como lugar de convergncia cultural e de histria de longa durao. Disponvel em: http://www.academia.edu/1761296/A_LAGUNA_DOS_PATOS_COMO_LUGAR_DE_CONVERGENCIA_CULTURAL_E_DE_HISTORIA_DE_LONGA_DURACAO. Acesso em: 01/10/2014.

    Prefeitura Municipal de Pelotas Rio Grande do Sul. Disponvel em: http://www.pelotas.rs.gov.br/politica_urbana_ambiental/planejamento_urbano/programa_centro/programa_centro.htm. Acesso em: 10/08/2014.

  • 35

    A rua como espao potencializador

    Fernando Hermgenes Aguiar da Silva

    Escola Municipal Domingos Justino de Andrade

    [email protected]

    Resumo

    O presente trabalho apresenta prticas em arte-educao envolvendo o contexto da rua como espao potencializador, realizado no Programa Mais Educao da Escola Municipal Domingos Justino de Andrade, em So Joaquim de Bicas/MG. Aborda o desenvolvimento da proposta da rua como espao possvel para experimentaes artsticas com alunos entre 8 e 12 anos de idade, por meio de imagens e relatos de experincias. Apresenta questes que envolvem as possibilidades de um fazer na rua num dilogo constante e proveitoso com este espao.

    Palavras-chave: Arte; Performance; Rua; Educao Integral.

    Introduo

    Incorporar a rua como um espao potencializador um convite para experimentaes nicas em arte-educao. Vivncias de ensino-aprendizagem que se permitem o espao da rua terminam por uma experincia rica em princpios colaborativos e envolvimento com o patrimnio e histrias locais. O momento da rua como palco/casa/sala de aula/tela/museu precisa acontecer constantemente: uma porta que se abre para viabilizar uma criao efetiva e inteiramente autoral, por meio da qual o aluno se expressa sem impedimentos e com fora, xtase.

  • 36

    O elemento crucial para a rua como um espao potencializador e, assim, espao positivo e possvel, a proposta. Sem uma proposta previamente elaborada e elaborada pensando no contexto local do aluno e suas possibilidades (tanto a do aluno quanto a do local), a rua pode vir a ser uma experincia negativa e, conseqentemente, ignorada, evitada. A proposta trata do tema a ser experimentado, do local e possibilidades deste onde a experimentao ir acontecer. Entender este elemento proposta e seu efeito o que prope o presente artigo.

    1. Da sala de aula a rua desafios

    A Escola Municipal Domingos Justino de Andrade est localizada no Bairro Farofo, em So Joaquim de Bicas/MG. Oferece aos alunos o Programa de Educao Integral Mais Educao, mantido pelo governo federal juntamente com o governo municipal; uma colaborao entre os dois poderes. O espao para a realizao das oficinas do Mais Educao neste bairro possui uma grande rea de campo e uma casa, pequena, na qual os quartos foram adaptados para a sala de aula. Esta uma realidade presente em muitos estabelecimentos pblicos educacionais no Brasil. A sala de aula, um espao que conseguia acomodar todos os alunos da turma, mas apertados, precisaria se expandir.

    Com este pensamento e inquietao, a rua me pareceu um espao possvel. Por possvel entendo que, apesar de todos os perigos e riscos que ela possa apresentar, como a movimentao de automveis, a rua poderia servir como uma plataforma para experimentaes em arte tendo locais especficos na sua extenso, como a calada ou a rotatria, alm de pontos de nibus.

    No Bairro Farofo, as possibilidades se abriram: a rua do Mais Educao neste bairro tem uma pequena extenso asfaltada e todo o resto, terra. No primeiro momento, quando percebi essa realidade, o desejo de estar com os alunos na rua de terra era o de desconstruir a idia da rua de terra como rua ruim, rua de pobre, rua sem nada. Estas so idias que sempre me incomodaram e a oportunidade de trabalhar e ativar esta rua me encorajaram a

  • 37

    sair pra fora. Contudo, como garantir que a experincia do fora oportunize uma aprendizagem real, que de fato envolva o aluno e o leve a pensar e questionar conceitos?

    Para tanto, elaborei uma seqncia didtica de arte contempornea tendo como referncia o artista alemo Martin Pfeifle. A interferncia provocativa e iluminada, com leve humor, que suas obras trazem ao espao me pareceu adequado ao processo de ativao do espao rua que eu desejava. Acima de tudo, a prtica artstica de Martin Pfeifle no ignora os elementos j presentes no espao, promovendo assim um dilogo entre obra e espao de maneira sutil e ousada ao mesmo tempo. Meu desejo no era levar os alunos para modificar o espao, mas sim interagir com ele e ativar todas as potencialidades adormecidas ali. Optei por uma experincia colaborativa/interativa com o espao e no mera interveno, pois tnhamos, neste contexto, muito mais a aprender retirando da rua do que colocando nele. Melhor ainda pensar que, partindo deste princpio, muito das nossas vivncias se deram utilizando apenas o corpo. O corpo presente e aberto ao espao um corpo atravessante e atravessvel.

    2. A proposta como eixo provocador

    Definir uma proposta foi o eixo central para a realizao deste projeto. A proposta envolve conversas sobre o tema, fundamentao terica e exposio das etapas de uma vivncia imaginada. Este momento sempre acontecia na sala e era o primeiro da aula: como provocar o aluno e instig-lo sem antes lanar sobre ele inquietamentos, questes? Lanar uma proposta lanar o desafio e no pode acontecer de maneira mecnica: a proposta surge e se materializa na conversa, na anlise em grupo, no pensamento livre, sem medo e/ou apesar dele. O professor precisa estar aberto ao momento da proposta, tanto no papel de quem prope como de quem vai vivenciar junto. Campos (2010, p. 23) defende que:

    Assim, para que a obra se manifeste, necessrio que o artista/propositor deseje para si um corpo aberto, estimule essa experincia, confronte-a, investigue-a. Somente a partir da relao com o outro e consigo mesmo esse corpo capaz de deglutir e digerir as

  • 38

    manifestaes mltiplas e efmeras que povoam realidades e virtualidades de um mundo mutante...

    Sem troca no momento da proposta, a experimentao pode ficar comprometida, uma vez que ali, no calor da conversa, que se percebe as potencialidades e possibilidades da proposta: minha proposta ocupar a rua, estar nela. Como perceber as possibilidades desta proposta sem antes dialogar com meu aluno sobre esta rua, sobre este ocupar, sobre estar presente?

    Como proposta, estar na rua exigiria o mximo de compromisso por parte dos alunos. Querendo ou no, a rua sim um lugar desafiador: em quantos lugares no se pode estar na rua por causa do trfico de drogas ou condies geogrficas, por exemplo? Estar na rua e se fazer presente nela no papel ativo do artista, do propositor e experimentador era uma idia inteiramente nova e provavelmente sem sentido para aqueles alunos. Para isto serve a proposta: uma apresentao dos desejos, uma troca de idias e acordos. ali, na proposta, que habita a fora e o sucesso de um projeto. E na proposta que se convence o aluno: convence-o a sair, a usar, a pensar, a imaginar, a mover e ser movido, a criar, a ser independente, ser ousado, a se lanar, a se permitir a presena do outro e se unir a ele pois no h motivos que me convenam a permanecer longe. Convencidos, os alunos se tornam autores/protagonistas da sua ao; concentram-se e ousam nas suas idias e desejos, tornam-se os novos propositores. Aluno que compreende a proposta e por ela conquistado faz-se presena responsvel, criativa, explosiva, potencial.

    Na proposta habita o convite ao, ao novo, caa de tesouros outros. Diante da turma, convenc-la das possibilidades da rua enquanto campo experimental afirmar que, da poeira cerca, do espinho aos cacos, todo espao espao para arte.

    3. A proposta em carne viva relatos de corpos sensveis na rua

    Inicialmente, experimentamos a obra do Martin Pfeifle em sala de aula. Essas experimentaes nos possibilitaram, antes de tudo, uma compreenso das mltiplas linguagens artsticas e o

  • 39

    uso de instalaes no espao que conversa existe entre obra e espao? Todo espao pode habitar uma obra? Uma obra pode habitar todo espao? Analisamos conceitos como espao, obra, performance, interao, interveno, experimentao. Esses momentos foram regados com conversa, sem a qual o trabalho em arte permanece vazio, falso e incoerente. Preparar os alunos para o espao da rua foi crucial, caso contrrio, estar ali com eles poderia ser um desastre. Uma vez convencidos pela proposta e empoderados pela experimentao em sala e pesquisa que resultou em conhecimento novo e provado, a rua tomou de fato um novo contexto e assim foi vivenciada. O sucesso da prtica na rua nada mais foi que um reflexo da proposta bem sucedida.

    3.1 The Splash e BrengBrang de dentro pra fora

    Duas experincias especficas ilustram bem a relao entre proposta-experimentao em sala-experimentao na rua. As obras The Splash, 2008 e BrengBrang, 2013, do alemo Martin Pfeifle, so exemplos de construes que saem da sala de aula e se esparramam na rua. Em The Splash, os alunos investigaram em sala padres geomtricos enquanto a obra em si brinca com a questo da ponta, das retas e do perfeccionismo a todo custo The Splash uma instalao em site-specific para uma praa em Tessalnica, na qual o artista cria um enorme desenho no cho em preto e verde, como mostra a foto a seguir:

    The Splash, Martin Pfeifle. Foto: Christoph Westermeier

  • 40

    Aps apresentar a obra, surgem as questes: como pode um splash, onomatopia comumente usada para designar algo lquido quando se esparrama adquirir exclusivamente pontas? E, sendo algo lquido, imagina-se um azul ou branco, mas o artista opta pelo verde. Essa quebra e jogo com o splash nos possibilitou uma trama de significados e dilogos. Criamos um jogo na sala de aula: coletivamente, marcamos as mesas da sala com durex azul criando um desenho em splash. Em seguida, marcamos alguns espaos com a folha verde, recortamos e pronto: um jogo de encaixe ou ainda quebra-cabea estava pronto. E ali, disponvel igualmente a todos. Este momento nos permitiu apossar de algo realizado primeiramente em um lugar to distante do nosso arte como canal de posse, de viagem, de protagonismo. O ato de olhar e olhar de novo e, partindo desse olhar, gerar em outro contexto.

    A ao posterior a investigao na sala de aula foi o convite para pintar a rua estender o splash da obra e da sala para um contexto ampliado e expositivo, a rua. Pintar a rua pensando nesse outro splash, um splash que desafia o entendimento comum e produz, a partir dessa confuso proposital, um dilogo persistente sobre os sentidos da arte e possibilidades de construo na mesma.

    Ketlen e Miriane pintam a rua. Foto: Fernando Hermgenes

  • 41

    Concluda a interveno na rua, que durou uma aula inteira, analisamos os registros de nossa ocupao e discutimos a obra em Tessalnica e a obra ali, a metros de ns. Os impactos das obras em seus dois momentos e a relao dele com dois pblicos diferentes. O ato de estar na rua e provocar nela uma alterao visual to gigantesca e impossvel de no ser notada. Arte que faz acessvel, disponvel, isenta de um preo, um ingresso. Arte para os olhos, arte para provoc-los a qualquer custo, sem, portanto, ofender, agredir.

    Tambm em BrengBrang existe a idia do jogo e o olhar expandido, que amplia as possibilidades do espao e o torna um mltiplo. Em 2013, o artista instalou numa praa em Amsterdam quadrados de lona nas cores azul e rosa em torno da mureta que contornavam as rvores. Assim, quando a pessoa passasse, ela poderia optar por ver tudo azul ou tudo rosa, dada a distribuio das cores nas muretas. BrengBrang acorda e convida o olhar uma praa que, de repente, se faz tabuleiro para um jogo ou ainda um viabilizador de discusses a respeito de gnero.

    BrengBrang, Amsterdam. Instalao de Martin Pfeifle. Foto: Christoph Westermeier

    Em sala, a conversa sobre BrengBrang habitou o campo do olhar e o novo olhar que a arte pode trazer sobre algo trivial

  • 42

    e cotidiano. A configurao de uma praa como espao de convivncia pode ser totalmente alterado a partir de uma instalao como esta, saindo do campo individual do espao praa para um entendimento ampliado do mesmo como um espao expositivo e para vivncia coletiva.

    No primeiro momento, construmos ns mesmos nossos BrengBrangs, na sala, desenhando para este os objetos aos quais gostaramos de acrescentar um novo olhar. Se as pessoas passarem por aqui, vo olhar (e de outra forma!) este objeto. O poder do uso e a presena da cor no espao tambm nortearam nossas experimentaes.

    E a rua, onde fica? A estrada de terra, quais outros olhares lhe so possveis? Carregados com o poder do olhar em BrengBrang, levamos para a rua nossas construes quadradas e instalamos por toda a estrada de terra em lugares aos quais desejaramos um olhar mais demorado, atencioso a idia de usar o que a rua tem, ativando o esquecido e apagado.

    Bruno instala seu BrengBrang em volta da rvore. Foto: Fernando Hermgenes

  • 43

    A instalao nos despertou outras inquietaes: como poderia o corpo, por si s enquanto material e presente no espao, possibilitar um outro olhar sobre a rua? Entrando no campo da performance, elaboramos uma ao, em outra aula, por meio da qual nosso corpo se fizesse BrengBrang e, conscientemente presentes na rua, ativssemos seu corpo por meio da ativao do nosso. Assim, decidimos por pintar nossos braos de azul e rosa, evocando o BrengBrang. No deixaria, portanto, de ser um trabalho em colaborao e coletividade, uma vez que o quadrado BrengBrang s poderia ser formado por 2 ou mais pessoas juntas.

    Esta presena coletiva de corpos vibrantes nos fez refletir sobre o corpo que passa e o corpo que altera, que acorda o espao. Estar na rua e agir com a rua, a partir dela. Um dilogo que no pode omitir ou ignorar a parte rua, bem como pressupor que a mesma nada tem. E com ela enquanto espao, suporte e material, que se pode alterar de fato e com valor, pois passa-se a olhar rua por si s uma potencializadora de experincias significantes.

    Em sentido horrio: alunos Arthur, Joo, Kelven e Thiago acrescentam cor e olhar rvore. Foto: Fernando Hermgenes

  • 44

    4. Acerca da cerca

    4.1 Enka territrios (im)possveis

    Outro processo especfico vivenciado dentro do pensamento norteador de que a rua um espao carregado de potncias se encontra na ltima vivncia realizada neste contexto no Mais Educao do Bairro Farofo. Ainda com Martin Pfeifle, investigamos sua obra Enka, 2012. Enka uma instalao feita com hastes de metal, ms e fitas de plstico coloridas na escala Pantone. Dela, os alunos extraram a idia da cerca; cerca esta que nos acompanhou em todas as nossas experimentaes na rua o Bairro Farofo predominantemente rural e os terrenos na rua onde experimentvamos era quase que inteiramente delimitados por cerca, contendo poucos muros. Entretanto, a cerca no nos impediu, em momento algum, de realizarmos nossas presenas no espao. Partindo desta convivncia pacfica e criativa com um objeto que carrega, historicamente, um sentido de separao social, violncia e aprisionamento, retornamos rua para discutir especificamente a presena da cerca e como ela notada/percebida.

    No apenas a cerca, mas tambm a rua, num contexto geral, espao impossvel no primeiro momento. Basta citar a rua e, geralmente, os professores so barrados em suas experimentaes. A rua perigosa, por exemplo, um discurso que precisa ser desconstrudo, uma vez que a sala de aula, por si s, no consegue atender s demandas de ensino-aprendizagem de um pblico to especfico como so os alunos de um contexto totalmente globalizado e digital. No se pode ignorar, claro, que determinadas realidades precisam ser observadas e a sensatez, pela segurana do aluno, a opo mais acertada. Da faz-se necessrio um diagnstico do local, de forma a agir em conjunto: a escola, a comunidade e poderes pblicos. O mais importante est em, uma vez na rua, haver proposta inteligente, sria e compromissada com as possibilidades dos alunos.

  • 45

    Enka, Martin Pfeilfe. Foto: Achim Kukulies

    O primeiro momento a proposta, os alunos se viram diante de muitos paradoxos: se a cerca na rua evita o atravessamento, a passagem, guarda um valor simblico e pode ferir um indivduo mais corajoso, a cerca em Enka mltipla em interao, um convite cor e, de forma expandida, ao corpo, que deseja o toque e o atravess-la. Questionaram-se ainda se, sendo a cerca da rua uma cerca-Enka, quais efeitos isto traria? Alterar o material/cor de um objeto altera sua percepo no espao? E como levar esta possibilidade rua?

    Percebemos que a cor seria fundamental. Ento, munidos de papel celofane e fitilho em vrias cores, nos presentificamos novamente para, partindo da cerca presente naquele espao, vivenciar uma experimentao que envolvesse a cerca em outro significado.

    Iniciamos estudando as cores no espao com o sol, percebemos que as mesmas eram amplamente refletidas no cho, pintando o espao. Essas cores... Trouxemos as mesmas

  • 46

    para nossos corpos, cobrindo-nos, vestindo-nos dos materiais selecionados.

    Do corpo cerca, retiramos os materiais que portvamos e instalamos ao lado de uma cerca, atravessando-a e dando mesma um efeito espelhado: outra cerca surgia paralela a original. Esta cerca, esta cerca-Enka, permitia o atravessamento livre, passagem, brincadeira... Nossa cerca nos convidava ocupao.

    5. A rua como espao potencializador

    O processo de pesquisa para a elaborao das propostas diversas realizadas durante estas aulas foi exaustivo e carregado de responsabilidade. Levar e estar com os alunos na rua exige ateno, responsabilidade e, acima de tudo, uma proposta bem elaborada e um convite inquieto, desafiador, carregado de desejo, f e curiosidade.

    Chegar neste local, no apenas o fsico, mas tambm o local onde se percebe os avanos e aprendizagens em cada aluno e em si mesmo, no foi e no fcil. Pensar e aceitar a rua como espao potencializador pede pacincia, apoio institucional e propsito este ltimo tpico inteiramente atrelado com a proposta.

    Estar na rua... Estar na rua preparar-se para uma chuva inesperada, um cachorro bravo que aparece do nada ou olhares de um pblico que antes no existia ponto interessante para relatar aqui: os atravessamentos na rua, realizados com uma postura sria e ao mesmo tempo livre, permeados por um pensamento coletivo que se aplica mesmo numa ao individual, tudo isso atrai um pblico que antes no existia. Pode ser o dono da mercearia ou qualquer loja na rua, o pai de um aluno que aparece pra ver e participar, o dono do lote ou um simples passante. Estes sujeitos, muitos deles por tempo considervel sem contato algum com uma manifestao declaradamente artstica, simplesmente param pra olhar, registrar, pedir pra fazer ou receber o produto das aes. Estes sujeitos tambm so convidados para assistir ou entrar ou ainda receber, de acordo com as possibilidades presentes em cada proposta. No se vai pra rua desejando um pblico ou por

  • 47

    causa dele. De repente, ele surge. E sempre bem-vindo. A interao com os transportes na rua, outro ponto

    alguns seguem como se no houvesse ningum, mas, na maioria das vezes, acontece at de motoristas parando e perguntando se podem passar por ali. Da, cria-se tambm uma cultura de valorizao ou reconhecimento dos processos artsticos pela comunidade, que presencia e ento respeita e reconhece o fazer artstico da escola. So carros que passam e buzinam ou motoristas acenando. Motos que desaceleram e, quase parando, observam nossas construes. Estas presenas tambm so acolhidas positivamente e acrescentam uma idia de misso e perigo ao processo artstico.

    6. Consideraes finais

    Tendo realizado este trabalho com os alunos durante quatro meses, pude aprender muita coisa que, de dentro da sala, impossvel ver, contemplar e aceitar. So realidades e possibilidades extremamente diferentes, ambas com suas especificidades. A rua como espao potencializador trata de descobrir na prpria rua, este espao totalmente fora, totalmente outro, possibilidades para uma aprendizagem efetiva. Cabe ao educador elaborar a proposta que dialogue com a realidade do seu aluno e o espao no qual esto presentes professor e aluno, espao este que ser utilizado para as experimentaes.

    Acredito que as tantas vivncias por ns levantadas colaboraram para, na prtica, descobrirmos o valor de um trabalho em arte-educao; valor este muitas vezes difcil de receber e encontrar. O olhar destes alunos sobre o espao e o objeto est preenchido de possibilidades e, sem dvida, potncia.

    Referncias

    CAMPOS, Wagner Rossi. Perpendicular: cenrio#ambiente. Belo Horizonte: Instituto Cidades Criativas, 2010.

  • 48

    ___________________. Perpendicular: casa e rua. Belo Horizonte: Instituto Cidades Criativas, 2010.

    ___________________. Perpendicular: Encontros na cidade. Belo Horizonte: Editora Quixote, 2013.

    MOLCHO, Samy. A linguagem corporal da criana. So Paulo: Editora Gente, 2007.

    SERVIO SOCIAL DA INDSTRIA DEPARTAMENTO NACIONAL. A arte contempornea em aes transversais com a escola: uma contribuio do Prmio CNI SESI Marcantonio Vilaa para as Artes Plsticas. Braslia, 2010.

    PFEIFLE, Martin. Ausstellungen. Disponvel em: http://www.pfeifle.de/ Acesso em: 20/10/2014, 09:00 horas.

  • 49

    Afetar a cidade: a experincia da formao de professores na educao integral e a incorporao de novos territrios educativos

    Alexandre Mauricio Matiello

    Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS)

    [email protected]

    Resumo

    A experincia aqui relatada aconteceu no mbito do curso de formao de professores da rede bsica de ensino fundamental Educao integral e em tempo integral: formao e acompanhamento da implementao nos municpios de Chapec-SC e Vitorino-PR, realizada em 2014 com o suporte do Programa Mais Educao (Ministrio da Educao), sob coordenao de professores de diferentes formaes vinculados UFFS (Universidade Federal da Fronteira Sul) Campus Chapec. Voltado para a formao de gestores e professores das redes pblicas municipais dos dois municpios, o curso buscou o compartilhamento de experincias, oferecendo ao pblico uma oportunidade para refletir e produzir novas alternativas pedaggicas e de gesto dentro da educao integral e em tempo integral. Dentre as oficinas, estava a de Cidade Educadora e Novos Territrios Educativos na Educao Integral, alm do acompanhamento de atividades propostas aos professores dentro deste tema. Aqui apresentaremos a abordagem desta oficina e seus resultados. No encontro de capacitao, problematizou-se sobre a determinao espacial versus o processo educativo, enfatizando os limites e possibilidades para a educao em tempo integral dentro do

  • 50

    espao escolar. Tambm foi questionado como a educao em tempo integral tem lidado com o espao extraescolar (entorno, bairro, cidade). Caracterizou-se o espao tradicional de ensino que predomina ainda hoje herdado das tradies arquitetnicas do sculo XIX no qual se destacava a dimenso panptica, aonde aprisionamento, vigilncia e controle eram tanto objeto quanto objetivo de uma educao disciplinadora e segmentada. Em oposio, os planos pedaggicos atuais, inclusive os que incorporam a educao integral, preconizam conceitos como transparncia, democracia e emancipao social, os quais contrastam diametralmente com o espao destinado s escolas. Posto o desafio do espao escolar e sua influncia sobre a formao integral, abriu-se caminho para a escola alm dos muros, ideia difundida pelo Movimento das Cidades Educadoras, enfocando-se os princpios defendidos pela carta deste movimento. Para este, h que se valorizar no somente as experincias dos espaos formais, como o caso da escola, mas tambm dos espaos no formais de aprendizagem, os quais juntos formam uma trama complexa de agentes educativos, que preza pela diversidade, pela convivncia intergeracional, pela transparncia da gesto e pela participao democrtica. O desafio para a constituio desta trama est em desconstruir preconceitos a respeito da cidade, comuns no ambiente intra-escolar, como o que considera que o espao da rua deseduca. Para que a cidade funcione como agente educativo nesta trama, a escola no pode estar de costas para ela. Pelo contrrio: precisa incorporar o binmio Educao/Territrio nos processos de formao integral. Neste sentido, a capacitao levou os professores a pensar na implementao de um pacto educativo de corresponsabilizao que envolva a cidade e a sociedade, as esferas governamentais e a escola, tendo esta ltima um papel de coordenao. Neste papel, a escola deve mobilizar redes de cooperao na cidade para ampliar o territrio educativo, conectando atores, espaos e instituies. Contra a diluio da experincia dos sentidos, a fragmentao dos saberes e a desterritorializao, a proposta lanada aos professores foi de elaborar um projeto para afetar a cidade, sendo a escola o polo coordenador desta atividade em que o

  • 51

    afeto se d no sentido tanto afetivo quando interventivo (onde afetar quer dizer interferir na cidade). A execuo das propostas contou com atividades artsticas em lugares urbanos residuais e plantio de mudas na vizinhana da escola, tendo conseguido mobilizar diferentes agentes e atender temticas transversais do currculo como a educao ambiental e a copa do mundo. O processo de ressensibilizao dos sentidos incluiu tambm uma sada de campo com os professores explorando novos territrios educativos e o registro fotogrfico de experincias sensoriais no seu percurso cotidiano.

    Introduo

    A Oficina sobre Cidade Educadora e Novos Territrios Educativos para professores e gestores atuantes no Ensino em Tempo Integral ocorreu no mbito do curso de capacitao Educao integral e em tempo integral: formao e acompanhamento da implementao nos municpios de Chapec-SC e Vitorino-PR. Com o suporte do Programa Mais Educao (Ministrio da Educao) e sob coordenao de professores de diferentes formaes vinculados UFFS (Universidade Federal da Fronteira Sul) Campus Chapec, o curso ocorreu durante o ano de 2014, e procurou acompanhar a implantao e a consolidao dos programas de Educao Integral na rede pblica destes municpios.

    Neste artigo, focalizaremos o primeiro municpio, onde as atividades j foram concludas, tendo atendido aproximadamente 75 professores da rede municipal num total de 192 horas de formao, das quais 16 horas foram empregadas na oficina que aqui relatamos, incluindo a problematizao, orientao s atividades e seminrio de socializao.

    A temtica desta oficina surge a partir do Caderno Territrios Educativos Para Educao Integral da Srie Cadernos Pedaggicos (MOLL, 2013) produzido pelo MEC, no qual, dentre as noes de Educao Integral, se prope a inovao no s em tempos, mas tambm em espaos. Possibilita assim o resgate de uma bagagem pessoal de

  • 52

    minha formao como arquiteto e urbanista, particularmente no campo do planejamento urbano, frente ao desafio da formao de professores. A metodologia empregada com os participantes do curso envolveu uma incurso s grandes utopias urbanas, passando pela problematizao acerca dos limites e possibilidades do espao escolar e a compreenso da cidade como um agente educador. Partindo da conceituao de cidade educadora, formulamos a proposta da construo de um pacto de corresponsabilizao no qual a escola seja protagonista na mobilizao de uma gama de agentes. A formao de uma rede de cooperao o pretexto para uma ressignificao da escola e de seu territrio, permitindo que pessoas, instituies e espaos formem conexes, permitindo o desenvolvimento de habilidades e interesses.

    As propostas lanadas aos participantes se concretizaram ao nvel de cada uma das trs escolas da rede, e uma vez executadas, so aqui avaliadas as implicaes para um projeto maior de Ensino em Tempo Integral, bem como para a ampliao dos espaos de aprendizagem para alm dos muros da escola. As experincias demonstraram que embora a cidade seja pequena, agentes diversos foram envolvidos, mas tambm revelaram limites de ordem institucional frente aos desafios de explorar novos territrios.

    A cidade (in)visvel e as utopias to distantes

    A abordagem quebra-gelo partiu do conto Zobeide do livro As cidades invisveis de talo Calvino. A partir deste texto, procurou-se fazer os participantes refletirem sobre sua experincia urbana particular, e sobre o dilema do ser humano, que pretendendo realizar seus sonhos na cidade, acaba criando para si mesmo as armadilhas cotidianas das quais precisa escapar.

    O nosso propsito com o texto traz consigo a provocao implcita, logo respondida pelos participantes, de que o ir cidade impe aos professores dos anos iniciais do ensino

  • 53

    fundamental muitos receios, que vo dos contraexemplos que a cidade d, passando pelos riscos segurana dos estudantes e pela trabalhosa operacionalizao de todas as atividades fora do espao escolar. A utopia do Ensino em Tempo Integral, iniciada h alguns anos naquele municpio, se v ento diante de mais um: o da cidade conhecida e o da cidade a descobrir.

    Na utopia da Babel bblica, os propsitos que uniram seus construtores foram se diluindo na experincia ordinria de sobrepor os tijolos. O castigo divino para a pretenso de atingir o cu foi a confuso lingustica. Em Vitorino, a Escola em Tempo Integral, requer dos envolvidos o constante resignificar, o preencher de sentido, o permanente dilogo que exercite a linguagem comum. Antes que o esquecimento dos sonhos leve, como em Zobeide, destruio de um sonho por outro sonho, e faa dela uma cidade feia, essencial que os que moram nela, que os professores de Vitorino resgatem seu senso esttico e de apreo pela cidade. Perseguir o sonho sim, mas no pelo perfeccionismo que degenera no seu contrrio, como na utpica Atlntida em que o zelo por sua justia elevou seu padro limite to alto que lhes causou a prpria runa. Ao possibilitarmos neste primeiro contato a discusso sobre as utopias distantes no intencionamos limitar os sonhos, mas superar a dicotomizao entre o real e o sonhado, aonde a utopia seria, como para Lefebvre (2000) , o espao possvel, a intermediao da ordem distante e da ordem prxima, onde espao concebido absorva o espao vivido.

    O territrio conhecido: a sala de aula e a escola como determinantes espaciais da formao

    A partir de questes como: i) De que maneira o espao em geral desempenha um papel educativo?; ii) De que forma o espao escolar educa?; iii) Quais os limites e possibilidades para a educao em tempo integral no espao escolar e iv) Como educao em tempo integral tem lidado com o espao extraescolar?, conduzimos uma problematizao com os participantes.

  • 54

    Entre os elementos insurgentes desta dinmica ficou evidente que a questo espacial embora ocupe centralidade em nossas falas, pouco aprofundada e debatida. A prpria generalidade do emprego comum do termo mostrou uma dificuldade dos participantes em entender que o espao tem uma dimenso essencial que material, fsica.

    Assim, o espao escolar aparecia nas falas para referir-se ao espao da discusso, das elaboraes pedaggicas, do cotidiano do processo de ensinar, mas desenraizado da sua materialidade. Na verdade, o espao foi entendido nos questionamentos como um recorte de tempo, seno como seu prprio sinnimo. Foi necessrio esclarecer bastante o grupo para que pudesse enveredar sobre a dimenso material do espao. A chegando, mais uma dificuldade em conseguir perceber como o espao poderia ser limite ou possibilidade para a Educao Integral, sendo que o debate circulava em torno dos prs e contras gerais da sua implantao, e quando muito, entendido e avaliado somente como o lugar que as oficinas do contra turno ocupavam no espao da escola.

    Na reflexo sobre o espao extraescolar, os participantes comentaram at mesmo que antes da implantao da Educao Integral, se costumava sair mais da escola. Contudo, ao longo da capacitao e orientaes s atividades posteriores oficina, evidenciou-se um considervel nmero de atividades fora da escola ou que traziam a cidade para a escola, mas que no foram rememoradas quando da problematizao. A nosso ver, isto demonstra a centralidade e fora do espao da escola dentro das narrativas dos processos de ensino e aprendizagem, de forma que aquilo que foge a ela, minimizado, subestimado e at esquecido. A sala e a escola aparecem como territrio conquistado, inquestionvel.

    Para trabalhar a desconstruo disto, providenciamos algumas imagens que poderiam ser comparadas: de presdios, hospitais e propositalmente, das escolas do municpio, para que se pudesse evidenciar algumas relaes. A medida de suas colocaes, fomos destacando o quanto aquelas arquiteturas eram determinantes para os comportamentos dos seus usurios

  • 55

    e como intencionalmente foram concebidas para influenciarem os comportamentos.

    Nosso entendimento de que a desconstruo do territrio conquistado da escola e da sala de aula seria ponto chave para que se construrem novos territrios educativos. Assim, fundamental levar os participantes a pensar que as semelhanas entre os espaos se davam em seu contedo, embora de usos diferentes. Herdeiras do que Bentham em 1785 nomeou como concepo espacial panptica, todas aquelas arquiteturas revelavam intenes como a disciplinarizao, a segmentao, o ocultamento e sobretudo, a vigilncia e o controle sobre os usurios (VIAO FRAGO & ESCOLANO, 2001), contedos que inclusive contrastam diametralmente com o que o discurso mais recente sobre as escolas, explcito na maior parte dos planos pedaggicos das escolas, nos quais se preconizam visibilidade, transparncia, democracia e emancipao social.

    Embora a discusso pudesse se encaminhar pela seara inspita e desalentadora da limitao que a escola tem para a implantao da Educao Integral, o reconhecimento da intencionalidade por de trs da concepo espacial que as escolas herdaram procurou alert-los que os processos educativos no precisam se restringir a este confinamento intramuros. Como diz Faria (2012, p. 107), A educao integral precisa da ampliao de tempos e espaos e de oportunidades educativas. Por isso ela no cabe s na escola. Ela precisa de toda a cidade. A mesma autora comenta sobre o que seria um anacronismo entre o avano das discusses no campo dos currculos, metodologias e no prprio campo da sociedade, que envolve professores, estudantes e pais e a estagnao no tempo nos ltimos 200 anos das escolas, que continuam as mesmas e iguais entre si.

    Moll (2013) tambm corrobora a ideia de que a arquitetura escolar tem um potencial pedaggico, seja para o bem ensinar ou para o mal ensinar, e que o espao contm um discurso subliminar que comporta tambm um currculo oculto. Neste sentido, afirmamos que no reconhecimento da intencionalidade do espao, desvelando o que est coberto, que adquirimos poder para resignific-lo, e assim, ao invs de apropriados

  • 56

    por ele, dele nos apropriamos, fazendo da escola que temos a prpria substancia para construir a escola como queremos:

    Portanto, qualquer espao pode se tornar um espao educativo, desde que um grupo de pessoas dele se aproprie, dando-lhe este carter positivo, tirando-lhe o carter negativo da passividade e transformando-o num instrumento ativo e dinmico da ao de seus participantes, mesmo que seja para us-lo como exemplo crtico de uma realidade que deveria ser outra (MOLL, 2013, p. 25).

    Nos relatos dos participantes, a implantao da Educao Integral parece restrita a alguns territrios intramuros da escola, e mesmo o novo, identificado no contedo trazido pelas oficinas, logo se adaptava ao velho, ao acomodamento do espao das quatro paredes. As fotos que usamos para ilustrar a realidade das escolas da rede municipal foram fundamentais para reconhecer espaos residuais, subutilizados, sem pertencimento, fosse a horta que um dia j foi um projeto dentro da educao integral e depois que no vingou virou territrio de ningum, fosse o espao sobrante entre os muros/cercas e as paredes da escola. Portanto, a busca por novos territrios educativos no precisa nem deve prescindir do territrio da escola, mas deve, contudo, permitir se question-lo como opo unvoca para processo de ensino-aprendizagem.

    A cidade educadora: territrios educativos para alm dos muros da escola

    Tendo em vista que o espao da escola no necessariamente o lugar por excelncia do ensino-aprendizagem, conduzimos os participantes, dentro do contexto da Educao em Tempo Integral, a se questionarem sobre as possibilidades que isto abre para a transposio dos muros da escola, no sentido tanto da apropriao de outros espaos e outros tempos educativos, mas tambm no sentido da formao integral dos estudantes.

    No dizer de Gadotti (2009, p. 33), a escola pblica precisa ser integral, integrada e integradora, e, portanto, entendemos

  • 57

    que a construo integral dos cidados no pode alijar-se da cidade como elemento educador, sob pena de uma formao desintegradora. Para Cavalieri (2009), sem querer antagonizar, necessrio diferenciar a escola em tempo integral e o aluno de tempo integral, pois no primeiro tende-se a focar no aspecto mais material das possibilidades da unidade de ensino e de uma nova ordem institucional, enquanto no segundo, pressupem-se experincias mltiplas e no padronizadas em que h uma variedade de agentes para alm da escola e de seus muros.

    Neste momento da capacitao, introduzimos aos participantes brevemente o contexto do surgimento da noo de Cidade Educadora, inicialmente cunhada como a expresso cidade educativa, no Relatrio Aprender a ser de Edgar Faure, elaborado em 1973, pela UNESCO (MOLL, 2003), com o objetivo de entender a relao entre educao e processos educacionais, incluindo os sistemas de ensino, a instituio escolar e a sociedade.

    Para Villar (2007), o aprofundamento do binmio escola-territrio vai acontecer a partir dos anos 1980, quando a escola aceita a proposta de territrio, trazendo o mundo exterior para dentro da escola, potencializando as experincias e vivncias, que de incio limitam-se s sadas e visitas, mas que marca a introduo da reflexo cultural sobre a cidade.

    Anos mais tarde, em 1990, com a Conferncia Mundial de Educao para Todos e o primeiro Congresso Internacional de Cidades Educadoras, em Barcelona (Espanha), bem como a Carta das Cidades Educadoras ali elaborada e a partir de ento difundida, o movimento ganha repercusso e passa a congregar uma aliana de cidades em torno de seus princpios. A proposta basicamente prope a interao entre os processos educativos formais, no formais e informais que se articulariam em uma trama de instituies e lugares educativos, nos quais os ns mais consolidados so constitudos pelas instituies formais (escola, universidade).

    A Carta das Cidades Educadoras (1994) no se pretende dogmtica, pois (...) aceita a contradio e prope processos de conhecimento, dilogo e participao como o caminho adequado coexistncia na e com a incerteza. Citando Trilla

  • 58

    Bernet, Villar 2007) ratifica a Cidade Educadora como um sistema complexo do processo formativo, cujo carter aberto, dinmico e evolutivo, tal como o territrio, abrangendo as dimenses de educao integral e de educao permanente.

    No contexto dos documentos do Programa Mais Educao (MEC), a proposta da integrao de novos territrios educativos no se vincula institucionalmente a proposta do Movimento das Cidades Educadoras, e embora compartilhe em muito do seu iderio, no estabelece uma filiao. H que destacar, porm, que a incorporao da cidade como agente educativo inciativa muito mais da escola, do que do poder pblico como protagonista, diferente do exemplo pioneiro de Barcelona.

    Em alguns momentos, inclusive, h indicativos de que esta vinculao faa pesar sobre o Mais Educao algumas crtica