Anais da III Semana de Estudos Medievais

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Anais da III Semana de Estudos Medievais do PEM - UFRJ

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Organizado por Leila Rodrigues Roedel Andria C. L.. Frazo da Silva

Anais da III Semana de Estudos Medievais

Universidade Federal do Rio de Janeiro Instituto de Filosofia e Cincias Sociais Programa de Estudos Medievais Apoio: SR5 - Diviso de Extenso

NDICEAPRESENTAO...........................................................................................................................................3 CONFERNCIAS Aqueles Lendrios Viajantes Medievais: Por Mares e Florestas, Em Busca do Alm.......................5 Maria Elizabeth G. de Vasconcelos O Direito Comum Medieval.......................................................................................................................13 Francisco dos Santos Amaral A Diversidade das Invenes Escolares Medievais...........................................................................19 Catherine Carrieres Rato A Retrica do Amor Corts........................................................................................................................27 Maria do Amparo Maleval COMUNICAES Alguns Aspectos Scio-Econmicos do Imprio Romano no Decorrer do IV Sculo d.C...........38 Adriana de Cssia de M. Rodrigues Reflexes Sobre o Equilbrio entre o Romanismo e o Germanismo nos Reinos Brbaros.............45 Leila Rodrigues Roedel A Converso da Aristocracia de Roma: Uma Proposta de Anlise.................................................51 Marcus Silva da Cruz Historia Gothorum: As Concepes do Poder Monrquico em Isidoro de Sevilla.....................58 Renata Rozental Os Caminhos do Oriente: As Viagens de Sindbad...............................................................................65 Claudia Atanazio Valentim A Viagem de So Brando: do n-vio ao b-vio...................................................................................72 Isabel Cristina Faria Em Demanda s Viagens Maravilhosas do Cavaleiro Medieval.......................................................78 Regina Michelli Ferreti O Livro das Maravilhas: Um Mapa de Vrias Encruzilhadas................................................................84 Vera Lima O Bem Comum nas Siete Partidas de Alfonso X................................................................................90 Ana Beatriz Frazo Ribeiro O IV Conclio de Latro: Heresia, Disciplina e Excluso.......................................................................95 Andria Cristina Lopes Frazo da Silva Povoar ou Repovoar. Uma Ao de Muitos Senhores.......................................................................102 Gracilda Alves A Disputa entre Bellatores e Oratores na Castela do Sculo XIII..............................................111 Marta Carvalho Silveira Monacato Basiliano: O Mosteiro dentro do Mundo...........................................................................118 Edmar Checon de Freitas A Nova Religiosidade de Alguns Elementos Cristianizadores Tardo-Romanos............................124 Paulo Srgio Barboza do Rosrio A Construo da Concepo de Providencialismo a Partir da Mentalidade Tardo-Romana............................................................................................................................................128 Mrcio Cypriano de Almeida

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Apresentao

O Programa de Estudos Medievais , PEM, aprovado pela Congregao do Instituto de Filosofia e Cincias Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro, em 1991, tem carter interdisciplinar de pesquisa, treinamento e intercmbio sobre temas concernentes Idade Mdia. O PEM aberto colaborao de diversos nveis de pesquisadores que vo desde a Iniciao Cientfica, a doutores com reconhecida experincia e apresentase como um espao que estimula o desenvolvimento cientfico, a atualizao e o aperfeioamento. Entre os objetivos do PEM figuram, sobretudo, identificar, promover e divulgar estudos relativos ao mundo medieval e estimular discusses acadmicas e atividades de extenso que divulguem e fortaleam o conhecimento relativo sociedade medieval. Dentro deste propsito enquadra-se a publicao dos trabalhos apresentados na III Semana de Estudos Medievais, realizada no Instituto de Filosofia e Cincias Sociais da UFRJ nos ltimos dias do ms de abril do ano em curso. Dando prosseguimento ao trabalho iniciado nas duas semanas de estudo anteriores (1991 e 1993), promovidas pelo PEM, conseguimos neste ltimo encontro uma maior interao no s com o campo da Literatura, que j vinha sendo realizado desde o incio, como tambm com as reas de Educao e Direito. De acordo com uma das preocupaes do PEM, de colaborao entre os diversos nveis de pesquisadores, houve quatro conferncias pronunciadas por especialistas dos cursos de Literatura, Educao e Direito e quinze comunicaes, relacionadas s pesquisas desenvolvidas por alunos e professores, nessas mesmas reas. A publicao destes trabalhos respeita a liberdade e responsabilidade de cada um dos autores, tanto na forma como no contedo dos mesmos, enriquecendo assim o conjunto com a diversidade. A iniciativa desta publicao constitui momento importante para o PEM uma vez que, ao ter oportunidade de divulgar uma pequena parcela dos estudos realizados sobre o Medievo em vrias reas, espera estar contribuindo para a difuso dos estudos medievais em nosso pas. Rio de Janeiro, 16 de junho de 1995. Maria Sonsoles Guerras Coordenadora do PEM

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CONFERNCIA

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Aqueles Lendrios Viajantes Medievais: Por Mares e Florestas, em Busca do Alm Maria Elizabeth G. de Vasconcellos - UFRJ

Todo o espao conhecido vai-se perdendo de vista, exceto o mar e as nuvens. A Viagem de So Brando * ... e ele estava no meio da floresta num lugar to desviado que era maravilha, porque o mato era to espesso e as trilhas to ms, que no sabia qual tomasse. A Demanda do Santo Graal **

Viajar conhecer o mundo de l, como diz a msica de Milton Nascimento e Fernando Brant Encontros e Despedidas. Viajar conhecer o que est para alm do mar e das florestas, procurando maravilhas. Viajar tambm ir em busca de riquezas. Viajar ainda fugir da mesmice do cotidiano, atendendo ao apelo do longe. Viajar , por fim, mergulhar-se em si mesmo, na procura do entendimento e decifrao do novo. E assim, como um viajante que nunca se sacia, que procuramos tambm, numa viagem ao redor dos textos, novas rotas. Nosso ttulo, cumprindo a funo que todo ttulo engloba - a de atrair o leitor e a de apontar o caminho a seguir -, funcionar aqui como um mapa a cujas marcas recorreremos para traar nossa viagem. Aqueles lendrios viajantes medievais. Segundo Andr Jolles(1), a disposio mental que caracteriza a lenda a imitao. A lenda (legenda = o que deve ser lido) apresenta um modelo que deve ser recordado, imitado. O heri lendrio um recordista, isto , desempenha extraordinariamente bem uma funo; ele um escolhido e, em suas andanas, o encontro com as maravilhas (objetos mgicos, seres espetaculares, lugares santos e/ou paradisacos), e o bom sucesso ao lidar com elas, sugere a extenso da virtude por ele encarnada. Imit-lo ser, portanto, participar da mesma atmosfera mgica ou miraculosa que ponteia seu fazer e, assim, os textos onde se inscrevem tais aventuras funcionam, antes de tudo, como um convite ao leitor, desejoso tambm de uma compensao banalidade de seu cotidiano. Pela relembrana da viagem - atravs da prtica da leitura - o receptor torna-se contemporneo do evento e iguala-se ao heri lendrio. Buscando no repertrio literrio medieval aventuras protagonizadas por lendrios viajantes, deparamo-nos com um significativo conjunto. Quer sejam eles santos - como So Brando - ou pecadores - como o cavaleiro Tndalo -, quer sejam 5

cavaleiros do Rei Arthur ou ainda negociantes como Marco Polo, todos demandam a felicidade; o paraso sua meta, seja ele o Alm celestial ou apenas um alm terrestre, gerador de riqueza material. A construo dos textos aponta para um modelo que constantemente repetido: tanto So Brando, quanto os cavaleiros da Tvola Redonda cumprem o mesmo ritual antes da partida: seleo dos que vo, bno - do abade ou do rei -, despedida e lamentaes dos que ficam. J em caminho, o personagem/viajante tomado pela vertigem da curiosidade que constitui, sem dvida, a indispensvel predisposio para o encontro com a maravilha. E esta - a maravilha que causa o espanto - que permeia tais relatos: quer de viagens imaginrias (como as Vises, quer de viagens a espaos fsicos desconhecidos (ou pouco conhecidos) dos europeus, como O Livro das maravilhas de Marco Polo. Nas narrativas de viagens, onde fantasia e realidade aliam-se estreitamente, as fronteiras entre real e imaginrio tornam-se fluidas. Aventuras fictcias - como A viagem de So Brando e A Viso de Tndalo - contm elementos extrados de uma geografia conhecida, enquanto viagens concretas, como a que Marco Polo faz China e ndia, encontram-se entremeadas de elementos fantsticos. Mas qualquer que seja a viagem, o percurso do explorador - um cavaleiro em demanda do Santo Graal, um monge em busca do Paraso, um negociante procura de valores para comerciar - apresenta um denominador comum: desdobra-se em seqncias de encantamento. E na relembrana desse percurso - onde o assombro sempre renovado -, tece-se uma rede de cumplicidade entre o narrador, o personagem/viajante (que nos casos de Marco Polo e Tndalo so tambm narradores) e o receptor. Palmilhando mares e florestas, o leitor, fascinado, projeta-se no mundo de l e passa tambm a conviver com a maravilha. E para garantir a manuteno dessa realidade fantstica, o narrador lana mo de algumas frmulas. No Livro das Maravilhas de Marco Polo, por exemplo, constante a utilizao dos advrbios mais e to e dos pronomes muito e tanto que, conforme salienta Guillermo Giucci(2), contribuem para a construo do Oriente - da nobre Armnia e da Prsia, dos trtaros e da ndia e diversas outras provncias da sia Menor(3) - como o espao do excesso. J na Demanda do Santo Graal, a palavra maravilha empregada a todo instante: para indicar o espanto dos cavaleiros frente a acontecimentos extraordinrios, a objetos miraculosos, a aes desmedidas (praticadas quer por inimigos, quer por prprios companheiros. Por sua vez, a construo hiperblica sublinha seqncias que introduzem, por exemplo, aparies demonacas - como a da donzela que, diante de Persival, se tornou em demo to feio e to espantoso, que no h no mundo ningum to valente que o visse, que no houvesse de ter 6

grande medo.(4) E, finalmente, a paralipse, usada constantemente na narrativa de Marco Polo, garante a fidedignidade do relato, uma vez que exime o narrador da responsabilidade de afirmar ter ele prprio visto a maravilha, to estranha ao olhar europeu: Ficai sabendo que, em todas as ilhas que em grande quantidade existem para os lados do Meio-Dia e onde as naus j no vo, por causa da corrente, dizem haver grifos. Estes pssaros aparecem em certas pocas do ano; mas no so como as pessoas os imaginam, com cabea de leo e corpo de guia. Aqueles que os viram dizem que eles so, na realidade, como guias muito grandes(5). (os grifos so nossos). Construdos pela acumulao de maravilhas, os textos acabam por revelar sinais significativos da ideologia que os engendra. Comportamentos sociais, relaes entre sexos, fervor religioso, prticas econmicas e jurdicas, supersties e tabus emergem, em suas peculiaridades, como marcas da sociedade do Ocidente cristo medieval. Na Demanda do Santo Graal, a mulher transmutada em ser demonaco (que capaz de gerar seres horrendos como a besta ladradora) revela a misoginia da Igreja e a dificuldade que a voz oficial tem em lidar com o feminino. Tanto na Viagem de So Brando, quanto na Viso de Tndalo, a cartografia do Alm que se cumpre pela minuciosa descrio das maravilhas infernais e celestiais aponta o maniquesmo que rege o pensamento da cristandade medieval: s os justos, os piedosos, os caridosos e, sobretudo, os que professam uma f inabalvel na Providncia divina alcanaro o Paraso. E So Brando que, tendo vivido a maravilha, recupera-a para os monges de sua comunidade, convidando-os, assim, imitao de suas virtudes: [...] conta-lhes pormenorizadamente como foi sua aventura: onde desfrutaram alegria, onde sofreram privaes. Contalhes tambm como, por ocasio de fome e perigo, encontrou tudo aquilo que pedira a Deus; isto e mais coisas lhes foi contando e como, por fim, encontrara o que estava procurando. Alguns daquela comunidade tornaram-se santos, pela imitao das virtudes de Brando; enquanto viveu, ele foi conquistando muitos para a f crist. Quando chegou a sua hora, voltou ao lugar que lhe tinha sido destinado: o reino de Deus, para onde, graas ao santo, vo muitos(6). Finalmente, as maravilhas que compem o mundo do Oceano ndico, descritas no Livro das Maravilhas de Marco Polo, desempenham dupla funo. Por um lado, ao fundar um sistema de oposies entre Ocidente (espao de carncia) e Oriente (espao da abundncia), as maravilhas respondem s utopias da Abundncia, da Justia e do Paraso com as quais sonhava o homem do medievo europeu(7). Por outro lado, essa bipolaridade era alimentada pela voz oficial, uma 7

vez que reforava a crena na supremacia do Ocidente civilizado sobre o Oriente. Tomadas muitas vezes como castigo divino por causa do pecado, o maravilhoso monstruoso (ou simplesmente a diferena de cor) funcionava como demonstrativo da superioridade do homem do Ocidente cristo medieval, criado semelhana de Deus. o que se pode ler atravs da apresentao do povo que habita a ilha de Zanguibar (Zanzibar, que significa negro escravo): Os seus habitantes obedecem a um rei e tm linguagem prpria. No dependem de ningum e no pagam tributos. So fortes, mas mais atarracados do que altos, tendo braos e pernas to grossos que parecem os dos gigantes, e to fortes que podem levar a carga de quatro homens. So negros e andam nus. Tm o cabelo encrespado que nem mesmo quando o metem na gua o podem desfrisar. Tm a boca grande e o nariz to achatado, os lbios e os olhos to sados que so muito feios. Se vos aparecesse em outro pas, julgareis ver o diabo(8). E assim chegamos ao fim da primeira etapa de nossa pequena viagem ao redor dos textos, quando procuramos esmiuar parte de nosso ttulo: aqueles lendrios viajantes medievais. Passemos, ento, ao segundo bloco. Por mares e florestas, em busca do alm. Se at hoje o mar continua sendo um grande desafio para o homem, pode-se imaginar o que teria sido para o homem medieval enfrent-lo. Na geografia de ento, a Europa setentrional e o Atlntico j se confundiam com o imaginrio: os hiperbreos, dizia-se, viviam nas trevas, enquanto o Atlntico era povoado por ilhas misteriosas. E nessa fantstica cartografia, o mar fascinava e amedrontava, como ensina Jean Delumeau: Na Europa do comeo da Idade Moderna, o medo, camuflado ou manifesto, est presente em toda a parte. [...] Mas no universo de outrora, h um espao onde o historiador est certo de encontr-lo sem falsa aparncia. Esse espao o mar(9). Mas como Navegar preciso, viver no preciso, na afirmao dos navegadores antigos(10), o apelo do mar torna-se irresistvel. E essas viagens, primeiramente fsicas, desdobram-se em outras: as viagens que o explorador faz para dentro de si mesmo. Na imensido marinha, quando se vai perdendo de vista todo o espao conhecido, exceto o mar e as nuvens(11), o homem repensa a sua prpria histria. o que acontece com So Brando e seus quatorze companheiros: num priplo de sete anos, os navegantes-peregrinos vo cumprindo uma viagem inicitica. Repetindo a cada ciclo anual o mesmo trajeto (a Quinta-Feira Santa passam na Ilha dos Pssaros; o Sbado de Aleluia comemoram no lombo de um monstruoso peixe; no Paraso dos Pssaros permanecem at a oitava de Pentecostes; e, finalmente, o Natal comemoram na Ilha de Albea), os viajantes vo enfrentando e domando as maravilhas. E como a repetio da prova pressupe sua 8

progressiva superao, os monges vo exorcizando seus medos e, purificados, alcanam o Paraso. Nessa geografia do espanto, o Oceano ndico representa, para a mentalidade medieval, um receptculo de sonhos, de mitos, de lenda, como ensina Jacques Le Goff(12). Aquele mare clausum (considerava-se o ndico fechado, como um rio circular) satisfaz plenamente os sonhos do homem do medievo ocidental... Suas ilhas motivam variadssimas consideraes de Marco Polo, j que elas so muitas: Neste mar da ndia h, entre habitadas e desertas, 12.700 ilhas, segundo o mostram os mapas e os escritos dos sbios navegantes que estudaram estes mares(13). Regorgitando de riquezas prolas, madeiras preciosas, especiarias, sedas , as ilhas afortunadas satisfazem o sonho de abundncia do Ocidente; a exuberncia de sua flora e de sua fauna funcionam como compensao limitao do mundo europeu; e, do ponto de vista sexual, seus habitantes vivem a liberdade: Perante a moral acanhada imposta pela Igreja, expande-se a seduo perturbadora de um mundo de aberrao alimentar onde se pratica a coprofagia e o canibalismo, da inocncia corporal, onde o homem liberto do pudor do vesturio reencontra o nudismo, a liberdade sexual, onde o homem, desembaraado da indigente monogamia e das barreiras familiares, se entrega poligamia, ao incesto, ao erotismo(14). Abandonando o extico oriental, palmilhemos outras maravilhas. A floresta agora o desafio para aqueles lendrios viajantes medievais... Como ensina Jacques Le Goff, esse espao to insistentemente nomeado nos textos medievais preenche a funo que o deserto desempenhava no imaginrio das grandes religies euroasiticas: o judasmo, o islamismo e o cristianismo(15). A floresta o espao no civilizado, selvagem, e tambm o lugar da solido, propcio ao encontro com a maravilha. A floresta refgio, lugar de penitncia, constitui um desafio e , enfim, o espao ideal para abrigar grupos marginais da sociedade. Na floresta de Morois, Tristo e Isolda refugiam-se para viver a Paixo; na Penha Pobre que Amadis, fazendo-se ermito, consumia seus dias em lgrimas e em continuados choros(16) por amor de Oriana; tambm na floresta que Yvain, como homem desvairado e selvagem(17), vive muito tempo, enlouquecido por ter quebrado a promessa que fizera sua dama Laudine. tambm na floresta de Sherwood que o lendrio fora-da-lei Robin Hood refugia-se para formar um grupo de resistncia contra as leis que regiam a propriedade exclusiva da caa para o rei. E finalmente na floresta de Brocliande que os cavaleiros do Rei Arthur, em 9

demanda do Santo Graal e no encontro com as maravilhas, so submetidos a vrias provas. E nessa aventura, uma das mais espetaculares maravilhas que eles enfrentam , sem dvida, a mulher. Refletindo a dificuldade que a sociedade do Ocidente cristo medieval tem ao lidar com o feminino, o texto portugus da Demanda esmera-se no traado de perfis diablicos de mulher. Um dos mais significativos o da donzela, filha to formosa do rei Hipmenes. Apaixonada pelo irmo, intenta todas as maravilhas para conquist-lo e como ele a rejeita, a donzela tenta matar-se. Nessa hora aparece-lhe, ento, em figura de homem to formoso, o demo que lhe pede seu amor em troca do que ela quiser. Aps deitar-se com o demo, a donzela com ele traa um plano para vingar-se do irmo: atrai o donzel a uma cmara e, como ele no cede a seus desejos, denuncia-o ao rei, dizendo que, j h algum tempo, ele a havia forado. Levado a julgamento, o donzel condenado e a irm escolhe o tipo de execuo: ele deve ser jogado a ces em jejum de oito dias. Antes do suplcio, o inocente declara: Irm, sabes que me fazes morrer por injustia e que no mereo esta morte de que me fazes morrer. [...] E ao nascimento do que trazes, aparecer que no foi de mim, porque nunca de homem e de mulher nasceu to maravilhosa coisa como de ti sair; porque diabo o fez e diabo trazes e diabo sair em figura da besta mais descomunal que nunca se viu(18). Na poca aprazada, a donzela d luz [...] a mais descomunal besta e a mais desgraada como j ouvistes, e tiveram pavor to grande que todas morreram, menos ela e outra mulher. E a besta foi assim, que no houve quem no pao e no castelo, a pudesse segurar, e ia soltando os maiores ladridos do mundo(19). Essa besta ladradora, que passa a viver na floresta, torna-se responsvel por muitas desgraas e pela morte de muitos cavaleiros. A besta a maravilha que eles devem enfrentar e que Palamades, enfim, consegue vencer. Para finalizar nossa viagem ao redor dos textos, resta-nos agora um esclarecimento sobre o ltimo sintagma de nosso ttulo: em busca do alm. Esse algures, que muitas vezes o alm fsico no caso de Marco Polo , apresenta-se tambm como um Alm metafsico: as ilhas de So Brando e o Inferno e o Paraso descritos na Viso de Tndalo. Aps a morte, o cavaleiro Tndalo levado pelo Anjo para conhecer as penas infernais e as delcias do Paraso. Desenhada pormenorizadamente, a cartografia do Alm constri-se pela oposio binria que tradicionalmente caracteriza o alto e o baixo: enquanto o Paraso o espao da luz, de doce perfume e de suave msica, o Inferno, por sua vez, configura-se como o 10

lugar das trevas, de intenso fedor e de grande barulho. E no comando do tormentoso lugar, Lcifer [...] que era atam grande quesobejava per todallas outras bestas em grandeza. E a fegura dele era como de homem des a cabea ataa os pees e era negro como carvoes. E nos braaos avia muitas maos. E havia rabo grande e espantoso(20). Atormentando as almas, Lcifer e os outros diabos completam a geografia do Alm infernal que atemoriza o viajante. O objetivo da narrativa claramente didtico: ao ver as penas infernais e as delcias do Paraso, o cavaleiro Tndalo convence-se da convenincia de uma vida piedosa. E ao voltar vida terrena, por deciso do Anjo, cumpre o papel de fiel relator da maravilha que testemunhou no Alm, convencendo tambm o auditrio prtica do bem: Convem-te que te tornes ao teu corpo. E contars todas estas cousas que viste, por tal que os que te virem e esto ouvirem que tomem exenplo de bem fazer e guardarsse domal [...](21). Percorridos mares e florestas em busca do alm, na companhia daqueles lendrios viajantes medievais, resta-nos agora, viajantes que somos de uma mesma e eterna viagem, traar nossas prprias rotas. As viagens de ontem iluminam as viagens de hoje. E nesse sentido vale recordar algumas palavras do ltimo captulo da obra A ilha do dia anterior de Umberto Eco: Se os papis (embora fragmentrios, dos quais tirei uma histria, ou uma srie de histrias que se cruzam e se trespassam) chegaram at ns porque o Daphne no foi de todo queimado, parece-me evidente(22). Na certeza de que nossos textos medievais no esto tambm perdidos, relemos as histrias, para compor a Histria... Notas * A DEMANDA DO SANTO GRAAL (1988) p. 256. ** BENEDEIT (1986) p. 9. Esclarecemos que a traduo para o portugus nossa. 1. JOLLES, A. (1976) p. 30 e segs. 2. GIUCCI, G. (1992) p. 67. 3. POLO, M. (1994) p. 33. 4. A DEMANDA DO SANTO GRAAL (1988) p. 213. 5. POLO, M. (1994) p. 229. 6. BENEDEIT (1986) p. 60. 7. FRANCO, H. (1992) p. 24 e segs. 8. POLO, M. (1994) p. 233. 9. DELUMEAU, J (1989) p. 41. 10. PESSOA, F. (1969) p. 15. 11. BENEDEIT (1986) p.9. 12. LE GOFF, J. (1980) p. 265. 11

13. POLO, M. (1994) p. 234. 14. LE GOFF, J. (1980) p. 276. 15. LE GOFF, J. (1985) p. 39. 16. AMADIS DE GAULA. (1968) p. 60. 17. TROYES, C. (1989) p. 41. 18. A DEMANDA DO SANTO GRAAL (1988) p. 60. 19. Ibidem, p. 126. 20. A VISO DE TNDALO (1988) p. 122. 21. Ibidem, p. 126. 22. ECO, U. (1995) p. 485. Bibliografia A DEMANDA DO SANTO GRAAL. Texto sob os cuidados de Heitor Megale. So Paulo: T.A. Queiroz, 1988. AMADIS DE GAULA. Seleo, traduo, argumento e prefcio de Rodrigues Lapa. 5.ed. Lisboa: Seara Nova, 1968. A VISO DE TNDALO OU O CAVALLEIRO TUNGULLO. In: Mouro, Jos Augusto Miranda. A Viso de Tndalo: da Fornalha de Ferro Cidade de Deus. Lisboa: Instituto Nacional de Investigao Cientfica, 1988. BENEDEIT. El viaje en San Brandn. Traduccin y prlogo de Marie Jos Lemarchand. Madrid: Siruela, 1986. DELUMEAU, Jean. Histria do medo no Ocidente. So Paulo: Companhia das Letras, 1989. ECO, Umberto. A ilha do dia anterior. Rio de Janeiro: Record, 1995. FRANCO, Hilrio. As utopias medievais. So Paulo: Brasiliense, 1992. GIUCCI, Guillermo. Viajantes do maravilhoso. So Paulo: Companhia das Letras, 1992. JOLLES, Andr. Formas simples. So Paulo: Cultrix, 1976. LE GOFF, Jacques. O maravilhoso e o quotidiano no Ocidente medieval. Lisboa: Edies 70, 1985. ____. Para um novo conceito de Idade Mdia. Lisboa: Estampa, 1980. PESSOA, Fernando. Obra potica. Rio de Janeiro: Aguilar, 1969. POLO, Marco. O livro das maravilhas. Traduo de Eli Braga Jr. 4.ed. Porto Alegre: 1994. TROYES, Chrtien de. Yvain, o Cavaleiro do Leo. Traduo de Vera Harvey. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1989.

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O Direito Comum Medieval Francisco Amaral - Faculdade de Direito - UFRJ 1. O Direito Comum Medieval. Conceito, Caractersticas e Importncia do seu Estudo Direito comum (ius commune) a expresso com que se denomina o direito romano aplicado na Europa continental, no perodo compreendido entre os sculos XII e XVIII. Seu estudo hoje tema de grande interesse para os historiadores do direito, pela influncia e importncia que nele se reconhece como expresso da cultura jurdica europia e como antecedente lgico do direito moderno. A estrutura dogmtica conceitual, os institutos e a prpria teoria jurdica, particularmente do direito privado, os conceitos de poder e de autoridade, os princpios de natureza poltica e, principalmente, os mtodos de aplicao e realizao do direito, encontram nele as formulaes que vieram a institucionalizar-se e, assim, a constituir o direito atual de origem romana. Precisar o conceito de ius commune no representa, apenas, um trabalho de natureza lgica, mas principalmente a compreenso de um fenmeno grandioso que est no centro da histria jurdica europia (Calasso 1970/33), e que, pelo seu estudo oferece a oportunidade de uma reviso fundamental no conhecimento da poca medieval, indispensvel tambm compreenso da experincia jurdica contempornea. O direito comum apresenta-se na perspectiva histrica como um direito unitrio, universal e intemporal. Unitrio porque "unificava e harmonizava os vrios direitos existentes na sua poca (o romano, o cannico, os estatutos locais)" constituindo-se objeto nico da cincia jurdica europia da poca, que o estudava segundo mtodos de uma cincia comum do direito, cultivada em um ambiente universitrio comum para toda a Europa, vulgarizado por meio de uma lngua e de uma cultura comum, o latim (Hespanha 1982/441). Alm de comum era universal na medida em que se aplicava, de modo direto ou subsidirio, isto , suprimindo lacunas ou complementando os direitos estatutrios locais, generalidade das comunidades europias de cultura latina (Itlia, Frana, Espanha, Portugal). Era tambm intertemporal porque atravessou assimilando as influncias e contribuies dos direitos locais, embora ntegro na sua substncia, e no seu esprito, os sculos da baixa idade mdia, at sistematizao do direito moderno, com suas constituies e seus cdigos. O direito comum surge-nos, portanto, como a experincia cientfica, doutrinria legislativa que antecede, prepara e modela o pensamento jurdico da

modernidade, cultivada ao longo de um perodo de oito sculos (XII-XX) na Europa de formao latina. A importncia de seu estudo reside no fato de ser considerado a base do direito moderno, principalmente de natureza privada, no s no seu aspecto dogmtico-conceitual mas, e a me parece estar a sua principal relevncia para o pensamento jurdico contemporneo, no que diz respeito ao problema metodolgico da realizao do direito, vale dizer, a atividade institucional e os atos pelos quais se decidem as questes jurdicas concretas, os casos jurdicos. 2. O Direito Comum na Formao da Cincia Jurdica Europia, A Ruptura Metodolgica e Espistemlgica A compreenso do ius commune, na amplitude de sua importncia cientfica e no sentido de sua realizao prtica, pressupe prvio conhecimento do processo de formao da cincia jurdica europia, em que tem especial relevo o fenmeno jurdico-cultural do redescobrimento e recepo do direito romano justinineo. Rpido bosqueio permite assinalar cinco perodos distintos e sucessivos nesse processo histrico, cientfico e cultural: a) a redescoberta do Corpus ius civilis (Corpo de Direito Civil compilao jurdica do imperador Justiniano I, entre 530 e 565 d.C.) pelos juristas que se reuniam na Universidade de Bolonha, com a consequente criao de uma cincia jurdica nos sculos XII a XIV; b) expanso dessa nova cincia pelos pases da Europa continental de origem latina, nos sculos XIII a XVI; c) o surgimentodo chamado direito natural nos sculos XVII e XVIII, com a ideologizao dos princpios fundamentais do direito e a racionalizao e sistematizao do ius commune, como mxima expresso desse processo da escola histrica e do positivismo legal e conceitual do sculo XIX, a neutralizao da tica jurdica e o consequente formalismo racionalista; e) o colapso do positivismo e a crise do direito no sc. XX (Wieacker, 1980). A temtica do direito comum insere-se, principalmente, no primeiro perodo, o do processo de formao da cincia jurdica europia, que justifica breve referncia. As origens desse processo encontram-se no alto medievo, como idade preparatria, e mediatamente nos prprios fundamentos da antiguidade Imprio Romano do Ocidente, a igreja romana e a tradio escolar. A queda de Roma em 476 d.C. sinaliza o fim do Imprio Romano do Ocidente, que deixa, como legado, a burocracia e a organizao administrativa e financeira constituda pelos romanos ao longo de sua histria, mas desenvolvida principalmente pela monarquia absoluta centralizada do seu ltimo perodo. Esse legado mantm-se com a igreja catlica que se constituiu na grande instituio da alta idade mdia, referencial obrigatrio no tocante ao poder e organizao 14

social,e ponte de ligao entre o mundo romano e o mundo brbaro. Com a derrocada do Imprio, substituiu-o a Igreja na administrao pblica, no exerccio da autoridade e da jurisdio, e nas tcnicas documentais (registros pblicos, processuais e notariais), garantindo posteridade o conhecimento dessa poca, nos seus aspectos culturais e institucionais. Embora titular de um direito prprio, o direito cannico, formado pelas normas que regulavam a organizao e a disciplina da Igreja (Sagrada Escritura, cnones dos conclios, editos papais etc.), a igreja mantinha e aplicava o direito romano, vendo-o como a grande expresso cultural do mundo antigo, criao do poder romano, sob a influncia dos ideais da cultura grega. O direito romano passa a ser a lex terrena da igreja, cultivado na escola medieval onde se ensinava o trivium, gramtica, retrica e dialtica, que continham as disciplinas consideradas necessrias para o servio da igreja e da prpria administrao secular. No final do sc. XI, na Universidade de Bolonha, redescobre-se o Corpus ius civilis, e d-se origem ao processo de recepo do direito romano, isto , sua integrao no sistema de fontes jurdicas da maior parte dos reinos da Europa, embora com o carter de direito subsidirio. Essa recepo do direito romano explica-se por circunstncias vrias. A restaurao do Imprio Ocidental por Carlos Magno e a convico de que a unidade poltica e religiosa exigia tambm a sua unidade jurdica, sendo o direito romano o instrumento apropriado a essa unidade; a considerao de que esse direito era o modelo ideal para os direitos locais europeus; e, principalmente, a adequao desse direito, que era estvel, nico e individualista, s formas de vida econmica em desenvolvimento na Europa (sc. XIII-XVI), prprias da revoluo comercial que marcava o nicio da economia mercantil e monetria, vale dizer, do proto-capitalismo. Na universidade de Bolonha, fundada no sc. XI em consequncia do grande interesse pelo estudo do direito, destacaram-se inicialmente dois grandes nomes, Irnrio, que separou o direito do estudo das demais artes liberales, Graciano, que unificou o direito cannico em seu Decretum (1139-45), separando-o da teologia. Irnrio foi o fundador e grande mentor da famosa Escola dos Glosadores assim chamada porque os seus juristas interpretavam o Corpus iuris civilis, mais propriamente o Digesto, escrevendo comentrios interlineares ou marginais, "simples explicao gramatical de carter exegtico, de palavras ou frases que suscitassem escolhas na sua interpretao (Gomes da Silva 1985/142). Expoente e sistematizador da escola veio a ser Acrsio (1182-1260), autor da Magna Glosa, obra de compilao de grande influncia e aplicao em toda a Europa, como direito

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subsidirio, inclusive em Portugal, como previsto nas Ordenaes Afonsinas, inicialmente, e depois nas Manoelinas e Filipinas. O mtodo da escola dos glosadores caracterizava-se pela "fidelidade ao texto justinineo e o carter analtico e, em geral, no sistemtico da literatura jurdico-cientfica" (Hespanha 1985/459). Considerado, porm, insuficiente esse mtodo, os intrpretes substituiram a glosa pelo comentrio, donde o nome de uma nova escola, a dos comentadores (scs. XIII e XIV), que preferiam o mtodo dialtico ou escolstico ao mtodo exegtico da glosa. Este novo movimento procurava, por meio da anlise e da sntese, a superao de contradies e a construo de um sistema lgico (Gomes da Silva 1985/144). O fundador da novel escola foi Cino de Pistoia (1270-1336), mas os seus maiores vultos seriam Brtolo de Sassoferrato (1313-1357) e Baldo de Ubaldis (1327-1400). Sua caracterstica metodolgica era o recurso dialtica, a dialtica como lgica do provvel, o que viria a marcar o pensamento jurdico-filosfico dessa escola, distinguindo-a da dos glosadores, de cunho mais exegtico. Era a nova lgica de Aristteles, baseada nas tradues da Tpica, dos Analticos, das refutaes silogsticas, a servio do pensamento e da prtica jurdica. Passava-se ao raciocnio dedutivo com o fim de resolver o objeto da disputa (quaestio, disputatio), que era o problema, adotandose uma "frmula de argumentao na qual, sendo dadas certas coisas, segue-se necessariamente uma coisa distinta das que foram dadas, pela prpria fora do que foi dado" (Aristteles, Tpica, I, 1, 100 a, 25-30). H demonstrao quando os pontos de partida de deduo so afirmaes verdadeiras e primeiras ou, pelo menos, afirmao estas que o conhecimento que se tem surge por intermdio de certas afirmaes primeiras e verdadeiras; , ao contrrio, uma deduo dialtica quando ela toma como ponto de partida idias admitidas (idem, Tpica, I, 1, 100 b, 17-23). Surge, ento, no direito, o discurso ou silogismo dialtico em contraposio ao discurso cientfico. Este partia de premissas verdadeiras, no envolvendo um processo dialgico, no disputando. Aquele partia, no da verdade evidente, da certeza dos princpios, mas do problema, enfrentando-o por meio de uma controvrsia, em que o conhecimento provvel, no certo (Gomes da Silva 1985/148). O terreno da dialtica , portanto, o da opinio, o da lgica do provvel. Entre o discurso jurdico dos glosadores e o dos comentadores surgiria desse modo, uma verdadeira ruptura epistemolgica, o que implicava em novo mtodo de compreenso e realizao do direito, no mais a partir de fontes preestabelecidas pela autoridade, mas sim a partir dos problemas, em torno dos 16

quais se desenvolvia a lgica das probabilidades para atingir no a verdade mas o convencimento. O aparelho lgico e conceitual disso decorrente ainda hoje se utiliza, pelo que pode considerar-se notvel a contribuio dos comentadores, pela obra que construram e hoje volta a desfrutar da ateno dos juristas, principalmente daqueles que se dedicam a uma reflexo metodolgica sobre a da cientificidade e os mtodos do direito, fazendo uma crtica ao positivismo, com seu formalismo, conceitualismo e legalismo. Os comentadores retomaram a filosofia grega e o direito romano clssico, criando um novo mtodo, novos conceitos e modelos de raciocnio, vale dizer, um novo campo do saber que viria a constituir-se na cincia jurdica medieval. Some-se a isso a importncia que assumiram como nova categoria social, responsvel pela soluo dos problemas jurdico-sociais, e pela administrao poltico-social, e teremos explicitado o grande papel do direito comum na formao do direito medieval e no prprio equilbrio poltico e social europeu (Hespanha 1982/466). 3. O Direito Comum na Formao do Direito Espanhol e Luso-Brasileiro A referncia importncia do direito comum no seria completa sem uma breve notcia sobre a sua presena no direito ibrico, mais propriamente no direito luso-brasileiro. O direito comum recebido na Espanha desde os fins do sec. XII, por meio no s dos estudantes de direito que vo Universidade de Bolonha e dali voltam com o conhecimento cientfico do direito romano, a influenciar posteriormente a cultura jurdica espanhola, como tambm dos prprios textos legais. No campo da doutrina, h que fazer referncia s obras de Jacome Ruiz, Flores de Derecho (ou Flores de las leyes), Doctrinal de los pleytos e os Nuevos tiempos del juicio, basicamente obras dedicadas ao direito processual civil. Quanto a obras legislativas, as principais so o Fuero Real, publicado em 1265, tempo de Afonso X, o Sbio, e a Ley das Siete Partidas, reelaborao de um Cdigo do mesmo rei, o Libro del Fuero ou Especulo dos fins do sc. XIII, incio do XIV. As Sete Partidas, assim chamadas por se dividirem, a partir da terceira redao, em sete partes, tiveram grande influncia no direito portugus, principalmente nas Ordenaes Afonsinas, "compilao atualizada e sistematizada das vrias fontes de direito que tinham aplicao em Portugal" (Gomes da Silva, 1985/192), concluda em 1446, ou incio de 1447, compreendendo "leis anteriores, concrdias e concordatas, costumes, normas das Siete Partidas e disposies do direito romano e cannico", e nas quais o direito comum era admitido como subsidirio (Livro 2, Ttulo 9), isto , aplicava-se s na falta do direito nacional (leis do Reino, estilos da corte, ou costume). Reunindo aquela matria de direito romano e de direito cannico, o critrio separatrio era o critrio do pecado, ou seja, aplicava-se o romano salvo se da sua observncia resultasse 17

pecado. Permanecendo dvida ou lacuna legal, recorria-se Glosa de Acrsio e, secundariamente, opinio de Brtolo e, finalmente, deciso do rei, vale dizer, do Tribunal da Corte. As Ordenaes Manuelinas (1521) e as Ordenaes Filipinas (1603) que se seguiram s Afonsinas, e com as quais formaram o grande conjunto de compilaes legais do direito portugus do perodo de influncia do direito comum, no apresentam grandes alteraes, salvo em dois pontos: o direito comum mantm sua aplicao subsidiria no mais em funo de qualquer vnculo com o Imprio mas porque fundado na razo (ratio scripta); a glosa de Acrsio e a opinio de Brtolo vigem na medida em que no sofrem contraste com a interpretao da doutrina que lhes posterior, e isso at a Lei da Boa Razo (1769). No que especificamente diz respeito ao direito brasileiro, cabe dizer que as Ordenaes Filipinas aqui foram vigentes at o advento do Cdigo Civil (1 de janeiro de 1917) e, consequentemente, at essa data, foi, entre ns admitida a aplicao subsidiria do direito comum. Bibliografia CALASSO, Francesco. Introduzione al diritto comune, Milano: Giuffr. 1970. GOMES DA SILVA, Nuno J. Espinosa. Historia do Direito Portugus, 2 ed. Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkian, 1985. HESPANHA, Antonio Manuel. Historia das Instituies. pocas medieval e moderna. Coimbra: Livraria Almedina, 1982. WIEACKER, Franz. Privatrechtsgeschichte der Neuzeit, Gottingen: 1967, 2 ed. (trad. portuguesa "Histria do direito privado moderno", por Antonio Manuel Hespanha, 1980).

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A Diversidade das Invenes Escolares Medievais Catherine Carrieres Rato- Faculdade de Educao - UFRJ Entre a Idade Antiga, prodigiosamente diversificada, mas repousando sobre um mesmo eixo, e a idade Clssica, que unifica sua problemtica, h quinze sculos de um pensamento a se desenvolver e de uma histria dramtica. Idade Mdia no mdia nem no sentido da mediao, nem muito menos da mediocridade. Ela est a como um enigma! No h pensamento Medieval, h pensadores com mensagens diferentes, com invenes diferentes e neste caso, com criaes escolares diversificadas. Mas esta diversificao no exclui o ensino medieval de se constituir um organismo coerente e de estar na origem de todo o sistema pedaggico dos tempos modernos. A hegemonia do ensino medieval s foi realmente destruda a medida que organizou um ensino realista, cientfico, laico destinado totalidade da populao das naes do ocidente. Historicamente, como essas invenes podem contribuir para uma leitura mais aprofundada e porque no, crtica, dos nossos sistemas escolares? As escolas do Ocidente cristo nasceram sob a presso das necessidades sociais e em particular das necessidades eclesisticas. Elas se desenvolveram progressivamente at contribuirem as grandes Universidades do sculo XIII. Em linhas gerais o sentido espiritual dado Educao Medieval atravs de suas diversas escolas foi o de produzir um certo estado em atitude da alma, um habitus do ser moral, preparando e operando a converso da alma. So estas, as principais escolas descritas a seguir que contribuiro a Pedagogia Medieval, mais conhecida como a Pedagogia Eclesistica. As primeiras escolas Crists O cristianismo como sabido, se desenvolveu dentro do Imprio Romano e com ele conviveu durante cerca de cinco sculos. A educao Crist se realizou, nos primeiros tempos, direta e pessoalmente. Os educadores foram o prprio Jesus O mestre por excelncia - os apstolos, os evangelistas e em geral os discpulos de Cristo. uma educao sem escolas. O meio educativo nesta primeira poca , de um lado, a comunidade Crist primitiva e de outro a famlia. Surge, contudo, pouco a pouco, uma forma prpria de ensino, de carter religioso, de preparao para o batismo, que se fazia na idade adulta.

A primeira instituio educativa criada pela Igreja no sculo I, foi por isso o CATECUMENATO destinado a preparar espiritualmente os convertidos para a recepo do batismo. Ordinariamente, a preparao dos catecmenos se processara de maneira sistemtica, com programas e horrios de estudos pr-estabelecidos. O Currculo era constitudo de matria essencialmente religiosa e para isso se ensinava a leitura e a escrita. Escolas de Gramtica e Retrica As Escolas de Gramtica e Retrica que no sculo II e III, foram instaladas pelos Cristos pela atrao que exerciam sobre a juventude e se tornaram concorrentes temveis das congneres pags. Foi um meio inteligente e eficaz de que os Cristos se utilizaram para transmitir s novas geraes atravs do ensino das disciplinas clssicas as verdades evanglicas. Tambm nos sculos II e III surgiram as Escolas Catequticas que resultaram da formao dos primitivos catecumenatos e tiveram por fim ministrar a slida instruo religiosa, e ao mesmo tempo, uma extensa cultura cientfica e filosfica. Nelas admitiam-se indistintamente alunos pagos e cristos. A primeira escola Catequtica, criada ainda no sculo II, foi a de Alexandria. No Ocidente no houve, propriamente, escolas Catequticas. Muito difundidas pelo Imprio Romano foram as Escolas Teolgicas, cuja estrutura curricular embasava-se nas 7 Artes Liberais, na Filosofia Grega, na Teologia e Sagradas Escrituras. As Escolas da Idade Mdia Da queda do Imprio romano do Ocidente (476) at o reinado de Carlos Magno do sculo VIII, registra-se a decadncia escolar do mundo antigo, a implantao do monaquismo germnicos cristianizados. De 950 a 1200, assinalam-se os renascimentos ou renovao da cultura nos reinados de Carlos Magno, Alfredo, O Grande, e Oto, o cessamento das invases, o aumento da populao, as grandes transformaes econmicas, a organizao do feudalismo e o renascismento do sculo XII. Este perodo assiste a inmeras criaes escolares onde se destaca o apogeu e a decadncia do monaquismo, a educao cavalheiresca e os primeiros sinais de organizao das instituies universitrias. O sculo XIII constitui o apogeu da civilizao medieval com o florescimento das universidades e a constituio da doutrina e do mtodo escolsticos. At a entrada do Renascimento no sculo XV e a decadncia do sistema de ensino medieval novas invenes escolares acompanharam a crise da cultura do e a transmisso da cultura romana aos povos

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Ocidente tais como as escolas gremiais e municipais, caractersticas de um mundo feudal em convulso e uma Europa moderna que apontava no horizonte. As Escolas Paroquiais ou Presbiterianas (Sculo IV, V...) medida que as escolas oficiais e a dos mestres particulares, literatores, foram desaparecendo, a Igreja tomou providncias quanto a formao dos candidatos ao sacerdcio, afim de lhes assegurar a instruo mnima necessria ao desempenho do ministrio sacerdotal. O nvel elementar desse ensino era representado pelas escolas paroquiais que funcionavam na igreja matriz da parquia ou na casa paroquial. Apesar do nvel rudimentar de seu ensino, essas Escolas Paroquiais desempenharam um papel muito importante na educao medieval e podem ser consideradas como as primeiras escolas primrias populares. O fundamento bsico de seu currculo era a aprendizagem de memria do Salmos, leitura, escrita, contas rudimentares e gramtica latina. O prprio Proco ou Presbtero se incumbia da tarefa de transmisso destes conhecimentos. As Escolas Episcopais ou Catedralcias ( Do sculo III ao sculo XV ) A origem das Escolas Catedralcias remonta o Santo Agostinho, que ao ser elevado ctedra episcopal de Hipona, fundou anexa a sua residncia cannica uma escola de estudos filosficos e teolgicos superiores, destinada preparao dos futuros sacerdotes de sua diocese. Assim de seminrios de formao eclesistica de nvel mdio, tal como aconteceu com as escolas Monsticas, abriram-se tambm aqueles institutos , aos que no se destinavam a carreira sacerdotal. O surgimento das escolas paroquiais e sua irradiao faz com que as escolas Catedralcias se especializem na formao de padres com um nvel mais elevado. Temos rgidos preceitos monacais o currculo tambm incorporava as 7 artes liberais, principalmente o estudo da Gramtica , e o estudo do canto de grande importncia para o culto. Estas escolas ficaram sob a direo suprema dos bispos diocesanos e medida de sua importncia passaram a recorrer a outras autoridades no auxlio da administrao do ensino. Enquanto as escolas monacais deixaram uma sociedade feudal nos centros urbanos, as escolas episcopais, sombra das catedrais, se transformaram em importantes centros de cultura e instruo. As Escolas Monsticas ou Monacais ( sculo VI, VII, VIII ) O monaquismo comeou a ser praticado desde os primeiros dias da Igreja, e j no Novo Testamento se fez aluso a esse estilo de vida crist. Foi So Pacmio, no Alto Egito, que instituiu a primeira comunidade ou a primeira regra de vida monstica, pela qual se regeram os mosteiros orientais. No Ocidente, o monaquismo foi, tambm praticado desde cedo, mas a So Bento de Nrsia (480-543) que se deve a sua definitiva organizao, tornando-se 21

a regra beneditina, a partir do inicio do sculo V, o padro de todo ou quase todo o monaquismo Ocidental. Desde sua origem, os monastrios foram centros de instruo. No se limitaram porm, os monges a ensinar apenas aos que se destinavam vida monstica. Com a escassez das escolas, tornou-se usual e freqente as famlias entregarem aos monges seus filhos para serem instrudos e educados nos monastrios. Assim foram instaladas nos conventos duas escolas, Externa, para as crianas que no se destinavam vida monstica. A principio elementares, abrangeram mais tarde, o estudo de todas as disciplinas cientficas e literrias; outra Interna, para os oblatos, formao iniciada muito cedo, aos 6 ou 7 anos e ia at os 15 anos. A escola monstica era dirigida pelo MAGISTER PRINCIPALES, com professores auxiliares, pelo grande nmero de alunos. Ao ensino do canto, de mxima importncia na vida monstica, era acrescido o estudo do latim, continuando com o ensino das artes liberais. Grande importncia se dava ao regime disciplinar dos monges. Os estudos ocupavam ao todo seis horas do dia, alm do canto estudo de tcnicas ligadas arquitetura, pintura, miniatura, escultura, fundio, mecnica, etc. Mesmo no se privilegiando o ensino do quadrivium, a influncia dos beneditinos sobre o desenvolvimento da educao e da cultura ocidental, foi ampla e profunda. Cristianizavam e civilizavam os brbaros. As Escolas Palatinas ou Palacianas ( sculo VIII, IX ) Fundadas pelos reis merovngios e destinadas a instruir os nobres francos, essas escolas foram uma imitao, segundo alguns autores, de uma similar que existiu em Roma na Corte de Augusto. A Escola Palatina se teria originado da Capela Palatina, onde os nobres francos eram instrudos no campo. Decadente nos primeiros tempos do Imprio Carolngio, essa escola foi restaurada por Carlos Magno, que nela completou a sua prpria instruo. Escolas congneres instalaram-se depois na Inglaterra e Alemanha. Mais importante que essas criaes palatinas a obra empreendida por Carlos Magno para elevar a educao do povo, iniciando uma instruo secular, estatal, que infelizmente no teve continuao, mas firmou precedente valioso no processo posterior da escola pblica. Reconhecendo o estado lamentvel da cultura dos eclesisticos e a necessidade de contar com funcionrios dignos de seu Imprio, Carlos Magno baixou Proclamaes e Editos, inspirados por seu conselheiro Alcuino. Entre as proclamaes mais conhecidas figura a do ano 802, dirigidas aos Senhores de onde 22

ordenava que todos mandassem os filhos escola para estudar as letras e que o menino permanecesse na escola at ser instrudo nelas. Ao mesmo tempo buscou em Roma mestres para as escolas e instituiu funcionrios para servir de inspetores de ensino. Alcuino, copiando modelos das escolas anglo-irlandesas, mas com espirito mais amplo, revivesceu o ensino e reconstruiu a unidade das sete artes liberais do Trivium e Quadrivium. Sua reforma, apoiada pela vontade firme do Imperador, significou para algumas regies do Imprio a reconquista de um grande patrimnio perdido ou pelo menos suspenso durante longo tempo. A educao Cavalheiresca A mudana radical que se operou nas idias e nos costumes do sculo IX aos sculos XI e XII, mais que pela renovao e elevao da espiritualidade e da moralidade monstica e eclesistica em geral, est certificada claramente pela evoluo sofrida pelo IDEAL CAVALHEIRESCO, primeiro na Frana e logo em todo o Ocidente, sob a ao do clero, nico depositrio naqueles sculos da tradio religiosa e tica do Evangelho. Portanto, uma das instituies mais importantes e influentes do feudalismo foi a Cavalaria que, aperfeioada e espiritualizada pela Igreja, se transformou num poderoso instrumento de educao intelectual e moral, contribuindo para suavizar a rudeza e a violncia dos costumes feudais. A origem da cavalaria antecede a poca feudal. J entre os germanos vamos encontrar a existncia de uma classe militar profissional. A principio, as tropas combatiam a p, armadas de escudo, lana e espada. Mais tarde, os senhores feudais passaram a combater a cavalo, e a Cavalaria veio a constituir o ncleo principal dos exrcitos, sobre tudo da poca das Cruzadas em diante. A partir do sculo IX, os homens de armas, passaram a representar uma classe hereditria. Os filhos dos nobres que no se consagravam ao sacerdcio, eram educados para cavalaria e, dessa maneira, ser cavaleiro passou a constituir uma dignidade. A educao tinha como objetivo formar o perfeito guerreiro sem mcula e sem medo, virtuoso e voraz, corts e galante, fiel Deus, Igreja e ao rei ou suserano, protetor dos velhos, dos fracos e dos humildes. Sua instruo se realizava nos castelos feudais e abrangia vrios perodos de formao que iam dos 7 aos 21 anos. Ao invs das sete artes liberais, o seu currculo era formado das sete artes do cavalheiro!

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As Escolas Gremiais ( sculo XII, XIII, at fins da idade mdia) Independente da clerezia e da nobreza constitui-se, nos fins da Idade Mdia, nova classe social, formada dos habitantes dos Burgos ou vilas. Eram essencialmente comerciantes e tinham numerosas profisses artess. Organizavam-se em corporaes ou grmios. Para atender a essas novas relaes de produo

aparece uma nova escola na educao medieval. A educao GREMIAL tinha naturalmente carter profissional embora abarcasse uma poro de educao geral. Essa educao era dada na corporao com ou sem escola. Iniciando-se desde cedo como aprendiz de um mestre de profisso, com ele permanecia at os 15 ou 16 anos quando adquiria a hierarquia de oficial. Nalgumas profisses havia tambm o grau de mestre, alcanando depois de exame no qual se apresentava uma obra-prima e que habilitava para ser diretos do trabalho ou estabelecer-se por conta prpria. Algumas corporaes ou grmios criavam escolas que alcanaram grande reputao, como a dos alfaiates de Londres (Taylors School) e dos pedreiros (Maons) na Frana. Certos privilgios eram concedidos a estes mestres como a iseno de priso, de recrutamento. O currculo consistia basicamente do ensino de um oficio, alm de rudimentos de leitura e escrita. As Escolas Municipais ( sculo XII, XIII, XIV) As transformaes econmicas resultantes das Cruzadas, nos sculos XII e XIII, tiveram profunda repercusso no domnio do ensino, que se tornou por assim dizer, mais democrtico, revestindo-se tambm, em certo sentido num ensino mais prtico e comercial. As escolas catedralcias e paroquiais j no podiam acudir s necessidades da educao popular, pois muitas vezes, ficavam distantes das novas povoaes, que iam surgindo em consequncia das atividades econmicas da nova classe. Por isso, foram criadas escolas locais (burgos ou municpios), mantida s expensas das autoridades civis, mas com auxlio e superviso da Igreja. O programa de ensino compreendia a leitura, escrita, noes de lngua materna, religio, rudimentos de aritimtica e, principalmente, a lngua latina. No eram gratuitas essas escolas, contribuindo os pais para sua manuteno com taxas proporcionais s condies econmicas de cada um. No inicio a preocupao mxima da escola era proporcionar ao aluno a possibilidade de versar corretamente a lngua latina, lngua internacional e que tinha frequente aplicao prtica, mesmo fora dos crculos intelectuais, pois os atos oficiais dos governos e at os livros comerciais eram redigidos em latim. Um pouco mais tarde, vieram a fundar-se nos lugares mais comerciais ou industrializados, escolas municipais de carter nacional, onde o estudo do 24

vernculo substituia parcialmente o latim. Mesmo considerada uma instituio civil, a escola Municipal no deixou de se subordinar, sob certos aspectos autoridade da Igreja. Nenhum professor poderia nessa escola ensinar sem a licena concedida por um bispo ou eclesistico. Nos fins da Idade Mdia as escolas Municipais tinham adquirido grande desenvolvimento, sobretudo nas cidades do centro e norte da Europa e foram o princpio da educao pblica. As Universidades A partir do sculo IX o ensino medieval toma a sua prpria feio e nos sculos X e XI se produz no ocidente uma segunda renascena. o momento onde o esplendor intelectual do Isl atinge seu apogeu. Todo esse conhecimento derrama a sua seiva sobre o pensamento do ocidente que havia ficado nas noes inconsistentes e confusas dos ultimos enciclopedistas latinos. No sculo XII em todas as escolas se perceber uma verdadeira fermentao de idias e doutrinas. Franciscanos e dominicanos se engajavam na luta pela vaidade honativa disciplinando e controlando os estudos. As instituies que assumiram esta tarefa de forma exemplar foram as universidades. A Universidade medieval se caracterizava por ser um agrupamento corporativo de mestres e alunos, magistrorum et scolarum. Ela possui uma feio internacional, pois frequentada por estudantes de todas as naes e seus grandes professores circulam de uma para a outra. Os graus por ela concedidos tem por isso valor em todos os pases da Europa. Sem cair no exagero, pode-se afirmar que a Universidade de Paris o centro do ensino (studium) de toda a Cristandade, como o Papado de Roma seu centro espiritual e o Imprio seu centro temporal. Se o Studium generale, no sentido que ele compreende todas as disciplinas, mas subordinadas a teologia. A Universidade no um estabelecimento escolar em um edifcio para servios comuns, mas uma sociedade de homens unidos por um esprito comum e devotados as mesmas tarefas. Isto significa que uma sociedade composta no s de membros do clero secular e regular, mas tambm conta com um grande nmero de leigos em todas as reas de ensino que no a teologia. Na verdade esta mistura do carter religioso que a Universidade Medieval trazia de suas origens e do carter leigo que ela tinha pela sua composio, correspondia bem a ideia que ela se fazia de sua funo intelectual. Antes de tudo o objetivo foi o de constituir uma filosofia crist, a escolstica, ou o esforo para introduzir a razo do dogma. 25

A medida que se tornavam independentes dos poderes religiosos locais as universidades passaram a defender sua autonomia e suas juridies especiais. Por outro lado, o desenvolvimento dos estudos foi levando a uma diferenciao na ordenao do ensino. Os estudantes se agruparam naturalmente em naes no s pelas suas origens, mas tambm por Faculdades pelo seu destino. Assim surgem as trs faculdades superiores: teologia-jurisprudncia, medicina e a Faculdade de Artes, isto , o ensino preliminar todos os outros de carter profissional. O desenvolvimento das Universidades desde os fins do sculo XII se deve ao fato da Igreja ter estabelecido o duplo princpio da liberdade e da gratuidade do ensino universitrio. As universidades foram portanto desde suas origens, instituies democrticas do seu tempo. No que se refere organizao do regime escolar e do ensino importante ressaltar a afirmao do princpio de Autoridade (inerente ao pensamento teolgico), que exclui todo e qualquer recurso ao esprito do livre exame. A pedagogia Medieval com seu sistema escolar diversificado porm, tendo como eixo central a Autoridade Teolgica, se distingue radicalmente da pedagogia antiga que se ampliou da educao cvica humanstica. O cristianismo atacou de frente esta concepo pedaggica e acabou pondo-a em runas. Dissociou-se a idia da pessoa humana do seu valor de cidado e desenvolveu a sua vocao do homem espiritual. Colaborador: Marco Antonio Aguiar Santos - (Graduando em Pedagogia/UFRJ) Bibliografia AYRES, B.R. Pequena Histria da Educao. Brasil, 1957. CODIGNOLA, E. Historia de la Educacin y la Pedagogia. Buenos Aires: El Ateneo, 1964. COMPAYR, G. Histoire de la Pdagogie. Paris: Classique Paul Delaphane, 1956. MESSER, A. S. Historia de la Pedagogia. Madrid: Labor, 1930. MONROE, P. Historia da Educao. Nacional, 1958. LARROYO, F. Historia General de la Pedagogia. Mexico: Porrna, 1967. DILTHEY. Historia de la Pedagogia. Losada, 1942. LUZURIAGA, L. Historia da Educao e da Pedagogia. Companha Nacional, 1967. DURANT, W. Histria da Civilizao. Tomo II. as

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A Retrica do Amor Corts Maria do Amparo Tavares Maleval - UFF A reflexo sobre o amor corts vem ocupando numerosos intelectuais da atualidade. No apenas tem interessado a crticos literrios e fillogos medievalistas, como tradicionalmente era mais comum acontecer, mas a historiadores da monta de um Georges Duby (1) e psicanalistas como Jacques Lacan (2), dentre outros (3). No Brasil, lembraramos os estudos de dois grandes fillogos medievalistas, Segismundo Spina e Celso Cunha. Do primeiro, a FFLCH da USP publicou, em 1966, o j clssico Do formalismo esttico trovadoresco (4), no qual analisa com percucincia a tpica amorosa nos cantares medievos. Do segundo, os Anais do I Congresso Internacional da Faculdade de Letras da UFRJ, publicados em 1989 (5), documentam a magistral conferncia sobre "Amor e ideologia na lrica trovadoresca", proferida no evento, em 1987. Mesmo aos no medievalistas o tema interessaria. Assim, em 1977, publicava Afonso Romano de Sant'Anna algumas pginas em livro, dedicadas "teoria do amor corts". Revivendo algumas caractersticas desse Amor, situado dos sculos XI ao XIV, conclua, aps relembrar cantiga de Pero Meogo (no de Pedro Gonalves, como aparece grafado), que por esta e por outros que dizamos que j se amou mais e, talvez, melhor. Agora tiramos o talvez e pomos - certamente - melhor. Poesia e amor eram a mesma coisa. Hoje, a poesia est morrendo e se ama de qualquer jeito (6). Se amavam melhor os nossos antepassados medievos, no o sabemos. At porque tal espcie de amor se documenta no mbito da fico, como teremos ocasio de comentar adiante. Mas observara bem o citado intelectual a equivalncia amar/poetar, ou melhor, amar/trovar que ento existia, alis reconhecida por trovadores como o grande Martim Moxa. Este mestre da poesia, em uma das suas densas composies, j confessava: "am' eu e trob' e punh' en ma servir" ( dama), reiterando em outra: "Am' eu e trob' e servh' a mays poder / aquesta dona por seu ben aver" (7). Fica claro que o amor se colocava, ento, literariamente, como um servio, sendo o trovar uma depurada forma de se prestar vassalagem "senhor", ora objetivando o alcance de recompensa, ora de forma abnegada, esta muito comum entre os trovadores galego-portugueses, que tematizam preferentemente a coyta em seus cantares. Lembramos ainda, para firmar a atualidade do tema, que a Revista Veja publicava, em 1992, reportagem feita com o psiclogo Ailton Amlio da Silva, Professor da Universidade de So Paulo, estudioso da "arte da paquera" na

contemporaneidade. Conclura ento que, na seduo amorosa, "o critrio mais decisivo em quase todas as culturas a capacidade de compreenso e a gentileza do parceiro" (8). Portanto, sublinhamos, a delicadeza tem sido fundamental na corte amorosa. E a "mesura", propugnada pelos cantadores e tratadistas do Amor desde o Tempo das Catedrais, avulta em importncia nos estudos acerca das atitudes, dos sinais, da retrica da seduo. Antes de irmos adiante na reflexo sobre tal forma de amor, que conforme destacara Gustave Cohen fora (traduzimos) "uma grande descoberta da Idade Mdia e em particular do sculo XII francs" (9), gostaramos de citar ainda uma sua famosa reapropriao, pardica, na atualidade. Trata-se da feita pelo genial Charles Chaplin, que em muitos dos seus filmes imortalizaria verdadeiros exemplos do "amor delicado", do amor-servio, do amor abnegado, na esteira da literatura cavaleiresca e trovadoresca medievas. Ou quixotesca, como o demonstra Suely Reis Pinheiro num dos captulos de sua tese de Doutoramento (USP, 1995), intitulada Carlitos: a pardia gestual do heri, na qual busca surpreender o dilogo do personagem chapliniano com o anti-heri pcaro e o Quixote (10). O amor denominado corts apenas foi assim chamado no sculo XIX, a partir do estudo sobre Lancelot, de Chrtien de Troyes, efetivado por Gaston Paris em 1883. Para os trovadores, era a verai' amors, bon' amors , fin' amors, principalmente esta ltima. E preconizava, dentre os seus aspectos fundamentais, o cultivo da mesura e da vassalagem amorosa, ligada idia do servio pessoal caracterstico do Feudalismo. Causa espcie, no entanto, que tenha eclodido justamente no Sul da Frana, individualista, pautado pelo direito romano justinianeu propugnador da liberdade individual, e no pelo feudal, sustentculo da rgida cadeia hierrquica que subordinava o vassalo ao seu senhor. J o observara Segismundo Spina (11), mas com lembrar igualmente que, a par das heresias que por l proliferavam, a mulher adquirira relevo nos castelos, gozava de independncia e se fazia cultuada nas canes dos trovadores. Muito inverso era o que ento ocorria no Norte da Frana, ocupado com louvar os valores blicos dos cavaleiros nas gestas, em que o papel feminino era simplesmente acessrio. O considerado primeiro trovador, Guilherme IX (1071-1127), cujo lado de "cnico" bandido, mestre da rapinagem blica, no tem passado despercebido aos especialistas, se representa como vassalo da sua dama, por quem "treme", por cujo beijo anseia, e em cujas mos reconhece estarem "todos os prazeres do mundo" (12). Isto ao tempo em que Robert d' Abrissel criava, por volta de 1100, o convento de Fontevraut, dirigido por uma abadessa, e no qual se refugiavam as damas contra casamentos indesejveis.

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Pois bem, pelo menos literariamente vemos que a mulher se torna, nos cantares trovadorescos, a suserana que orienta a vassalagem e a mesura do trovador/amador, dignificando-o e sendo por ele dignificada, j que louvada em suas virtudes, que mais adiante arrolaremos. Mas, na realidade, qual seria a condio feminina na sociedade do sculo XII? ... Para Georges Duby, no ensaio "A propsito do amor chamado corts" (13), no houve "uma particular promoo da mulher. Houve, de fato, promoo da condio feminina, mas, ao mesmo tempo, igualmente viva, uma promoo da condio masculina, de maneira que a distncia permaneceu a mesma" (13). Observando as estratgias matrimoniais ento correntes, afirma o eminente especialista que, na sociedade aristocrtica de ento, o celibato forado dos jovens levava frustrao de no possuirem uma casa estabelecida, uma esposa legtima; por outro lado, os contratos matrimoniais nada tinham a ver com os sentimentos dos noivos, o que redundava num relacionamento frio e desigual, quando muito pautado "na estima condescendente do homem", "na reverncia amedrontada da mulher"; desigualdade fomentada desde a separao dos sexos aos sete anos de idade. Muito embora o costume era ficar ento o aprendiz de cavaleiro a servio de uma senhora, na verdade era ao senhor do feudo que tal vassalagem se dirigia. Diante da realidade do casamento sem amor, um simples negcio visando ao "acrescentamento" dos bens, fazia-se, pois, necessrio, um cdigo "que fosse uma espcie de complemento do direito matrimonial". Esperava-se que esse cdigo, "ritualizando o desejo, orientasse para a regularidade, para uma espcie de legitimidade, as insatisfaes dos esposos, de sua damas, e sobretudo dessa inquieta multido de homens turbulentos que os costumes familiais foravam ao celibato". Teria, pois, uma funo de regulao, de ordenao, que ajudaria na resoluo de problemas polticos. Portanto, os textos que regulamentavam a cortesia (amorosa), compostos no sculo XII, o foram "em cortes, sob a observao do prncipe e para corresponder sua expectativa", realando/revalidando os valores cavaleirescos, suas ostentaes, iluses e vaidades. Assim teriam surgido numerosos tratados, como o De amore, de Andreas Capellanus, que comentaremos adiante, alm das teorizaes dos poetas, por exemplo, os postulados da fin' amors estabelecidos por Raimon de Miraval, que se considerava e era considerado mestre na arte de amar. Lembremos, no entanto, que j no sculo XI, em 1022, o andaluz Ibn Hazm compusera uma obra, na traduo espanhola intitulada El collar de la paloma (14), que, assumindo uma viso espiritualista do amor, para o qual a matria via de acesso, estabelece claros

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preceitos da arte amatria, acrescidos de exemplos de costumes dos nobres da poca do apogeu do Califado de Crdoba. Mas antes de passarmos ao exame de tal cdigo, retornemos questo da condio feminina no sculo XII. Dizendo ter por base obras lricas e romanescas da segunda metade do sculo XII na Frana, Duby, no j citado estudo, questiona "a correspondncia entre o que expem e a verdadeira organizao dos poderes e das relaes de sociedade". E,embora qualificando o amor corts como "literatura de sonho, de evaso, de compensao", percebe ter havido, por parte dos receptores, "aceitao e, conseqentemente, jogo de reflexos, dupla refrao" (15). Estava, pois, em relao com o que os preocupava, com a sua situao real, no deixando de influir sobre eles. Uma primeira conluso j se delineia a partir das reflexes anteriores: a de que o amor corts situa-se no mbito da fico literria. Para Jacques Lacan (16) uma "escolstica do amor infeliz". Nem sempre o ser, mas via de regra assim se manifesta. Possui uma "organizao extremamente refinada e complexa", coloca "no primeiro plano uma certa arte social da conversao", que tematiza o "poder" da dama em gerar todo Bem, atravs da sua recompensa ao servio masculino, da clemncia e da graa. Mas cuja crueldade tende a ser uma constante que leva o servidor ao aniquilamento. Nesse jogo discursivo, qual o sujeito e qual o objeto?... O sujeito , num sentido mais amplo, o Amor, cujo cdigo de comportamento deve ser obedecido. E em sentido mais restrito, o sujeito do discurso e da ao da "paquera " o "jovem", isto , o homem, via de regra ligado classe dominante, dotado de juventude ou simplesmente solteiro. O objeto a Dama, cercada, isolada, inacessvel quase sempre, qualquer que seja a posio social do "requestador" ou a sua prpria. Tal inacessibilidade costuma ser sempre atribuda ao fato de ser ela casada e pertencente a uma classe social superior, o que tornaria o amor incompatvel com o casamento. Muito embora j haja estudos que comprovem a predominncia da "puella" sobre a "domina" no universo das cantigas, no entanto inegvel a tendncia idealizao da mulher e do amor, at pela generalizao e pelo carter indefinido do vulto feminino que nelas se desvela. No Tratado de Andr, o capelo (17), a relao do amor com o casamento se coloca em empolgada disputa dos interlocutores - uma dama e o seu cortejador -, que fazem rivalizar a defesa da possibilidade de existncia de esposos-amantes com a da natureza exclusivamente adulterina do amor. O cortejador, da alta nobreza, defende o amor adulterino, alegando que "o marido, possuindo a mulher, no a pode desejar ardentemente", nem ter dela cimes (considerado componente indispensvel de tal sentimento), razo pela qual no pode ser por ela educado 30

para a cortesia. J a dama nobre cortejada defende "a superao da antinomia matrimnio/ amor livre", com a sntese dos esposos amantes. O que poderia contrariar os cnones da poca, uma vez que a Condessa Maria de Champanha arbitra na mesma obra a favor do amor adulterino (18), mas que, j lembrava Celso Cunha (19), encontra respaldo nos Patriarcas do Velho Testamento, sendo que no Deuteronmio, 24, 5, se defende ao marido o direito de desfrutar por um ano os prazeres do casamento, perodo em que poderia isentar-se das obrigaes comunitrias: "Quando um homem for recm-casado, no dever ir para a guerra, nem ser requisitado para qualquer coisa. Ele ficar em casa, de licena por uma ano, alegrando a esposa que tomou". Voltemos ao consenso j estabelecido pelos estudiosos da atualidade em relao ao amor corts: situa-se nos domnios da fico, do jogo potico - do que alis os trovadores demonstram possuir funda conscientizao, sendo muitos os seus poemas auto-reflexivos. Jacques Lacan, na sua abordagem psicanaltica de tal fenmeno, j partira da concluso dos historiadores, que consideram-no "um exerccio potico, uma maneira de jogar com um certo nmero de temas da conveno, idealizantes, que no podiam ter nenhum correspondente no concreto real" (20). Ressalta ele que a "Dama", embora a sendo "cultuada", era no entanto evocada por um termo occitnico masculinizado: "mi dom". E apresentada com caracteres despersonalizados, todos os poemas parecendo dirigirem-se mesma pessoa. Apresentam, pois, o "objeto feminino esvaziado de toda substncia real". E "aquilo que o homem demanda, em relao ao qual nada pode fazer seno demandar, ser privado de alguma coisa real" (20). Lembra ainda o psicanalista que o termo "domnei" ("servir dona"), empregado na terminologia do amor corts, aparenta-se do verbo "domnoyer", que significa "acariciar, brincar", sendo assi, a Dama um brinquedo, que domina o jogo por um dado momento. Alm do que, coloca-se o "jovem" narcisicamente em relao "senhor", como podemos nitidamente comprovar nos versos de Bernart de Ventadorn, que mereceram de Segismundo Spina a seguinte traduo: Perdi para sempre o domnio sobre mim, deixei de me pertencer desde o momento em que me permitiu olharme em seus olhos num espelho que me to caro. espelho, depois que me mirei em ti, comecei a morrer fora de suspiros; pois perdi-me do mesmo modo por que se perdeu na fonte o formoso Narciso (22). Separando o amador da amada, havia no apenas a funo social, mas os maledicentes e os maridos ciumentos. E a funo tica do erotismo, na lio do psicanalista, apontando para as tcnicas da reteno, da suspenso, da 31

interrupo, situa-o na ordem dos prazeres preliminares - o prazer de desejar exaltado. evidente que poemas existiram que se afastaram desta representao do amor infeliz, irrealizado, que se compraz masoquisticamente no ato de desejar sofrendo. Mas mesmo estes, em que o sensualismo mais evidente, ou falam do desejo de concretizao do amor sensual, ou maldizem, como nas albas, o momento da separao. Poderamos citar, como exemplos, poemas de Rimbaut de Vaqueiras, Giraut de Bornelh, Arnaut de Maruelh, Raimbaut d'Aurenga, etc (23). Portanto, conclui Lacan haver no cdigo da "fin' amors" uma "organizao artificial, artificiosa do significante que fixa num dado momento as direes de uma certa ascese" (24). Voltando a Georges Duby, mesmo discordando da afirmao de base - a de ser sempre necessariamente uma mulher casada o objeto do amor trovadoresco -, fundamental a sua observao, mesmo que bvia, de que historicamente era o adultrio feminino considerado a pior das subverses, uma vez que a sociedade se baseava em linhagens, sendo as heranas transmitidas por linha masculina, patrilinearmente. Em consequncia, a prova, o perigo maior da conquista mulher mais experiente e interdita, tornaria o jogo mais excitante e mais educativo. Sim, porque conclui o historiador, o "amor delicado" era um "jogo educativo", como um torneio, uma justa, onde o cavaleiro buscaria arriscar-se, dignificar-se, satisfazer-se com a vitria/conquista. Era, pois, um objeto ento forjado "para afirmar a independncia de uma cultura, a da gente da terra, arrogante, erguida resolutamente na sua alegria de viver, contra a cultura dos sacerdotes" (25). No uma "inveno feminina", mas um "jogo de homens", com "traos perfeitamente misginos", no qual a mulher aparece como um "engodo", similar aos manequins usados nos ensaios e demonstraes espetaculosas de justas e torneios. dama se consignavam deveres para prolongar a sensao da tentao e do perigo - enfeitar-se, velar/desvelar seus atrativos, recusar-se por longo/algum tempo, conceder parcimoniosamente recompensas progressivas -, tendo em vista servir ao exerccio de domnio do corpo e das emoes masculinas, disciplinao do desejo. Amizade estoica e viril. Portanto, finaliza o historiador, "nessa sociedade militar, o amor corts no foi na verdade um amor de Homens?"... Pois "servindo a sua esposa era (...) o amor do prncipe que os jovens queriam ganhar, esforandose, dobrando-se, curvando-se" (26). As regras do amor corts sustentavam, portanto, a moral do casamento, e reforavam as regras da moral vasslica, contribuindo, dessa forma, para o (re)nascimento do Estado.

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Raimon de Miraval, como j o dissemos, enquanto mestre da arte de amar traou os direitos e deveres dos amantes, frisando que amor exige submisso sua autoridade, devendo ser o cdigo amatrio obedecido na ntegra. Os comportamentos a recomendveis relacionam-se com a esperana, a incerteza, a recompensa, a ruptura, a fidelidade, as provas, a franqueza, o cime, o servio, a pacincia e o perdo - enfim, com os vrios aspectos do namoro, com os deveres recprocos e complementares dos envolvidos. Pautam-se as qualidades pela "mesura", que leva discreo e prudncia, ao crescimento interior, tendo em vista a dignificao dos amantes. O amor por ele definido como "um conjunto de bens e de males", no existindo sem sofrimento. J a definio que se l no Livro I do Tratado de Andreas Capellanus o materializa, ovidianamente, definindo-o como "uma paixo inata que tem sua origem na percepo da beleza do outro sexo e na obsesso por essa beleza, por cuja causa se deseja, sobre todas as cousas, possuir os abraos do outro e, nestes abraos, cumprir, de comum acordo, todos os mandamentos do amor" (27). A que distncia fica tal definio do tratado rabo-andaluz de Ibn Hazm!... Este, ao analisar os sinais do amor, destaca a importncia do olhar, uma vez que "o olho porta aberta da alma, que deixa ver suas interioridades, revela sua intimidade e delata seus segredos" (28). Voltando ao De amore, as regras da arte amatria por ele preconizadas, ditadas pelo prprio "deus/rei do amor", dizem respeito ao matrimnio (que no deve impedir o amor), ao cime (que o aumenta), fidelidade (necessria), ao crescimento ou diminuio da paixo (que acontecem), ao comum acordo (imprescindvel), poca fisiolgica adequada ao amor, ao luto recomendvel no caso da morte de um dos envolvidos, ao dever de amar e ao incitamento ao mesmo, generosidade em detrimento da avareza (que deve caracterizar o amante), ao recato, ao desejo e discreo do amador, dificuldade que torna mais apetecvel a conquista, timidez expressa na palidez do amante, emoo, substituio plausvel do objeto do amor, integridade moral que torna a pessoa digna para o amor, ao decrscimo e fim do amor, ao temor, ao cime, sintomatologia amorosa (no dormir, comer ou agir), ao estoicismo conveniente (anular-se pela amada, s achar bom o que lhe compraz). Em outro preceiturio mais extenso, na mesma obra do capelo Andr, relacionam-se ainda a maledicncia, a oposio aos amantes e o engano como elementos negativos; e recomenda-se, em outra passagem, a educao/cortesia permanente, bem como a pertena duradoura "cavalaria do amor, obedecendo s ordens das suas damas" (29). Alis, demonstra dessa forma mais uma dvida a Ovdio, que na sua 33

Arte de Amar j preconizava igualmente ser o amor uma espcie de servio militar (30). Temos, pois, que o cdigo do amor corts preconizava essencialmente um amor heterossexual, dirigido preferentemente a uma dama de classe superior, comprometida por vezes - o que muito contribuiria para a disciplinarizao do desejo masculino. Mas de qualquer forma tratava-se de um amor profano, que no poderia ser visto com bons olhos pela Igreja. Da a perseguio dos trovadores, a par dos hereges, na Cruzada contra os albigenses. Lembramos que, na obra rabo-andaluza que vimos citando, so, diferentemente, documentados casos de amor homossexuais e heterossexuais, bem como entre nobres e escravas, sendo a mulher valorizada pela paixo que pode despertar, no pelo valor social. E o amor se apresenta enquanto permitido pela religio. Mas que no se pense serem sempre desacordes as posies: de comum com os tratadistas e alguns trovadores "franceses", estabelecera Ibn Hazm a condenao dos maledicentes e espias que atrapalham os enamorados, a discreo necessria aos amantes, a comprovao de no ser o amor eterno, o tpico "morrer de amor", a apologia da formosura fsica, embora sempre mostrandoa com um reflexo da espiritual. E, ainda, o reconhecimento do xtase provocado pela unio amorosa, "sublime fortuna", anloga a um dos modos de manifestao da "joy d'amors" provenal. Para finalizar, ilustraremos como a mesura e o culto mulher propugnados por tal cdigo se afastavam diametralmente das relaes existentes entre casais das cortes em que fora praticado literariamente. Lembramos o caso ocorrido entre Afonso III de Portugal e a Condessa de Bolonha: o rei portugus, que se tornara Regente macomunado com a Igreja, que destronara o seu irmo Sancho II, casarase com a filha de Afonso X de Castela, por interesses de Estado, sendo j casado com a dama bolonhesa e tendo com ela um herdeiro. Esta, vem sua procura, mas proibida por ele, da forma mais impiedosa e grosseira, de saltar das naus. Conforme documenta a Crnica de Cinco Reis de Portugal, ordenou-lhe que "se tornasse pa sua terra e na fosse ousada de sair em seu regno sena que fosse certa se o contrario fizesse que elle teria com ella tal maneira de ~q lhe muito pesaria" (31). Tal exemplo do sculo XIII, quando o surto trovadoresco se revitalizara nas cortes ibricas, dando seguimento ao que ocorrera na Provena silenciada: o amor corts se apresentava como tema principal dos cantares da fidalguia, a par do culto mariano expresso nas cantigas de responsabilidade do "Rei Sbio" de Castela, alis genro do bgamo protugus.

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Notas 1. DUBY, Georges. Idade Mdia, Idade dos Homens. Trad. Jnatas Batista Neto. So Paulo: Cia. das Letras, 1989. 2. LACAN, Jacques. "O amor corts em anamorfose". O Seminrio, livro 7: A tica da psicanlise. Rio de janeiro: Zahar, 1991. p. 173-190. 3. IRIGARAY, Luce. Ce sexe qui n'en et pas un. Paris: Minuit, 1977. -------------------. Speculum. De l'autre femme. Paris: Minuit, 1974. BARTHES, Roland. Fragments d'un discours amoureux. Paris: Seuil, 1977. 4. SPINA, Segismundo. Do formalismo esttico trovadoresco. Boletim n. 300, Cadeira de Literatura Portuguesa n. 16, So Paulo, USP, 1966. 5. CUNHA, Celso Ferreira da."Amor e ideologia na lrica trovadoresca". Anais do I Congresso Internacional da Faculdade de Letras, realizado de 14 a 18/09/87. Rio de Janeiro, UFRJ, 1989. p. 11-25. 6. SANT'ANNA, Afonso Romano de. "A teoria do amor corts". Por um novo conceito de narrativa. Rio de Janeiro: Eldorado, 1977. p. 154-161. 7. PICCHIO, Luciana Stegagno. Martin Moya. le poesie. Ed. crt., intr. e gloss. Roma: Edizioni dell'Ateneo, 1968. p. 129 e 134. 8. Revista Veja, ano 25, n. 9: 7-9. So Paulo, 1992. 9. COHEN, Gustave. La grande clart du Moyen ge. Paris: Gallimard, 1945. p. 88. 10. PINHEIRO, Suely Reis. Carlitos: a pardia gestual do heri. Doutoramento. So Paulo, USP, 1995. Tese de

11. SPINA, Segismundo. A lrica trovadoresca. So Paulo: EDUSP, 1991. p. 22. 12. Ibidem, p. 99-100. 13. DUBY, Georges. Op. cit., p. 59-65. 14. IBN HAZM. El collar de la paloma. Vers. de Emilio Garca Gmez. Prl. de Jos Ortega y Gasset. 5. ed. Madrid: Alianza Editorial, 1985. 15. DUBY, Georges. Op. cit., p. 59. 16. LACAN, Jacques. Op. cit., p. 173. 17. ANDREAS CAPELLANUS. De amore. Tratado sobre el amor. Trad. de Ins Creixell Vidal-Quadras. Barcelona: El Festn de Esopo, 1985. p. 189-197. 18. Ibidem, p. 201-203. 19. CUNHA, Celso Ferreira da. Op. cit., p. 25. 20. LACAN, Jacques. Op. cit., p. 184. 21. Ibidem, p. 185. 22. SPINA, Segismundo. A lrica trovadoresca. Ed. cit., p. 133. 35

23. Ibidem, p. 127-128, 155, 167, 169, 170, 176. 24. LACAN, Jacques. Op. cit., p. 189. 25. DUBY, Georges. Op. cit., p. 60. 26. Ibidem, p. 65. 27. ANDREAS CAPELLANUS. Op. cit., p. 55. 28. IBN HAZM. Op. cit., p. 109. 29. ANDREAS CAPELLANUS, Op. cit., p. 157. 30. OVDIO. Ars amatoria- Arte de amar. Texto bilnge. Trad. Natlia Correia e David Mouro-Ferreira. Ap. c/ trad. de Antnio Feliciano de Castilho. 2.ed. So Paulo: Ars poetica, 1992. p. 162.163. 31. CRNICA DE CINCO REIS DE PORTUGAL. Ed. dipl. e prl. de A. de Magalhes Basto. Porto, Liv. Civilizao ed., [s.d.]. p. 200.

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COMUNICAES

Alguns Aspectos Scio - Econmicos do Imprio Romano no Decorrer do IV Sculo d.C. Adriana de Cssia de M. Rodrigues - Mestranda - UFRJ -IFCS Introduo Neste trabalho, objetivamos ressaltar romanos no decorrer do IV alguns aspectos scio-econmicos era. importante porque tais sculo de nossa

caracteres se prolongam at a Idade Mdia possibilitando o surgimento de um novo mundo (1). Entretanto, para que possamos compreender melhor o nosso objeto de estudo, a sociedade e a economia romanas do IV sculo d.C, preciso nos lembrarmos que, como diz Gza Alfoldy: " As condies sociais do Baixo Imprio assentavam em grande medida nas estruturas surgidas no perodo de crise, desde o final da poca dos Antoninos at Diocleciano " (2). O referido autor nos mostra, portanto, que o mundo romano tardo-antigo foi fruto das muitas transformaes geradas a partir do perodo da Anarquia Militar, que teve lugar entre os anos de 235 a 284, ultrapassando, assim, o mbito estritamente poltico.(3). crise do III sculo seguiu-se, na centria posterior, uma poca de restauo, a "Reparatio Tais e palavras Constantino Saeculi", como se convencionou ser chamada (4). eram, freqentemente, encontradas nas moedas e inscries (306-337), se comprometeram em "salvar" um estado que se

atestando a poltica dos imperadores que, a exemplo de Diocleciano (284-305) encontrava fragilizado (5). Embora pressupunha-se que esta restaurao abarcasse os diversos setores da vida imperial, ficou claro que esta referia-se, mais diretamente, ao mbito cultural uma vez que, como veremos, a sociedade e a economia sofreram grandes modificaes. As Reformas de Diocleciano e Constantino Essas mudanas vultuosas ocorreram a partir dos reinados dos, j citados, Diocleciano e Constantino. Estes imperadores foram responsveis por reformar o Estado Romano, atacar a crise que os antecedeu - no III sculo - , manter a ordem e unidade do Imprio. A sociedade e a economia romanas foram afetadas na medida em que entraram em cena alteraes no sistema fiscal. O primeiro passo foi dado pelo ilrio Diocleciano quando criou o "capitatio" e o "jugatio", impostos que atingiam a todos os habitantes do Imprio.

Estes impostos tinham o seu valor calculado sobre o tamanho das propriedades e sobre variava segundo o que nelas era cultivado. Tambm eram contabilizadas as cabeas dos animais criados pelos donos das terras. O aumento dessa taxa as necessidades do Imprio de se sustentar e de manter os efetivos militares. Ao mesmo tempo, Diocleciano tornou hereditrias as funes exercidas pelos cidados. Sob o reinado de Constantino, continuador das obras do primeiro, criou-se a lei de 332 que prendia o campons terra inaugurando o Colonato. Essas medidas em que trabalhava, fiscais pretendiam, dentre outros

aspectos, garantir a arrecadao da receita aos cofres imperiais. A Sociedade Romana no IV Sculo Fruto das transformaes ocorridas no III sculo e das medidas imperiais adotadas no decorrer do IV, surge uma nova arrumao social. A sua estruturao estava baseada na posse de bens e no nascimento (7) o que fez surgir uma srie de diferenciaes que separavam as A sociedade anterior diviso categorias sociais. Estas eram disties de natureza econmica, religiosa e tnica (8). romana do IV sculo encontrava-se bipolarizada. Da clssica entre "honestiores" e "humiliores" passou-se para a

diferenciao entre "potentes" e "tenuiores" (9). Em outras palavras, entre os que possuam e os que eram destitudos do poder (10). Aqui, podemos observar uma clara distino pontos atacados e duramente entre ricos e pobres proporcionado pelo imenso abismo social que os separava. Este foi um dos criticados pelos Padres da Igreja tanto latinos, como Ambrsio de Milo (11) e Agostinho de Hipona (12), quanto gregos, como Baslio de Cesaria (13) e Joo Crisstomo (14). Os Potentes No lado superior da dita bipolarizao social estavam os "potentes". Estes eram aqueles que, como vimos, possuam o prestgio e preeminncia poder. Alm disso, detinham reconhecidos graas,muitas vezes, s suas

propriedades fundirias, s funes que ocupavam e riqueza que desfrutavam. Realizavam servios administrativos e financeiros do Imprio. Entre os "potentes" encontravam-se as seguintes categorias sociais (15): a dos "nobilissimi", composta pela famlia imperial; a dos "clarissimi", integrada pela ordem senatorial; Imprio. Os "potentes", riquezas, mesmo mantendo-se igualados no que diz respeito s eram integrados por membros diversos e com interesses distintos sendo e a dos "perfectissimi", altos funcionrios civis e militares do

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comum haver discordncias entre eles e possvel a existncia de faces contrrias (16). Os Tenuiores No lado inferior da estrutura social romana estavam os "tenuiores", que eram destitudos do poder. servios vitais para a sua manuteno e prprio sustento. Entre os "tenuiores" encontravam-se decuries, corporaes profissionais, as categorias a seguir (17): cobravam os impostos; provises; os as os que promoviam as festas pblicas e os Eram incumbidos de fornecer ao Estado

que guarneciam o Imprio com

trabalhadores das oficinas, aos quais cabiam o cunhagem de moedas; e, os trabalhadores agrcolas, alimentcios.

fabrico de armas, tecidos e produtores de gneros

Embora composta por um leque variado de pessoas, com origens diferentes, era muito mais homognea que a dos "potentes", pois se encontravam oprimidos, privados de seus direitos e massacrados pelos altos impostos imperiais (18). Eram, poder (19). "potentes" e "tenuiores", portanto, as vtimas do O Patronato Integrantes da mesma formao social, claro, relacionavam-se entre si. Porm, havia uma imensa e profunda

diferena entre ambas categorias. Os primeiros detinham os meios e a forma de exerccio do poder. J os segundos estavam fadados a sustent-lo. Entre ambos se estabeleceu uma relao de Mdia. Os "potentes", as entregavam ou ricos proprietrios de incontveis extenses de terras, por muitas vezes, por motivos de segurana pesados (como foi na poca da cooptavam as pequenas propriedades dos camponeses que, Anarquia Militar) ou por fuga dos Neste jogo, dependncia pessoal que caracterizou a Idade

impostos que lhes recaam sobre os

ombros (mais frequente durante o IV sculo d.C.) (20). cabia ao "potente" (patrono) receber os agentes do fisco e lhes pagar as taxaes devidas por cada dependente (cliente), o que nem sempre acontecia. essa prtica convencionou-se chamar de Patronato e tornou-se cada vez mais comum no decorrer do IV sculo d.C. O Patronato constituiu-se em algo gerado pelo Imprio que, com o intuito de estabilizar as suas finanas, elevou o nmero de impostos cobrados que recaiam sobre os "tenuiores". Na maioria dos casos estes no tinham condies de pag-los. Estes despossudos, ao no conseguirem cumprir com as obrigaes fiscais, submetiam se, assim, ao poder de um patrono que, em troca da proteo, 40

exigia-lhes o seu trabalho, a sua liberdade e a sua terra - caso a tivessem. Essa fuga desencadeou problemas srios ao Estado Romano. Mas que tipo de problemas eram esses? Os percalos causados pelo Patronato acabaram por ameaar duplamente a prpria existncia do Imprio. Estes problemas foram muitos dentre

os quais destacamos, apenas, dois, a saber: o que dizia respeito mo-de-obra e o que fazia referncia receita pbica. No que toca mo-de-obra, absorvia continuavam ligados, como podemos observar que o Patronato trabalhadores de diversas atividades econmicas, com os quais os camponeses e os artesos. Eram eles que

muniam o Imprio de alimentos e produtos impressindveis sua sobrevivncia - o que deixou de ocorrer quando se punham s