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1 ANAIS DO I SEMINÁRIO INTERINSTITUCIONAL DE PESQUISA 22 e 23 de setembro de 2011

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ANAIS DO

I SEMINÁRIO INTERINSTITUCIONAL DE PESQUISA

22 e 23 de setembro de 2011

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URI – UNIVERSIDADE REGIONAL INTEGRADA DO ALTO URUGUAI E DASMISSÕES

CAMPUS DE FREDERICO WESTPHALENPROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS

I SEMINÁRIO INTERINSTITUCIONAL DE PESQUISA

Apresentação

Em janeiro de 2011, durante o desenvolvimento dos trabalhos de qualificação das dis-

sertações de Mestrado do PPGL da URI-FW, realizou-se o I Seminário Interno de Pesquisa.

Além da articulação de palestras que enfatizaram a importância da pesquisa acadêmica, desta-

cou-se a necessidade de se quebrar o isolamento dessas pesquisas, a fim de colocá-las em dis-

cussão, justamente para que houvesse trocas de experiências e amadurecimento das propostas

apresentadas.

O I Seminário Institucional de Pesquisa, realizado nos dias 22 e 23 de setembro de

2011, na URI-FW, visa a dar continuidade às atividades realizadas naquele primeiro momen-

to, mas dentro de uma dimensão maior. Agora, os discentes envolvidos não são somente os

mestrandos do PPGL da URI-FW, mas também alunos do curso de Graduação, Especializa-

ção, Mestrado e Doutorado que atuam em projetos de pesquisa ligados a programas de pós-

graduação da UFSM e UFPel.

Assim, fizeram-se presentes nesse seminário pesquisadores ligados aos seguintes Gru-

pos de Pesquisa: Literatura, História e Imaginário e Comparatismo e Processos Culturais,

coordenados pelos docentes do Mestrado em Letras da URI-FW; Literatura e Autoritarismo,

coordenado pela Profa. Dra. Rosani Ketzer Umbach, da UFSM; e Ícaro, coordenado pelo

Prof. Dr. João Luis Pereira Ourique, da UFPel.

Gostaríamos de manifestar um sincero agradecimento à Profa. Dra. Rosani Ketzer

Umbach e ao Prof. Dr. João Luís Pereira Ourique, que se mobilizaram e atenderam ao nosso

convite e, mais uma vez, contribuíram com suas experiências para que contássemos com dis-

cussões qualificadas. Queremos agradecer também aos professores do Mestrado em Letras da

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URI-FW – Dra. Denise Almeida Silva, Dr. Marcelo Marinho, Dra. Maria Thereza Veloso,

Dra. Nelci Müller e Dr. Robson Pereira Gonçalves – pelo incentivo à realização deste seminá-

rio e pelo estímulo dado aos seus orientandos para que se fizessem presentes.

Por último, mas nem por isso menos importante, gostaríamos de agradecer a cada um

dos alunos envolvidos, dada a certeza de que esta jornada tenha contribuído para seu amadu-

recimento enquanto jovens pesquisadores, a fim de que mantenham o seu firme compromisso

com a pesquisa qualificada ao longo de seu percurso acadêmico.

Esperamos que este seminário cumpra com sua proposta.

Prof. Dr. Lizandro Carlos CalegariProf. Dr. Ricardo A. F. Martins

(Organizadores)

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O MEDO COMO ALICERCE DO POEMA EM CARLOS DRUMMOND DE AN-DRADE

Amália Cardona Leites1

Profª. Drª. Rosani Ketzer Umbach2

Resumo: Os sentimentos de insegurança, inquietação e fragmentação na poesia muitas vezescorrespondem diretamente ao momento histórico no qual o poema é escrito. O presente artigotem como objetivo analisar os poemas Medo e Anoitecer, de Carlos Drummond de Andrade,verificando de que forma as transformações sociais ocorridas no século XX, especialmente aSegunda Guerra Mundial e o Estado Novo no Brasil, refletiram-se em sentimentos de opres-são e sofrimento nos poemas. Para tanto, utilizaremos as perspectivas de Theodor Adorno,Antonio Candido e Jaime Ginzburg. Ressaltaremos o comprometimento social do poeta, queescreveu A rosa do povo em períodos históricos extremamente delicados e perigosos, e não seeximiu de tratar assuntos incômodos e dolorosos em seus poemas.

Palavras-chave: Carlos Drummond de Andrade. Poesia social. Theodor Adorno.

1. Considerações iniciais

Sentimentos de insegurança, inquietação e fragmentação e as formas pelas quais eles

se expressam na poesia têm sido objeto de estudo e análise por parte de diversos autores e

teóricos. O século XX, caracterizado como “era das catástrofes”, foi marcado por duas gran-

des guerras e suas experiências de destruição em massa, representando o momento de deca-

dência das instituições e dos valores da sociedade burguesa. Foi preciso que os pensadores

reavaliassem seus conceitos e encontrassem novas maneiras de compreender as ciências hu-

manas e as letras – entre elas, a teoria da poesia lírica.

Dentre estas teorias temos duas que se opõe: A de Hegel e a de Adorno. A concepção

hegeliana, centrada na categoria de totalidade, contrapõe-se à concepção adorniana que busca

compreender a fragmentação formal e a ruptura como críticas da experiência social desuma-

nizadora no século XX, e a poesia passa a ser atribuída de um papel específico na crítica da

desumanização gerada pelo capitalismo e pela barbárie.

Adorno critica as “consequências conservadoras” do conceito de totalidade, que não

contemplariam as experiências individuais e sociais. Assim, a lírica em Hegel constituir-se-ia

como expressão da subjetividade, e seria possível, em um poema, sentir a maneira específica

1 Mestranda, PPGL-UFSM.2 Orientadora

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pela qual se dá a relação entre sujeito e mundo - e a sustentação da força de um sujeito estaria

nesta totalidade metafísica. A unidade do poema se vincularia, desta forma, com a totalidade

subjetiva.

Adorno propõe uma inversão para esta tradição. O percurso de superação de conflitos

dá lugar a uma razão antagônica dentro da qual as contradições não são superadas, e sugere a

troca do ideal de permanência pela finitude da experiência histórica. O interesse seria dire-

cionado, então, a uma concepção de sujeito incompleto, fraturado. Já no estudo Lírica e Soci-

edade Adorno propunha à lírica um “protesto contra um estado social que todo indivíduo ex-

perimenta como hostil, alheio, frio, opressivo” (2003). O individualismo burguês teria trans-

formado o sujeito em mera coisa, e caberia à lírica a função social de resistência em um con-

texto hostil. Estes impasses não resolvidos voltariam à obra de arte e seriam elaborados como

experiência estética.

2. Inquietações e fragmentação em Drummond

Seguindo esta linha de pensamento, dirigimos nossa atenção agora para o poeta brasi-

leiro Carlos Drummond de Andrade e as ideias proferidas por Antonio Candido em Inquietu-

des na poesia de Drummond. Candido analisa a forma pela qual Carlos Drummond, que em

suas primeiras obras não colocava em dúvida a integridade de seu ser a sua ligação com o

mundo, passou, com o tempo, a desconfiar de si mesmo e de seu fazer poético, vendo a poesia

como elaborada à custa da desfiguração ou da destruição do ser e do mundo.

Nestas obras, o que se sobressai é a insatisfação do indivíduo consigo mesmo, o “eu”

que poderia ter sido e não foi. O passado apresenta fragmentos do eu inicial, harmônico, dan-

do a impressão de uma realidade mais plena. Assim, o ato de trazer o passado de volta cons-

trói uma visão mais coesa que justifica a vida presente insatisfatória e sofrida. Esse presente

repleto de inquietudes aparece ainda de forma indireta nas alusões à náusea, sujeira, estado de

sonho ou sepultamento.

A opressão do ser - que se sente morto em vida - transforma o passado em ressureição

e redenção através da poesia, fundindo os conceitos de morte e criação, negação e afirmação.

Essa negação aparece ainda nas referências a automutilação, sangue e poluição. Em Drum-

mond, a consciência de viver em um mundo em que as relações humanas estão distorcidas,

desfiguradas, condiciona o indivíduo em suas relações com o outro, com o amor, com a famí-

lia e mesmo com a sociedade.

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O mundo torto aparecerá ainda como obstáculo e desencontro, fator que ao mesmo

tempo em que se opõe ao homem, opõe os homens entre si, criando desentendimentos e con-

flitos. Nesse mundo, os atos não tem necessariamente sentido nem se processam da forma

usual. É deste entendimento que surge a ideia social de “mundo caduco, feito de instituições

superadas que geram o desajuste e a iniquidade, devido aos quais os homens se enrodilham na

solidão, na incomunicabilidade e no egoísmo” (CANDIDO, 1977).

Esta sufocação do ser aparece no plano social na forma do medo. Medo que paralisa,

sepulta o ser humano, impede a transformação e assegura a permanência do estado caduco da

situação exterior. A consciência social, portanto, seria a redenção do poeta, e a própria poesia

uma metáfora para revolução. Candido ressalta que essa função social da poesia aparece com

mais ênfase na obra de Drummond a partir de 1942, tempo do fascismo, da Guerra da Espa-

nha e da II Guerra Mundial, mas não se deve somente aos fatores externos. Deve-se, isso sim,

às inquietudes e ao sentimento de insuficiência do eu, que busca completar-se no outro e, por-

tanto substitui seus problemas particulares pelos coletivos.

Desta forma, os sentimentos individuais são em parte justificados pelo meio, e a von-

tade de transformar o mundo é vista como forma de transformar a si mesmo, em uma via de

mão dupla. Encarado como consequência da sociedade, o estrangulamento do ser poderia ser

redimido pelas mudanças sociais, e a poesia social ganha em Drummond o sentido de discer-

nir a condição humana através das atividades cotidianas, que adquiririam status de “discretas

epopeias da vida contemporânea” (Ibidem,1977). O objeto poético seria a forma de realizar

algo completo em si – mas tal problema não se resolve, e o que predominam são a busca e as

indagações do eu poético.

3. Fragmentos da vida e obra do poeta

Da escola modernista, Drummond herdou a liberdade linguística, os versos brancos e a

temática do cotidiano - mas o poeta vai além de qualquer classificação, e deve ser apreciado

de mente aberta, com “todo o sentimento do mundo”. Neste trabalho, nos concentramos em A

Rosa do Povo. Escrita em 1945 e composta por 55 poemas, a obra é considerada a primeira

obra madura e a de maior expressão do lirismo social e modernista, por refletir o tempo indi-

vidual e coletivo vivido no mundo – a Segunda Guerra Mundial – e no país – o Estado Novo.

Em poemas que abordam o amor, o cotidiano, a própria poesia e as temáticas social e

existencial, Drummond deixa transparecer uma indecisão entre atração e repulsão, melancolia

e ironia que caracterizam sua riqueza e fecundidade, mas, sobretudo, refletem seu momento

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histórico. Desta forma, nosso objetivo aqui não é nos determos na classificação de sua poesia

em certa escola ou movimento, e sim verificarmos como o sentimento de medo, fruto da con-

juntura histórica de Drummond, aparece no fazer poético da obra em questão.

Foi através de sua poesia que Drummond evidenciou o momento de fratura e compar-

tilhou do sentimento de apreensão e insegurança pelo qual passava a sociedade durante a Se-

gunda Guerra Mundial. Enquanto milhões de pessoas eram mortas do outro lado do Atlântico,

o Brasil estava vivendo, desde 1937, o Estado Novo, regime totalitário fundado pelo presiden-

te Getúlio Vargas no qual foram presos não só militantes de esquerda, mas também intelectu-

ais vinculados a agremiações políticas comunistas - Graciliano Ramos e Monteiro Lobato, por

exemplo, foram presos neste período. Alguns eram mantidos em cárcere ilegal por meses ou

anos, sem sequer acusação formal ou processo judicial.

No mundo todo, o século XX foi marcado de forma terrível pela destruição em massa

de seres humanos por outros seres humanos, provocando a descrença no futuro e a desestabi-

lização de todas as instituições, como nos referimos anteriormente. Em uma sociedade desilu-

dida e sem rumo, as contradições não são passíveis de superação, e a tensão existente não é

resolvida. Além da reificação produzida pelo individualismo burguês, a ascensão de regimes

autoritários tornou fundamental o papel de resistência da arte. O horror das guerras, por e-

xemplo, não mais permitia a representação de um sujeito lírico total e plenamente constituído.

4. Anoitecer

Neste cenário Drummond lançou A Rosa do Povo, levantando o debate acerca da posi-

ção do artista no mundo e na realidade social de seu tempo. Reconhecendo a fragilidade de

conceitos como justiça, paz e liberdade em um mundo que se desmoronava ao seu redor, o

poeta partilhou do temor vivido pelos seus contemporâneos e retratou o medo existente em

todos os aspectos da vida particular e coletiva.

O poema Anoitecer, por exemplo, desde seu título já indica o momento em que o dia, a

luz e a vida vão embora, em que um ciclo se fecha. Para o eu lírico, esse momento é repleto

apenas do sentimento de medo. Na primeira estrofe percebemos que na cidade não há uma

igreja com sino tocando para chamar os fiéis e talvez oferecer um alívio espiritual ou alguma

possibilidade de redenção – ouvem-se apenas os sons das buzinas e sirenes que, com seus

apitos trágicos, uivam segredos. Não é mais possível esconder-se ou refugiar-se, já que as

sirenes perpassam o ambiente. Sirenes de carros de polícia lembram que o opressor está em

todo o lugar.

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Na segunda estrofe, a natureza está ausente, os pássaros não retornam para seus ninhos

– inevitável ver nos pássaros a liberdade, que não dá sinais de retornar ao cotidiano. No lugar

da vida natural temos as multidões exaustas após um dia de trabalho, qual óleo escorrendo,

subsumindo-se em seu próprio ambiente, sem mais sonhos ou esperanças.

Na terceira estrofe, o corpo, prostrado, não deseja apenas sono, porque sabe que não é

possível descansar. A única maneira de fugir da árida realidade é através da morte. E mesmo

que exista a esperança de paz na morte, o medo sobrepõe-se a qualquer outro sentimento.

Na última estrofe, percebemos que o eu lírico duvida mesmo da existência destes ele-

mentos (paz e calma), e a hora que deveria ser de delicadeza e abrigo torna-se finalmente a

hora dos corvos, animais funestos que violam não só o corpo, mas a consciência do eu poético

através de seu passado e de seu futuro. Sem nenhuma possibilidade de mudança ou esperança

de transformação, fica apenas o medo e a constatação de sua própria decadência.

A experiência de fratura e de insegurança aparece ainda em outros poemas de A Rosa

do Povo, ressaltando o comprometimento social do poeta em um momento histórico extre-

mamente delicado e perigoso, que não se exime de tratar assuntos incômodos e dolorosos em

seus poemas. Drummond fez sua parte como poeta e ser humano em um mundo caduco, e não

acidentalmente tornou-se um dos maiores poetas brasileiros.

Referências

ADORNO, Theodor. Palestra sobre lírica e sociedade. In Notas de Literatura I. São Paulo:Duas Cidades. 2003. pg.65-90.

ANDRADE, Carlos Drummond de. A Rosa do Povo. 21 ed. São Paulo: Record. 2000.

CANDIDO, Antonio. Inquietudes na poesia de Drummond. In Vários Escritos.São Paulo:Duas Cidades. 1977. pg. 67-97

GINZBURG, Jaime. Theodor Adorno e a poesia em tempos sombrios . In Alea.Estudos Neo-latinos.Vol5.nº01. Rio de Janeiro, 2003. Disponível em:<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1517-106X2003000100005> A-cesso em 08 de junho de 2011.

JUNIOR, Arnaldo Nogueira. Carlos Drummond de Andrade. Disponível em:<http://www.releituras.com/drummond_bio.asp> Acesso em 07 de junho de 2011.

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LITERATURA COMPARADA: MAUS – A HISTÓRIA DE UM SOBREVIVENTE

Carla Carine Gerhardt3

Profª. Drª. Rosani Ketzer Umbach4

Resumo: Através da obra de Art Spiegelman, Maus – a história de um sobrevivente, livro dehistórias em quadrinhos, que recria o ambiente autoritarista alemão da 2ª Guerra Mundial,pretendo analisar alguns dos aspectos que proporcionam uma leitura compreensiva e críticaacerca do tema, além de, consequentemente, estabelecer uma comparação através dos temassubjacentes. Esses temas são caracterizados por questões históricas, fatos sociais, cronologiapresente na narrativa, projeção da subjetividade sobre o testemunho e suas implicações para avalidade de documentos históricos, variadas formas de expressão, desvios psicológicos e as-pectos estético/estruturais (antropomorfismo, texto multimodal, etc.).

Palavras-chave: Art Spiegelman. História. Psicanálise. Repressão. Estética.

1. Introdução

Maus – A história de um sobrevivente foi escrita por Art Spiegelman (1986) e retrata a

narrativa de parte da vida de seu pai, Vladek Spiegelman, judeu polonês que vivenciou física

e psicologicamente o período nazista e repressor da 2ª Guerra Mundial, conseguindo sobrevi-

ver a ele. Escrita na forma curiosa de história em quadrinhos, a obra tem seus personagens

retratados por animais: os judeus são ilustrados como ratos (Maus5), os nazistas como gatos e,

por incrível que pareça, existiam poloneses não judeus, que eram ilustrados como porcos.

Essa representação é paralela com o que o autor coloca em sua epígrafe, de autoria de Adolf

Hitler, onde “Os judeus são indubitavelmente uma raça, mas eles não são humanos”. Adolf

Hitler6. Ou seja, este trabalho revelará de que forma pessoas inocentes foram julgadas sim-

plesmente pelo que elas são e não pelo que cometeram ou algo parecido.

Além dessa constatação, a obra envolve vários outros aspectos que também podem ser

considerados para fins de análise, tais como as questões históricas, a sucessiva cronológica e

narrativa, os fatos sociais, a projeção da subjetividade sobre o testemunho, os desvios psico-

lógicos e os aspectos estético/estruturais do texto, que serão estudados a fio mais adiante neste

trabalho. Tudo isso será relacionado com o propósito de estabelecer uma real literatura com-

parada, onde surgirão várias problemáticas, como, por exemplo, a questão da veracidade dos

3 Graduanda em Letras – Português e Literaturas da Língua Portuguesa da UFSM.4 Orientadora5 Maus, do título – ratos, em alemão.6 Hitler (apud SPIEGELMAN, 1986).

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relatos, que envolvem o paradigma da incerteza da validade das fontes, da memória e dos fa-

tos históricos descritos, bem como os traços que desenvolvem seus possíveis desvios.

2. Uma sucessão cronológica e histórica

Depois da epígrafe feita pelo autor – a assertiva de Hitler, destacada na introdução

deste trabalho – a história se inicia com a ida de Art à casa de seu pai Vladek. Este começa a

relatar, conforme desejo do filho, toda a parte de sua vida que engloba os desafios impostos

pelo regime nazista, a qual vai, aproximadamente, de 1930 a 1944. Primeiramente, Vladek

conhece Anja, com a qual se casa e passa toda a trama. No início, Vladek ganha uma fábrica

de tecidos de seu sogro, a qual é posteriormente saqueada. Em 1938, fica perplexo ao ver pela

primeira vez uma bandeira suástica7, no centro de uma cidadezinha da Tchecoslováquia, por

onde passava de trem com sua esposa. Já em 1939, recebe uma carta de recrutamento para a

guerra, consequência da não aceitação do regime de fome que seu pai impunha e que havia

dado certo para seu irmão Marcus, que não fora chamado. Na guerra é pego como prisioneiro

pelos alemães e levado para um campo de concentração, onde ganha pouco alimento e passa

muito frio, ou seja, vive miseravelmente. Só consegue ir para um lugar melhor porque aceita a

condição de trabalhar duro, mover montanhas. Algum tempo depois consegue se libertar, ir

para casa e ficar com a família, que agora já era composta por doze pessoas, quase todos pa-

rentes de Anja.

Em meados de 1940, a vigilância nazista estava muito rigorosa e todo cuidado era

pouco. Vladek conseguia contornar a polícia vendendo ou comprando sem cupons, os quais

eram obrigatórios. Como a situação econômica estava crítica, tentaram vender seus móveis,

mas foram enganados e perderam tudo, tendo que ir, como todos os outros judeus, viver em

alojamentos. Depois disso, por um longo período, toda a família, sucessivamente, teve que ir

se mudando, alguns se separando para nunca mais se verem. É o caso dos pais de Anja, que,

por terem idade superior a 70 anos e não poderem mais gerar mão de obra para os alemães,

foram levados embora e consequentemente mortos. Caso semelhante foi o do primeiro filho

do casal Spiegelman, Richieu, que fora entregue à irmã de Anja para que ficasse mais seguro.

A irmã, no entanto, envenenou todas as crianças que cuidava, entre elas Richieu, e a si mes-

ma, para que os alemães não os levassem para morrer nas câmaras de gás.

7 Símbolo do nazismo.

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Vladek e Anja, não vendo mais outra saída, tentaram fugir de uma vez para a Holanda,

mas foram enganados e capturados pelos nazistas. Estes os levaram para Auschwitz e recolhe-

ram todos os seus últimos pertences. Os homens foram para um lado e as mulheres para o

outro. Os dois voltaram a se ver apenas depois de terem saído vivos daquele pesadelo. Algum

tempo depois é que Anja se suicida.

3. Questões sociais

Depois de feita esta retrospectiva narrativa e histórica, podemos concluir que quem for

ler a obra terá uma visão clara do que foi a angústia vivida pelos personagens, além de poder

estar bem próximo de tudo o que eles passaram e sofreram. Surge então uma perspectiva de

que o texto foi escrito com o intuito de não só relatar os fatos vividos por Vladek e muitos

outros, mas também de expressar os sentimentos (medos, traumas, terror, repúdio, saudade,

solidão, culpa, etc.) pelos quais eles passaram. No plano coletivo, o não reconhecimento do

luto gera uma espécie de continuação do mesmo e o não apagamento das consequências gera-

das pela repressão que, portanto, ainda não acabou8. É como se ainda restasse uma embala-

gem de alimento, jogada num canto, e que, mesmo tendo seu conteúdo já consumido e digeri-

do, ainda permanece inerente ao tempo e à memória. Dessa forma, ao compartilhar tudo o que

viveu com milhares de leitores, Vladek livra-se dessa repressão, dos sintomas que o impreg-

navam e causavam dor. É o chamado direito à verdade e à memória, amplamente discutido e

posto em ação em nossa sociedade atual9.

4. Literatura subjetiva

De acordo com Rosani Ketzer Umbach, organizadora do livro Memórias da repressão

(2008), o papel da memória da repressão na literatura teria uma importância central:

Para muitos autores, escrever é recordar. E, para aqueles que viveram sob regimes ditatoriais, aescrita representa também um meio de transmitir experiências de vida, muitas vezes traumáti-cas. Nesse sentido, a memória da repressão na literatura tem importância central. É precisa-mente o escritor quem tem a possibilidade de modelar, reconstruir e recordar através de suacriação estética.10

8 De acordo com José Carlos Moreira da Silva Filho, na palestra Direito à memória e à verdade – Justiça deTransição e os 10 Anos da Comissão de Anistia, em 02/09/2011 na Câmara de Vereadores de Santa Maria.9 Idem.10 In: Rosani Ketzer UMBACH, Memórias da repressão (2008), apresentação.

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O mesmo acontece em nossa obra, que, mesmo tendo a criação estética feita pelo fi-

lho, que projeta no texto as experiências de vida do pai, não suprime nada do que lhe é posto.

Como a literatura atual pode ser constituída por uma linguagem um tanto quanto sub-

jetiva, o narrador sente-se mais à vontade para relatar fatos que podem ser meramente fictí-

cios. A pessoa pode cometer esse tipo de desvio conscientemente, simplesmente para atenuar

a sua situação ou torná-la mais expressiva. Ela pode, também, cometê-lo inconscientemente, à

medida que se analisa que os eventos traumáticos estão ligados fortemente a certos sentimen-

tos que podem vincular um ou outro tipo de descrição do passado, ou seja, o indivíduo pode

distanciar-se da realidade histórica através do sentimentalismo, da vontade de revolta, de vin-

gança. Josef Breuer, médico e cientista austríaco, nesse sentido, denominou como método

catártico o tratamento que possibilita a liberação de afetos e emoções ligadas a acontecimen-

tos traumáticos que não puderam ser expressos na ocasião da vivência desagradável ou dolo-

rosa.11

Na obra de Spiegelman, aparecem várias vezes relatos munidos de um sentimentalis-

mo exacerbado por parte de Vladek. Um exemplo é quando ele relata, com muita emoção, o

enforcamento de seus dois amigos em praça pública, Nahum Cohn e seu filho Pfefer Cohn.

Isso, a princípio, teria servido como exemplo do que aconteceria a outros judeus que tentas-

sem exercer o comércio ilegal. Vladek temia que isso pudesse acontecer com ele e sua famí-

lia, que também trabalhavam nessa situação. Mas, não sabemos se o motivo da morte dos a-

migos realmente foi este, talvez eles soubessem demais sobre coisas que sequer deveriam ter

acesso. Dessa forma, temos um caso de dúvida sobre a validade do testemunho, mas não por

parte do sujeito, e sim do discurso dominante, do poder instaurado.

São, portanto, várias as formas de evasão que recaem sobre a natureza dos fatos que

ocorreram na história.

5. Conceitos psicanalíticos

De acordo com Sigmund Freud (1856-1939), a percepção de um acontecimento, do

mundo externo ou do mundo interno, pode ser algo muito constrangedor, doloroso, desorga-

nizador. Para evitar este desprazer, a pessoa “deforma” ou suprime a realidade – deixa de re-

gistrar percepções externas, afasta determinados conteúdos psíquicos, interfere no pensamen-

11 Freud (1999 apud BOCK, FURTADO e TEIXEIRA, p.72).

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to. Ele afirma ainda que este processo é realizado pelo ego e é inconsciente, isto é, ocorre in-

dependentemente da vontade do indivíduo.12

Em Maus, podem ser apontados dois mecanismos de defesa. O primeiro é a regressão,

na qual o indivíduo retoma a etapas anteriores de seu desenvolvimento; é uma passagem para

modos de expressão mais primitivos.13 Como exemplo deste primeiro mecanismo, temos o

caso de Vladek, que afronta o filho que deixou cinzas do cigarro que fumava caírem no carpe-

te da sala. Esta característica está voltada ao tempo em que o pai era prisioneiro de guerra e

teve que realizar muito trabalho duro para os alemães, como limpar um estábulo com mais

outras quatro ou cinco pessoas em apenas uma hora, o que seria impossível, de acordo com o

tamanho do recinto e a sujeira que nele se encontrava. Vladek chega a usar esta situação ao

tratar com o filho: “_ Está jogando cinzas no carpete. Quer que isso fique parecendo um es-

tábulo, Artie?”. O que Vladek vê não é só a sujeira, mas toda uma lembrança traumática do

que viveu. Por isso, sempre que ver algo sujo vai ter esse sentimento.

O segundo exemplo do mecanismo de defesa regressão está inserido na mania que o

personagem principal tem de guardar tudo o que vê pela frente e que, de certa maneira, seria

desnecessário. Este fato é recorrente ao tempo em que os judeus haviam perdido tudo o que

tinham, desde suas casas até sua dignidade. Precisavam refugiar-se em esconderijos chamados

Bunkers14 para não serem pegos pelos nazistas e enviados para as câmaras de gás. Nesse mo-

mento passavam fome, frio e muitas outras necessidades. Então, tudo o que tinham era muito

valorizado, pois sempre encontravam alguma utilidade para tal. Portanto, instaurou-se uma

regressão no personagem, que o faz ter essa necessidade de não deixar nada se perder.

O segundo mecanismo de defesa encontrado na obra é a projeção. Esta é caracterizada

por confluir distorções do mundo externo e interno. O indivíduo localiza (projeta) algo de si

sobre o mundo externo e não percebe aquilo que foi projetado como algo seu que considera

indesejável. É um mecanismo de uso frequente e observável na vida cotidiana.15 Na obra de

Spiegelman, isso aparece quando Vladek reclama que sua mulher gasta muito dinheiro com

coisas que, segundo seu ponto de vista, seriam desnecessárias. O que ocorre, na verdade, é

uma projeção sobre a esposa de um desejo seu. Como destacado anteriormente, o personagem

guarda ainda hoje tudo o que encontra pela frente, mas ele não faz isso por que quer, e sim

porque existe certa necessidade de realizar essa tarefa instaurada em seu consciente. É claro

que ele gostaria de comprar coisas novas e não ficar entulhando sua garagem com supérfluos,

12 Ibid., p.78.13 Ibid., p. 79.14 Esconderijos judeus.15 Freud (1999 apud BOCK, FURTADO e TEIXEIRA, p.79).

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porém essa necessidade, provinda da repressão, ainda o persegue e, consequentemente, faz

projetar seu desejo no mundo exterior.

6. Estética

Escrita na forma de história em quadrinhos, que utiliza a multimodalidade da lingua-

gem, a obra recebeu o Prêmio Pulitzer de Literatura de 1992. Art Spiegelman foi realmente

corajoso ao utilizar este gênero textual para retratar um fato tão sério de nossa história, sendo

que os “gibis”, convencionalmente, são usados para produzir histórias infantis ou de teor prio-

ritariamente humorístico.

Os personagens são representados de forma antropomórfica, onde judeus são ratos,

nazistas gatos e poloneses não-judeus porcos. Naturalmente, gatos perseguem ratos, sem dó

nem piedade, para manterem sua sobrevivência. Spiegelman utiliza essa concepção ao repre-

sentar os diferentes grupos étnicos que participam do enredo, onde os nazistas se considera-

vam uma “raça” superior (gatos) e tinham o direito natural de extinguir os judeus (ratos). E-

xistiam ainda os poloneses aliados às ideologias nazistas, que, apesar de negarem sua natureza

para salvarem suas vidas, eram representados por porcos, animais sujos e imundos que só se

“desenvolveram”, mais que os ratos, por terem sido “domesticados” por uma “raça superior”.

Outro aspecto relevante da estrutura da obra é a ausência de cores nos desenhos, o que

dá um tom mórbido à história, aumentando ainda mais o seu contexto negativo e nebuloso.

7. Conclusão

Com o fim de estabelecer uma literatura comparada, o trabalho apontou as mais varia-

das análises que podem ser feitas sobre a obra. Foram usados conceitos de subjetividade, bem

como assuntos acerca da repressão, da psicanálise, da memória, da história e do testemunho,

além de algumas questões estéticas e estruturais do texto, que não deixam de ser influenciadas

pelo contexto da narrativa. Enfim, toda essa relação foi proposta para que o leitor se interes-

sasse em buscar, ainda mais, fontes que esclareçam como fatos históricos, influenciados por

tantos fatores humanos e individuais, foram e ainda são tratados pela literatura.

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Referências

BOCK, Ana Mercedes Bahia; FURTADO, Odair; TEIXEIRA, Maria de Lourdes T. Psicolo-gias: uma introdução ao estudo da psicologia. São Paulo: Ed. Saraiva 1999.

SPIEGELMAN, Art. Maus – a história de um sobrevivente. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1987.

UMBACH, Rosani Ketzer (org). Memórias da repressão. Santa Maria: UFSM, PPGL–Editores, 2008.

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TRAUMA, MEMÓRIA E NARRATIVA EM THE PAWNBROKER E QUERO VIVER...MEMÓRIAS DE UM EX-MORTO: INTERSECÇÕES E COMPARAÇÕES

Vanderléia de Andrade Haiski16

Prof. Dr. Lizandro Carlos Calegari17

Resumo: O presente projeto tem como objetivo investigar como o evento do Holocausto érepresentado na literatura norte-americana e brasileira, através das obras The Pawnbroker(1961), romance escrito pelo judeu-americano Edward Lewis Wallant, o qual foi testemunhaocular das barbáries ocorridas naquela época e, Quero viver... memórias de um ex-morto(1976), relato de testemunho de autoria do judeu-brasileiro Joseph Nichthauser, que narrasuas memórias como vítima do Holocausto. Através destas obras, é possível perceber comoquestões como trauma e memória são abordados por intermédio da narrativa e, também, asrelações entre a história e a ficção. Para tanto, tomar-se-ão como pressupostos teóricos textosda teoria literária bem como de outras áreas de conhecimento, que auxiliarão no entendimentodo trauma sofrido pelas vítimas e testemunhas do Holocausto.

Palavras-chave: Trauma. Memória. Narrativa. Holocausto.

A arte literária como representação do mundo como catástrofe é o ponto de partida pa-

ra o desenvolvimento desta pesquisa18. Em um período como o século XX, marcado por ca-

tástrofes e atrocidades, surge a necessidade de representação de tais situações. Este trabalho

volta a sua atenção para o trauma e memórias do Holocausto e a sua representação. As ques-

tões acerca do Holocausto e sua representação colocam em evidência um tópico perturbador

de ordem social: a luta em torno de questões de ordem moral. É intrigante pensar como indi-

víduos considerados normais em seu meio social se tornaram assassinos frios ou participantes

conscientes do Holocausto, expondo uma cegueira moral estarrecedora. Mas, além disso, é

mais instigante ainda pensar como milhares de vítimas tiveram sua humanidade anulada e

foram conduzidas silenciadas ao extermínio.

Assim, dentre os caminhos possíveis para averiguar tal representação, foram escolhi-

das duas obras distintas escritas no século XX: The Pawnbroker (1961), um romance de auto-

ria do judeu-americano Edward Lewis Wallant, e Quero viver... memórias de um ex-morto

(1976), relato de testemunho escrito pelo judeu-brasileiro Joseph Nichthauser, que narra suas

memórias como vítima do holocausto. Por intermédio dessas obras é possível analisar as rela-

ções entre história e ficção nas diferentes narrativas, bem como verificar, através das teorias

16 Mestranda em Letras: Literatura Comparada pela Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e dasMissões – URI/ Campus Frederico Westphalen. E-mail: [email protected] Orientador18 Este texto é uma síntese do projeto de dissertação intitulado: Trauma, memória e narrativa em The Pawnbro-ker e Quero viver... memórias de um ex-morto: intersecções e comparações, apresentado no I Seminário Interins-titucional de Pesquisa – URI/ FW.

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do trauma, memória e narrativa, como se dá a representação do evento do Holocausto na lite-

ratura norte-americana e brasileira. Assim, o projeto de dissertação intitulado: Trauma, me-

mória e narrativa em The Pawnbroker, de Edward Lewis Wallant e Quero viver... memórias

de um ex-morto, de Joseph Nichthauser: intersecções e comparações; visa contribuir para os

estudos sobre a representação do trauma e da memória tanto em narrativas de testemunho

quanto ficcionais. Nessa perspectiva, o presente estudo está relacionado com a linha de pes-

quisa Literatura, História e Memória, visto que se realizará a comparação entre obras literá-

rias, considerando suas particularidades com relação aos aspectos estéticos e éticos, bem co-

mo os aspectos históricos e sociais pertinentes a cada obra.

Estudos mais aprofundados acerca das relações entre trauma, memória, literatura e his-

tória podem ser considerados recentes, visto que grande parte dos eventos desencadeadores

dessa discussão ocorreram ao longo do século XX. Dentre esses eventos, é plausível citar a

Primeira e a Segunda Guerra Mundial, as guerras de descolonização e, em especial, o Holo-

causto, pois este foi o principal desencadeador em torno da discussão sobre a literatura de

testemunho e, consequentemente, a discussão acerca dos limites entre a história e a literatura,

bem como ficção e realidade.

Além disso, as catástrofes ocorridas no século XX não se deram em lugares isolados.

Ao contrário, afetaram diferentes povos, países e culturas, como o próprio Holocausto, que

dispersou suas vítimas por diferentes países ao redor do mundo em busca de refúgio. Essas

situações sócio-históricas são incessantemente representadas através da arte. O esforço de

compreensão e rememoração de fatos históricos hediondos nunca se esgota, pois através da

rememoração dá-se também a tentativa de evitar que tais catástrofes voltem a ocorrer nova-

mente. Com base nisso, a pesquisa é pertinente na medida em que possibilita a compreensão

do compromisso ético do não-esquecimento através do testemunho e da literatura de testemu-

nho das catástrofes. Além do mais, amplia o entendimento sobre a dimensão ética e estética

das narrativas de testemunho, quando a memória sobre os fatos históricos ameaça dissipar-se

na cultura da modernidade contemporânea.

O século XX pode ser pensado como um período marcado por massacres e guerras,

verdadeiras catástrofes que, na maioria dos casos, continuam vivas na memória coletiva da

humanidade. Entre os diversos massacres ocorridos, é plausível considerar a sociedade do

século XX como a sociedade da “pós-Primeira Grande Guerra, pós-Segunda Guerra Mundial,

pós-Shoah, pós-guerras de descolonização, pós-massacres no Cambodja [...]. Mas esse prefixo

‘pós’ não deve levar a crer, de jeito nenhum, em algo próximo do conceito de ‘superação’, ou

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‘de passado que passou’”19. Essas experiências traumáticas conservam-se na memória e no

cotidiano de muitas sociedades. Esses eventos, capazes de massacrar toda uma sociedade,

através dos variados meios de comunicação repercutem no mundo inteiro, afetando direta e

indiretamente toda humanidade. Dessa forma, a mídia, ao mesmo tempo em que reproduz

essas catástrofes, muitas vezes apenas com o intuito de informar, também é uma multiplicado-

ra do trauma20.

Nessa perspectiva, Seligmann-Silva destaca que o “elemento traumático do movimen-

to histórico penetra nosso presente tanto quanto serve de cimento para nosso passado, e essas

categorias temporais não existem sem a questão da sua representação”21. E a representação

dessas categorias acontece através do jornal, cinema, artes, televisão, e até mesmo na fala

cotidiana e em gestos, sonhos e silêncios, chegando, enfim, na literatura22. Entretanto, neste

momento, não será discorrido sobre o conceito de literatura, visto que a literatura não cabe em

um único conceito, pois defini-la depende de vários aspectos como o lugar, a cultura, o câno-

ne literário, entre outros. Os eventos traumáticos, como o Holocausto, foram expressos tanto

em relatos de testemunho como narrativas ficcionais. A linha que separa a ficção da história é

tênue e, através do corpus deste trabalho, é possível perceber como questões como trauma e

memória são abordados por intermédio da narrativa.

De acordo com Hayden White, “o modo como uma determinada situação histórica

deve ser configurada depende da sutileza com que o historiador harmoniza a estrutura especí-

fica de enredo com o conjunto de acontecimentos históricos aos quais deseja conferir um sen-

tido particular”23. Desse modo, conforme a autora, ocupa-se fundamentalmente de uma “ope-

ração literária”, ou seja, “criadora de ficção”24, reafirmando assim a relação de proximidade

entre a história e a literatura. Segundo Northrop Frye, uma obra literária não pode ser caracte-

rizada como verdadeira ou falsa, pois não é essa a sua pretensão25, assim como na história ou

na narrativa de um acontecimento, não se pode afirmar que tal versão seja verdadeira ou falsa,

pois cada pessoa tem uma percepção própria dos acontecimentos que o cercam.

A questão do holocausto na Alemanha foi desencadeadora da discussão a respeito dos

limites entre ficção, história e memória. Relacionando a questão de testemunho e memória,

Seligmann-Silva cita a célebre frase de Theodor W. Adorno, que alega que “escrever um po-

19 SELIGMANN-SILVA, Márcio. O local da diferença: ensaios sobre memória, arte, literatura e tradução. 2005.p. 63.20 Idem. Ibidem. p. 64.21 Idem. Ibidem. p. 64.22 Idem. Ibidem. p. 64.23 WHITE, Hayden. Trópicos do discurso: ensaios sobre a crítica da cultura. 1994. p. 102.24 Idem. Ibidem. p. 102.25 FRYE, Northrop. Anatomia da crítica. 1957. p. 78.

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ema após Auschwitz é um ato bárbaro, e isso corrói até mesmo o conhecimento de que porque

hoje se tornou possível escrever poemas”26. Por esse viés, nota-se como a questão do teste-

munho começou a ser discutida na Alemanha, pois o evento da Shoah é o eixo central da teo-

ria que envolve testemunho e trauma. Assim,

a questão da representação da Shoah levou não apenas a teoria literária a se aproxi-mar da historiografia, mas também a historiografia a se aproximar de uma aborda-gem mais qualitativa e a tentar englobar conceitos derivados da psicanálise, da teoriado conhecimento, da ética e da estética para tentar dar conta dessa representação queocorre sob o signo de uma aporia27.

Tratando-se sobre o relato de testemunho, este está intimamente relacionado com um

determinado período sócio-histórico, do qual vítimas e testemunhas de catástrofes sentem a

necessidade de narrar suas experiências. É válido afirmar que a literatura de testemunho é

“um modo literário de reagir à brutalidade de nossa história”28. Pode-se dizer que Auschwitz

foi o marco central da literatura de testemunho e que, desde então, questões como o trauma e

a memória de eventos como o Holocausto adquiriram uma dimensão difícil de narrar, pois tais

atrocidades por vezes não encontram nas palavras suporte necessário para expressar os senti-

mentos envolvidos nas experiências vividas. E quando se fala em narrar tais experiências sob

a ótica literária, é imprescindível refletir entre a linguagem, a ficção e o real. O relato de tes-

temunho promove o cruzamento entre a necessidade de narrar e a impossibilidade dessa narra-

tiva expressar de forma satisfatória os eventos sofridos pela testemunha.

Com relação ao trauma, Sigmund Freud pondera que quando um indivíduo fixa-se em

determinada parte de seu passado, ele tende a permanecer ali enclausurado, na tentativa de

suportar a carga de sua vida e, assim, aliena-se do presente e do futuro. Esse comportamento

apresenta-se de forma análoga no que é descrito por Freud como neuroses traumáticas, as

quais ocorrem especialmente por intermédio de episódios de guerra29. O trauma é capaz vin-

cular um indivíduo ao passado e deter sua vida de tal forma que ele pode ignorar totalmente o

presente e o futuro.

26 SELIGMANN-SILVA, Márcio. O local da diferença: ensaios sobre memória, arte, literatura e tradução. 2005.p. 82.27 Idem. Ibidem. p. 84.28 FRANCO, Renato. Literatura e catástrofe no Brasil: anos 70. In: SELIGMANN-SILVA, Márcio. História,memória, literatura: o testemunho na era das catástrofes. 2003. p. 360.29 FREUD, Sigmund. Obras psicológicas completas de Sigmund Freud: conferências introdutórias sobre psica-nálise (Parte III). 1996. p. 281-282.

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O trauma e a memória mantêm, portanto, uma íntima relação. Para Maurice Halbwa-

chs30, as lembranças permanecem coletivas e são lembradas por outros, mesmo tratando-se de

eventos e objetos em que apenas um indivíduo esteve envolvido, pois jamais se pode estar só.

Isso se explica pelo fato de cada indivíduo levar consigo e em si certa quantidade de pessoas

que não se confundem, mesmo não estando presentes. Contudo, o autor argumenta que, para a

memória individual tirar proveito da memória coletiva, é necessário que haja uma concordân-

cia com essa memória coletiva e que existam muitos pontos de contato entre ambas para que

as lembranças sejam reconstruídas sobre uma base comum.

O romance The Pawnbroker (1961) traz no desenrolar de sua trama, por intermédio

das memórias seu personagem principal, reflexos da sociedade marcada pelo evento do Holo-

causto. O autor, Edward Lewis Wallant, serviu na 2ª Guerra Mundial e foi testemunha ocular

de algumas das barbáries ocorridas naquele período. Durante sua trajetória, Wallant escreveu

quatro romances: The Human Season (1960), The Pawnbroker (1961) e, publicados

postumamente, The tenants of Moonbloom (1963) e The children at the gate (1964). Sua pri-

meira publicação ganhou o prêmio, até então conhecido como Daroff Memorial Fiction A-

ward, um respeitado prêmio concedido a ficção judaica, e que, desde então, foi renomeado

como Edward Lewis Wallant Award31. Segundo a crítica, apesar de ter escrito apenas quatro

romances, com a sua morte aos 36 anos, Wallant levou consigo um vasto potencial como es-

critor32. O romance The Pawnbroker (1961) foi recebido com entusiasmo pela crítica e pelo

público e, em 1994, teve estréia a versão cinematográfica da obra, pela Cult Classic Films e

com direção de Sidney Lumet.

Em The Pawnbroker (1961), o personagem central, Sol Nazerman, relembra o assassi-

nato de sua esposa e seus filhos em um campo de concentração e, emocionalmente morto,

percorre uma longa trajetória até reafirmar sua humanidade. The Pawnbroker (1961) aborda a

questão do trauma causado pelo Holocausto de forma contundente e emocionante através da

trajetória e memórias de Sol Nazerman, um penhorista que mora no Harlem, em Nova Iorque,

e que, após as situações de violência extrema por ele vivenciadas, torna-se claramente um

homem solitário, isolado do mundo e que não consegue desvincular-se de seu passado atroz.

Já no relato de testemunho de Joseph Nichthauser, o autor começa o prólogo de sua

obra, Quero viver... memórias de um ex-morto (1976), declarando que não é seu anseio “mos-

trar ao mundo algo novo, ou tentar justificar quem quer que fosse, pois já se escreveu muito

30 HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. 2006.31 LAMBERT, Josh. American Jewish Fiction. 2009. p. 77.32 ZAITCHIK, Mark; JUCKNATH, Lisa. Edward Lewis Wallant. In: SHATZKY, Joel; TAUB, Michael. Con-temporary Jewish-American novelists: a bio-critical sourcebook. 1997. p. 454.

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sobre esse tema”33. Tampouco sua ambição é produzir uma obra literária, pois em seguida

afirma que “existem livros que descrevem de maneira muito literária o heroísmo dos soldados

aliados, dos sacrifícios inúteis dos soldados inimigos e das atrocidades cometidas nos campos

de concentração”34. Sua pretensão é apenas descrever os vários aspectos de sua história como

sobrevivente do Holocausto. Nichthauser, aos 11 anos incompletos, assistiu a invasão da Po-

lônia, sua terra natal, pelos exércitos alemães, em 31 de agosto de 1939. A partir daí, Nich-

thauser passou por vários campos de concentração, como os de Auschwitz, Gross-Rosen e

Buchenwald, de onde foi liberto pelo exército americano. Durante sua trajetória pelos campos

de concentração, viu sua família ser exterminada, ao passo que, apenas ele, em suas próprias

palavras, “milagrosamente” conseguiu sobreviver, ganhando a liberdade aos dezesseis anos e

meio.

Benjamin argumenta, no texto “Experiência e pobreza”, sobre a dificuldade de encon-

trar pessoas que saibam narrar as histórias como elas devem ser narradas35. Ao observar com-

batentes que voltavam das terríveis experiências de guerra, notou-se que, embora tivessem

vivenciado muitos eventos, eles voltavam mais pobres em experiências comunicáveis. Assim,

os livros que abasteceram o mercado durante a década seguinte a 1918, não possui experiên-

cias passiveis de serem transmitidas de boca em boca, pois a experiência da guerra é extre-

mamente desmoralizadora36. Assim, percebe-se a dificuldade em narrar eventos violentos,

traumáticos e que, expõe a degradação humana.

Nas obras de ficção sobre o Holocausto, de maneira universal, há um consenso no re-

conhecimento deste evento como um período de terror, violência e extremamente desumani-

zador. Quanto à literatura de testemunho, cabe questionar qual posição ela ocupa. Segundo

Regina Igel, o tema do Holocausto, desenvolvido literariamente por sobreviventes aqui refu-

giados, “poderia inserir-se na literatura brasileira ao lado de categorias já formalizadas, como

o romance e o conto”37. Contudo, existem várias questões, como as de ordem éticas e estéti-

cas, que merecem ser averiguadas para entender a questão de localização das diversas narrati-

vas sobre o Holocausto.

33 NICHTHAUSER, Joseph. Quero viver... memórias de um ex-morto. 1976. p. 11.34 Idem. Ibidem. p. 11.35 BENJAMIN, Walter. Experiência e pobreza. In: ____. Obras Escolhidas I: Magia e Técnica, Arte e Política.1985. p. 115.36 Idem. Ibidem. p. 115.37 IGEL, Regina. Imigrantes judeus/ Escritores brasileiros: o componente judaico na literatura brasileira. 1997.p. 238-239.

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Referências

BENJAMIN, Walter. Experiência e pobreza. In: ____. Magia e técnica, arte e política: obrasescolhidas I. São Paulo: Brasiliense, 1985. p. 114-119.

FRANCO, Renato. Literatura e catástrofe no Brasil: anos 70. In: SELIGMANN-SILVA,Márcio. História, memória, literatura: o testemunho na era das catástrofes. Campinas: Uni-camp, 2003.

FREUD, Sigmund. Obras psicológicas completas de Sigmund Freud: conferências introdutó-rias sobre psicanálise (Parte III). Trad. Jayme Salomão. Rio de Janeiro: 1996. Vol. XVI.

FRYE, Northrop. Anatomia da crítica. Trad. Péricles Eugênio da Silva Ramos. São Paulo:Cultrix, 1957.

HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. Trad. Beatriz Sidou. São Paulo: Centauro,2006.

IGEL, Regina. Imigrantes judeus/ Escritores brasileiros: o componente judaico na literaturabrasileira. São Paulo: Perspectiva; Associação Universitária de Cultura Judaica; Banco Safra,1997.

LAMBERT, Josh. American Jewish Fiction. Philadelphia: The Jewish Publication Society,2009.

NICHTHAUSER, Joseph. Quero viver... memórias de um ex-morto. São Paulo: Ricla, 1976.

SELIGMANN-SILVA, Márcio. O local da diferença: ensaios sobre memória, arte, literatura etradução. São Paulo: Editora 34, 2005.

WALLANT, Edward Lewis. The Pawnbroker. Estados Unidos da América: HBJ, 1961.

WHITE, Hayden. Trópicos do discurso: ensaios sobre a crítica da cultura. Trad. Alípio Cor-reia de Franca Neto. São Paulo: Edusp, 1994.

ZAITCHIK, Mark; JUCKNATH, Lisa. Edward Lewis Wallant (1926-192). In: SHATZKY,Joel;

TAUB, Michael. Contemporary Jewish-American novelists: a bio-critical sourcebook. USA:Greenwood, 1997.

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O MENINO DO PIJAMA LISTRADO E O “MAL” NA CONTEMPORANEIDADE

Paula Klein38

Profª. Drª. Rosani Ketzer Umbach39

Resumo: O presente trabalho busca relacionar a ficção de John Boyne, O menino do pijamalistrado: uma fábula (2007), com os pressupostos teóricos de Hannah Arendt, enfatizando emsuas obras Eichmann em Jerusalém (2008), A condição humana (2007) e Da Violência(1985). Evidenciando os estudos sob regimes de opressão e totalitarismo, nota-se que a autoranão se limitou a examinar somente o lado dos que foram objetos da opressão, mas também odos que foram agentes da mesma. Para tanto, estuda-se principalmente a conceituação de “ba-nalidade do mal”: a união de diversos fatores desumanizantes, tais como o totalitarismo, acriminalidade como norma estatal, bem como a burocracia, num processo de normalizaçãodessa “desumanidade”. Da mesma forma, o livro O menino do Pijama Listrado enfatiza a dore a condição humana daqueles que eram considerados os opressores: os próprios nazistas,enquanto seres humanos, provedores de família e que também sofreram com a Guerra, nafigura da personagem do pai de Bruno (garoto de nove anos, personagem principal da obra).Nesse sentido, busca-se analisar como a “banalidade do mal”, retratada no período da Segun-da Guerra, é vista nos dias de hoje, principalmente através de fábulas como O menino do pi-jama listrado.

Palavras-chave: Literatura contemporânea. Holocausto. Banalização do mal. Condição hu-mana.

1. O Caso Eichmann e a banalidade do mal.

Johannah Arendt, na época jornalista da revista americana The New Yorker (país no

qual se encontrava exilada no período da Segunda Guerra e o qual ela adotou como pátria),

acompanhou o julgamento do nazista Adolf Otto Eichmann, realizado nos anos de 1961/62

em Jerusalém. Hannah traçou o perfil desse homem que tentava provar sua inocência, uma

vez que, por assumir somente funções burocráticas, ele se sentia isento de sua parte da culpa

no Holocausto.

Ainda que participante da Solução Final, com uma grande parcela dos judeus cativos

passando por suas mãos e então sendo enviados aos campos de concentração, Eichmann ten-

tava se justificar: “Com o assassinato dos judeus não tive nada a ver. Nunca matei um judeu.

Nunca matei um ser humano, nunca dei ordem para matar, fosse um judeu fosse um não ju-

deu; simplesmente não fiz isso” (ARENDT, 2008:33).

38 Graduanda de Letras – Espanhol e Literatura Espanhola da Universidade Federal de Santa Maria, bolsista deIniciação Científica pelo CNPq através do Projeto Memórias Autobiográficas, Ficção e História.39 Orientadora

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Frente a essa posição de defesa, Hannah Arendt menciona que ele realmente parecia

acreditar que, atrás da escrivaninha, suas mãos estariam limpas. Por meio dessa atitude de

Eichmann, surgem os questionamentos de Arendt frente a esses dois agentes da relação opres-

siva: será que Eichmann foi realmente um criminoso ou ele era um simples homem impulsio-

nado pela “massa”, pela “onda” totalitarista?

Segundo Cornelsen (2010), Hannah Arendt definia o fenômeno totalitário como uma

forma de dominação própria da modernidade, baseada na organização burocrática das massas,

na ideologia, incitando principalmente a propaganda e o terror. Eichmann, no contexto do

totalitarismo, relata que apenas cumprira ordens de seus superiores e que estes haviam feito

mal uso de sua “obediência”. Sua normalização frente ao mal feito era tanta que alegava “O

cidadão de um bom governo tem sorte, o cidadão de um mau governo é azarado. Eu não tive

sorte" (EICHMANN, in: ARENDT, 2008:193-194). Deste modo, Eichmann relativiza todo o

mal e toda a violência imposta como um simples fator de ganhar ou perder a Guerra, ou seja,

ele não agiu de modo errado, mas ele foi “azarado”. Segundo Hannah Arendt (2008):

Eichmann não era um monstro, embora seus atos fossem monstruosos. Sua personalida-de destacava-se unicamente por uma extraordinária superficialidade. Por mais extraor-dinários que fossem os atos, neste caso, o agente não era nem monstruoso, nem demoní-aco; a única característica específica que se podia detectar em seu passado, bem comoem seu comportamento, durante o julgamento e o inquérito policial que o precedeu, afi-gurava-se como algo totalmente negativo: não se tratava de estupidez, mas de uma curi-osa e bastante autêntica incapacidade de pensar. (ARENDT, 2008:49).

Foi por meio dessa autêntica incapacidade para pensar que Hannah Arendt propôs o

conceito de Banalidade do Mal, ou seja, dessa incapacidade de notar a eliminação dos outros

sem causa alguma aparente. Todos os malefícios causados por Eichmann aos judeus eram

retratados como se este não houvesse feito nada significativo. Ele somente se inclinava para o

que a maioria propunha, incapaz de pensar por conta própria, como aquele que já não conse-

gue distinguir entre o bem e o mal. Neste caso, segundo Arendt, a Banalização do Mal se da-

ria em uma conjugação de fatores desumanizantes que eram normalizados, tais como o totali-

tarismo, a criminalidade como norma estatal, a burocracia e também a reação apática das ví-

timas. Desse modo, o “desumano” se esconderia em cada um de nós. Continuar a pensar e

interrogar a si próprio, os atos, as normas, seria a única condição para não ser “tragado” por

esse mal.

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2. O menino do pijama listrado

Na obra O Menino do Pijama Listrado: uma fábula (2007) buscou-se perfilar alguns

termos que se assemelhassem ao gênero fábula. Normalmente reconhecido como uma “narra-

tiva figurada cujas personagens são, em regra, animais que possuem características humanas,

e que encerra uma lição moral” (Ferreira, 2004:315), nota-se que a presente ficção traz perso-

nagens humanos. Nossa hipótese é que, talvez, estes não necessitem mais ser animalizados.

Principalmente, se considerarmos a animalização dada pelos nazistas aos judeus e, em contra-

partida, os nazistas, por todo mal realizado, não poderem ser definidos como “humanos” e sim

“desumanos”. Essa desumanização considerada uma “corrida de gato e rato” já foi também

retratada por Art Spiegelman em Mauss (1986).

As principais personagens da obra são o Bruno e seu pai. A história se passa através da

visão de Bruno, ainda que haja um narrador onisciente, este demonstra a história na visão do

garoto, suas aflições e problemas com o período da Guerra e sua adaptação a um novo lar,

imposto pelo trabalho do pai. Nota-se que a realidade é diferente de uma casa tradicional, e

sim que o pai passa a trabalhar em casa: “Sempre havia na casa muitos visitantes – homens

em uniformes fantásticos, mulheres com máquinas de escrever das quais ele deveria manter

longe as mãos sujas -, e eram todos sempre muito educados com o pai e diziam que ele era um

homem para ser observado e que o Fúria tinha grandes planos para ele” (BOYNE, 2007:11).

Aqui notamos a presença desta personagem Bruno, que deve manter-se afastado das máquinas

de escrever e da ocupação pai. Também se deve destacar o sentido com o qual a criança inter-

pretou o nome Führer como Fúria, um trocadilho um tanto irônico para essa figura que repre-

sentou Hitler. Quanto a visão de Bruno de seu pai, nota-se que ele também assimilou que o

chefe tem grandes planos para o pai.

Martin dissera que seu pai era chefe de cozinha, o que Bruno sabia ser verdade, porque,nas vezes em que o homem vinha buscar Martin na escola, sempre vestia bata branca eavental xadrez, como se tivesse acabado de deixar a cozinha. Mas, quando perguntarama Bruno o que seu pai fazia, ele abriu a boca para dizer-lhes e então percebeu que elepróprio não sabia. Só era capaz de dizer que seu pai era um homem para ser observado eque o Fúria tinha grandes planos para ele. Ah, e que ele também tinha um uniforme fan-tástico.” (BOYNE, 2007:12)

No excerto acima, nota-se outra ironia, pois não se sabe realmente qual é a função de-

sempenhada pelo Pai. Relacionando essa situação a reflexão de Hannah Arendt, nota-se que o

homem no regime totalitário/ tirano não age por si próprio e nem tem função isoladamente. É

no conjunto que se encontra a força, pois, “até mesmo o tirano, aquele que governa contra

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todos, necessita de quem o ajude a perpetrar a violência, ainda que sejam estas pessoas pouco

numerosas. Entretanto, a força da opinião pública, isto é, o poder do governo, depende de

números” (ARENDT, 1985:17). Hannah Arendt considerava que o poder correspondia a habi-

lidade humana de não apenas agir, mas de agir em uníssono, em comum acordo. Neste caso, o

poder jamais seria propriedade de um indivíduo, pertence a um grupo e existe somente en-

quanto esse grupo se mantiver unido. “Quando dizemos que alguém está no poder estamos na

realidade nos referindo ao fato de encontrar-se esta pessoa investida de poder” (ARENDT,

1985:17).

Ao mesmo tempo, pode-se pensar na questão de não ser um cargo que exige reflexão,

ou seja, o pai pensa pouco por si próprio, pois só obedece as ordens do Fúria/Führer e, assim,

todos podem agir como Eichmann: culpando o sistema e a burocracia por seus atos desuma-

nos.Hoje devemos acrescentar a mais nova e talvez a mais formidável forma desse domínio:a burocracia ou o domínio de um intrincado sistema de órgãos no qual homem algumpode ser tido como responsável, e que poderia ser chamado com muita propriedade odomínio de Ninguém. Se, de acordo com o pensamento político, identificarmos a tiraniacomo um tipo de governo que não responde por seus próprios atos, o domínio de Nin-guém é claramente o mais tirânico de todos, uma vez que não existe alguém a quem sepossa solicitar que preste conta por aquilo que está sendo feito. (ARENDT, 1985: 16)

Ao discutir questões como poder e tirania, também pode-se pensar no conceito de

Hannah Arendt a respeito da Autoridade, ou seja, a toda relação entre pessoas em que existe

uma autoridade pessoal, como, “por exemplo, na relação entre pai e filho, entre professor e

aluno – ou pode ser aplicado a cargos, como por exemplo, ao senado romano ou nos cargos

hierárquicos da Igreja (pode um sacerdote conceder a absolvição válida ainda que esteja bê-

bado). A sua característica é o reconhecimento sem discussões por aqueles que são solicitados

a obedecer; nem a coerção e nem a persuasão são necessárias” (ARENDT, 1985:19).

Nesse aspecto, o pai e filho estão sempre em conflito, pois o menino quer brincar, dis-

cutir o porquê das coisas com o pai e o pai sempre impõe a realidade que ele se encontra na

vida profissional e adulta. O pai tenta impor a rigidez do sistema nazista em sua casa e nor-

malmente pai e filho não se entendem: “Acha que eu teria sido tão bem-sucedido na vida se

não tivesse aprendido quando é hora de discutir e quando é hora de ficar com a boca fechada e

seguir ordens?” (BOYNE, 2007:49).

Nesse nível de incompatibilidade que se encontra entre eles, o pai, como autoridade,

simplesmente desconsidera as opiniões do filho e o trata como um “adulto pequeno”, hábito

comum na época, pois ainda não haviam direitos reconhecidos da criança e do adolescente. O

pai então comenta em muitas passagens coisas como: “‘Bruno, às vezes há coisas na vida que

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temos de fazer e não temos escolha a respeito delas’, disse o pai, e Bruno percebeu que ele

estava se cansando daquela conversa. ‘E eu temo que esta seja uma dessas coisas. Este é o

meu trabalho, um trabalho importante. Importante para o nosso país. Importante para o Fúria.

Algum dia você entenderá.’” (BOYNE, 2007:48).

Novamente, esse cumprimento das leis sem um pensamento crítico acaba por desuma-

nizar os judeus e faz com que a Banalização do mal se justifique nessa fábula.

“Quero saber daquelas pessoas que eu vejo da minha janela. As que moram nas caba-nas, lá longe. Estão todas com as mesmas roupas.”“Ah, aquelas pessoas”, disse o pai, acenando com a cabeça e sorrindo levemente. “A-quelas pessoas... Bem, na verdade elas não são pessoas, Bruno.”Bruno franziu o cenho. “Não são?”, perguntou ele, sem saber o que o pai queria dizercom aquilo.“Bem, não são pessoas no sentido em que entendemos o termo”, prosseguiu o pai. “Masvocê não deve se preocupar com elas agora. Elas não tem nada a ver com você. Não hánada em comum entre você e elas. Apenas adapte-se à nova casa e comporte-se bem.”(BOYNE, 2007: 52)

3. Considerações finais

Normalmente, a ficção não apresenta grande preocupação com a veracidade dos fatos,

mas sim com a verossimilhança. Por sua vez, a fábula, por ser exposta também oralmente,

normalmente apresenta diferentes versões de uma mesma história. Ao ler, em nossa época,

uma narrativa sobre a Segunda Guerra, é possível perceber a intertextualidade de todas as

outras obras, livros, filmes ou relatos que já tivemos contato sobre esse período.

Em nossa visão, evidencia-se que Eichmann representa a figura de todos aqueles que

não pensam. O pensamento, ao ser despertado, possibilita que o processo de massificação e

hegemonização não se generalizem numa dada sociedade. Por outro lado, é fato que a socie-

dade continuará recheada de indivíduos que, como Eichmann e o pai de Bruno, creem que o

simples seguimento dos parâmetros impostos em nossa convivência social, pode ser capaz de

fazê-los cidadãos de destaque e prestígio na sociedade.

Quanto à lição moral de uma fábula, a obra termina com o acidente da morte do meni-

no Bruno em uma câmara de gás nos fundos da sua nova casa (na verdade um campo de con-

centração ao qual o pai foi incumbido de cuidar): “E assim termina a história de Bruno e sua

família. Claro que isso aconteceu há muito tempo e nada parecido poderia acontecer de novo.

Não na nossa época” (BOYNE, 2007:186). Será mesmo? Além do aspecto de passar uma mo-

ral, estabelece-se uma visão assustadora e chocante, mas um tanto verossímil, notando que as

atitudes do pai indiretamente levaram à morte do filho. Ainda que não fosse real, a ficção nos

possibilita pensar sobre o homem, sobre a vida e sobre nossas atitudes. Acima de tudo, a fábu-

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la nos permite pensar, refletir, para que não esqueçamos as atitudes impensadas de pessoas

como Eichmann e o pai de Bruno.

Referências

ARENDT, Johannah. Eichmann em Jerusalém. Tradução José Rubens Siqueira. São Paulo:Companhia das Letras, 2008.

____. A condição humana. Tradução de Roberto Raposo, posfácio de Celso Lafer. 10.ed. Riode Janeiro, Forense Universitária, 2007.

____. Origens do Totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

____. Da Violência. Tradução de Maria Cláudia Drummond Trindade. Brasília, Ed. Universi-dade de Brasília, 1985.

BOYNE, John. O menino do pijama listrado: uma fábula. Tradução de Augusto Pacheco Ca-lil. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

CORNELSEN, Elcio. Totalitarismo. In: Revista Literatura e Autoritarismo, nº14.Julho-Dezembro de 2009. Disponível em: <<http://w3.ufsm.br/grpesqla/ revis-ta/num14/art_10.php>> Acessado em: 5 de maio de 2010, 9h45min.

FERREIRA, Aurélio B. de Holanda. Dicionário da Língua Portuguesa. Coord. de ediçãoMargarida dos Anjos, Marina Baird Ferreira; equipe de lexicografia Margarida dos Anjos [etal.] 6.ed.rev.amp. Curitiba: Posigraf, 2004.

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O RETRATO DA EXCLUSÃO BUCÓLICA EM VIDAS SECAS E ENQUANTO AGO-NIZO

Angiuli Copetti de Aguiar40

Profª. Drª. Rosani Ketzer Umbach41

1. Introdução

O século XX foi marcado pela ascensão e consolidação da sociedade moderna, princi-

palmente pela transição majoritária da população mundial do campo para as cidades. As trans-

formações sociais aceleradas deste período, juntamente com o distanciamento cada vez maior

entre cidade e campo, são retratados na alienação social da população bucólica e na alienação

psicológica dos próprios personagens de romances e novelas como Enquanto Agonizo (As I

Lay Dying), do escritor sulista norte-americano, William Faulkner, e Vidas Secas, do escritor

nordestino, igualmente regionalista, brasileiro, Graciliano Ramos.

2. A alienação do homem do campo

Duas famílias miseráveis, cada qual em uma viagem (quase paródica aos romances de

viagem do século XIX), impulsionadas pela morte (uma devido a ela, outra, fugindo dela), se

arrastam por dois mundos contrastantes: o campo e a cidade. Essas “odisséias” bucólicas des-

crevem explicitamente e implicitamente as diferenças gritantes entre esses dois lugares.

O campo (o nordeste brasileiro e o sul estadunidense) é representado como um lugar

sem vida e sem perspectiva para os que moram lá, onde urubus, animal muito significativo em

ambas as obras (os animais, em geral, são um motivo fortíssimo durante as estórias), são uma

presença (simbólica) constante. A alienação do mundo sertanejo é muito bem resumido nas

palavras de Fabiano, protagonista de Vidas Secas: “o mundo é grande [mas] para eles era bem

pequeno.” (p. 121) Essa concepção limitada do mundo se reflete na idéia que o ‘filho mais

velho’ de Fabiano tem do inferno, como um lugar “cheio de jararacas e suçuaranas, e as pes-

soas que moravam lá recebiam cocorotes, puxões de orelhas e pancadas com bainha de faca”

(p. 61); toda sua concepção de idéias abstratas advém de sua própria visão limitada dos males

do mundo. Dewey Dell, filha dos Bundren, família em torno da qual centra-se a novela de

Faulkner, também expressa, de forma simples e marcante a dicotomia presente entre esses

40 Graduando em Letras – Inglês e Literatura Inglesa da UFSM.41 Orientadora

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dois mundos, em falas como “mas essas mulheres ricas da cidade podem mudar de idéia. Os

pobres, não” (p. 12) e “somos gente do campo, não tão boa quanto os da cidade” (p. 54).

Quando esses dois mundos se cruzam, ambas as obras retratam o encontro da mesma

maneira: há uma imediata repulsa de um pelo outro, o homem do campo rejeita e teme o que a

civilização lhe oferece ao mesmo tempo que a mesma repele esse ser que recusa a ajustar-se à

sociedade urbana moderna. E assim como as duas obras encaram esse fato igualmente, elas

também exploram-no de modo semelhante: em Vidas Secas, Fabiano, ao visitar a cidade para

comprar mantimentos, é levado, ingenuamente, por temor ao ‘soldado amarelo’, a personifi-

cação da autoridade do estado, a participar de um jogo de cartas, no qual perde todo seu di-

nheiro e acaba por ser preso ao desacatar o oficial, solução que a sociedade urbana acha para

aquele ser deslocado; Fabiano acaba por se convencer “de que todos os habitantes da cidade

eram ruins” (p. 76). Da mesma maneira, Dewey Dell, ao procurar auxílio médico para realizar

um aborto, é enganada por um atendente em uma farmácia que, apesar de permanecer incerto

a ocorrência do fato, aproveitando-se de sua ingenuidade, tenta assediá-la, mandando-a voltar

à farmácia à noite e descer até o porão.

O resultado dessa visão da sociedade moderna sobre o homem do campo se dá na rela-

ção e alegoria dos personagens de Faulkner e Ramos com animais, um motivo muito forte e

recorrente nos dois livros. Se por um lado os habitantes da cidade veem os do campo como

animais selvagens, os do campo se veem como ‘bons selvagens’, livres da sujeira e da corrup-

ção dos centros urbanos. Além de inúmeras comparações aparentemente simples, usadas ape-

nas como recurso literário, que aludem ao raciocínio ligado ao seu meio rural dos personagens

em Ramos (“jeito de bicho lerdo (p. 68); “como um cachorro” (p. 96); “fugindo no mato co-

mo bichos” (p. 121)) e Faulkner (“o cabelo arrepiado, como galo molhado” (p. 41); “agora

estamos todos lá sentados, como corvos” (p. 17)), os autores utilizam dessas analogias para

explorar mais profundamente a miséria e a alienação (tanto física quanto psicológica) de seus

personagens.

Por todo o capítulo “Fabiano”, em Vidas Secas, há um jogo entre Fabiano considerar-

se um homem (“- Fabiano, você é um homem” (p. 18)) ou um animal (“- Você é um animal,

Fabiano” (p. 18)), o que exprime a reflexão existencialista em busca de definir seu lugar no

mundo e sua natureza, presa entre o ideal moderno do homem urbano e o excluído campesino,

que as radicais mudanças sociais do início do século XX provocam. Ramos ainda trabalha de

maneira subjetiva o assunto ao descrever Fabiano pensando-se como “um cabra” (também

apresentado de forma alegórica nas características físicas de Fabiano, que possui um “queixo

cabeludo” (p. 24) assim como uma cabra), substantivo que permite o jogo de palavras entre a

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linguagem popular nordestina, onde a palavra se refere a um homem qualquer, ou o animal

em si, reforçando a dicotomia presente no capítulo. Fabiano termina por aceitar sua condição

de animal governado pelo homem urbano: “não, provavelmente não seria homem: seria aquilo

mesmo a vida inteira, cabra, governado pelos brancos, quase uma rês na fazenda alheia.” (p.

24) (o trecho final é ainda uma metáfora à posição deslocada do sertanejo em relação ao resto

do mundo, “uma rês na fazenda alheia”).

A condição de “animais” é explorada em sua forma mais profunda na representação da

linguagem dos personagens, desprovidos de sua característica mais humana: a habilidade de

falar. Os personagens de Vidas Secas são comparados literalmente a animais quando necessi-

tam se expressar: Sinhá Vitória “latia como baleia” (p. 43) e ‘o menino mais velho’, que “ti-

nha um vocabulário tão quase minguado quanto o do papagaio que morrera no tempo de seca”

e “valia-se, pois, de exclamações e de gestos” (p. 55, 56). Essa conversa, que “não era propri-

amente conversa, eram frases soltas, espaçadas, com repetições e incongruências” (p. 63), na

qual “bastavam gestos.” (p. 97), geram uma dos principais e mais presentes temas de ambas

as obras: o silêncio.

Tanto na forma de narrativa, que se dá através do uso majoritário do fluxo de consci-

ência, onde os personagens fecham-se em si mesmos, quanto na própria descrição do ambien-

te, estático e silencioso, e nos diálogos, que quando presentes quebram a narrativa interna

como se quebrassem o silêncio, o silêncio envolve os personagens de Vidas Secas e Enquanto

Agonizo de forma sufocante. Em Ramos, estas características são apresentadas de forma mais

direta, na solidão da família viajando, no “silêncio grande” (p. 10) que envolve a viagem, no

fato de que “viviam todos calados (p. 11)” e “raramente soltavam palavras curtas (p. 11)”, e

simbólica, pelo fato de que o papagaio da família, um animal notável por ser capaz de falar, é

mudo.

O “silêncio” representaria a falta de voz, a impotência, que os grupos campesinos ex-

cluídos da população, o sertanejo, no caso de Ramos, e o sulista, em Faulkner, sofrem frente à

modernização acelerada do século XX. Essa relação entre o silêncio e a impotência pode ser

observado em Vernon, personagem de Enquanto Agonizo, que perde suas ferramentas (sua

força, sua identidade) e ao mesmo tempo perde a habilidade de falar, a qual apenas é restabe-

lecida quando este recupera suas ferramentas.

Outra personagem em Faulkner que incorpora essa noção é Addie Bundren, a matriar-

ca da família, que, após passar vários capítulos agonizando em sua cama, apenas se comuni-

cando por frases curtas e murmúrios, é protagonista de capítulo inteiro mesmo após sua mor-

te. A personagem que se encontra na mesma posição de Addie em Ramos é a Sinhá Vitória,

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que “aboiava arremendando Fabiano” (p. 43), e que em sua posição duplamente rebaixada de

acordo concepções elitistas do início do século XX, como mulher e como sertaneja, atesta que

precisava falar. Se ficasse calada seria como um pé de mandacaru, secando, morren-do. Queria enganar-se, gritar, dizer que era forte, e a quentura medonha, as árvorestransformadas em garranchos, a imobilidade e o silêncio não valiam nada. (p. 119)

Para os personagens de ambos os autores, o silêncio (a alienação do mundo) são equi-

valentes à morte e só através da expressão pessoal é que poderiam viver verdadeiramente, o

que se transforma em um jogo metalingüístico entre o escritor e seus personagens, já que é

papel do escritor dar voz a esses excluídos.

Como resultado dessa reclusão e alienação, os personagens se veem divididos entre o

ideal urbano e a realidade da pobreza do campo, entre um passado seguro e próspero e um

presente de miséria e sem perspectiva futura (“Se ao menos pudesse recordar-se de fatos a-

gradáveis, a vida não seria inteiramente má.” (p. 98)), como Sinhá Vitória, que ante sua con-

dição de retirante “pensava em acontecimento antigos, que não se relacionavam: festas de

casamento, vaquejadas, novenas, tudo numa confusão” (p. 11), e isolados, como Jewel, que se

sente deslocado da família por ser ilegítimo, se referindo à sua família como “vocês ou sua

gente” (p. 20).

Por não poder fugir de sua condição, o campesino vê-se preso em uma existência cí-

clica, sem um futuro e sempre tentado retornar à segurança do passado. Assim ambas as obras

terminam no ponto onde começam: Anse Bundren, em Enquanto Agonizo, apresenta à sua

família a nova “Mrs. Bundren” e a família de Vidas Secas é forçada a retomar à sua peregri-

nação pelo sertão em busca de uma nova terra; e, de maneira mais subjetiva, esse ciclo tam-

bém se apresenta no fato de Vernon, em Enquanto Agonizo, casar-se com uma professora,

assim como seu pai, e no desejo do ‘filho mais novo’, em Vidas Secas, de ser igual ao seu pai.

3. Resultados e Conclusões

Podemos observar nas obras de ambos os autores a situação deplorável em que se en-

contram as populações campesinas no início do século XX, seu total estado de alienação e

exclusão frente à emergente sociedade urbana moderna. Fato marcante é que tanto Faulkner

quanto Ramos dão extrema importância para a comunicação e seu papel na superação do ex-

cluído de sua realidade e sua inclusão no meio urbano, e ambos se utilizam de uma linguagem

e simbolismos comuns ao homem do campo, independente do local onde vive.

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Os personagens de Vidas Secas e de Enquanto Agonizo se tornam mais que simples

instrumentos da estória, se tornam símbolos de um modo de vida em decadência e lentamente

reprimido e suas lutas, um reflexo real de sua realidade, universal em sua condição, como

bem podemos observar pela igualdade de representação entre autores tão distantes.

Em resumo, esta é a dura condição do campesino perante a urbanização do século XX

como é apresentada nas obras Vidas Secas e Enquanto Agonizo: um animal mudo e impotente

sem perspectiva de vida que é forçado a buscar um ideal externo à sua realidade para se tornar

parte do mundo.

Referências

RAMOS, Graciliano. Vidas Secas. Rio de Janeiro: Editora Record, 2001.

FAULKNER, William. Enquanto Agonizo. Tradução de Wladmir Dupont. Porto Alegre:L&PM, 2010

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ENTRE A INVENÇÃO E A REALIDADE: FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NO ESPAÇO FÍSICO ESOCIAL MOÇAMBICANO EM O ÚLTIMO VOO DO FLAMINGO, DE MIA COUTO

Vanessa Fritzen42

Profª. Drª. Nelci Müller43

Resumo: Mia Couto, autor moçambicano, consolida-se como um dos maiores escritores deexpressão portuguesa na contemporaneidade pela temática e originalidade de suas obras. Esteestudo tem por objetivo analisar O último voo do flamingo (2000), obra que aborda os anos deluta contra a dominação portuguesa e o período pós-guerra de Independência, quando a ONUocupa Moçambique a fim de evitar os conflitos civis constantes. Esse romance, que se cons-trói a partir de um entrecruzamento de vozes, será examinado sob a perspectiva das relaçõesentre literatura, história e memória. Para apreensão dos sentidos da obra, busca-se respaldonas teorias da narrativa contemporânea, dos pressupostos da Nova História, e dos conceitos dememória.

Palavras-chave: Mia Couto. Ficção e História moçambicanas. Memória.

O presente estudo tem a pretensão de fornecer contribuições aos estudos de literatura

africana em português, em especial, sobre o romance moçambicano pós-colonial, que se mos-

tra envolto por elementos que deixam transparecer a vida de um povo que teve seu território,

em partes, modificado, mas que busca resgatar as suas origens. Dessa forma, pretende-se es-

tudar referenciais teóricos acerca da Literatura Moçambicana, das relações entre literatura e

História, e dos conceitos de memória.

A execução da presente pesquisa será realizada tendo como corpus de análise o livro

O último voo do flamingo, de Mia Couto, que foi publicado pela primeira vez em 2000. Este

livro, além de ser reconhecido pela crítica, também é ganhador do prêmio “Mário António”

(2001). O autor da obra é considerado pela crítica literária, um dos escritores mais importan-

tes de Moçambique, sendo que suas obras são as mais traduzidas do país. Para a escritura d’O

último voo do flamingo, ao mesmo tempo em que Mia Couto utilizou-se de uma rica lingua-

gem, com elementos sobrenaturais, fantásticos, misticismo, saberes ancestrais africanos, entre

outros, também intercalou o discurso histórico, de forma a sugerir aspectos reais sobre o coti-

diano dos moçambicanos, bem como sobre a sua reestruturação política e social, no período

pós-colonial.

42 Mestranda em Literatura Comparada pela Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das MissõesCampus de Frederico Westphalen. E-mail: [email protected] Orientadora

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A obra O último voo do flamingo tem sua estrutura marcada por um entrecruzamento

de vozes, que se dá a partir da mescla do resgate da memória do narrador com a das persona-

gens. Nesse contexto, a memória que transborda pelo romance, reflete um momento de reor-

ganização social e política numa cidade imaginária, mas que num plano maior, é a própria

história do povo moçambicano, que lutou contra a dominação portuguesa até o ano de 1975.

Assim, pretende-se realizar uma análise minuciosa deste romance contemporâneo, que

apesar de seu discurso literário (elementos sobrenaturais, fantásticos, mágicos), também deixa

transparecer um discurso histórico, no qual os personagens avivam através da memória, lem-

branças sobre as lutas pela Independência, e também sugerem como a sociedade moçambica-

na está se reestruturando, nos âmbitos político, social e cultural, neste recente período pós-

colonial. Para o desenvolvimento dessa narrativa, o autor utilizou-se das memórias do narra-

dor, “elemento estruturador da história”44, que ora revela suas lembranças, ora passa a palavra

para as outras personagens que, uma a uma, contam as suas percepções sobres diversos assun-

tos, sendo que, um mesmo assunto, por vezes, é contado de forma diferente por cada persona-

gem.

A obra O último voo do flamingo, foi escrita em um período em que já se passavam

quase três décadas da Independência (1975) de Moçambique, e quase uma década do fim das

guerras civis. Durante o colonialismo, apesar de alguns escritores demonstrarem certo ânimo

no Moçambique a ser escrito em páginas, prevaleciam as críticas, as denúncias, as dores e os

sofrimentos do povo, em decorrência das incansáveis lutas. Nesse período, a poesia foi o gê-

nero literário mais comum em Moçambique. Isso porque somada a reduzida elite intelectual, a

poesia era mais fácil de ser publicada, além de ser uma maneira mais insidiosa de iludir a cen-

sura.

Na produção literária pós-colonial moçambicana, os escritores têm dentro de si o

compromisso de usar a palavra como forma de criticar os problemas ainda existentes e não

deixar se perder os valores mais remotos de um povo que ainda tem muito para ensinar. Para

tanto, nas obras são rememoradas as origens, os valores culturais e tudo mais o que foi repre-

sentativo no passado moçambicano, além de também representar fatos do presente. A temáti-

ca que envolve assuntos contemporâneos é muito utilizada pelo escritor Mia Couto, por e-

xemplo, que busca através de sua arte, denunciar as violações que ocorrem em âmbito político

(uso indiscriminado do poder), econômico (corrupção), e pessoal (identidade instável). Em

seus estudos sobre literatura africana, Ana Mafalda Leite menciona que

44 GANCHO, Cândida Vilares. Como analisar narrativas. 1993. p. 26.

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[a]s relações entre homem e mulher, os mais velhos e os mais novos, é um assuntoque merece especial atenção, tendo em conta os valores ancestrais e os códigos anti-gos reguladores da sociedade camponesa, agora por vezes postos em causa por no-vas ideias e comportamentos menos conservadores. Um dos grandes temas é, semdúvida, a guerra civil, a miséria e a fome, provocadas pelos muitos anos de sofri-mento [...], a destruição dos laços clânicos pela necessidade de fugirem e se refugia-rem em outras zonas. Em simultâneo, o avivar das crenças e dos valores animistas,como último recurso para a esperança45.

Dessa forma, foi pensando no crescente empenho moral por parte dos escritores con-

temporâneos, em avivar crenças e valores, que Mia Couto escreveu, entre outras obras, O úl-

timo voo do flamingo. O romance, que é dividido em 21 capítulos, é narrado em primeira pes-

soa por um tradutor, sendo que, surgem novas vozes no decorrer da trama. Em síntese, a obra

trata de estranhos fatos que ocorrem com soldados da ONU: eles “explodem” e a única coisa

que resta é o seu órgão genital. Então, para tentar solucionar o mistério, chega à vila de Ti-

zangara (local onde ocorrem os fatos), o inspetor Massimo Risi. Massimo, que é italiano, se

mostra perplexo ao adentrar nessa vila e se deparar com acontecimentos insólitos. No desfe-

cho, o mistério é solucionado, mas isso nem tem tanta importância se considerada a grandeza

dos saberes e da cultura africana que é perpassada através do romance.

Mas, voltando às vozes que surgem no decorrer da trama, essas são guiadas pela me-

mória. Entretanto, cada personagem manifesta as suas lembranças – referentes às mesmas

estórias – de modo diferente. Maurice Halbwachs define a lembrança como “uma imagem

engajada de outras imagens”46. E é isso o que ocorre na narrativa, na qual as personagens re-

constroem o passado influenciado pelo presente, pelo que lhes convém. A personagem redi-

mensionará o seu olhar a partir do lugar que se encontra no grupo e também na situação em

que se encontra, pensando em perdas e ganhos. Nessa linha de pensamento, Halbwachs define

a memória individual como “um ponto de vista sobre a memória coletiva”47.

Essa questão da memória pode ser mais bem exemplificada com um trecho d’O último

voo do flamingo. Fato é que no desenvolvimento da narrativa, as vozes se manifestavam, entre

outras coisas, para fornecer esclarecimentos sobre os órgãos genitais masculinos decepados;

mas cada um contava uma estória diferente, apontava um culpado diferente. Até que numa

discussão, o administrador Estêvão, que até então não apontava indícios de ser o culpado, foi

desmascarado, não tendo mais como negar.

Contudo, a voz de Ana Deusqueira se sobrepôs:

45 LEITE, Ana Mafalda. Literaturas africanas e formulações pós-coloniais. 2003. p. 30.46 HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. 2006. p. 77.47 Idem. Ibidem p. 55.

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- És tu que estás a matar pessoas. És tu, Estêvão Jonas.- Cala-te!- Tu é que mandas colocar as minas! Tu é que matas os nossos irmãos.- Não escute, ela é doida - disse ele para mim.- Eu vi-te a semear as minas, eu vi...48

Essa rememoração tratada na obra, seja de acontecimentos, seja de saberes ancestrais,

funde o realismo social ao um realismo animista. Este último é uma das características não só

d’O último voo do flamingo, como de boa parte das narrativas africanas. Elisângela da Silva

Tarouco menciona as ideias de Harry Garuba, criador do termo e que “acredita que a realida-

de africana possa ser mais compreendida através do viés animista, pois nada mais é do que a

convivência harmoniosa do mundo dos seres vivos com o mundo dos mortos e dos tempos

passado, presente e futuro”49.

Analisar a obra O último voo do flamingo, vai além de estudar as suas particularidades

literárias, de observar como os vários tipos de memória estruturam a narrativa, de verificar até

que ponto a história se faz presente na estória. De fato, durante períodos do século XIX, para

a compreensão de uma obra literária era necessário verificar que circunstâncias históricas,

sociais, morais, ideológicas, etc, ocorriam no momento em que ela havia sido escrita. Porém,

depois de algum tempo essa visão passou a ser revogada, “procurando-se mostrar que a maté-

ria de uma obra é secundária, e que a sua importância deriva das operações formais postas em

jogo [...] que a torna de fato independente de quaisquer condicionamentos, sobretudo social”50.

Na atualidade, estas concepções não devem estar separadas, uma vez que para o en-

tendimento do conjunto da obra é necessário a junção de texto com contexto, onde tanto a

antiga visão que se fazia entender pelos fatores externos, como a outra, conhecida como tendo

a estrutura independente, se harmonizam, pois ambas são imprescindíveis na questão do pro-

cesso interpretativo. Dessa forma, ao adentrar na obra de Mia Couto, um novo universo passa

a ser conhecido e, através do real e do imaginário ou sobrenatural, emergem a cultura e os

saberes de um povo, que já viveu tantos anos em meio a lutas, mas que agora, espera que o

flamingo51 volte a sobrevoar novamente.

Fato é que na medida em que passou a euforia pela independência conquistada, pelo

48 COUTO, Mia. O último voo do flamingo. 2005. p. 194.49 TAROUCO, Elisângela da Silva. O realismo animista e a literatura africana. Anais... 2010. p. 02.50 CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade: estudos de teoria e história literária. 2008. p. 13.51 O flamingo, grande pássaro rosado, é aquele que conhece a luz; ele é o iniciador à luz; surge como um dossímbolos da alma migrante das trevas à luz, de acordo com o Dicionário de símbolos (p. 434), de Jean Chevalier.

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orgulho pátrio, emergiram as dificuldades e problemas estabelecidos pela colonização52. Des-

sa forma, a produção literária moçambicana contemporânea prima pela busca e pela valoriza-

ção da identidade cultural que outrora foi reprimida, destruída. Essa literatura também denun-

cia os abusos de poder e reivindica por mudanças. É no confronto do passado com o presente

que a consciência nacional vai se clarificando e se consolidando nesse país que viveu anos de

incessantes lutas.

Referências

CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade: estudos de teoria e história literária. 10. ed. Riode Janeiro: Ouro sobre Azul, 2008.

CHEVALIER, Jean. Dicionário de símbolos. Trad. Vera da Costa e Silva. 21. ed. Rio de Ja-neiro: José Olympio, 2007.

COUTO, Mia. O último voo do flamingo. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

GANCHO, Cândida Vilares. Como analisar narrativas. São Paulo: Ática, 1993.

HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. Trad. Beatriz Sidou. São Paulo: Centauro,2006.

KNOPFLI, Rui. Princípio do dia. Poesia africana. Maio de 2011. Disponível em:<http://www.antoniomiranda.com.br/poesia_africana/mocambique/rui_kinopfli.html>. Acessoem: 19 nov. 2011.

LEITE, Ana Mafalda. Literaturas africanas e formulações pós-coloniais. 4. ed. Lisboa: Edi-ções Colibri, 2003.

SANT’ANA, Glória de. Poemas do tempo agreste. Beira, 1964.

TAROUCO, Elisângela da Silva. O realismo animista e a literatura africana. In: SeminárioInternacional Linguagem, Interação e Aprendizagem e VII Seminário Nacional Linguagem,Discurso e Ensino, 2010, Porto Alegre. Anais... Porto Alegre: 2010, UniRitter, Curso de Le-tras/PPGLetras. Disponível em:<http://www.uniritter.edu.br/eventos/sepesq/vi_sepesq/arquivosPDF/27154/1938/com_identificacao/Artigo%20Sepesq%20Animismo.pdf>. Acesso em: 19 nov. 2011.

52 A destruição da identidade nacional e, até mesmo, individual.

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BUDAPESTE E A PÓS-MODERNIDADE: NO MUNDO DAS PERGUNTASSEM RESPOSTAS

Samantha Borges53

Profª. Drª. Rosani Ketzer Umbach54

Resumo: O artigo tem como objetivo analisar o livro Budapeste, de Chico Buarque, sob a perspectivade teorias contemporâneas que colocam em debate novos paradigmas socioculturais e literários, atra-vés dos quais se destaca a problemática da pós-modernidade. Através de autores como Gianni Vattimoe Stuart Hall, discutem-se características como deslocamento espacial, tempo apresentado na forma deaconteceres e não demarcado por datas específicas, multiplicidade identitária, relações problemáticasde alteridade e falta de profundidade do sujeito. Buarque apresenta literariamente uma personagemque reflete em si o mundo de incertezas, de múltiplos e de oscilações que se colocam diante do homemcontemporâneo, aspectos que são dispostos, porém, em um enredo que permanece na superficialidadeem relação aos temas tratados. Dessa forma, o romance acaba por desvelar características do mundoatual sem, no entanto, apresentar alguma proposta elaborada de crítica social. Diante desse contexto, oartigo não tem como objetivo enquadrar a obra como pós-moderna, mas detectar na narrativa traçostidos como pós-modernos, buscando a reflexão sobre os mesmos através muito mais de questionamen-tos do que de respostas.

Palavras-chave: Teorias contemporâneas. Pós-modernidade. Budapeste.

1. Introdução

A discussão sobre a existência ou não da pós-modernidade parece ainda não oferecer

respostas fechadas. Talvez nem mesmo respostas. Mas, há que se reconhecer que alguns para-

digmas se modificaram durante o século XX, segundo perspectivas sócio-culturais, políticas e

econômicas e que tais mudanças interferiram na visão de mundo do homem, em como ele se

relaciona com esse mundo e com as pessoas ao seu redor, bem como na forma como ele se

exprime através de diferentes manifestações culturais, entre elas a arte e, logo, a literatura.

Para exercitar uma análise crítica iremos, neste artigo, tentar fazer uma leitura sobre alguns

aspectos da obra literária Budapeste, de Chico Buarque, buscando não enquadrá-la como mo-

derna ou pós-moderna, mas encontrar em sua narrativa traços identificados como pós-

modernos.

53 Graduada em Comunicação Social – Hab. Jornalismo pela Universidade Federal de Santa Maria e Mestrandano Programa de Pós-Graduação em Letras – Estudos Literários, na mesma instituição.54 Orientadora

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2. As infindas chegadas e partidas de Budapeste

A primeira característica – envolvente - do romance Budapeste (2003) de Chico Buar-

que é apresentar, logo nas primeiras páginas, uma narrativa de ritmo sem muitas pausas, por-

que a sucessão de acontecimentos é a base formadora da identidade – ou das identidades - da

personagem principal, José Costa, e da história contada por ele enquanto narrador da obra.

Percebe-se que o protagonista é um resultado de aconteceres, o que transmite essa sensação de

movimento e transitoriedade de tudo. A obra inicia-se com a narração de um acontecimento,

logo, de uma ação: o protagonista conta sobre um dia em que desceu do metrô e ligou para

Kriska, para avisar que estava “chegando, quase” (BUARQUE, 2003, p.1). É somente depois

de narrar uma sequência de ação, na qual a personagem se encontra em “trânsito” – assim

como parece seguir durante toda a narrativa - que o protagonista começa a explicar que o fato

acontecera em Budapeste, na Hungria, e aos poucos vamos percebendo também que o fato

que mudou sua vida – o contato com a capital húngara - ocorreu por acaso, não por escolha ou

decisão da personagem, que também demonstra sua passividade diante dos acontecimentos:

“Fui dar em Budapeste graças a um pouso imprevisto, quando voava de Istambul a Frankfurt,

com conexão para o Rio” (Ibid, p. 5), diz José Costa.

A sucessão de aconteceres não segue uma linearidade marcada de tempo e espaço, ao

contrário, há a presença de uma oscilação espaço-temporal, que pode ser percebida também

logo no início da narrativa, pois o narrador começa contando sobre seu telefonema e imedia-

tamente dá um salto temporal para o passado – sem avisar ou introduzir essa mudança ao lei-

tor, para contar sobre seu primeiro contato com a língua húngara:

“Para tirar a cisma, só posso recorrer a Kriska, que tampouco é muito confiável; afim de me segurar ali comendo em sua mão, como talvez deseje, sempre me negará aúltima migalha. Ainda assim, volta e meia lhe pergunto em segredo: perdi o sota-que? Tinhosa, ela responde: pouco a pouco, primeiro o nariz, depois uma orelha... Emorre de rir, depois se arrepende, passa as mãos no meu pescoço e por aí vai. Fuidar em Budapeste graças a um pouso imprevisto, quando voava de Istambul a Frank-furt, com conexão para o Rio” (BUARQUE, 2003, p.5).

Essa personagem que se mostra em constante movimento, seguindo o ritmo dos acon-

teceres de sua vida e vivenciando as impressões desses acontecimentos sem necessariamente

transmitir algum aspecto mais profundamente reflexivo ou existencial, leva a crer que mais do

que “ser” alguém no mundo, ela corresponde a um “estar” no mundo, o que é um dos reflexos

de uma sociedade que segue o embalo de um tempo gerido pela aceleração do ritmo de vida,

pela superficialidade no relacionamento interpessoal, pela perda de fronteiras espaciais – ca-

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racterísticas que “montam” seres mutáveis e flexíveis, em metamorfoses constantes, e aos

quais filósofos do início do século XX já tentavam interpretar, compreender, questionar:

Filósofos niilistas como Nitzsche e Heidegger (mas também pragmatistas como De-wey e Wittgeinstein), ao mostrar-nos que o ser não coincide necessariamente com oque é estável, fixo, permanente, mas tem a ver com o acontecimento, o consenso, odiálogo, a interpretação, esforçam-se por nos tornarem capazes de captar esta expe-riência de oscilação do mundo pós-moderno como chance de um novo modo desermos (talvez finalmente) humanos (VATTIMO, 1989, p.19).

E se a personagem principal se mostra como uma sucessão de aconteceres, essa in-

constância também se reflete no espaço da narrativa, que não é unificada, pois se divide em

dois eixos principais: o Rio de Janeiro, no Brasil, e Budapeste, na Hungria. Essa dualidade

espacial representa uma forma de “oscilação contínua de pertença e desenraízamento” da per-

sonagem. Para Vattimo (1989, p.18), essa sensação de acessibilidade possível a diferentes

mundos e culturas é promovida, na sociedade contemporânea – em especial - pelos meios de

comunicação. A obra traz uma alusão a essa sensação ora de pertença, ora de desenraízamen-

to, mostrando as diferentes facetas de José Costa, entrelaçadas aos dois espaços retratados: no

Brasil, ele é um bem sucedido Ghost-Writer (um escritor-fantasma, que escreve os mais vari-

ados textos e discursos para a locução de outras pessoas) e seu talento é o completo domínio

da língua portuguesa na construção de seus trabalhos, destacando assim um estado de total

pertença e encaixe ao ambiente brasileiro, representado na obra fundamentalmente pela língua

nacional.

Já em Budapeste, o contraste ao sentimento de pertença à língua materna é desconstru-

ído: a personagem encontra-se completamente desenraizada, pois não compreende uma só

palavra húngara. É esse total apagamento da principal característica que constituía José Costa

enquanto sujeito, que lhe transforma como que em uma criança a querer absorver um novo

mundo: as palavras húngaras adquirem para ele um encantamento tal, que a personagem é

impulsionada a aprender a língua, em um movimento que se transforma em um processo de

construção de um novo sujeito, que irá morar por tempo indeterminado na Hungria, assumirá

novas relações sociais, experimentará uma outra vida, e assim a constituição de um novo sen-

timento de pertença, apresentando assim o começo de um ciclo pertença-desenraizamento-

pertença, que acaba por percorrer a obra do início ao fim, pois a personagem transita na trama

em um vai-e-vem entre as duas cidades, assumindo então em cada qual uma identidade.

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3. José Costa, Zsoze Kósta, entre outros...

Além de enfocar os não-lugares, a obra de Buarque ao apresentar uma dualidade espa-

cial – Rio/Budapeste - não restringe à dualidade a faceta identitária de José Costa. Ao contrá-

rio, o protagonista apresenta uma “multiplicidade” identitária. Porque se ele assume uma i-

dentidade em cada local em que se passa a narrativa, através de sua profissão, José Costa fala

por diferentes personagens e seu prazer está em dominar a língua escrita, através da qual ele

dá voz a políticos, empresários e toda a sorte de figuras sociais influentes.

Para o protagonista bastava saber que tinha o poder de construir discursos perfeitos,

chegando ao ponto até mesmo de fugir da exposição, pois era no anonimato que conseguia

mergulhar nas identidades de seus locutores, sentir-se até parte deles, ou em muitos momen-

tos, sentir-se propriamente o “outro”. Ao longo da história percebemos que essa relação de

alteridade é uma das marcas mais emblemáticas da personagem. José Costa preza por se cons-

tituir enquanto sujeito, no momento em que se faz passar pelo outro. Faz questão de se escon-

der na voz de outro indivíduo, de não ser reconhecido – a menos que por si próprio. Essa ne-

gação de si mesmo é o que para ele faz algum sentido, o que o diferencia perante a sociedade,

já que enquanto José Costa ele se julga como apenas mais um: “É que comigo as pessoas

sempre puxam assunto, julgando conhecer de algum lugar este meu rosto corriqueiro, tão im-

pessoal como o nome José Costa, numa lista telefônica com fotos, haveria mais rostos iguais

ao meu do que assinantes Costa José” (BUARQUE, 2003 p.101).

A negação de si mesmo é tão forte, que quando Costa vê a si no outro, sua reação mais

do que negação, se torna uma fuga:

Quando me vi cercado de sete redatores, todos de camisas listradas como as minhas,com óculos de leitura iguais aos meus, todos com meu penteado, meus cigarros eminha tosse, me mudei para um quartinho que estava servindo de depósito, atrás dasala de recepção (Ibid, p.24).

Fuga que no trecho é materializada como a busca por um espaço escondido e distante

das figuras que tanto se assemelham ao narrador-personagem, mas que se transforma ainda

em uma mudança de rumo em seu próprio trabalho, na tentativa de continuar sendo capaz de

se diferenciar. É a partir daí que Costa passa a escrever autobiografias. Nesse contexto conhe-

ce um de seus mais importantes clientes, Kaspar Krabe, um empresário alemão radicado no

Brasil, que o contrata para escrever uma autobiografia. O livro O Ginógrafo, obra que José

Costa escreve em nome do alemão, termina por fundir-se ao texto do próprio Budapeste, da

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mesma maneira que Costa encarnava seus “fregueses”, nos textos anteriores, como máscaras a

lhe estimular o prazer e o poder de seu ofício. Prova disso é que a frase final da autobiografia

torna-se a frase final do livro de Buarque “E a mulher amada, de quem eu já sorvera o leite,

me deu de beber a água com que havia lavado sua blusa”(BUARQUE, 2003, p.39/174).

Esse jogo de identidades vai ao encontro da concepção de sujeito fragmentado, que

por sua vez, situa-se em um processo histórico, social e cultural de identificação que deixou

de ser estável, fixo e unificado – características do mundo moderno, e passou a se constituir

de maneira flexível, variável (HALL, 2004). De acordo com Stuart Hall, é nesse processo que

surgem as problemáticas de um “eu” que assume diferentes identidades, que se constroem de

acordo com determinada vivência ou ambiente:

Dentro de nós há identidades contraditórias, empurrando em diferentes direções, detal modo que nossas identificações estão sendo continuamente deslocadas. (...) àmedida que os sistemas de significação e representação cultural se multiplicam, so-mos confrontados por uma multiplicidade desconcertante e cambiante de identidadespossíveis, com cada uma das quais poderíamos nos identificar – ao menos tempora-riamente (Ibid, 2004, p.13).

Assim, múltiplas são as identidades e múltiplas as possibilidades de identidade, que

parecem conseguir se acomodar apenas em um mundo guiado por “momentos”, em que o

próprio termo identidade se torna problemático, situação em que o termo identificação parece

soar mais adequado, enquanto ressonância de um processo que não está acabado, mas em um

eterno andamento (HALL, 2004).

4. Considerações finais

Buarque apresenta literariamente um José Costa que reflete em si o mundo de incerte-

zas, de múltiplos e de oscilações que se coloca diante do homem contemporâneo. É, entretan-

to, difícil dizer que a obra ofereça algum tipo de reflexão mais aprofundada sobre isso, algum

tipo de crítica social elaborada, já que não apresenta nem mesmo um “fim da história”. O en-

redo não mostra respostas, não aponta justificativas. José Costa é o que é. José Costa é o que

não é. E nesse jogo pode ser qualquer coisa. A interpretação se coloca de forma aberta, assim

como o final da obra. A superficialidade – provavelmente proposital - com que a história se

apresenta se une por fim ao conjunto de características apresentadas na obra que correspon-

dem a traços representativos do mundo contemporâneo, em que o homem “deve habituar-se a

viver numa situação na qual não há mais nenhuma garantia, tampouco alguma certeza funda-

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mental” (TEIXEIRA, 2006, p.209). E assim como as teorias pós-modernas, também suas ex-

pressões estéticas parecem suscitar em nós nada mais que questionamentos, em um caminho

que aparenta tão distante quanto ilusório, até que se encontre alguma resposta.

Referências

AUGÉ, Marc. Não-lugares: introdução a uma antropologia da supermodernidade. Campi-nas: Papirus, 1994.

BUARQUE, Chico. Budapeste. 2ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.

HALL, Stuart. A identidade cultural da pós-modernidade. 10ª ed. Rio de Janeiro: DP&A,2005.

TEIXEIRA, Evilázio. Pós-modernidade e niilismo - um diálogo com Gianni Vattimo. ALCEU- v.7, n.13 - p. 209 a 224, jul./dez. 2006.

VATTIMO, Gianni. A sociedade transparente. Rio de Janeiro: Edições 70, 1989.

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O DUPLO NARCISO: O HERÓI DA MODERNIDADE EM O RETRATO DE DORIANGRAY, DE OSCAR WILDE E ESPHINGE, DE COELHO NETO

Gustavo Menegusso55

Prof. Dr. Ricardo A. F. Martins56

Resumo: O estudo sobre a representação do herói da modernidade suscita abordagens varia-das devido à complexidade temática. Nesse trabalho, priorizar-se-á um diálogo possível entreos referenciais teóricos da literatura fantástica e da teoria do duplo a fim de compreender,dialeticamente, como se constrói a caracterização da figura desse herói. Como objetos de aná-lise, elegeram-se os romances O retrato de Dorian Gray (1891), do escritor irlandês OscarWilde e Esphinge (1908), do brasileiro Coelho Neto. A escolha deste corpus deve-se não so-mente ao enquadramento de ambas as obras a um mesmo gênero, ou seja, à literatura fantásti-ca, mas, sobretudo às várias semelhanças narrativas e intertextuais entre os dois textos, prin-cipalmente no que se refere às características físicas e psicológicas dos personagens princi-pais. Para o embasamento dessa proposta, busca-se respaldo em obras de autores como Tzeve-tan Todorov e Sigmund Freud.

Palavras-chave: Duplo. Herói da Modernidade. Literatura fantástica.

O duplo é uma temática que perpassa séculos na história da produção literária. Durante

a Antiguidade até o final do século XVI, esse mito simbolizava o homogêneo, o idêntico. A

figura de um outro, nesse caso, era um gêmeo ou sósia usado para usurpar/substituir ou, ain-

da, simplesmente confundir a identidade do verdadeiro herói. No entanto, a partir desse perío-

do, “o duplo começa a representar o heterogêneo, com a divisão do eu chegando à quebra da

unidade (século XIX) e permitindo até mesmo um fracionamento infinito (século XX)”57.

Na problemática do heterogêneo, a questão da duplicidade passa a abarcar o espaço in-

terior do ser. Aquele que se desdobrou (duplicou) “cria para si a ilusão de agir sobre o exteri-

or, quando na verdade não faz mais que objetivar seu drama interior”58. Esse drama pode ser

perceptível em inúmeras obras literárias do século XIX, período em que o tema aparece de

forma corrente em romances e contos de literatura fantástica e/ou de terror. São exemplos:

Frankenstein (1818), de Mary Shelley, William Wilson (1839), de Edgar Allan Poe, O médico

e o monstro (1886), de Robert Louis Stevenson, e O retrato de Dorian Gray (1891), de Oscar

Wilde.

55 Mestrando em Literatura Comparada pela Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões(URI). Bolsista Prosup/Capes. E-mail: [email protected] Orientador57 BRAVO, Nicole Fernandez. Duplo. In: BRUNEL, Pierre (Org.). Dicionário de mitos literários. 2005. p. 264-265.58 Idem. p. 267.

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Além dessas obras, no século XX, vários outros autores também tematizam a questão

do duplo. Na literatura brasileira podem ser citados os romances Esphinge (1908), de Coelho

Neto, Grande Sertão: Veredas (1956), de Guimarães Rosa, A paixão segundo G.H (1964), de

Clarice Lispector e os contos de Murilo Rubião. Na literatura dita contemporânea, encontra-

se O homem duplicado (2002), do português José Saramago e Budapeste (2003), do brasileiro

Chico Buarque, apenas para mencionar alguns dos exemplos. E ainda, é claro, cabe destacar a

presença do duplo também no cinema, como no caso do filme Cisne Negro (2010), dirigido

por Darren Aronofsky, onde acontece o desdobramento de personalidade da personagem Ni-

na, uma bailarina que precisa passar por um processo de metamorfose para poder interpretar o

papel de Odile, o cisne negro.

Assim, é nesse contexto do duplo em obras de literatura fantástica que surge a propos-

ta deste trabalho: analisar nos romances O retrato de Dorian Gray e Esphinge como acontece

a manifestação da duplicidade dos personagens principais Dorian Gray e James Marian, res-

pectivamente.

Segundo Tzvetan Todorov (2010) o gênero fantástico pode ser definido a partir do cri-

tério da hesitação. Assim:

Num mundo que é exatamente o nosso, [...] produz-se um acontecimento que nãopode ser explicado pelas leis deste mesmo mundo familiar. [...] ou se trata de umailusão, [...] ou então o acontecimento realmente ocorreu [...]. O fantástico ocorrenesta incerteza; ao escolher uma ou outra resposta, deixa-se o fantástico para entrarnum gênero vizinho, o estranho ou o maravilhoso. O fantástico é a hesitação expe-rimentada por um ser que só conhece as leis naturais, face a um acontecimento apa-rentemente sobrenatural59.

Nesse sentido, o fantástico reside na hesitação provocada no leitor diante à natureza de

um acontecimento ficcional. Enquanto houver a incerteza manifesta-se o fantástico, contudo

ao tomar-se uma decisão, ou seja, tentar explicar se o acontecimento é de natureza sobrenatu-

ral ou é uma ilusão da personagem, entra-se no terreno do estranho e/ou do maravilhoso. É o

que acontece em O retrato de Dorian Gray: poderia um retrato ganhar vida e se transformar?

Oscar Wilde provoca no leitor a incerteza, se o que acontece é algo real ou sobrenatural. Não

havendo respostas para tais fenômenos se mantém a esfera do fantástico.

Seria tudo aquilo verdade? Teria o retrato mudado realmente? Ou era simplesmenteefeito de sua própria imaginação, que lhe fizera ver uma expressão de maldade ondehavia uma expressão de alegria? É evidente que uma tela não pode modificar-se. A

59 TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fantástica. 2010. p. 30-31.

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ideia era absurda. Seria um bom caso pra contar algum dia a Basílio. Ele havia derir60.

Aqui temos o momento em que Dorian Gray, após ter recebido a notícia da morte de

Sybil Vane, a mulher com quem iria se casar, desconfia que seu pacto faustiano poderia ter se

realizado. Existe a dúvida que cerca tanto o personagem quanto o leitor. Além disso, não há

um esclarecimento racional para o acontecido. Tanto o suposto pacto com o diabo quanto a

transformação do retrato são possíveis de acontecer e é nesse jogo de possibilidades sem ex-

plicações lógicas que, segundo Todorov, manifesta-se o fantástico.

Louis Vax, em A arte e a literatura fantásticas, revela que “a narrativa fantástica [...]

gosta de nos apresentar, habitando o mundo real onde nos encontramos, homens como nós,

postos de súbito em presença inexplicável”61. Assim, por mais que trabalhe com a imagina-

ção, o fantástico estaria nutrido, como acrescenta o autor, “dos conflitos do real e do possí-

vel”62. Nesse aspecto, a figura do andróide em Coelho Neto pode ser compreendida como um

elemento desse gênero:

Mas o que logo surpreendia, pelo contraste, nesse atleta magnífico, era o rosto deuma beleza feminina e suave. A fronte límpida, serena e como florida de ouro pelosanéis dos cabelos que por ela rolavam graciosamente, os olhos largos, de um azul fi-no e triste, o nariz direito, a boca pequena, vermelha e um pescoço roliço e alvo co-mo um cipó sustentando a beleza perfeita da fisionomia de Vênus sobre a força virile enérgica de Marte63.

Nessa passagem, temos uma das descrições que Coelho Neto faz ao seu personagem

principal James Marian, um excêntrico e recluso inglês, que ao chegar à pensão de Miss Bar-

kley, no Rio de Janeiro, altera toda a rotina dos hóspedes que ali viviam. James é dotado de

uma peculiaridade física: apresenta em sua natureza um rosto de uma beleza feminina (seme-

lhante a Vênus, a deusa romana da beleza), sustentado num corpo de um atleta masculino (si-

milar a Marte, o deus romano da guerra). Assim, é devido a essa característica física que se

manifesta o fantástico na obra Esphinge. Não há um esclarecimento para a dualidade de James

Marian. Tanto para os demais personagens quanto aos leitores fica apenas a hesitação frente

ao acontecimento.

60 WILDE, Oscar. O retrato de Dorian Gray. 1972. p. 118.61 VAX, Louis. A arte e a literatura fantásticas. 1972. p. 8.62 Idem. p. 8.63 COELHO NETO, Henrique Maximiano. Esphinge. 1908. 13-14.

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De acordo com o Dicionário de mitos literários64, o termo “duplo”, consagrado duran-

te o período do romantismo, apresenta os seguintes significados: “segundo eu”, “aquele que

caminha do lado”, “as pessoas que se veem a si mesmas”, “eu é um outro”. Nessa perspectiva,

o filósofo Clément Rosset, em seu livro O real e seu duplo, define o duplo relacionando-o à

ilusão, pois:

a técnica geral da ilusão é, na verdade, transformar uma coisa em duas, exatamentecomo a técnica do ilusionista, que conta com o mesmo efeito de deslocamento e deduplicação da parte do espectador: enquanto se ocupa com a coisa, dirige seu olharpara outro lugar, para lá onde nada acontece 65.

A noção do duplo implica nela mesma um paradoxo: ser ao mesmo tempo ela própria

e outra66. Além disso, o jogo de antagonismos é uma de suas principais marcas: belo/horrível,

bem/mal, racional/selvagem, equilibrado/louco são algumas de suas formas de representação.

Em O retrato de Dorian Gray há a dualidade belo/horrível: Dorian representa ao belo e o seu

duplo (o retrato) representa o contraste, o horrível. Por sua vez, em Esphinge, o antagonismo é

entre homem/mulher. James Marian vive o drama de não conhecer a sua própria sexualidade:

Se em ti predominar o feminino que transluz na belleza do teu rosto, o rosto de tuairman, serás um monstro; se vencer o espirito do homem, como faz acreditar o vigordos teus musculos, serás como um iman de lascívia; mas infeliz serás como aindanão houve outro no mundo se as duas almas que pairavam sobre a carne rediviva lo-graram insinuar-se nella67.

Otto Rank também observa em seus estudos sobre o tema do duplo esse jogo de ambi-

guidades. Segundo o autor, o duplo está relacionado com a morte, “a origem de todos os tabús

parece ser o temor de provocar o espírito mau da morte, em outras palavras, a própria morte.

A crença na alma originou-se do desejo de vencer este medo, e daí sobreveio a divisão da

Personalidade em duas partes – uma mortal e outra imortal”68. Em O retrato de Dorian Gray

essa divisão da alma aparece pode ser entendida em dois momentos. Num primeiro instante,

Dorian representaria a alma imortal, pois ele nunca envelhecera enquanto o retrato seria o seu

lado mortal, já que era ele quem sofria os “pecados” do tempo; Por sua vez, um segundo mo-

64 BRAVO, Nicole Fernandez. Duplo. In: BRUNEL, Pierre (Org.). Dicionário de mitos literários. 2005. p. 261.65 ROSSET, Clément. O real e seu duplo: ensaio sobre a ilusão. 1988. p. 18.66 Idem. p. 19.67 COELHO NETO, Henrique Maximiano. Esphinge. 1908. p. 208.68 RANK, Otto. O duplo. 1939. p. 100.

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mento seria o desfecho da narrativa, onde os papéis se invertem: o retrato torna-se a alma i-

mortal e Dorian volta a ser mortal.

Nessa perspectiva, Sigmund Freud acrescenta outros aspectos referentes à revelação

do duplo:

Todos esses temas dizem respeito ao fenômeno do ‘duplo’, que aparece em todas asformas e em todos os graus de desenvolvimento. Assim, temos personagens que de-vem ser considerados idênticos porque parecem semelhantes, iguais. Essa relação éacentuada por processos mentais que saltam de um para outro desses personagens -pelo que chamaríamos telepatia -, de modo que um possui conhecimento, sentimentoe experiência em comum com o outro. Ou é marcada pelo fato de que o sujeito iden-tifica-se com outra pessoa, de tal forma que fica em dúvida sobre quem é o seu eu(self), ou substitui o seu próprio eu (self) por um estranho. Em outras palavras, háuma duplicação, divisão e intercâmbio do eu (self). E, finalmente, há o retorno cons-tante da mesma coisa - a repetição dos mesmos aspectos, ou características, ou vicis-situdes, dos mesmos crimes, ou até dos mesmos nomes, através das diversas gera-ções que se sucedem69.

Assim, a manifestação do duplo apresenta-se em Freud estruturada em três níveis: a

duplicação, a divisão e a troca. Tal fenômeno está relacionado à fragmentação e à identidade

do sujeito, ou melhor, à busca dessa identidade. É o que podemos perceber a partir dos tre-

chos analisados. Ao ver a si mesmo através do duplo, Dorian Gray inicia incessantemente a

busca de sua identidade, saber quem ele é, o que se revelará no decorrer da narrativa, na me-

dida em que o retrato ganhar vida e registrar de forma horripilante todas as suas maldades. Já,

James Marian carrega desde o nascimento o seu duplo. Ao ter um corpo de homem com cabe-

ça de mulher, o personagem não tem uma definição própria, é uma esfinge, como diz o pró-

prio nome da obra de Coelho Neto. Assim, James anda sempre por diferentes lugares tentando

se conhecer a si mesmo e ao mesmo tempo fugindo dos que o cercam, com medo de revelar a

sua verdadeira identidade.

Referências

BRAVO, Nicole Fernandez. Duplo. In: BRUNEL, Pierre (Org.). Dicionário de mitos literá-rios. 4. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2005. p. 261-288.

COELHO NETO, Henrique Maximiano. Esphinge. 1. ed. Porto: Chardron, 1908. 282 p.

FREUD, Sigmund. O estranho (1919). In: ____. Obras psicológicas de Sigmund Freud. Riode Janeiro: Imago, 1996. p. 233-269. (Edição Standard Brasileira, vol. 17).

RANK, Otto. O duplo. Trad. Mary B. Lee. 2. ed. Rio de Janeiro: Alba, 1939. 152 p.

69 FREUD, Sigmund. O estranho (1919). In: ____. Obras psicológicas de Sigmund Freud. 1996. p. 252. (EdiçãoStandard Brasileira, vol. 17).

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ROSSET, Clément. O real e seu duplo: ensaio sobre a ilusão. Trad. José Thomaz Brum. PortoAlegre: L&PM, 1988. 88 p.

TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fantástica. Trad. Maria Clara Correa Castello.4. ed. São Paulo: Perspectiva, 2010. 192 p.

VAX, Louis. A arte e a literatura fantásticas. Trad. João Costa. Lisboa: Arcádia, 1972. 187 p.

WILDE, Oscar. O retrato de Dorian Gray. Trad. Oscar Mendes. São Paulo: Abril Cultural,1972. 270 p. (Os Imortais da Literatura Universal).

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QUEM FOI OLGA BENARIO? A CONSTRUÇÃO DA PERSONAGEM POR FER-NANDO MORAIS NA OBRA OLGA

Giovana Oliveira Mendes70

Resumo: O presente trabalho tem a finalidade de realizar uma análise de personagem da obraOlga, a qual expõe fatos ocorridos em um momento histórico de repercussão mundial: o na-zismo de Hitler na Alemanha e a Ditadura de Vargas no Brasil (1923 a 1945), e as terríveisconsequências físicas, morais e psicológicas que teve para milhares de pessoas, mas, princi-palmente, para judeus e comunistas. A biografia de Olga Benário, escrita por Fernando Mo-rais, pode servir como um “retrato” do que foi esse período, inclusive porque a protagonistadesta história, além de judia, era comunista e revolucionária, ou seja, possuía os atributosmais rechaçados pelos governos autoritários da época. E, ao registrar esse período histórico, oautor tem a preocupação de construir o retrato de Olga da maneira mais fiel possível, já que setrata de uma biografia histórica, na qual os fatos devem ser verídicos. No entanto, ao conhe-cermos a extraordinária personalidade da protagonista, a ousadia que a leva a atos heroicos eseu profundo sentimento de solidariedade, percebemos, como leitores, que a história real tam-bém poderia ser lida como ficção.

Palavras-chave: Olga Benário. Nazismo. Ditadura. Biografia histórica.

1. Introdução.

O escritor, jornalista e pesquisador Fernando Morais iniciou sua investigação sobre

Olga Benario em 1982 e, logo de início percebeu que não seria fácil, já que no Brasil havia

pouquíssimas informações a respeito de uma das maiores personalidades femininas da Histó-

ria. Vista apenas como “a mulher de Luís Carlos Prestes” na historiografia oficial do movi-

mento operário brasileiro e “ a judia comunista que foi entregue a Hitler no governo de Getú-

lio Vargas”, era como se a essa grande heroína fosse negado o verdadeiro reconhecimento

pelo que significou em uma época de repressão e barbárie, em que a liberdade de expressão

não existia, ou seja, qualquer cidadão que fosse comunista, social-democrata, ou que se opu-

sesse à ditadura de Vargas, sofreria as conseqüências, as mais drásticas possíveis, desde a

prisão, tortura e, em muitos casos, a morte ou extradição (no caso dos estrangeiros).

Olga Benario, mais conhecida no Brasil como Maria Prestes, participou ativamente,

junto de seu companheiro, Luís Carlos Prestes, de um dos maiores movimentos revolucioná-

rios comunistas: A chamada Intentona Comunista, em 27 de novembro de 1935. Além disso,

foi militante comunista em Berlim e membro do quinto congresso da juventude comunista

internacional, o mais alto grau na hierarquia de uma organização comunista.

70 Mestranda em Estudos Literários da Universidade Federal de Santa Maria/RS

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Em nome de seu ideal, Olga sacrificou a própria vida. Entregue a Hitler por Filinto

Müller, oficial do governo de Vargas, passou os piores momentos de sua vida em campos de

concentração nazistas da Alemanha.

Olga Benario Prestes morreu em uma câmara de gás em Bernburg, em fevereiro de

1942.

2. Reflexões iniciais sobre fato histórico e recriação.

Esta obra, além de colaborar no sentido de contar fatos importantes que ocorreram em

determinado período e que foram responsáveis por uma transformação social e ideológica,

representa o pensamento de uma geração, a qual compartilhava ideias socialistas, porém, mais

que isso, compartilhava um sentimento comum, tão escasso hoje em dia: o sentimento de so-

lidariedade. Em vários trechos de Olga, este sentimento está explícito, principalmente nos

momentos em que Olga está presa. Nesses espaços inóspitos, a solidariedade humana se so-

bressai. A personagem Olga, funcionaria aqui como a propulsora desse sentimento, pois, este-

ja onde estiver, coloca a causa social acima de qualquer coisa.

Em um primeiro momento, poderemos classificar a obra em questão como Biografia,

pois narra fatos verídicos sobre a vida de uma personalidade, neste caso, uma personalidade

histórica. E também é importante termos em mente que uma biografia, como se refere VILAS

BOAS (2002, p. 11) é “o biografado segundo o biógrafo”, ou seja, é um trabalho autoral.

Em um segundo momento, temos a possibilidade de ler a mesma obra como um Ro-

mance biográfico, pela riqueza da trama que envolve os personagens e a expectativa que cria

no leitor diante de cada acontecimento, mesmo que já se conheça a história sobre a vida de

Olga Benario.

Sabemos de antemão que textos biográficos tratam de acontecimentos reais, devida-

mente comprovados pelo autor, porém, só o fato de terem sido selecionados determinados

episódios já se constitui em um recorte da realidade, sendo, por isso, uma realidade parcial.

BARTHES (s/d, p.128) esclarece essa questão do discurso histórico afirmando que “o

historiador é aquele que recolhe, não tanto fatos, mas antes, significantes, e os relata, isto é, os

organiza com o fim de estabelecer um sentido positivo e de preencher o vazio da pura série.”

E acrescenta que “o discurso histórico é essencialmente elaboração ideológica, ou, pa-

ra sermos mais precisos, imaginária.”

O fato, na verdade, já existe por si só. A tarefa do historiador é selecionar e organizar

as “peças do quebra-cabeça” e a partir disso – como escritor – tem o papel de elaborar o enre-

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do, recriando aquilo que acredita ser a versão real dos episódios. Porém, acredita-se que neste

processo de recriação haja uma interferência (necessária) da subjetividade do autor, o qual

narrará os acontecimentos sempre a partir de sua perspectiva, de seu olhar e, inconsciente-

mente ou não, irá defender uma determinada ideia.

Um aspecto interessante de análise são as cartas que estão incluídas na narrativa. São

documentos verdadeiros, que “quebram” a ilusão que se possa ter de que se está lendo um

romance. E nessas cartas, Olga se mostra como uma mulher bastante sensível, até mesmo poé-

tica. Percebe-se que esses são os únicos momentos em que a protagonista tem uma “voz” den-

tro da narrativa, pois todos os fatos são narrados em terceira pessoa. Em certos trechos, em

que a oralidade se apresenta, supõe-se que tais falas foram atribuídas a Olga, adaptando-as às

situações narradas. Além das cartas, há imagens e documentos anexados, os quais contribuem

para a veracidade dos fatos.

Conscientes dos dois conceitos anteriormente abordados, podemos supor que uma bi-

ografia, como define CALDEIRA (apud BENCHIMOL, 1995, p. 96) poderia ser classificada

como “um híbrido (...), que exige tanto fontes documentais como interpretação e ficção.”

3. O retrato de Olga.

O autor desta obra, como podemos ver em algumas passagens, constrói o retrato da

protagonista conferindo-lhe atributos de uma heroína acima de tudo; uma mulher à frente de

sua época, empenhada em defender uma causa nobre, buscando desde a adolescência, uma

solução para que o povo trabalhador pudesse viver com mais dignidade, paz e justiça social.

Um exemplo disso, encontramos na página 16: “(Olga) chegava a dizer que havia se trans-

formado numa comunista não pela leitura da teoria marxista, mas folheando os processos em

que o pai defendia os trabalhadores de Munique. ‘Ali vi de perto a miséria e a injustiça, que

só conhecia superficialmente, nos livros.’” (MORAIS, 1985, p. 16). Em seguida, em outra

passagem: “A observação da clientela que freqüentava a elegante residência da Karlplatz, no

centro da cidade, levava a jovem a interessar-se cada vez mais pela sorte daquela gente.”

(MORAIS, 1985, p. 17).

Os meios podem ter sido, de certa forma, radicais, mas sua luta constante por um

mundo melhor serviu de exemplo para as gerações seguintes. A protagonista Olga ensinou

que diante das adversidades é preciso ousar, às vezes, pois a História é feita pelos “grandes

homens”, segundo o filósofo Hegel.

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De acordo com esse autor, “eram eles, (os grandes homens) que sabiam melhor e era

deles que os outros aprendiam e com quem concordavam, ou, pelo menos, a quem obedeciam.

”E continua:“Entretanto, como indivíduos claramente distintos de seu objetivo essencial, não e-

ram o que chamamos normalmente felizes, nem pretendiam sê-lo. Eles desejavamrealizar o seu objetivo e realizavam-no através de seu trabalho árduo. Conseguiamencontrar a satisfação ao ocasionar a realização desse objetivo, o objetivo universal.Com objetivo tão grandioso, tinham a coragem para desafiar todas as opiniões doshomens” (HEGEL, 2001, p.80)

Na página 206 da narrativa, há um exemplo que ilustra bem essa consciência própria

dos “grandes homens” (neste caso, de “uma grande mulher”). É um pequeno trecho de uma

carta escrita por Olga a seu companheiro Luís Carlos Prestes, pouco tempo depois de ter sido

separada de sua filha, Anita. Ela assim se expressa: “(...) Ajuda-me bastante o fato de que sou

capaz de distinguir entre a insignificância das questões pessoais e os acontecimentos históri-

cos do nosso tempo.” (p.206).

A partir da narrativa, nós, como leitores, já temos uma imagem de quem foi Olga Be-

nario, ou, pelo menos, conhecemos alguns traços de sua personalidade: Olga é uma mulher

idealista, ousada, altruísta. Características típicas de uma verdadeira heroína dos romances

históricos.

Outra característica marcante da protagonista é a força de vontade, levando-a a não de-

sistir de seus objetivos, mesmo diante das maiores adversidades. A passagem em que ela está

no campo de concentração de Ravensbrück demonstra muito bem esse traço. Além de con-

vencer as outras prisioneiras a fazer ginástica todas as manhãs, na esperança de que sairão

daquele lugar um dia, ela desenha um mapa para que todas fiquem a par dos territórios que

estão sendo tomados por Hitler, e esse mapa é feito com todos os detalhes e atualizado perio-

dicamente.

Todos esses atributos da personagem Olga, são confirmados em cada episódio, pois é

uma personagem plana, que não sofre alterações significativas em toda a narrativa. Essa ima-

gem que o autor constrói da personagem, deixa no leitor a sensação de que a pessoa Olga era

realmente essa mulher íntegra e totalmente fiel a seus princípios. É uma personagem/pessoa

que não se corrompe ao sistema vigente, se comparada a outros companheiros seus, também

militantes comunistas, que, ao serem interrogados pelos policiais, acabam por entregar os pla-

nos comunistas por medo de perderem a vida ou de serem torturados.

Diferente de muitas mulheres de seu tempo, Olga Benario era contra qualquer tipo de

submissão da mulher em relação ao homem e, por isso, o casamento oficial era inconcebível,

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já que acreditava que ao casar-se nesses termos, a mulher se tornaria uma propriedade do ho-

mem. “Associava a ideia do casamento ao que considerava a pior deformação burguesa: a

dependência econômica da mulher, o sexo obrigatório, a convivência forçada.” (MORAIS,

1985, p.36)

Apesar disso, Olga viveu um grande amor, o qual foi retratado nessa história. Olga e

Prestes possuíam muitas afinidades, principalmente o fato de serem defensores da mesma

causa. Viveram juntos momentos cruciais, tanto no âmbito histórico (por exemplo, a revolta

de 1935 no Brasil), como na esfera pessoal (a prisão dos dois, a separação, que acabou sendo

definitiva após a extradição de Olga e o nascimento da filha, Anita, na prisão nazista).

Uma história de amor e intolerância, com um final trágico e injusto.

4. Considerações finais.

Independentemente de ler Olga como uma história real ou como ficção, não se pode

desprezar o autêntico valor histórico dessa obra, a qual, além de servir como denúncia das

barbáries cometidas pelos nazistas nos anos de 1933 a 1945 e da repressão ditatorial no Brasil

durante o governo de Vargas, instiga o leitor a pensar em questões humanas, acima de tudo, e

no relevante papel que desempenham na sociedade, os chamados “grandes homens”, os quais

colocam os bens universais acima dos bens particulares. Olga representa a versão feminina do

herói, deixando claro que o heroísmo, a garra e a persistência independem de questões de gê-

nero.

Também se torna relevante esta obra, porque expõe o compromisso político da prota-

gonista diante das causas sociais, fato que atualmente está um pouco esquecido, além de res-

saltar a solidariedade e fazer uma denúncia contra o desrespeito pelas demais culturas.

O individualismo do presente faz com que as relações humanas sejam deixadas de la-

do, pois as pessoas, em geral, buscam apenas os seus interesses, esquecendo dos demais, co-

mo se fossem auto-suficientes. Olga, de Fernando Morais, também deixa algumas reflexões a

respeito de questões bem atuais, como a da não-aceitação da cultura do outro, o racismo, o

preconceito e a intolerância religiosa e cultural. E, neste caso, a Literatura vai além da ima-

gem do real. Ela se torna a própria realidade, e, mais que isso, a denuncia.

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Referências

BARTHES, Roland. O discurso da história. In: - O Rumor da língua. Lisboa: Edições 70, s.d.

BENCHIMOL, Jaime. (org.). Narrativa documental e literária nas biografias. Manguinhos:história, ciências, saúde. Rio de Janeiro, vol. 2, jul-out, 1995, p. 93-113.

HEGEL, G.W. A razão na história. São Paulo: Centauro, 2001.

MORAIS, Fernando. Olga. São Paulo: Cia das Letras, 17ª ed., 1994.

VILLAS BOAS, Sérgio. Biografias & biógrafos: jornalismo sobre personagens. São Paulo:Summus, 2002.

WHITE, Hayden. As ficções da representação factual. In: Trópicos do discurso. Ensaios so-bre a crítica da cultura. São Paulo: EDUSP, 2001.

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A AMÉRICA DOS AMERICANOS: A MIMESE AFRO-AMERICANA EM JAZZ, DETONI MORRISON

Ívens Matozo Silva71

Rosani Ketzer Umbach72

1. Introdução.

Apontado como um dos maiores problemas referentes às questões dos direitos huma-

nos, a discriminação racial tem sido um problema que freqüentemente tem passado desperce-

bido ou conveniente ignorado por grande parte da sociedade.

Tal prática discriminatória chegou a contagiar a ciência, que se utilizando das chama-

das ideologias racistas, como o darwinismo social e a eugenia, tentou assegurar a superiorida-

de do homem europeu (branco) diante do negro. Segundo Fonseca (2011) tais ideologias con-

tribuíram para espalhar o racismo pela Europa e pela America, unindo este modo primitivo de

pensar com uma justificativa dita “científica”.

Não se restringindo apenas à ciência, o racismo também teve força de deixar suas

marcas na História de alguns países. Nesta acepção, podemos inferir que nem mesmo o país

visto como o mais desenvolvido da América, os Estados Unidos, deixou de sofrer com os

problemas relacionados ao racismo, resultado da herança de um conflito interno durante a

segunda metade do século XIX, a chamada Guerra de Secessão (1861-1865).

Com o fim deste conflito, no qual houve a abolição da escravidão, para muitos negros

viria a ser o fim de séculos de submissão perante o homem branco, assim como uma expecta-

tiva de melhores condições de vida. No entanto, os estados do Sul, marcados por uma cultura

altamente racista, não aceitando a inclusão dos ex-escravos como cidadãos, voltaram-se con-

tra os negros, agora, perante um novo regime marcado pela submissão e pelo terror.

Com o passar dos anos, foram aprovadas diversas leis que asseguravam o cumprimen-

to da chamada política de segregação racial, as chamadas Leis Jim Crow. Além disso, surgi-

ram grupos racistas, como a Ku Klux Klan, com o objetivo de impedir a integração dos ne-

gros na sociedade, além de tornarem a prática de linchamentos e enforcamentos de pessoas de

cor comuns em território americano.

Neste contexto, o racismo tem sido um tema que vem gerando muitas discussões e o-

piniões, tanto por ser um assunto muitas vezes deixado de lado pela maioria da nossa socieda-

de, quanto pela falsa ideologia que vivemos em uma “democracia racial”. Entretanto, o tema

71 Graduando em Letras pela UFSM72 Orientadora

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possui uma carência em sua bibliografia (ROSEMBERG, 2003, p. 27) o que vem a dificultar

o seu estudo e o entendimento da história afro-americana (SILVA, 2011, p.14).

Utilizando a Literatura como uma forma de representação da realidade, a escritora nor-

te-americana Toni Morrison destaca-se por possuir uma ficção elaborada, relatando em suas

obras o quão complexo é ser identificado como negro em uma sociedade tão preconceituosa,

além de expor as marcas de um passado que insiste em permanecer no presente.

Assim, este trabalho tem por objetivos analisar a condição dos negros nos Estados U-

nidos na primeira metade do século XX através da obra Jazz (1992) de Toni Morrison, como

também identificar e discutir os problemas raciais abordados.

2. Metodologia

Para a realização da presente pesquisa, foram selecionados fragmentos da obra que tive-

ram como critérios de seleção o modo de vida e os preconceitos enfrentados pelo negro ame-

ricano. Para isso, foram realizadas, primeiramente, leituras de textos fundamentais para a

compreensão dos assuntos abordados no romance. Para a temática do reconhecimento racial

foi utilizado o livro Negritude e Literatura na América Latina, de Zilá Bernd, já para a ques-

tão relacionada à superioridade de raças, o livro Two Nations: Black and White, separated,

hostile, unequal, de Andrew Hacker. Além destes, leituras adicionais em artigos acadêmicos e

em websites foram necessárias para a abordagem dos temas referentes à great migration,

plantation e as Leis Jim Crow. Por fim, buscou-se identificar o papel que a Literatura viria a

ter enquanto uma forma de crítica social.

3. Resultados e Discussões

O período denominado de Great Migration, que de acordo com o Scomburg Center for

Research in Black Culture cerca de “1,5 milhões de pessoas deslocaram-se para o Norte

quando a indústria bélica oferecia trabalho para os Afro-americanos” 73 foi constatada na fic-

ção.

A seguinte passagem exemplifica o período em destaque:

Violet e Joe tinham deixado Tyrell, uma parada rodoviária em Vesper Country, em1906, e embarcaram no vagão [...] a onda de negros que fugiam da penúria e da vio-lência atingiu o auge nos anos 1870, nos anos 80 e nos 90, mas era um fluxo uni-forme em 1906 (MORRISON, 2009, p. 43).

73 Tradução do Autor

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Uma característica presente nas obras de Morrison refere-se ao fato de que suas pro-

duções literárias estão ligadas a um contexto-histórico e que através dele, possibilita ao leitor

compreender e ao mesmo modo refletir sobre as ações tomadas pelos personagens.

Assim, Morrison apresenta dois olhares sobre a migração, o de quem é prejudicado:

“brancos aterrorizados com a onda de negros do Sul invadindo as cidades, em busca de traba-

lho e de lugar para morar” (MORRISON, 2009, p.64), e os que veem nela uma chance para

mudar a sua realidade: “como os outros, eles eram gente do campo, quando chegaram, carre-

gando todos os seus pertences em uma mala, os dois perceberam de imediato que perfeita não

era a palavra. A cidade era mais que isso” (MORRISON, 2009, p.109).

Através dos trechos acima, podemos perceber o quanto os negros do sul foram vítimas

de uma intensa discriminação racial, a ponto de largarem o pouco que tinham e aventurarem-

se a própria sorte em um lugar desconhecido. Como Silva (2011) argumenta, a emigração

possuía como único objetivo a busca por para uma vida digna em outro lugar.

O período do plantation nas regiões sulinas americanas também foi descrito pela escri-

tora nos seguintes trechos: “ela trabalhava no campo como todo mundo, e ficara até depois do

tempo da colheita” (MORRISON, 2009, p. 40), “Palestine estava branca com o algodão mais

limpo que já tinham visto [...] todo mundo que tinha dedos num raio de trinta quilômetros

apareceu e foi contratado na hora (MORRISON, 2009, p.105).

Embora o trabalho no campo fosse uma fonte de renda, havia ali uma certa desigual-

dade quanto aos salários dos empregados: “nove dólares o fardo, diziam alguns, se você plan-

tava seu próprio; onze dólares para quem tinha um amigo branco” (MORRISON, 2009,

p.105).

Ao abordar sobre as chamadas Leis Jim Crow, o que poderia ser considerado um A-

partheid ao modo americano, segundo Silva (2011), tais leis consistiam em um conjunto de

regras segregacionistas surgidas entre 1876 e que perduraram até 1965. Como exemplos, tais

leis criavam instalações separadas para brancos e negros, além de restringir a liberdade destes

aos direitos civis.

O cumprimento destas leis foi verificado nas seguintes passagens: “Eles mudaram a

gente cinco vezes para quatro vagões diferentes para cumprir a lei Jim Crow (MORRISON,

2009, p. 125). Um fato interessante a ser analisado é que mesmo nas escolas, brancos e negros

não podiam permanecer no mesmo local, o que vem a ser exemplificado em: “não havia esco-

las de ensino médio para moças de cor em seu distrito (MORRISON, 2009, p. 19).

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Quanto à problematização da superioridade do homem branco, este, vem a ser descri-

to várias vezes ao decorrer do romance. Esta ideia de superioridade racial, além de ser uma

herança da Guerra de Secessão, era sustentada pela ciência pela teoria do Darwinismo Social.

Tal teoria, de acordo com Fonseca (2011) tomava como verdadeira a suposição de que entre

os humanos haveria seres superiores e inferiores,

No romance, podemos notar esta ideologia no seguinte fragmento:

Um desses brancos tinha bom coração e não deixou os outros acabarem comigo alimesmo [...] mandaram convites para brancos irem ver um homem de cor ser quei-mado vivo. Gistan disse que milhares de brancos apareceram (MORRISON, 2009,p. 127).

Quanto a esta questão, Hacker (1995, apud LOPES, 2009, p.26) afirma que a noção de

que ser branco pressupõe uma origem européia, já a noção de negritude, uma origem africana

e escrava. Tais descrições vão ao encontro do que ele descreve no seu conceito de civilização

superior, que se baseia em uma origem superior, a origem caucasiana sendo superior as de-

mais raças.

Com esse modo de analisar as diferenças étnico-raciais da população americana, im-

põe-se ao negro um duplo estigma de rebaixamento, a cor da sua pele e a impossibilidade de

ser livre, tanto do preconceito quanto do seu passado.

Verificou-se também, como o romance aborda as reações contra o preconceito, em es-

pecial, a das mulheres afro-americanas nos seguintes passagens: “por todo o país, mulheres

negras andavam armadas” (MORRISON, 2009, p. 81), assim como em:

Uma negra’ [...] ‘Ela me cortou até os dentes [...] mulheres negras andavam arma-das; mulheres negras eram perigosas, e quanto menos dinheiro tinham, mais mortal aarma que escolhiam (MORRISON, p. 83).

Ao analisarmos a questão do reconhecimento racial, de acordo com Bernd (1987) que

utiliza o conceito da negritude como uma forma de consciência de ser negro e recusa que o

mesmo tinha vergonha de si – próprio, é descrita nas seguintes passagens do livro: “Numa

emergência ninguém quer estar no Hospital Harlem, mas se um cirurgião negro estiver de

plantão, o orgulho diminui a dor” (MORRISON, 2009, p.21).

Utilizando o que Tom (1946) argumenta em seu livro, que a História e a Literatura es-

tão intimamente interligadas, podemos inferir que tal afirmação está bem demonstrada nesta

obra. Pode-se dizer que a escritora utiliza da Literatura para informar ao seu leitor o quanto os

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afro-americanos lutaram contra a opressão sofrida pelos homens brancos, provando tais fatos

com uma provável tentativa de fusão entre a ficção com a realidade.

Tal obra vem a buscar além da conscientização da população, dar voz as minorias e

revelar o quanto uma falsa construção ideológica oprime e colocam à margem todos aqueles

que não se enquadram ao modelo dominante.

4. Conclusão

Com a realização deste trabalho, é possível afirmar que a obra Jazz (1992) não se dis-

tancia quanto ao seu conteúdo central de outras produções literárias de Toni Morrison. Produ-

ções estas, que se destacam por possuírem por principais objetivos, o de revelar ao leitor as

dificuldades de ser negro em uma sociedade que não respeita o direito à diferença, como tam-

bém a retomada das injustiças cometidas contra eles em um passado não muito distante.

Durante a análise dos dados, foi possível identificar os momentos dicotômicos da eco-

nomia Americana, o período da emigração dos negros do Sul em direção ao Norte e as leis

segregacionistas.

Podemos concluir que ao produzir tais obras com o intuito de fazer com que seu leitor

reflita sobre o seu passado ou até mesmo suas atitudes, Morrison utiliza a Literatura como

uma provável forma de descrever a história negra, como também nos apresentar um olhar

crítico sobre a sociedade norte-americana.

Através desta pesquisa, que se caracterizou por um resgate de informações referentes

aos afros descendentes, podemos concluir que a América do Norte ainda está distante de ser

um país exemplo e que seus habitantes, na sua grande maioria, possuem grande dificuldade

em aceitar e conviver com as diferenças raciais.

Referências

BERND, Zilá. Negritude e Literatura na América Latina. Porto Alegre: Mercado Aberto,1987.

FONSECA, Fábio David. Ideologias Racistas: Darwinismo Social e Eugenia. Revista Raça &Classe, São Paulo, p. 48,51 fev.2011

LOPES, Mirna Leisi Coelho. À Margem em The Bluest Eye, de Toni Morrison: Negritude,Identidade e Crítica Social. 2009. 113f. Dissertação (Mestrado em Letras) – UniversidadeFederal de Santa Maria, Santa Maria, 2009.

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MORRISON, Toni. Jazz. (tradução de José Rubens Siqueira). São Paulo: Companhia das Le-tras, 2009.

ROSEMBERG, Fúlvia; BAZILLI, C; SILVA, P.V.B. Racismo em livros didáticos brasileirose seu combate: uma revisão da literatura. In: Educação e Pesquisa – Revista da Faculdade deEducação da USP. 2003. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/ep/v29n1/a10v29n1.pdf>.Acessado em 09 Ago.2011.

SCOMBURG CENTER FOR RESEARCH IN BLACK CULTURE. The Great Migration.Digital Library Program - The New York Public Library. New York. Disponível em: <http://www.inmotionaame.org/migrations/index.cfm>. Acessado em: 15 Ago. 2011.

SILVA, L. H. O. Diásporas de Afrodescendentes: um estudo dentro e fora do Brasil. In: VEncontro Escravidão e Liberdade no Brasil Meridional. 2011. Porto Alegre. Disponível em: <http://www.labhstc.ufsc.br/vencontro/pdf/SILVA,%20Lucia%20Helena%20Oliveira.pdf>.Acessado em: 10 Ago. 2011.

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INTERDISCIPLINARIDADE, CRÍTICA AO AUTORITARISMO, REGIONALIDADEE ORALIDADE

João Luis Pereira Ourique74

1. Introdução

O grupo de pesquisa Ícaro tem por objetivo principal refletir sobre a Formação Cul-

tural a partir das experiências regionais e de sua relação com outras culturas e das aproxima-

ções/afastamentos existentes no pensar questões como identidade-identificação, igualdade e

diferença. As questões principais a serem desenvolvidas através de atividades de pesquisa e

extensão podem ser percebidas por meio das iniciais das palavras que compõem o nome do

grupo: Interdisciplinaridade (perspectiva fundamental de trabalho em Literatura Comparada),

Crítica ao Autoritarismo (evidenciada pela abordagem da Teoria Crítica da Sociedade), Regi-

onalidade e Oralidade (conceitos relevantes para reflexão acerca do sentido expressivo da

Bildung). As repercussões dessas atividades poderão ser percebidas através da implantação de

projetos voltados para a necessidade crescente de pesquisa na área dos estudos literários, com

ênfase nas questões regionais. As atividades do grupo englobam a atuação de pesquisadores

de outras instituições de ensino que se identificam com as propostas discutidas, caracterizan-

do-se, assim, como um grupo interinstitucional. Inicialmente, o Grupo de Pesquisa Ícaro este-

ve credenciado junto a Universidade Federal de Mato Grosso do Sul – Campus de Três Lago-

as – UFMS/CPTL) no período de 2007 (ano de sua criação) até o ano de 2010 (quando foi

vinculado a Universidade Federal de Pelotas – UFPel).

Organizado em três linhas de pesquisa75, o Grupo de Pesquisa Ícaro também une es-

forços com outros grupos de pesquisa (GRPesq Literatura e Autoritarismo – UFSM - e GR-

74 Prof. Adjunto do Centro de Letras e Comunicação da Universidade Federal de Pelotas e líder do GrPesq CNPqÍCARO.75 Literatura e Crítica Social: Estudo da obra literária através de sua relação com outras obras, sistemas literáriose espaços geográfico-culturais. A base teórica dessa linha evidencia o aspecto da Teoria Crítica da Sociedade etambém sua relação com outras teorias preocupadas em discutir temas como preconceito e discriminação,relacionando a crítica literária com elementos que denotam aspectos vinculados aos direitos humanos ecidadania.Literatura e Estudos Regionais, Culturais e Interculturais: Partindo de uma discussão sobre o conceito de regio-nalidade (em complementação à noção de regionalismo literário), pretende-se evidenciar outras possibilidadesinterpretativas – abordando as mais variadas noções do que se entende por cultura – das possíveis contradiçõessobre temas relacionados com a identidade e com as condições sócio-históricas de produção de textos literários.Formação cultural e ensino de literatura: Esta linha de pesquisa se pauta na reflexão sobre condições de inter-pretação, dentro de perspectivas ligadas à Hermenêutica e à Filosofia da Educação, e em reflexões relacionadascom as condições de recepção de textos literários. Dessa forma, o conceito de formação (Bildung), tomado desdea conceituação de Hegel, e investigado em suas formulações no pensamento do século XX, torna-se base paraestas discussões.

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Pesq Formação Cultural, Hermenêutica e Educação - UFSM) visando qualificar os trabalhos

desenvolvidos e colaborar com a produção da pesquisa no âmbito dos Estudos Literários.

2. Fundamentação

A alegoria apresentada, construída por meio da palavra formada das iniciais do nome

do Grupo de Pesquisa e da imagem elaborada a partir do desenho de Leonardo da Vinci do

homem vitruviano76 dotando-o de asas, procura discutir questões relacionadas à formação

histórica e cultural com base nas manifestações literárias. Assim, a menção à personagem

mitológica de Ícaro ganha mais um componente: se o alerta dado por Dédalos a Ícaro quando

do seu vôo para fugir do labirinto do Minotauro pode ser interpretado como um ensinamento

sobre os limites humanos e da necessidade de reprimir seus desejos em prol da autoconserva-

ção, a presença do desenho de da Vinci – inserido em um contexto de resgate da cultura hele-

nística grega e de exaltação do potencial humano – procura alertar também para os limites da

ciência. A não observação desse alerta, de acordo com Adorno e Horkheimer77, pode também

se constituir em um mito, em um dogmatismo que descamba para uma racionalidade instru-

mental.

Essa articulação entre literatura, história, sociedade, cultura e ideologia é fundamen-

tada por meio de uma reflexão interdisciplinar. Salienta-se, dessa forma, que a Interdiscipli-

naridade é a principal proposta da literatura comparada na atualidade, visto que os estudos

comparatistas se constituem em “uma prática intelectual que, sem deixar de ter no literário o

seu objeto, confronta-o com outras formas de expressão cultural. É, portanto, um procedimen-

76 O homem vitruviano (ou homem de Vitrúvio) é um conceito apresentado na obra Os dez livros da Arquitetura,escrita pelo arquiteto romano Marco Vitrúvio Polião. Tal conceito é considerado um cânone das proporções docorpo humano, segundo um determinado raciocínio matemático e baseando-se, em parte, na divina proporção.Desta forma, o homem descrito por Vitrúvio apresenta-se como um modelo ideal para o ser humano, cujasproporções são perfeitas, segundo o ideal clássico de beleza. Originalmente, Vitrúvio apresentou o cânone tantode forma textual (descrevendo cada proporção e suas relações) quanto através de desenhos. Porém, à medida queos documentos originais perdiam-se e a obra passava a ser copiada durante a Idade Média, a descrição gráfica seperdeu. Desta forma, com a redescoberta dos textos clássicos durante o Renascimento, uma série de artistas,arquitetos e tratadistas dispuseram-se a interpretar os textos vitruvianos a fim de produzir novas representaçõesgráficas. Dentre elas, a mais famosa e (hoje) difundida é a de Leonardo da Vinci.77 Na Dialética do Esclarecimento (3. ed. Tradução: Guido Antonio de Almeida. Rio de Janeiro: Zahar, 1991),Adorno e Horkheimer discutem o conceito de esclarecimento e a sua aplicação por parte de uma visão científicaque se caracteriza como uma ilusão que mascara a própria realidade em nome de um ideal de dominação. “O queos homens querem aprender da natureza é como empregá-la para dominar completamente a ela e os homens.Nada mais importa. (...) O que importa não é aquela satisfação que, para os homens, se chama ‘verdade’, mas a‘operation’, o procedimento eficaz. (...) Nenhuma distinção deve haver entre o animal e o totêmico, os sonhos dovisionário e a Idéia absoluta. No trajeto para a ciência moderna, os homens renunciaram ao sentido e substituí-ram o conceito pela fórmula, a causa pela regra e pela probabilidade.” (p. 20-21).

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to, uma maneira específica de interrogar os textos literários não como sistemas fechados em si

mesmos, mas em sua interação com outros textos, literários ou não”78.

Tal processo de interação também se sustenta nos pressupostos bakhtinianos de que

os pontos de vista criadores só são necessários e indispensáveis quando se relacionam com

outros, pois fora da sua participação na unidade da cultura, determinado ponto de vista criador

pode ser caracterizado como arbitrário, visto que todo “o ato cultural vive por essência sobre

fronteiras: nisso está sua seriedade e importância; abstraído da fronteira, ele perde terreno,

torna-se vazio, pretensioso, degenera e morre”79.

Essa perspectiva encontra sustentação no conceito de Alegoria proposto por Walter

Benjamin, na terceira parte da Origem do drama barroco alemão80, que visa a exatamente

romper com um conceito de símbolo que erroneamente aponta para a dissociabilidade entre

forma e conteúdo e “passa a funcionar como uma legitimação filosófica da impotência crítica,

que por falta de rigor dialético perde de vista o conteúdo, na análise formal, e a forma, na es-

tética do conteúdo.”81

Apresentando a apoteose barroca como dialética, o autor enfatiza que o conceito de

alegoria foi desenvolvido no classicismo em contrapartida ao conceito profano de símbolo,

pois o “pensamento alegórico do século XVIII era tão alheio à expressão alegórica original,

que as poucas tentativas isoladas de tratar teoricamente o tema são desprovidas de qualquer

valor para a investigação, e por isso mesmo são ilustrativas da profundidade do antagonis-

mo.”82

Tentando realizar uma abordagem esquemática para a relação entre o símbolo e a a-

legoria, Benjamin recorre à noção de tempo, na face da história que se apresenta como uma

caveira, o sentido da morte, do sofrimento, não havendo nenhuma liberdade simbólica de ex-

pressão, nada de humano, afirmando que é através disso que a história “exprime, não somente

a existência humana em geral, mas, de modo altamente expressivo, e sob a forma de um e-

nigma, a história biográfica de um indivíduo.”83 Reside nisso, então, o fundamento básico da

visão alegórica: a significação e a sua relação com a sujeição à morte, destacando que a natu-

78 CARVALHAL, Tânia Franco. O Próprio e o Alheio. São Leopoldo: Unisinos, 2003. p. 48.79 BAKHTIN, Mikhail. Questões de Literatura e Estética. 3. ed. São Paulo: UNESP, 1993. p. 29-31.80 BENJAMIN Walter, Origem do drama barroco alemão. Tradução, apresentação e notas: Sergio Paulo Roua-net.São Paulo: Brasiliense, 1984.81 Ibidem. p. 182.82 Ibidem. p. 183.83 Ibidem. p. 188.

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reza sempre esteve sujeita à morte e, portanto, sempre foi alegórica, pois a “significação e a

morte amadureceram juntas no curso do desenvolvimento histórico”84.

Uma abordagem filosófica sobre a mortificação das obras não como “um despertar

da consciência nas que estão vivas, mas uma instalação do saber nas que estão mortas”, abre

caminho para a afirmação de que a “beleza que dura é um objeto do saber”85. Fazendo uma

relação entre a filosofia e a ciência, Benjamin diz que a “filosofia não deve duvidar do seu

poder de despertar a beleza adormecida na obra. (...) O objeto da crítica filosófica é mostrar

que a função da forma artística é converter em conteúdos de verdade, de caráter filosófico, os

conteúdos factuais, de caráter histórico, que estão na raiz de todas as obras significativas.”86

Sendo a alegoria o único divertimento a que o melancólico se permite, a fragmenta-

ção é um elemento presente nessa leitura, nessa abordagem invasiva e sádica sobre o objeto,

tendo em vista que é através da estrutura alegórica que os fragmentos são percebidos. E essa

estrutura alegórica se alinha com a percepção de que a história é, antes de tudo, uma constru-

ção, uma elaboração do passado através de uma reminiscência, da constatação da temporali-

dade, da finitude, da morte dando sentido à vida, visto que o “dom de despertar no passado as

centelhas da esperança é privilégio exclusivo do historiador convencido de que também os

mortos não estarão em segurança se o inimigo vencer. E esse inimigo não tem cessado de

vencer.”87

A necessidade de perceber o inimigo e combatê-lo não com suas armas, mas sim,

derrotá-lo ao negar o seu emprego é o desafio da Crítica ao Autoritarismo presente nesta pro-

posta. Dessa forma, a censura, segundo Candido, surge no campo da linguagem como um

elemento autoritário que sustenta outras formas de opressão:

Há certas expressões significativas: “O fato é homem e a palavra é mulher; um ho-mem vale vinte mulheres”; ou: “Contra fato não há argumento”. Elas querem dizerque, diante da evidência do real, não cabem as argumentações abstratas em contrá-rio, o que em princípio parece estar certo. Mas, na verdade, significam também coi-sas como “o que vale é a força” ou “idéia não resolve”. Assim, pregam o reconheci-mento do fato consumado, a capitulação diante do que se impôs no terreno “práti-co”, negando o direito de discutir, de argumentar para mudar a realidade.88

84 Ibidem. p. 188.85 Ibidem. p. 204.86 Ibidem. p. 204.87 BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito da história. In: ____. Magia e técnica, arte e política. 2. ed. Tradução:Paulo Sérgio Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1986. p. 224-225.88 CANDIDO, Antonio. Censura-violência. In: ____. Recortes. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. p .205-206.

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A preocupação de Theodor Adorno de que a barbárie dos campos de concentração

nazistas esteja calcada no próprio princípio da civilização, ao contrário de apontar soluções

imediatas, traz algo de desesperador. A plenitude de um processo educacional deveria cami-

nhar no sentido de dissuadir os homens de atacarem uns aos outros, de buscarem alternativas

para a coexistência, rejeitando as “tendências desagregadoras”89 presentes em uma ilusão de

consciência coletiva e alienante. Assim, “omitir-se da confrontação com o horror (...) é mais

uma fonte de risco de uma repetição do já houve”90.

Da censura ao campo de concentração não existe uma distância tão grande assim,

visto que o processo de apagamento do sujeito na coletividade é sustentado pelas impossibili-

dades de expressão humanizadoras em uma realidade autoritária em sua estrutura. Os aspectos

ideológicos são sustentados pelo signo lingüístico, mas, ainda conforme Bakhtin, tal entendi-

mento não deve ser tratado sob uma perspectiva reducionista visto que cada signo ideológico

“é não apenas um reflexo, uma sombra da realidade, mas também um fragmento material des-

sa realidade”91.

Adorno preocupa-se, então, com os “jargões” ou “clichês” que permeiam a lingua-

gem apenas para comprometerem suas bases em prol de conceitos precários/comuns que são

apropriados por pessoas que conhecem superficialmente determinado assunto ou ramo do

conhecimento. Tal elaboração visa apenas proteger aquele que os utiliza de emitir opiniões e

pareceres sobre o que não conhece, através de relações simples e objetivas, exercendo uma

força coercitiva na sociedade. O jargão da autenticidade procura legitimar o absurdo da opres-

são através de conceitos como missão, constituindo uma fala apelativa sem interpelação ra-

cional. “En el mundo universalmente mediado, toda experiencia primaria está culturalmente

preformada”92, essa afirmação de Adorno expõe toda uma preocupação com a impossibilidade

de debater conceitos essenciais como liberdade, autonomia, democracia, entre outros.

O cuidado para que a literatura, como obra de arte, não recorra a esses clichês totali-

zantes, visto que “Arte não significa aguçar alternativa, e sim, através simplesmente de sua

configuração, resistir à roda viva que sempre de novo está a mirar o peito dos homens”93, é o

desafio proposto a partir das reflexões produzidas pelas pesquisas associadas a esse projeto.

Dessa forma, ao pensar Regionalidade ao invés de regionalismo, há o interesse em

articular uma reflexão não restrita a uma busca identitária que, segundo Zilá Bernd, pode se

89 ADORNO, Theodor, Educação após Auschwitz. In: ____. Sociologia. São Paulo: Ática, 1986. p .35.90 Ibidem. p . 37.91 BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. 9. ed. São Paulo: Hucitec, 1999. p. 33.92 ADORNO, Theodor. La ideología como lenguaje. Versión castellana: Justo Pérez Corral. 2. ed. Madrid: Tau-rus, 1982. p. 77.93 ADORNO, Theodor. Notas de literatura. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1991. p. 55

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caracterizar em etnocentrismo, visto se tratar “de um conceito traiçoeiro na medida em que ele

pode transformar-se em um conceito de circunscrição da realidade a um único quadro de refe-

rências”94. Essas considerações não procuram romper com o conceito de identidade ou com o

reconhecimento do valor do regionalismo como responsável por “resguardar um importante

conjunto de valores literários e de tradições locais”95. Todavia, isso não pode ser empecilho

para a reflexão crítica, e questões como identidade regional, valores culturais e tradição ne-

cessitam serem tratadas à luz de suas contradições. Segundo Rama, o confronto da tradição

com o novo, do regional com o universal:

gera em primeiro lugar uma retirada defensiva, um mergulho protetor no seio da cul-tura regional e materna, com um premente apelo a suas fontes nutritivas, mas tam-bém com o desejo de reexaminar de forma crítica suas condições peculiares, as for-ças de que dispõe, a viabilidade dos valores aceitos sem análise, a autenticidade deseus recursos expressivos.96

Analisar esse recuo, observar como essa retirada de fato questiona seus valores é o

desafio da leitura de textos que dialogam a partir do referencial de uma identidade em trans-

formação, mas que procura uma estabilidade consoladora do espírito. O paradoxo que pode

emergir é o da não percepção das inviabilidades que estão presentes em qualquer manifesta-

ção literária, estruturando-se, assim, em uma retirada estratégica com o fim único de fortale-

cer as ideologias. O clima de tensão deve ser mantido para que a reflexão aconteça em nome

de ideologias mais humanitárias, evitando, assim, as visões totalitárias e os modelos literários

que atuam – não raras vezes - como elementos reducionistas das diversas culturas que per-

meiam a sociedade.

Nas Passagens, Benjamin aponta para uma “pequena proposta metodológica para a

dialética da história cultural” na qual estabelece uma relação muito próxima da dialética nega-

tiva97 de Adorno de que é necessário ver de uma forma dialeticamente negativa para que as

contradições surjam. Segundo Adorno, as contradições não existem simplesmente na socieda-

de, elas surgem do processo de observação, dos enfrentamentos com valores não questionados

até o momento.

94 BERND, Zilá. Identidade. In: ____. Literatura e identidade nacional. Porto Alegre: Ed. UFRGS, 1992. p. 16.95 RAMA, Ángel. Os processos de transculturação na narrativa latino-americana. In: VASCONCELOS, SandraGuardini T.; AGUIAR, Flávio Wolf de. ÁNGEL RAMA: Literatura e Cultura na América Latina. São Paulo:Edusp, 2001. p. 210-211.96 Ibidem. p. 214.97 ADORNO, Theodor. Negative Dialectics. New York: Continuum, 1983.

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É muito fácil estabelecer dicotomias para cada época, em seus diferentes “domí-nios”, segundo determinados pontos de vista: de um modo a ter, de um lado, a parte“fértil”, “auspiciosa”, “viva” e “positiva”, e de outro, a parte inútil, atrasada e mortade cada época. Com efeito, os contornos da parte positiva só se realçarão nitidamen-te se ela for devidamente delimitada em relação à parte negativa. Toda negação, porsua vez, tem o seu valor apenas como pano de fundo para os contornos do vivo, dopositivo. Por isso, é de importância decisiva aplicar novamente uma divisão a estaparte negativa, inicialmente excluída, de modo que a mudança de ângulo de visão(mas não de critérios!) faça surgir novamente, nela também, um elemento positivo ediferente daquele anteriormente especificado. E assim por diante ad infinitum, atéque todo o passado seja recolhido no presente em uma apocatástase histórica.98

E é assim que a literatura regional necessita ser percebida: do confronto dos seus va-

lores com o processo de construção de novas identidades e projetos sócio-culturais até o devi-

do reconhecimento de que qualquer produção literária compõe a história cultural. Dessa for-

ma, a tensão que o regionalismo estabelece entre tema e linguagem, segundo Candido, deve

ser entendida e percebida de maneira clara dentro do contexto de expressão e representação

cultural, porque “se torna um instrumento poderoso de transformação da língua e de revelação

e autoconsciência do país; mas pode ser também fator de artificialidade na língua e de aliena-

ção no plano de conhecimento do país” 99.

A Oralidade, último elemento a compor a alegoria que embasa este projeto, se rela-

ciona com dois fatores: o primeiro decorre diretamente da relação com a regionalidade literá-

ria, dos elementos oriundos de culturas predominantemente orais em um processo de forma-

ção identitária com base na tradição e nos valores locais e das relações com outras regionali-

dades. O segundo se ampara na presença de sujeitos migrantes que se relacionam (levando-se

sempre em consideração as relações de poder e a tentativa de anulação dialética decorrente

desse processo) entre si em uma nova realidade na qual introduzem e mantém suas tradições e

costumes. É necessário também não perder de vista as relações com outros grupos locais que

tentam manter elementos de sua cultura em um clima de assimilação/enfrentamento. As etnias

subjugadas – em especial a escravidão indígena e negra nas Américas – também sofreram

com a tentativa de apagamento de sua cultura, que sobreviveu graças à tradição oral. Cornejo

Polar comenta a respeito da situação do indigenismo da seguinte maneira:

É indispensável destacar, num primeiro momento, a fratura entre o universo indíge-na e sua representação indigenista. (...) esta cisão indica a existência de um novo ca-so de literatura heterogênea, em que as instâncias de produção, realização textual econsumo pertencem a um universo sociocultural, e o referente, a outro diverso. Esta

98 BENJAMIN, Walter. Passagens. Belo Horizonte; São Paulo: Ed. UFMG; Imprensa Oficial do Estado de SãoPaulo, 2006. p. 501.99 CANDIDO, Antonio. A literatura e a formação do homem. In: ____. Textos de intervenção. Seleção, apresen-tação e notas: Vinícius Dantas. São Paulo: duas Cidades; Ed. 34, 2002. p. 87.

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heterogeneidade ganha relevo no indigenismo, na medida em que ambos os univer-sos não aparecem justapostos, mas em contenda, e enquanto o segundo, o universoindígena, costuma mostrar-se, precisamente, em função de suas peculiaridades dis-tintivas.100

A existência de, no mínimo, dois lados pode ser percebida nas relações sócio-

culturais que apontam também para uma situação de resistência a um modelo colonizador e

opressor ao longo da história. Edward Said fala sobre resistência e oposição no contexto de

várias identidades nacionais e de como três grandes temas surgem na resistência cultural des-

colonizante:

Um, é claro, é a insistência sobre o direito de ver a história da humanidade como umtodo coerente e integral. Devolver a nação aprisionada a si mesma. (...) O conceitode língua nacional é fundamental, mas, sem a prática de uma cultura nacional – daspalavras de ordem aos panfletos e jornais, dos contos folclóricos aos heróis e à poe-sia épica, aos romances e ao teatro – a língua é inerte. (...) em segundo lugar está aidéia de que a resistência, longe de ser uma simples reação ao imperialismo, é ummodo alternativo de conceber a história humana. Particularmente importante é verem que medida essa reconcepção alternativa está baseada em uma ruptura das bar-reiras entre culturas. (...) em terceiro lugar, há um visível afastamento do naciona-lismo separatista em direção a uma visão mais integrativa da comunidade humana eda libertação humana.101

Partindo dessa visão diacrônica entre cor local e discurso de resistência e oposição,

procura-se reconhecer que a oralidade não se restringe à mera vocalização do discurso verbal.

Esta, segundo Lienhard102 se traduz em mais de um elemento, envolvendo vários fatores que

remetem à expressão, envolvendo os demais sentidos na tentativa de captar toda a dinâmica

expressiva, pois a “alma, o olho e a mão estão assim inscritos no mesmo campo. Interagindo,

eles definem uma prática.”103.

Mesmo reconhecendo que a Oralidade se aproxima das práticas letradas, essa possui

características que necessita de abordagens específicas para que ela não seja reduzida

unicamente ao paradigma da escrita formal. É preciso interpretar suas manifestações como

sendo uma “tradição viva”, pois não há uma limitação a contos e lendas – a tradição oral é um

conhecimento de toda a cultura e sua identidade. Na África, quando um velho morre é uma

biblioteca que queima... o respeito à tradição e ao conhecimento acumulado durante a vida

100 POLAR, Cornejo. O indigenismo e as literaturas heterogêneas: seu duplo estatuto social. In: ____. O condorvoa: literatura e cultura latino-americanas. Organização: Mario Valdés. Tradução: Ilka Valle de Carvalho. BeloHorizonte: Ed. UFMG, 2000. p. 169.101 SAID, Edward. Cultura e Imperialismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. p. 273-274.102 LIENHARD, Martín. Oralidad. In: Revista de Crítica Literaria Latinoamericana – Documentos de Trabajo:Jornadas Andinas de Literatura Latinoamericana. Lima-Berkeley, 2º semestre de 1994, p. 371-374.103 BENJAMIN, Walter. O narrador. In: ____. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1985. p.220.

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evidencia uma outra forma de comunidade. Assim, viver é participar, enquanto que transmitir

uma cultura, um saber, é questão de sobrevivência. No caso do Brasil, no período da

escravidão, quase não havia velhos, não sendo aplicável – no seu sentido original – essa

tradição na realidade brasileira. Enquanto que na África a oralidade estava atrelada a

sobrevivência de uma comunidade, no Brasil – e na América – se tratava de uma questão de

sobrevivência individual. O horror da escravidão só pode ser entendido – nunca

compreendido – a partir dos testemunhos culturais trazidos pela tradição da cultura oral dos

diversos povos explorados e subjugados. E essa proposta evidencia o reconhecimento desse

jugo e dessa opressão na formação das nacionalidades americanas e nas práticas racistas que

permanecem ainda na atualidade.

A elaboração de uma crítica que tenta aceitar a “derrota”104, discutir suas limitações e

partilhar experiências que possam contribuir com o próprio processo crítico – através dos

insights advindos da Teoria Crítica da Sociedade – se evidencia como o principal

embasamento. Assim, os Procedimentos Metodológicos, visando a articulação com os

pressupostos teórico-críticos apresentados, vislumbram não apenas objetos de pesquisa, mas

sujeitos visto que a literatura – seja escrita ou oral – se constitui em um espaço onde as

identidades transitam em nome de determinada cultura ou ideologia. Quando, então, se

estabelece essa forma de pensar as manifestações literárias, também se atrela a percepção do

local de origem e de destino no qual esses sujeitos migrantes estão em um permanente

processo de identificação. Pode-se pensar, nessa perspectiva, que o texto literário, pelo fato de

a palavra que o compõe ser polissêmica, adquire essa contestação identitária mesmo dentro de

aspectos de exaltação e valorização de determinada cultura.

Referências

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ADORNO, Theodor. Negative Dialectics. New York: Continuum, 1983.

104 A “derrota” aqui apresentada faz referência ao texto de Idelber Avelar. “Pois, se a literatura já não pode ser aredenção substitutiva em que a ontologia otimista e positiva do boom quis convertê-la, também pode ser, poroutro lado, demasiado cedo para render-se ao discurso apocalíptico, pronunciar sentenças de morte sobre o literá-rio e começar a buscar objetos substitutórios sobre os quais aplicar o mesmo otimismo positivo. Pois esses conti-nuariam sendo, apesar de toda a euforia, objetos de uma substituição compulsiva, isto é, de uma neurose aindaignorante de si mesma. Só instrumentalizariam, uma vez mais, a vontade de eludir a derrota, a renúncia a aceitá-la e pensar a partir dela que constituía, para Benjamin, o crime mais hediondo que se podia cometer contra amemória dos mortos”. (AVELAR, Idelber. Alegoria e pós-ditadura. In: ____. Alegorias da Derrota: a ficçãopós-ditatorial e o trabalho de luto na América Latina. Belo Horizonte: UFMG, 2002. p. 33).

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BAKHTIN, Mikhail. Questões de Literatura e Estética. 3. ed. São Paulo: UNESP, 1993.

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SAID, Edward. Cultura e Imperialismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.

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ANGÚSTIA, DE GRACILIANO RAMOS E O DRAMA SOCIAL FILTRADO PELODRAMA DO INDIVÍDUO

Francieli Daiane Borges105

Prof. Dr. João Luis Pereira Ourique106

Resumo: Graciliano Ramos criou modos literários nos quais descreve complexos e variadoslados na natureza humana, as suas paixões, desgostos e motivos de seus impulsos. Nesse sen-tido, a vaidade e o orgulho rompem, mediante a expressão trágica, com os traços de polidezimpostos pelos costumes e hábitos. O romancista descreve a sordidez dos ambientes e a pre-tensa conduta dos personagens, evidenciando os pontos em comum com situações reais. Nosescritos do autor nordestino, algumas características são fortemente marcadas. Por vezes são oequilíbrio e quase excesso de lucidez, ou impulsos desordenados e desvairados, que vem doâmago de suas personagens. A problemática da virtude e as relações permeadas por impulsosvis aparecem como uma realidade onde todos nos inserimos. Este trabalho se fundamenta apartir da pesquisa bibliográfica, visando a uma reflexão de cunho interpretativo-hermenêuticodo texto de Graciliano Ramos, tendo por fundamentação teórica a sociologia literária e a Teo-ria Crítica da Sociedade (Escola de Frankfurt).

Palavras-chave: Teoria Crítica. Regionalidade. Cultura.

1. Introdução

Este trabalho integra o projeto de pesquisa Regionalismo e Regionalidade em Simões

Lopes Neto e Graciliano Ramos: diálogos sobre formação cultural, coordenado pelo professor

João Luis Pereira Ourique, no âmbito das investigações do grupo de pesquisa Ícaro – Inter-

disciplinaridade, Crítica ao Autoritarismo, Regionalidade e Oralidade.

O objeto de estudo é o livro Angústia (1936), que trata em seu universo romanesco a

insularidade, a insensibilidade e a frustração do ser humano. Em seu fluxo narrativo, há a

organização de um duplo processo de rememoração aonde o narrador/personagem, envolto

por pressentimentos ruins, necessita compartilhar a experiência triste e solitária.

Para que o texto pudesse ser contextualizado quanto a seu período histórico, hábitos

e visões de uma geração que viveu na década que iniciou com a Grande Depressão e terminou

com a Segunda Guerra Mundial, foi feita a fundamentação a partir de teóricos que compreen-

dem a literatura como um meio de refletir acerca das manifestações sociais, tais como Anto-

nio Candido, Theodor Adorno, Erich Auerbach, além de pesquisas em outras obras do próprio

Graciliano Ramos e em textos do grupo de pesquisa Ícaro.

105 Acadêmica do curso de Licenciatura em Letras e Literaturas de Língua Portuguesa pela Universidade Federalde Pelotas e bolsista PROBIC/FAPERGS.106 Orientador

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2. Fundamentação

Os estudos da Escola de Frankfurt direcionados aos problemas formais da literatura

(Theodor Adorno e Walter Benjamin, principalmente), demonstraram a profunda conexão

com a desumanização do capitalismo industrial e as repercussões negativas das experiências

de violência extrema do século XX. A fragmentação das obras expressa a impossibilidade de

comunicação plena do que vivemos, em razão da complexidade e do caráter perturbador da

experiência a ser representada. Caso de Angústia, um livro permeado por descontinuidade e

incertezas.

A obra de Graciliano Ramos com a qual trabalhamos, intitulada por Antonio Candi-

do107 de “romance excessivo”, é contrastada com “a descrição e despojamento dos outros ro-

mances”. O crítico acentua que nele há “partes gordurosas e corruptíveis”. Reconhece, no

entanto, que “talvez por isso mesmo seja mais apreciado”. A composição do texto não é a que

se encontra nos padrões clássicos, já que trabalha com a inversão da ordem cronológica, além

da presença de micronarrativas autobiográficas repletas de comentários irônicos. A criticidade

fica em evidência, muitas vezes, na repetição impulsionada pela narração do paranoico obses-

sivo.

De acordo com Antonio Candido108, em meados de 1930 a literatura e o pensamento

sofriam uma grande mudança:

A prosa, liberta e amadurecida, se desenvolvia no romance e no conto, que viviamem uma das suas quadras mais ricas. Romance fortemente marcado de neonatura-lismo e de inspiração popular, visando aos dramas contidos em aspectos característi-cos do país: decadência da aristocracia rural e formação do proletariado; poesia e lu-ta do trabalhador; êxodo rural e cangaço; vida difícil das cidades em rápida trans-formação. Nesse tipo de romance, o mais característico do período e frequentementede tendência radical, é marcante a preponderância do problema sobre o personagem.Em Graciliano Ramos, a humanidade singular dos protagonistas domina os fatoresde enredo: meio social, paisagem, problema político. Mas, ao mesmo tempo, tal li-mitação determina o importantíssimo caráter do romance, nessa fase, que aparececomo instrumento de pesquisa humana e social, no centro de um dos maiores soprosde radicalismo da nossa história.109

O próprio Graciliano Ramos evidencia, anos mais tarde, em Memórias do Cárcere, a

escassez de continuidade em Angústia, diz que “o diabo era que o livro abundava descone-

xões, talvez irremediáveis”.110

107 CANDIDO, Antonio. Ficção e confissão: ensaios sobre Graciliano Ramos. 2ª ed. Rio de Janeiro: Editora 34,1992. p. 32.108 CANDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade. 8ª ed. São Paulo: T.A. Queirós, 2000.109 Ibidem. p. 114.110 RAMOS, Graciliano. Memórias do Cárcere. 2ª ed. São Paulo: Record, 1954. p. 42.

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Luís da Silva – tido como uma das personagens mais dramáticas da moderna ficção

brasileira – é narrador e personagem do romance. Sua percepção tem tendência a sentir em

demasia as brutalidades das situações banais do dia-a-dia.

Funcionário público e, nas horas vagas e noturnas, jornalista e escritor, se aproxima

muito da realidade cultural de Graciliano Ramos. De acordo com o autor “o meu Luís da Silva

era um falastrão, vivia a badalar à toa reminiscências da infância, vendo cordas em toda par-

te.”111

O narrador/personagem possui outra peculiaridade, que é a frequência com que lava

as mãos. Essa atitude é entendida como um indicativo de que se sente sujo por fora assim co-

mo se sente sujo por dentro:

Lavo as mãos uma infinidade de vezes por dia, lavo as canetas antes de escrever, te-nho horror às apresentações, aos cumprimentos, em que é necessário apertar a mãode quem não sei por onde andou... Preciso muita água e muito sabão. (...) Se me des-sem água para lavar as mãos, acomodar-me-ai lá. Se me dessem água para lavar asmãos, estaria tudo bem.112

Luis da Silva tem um desejo patológico pela intimidade alheia. Visões eróticas povo-

am seus pensamentos e isso fica evidenciado logo nas páginas iniciais, quando ainda está des-

crevendo Marina. No decorrer do romance, porém, essa tendência se torna assustadoramente

excessiva:

Mas quando se calavam, vinham-me suposições que me davam tremuras. Provavel-mente dona Adélia tinha ido à cozinha preparar o café. E os dois aproveitavam otempo. Sem dúvida. Imaginava o que eles faziam. Era aquilo, sem dúvida. (...) Pare-cia-me que meu quarto se enchia de órgãos sexuais soltos, voando.113

Sobre a evidente obsessão da personagem, nesse aspecto, Antonio Candido diz que:

A violenta fixação fálica está diretamente ligada ao tom de sexo recalcado, ao aba-famento psicológico do livro. O menino que viveu sozinho, o adolescente sem amor,insatisfeito, que se expande num falismo violento; este, entrando em conflito com aconsciência de recalcado, o interioriza , o inabilita para relações normais, e o leva,num assomo de desespero, a matar Julião. Matá-lo com a corda, imagem que liberta,por transferência, a energia frustrada de sua virilidade.”114

O Brasil descrito pelas micronarrativas é o da República Velha (1989-1930). Ali es-

tão as raízes sentimentais do personagem principal, um representante típico da juventude te-

nentista. Nas comunidades rurais alagoanas, o relacionamento entre as pessoas é áspero e ru-

111 Idem.112 RAMOS, Graciliano. Angústia. 63ª ed. São Paulo: Record, 2008. p. 125.113 Idem.114 CANDIDO, Antonio. Ficção... p. 38.

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de. São sobreviventes de um mundo que está ruindo. Assim, Luís da Silva se desliga da vida

familiar e rural, entusiasmado pela transformação revolucionária da cidade. As viagens dele

complementam o relato da experiência infantil e juvenil no campo. A evocação do passado

subverte os acontecimentos do presente, em uma repetição constante.

Um importante aspecto analisado no texto do autor nordestino é o culto à violência –

empregada em forma de humilhação a espancamento – que torna possível observar a crítica a

uma sociedade insensível, que vê os atos violentos como forma respeitável de punição, que

obedecem inclusive a níveis hierárquicos:

Um crime, uma ação boa, dá tudo no mesmo. Afinal já nem sabemos o que é bom eo que é ruim, tão embotados vivemos.115

Isso se explica, segundo Rosenfeld e Auerbach, pela profunda mudança social e, por-

tanto, na forma de pensar das pessoas. Essas transformações levariam à necessidade de repre-

sentação de uma consciência multiforme e aberta a contradições, que se expressaria na insta-

bilidade de conduta de narradores, na construção de personagens marcadas por paradoxos e

vazios, na inutilidade ou impenetrabilidade de ações:

Entro no quarto, procuro um refúgio do passado. Mas não me posso esconder intei-ramente nele. Não sou o que era naquele tempo. Falta-me tranquilidade, falta-me i-nocência, estou feito um molambo que a cidade puiu demais e sujou.116

É possível abordar na narrativa a frustração, em diversas passagens. Ou está presente

uma indiferença brutal, que talvez disfarce uma escassez de auto-estima, ou o sentimento gri-

tante de fúria e aversão das pessoas e coisas. O clima opressivo absorve o leitor, porque a vida

é compreendida com um negativismo tão forte, que se torna difícil distinguir o real do imagi-

nário. Há, no romance, excesso de negação e amargura por parte das personagens. É como se

assistissem resignadas a suas próprias vidas, sem perspectiva ou, como diria o próprio autor,

“movendo-se como peças de um relógio cansado”117:

O guarda-civil do relógio oficial veio para a cidade e arranjou emprego. É um sujeitomagro como eu, civilizado como eu. Se houver barulho na rua, ele apita. Se houvergreve nas fábricas e lhe mandarem atirar contra os grevistas, atira tremendo. As gre-ves acabam. E ele voltará para a chateação do ponto, magro, triste. É pouco mais oumenos como eu.118

115 RAMOS, Graciliano. Angústia. p. 194.116 Ibidem. p. 24.117 Ibidem. p. 195.118 Ibidem. p. 196.

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O drama envolve a todos, porque além de Luis da Silva ser espectador dos seus pro-

blemas individuais, observa também os indivíduos ao seu redor, ou seja, as pessoas que a vida

puniu sem motivo aparente. Esse é o caso do sertanejo de suas memórias – que os vizinhos

julgaram estuprador -, condenado pelo júri, mesmo inocente:

Tratando a doença da filha com remédios brutos da medicina sertaneja, o homem ti-nha sido preso, espancado, julgado e condenado.119

O relato das personagens evidencia a inércia na qual estão. Luis da Silva é os vê com

desespero, já que a visão que tem deles é uma projeção de si mesmo. O mundo que os envolve

é duro, sem anseios, com infinitas misérias sem porquês e sem saída.

A velha Germana, por exemplo, acostumada desde sempre com tão pouco que já nem

tem desejos, mesmo os mais simples. Situação muito próxima a de Quitéria, que de tão bruta,

é insensível. Ou Vitória, meio surda, que usa os sapatos velhos do patrão e um xale preto,

amarelado, que segundo o narrador, deve ter uns dez anos.

A seca - questão constantemente abordada por Graciliano Ramos - está presente em

Angústia, embora seja apresentada com um tanto de insensibilidade, por parte do personagem

principal:

O que lhe interessa na minha terra é o sofrimento da multidão, a tragédia periódicadas secas. Procuro recordar-me dos verões sertanejos, que duram anos. A lembrançachega misturada com episódios agarrados aqui e ali, em romances. Dificilmente po-deria distinguir a realidade da ficção. De resto, a dor dos flagelados naquele temponão me fazia mossa.120

A narrativa discorre lenta, até o clímax. A ideia do assassinato surge vaga, com insô-

nias constantes, lembranças de morte – ainda que sem nitidez, até que aparece incisiva, na

página 30, “enfim, desejava matar o homem que me roubava o sono”.

Julião Tavares aparece, então, como a personificação da imundice. É uma caricatura

de tudo o que Luis da Silva tem asco. Fisicamente sujo (narrado constantemente como “sua-

do”) como moralmente, já que esse “patriota e versejador” tantas vezes explicita um caráter

reprovável e intimidador.

É possível notar a referência naturalista em inúmeras passagens, nas quais o autor

compara seus personagens com animais. Julião Tavares, por exemplo, é comparado com pa-

119 Ibidem. p. 81.120 Ibidem. p. 33.

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vão e com rato. Luís da Silva se compara diversas vezes com um rato. Marina é descrita, no

início da ficção, como “uma gata que se enrola e mia”121

Ainda de acordo com Antonio Candido:

tecnicamente, Angústia é o livro mais complexo de Graciliano Ramos. Senhor dosrecursos de descrição, diálogo e análise, emprega-os aqui num plano que transcendecompletamente o naturalismo, pois o mundo e as pessoas são uma espécie de reali-dade fantasmal, colorida pela disposição mórbida do narrador. A narrativa não flui,como nos romances anteriores. Constrói-se aos poucos, em fragmentos, num ritmode vaivém entre a realidade e o presente, descrita com saliência naturalista, constan-te evocação do passado, a fuga para o devaneio e a deformação expressionista.122

O texto de Graciliano Ramos culmina em um processo não linear, fragmentário. Em

Angústia aparece, na verdade, outra forma de escrever romance, talvez mais adequada à maté-

ria ali narrada.

As questões sociais são constantemente abordadas. Há a negação gritante de uma so-

ciedade que aceita todo tipo de absurdo e Julião Tavares aparece, muitas vezes, como símbolo

de valores burgueses decadentes.

O fluxo narrativo de Angústia, no futuro do pretérito, parece nunca se realizar no

plano real. O personagem principal diz: “Escrevo, invento mentiras sem dificuldade. Mas as

minhas mãos são fracas, e nunca realizo o que imagino.”123 A obra toda é permeada por lam-

pejos de esperança e sofrimento, pela vontade e pela fraqueza, e as boas intenções comumente

se chocam com a brutalidade do real em seu universo romanesco. Esse texto, na direção da

subjetividade, retrata questões ainda hoje vivenciadas, sendo possível a identificação com o

leitor.

Referências

AUERBACH, Erich. Mimesis: A representação da realidade na literatura ocidental. SãoPaulo. Perspectiva, 1976.

ADORNO, Theodor W. Posição do narrador no romance contemporâneo. In: VÁRIOS. Tex-tos Escolhidos. São Paulo: Abril Cultural, 1983, 2ª ed. (Os Pensadores).

CANDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade. 8ª ed. São Paulo: T.A. Queirós, 2000.

121 Ibidem. p. 110.122 CANDIDO, Antonio. Ficção... p. 80.123 RAMOS, Graciliano. Angústia. p. 197.

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____. Ficção e confissão: ensaios sobre Graciliano Ramos. 2ª ed. Rio de Janeiro: Editora 34,1992.

RAMOS, Graciliano. Angústia. 63ª ed. São Paulo: Record, 2008.

____. Memórias do Cárcere. 2ª ed. São Paulo: Record, 1954.

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AS LINGUAGENS DO AUTORITARISMO EM SARGENTO GETÚLIO, DE JOÃO UBAL-DO RIBEIRO E O CORONEL LOBISOMEM, DE JOSÉ CÃNDIDO DE CARVALHO

Paulo Fernando da Silva Furtado124

Prof. Dr. João Luís Pereira Ourique125

Resumo: A leitura de O Coronel e o Lobisomem, de José Cândido de Carvalho, relacionada aSargento Getúlio, obra de autoria de João Ubaldo Ribeiro, permite compor um panorama esté-tico e social das formas de repressão, desde as mais sutis até as mais brutais. O autoritarismo érepresentado pelo Coronel - cuja liderança restrita e regional depende da posse da terra - epelo policial que executa cegamente as ordens a ele atribuídas. Em ambos os casos, os narra-dores relacionam-se com políticos que determinam mudanças nas suas posições sociais e eco-nômicas. As linguagens presentes nas obras se caracterizam por serem particularmente fun-cionais para os meio onde as personagens circulavam, seja pela falácia ou simples imposição,seja pelos gritos, expressão corporal ou violência física. Em ambos os casos, as narrativasautobiográficas constroem as personagens, mas a compreensão do contexto só é possível seconfrontadas sob múltiplos enfoques, incluindo as “vozes” das outras personagens que sãoabafadas ou aparecem sob o discurso dissimulado. A partir da abordagem bakhtiniana, procu-rar-se-á discutir várias modalidades de coerção presentes em ambos os livros, que podem seranalisadas sob a perspectiva da sociologia literária. A presença do sério-cômico pautará a dis-cussão em prol do questionamento das estratégias de manutenção de estruturas políticas esistemas de privilégios das classes dominantes.

Palavras-chave: Autoritarismo. Contexto sócio-econômico-político. Linguagem.

O princípio de aproximação entre as obras O Coronel e o Lobisomem, de José Cân-

dido de Carvalho e Sargento Getúlio, de João Ubaldo Ribeiro, presente nesta pesquisa, pre-

tende transcender questões meramente estéticas e temáticas a partir da análise das persona-

gens-narradores. Essa reflexão tem por base a relação dos recursos narrativos com o panora-

ma histórico-social, evidenciando as formas de repressão ali presentes, desde as mais sutis até

as mais brutais.

Estes narradores são agentes básicos dos sistemas sociais autoritários presentes nas

narrativas: o proprietário de terras e o policial, problematizados em suas concepções de direito

e Estado. Uma leitura profunda requer a busca daquilo que está por trás do discurso e exige

que o leitor reconheça subentendidos e pressupostos, a partir das diferenças entre o que os

personagens pretendem contar, as impressões que desejam causar e o que é realmente revela-

do. O Coronel, cujo testemunho está permeado por ilusões, mas que sem querer revela a reali-

dade. O Sargento, cuja perda do “posto” faz com que ele demonstre um caráter complexo,

124 Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Literatura Comparada pela Universidade Federal de Pelotas125 Orientador

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revela fatos implícitos, muitos dos quais nem ele próprio tem consciência. Ainda muitas rela-

ções podem ser estabelecidas entre esses os narradores. Ambos relacionam-se com políticos

que determinam mudanças nas suas posições sociais e econômicas. As formas de expressão e

de comunicação dessas personagens são particularmente funcionais para os meio onde circu-

lavam, impondo as suas vontades, seja pela falácia ou simples imposição, seja pelos gritos,

expressão corporal ou violência física.

Embora ambas as narrativas sejam puramente ficcionais, elas podem apresentar a

possibilidade de uma leitura a partir do elemento autobiográfico. Os testemunhos geralmente

podem ser questionáveis, pois segundo Beatriz Sarlo126 estão subordinados a fatores como a

própria memória. Além de outros elementos que tornam o caráter de qualquer testemunho

incompleto, como nestes livros, nos quais há lacunas na narração e os narradores não são con-

fiáveis. Ainda ambos os narradores sofrem mudanças de estados psicológicos, que fazem com

que se questione a lucidez deles à medida que se aproxima o desfecho. Em muitos casos, por

tratarem-se de mentiras, lorotas e falsos argumentos firmados mais pela força do que pela

lógica, mais pela opinião do que pela razão. Esses fatos implícitos, por trás dos depoimentos

dos narradores, permitem compõe planos mais profundos de significação, de forma que esses

significados deduzidos através do contexto tornem-se tão ou mais relevantes do que o enredo

“visível”. Assim esta investigação seguirá expandindo também relações intertextuais, estabe-

lecendo associações com outras formas de representação que se tornem relevantes para o a-

profundamento da leitura.

À medida que a estrutura dos dois livros sugere a desconfiança para com narrações

unitárias, mais aumenta o caráter de incompletude e de suspeição acerca dos protagonistas e

do próprio enredo. Dessa forma questionam-se também os processos de escrita da história,

tanto na ficção, quanto na realidade, já que ambos os narradores são representantes de como a

ideologia dominante se manteve, por um período, no qual justamente as convenções da socie-

dade estavam transitando entre a afirmação e o questionamento das mesmas. Em ambos os

casos, as personagens são construídas pelas narrativas autobiográficas e a compreensão do

contexto, só é possível se confrontadas sob múltiplos enfoques, incluindo as “vozes” das ou-

tras personagens que são abafadas ou aparecem sob o discurso dissimulado, logo, buscam-se

elementos de polifonia no discurso. Nas reações das outras personagens diante do “narrador

suspeito”. A partir da perspectiva dialética-lógica de Bakhtin, foram estabelecidas relações

entre a identidades sociais assumidas pelos narradores. Também recorremos aos conceitos de

126 SARLO, Beatriz. Tempo passado; cultura da memória e guinada subjetiva. São Paulo: Cia. das Letras, 2007.[Cap 1: pp. 9-22; Cap 2: pp. 23-44].

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polifonia, para explorar nas “vozes do outros” as respostas para o não-contado, considerando

que “Desta forma, aqui é introduzida a fala de outrem no discurso do autor (narração) sob

uma forma dissimulada”127. Já que, nestes casos, os narradores autodiegéticos limitam a um

ponto de vista, precisa-se observar as falas das outras personagens que nos chega de forma

indireta, exclusivamente pelos narradores.: “Aquilo que é inacessível ao olhar de uma pessoa

é o que preenche o olhar da outra. Logo, na esfera das relações humanas e da comunicação o

excedente da visão é tão importante quanto aquilo que se oferece explicitamente ao olhar .”128

Principalmente nas vozes que se opõem as eles, pois esses confrontos, é que permitem a for-

mulação de hipóteses, a partir da reação das outras personagens, é que se chega ao enredo

implícito.

A língua coloquial estilizada permite o questionamento de estruturas sociais conser-

vadoras, também presentes nos seus aspectos lingüísticos, que entram em choque com novos

sistemas sociais. Há de se considerar que eles representam pressupostos sociais e convenções,

que legitimavam a violência inclusive na atuação política e policial. O autoritarismo inserido

numa lógica, baseada na tradição, que lhe sustenta, pois transcorre naturalmente, como se

fosse indispensável à ordem social. Porém, em contraste com os hábitos urbanos, entram em

choque com essas noções regionalizadas dos narradores-personagens. Nestes contextos,

permitem o cruzamento de conflitos entre os interesses particulares e serviço prestado ao Es-

tado. Nos dois livros, estes agentes da dominação local seguem regras próprias, que entram

em choque com a própria idéia de “unidade nacional”, cujo um dos princípios é a língua. Este

é o primeiro elemento simbólico que as personagens desestruturam. A própria noção de Esta-

do não foi ainda absorvida, como se eles vivessem à margem do processo de civilização da

sociedade. Os conceitos regionalizados de nação, Estado e Direito não se baseia nos interesses

do povo, mas em concepções conservadas pela tradição para a garantia de poder para as elites,

associam-se a problemas não resolvidos até a atualidade.

Os traços típicos de sujeitos rurais que O Coronel condensa são de proprietários ori-

undos de uma época meio “imprecisa”, mas que mostram que o sistema teve um período pro-

longado e foi mudando para se manter. Assim, analisaremos as estruturas do coronelismo,

segundo Barbosa Lima Sobrinho (1978), em seus três pontos fundamentais: terra, família e

agregados. Já em Sargento Getúlio parte-se de marcadores temporais mais específicos: Colu-

na Prestes, Getúlio Vargas e Cristiano Machado, mas que também sugere uma presença contí-

127 BAKHTIN, Mikhail. O Plurilinguismo no Romance. In: Questões de Literatura e de Estética. São Paulo:UNESP; Ed. Hucites, 1990.128 BAKHTIN, Mikhail. M. Particularidades do gênero e temático-composicionais das obras de Dostoiévski. In:Problemas da poética de Dostoievski. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1981. (p.87-155).

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nua dos sistemas repressivos, pois a publicação de Sargento Getúlio, em 1971, com a temática

do “preso político”, trás o questionamento de visões totalitárias, e a sua manutenção em dife-

rentes momentos históricos.

As formas de opressão, analisadas de acordo com Antônio Cândido129, nos permitem

identificar ações violentas, muitas vezes, que contaram com o aparato do próprio Estado, em

nome de um suposto bem-comum. O autoritarismo pode ter na linguagem o elemento básico,

mas que se sustenta em outras formas de repressão, conforme se percebe nas ações do Coro-

nel. Neste caso, a idéia de superioridade sobre os demais, em que as palavras do Coronel ja-

mais eram questionadas no meio rural. Já em Sargento Getúlio são questionadas as ações dos

policiais e daqueles que o dirigem. Nos dois casos as personagens se autodenominam detento-

ras da verdade. Na busca de indícios de manutenção dos sistemas repressivos, nos basearemos

em Antônio Cândido130, que declarou que em bases de discursos se sustentam falsas “verda-

des”. Isso inclusive nas ações do cotidiano, em que se exerce a autoridade através da coerção

verbal. As convenções elitistas são estabelecidas na ostentação e nas aparências. Em ambos,

questionam-se identidades regionais, seus valores culturais e tradições em oposição aos hábi-

tos urbanos mais modernizados. Nos dois livros, podemos estabelecer o confronto dos valo-

res, processos de construção de identidades, novos processos sócio-culturais, de trabalho, po-

lítica, profissão e família.

As incoerências nas concepções de Estado serão consideradas a análise de José H.

Dacanal131, cujo texto está no prefácio de Sargento Getúlio. Estas serão analisadas segundo

nas ações de vários setores: elementos do Estado, da polícia e da política. Este crítico classifi-

cou estes livros como pertencente ao ciclo da Nova Narrativa Épica Brasileira. Essa classifi-

cação é questionável, pois as obra não se encaixam no sentido épico convencional. Principal-

mente Sargento Getúlio que enfoque individualizado, que decorre em poucos dias. Assim,

contraria as noções tempo e a distribuição dos fatos das formas típicas dos romances épicos

tradicionais. Além disso, nestas narrativas há de se problematizar as formas particulares como

lidam com elementos fantásticos. Portanto, essa classificação no gênero épico é problemática,

pois para isso só seria possível se considerarmos os livros como representantes de processos

contínuos de repressão, nos quais sistemas semelhantes que vem se renovando há várias déca-

das.

129 CANDIDO, Antonio. Censura-violência. In: ____. Recortes. São Paulo: Companhia das Letras, 1993130 Idem.131 DACANAL, José Hildebrando. Nova Narrativa épica no Brasil : uma interpretação de Grande Sertão : Ve-redas, O coronel e o lobisomem, Sargento Getúlio e os Guaianãs. Porto Alegre : Mercado Aberto, 1988.

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As noções de realidade são problematizadas pela própria natureza dos focos narrati-

vos adotados e o caráter de cada narrador. Diferentemente do texto histórico e realista tradi-

cionais que segundo Tiphaine Samoyault “estavam ali para conotar o realismo, para suscitar

um efeito de real e produzir no leitor a ilusão realista ou referencial.” 132 Isso permite concluir

que nestes livros: elas não se esforçam para provocar esse efeito, mas ocorre o contrário. Por-

tanto o início da investigação sobre processos sociais de identificação dos narradores com

estruturas sociais autoritárias, pretende relacionar literatura, sociedade e fatos históricos base-

ado nesta autora, que considera que num livro pode haver tanto a retomada de textos literá-

rios, como também a recuperação de “materiais emprestados da realidade”133. Assim permite

reflexões críticas a partir de ações do cotidiano, das relações indivíduo e Estado, Justiça e

política, campo e cidade, província e nação. Também será considerado o pensamento de Han-

nah Arendt, que desenvolve uma leitura crítica sobre a “reconstituição do Estado (após o feu-

dalismo), que, porém, não resolve o problema fundamental: a origem da legalidade do poder

do Estado.”134 Neste caso, as bases autoritárias e imperialistas servem para construir um sen-

tido de “nação” com tendências repressoras e expansionistas. Isso porque que, muitas vezes,

ele pode estar assentado em bases autoritárias e imperialistas.

Ambos os livros abordam várias modalidades de coerção, que podem ser analisadas

sob a perspectiva da sociologia literária. Nessas representações, com a presença do sério-

cômico, como elementos da sátira clássica, inclusive a carnavalização do próprio discurso,

para o questionamento das estratégias de manutenção de estruturas políticas e sistemas de

privilégios na sociedade pelas classes dominantes. Então, a análise das obras, segundo as teo-

rias de Bakhtin135, busca identificar também nos traços de carnavalização, as formas como o

gênero se renova, para exercer sátira sobre o sistema político-social. Dessa forma, identificar

nas “situações extraordinárias”, o fim filosófico e ideológico. As duas narrativas proporcio-

nam leituras baseadas na concepção da natureza dialógica do pensamento humano, que se

opõe ao “monologismo oficial que se pretenda dono de uma verdade acabada.”136 A imagem

do narrador, na sua fluente narrativa, em que a linguagem é um instrumento de poder, em um

contexto regional, cujo autoritarismo possui bases que lhe sustenta e transcorre naturalmente.

Entretanto, essa identidade autoritária, embora possa ser bem mais “polida”, desenvolve sé-

132 SAMAYAULT, Tiphaine. A Intertextualidade. Tradução: Sandra Nitrini. São Paulo: Aderaldo & Rothschild,2008. p. 109.133 Ibidem. p. 104.134 ARENDT, Hannah. Compreender: Formação, exílio e totalitarismo. Tradução: Denise Bottman. São Paulo:Companhia das Letras; Belo Hirizonte: Ed. UFMG, 2008. p. 235.135 BAKHTIN, Mikhail. Particularidades...136 Ibidem. p. 94.

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rios conflitos, no espaço urbano, que não são percebidos pelo narrador-personagem da histó-

ria. A publicação de 1964 sugere uma manifestação posterior do regionalismo modernista, ao

qual se associa por questões relacionadas à posse da terra, a inclusão social e outras questões

não resolvidas até a atualidade.

Referências

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O CONTEXTO DE REPRESSÃO E AS NARRATIVAS FICCIONAIS NAS OBRASDE AUGUSTO ROA BASTOS E MARIO VARGAS LLOSA

Juliana Terra Morosino137

Prof. Dr. João Luís Pereira Ourique138

Resumo: O presente trabalho tem como objetivo apresentar uma proposta de investigaçãocom enfoque na Literatura e a Crítica social através do comparatismo de duas obras de gêne-ros distintos do autor paraguaio Augusto Roa Bastos (1917-2005) e um romance do peruanoMario Vargas Llosa obras pertencentes ao mesmo período sócio histórico. O aporte teóriconorteador desta análise se evidencia na Teoria Crítica da Sociedade, as reflexões de WalterBenjamin darão subsídios para uma melhor compreensão da narrativa de Roa Bastos, produ-zida em meio à ditaduras militares, a decorrente Guerra do Chaco e o exílio. Propõe-se umdiálogo entre as teorias da Crítica Social e a Crítica Latino-Americana Contemporânea, queirá discutir este sujeito produtor e leitor de narrativas. Desta forma, comparar espaços discur-sivo-teóricos em períodos temporais distintos refletindo acerca de aspectos sociais em regimesmilitares, a literatura de trauma e testemunhal nas obras ficcionais.

Palavras-Chave: Literatura Latino-Americana. Autoritarismo. Augusto Roa Bastos. MarioVargas Llosa.

1. Introdução

Os estudos de Benjamin, ainda que não estejam direcionados especificamente para a

natureza da Literatura – embora tenha produzido importantes ensaios sobre obras literárias de

renomados autores como Kafka –, dão conta de observar uma nova compreensão da história

humana, [para ele] “os escritos sobre a arte ou literatura só podem ser compreendidos em re-

lação a essa visão de conjunto a iluminá-los de seu interior”139.

A forma literária, por exemplo, passa a ser a linguagem que supõe a expressão de si

mesma, como a revelação de um instante, aquilo que por imagens utiliza a linguagem para

torna-se unidade. A imagem é uma das principais categorias dos estudos benjaminianos140

para ele será um elemento capaz de estabelecer vínculos entre o real e o imaginário, é também

uma fonte especulativa do discurso histórico e forma do conhecimento. Assim como assevera

Willi Bolle:

A “imagem” é a categoria central da teoria benjaminiana da cultura: “alegoria”, “i-magem arcaica”, “imagem de desejo”, “fantasmagoria”, “imagem onírica”, “imagem

137 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Literatura Comparada pela Universidade Federal de Pelotas.138 Orientador139 LOWY, Michael. Walter Benjamin: aviso do incêndio. São Paulo: Boitempo, 2002. p. 14.140 Cf MAIO, Sandro. Imagens em Walter Benjamin: universo ficcional e Literatura. Revista Fronteiraz, revistadigital do grupo de pesquisa “O narrador e as fronteiras do relato.” PUC-SP Vol.2. n.2. p. 1 – 10, dezembro.2008.

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de pensamento”, “imagem dialética” (...) A imagem possibilita o acesso a um saberarcaico e a formas primitivas de conhecimento, às quais a literatura sempre esteveligada, em virtude de sua qualidade mágica e mítica. Por meio de imagens – no limi-ar entre a consciência e o inconsciente – é possível ler a mentalidade de uma épo-ca.141

Benjamin assim caracteriza a literatura como uma forma em potencial de conheci-

mento e a imagem como um meio de atingir ou resgatar um saber que ficou no passado.

2. Obras e contexto histórico-social

Pensando no passado histórico como um mecanismo para tirar os sujeitos do con-

formismo, passamos a compreender melhor as obras de Roa Bastos, uma vez que se percebe

em sua narrativa a dialética entre o discurso oficial, o discurso testemunhal e ficcional e a

reescrita desta história. Suas obras revelam narrativas silenciadas, que suplementarão o on-

tem, reconstruindo o hoje e o amanhã daquela nação.

Deste modo, o recorte deste trabalho consiste na análise do romance Contravida

(1994) de Roa Bastos relacionando-o com o conto La excavación pertencente ao primeiro

livro do autor El trueno entre las hojas (1968) em análise comparativa com o romance La

ciudad y los Perros (1963) do peruano Mario Vargas Llosa. Tais obras refletem momentos

sócio-políticos conturbados, autoritarismo e repressão militar. Desta forma, o cerne de nossa

investigação é o comparatismo da representação do autoritarismo e a memória coletiva em

ambas as obras e suas configurações na reescrita de uma verdade histórica documental (ofici-

al) através da narrativa ficcional dos referidos escritores.

Exilado político, guerrilheiro em luta pela liberdade de seu povo, Augusto Roa Bas-

tos é considerado um dos grandes nomes da literatura de seu país e um dos principais defenso-

res dessa nação. Desde jovem acompanhou as “revoluções” e ditaduras pelas quais passava o

Paraguai e como voluntário alistou-se a fim lutar pelo progresso de seu povo. Desta forma,

aos quinze anos, participou da guerra do Chaco como enfermeiro, ainda que seu objetivo pri-

meiro fosse a frente armada e poder ser testemunha daquele desumano confronto.

A obra roaniana é posta como parte do Cânone do século XX por Carlos Fuentes, em artigo

publicado no periódico El País (2011),142 apresenta uma linha do tempo literária de grandes obras que

marcaram a história da literatura latino-americana. Roa é visto por Fuentes como um dos mais impor-

141 BOLLE, Willi. Fisignomia da Metrópole Moderna: Representação da História em Walter Benjamin. 2 ed.São Paulo. Editora da Universidade de São Paulo. 2000. p. 42.142 FUENTES, Carlos. 27/08/2011. Estirpe de novelistas. TRIBUNA: EN PORTADA - OPINIÓN CARLOSFUENTES. El País/Espanha.

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tantes escritores do século passado, juntamente com grandes nomes de nossa literatura como Alejo

Carpentier, García Márquez, Jorge Luis Borges, Mario Vargas Llosa, Julio Cortázar, entre outros.

Suas grandes narrações se baseiam sobre os nós mais importantes da história para-

guaia: as missões jesuíticas do séc. XVIII, a Guerra da Tríplice Aliança (séc. XIX), a Guerra

do Chaco e a ditadura do séc. XX. Nestas obras soube mesclar com equilíbrio o documental e

o ficcional, até construir um modelo muito pessoal do romance histórico.

Nos anos 90 do séc. XX Roa Bastos escreve o romance Contravida, quando o escri-

tor estava exilado, feito que perdurou por aproximadamente 40 anos, período da ditadura de

Strossner, pois segundo o déspota Bastos era visto como um comunista, uma vez que sempre

atento as acontecimentos em sua terra insistia em abordar temas de fundo crítico-social e con-

testar versões oficiais da história paraguaia.

Contravida é a penúltima obra de Roa Bastos, romance que apresenta uma trama en-

tre dois tempos e espaços, o externo onde um “subversivo” sobrevivente da guerra civil para-

guaia faz uma viagem de trem de Assunção até Encarnação, onde supõe estar sendo seguido

por policiais a paisana, sua trajetória neste caminho se mescla com uma viagem interna, atra-

vés de suas lembranças da cidade onde nasceu e cresceu e da tentativa de reconstruir sua his-

tória através da rememoração. Ao retornar à esta cidade (imaginária) realidade e fantasia se

confundem, a idealização ou mesmo utopia na reconstrução imaginativa de seu “porto seguro”

tornam o trem um ambiente de transição entre presente e passado, como um túnel que liga

dois tempos em um fluxo totalmente permeável. A narrativa termina com o assassinato do

protagonista pelos policiais que o seguiam.

Em La excavación, Roa Bastos nos apresenta um conto de guerra e de fracasso de

um preso político. A história de Perucho Rodi, um ex-combatente paraguaio e sobrevivente da

Guerra do Chaco: preso na guerra civil em seu país, que havia acabado há seis meses, a per-

sonagem tenta construir um túnel (real) juntamente com seus companheiros de cela a fim de

alcançar a margem de um rio que os levaria à tão almejada liberdade. Ao final da narrativa

todos os presos são chacinados pelos policiais e o protagonista é soterrado no túnel.

Há um forte elo entre ambas as obras, o conto supracitado foi escrito em 1968 e apre-

senta um trágico “relato” do que possivelmente ocorria/ocorreu durante a guerra civil para-

guaia, como resultado, na narrativa fica explícito que não houve sobreviventes dentre os pre-

sos da cela na qual se construía o túnel. Entretanto, quando escreve Contravida em 96, mais

de 20 anos depois de La excavación, Roa reinscreve na memória de seus leitores o referido

conto, apresentando como protagonista de Contravida um sobrevivente da chacina de La ex-

cavación. Essa intertextualidade provoca um diálogo constante entre as obras, não somente no

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que tange a aspectos estéticos e de estrutura narrativa, mas principalmente permite que se cir-

cule por períodos temporais e espaciais (internos e externos) comuns, proporcionando a refle-

xão da real dimensão da memória histórica e ficcional deliberadamente manipulada pelo nar-

rador das mais diversas formas. Quanto a Teoria Crítica Social, e a concepção benjaminiana

de passado, em se tratando de produções literárias que retratam um período histórico experi-

enciado pelo autor a memória individual passa a ser a representação de uma memória coletiva

e a obra literária, enquanto produção humana é parte integrante de um contexto histórico-

social específico. Desta forma, entende-se que as narrativas de Roa Bastos por estarem imer-

sas em experiências pessoais e testemunhais incidem na solidificação de uma memória coleti-

va paraguaia. Nos intriga saber de que forma essa memória se constitui.

O maior nome da Literatura peruana, Mario Vargas Llosa em 1961 publica o roman-

ce que lhe resultaria no Nobel de Literatura do ano de 2010, La ciudad y los perros. O argu-

mento da narrativa está centrado nas questões de autoritarismo militar e educação, pois trata-

se de um colégio militar (Leoncio Prado), onde adolescentes recebem uma educação escolar -

equivalente ao ensino médio – baixo à duras disciplinas militares, a narrativa apresenta dife-

rentes histórias de alunos que são obrigados a conviver em uma forma de vida alienante que

não permite os seus desenvolvimentos como seres humanos, onde são constantemente subme-

tidos a humilhações e castigos.

Assim como a crítica de Llosa relata, as obras deste autor, busca tratar de questões

polêmicas, em La ciudad y los perros não seria diferente. Vargas Llosa critica a forma de vida

e culturas onde se valorizam determinadas condutas, como a violência, a valentia, a sexuali-

dade, a hombridade, o machismo, etc. que acabam bloqueando o desenvolvimento destes jo-

vens neste internato.

Em suma nos debruçaremos neste estudo para compreender a reconstrução da memó-

ria como resgate do silenciamento de vozes provocado pela repressão militar e os conflitos

decorrentes dela, investigando a hipótese de que através da narrativa ficcional as obras supra-

citadas possam estar reinventando/reinscrevendo a “outra” verdade histórica.

Pretende-se ao longo da análise posterior a ser feita a partir deste artigo, traçar um

panorama temporal sobre os conceitos de história e memória, que dialogam entre si em um

vínculo coerente entre a visão crítica da teoria Benjaminiana séc.XX e a crítica contemporâ-

nea séc.XXI.

Frente a estes comparativos, focalizaremos nos objetos artísticos aqui apresentados, a

fim de que se alcance respostas às indagações constitutivas dos objetivos que se apresentam a

seguir: Analisar de que forma Roa Bastos reescreve importantes períodos da história para-

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guaia. Apontar a relevância dos textos de Roa Bastos e Vargas Llosa enquanto desencadeado-

res de reflexões sobre os contextos socioculturais de seus países e da América Latina. Compa-

rar La excavación, Contravida de Roa Bastos e La ciudad y los perros de Vargas Llosa, a fim

de compreender relação de autoritarismo entre as obras e seu reflexo na reconstrução de uma

memória histórica. Observar como as narrativas recuperam um passado existente, porém não

“autorizado” pela historiografia. Compreender a representação ficcional do autoritarismo a-

través de espaços imaginários presentes nas obras.

Nos intriga compreender a memória como narrativa do eu e da coletividade, na busca

de um passado existente e não “autorizado” pela história. Almejamos ver como a narrativa

ficcional de Roa Bastos (em especial) e de Vargas Llosa recupera este passado, compreender

as ditaduras latino-americanas e o autoritarismo em seus espaços imaginários (Guerra do

Chaco, Túnel de Gondra, Viagem em Trem (interna e externa) cidade imaginária e Colégio

Militar Leoncio Prado) através do diálogo entre estes escritores contemporâneos. O foco prin-

cipal porém, dar-se-á entre os romances Contravida em análise comparativa à La ciudad y los

perros, onde observaremos os espaços de repressão e culturas condenadas na latino-américa.

3. Fundamentação

A fim de que possamos analisar a luz dos aspectos sócios históricos nas obras supra-

citadas, julgamos relevante que nossa análise inicial recaia sobre o os conceitos de história e o

entorno político social paraguaio e latino-americano. Uma vez que questões de memória,

lembrança e esquecimento permeiam a obra de Roa Bastos, estas temáticas serão analisadas

frente à latente problemática presente nas obras, a realidade político-social do Paraguai, país

assolado por recorrentes ditaduras e guerras.

Entende-se passado como um elemento temporal, que remete a tudo que ocorre ante-

riormente ao presente, independente de seu lapso temporal, uma vez que tenha sucedido antes

do agora/hoje pode ser considerado passado. É aí que age a memória, resgatar elementos que

passaram ou evitar o apagamento destes feitos, neste caso relevantes ao indivíduo. O reverso

também é elemento de nossas indagações, pois como veremos posteriormente, para alguns o

esquecimento é tão ou mais importante que o lembrar, pois este pode evitar males e dores que

a lembrança trás à tona, ainda que involuntariamente.

Em Sobre o conceito da história (1940) Walter Benjamin assevera que o passado não

pode ser apreendido tal como ele foi, ele é apreendido do ponto de vista do presente, “o pas-

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sado só se deixa fixar como imagem que relampeja irreversivelmente, no momento em que é

reconhecida”143, a história é uma releitura do passado a partir do presente.

Benjamim aponta esta como mais uma diferença entre o materialismo histórico e o

historicismo que enxerga o passado como uma sucessão de acontecimentos, um decorrente do

outro. Já o materialismo histórico entende o passado como algo que só pode ser compreendi-

do se levar em consideração o que veio depois.

O passado trazido à memória é um complexo de imagens dispersas em que para res-

gatar os fatos ocorridos é preciso interligá-las. Porém essa junção impossibilita recuperar o

passado em sua magnitude, pois estas “imagens” muitas vezes são insuficientes ou incomple-

tas. Esta pode ser considerada uma das razões pelas quais a humanidade buscou através de

desenhos, diários, pinturas, cartas, fotografias, narrativas em geral, “guardar” feitos passados.

De acordo com Pacheco, para Walter Banjamin “o passado é apenas uma imagem re-

construída a partir de fragmentos dispersos da verdadeira experiência humana com a tempora-

lidade.”144 Evidenciando que, na análise da história segundo Benjamin “O cronista [...] narra

os acontecimentos, sem distinguir entre os grandes e os pequenos, leva em conta a verdade de

que nada do que um dia aconteceu pode ser considerado perdido para a história”145, a história

é vista do ponto de vista dos vencidos e somente redimida da sua exploração e opressão a hu-

manidade poderá apropriar-se totalmente de seu passado.

Tentar compreender o passado é sempre conflituoso, Sarlo entende que este conflito

se salienta na “disputa” entre memória e história, pois segundo a autora nem sempre uma está

em acordo com a outra no que tange a reconstituição da lembrança e acredita que um “enten-

dimento entre ambas é um lugar comum.”

Não se prescinde do passado pelo exercício da decisão nem da inteligência; tampou-co ele é convocado por um simples ato de vontade. O retorno do passado nem sem-pre é um momento libertador da lembrança, mas um advento, uma captura do pre-sente.146 (SARLO. 2003 p. 9.)

143 BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de história. In ____. Magia e técnica, arte e politica: ensaios sobreliteratura e História da cultura. 6. ed. São Paulo: Brasiliense, 1993. p 224.144 Apud PACHECO, Elizabete. Augusto Roa Bastos: o fazer literário como interpelação da história paraguaia.Dissertação de Mestrado. Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre. 2006.145 BENJAMIN, Walter. Sobre... p. 223.146 SARLO, Beatriz. Tempo Passado: Cultura da memória e guinada subjetiva. São Paulo: Companhia das Le-tras, 2003. p. 9.

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Segundo Weinrich147, a junção de acontecimentos vistos como imagens isoladas, dá

forma à “força da imaginação” e tudo o que deve ser lembrado tem o seu lugar determinado

na construção desta paisagem que é a memória. Roa Bastos reconstrói em suas narrativas par-

te da história dos conflitos bélicos os quais passou seu país e alguns dos quais foi testemunha,

esta “força da imaginação” citada por Weinrich refaz uma história do ontem a partir das con-

cepções do hoje, o passado deixa de ser passado para se tornar presente e assim como Derrida

defende, não mais existe passado, pois este quando trazido à memória é o presente transfor-

mado pelas circunstâncias do agora. Desta forma os relatos históricos presentes na narrativa

de Bastos são inverossímeis? Dentre outras, é uma de nossas indagações.

4. A grande narrativa de Roa Bastos - desobediência ao discurso oficial

Para Krysinski148, Roa Bastos foi um homem que acima de tudo lutou pela liberdade

de expressão de seus conterrâneos com muita valentia e que com suas palavras “soube tradu-

zir através da literatura a crueldade da história e da condição humana em uma forma que revo-

lucionou o romance histórico e que colocou sua obra no topo da arte da narração”.

Testemunha das atrocidades ocorridas nos períodos de repressão política no Para-

guai, Bastos esteve sempre envolvido com questões políticas as quais objetivasse a liberdade

de seu povo, participou de confrontos civis durante a ditadura de Stroessner e através da lite-

ratura fez uso de sua grande arma contra as imposições do governo déspota controlou o país

por mais de 30 anos, a narrativa ficcional. Este instrumento quase que “denunciativo” é capaz

de através da arte literária, apresentar uma reconstrução histórica que por muitas vezes tende a

cobrir fissuras deixadas pelos documentos oficiais.

Em se tratando de ditaduras militares na latino-américa, segundo Beatriz Sarlo, a

memória foi o dever da Argentina posterior à ditadura militar e o é na maioria dos países da

América Latina. Ao citar o período de ditadura na Argentina, Sarlo apresenta uma análise da

memória como elemento fundamental nos períodos pós-repressão, onde antes não havia dis-

cussão aberta dos fatos ocorridos devido à censura.

147 WEINRICH, Harald. LETE Arte e crítica do esquecimento. Ed. Civilização Brasileira. 2001.148 KRYSINSKI, Wladimir. Augusto Roa Bastos: retrato em perspectivas. 2005. Revista USP. n. 67. p. 310 –316. Setembro/novembro. 2005.

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O testemunho possibilitou a condenação do terrorismo do Estado; a ideia do “nuncamais” se sustenta no fato de que sabemos a que nos referimos quando desejamos queisso não se repita.149

Através deste viés, Bastos escreve suas obras, testemunha de alguns fatos “históri-

cos" ocorridos em seu país, “reconstrói” a história através de suas narrativas, provocando a

história oficial e reavivando na memória de seu povo a trajetória histórica paraguaia e a alma

latino-americana.

En la obra de ficción los hechos históricos, el escenario mismo de la historia, consti-tuyen el marco de una nueva realidad; la realidad imaginaria. Y esta realidad crista-liza, o mejor dicho, se dinamiza y vivifica en símbolos y en mitos que reflejan otrahistoria no necesariamente igual o parecida a la que nos repite la historiografía do-cumental.150 ROA BASTOS, 1974.

O Paraguai como um país bastante “desfavorecido” da América Latina nos períodos

que sucederam a Grande Guerra ou Guerra do Paraguai tem marcado em sua história uma

trajetória de exploração, sofrimento, conflitos bélicos e repressão. O contexto em que nasce e

cresce Roa Bastos é cenário para o desenvolvimento de seu raciocínio crítico acerca de seu

entorno, de suas indagações acerca da liberdade de seu povo e do regime totalitário que per-

meia durante décadas este país.

Em se tratando de questões relacionadas à violência nas obras literárias, Ginzburg151

apresenta em seu artigo um estudo acerca das concepções e teorias de Hegel em comparativo

com as teorias de Theodor Adorno sobre a relevância e presença da violência na narrativa

literária, o enfoque neste trabalho é no gênero épico, entretanto compreende-se que estas teo-

rias podem embasar reflexões acerca da constante presença da violência nas obras de Bastos e

Llosa que se pretende analisar na dissertação. Hegel defende uma posição nacionalista favo-

rável à violência, esta visão justificada pelo “principio da necessidade” a qual compreende

que as ações violentas seriam inevitáveis, parte do pressuposto que tudo que acontece é por-

que tem que acontecer; esse princípio é fundamental para assegurar a unidade da forma.

Ginzburg cita Hegel:

Os acontecimentos que se realizam parecem depender absolutamente do seu carátere dos fins pretendidos, e o que nos interessa antes de tudo, é a legitimidade ou ilegi-timidade da ação no quadro das situações dadas e dos conflitos que delas resultam.

149 SARLO, Beatriz. Tempo... p. 20.150 CHAVES, Raquel. Entrevista com Roa Bastos. Diálogo, Asunción, 5 maio 1974. p. 33-7.151 GINZBURG, Jaime. Violência e forma em Hegel e Adorno. Revista Brasileira de Literatura Comparada. n.16.p.175 – 193. 2010.

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Para Hegel não há na violência em si mesma um problema moral, o que se avalia aí é

a legitimidade desta ação.

Adorno se opõe a esse principio uma vez que é um crítico indignado da violência,

principalmente no contexto pós-guerra, que ao situarmos com as obras que se pretende anali-

sar correspondem a esse contexto, desta forma entende que a arte só pode ser compreendida

através de seu contexto histórico, impedindo que haja um conceito minimalista e afastando-a

de um resumo generalizador. Estas reflexões caminham para um lugar diferente do que Hegel

e suas fundamentações são evidentemente marxistas e uma filosofia da historia contrária a

positivista. Adorno, portanto defende que para apontar problemas e contradições existentes na

sociedade é preciso viver a sociedade ou na sociedade, desta forma com um pensamento mui-

to afinado com o de Walter Benjamin vê a obra literária como uma elaboração do todo através

de partes que se relacionam entre si e com o todo; esta relação é limitada, pois no momento

em que se constitui um significado se perde outro, essa dialética é chamada de melancolia, ou

seja a inconclusão da obra como um todo fragmentado e que depende se seu contexto para

justificar suas ações.

Para Ginzburg “na contemporaneidade tem surgido algumas linhas de pesquisa vol-

tadas para as relações entre a cultura e a violência, e um componente de perplexidade se inte-

gra ao processo de avaliação estética das obras”152 nos questionamos neste caso se as narrati-

vas selecionadas de Llosa e Bastos exemplificariam ou não a teoria de Adorno, ou seja, se são

melancólicas e fragmentadas.

Para tentar alcançar uma resposta acerca destas suposições, conhecer um pouco mais

da crítica de Roa Bastos se torna indispensável, desta forma compreende-se melhor seu entor-

no e as peculiaridades de suas obras, uma vez que a narrativa deste autor é o foco principal

desta proposta de trabalho.

Segundo Saguier, compreender a literatura de Roa Bastos e a importância desta lite-

ratura em seu país é compreender a “trajetória de uma literatura profundamente marcada pelo

dramático signo da história”153. Esta “pequeña isla rodeada de tierra” como chamava Roa

Bastos que desde a colônia sofre pela escassa densidade demográfica e ausência de metais

preciosos, ficou de fora das rotas principais da conquistas, principalmente quando os europeus

perceberam que não era possível chegar às ricas terras de ouro e prata devido ao temível e

inabitável Chaco Boreal. Neste período a pobreza e o quase extermínio da população devido

152 Idem.153 SAGUIER, Ruben. Augusto Roa Bastos e a Narrativa Paraguaia Atual. Revista Letras. v. 25. p. 335 – 346,julho. 1976.

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ao fracasso na Guerra do Paraguai foi um dos principais fatores que tornou tardio o despertar

da literatura neste país em comparação com o resto do continente. Ademais dos problemas

sócio histórico que enfrentava a população, sendo estes a falta de liberdade e a injustiça social

causaram um “esmagador sentimento de frustração coletiva” como caracteriza Saguier, pois

segundo ele, frente a estes problemas a maior parte da literatura paraguaia foi escrita no exílio

e a que é escrita no país traz consigo “elementos impostos pelo temor”. Apresenta-se aí, um

dos fatores que nos permite analisar sua obra sob o viés da literatura de trauma.

Saguier em sua feliz colocação diz que principalmente quando se trata de literatura

paraguaia “Uma obra representa não somente o que diz, mas também o que deixa de dizer”.

Segundo o autor, ler a primeira obra de Roa Bastos, El trueno entre las hojas, é apre-

ciar até que ponto o poeta segue vivendo no contista, a poesia submerge na prosa em um vín-

culo naturalmente dependente.

Há paginas inteiras em que se descobre uma cadência, uma cadência rítmica intro-duzida na prosa. Do ponto de vista expressivo, Roa Bastos apela neste livro ao usode um expressionismo potente, conseguindo mediante profundas incisões, fortes tra-ços e chocantes oposições sobre uma realidade cujos matizes oscilam entre o brancoda inocência e o vermelho sangrento da violência.154

Em Roa Bastos existe uma vontade de transformar seu entorno, sua visão de mundo

pede uma mudança na base e converge com ela, tem uma visão conflitiva frente às falhas de

sua coletividade, desta forma trata-se de uma busca contra a podridão do meio e assim como

narra Saguier, “longe de cair numa caricatura limitativa, consegue um enfoque múltiplo e to-

talizador da realidade paraguaia.”

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154 Ibidem. p. 338.

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VOZES FEMININAS: A DOCE CANÇÃO DE CAETANA, DE NÉLIDA PIÑON, E EVALUNA, DE ISABEL ALLENDE

Roseméri Aparecida Back155

Prof. Dr. Marcelo Marinho156

Resumo: A presente pesquisa tem como objeto as representações literárias do poder e do cor-po, no plano das vozes poéticas femininas. Mulher escritora e suas personagens costumamrepresentar, no espelho polido da literatura, vivências empíricas resultantes de reclusão, con-flitos ou repressão. Tais vozes podem contribuir para que se construa e reconstrua o papel dasmulheres na história. Como objetos de análise, elegeram-se as obras A doce canção de Caeta-na (1987), de Nélida Piñon e Eva Luna (1997), de Isabel Allende. A escolha deste corpusdeve-se às convergências narrativas e intertextuais entre os dois textos, no que se refere aocontexto histórico, de conflitos de gênero e de luta pela emancipação feminina e social. Oreferencial teórico fundamental são os estudos de Daniel-Henri Pageaux, Pierre Bourdieu,Gerda Lerner, Michel Foucault e Antônio Candido.

Palavras-chave: Subjetividade. Consciência. Poder. Corpo. Escrita feminina.

O interesse por questões relativas à literatura, especialmente à literatura de autoria fe-

minina, é o ponto de partida para a execução deste trabalho. Parte-se do princípio de que o

texto literário é de central importância para o desenvolvimento da sociedade e para o cresci-

mento intelectual dos indivíduos.

Nesses termos, é significante ressaltar que o social desempenha papel fundamental na

construção de uma obra. Do ponto de vista teórico, a literatura, em termos gerais, tem tido

espaço na sociedade. No que diz respeito à literatura feminina, ela precisa ampliar seu espaço

próprio no contexto da literatura, especialmente por tudo o que ela representa.

Assim, este trabalho apresenta como objetivo geral a avaliação das representações lite-

rárias do poder, do corpo e da sexualidade, no plano das vozes poéticas femininas, em particu-

lar no que se refere àquelas cuja escrituração coincidiu com os acontecimentos históricos arro-

lados no século XX no Brasil e na Venezuela. Os fatos são enunciados por meio da memória e

de uma concepção representacional da literatura, em que ao texto é dado o papel de expressar

de forma realista o conteúdo das situações de vida.

Partindo destes pressupostos, o centro de interesse é o texto literário em prosa cujas

autoras criam uma produção relacionada ao contexto histórico, político e social daquele perí-

odo. Dessa forma, explica-se o interesse pelos escritos de Nélida Piñon e Isabel Allende. Mu-

155 Mestranda em Literatura Comparada pela Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões(URI) – Campus de Frederico Westphalen.156 Orientador

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lher escritora e suas personagens costumam representar, no espelho polido da literatura, vi-

vências empíricas resultantes de reclusão, conflitos ou repressão. Tais vozes podem contribuir

para que se construa e reconstrua o papel das mulheres na história. A partir disso, realizare-

mos estudos dos elementos condizentes à temática da mulher: sexualidade, corpo, poder e

contra-poder, observando esses temas nas principais personagens das obras.

As duas obras em estudo foram publicadas em 1987; mas A doce canção de Caetana

se relaciona ao período da ditadura no Brasil no período de governo do General Médice, espe-

cialmente, nos anos 70, período em que, no Chile, o primo-irmão do pai de Isabel Allende

assume o governo do país, mas que três anos mais tarde é morto e quem assume o país é o

general August Pinochet. Isabel acaba se exilando na Venezuela, país onde a ditadura já havia

acabado. Entretanto, a obra Eva Luna, mesmo que de forma implícita, refere-se à ditadura

Venezuelana ocorrida entre os anos 30 e o final dos anos 60. As autoras são situadas pela his-

toriografia literária como dos principais nomes da literatura latino-americana.

Nélida Piñon se estabeleceu pela dimensão, criatividade e significância de sua obra.

Em A Doce Canção de Caetana (1987), com um toque de humor e ironia, ela cria persona-

gens que ridicularizam e enlevam pela capacidade de revelar os mais intrincados desejos hu-

manos. O trabalho com o jornalismo ensinou Isabel Allende a usar a linguagem de forma

eficaz e a fez adquirir a facilidade para a comunicação, o que transparece em Eva Luna

(1987).

As mencionadas obras se caracterizam pela utilização de uma linguagem e de um con-

teúdo de tal maneira significante que passam a representar momentos, ações, comportamentos

e críticas a determinados padrões da sociedade. São histórias particulares do texto ficcional

que acabam entrelaçando-se na história coletiva.

Assim, torna-se possível degustar o fato literário, pois a literatura representa ambigui-

dade, mistério. E é através dos estudos de Literatura Comparada, conforme afirma Daniel-

Henri Pageux (2011), que podemos aproximar os fatos e textos literários para que sejam pas-

síveis de uma melhor compreensão e conhecimento.

O que necessita muitas vezes ser esclarecido é que realizar um estudo de literatura

comparada não é única e exclusivamente encontrar aspectos semelhantes entre os textos; mas

ele também se serve da busca das diferenças entre eles. Nas palavras de Pageux (2011), “o

comparatista estabelece relações, estuda permutas, reflete sobre os diálogos entre literaturas e

entre culturas. Ora, na base dessas práticas, destaca-se um elemento essencial: a diferença –

ou, com mais propriedade, o fator diferenciador (PAGEUX, 2011, p. 19).

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Nessa perspectiva, as duas obras apresentam os muitos eventos arrolados durante os

períodos ditatoriais nos países diretamente envolvidos nas narrativas, Brasil e Venezuela, nes-

te de forma não explícita. “- Dizem que há tortura no Brasil. Dão choque nos testículos e enfi-

am garrafas inteiras no rabo” (PIÑON, 1987, p. 253). “Después de un breve período de liber-

tades republicanas, teníamos otra vez un dictador. Se trataba de un militar de aspecto tan ino-

cuo, que nadie imaginó el alcance de su codicia” (ALLENDE, 1987, p. 70).

Contudo, a essência dos textos é a condição da mulher na sociedade ditatorial e patri-

arcal. Nélida e Isabel nos apresentam um universo cuja dominação é exercida pela mão mas-

culina. A Doce Canção de Caetana (1987) representa a fantasiosa força masculina relacionada

à potência sexual e na posse do corpo feminino. Eva Luna (1987) registra ditaduras e ditado-

res, manifestações de estudantes e operários. É o poder ditatorial e patriarcal exercendo o po-

der enquanto que à mulher restaria aceitar a condição de corpo subalterno.

Entretanto, tanto Caetana, a protagonista de Nélida, quanto Eva, personagem central

de Isabel, são mulheres que não aceitam a condição de seres subordinados e lutam pela condi-

ção de corpo liberado. Neste momento, pode-se afirmar, é que começam a apontar algumas

diferenças entre as obras.

Caetana é uma atriz que, depois de vinte anos, retorna à cidade, resgatando sentimen-

tos de seu amante Polidoro, personagem que se constitui a partir da visão patriarcal e do poder

político e econômico. Há também as prostitutas, batizadas Três Graças e a cafetina Gioconda,

que exercem o papel oposto de Caetana no que se refere à condição de dominação, pois Cae-

tana não aceita certos padrões impostos e luta pela realização de seus sonhos.

Já as Três Graças e a cafetina Gioconda admitem a situação de subordinação, são

vítimas da opressão do tempo, do sexo e dos homens.

- Polidoro merece ser contrariado. Ele é um ditador, disse Diana, distraída em pintaras unhas.- E não são os homens todos uns ditadores?Sebastiana recorreu à história do Brasil, dizendo:- Sempre foi assim desde o início da descoberta do Brasil. Começando pelos trêsimperadores que viviam lá em Petrópolis (PIÑON, 1987, p. 82).

Eva Luna (1987) nos apresenta uma garota resultado do subdesenvolvimento, do anal-

fabetismo, da pobreza, do poder ditatorial e patriarcal e de uma história muito conturbada;

mas ela não é só mais uma mulher, constrói um mundo com a memória e o resgata pela pala-

vra, tornando-se, quando adulta, escritora. É a própria Eva Luna personagem que passa, atra-

vés do poder da escrita, a reverter sua condição de ser uma mulher pobre, humilhada e sub-

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missa. Neste sentido, ela vai desembaraçando sua jornada de vida com as linhas da própria

memória e passa a revelar a força que tem para chegar ao estado de libertação.

Eva é apresentada como uma mulher que não se deixa abater pelas dificuldades que

surgem, especialmente pelos problemas que enfrenta pela sua condição de ser mulher. Sua

relação com Humberto Naranjo, comandante guerrilheiro, mostra claramente essa situação.

[...] él se consideraba un macho bien plantado, capaz de dirigir su destino, en cambiosostenía que yo estaba en desventaja por haber nacido mujer y debía aceptar diversastutelas y limitaciones. [...] Para Naranjo y otros como él, el pueblo parecía compues-to sólo de hombres; nosotras debíamos contribuir a la lucha, pero estábamos exclui-das de las decisiones y del poder (ALLENDE, 1997, p. 218).

Isabel Allende aborda a mesma temática que Nélida, como as questões relacionadas ao

poder patriarcal, ao corpo feminino e à sexualidade. No entanto, um aspecto diverso e pre-

ponderante em Eva Luna é a importância da memória para a constituição da personagem es-

critora de contos; uma vez que Eva se sustenta nos momentos vividos ou nas histórias que a

ela foram contadas para a construção de uma narrativa de forma intensa e natural.

Em ambos os livros, as questões da opressão da mulher podem ser compreendidas a-

través dos conceitos de Bourdieu (1999), pois para ele, a diferença biológica entre o corpo

masculino e o corpo feminino é a responsável pelas diferenças de gênero socialmente constru-

ídas.

Vale ressaltar que as personagens protagonistas das duas obras passam por transfor-

mações, são resultado de um regime patriarcal e autoritário, mas a condição sexual não é pre-

texto para a manutenção de uma vida estática, de conformismo com a situação. Seus corpos

representam a liberação e a libertação, são vozes que, através da literatura, podem transformar

a situação histórica e social.

Esse tipo de literatura está impregnado de acepções políticas e sociológicas e, ao pro-

cederem desta forma, Nélida Piñon e Isabel Allende contribuem para a produção literária fe-

minina, especialmente ao inscrever seus textos na história de forma que possam contribuir

para a correção do presente e para a construção de um futuro melhor, os quais estão direta ou

indiretamente relacionados com o passado.

Essas manifestações artísticas que contribuem para a reflexão acerca da situação pas-

sada e do presente são e devem ser reconhecidas devido a sua importância como textos refle-

tores da dimensão estética, mas acima de tudo social. Assim como assegura Antonio Candido

(2000), o importante é perceber a relação de dependência e de transformação que a obra de

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arte exerce sobre a realidade, mesmo quando sua intenção seja retratá-la tal como ela é, pois

ao fazer isto, o artista está usando a mimese: a literatura como representação da realidade.

Dessa forma, ao se valerem de subsídios que revelam momentos e ocorrências da soci-

edade, as escritoras estariam cooperando para que o senso crítico social fosse despertado. Nas

palavras de Antonio Candido (2000), o escritor, através da arte, “produz sobre os indivíduos

um efeito prático, modificando a sua conduta e a sua concepção do mundo, ou reforçando

neles o sentimento dos valores sociais (CANDIDO, 2000, p. 19).

Com base nisso, é fácil inferir que os romances A Doce Canção de Caetana, de Nélida

Piñon e Eva Luna, de Isabel Allende são obras de autoras conscientes de seu papel social. São

textos estéticos que provocam prazer, mas acima de tudo, conhecimento por seu conteúdo;

sendo capazes de exprimir anseios individuais e coletivos. As personagens protagonistas são

resultado de um regime patriarcal e autoritário; entretanto, não representam vozes femininas

oprimidas e vitimadas, pelo contrário, simbolizam força libertária e libertadora.

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LITERATURA E PSICANÁLISE EM AMAR, VERBO INTRANSITIVO

Neides Marsane John Bolzan157

Prof. Dr. Robson Pereira Gonçalves158

Resumo: Este trabalho tem por objetivo revisar a fortuna crítica de Mário de Andrade, rela-cionando-a ao seu idílio: Amar, verbo intransitivo, a fim de compreender o contexto no qualfoi escrita a obra; evidenciando por que amar passa a ser um verbo intransitivo; qual a razãoda narrativa ser denominada de idílio, em vez de romance; qual a relação que há entre Máriode Andrade e Freud; bem como realizar uma reflexão sobre a teoria dos afetos.

Palavras-chave: Mário de Andrade. Amar, verbo intransitivo. Afetos. Freud.

O romance psicológico brasileiro representa um marco dentro da história da literatura,

uma vez que reflete e insere em seu contexto o resultado de descobertas científicas e, ao

mesmo tempo, desconstrói tudo o que até então havia de referência. O Modernismo é o mar-

co, e um dos principais nomes dos pensadores que se preocupou em organizar esteticamente

esse período foi Mário de Andrade, que em Amar, verbo intransitivo: idílio retrata esse con-

texto de mudança, mas que foi pouco compreendido.

O escritor modernista consegue projetar suas ideias em favor da concretização de um

projeto estético, o qual visava discutir a linguagem e a função da literatura, o papel do escri-

tor, as ligações da ideologia com a arte, assim como formar uma literatura nacional, que re-

descobrisse o país, renovando os procedimentos literários. Luciana Afonso Gonçalves, reto-

mando Lafetá, afirma que é esse conjunto de qualidades que coloca Mário de Andrade “tão à

frente dos homens de sua época”. 159

O autor de Amar, verbo intransitivo constrói a narrativa sob a perspectiva da reflexão

sobre o ato criador da obra literária, o qual principia na psique e é influenciado pela cultura a

que o artista tem contato ou que ele internaliza. O primeiro aspecto a que ele se inclina é sobre

os elementos que são empregados na criação da narrativa. No caso de Amar, verbo intransiti-

vo os elementos são representações metafóricas, semelhantes à representação do sonho, já que

“o sonho é uma realização (disfarçada) de um desejo (reprimido)”,160 segundo Freud. A per-

sonagem principal Fräulein não é escolhida por acaso, não é em vão que ela é imigrante tem-

157 Neides Marsane John Bolzan é mestranda em Literatura Comparada na URI/FW. E-mail [email protected] Orientador159 GONÇALVES, Luciana Afonso. Tese: Um grito chamado desejo: a voz na criação polifônica de Mário deAndrade. 2006, p. 20.160 FREUD, 1996, p. 224.

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porária alemã, professora de piano, de língua estrangeira alemã, e principalmente professora

de iniciação sexual, porque ela está encarregada da condução do rumo narrativo, juntamente

com o narrador. Em vista disso, Fräulein é professora de linguagens, nesse romance/idílio. O

trajeto percorrido pela personagem alemã deve ser decifrado, como o mundo simbólico do

sonho, para encontrar o sentido.

Por apresentar o envolvimento amoroso entre a professora e o adolescente Carlos, a

crítica de 1927, época em que o romance foi publicado, considerou Amar, verbo intransitivo

“como uma ficção que meramente se destinava a difundir as escandalosas descobertas de

Freud a respeito da sexualidade”.161No entanto, Mário de Andrade não se limitou apenas aos

estudos relacionados à sexualidade, mas também a todas as descobertas sobre o inconsciente,

a começar pela estruturação do romance, que sendo uma expressão linguística, já estava proje-

tada nos novos moldes.

Mário de Andrade acredita em que se o homem pode dizer o que pensa é porque há

uma estrutura chamada linguagem, a qual tem sua origem na mente e sofre influência externa.

De forma análoga, a estrutura narrativa é criada na mente, sofrendo influência das relações

familiares, políticas, econômicas e sociais, além de representar um documento enigmático, o

qual pode ser desvendado por diferentes pessoas em diferentes épocas.

Em vista disso, as personagens e o ambiente escolhido para fazerem parte de Amar,

verbo intransitivo não foram escolhidos aleatoriamente: a estrutura que existe no mundo real

foi reaproveitada e transposta para atuar no ficcional, porque no romance psicológico os dois

mundos se entrelaçam, e passam a dar a impressão ao leitor de que a obra não é imitação, mas

realidade. Esse processo de construção é explicado por Freud, por meio da estrutura dos pro-

cessos psíquicos.

Na visão psicanalítica, de Freud, a relação entre linguagem e expressão ocorre por

meio de um processo inconsciente, o qual se articula “de forma específica, estranha à lingua-

gem que falamos”,162 porque se estrutura a partir de símbolos, e se manifesta em sintomas: os

chistes, os atos falhos, as obras de arte e os sonhos. Da mesma forma que os sintomas caracte-

rizam o indivíduo, assim também, na obra de arte eles revelam a personagem, ou seja, os seres

reais ou fictícios se personificam para os outros pela repetição de pulsões: os sintomas. Devi-

do ao processo psíquico de construção do indivíduo/personagem ser o mesmo, é que a narrati-

va parece ser realidade.

161 GONÇALVES, Luciana Afonso. Tese: Um grito chamado desejo: a voz na criação polifônica na produção deMário de Andrade. 2006, p. 117.162 BIRMAN apud BARTUCCI, 2009, p. 190.

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O ser humano se constrói sob o comando do aparelho mental, o qual trabalha sob o

“princípio da constância”, isto é, atua “no sentido de manter baixa a quantidade de excita-

ção”,163 o que produz sensação de prazer, enquanto que estímulos externos e internos produ-

zem ao cérebro sensação de desprazer. Assim, quanto mais equilibrado estiver o nível de exci-

tação mental, mais acomodado será o indivíduo, uma vez que o que o impulsiona à ação é a

vontade de satisfazer desejos. Como os níveis de excitação oscilam, surge uma “diferença de

quantidade entre o prazer da satisfação que é exigida e a que é realmente conseguida, [o] que

fornece o fator impulsionador que não permite qualquer parada em nenhuma das posições

alcançadas, mas [...] pressiona sempre para frente, indomado”,164 é a pulsão de vida, conduzi-

da pelo desejo à pulsão de morte, que é a realização do desejo. Em meio a esse processo de

pulsão, está a pessoa ou a personagem, que se configura mediante a manifestação de sintomas

e revela sua linguagem nos afetos e no resultado do trabalho desenvolvido pela consciência.

Porque a consciência trabalha com o inconsciente, é preciso que a mente torne o mate-

rial inconsciente conhecido, “tornando-o consciente”.165 No entanto, há sempre “algum mate-

rial que permanece desconhecido”,166 enquanto que as ideias do pré-consciente são “coloca-

da[s] em vinculação com representações verbais”.167 A partir dessa explicação de Freud,

compreende-se que a divisa entre o inconsciente e o pré-consciente é a linguagem verbal. En-

quanto o pré-consciente trabalha duplamente transformando a linguagem em palavras, ou co-

dificando-a em símbolos, os sentimentos passam livremente do exterior para o interior e vice-

versa, sem passar pela censura. Quando em uma situação ocorre um lapso de linguagem, é

porque o sentimento falou mais alto ou mais rápido do que a censura, que deveria ter se mani-

festado.

A caracterização do texto em idílio pode ser compreendida, no processo criativo seme-

lhante a um lapso de linguagem: o termo “idílio” não passou pelo filtro da censura do movi-

mento modernista, porque ele foi mal interpretado pelos modernistas. No entanto, a intenção

poderia ser buscar algo esquecido ao mundo daquele momento, que provocasse um efeito

semelhante ao ato falho, quando ele ocorre: a surpresa. Dessa forma, Mário de Andrade re-

montando o princípio das construções narrativas, associa literatura e psicanálise no entrela-

çamento da estrutura psíquica do ato de narrar com o modelo de idílio que há muito havia sido

criado. A manifestação de um pensamento que prende pela forma de construção, revelando os

163 FREUD, Sigmund. Obras psicológicas completas de Sigmund Freud: Além do princípio de prazer. Vol. XVI-II. Rio de Janeiro: Imago, 1996, p. 19.164 Ibidem, p. 52-53.165 Idem, Ibidem, p. 33.166 Idem, Ibidem, p. 34.167 Idem, Ibidem, p. 34.

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aspectos afetivos valorizados na época é posto em evidência. A classificação em idílio e não

romance provocou reflexão sobre o curso que estava tomando a literatura brasileira, sugerindo

uma volta ao passado, um retorno ao inconsciente “despoluído” de influências estrangeiras,

com poder de criação, próprio do ser humano, o que traria uma criação influente, apesar de

genuinamente brasileira.

Telê Porto Ancona Lopez168 escreve, em notas da 16ª edição, sobre o primeiro “ro-

mance” de Mário de Andrade: Amar, verbo intransitivo – idílio. Esclarece sobre o que há por

trás desse enredo, ao qual o próprio Mário não quis nomear de romance, mas de idílio; infor-

ma a relação metafórica entre as palavras que compõem o título, o que também provoca senti-

dos diferenciados e relevantes para uma análise de abordagem psicológica.

Na visão de Lopez, Amar, verbo intransitivo foi classificado como “idílio”, não apenas

devido ao tema que desenvolve, por revelar experimentação e autoproblematização, mas por-

que em uma história de amor, tematiza a descoberta do amor e não o seu desenrolar de manei-

ra sensível. A intransitividade do verbo amar também foi problematizada na estrutura da nar-

rativa e também ao opor-se ao que a gramática orienta: amar é um verbo transitivo. Mário de

Andrade, ao classificar amar como verbo intransitivo, faz referência ao processo inicial de

amor que se dá no ser humano: o narcisismo. O narcisismo é uma forma primitiva de amor,

porque é caracterizado pela “indistinção inicial entre sujeito e seu objeto de amor e de apoi-

o”.169

O narcisismo primário implica um estágio de desenvolvimento no qual o ego seja in-

vestido, processo ao qual Freud denomina de “autoerotismo”, isto é, momento em que o ego

precisa de “uma nova ação psíquica”, a fim de provocar o narcisismo, explica Paulo de Tarso

Ubinha.170 Essa fase de construção do ego, “que representa o que pode ser chamado de razão

e senso comum” 171 vem a ser fundamental na construção do sujeito, porque é a primeira for-

ma de amor que se manifesta no ser humano.

Mário de Andrade com esse processo tenciona provocar uma pulsão nos escritores

brasileiros, sem objeto externo definido, mas que o objeto fosse o despertar de um amor pró-

prio, oriundo da visão de sua imagem como obra resultante dos processos mentais também

individuais. Em Amar, verbo intransitivo, Mário de Andrade expressa esse processo narcísico

com a personagem alemã Fräulein, cujo ego reflete a marginalidade em que a alma feminina

168 Cf. LOPEZ, Telê Porto Ancona.In: ANDRADE, Mário. Amar, verbo intransitivo – idílio. 1995, p. 5.169 UBINHA, Paulo de Tarso; Rooservet Moíses Smeke Cassorla. Estudo: Narciso: polimorfismo das versões einterpretações psicanalíticas do mito. 2003.170 Ibidem.171 FREUD, 1996, vol. XIX, p. 38.

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dela vive, por ser dominada pelo poder masculino e encontrar-se num mundo fantasiado, que

não existe porque é produto da mente conduzida. Dessa forma, na obra está a sugestão de mu-

dança de re-estruturação mental, objetivando que o escritor trabalhe com o que é de caráter

brasileiro, a fim de que o indivíduo seja o espelho do que se passa em seu interior, identifi-

cando-se com essa imagem.

Mário de Andrade em Amar, verbo intransitivo ainda emprega o recurso de aproximar

a narrativa da fala, a fim de mostrar que a língua se torna instrumento de comunicação no

momento em que serve de veículo ideológico/cultural/afetivo dos falantes. Na perspectiva de

Mário de Andrade, parece que a língua deve estar a serviço da expressão das ideias, e princi-

palmente do sentimento que permeia as ações do povo brasileiro. A língua tornar-se, assim,

um signo vivo, capaz de transmitir ao longo do tempo a época vivida da maneira como se as

pessoas a estivessem presenciando, ou assistindo a ela, como se fosse um filme. O autor apro-

veita a musicalidade presente nas palavras para mostrar que a língua portuguesa é muito rica

na sonoridade, que a fala brasileira contém uma musicalidade característica. Como exemplo

disso há o nome da personagem principal Elza/ Fräulein. O som da palavra Fräulein sensibili-

za muito mais do que Elza. Elza é dura, fria, enquanto Fräulein sugere aproximação, sedução.

Em vista desse efeito, Elza às vezes é chamada de Fräulein e em outras não.

Outro aspecto abordado pelo autor, que mexe com as inquietações da existência hu-

mana é aquele relacionado ao desejo. Da mesma forma que Mário de Andrade, como escritor,

apresenta o desejo de tornar real um desejo, ou tornar um sonho realidade, exemplificando um

modelo ético e estético para a criação literária brasileira, na obra por ele escrita pode-se per-

ceber situações que ilustram desejos. A situação “vivida” por Fräulein é um exemplo: ela

vem ao Brasil para juntar dinheiro suficiente para retornar à Alemanha, local onde pretende

constituir um lar feliz. O desejo de Fräulein produz a pulsão que a faz vir ao Brasil e a faz

suportar a dor de submeter-se a uma profissão desonrada, mas que ela insiste em dizer que é

igual a qualquer outra. Ela é prostituta, mas diz que é professora de língua alemã e de piano;

ensina também a linguagem do amor “o amor como deve ser. [...] O amor sincero, elevado,

cheio de senso prático, sem loucuras” 172

Essa situação, marcada pelo desejo faz parte da trama que Mário de Andrade demons-

tra no processo de construção da obra Amar, verbo intransitivo. O autor cria uma narrativa

psicológica que pode evidenciar o processo psíquico inconsciente, comprovando o que Freud

172 ANDRADE, Mário de. Amar, verbo intransitivo. Rio de Janeiro: Agir, 2008, p. 56.

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explica a partir de estudos: a linguagem é a chave para a compreensão de cada um e do uni-

verso, que se manifesta por meio dos afetos.

Na estrutura do livro: sem capítulos definidos, sem numeração de seqüências ou títulos

também se vê uma construção que emprega cenas que se apresentam como "flashes", resga-

tando o passado, ou sendo apresentadas pelo narrador, explica ainda Lopez173. A separação

dos episódios, a mudança do cenário e de espaço, e a passagem do tempo fornecem a ideia de

sequência solta e a divisão da narrativa em flagrantes. Esse recurso é empregado para colocar

as cenas como numa atmosfera de cinema: interrompidas com digressões, às vezes ambivalen-

tes, que desenham metáforas, com as quais representa cenas construídas pela imaginação. O

narrar cinematográfico de romance moderno, combinado com a reflexão literária põe em diá-

logo várias vozes, o que torna o romance polifônico. Além disso, a atmosfera de cinema e a

polifonia relacionam-se mais uma vez com a estrutura do inconsciente, ponto chave dessa

obra de Mário de Andrade.

Amar, verbo intransitivo é considerado, segundo Shirley de Souza Gomes Carreira,

uma metanarrativa, porque

é uma forma textual de autoconsciência do processo do narrar que revela a ficçãocomo artefato, como um construto do autor. [...] Por ter trânsito livre entre o real e oimaginário, ela invade o mundo aparentemente autônomo da estória, estabelecendorelações dialógicas constantes, que conduzem o leitor a perceber a obra não comoproduto mimético, mas como o resultado da interpretação dos discursos do real. 174

Em vista de apresentar essa complexidade, Amar, verbo intransitivo foi uma obra acei-

ta na década de 20 pela crítica modernista, mas atacado pelos passadistas. E apenas na década

de 40 seu valor foi reconhecido pela geração de escritores da época. Em vista desse reconhe-

cimento, foi traduzido para o inglês, foi inspiração para o filme de Eduardo Escorel, Lição de

Amor e atualmente vem sendo objeto de estudos universitários. Essa obra foi e continua atual

e até mesmo revolucionário, é um grande romance, conforme avaliação de Lopez,175 mas,

infelizmente muito pouco lido e estudado, mas que pode ter como foco de análise muitos te-

mas como: a ideologia dos expressionistas e seus precursores, os deserdados da sorte, os pá-

rias, os loucos, a mulher, o estrangeiro marginalizado, a denúncia da burguesia, a valorização

da sexualidade humana liberta da idéia de pecado, os afetos e outros mais.

173 Cf. LOPEZ, 1995, p. 9174 CARREIRA, Shirley de Souza Gomes. Artigo: Amar, verbo intransitivo: a dialética dos olhares. 2002, s/p.175Cf. LOPEZ, Telê Porto Ancona. In: ANDRADE, Mário de. Amar, verbo intransitivo – idílio. 1995, p. 2.

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Essa ampla possibilidade de leitura torna a literatura, na visão de Roland Barthes, “u-

ma mensagem da significação das coisas e não o significado das coisas”.176 Ou ainda, conso-

ante o mesmo autor, “toda escrita é uma impostura que ele [o escritor] tenta transformá-la em

jogo”;177 um jogo de significados, cabendo a cada leitor dar o sentido que melhor cabe, a par-

tir da situação em que se encontra e das condições de que dispõe.

Bonicci também afirma que “a literatura é um lugar no qual a relação com a própria

identidade é fundamental para se compreender o sentido de um texto”.178 Isso significa que o

leitor dialoga inteiramente e durante todo o tempo com o texto, sendo fundamental nessa rela-

ção o que cada um tem internalizado.

Assim, conhecendo-se o processo de organização do pensamento, compreende-se o de

narrar, uma vez que a linguagem verbal, carregada de afetos é comum aos dois. Apesar de se

saber que os afetos são capazes de comandar o pensamento, o pensamento não tem poder de

controlar os afetos, a não ser que o pensamento tenha se transformado em linguagem verbal,

adquirindo assim força capaz de provocar sentimentos por meio da leitura dessa manifestação

verbal. Por isso, em Amar, verbo intransitivo, a leitura que pode ser feita do texto, carrega e

provoca afetos, principalmente por se aproximar da maneira como se estrutura a fala. O dito e

o sugerido é o que organiza a estrutura desse romance/idílio do narrador, que é o processo

afetivo que produz o encadeamento da narrativa e o texto, como realização do desejo de Má-

rio de Andrade.

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FREUD, Sigmund. Obras psicológicas completas de Sigmund Freud: Além do princípio deprazer. Vol. XVIII. Rio de Janeiro: Imago, 1996.

176Cf. BARTHES, apud BONICCI, 2009, p. 148.177 Cf. BARTHES, apud BONICCI, 2009, p. 148.178 BONICCI, 2009, p. 204.

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____ Obras psicológicas completas de Sigmund Freud: O ego e o id e outros trabalhos. Vol.XIX. Rio de Janeiro: Imago, 1996.

____ Obras psicológicas completas de Sigmund Freud: A interpretação dos sonhos (primeiraparte). Vol. IV. Rio de Janeiro: Imago, 1996.

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IMPASSES E CONTRAPONTOS NA FORMAÇÃO DO SUJEITO-LEITOR: UM DI-ÁLOGO ENTRE THEODOR W. ADORNO E PAULO FREIRE

Priscila Monteiro Chaves179

Prof. Dr. João Luís Pereira Ourique180

Resumo: O processo de formação de sujeitos leitores, ainda que constitua-se em uma proble-mática já conhecida, ainda sofre com determinados impasses. Percebe-se que o mesmo temsido bastante discutido no campo da linguística bem como no da literatura, porém, ainda énotória uma preocupação com o desenvolvimento de uma técnica em um primeiro momentopara que após tal aquisição se dê início à formação. Carência bastante corrente também vemsendo a leitura alienada de posicionamento crítica do leitor, fazendo desta habilidade um atodescompromissado, à mercê de qualquer espécie de manipulação de controle social e destaforma não emancipador. Em virtude de tais precariedades é que nestes e em outros aspectos épossível contar com as reflexões de Theodor Adorno e Paulo Freire, as quais contrapõem aspráticas pedagógicas calcadas no fetiche pela técnica com fim em si mesma, negando a peda-gogia reducionista de trabalho com um método existente por si só, visando assim a uma for-mação de leitores de fato, autônomos que não pratiquem tal habilidade somente no contextoescolar, sendo estes sujeitos do processo de leitura.

Palavras-chave: Alfabetização. Técnica. Teoria adorniana.

Desde algum tempo a escola tem sido a maior responsável pelo desenvolvimento da

prática de ler e escrever, responsabilidade que começa desde os anos iniciais, em que, errone-

amente, ainda há a expectativa de um processo delimitado, como se ao término desse(s) hou-

vesse um ponto final no processo de alfabetização. Esses falsos pressupostos linguísticos e

sócio-culturais ainda permeiam a área do processo de alfabetização, caracterizando-a como

uma aprendizagem desprovida de caráter político, assim, aprender a ler e escrever é visto co-

mo uma aquisição de um instrumento para um longínquo acesso ao conhecimento, descartan-

do a alfabetização como processo formador de pensamento. Tal situação evidencia que a lei-

tura e a escrita são tratadas como um estado, ignorando assim o conhecimento empírico que o

discente já trás consigo antes desse momento.

A partir de estudos acerca da aquisição da escrita impulsionados por Emília Ferreiro

bem como das discussões em alta acerca do termo letramento, principalmente contidas nos

escritos de Soares, Tfouni, Teberosky, Lener e a própria Ferreiro, é possível pensar a escrita

como um conjunto de práticas sociais, que revestem-se de significação política. Da mesma

forma, que no contexto social, alfabetizar é também dar voz ao sujeito, e principalmente favo-

179 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em História e Filosofia da Educação pela Universidade Federal dePelotas e bolsista CAPES.180 Orientador

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recer meios críticos de participação na sociedade em que vive. Em contrapartida, a aquisição

de uma técnica no contexto escolar ainda configura uma conquista indispensável ao educando

e sua dimensão instrumental continua sendo quesito obrigatório nas avaliações, atribuindo à

competência de codificação a condição de legítimo conhecimento.

Nesse mesmo sentido, a pesquisadora e coordenadora do GEAL, Grupo de Estudos e

Pesquisas sobre Alfabetização e Letramento da USP, Silvia Gasparian Colello manifesta-se de

maneira introdutória ao problema:

Parece indiscutível que as crianças de nossa sociedade devem aprender a ler e a es-crever. No entanto, se perguntarmos aos pais e educadores por que e para que alfa-betizar, encontraremos, com certeza, respostas vagas, por vezes incompletas e atéparadoxais.181

Fator que faz com que a lectoescrita se coloque a serviço dos mesmos preceitos que

limitam a compreensão da complexidade social, fazendo do educando mais um mecanismo de

negação da autonomia do sujeito, que nesta sociedade prenhe de ambiguidades, passa a ser

guiado pela lógica calcada na produtividade/reprodução, em concordância com os moldes já

estipulados pelo sistema dominante. É bastante provável que alguns dos fatores que revigoram

esse quadro sejam os que seguem na argumentação de Colello, quando prolonga-se:

as expectativas de ensino da língua escrita são tão imprecisas quanto a própria com-preensão do alfabetizar. A despeito de boas intenções, as práticas pedagógicas pati-nam em concepções restritivas, por vezes equivocadas, modismos mal assimilados emétodos inadequados182.

Esta inquietação da autora vem sendo legitimada em virtude da maneira como são

impostas novas teorias e métodos de alfabetização, potencializados com o advento do letra-

mento, quando um cânone que é cobrado às escolas sem preparação alguma, sem que estes

mesmos órgãos governamentais que o impuseram dessem ferramentas concretas para o pro-

fessor adotar um conjunto de práticas, e fundamentos, inerentes a tal conceito. Sem que este

seja capaz de assumir como seus os projetos propostos pela escola (ou pelo governo).

Assim sendo, a periculosidade aqui parece ser ainda maior, uma vez que Moraes183

alerta à ilusão de mudança de paradigma educacional apenas pela utilização de outras roupa-

gens nas velhas teorias, visto que o aluno permanece na posição de mero espectador do pro-

181 COLELLO, Silvia M, Gasparin. A escola que (não) ensina a escrever. São Paulo, Paz e Terra, 2007. p. 27.182 Idem.183 MORAES, Maria Cândida. O paradigma educacional emergente. Campinas, SP: Papirus ,1997.

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cesso de formação, o plano é enganador, principalmente com o avassalador avanço das tecno-

logias, em que a maioria pouco fazem para propiciar ao aluno que seja sujeito da atividade de

leitura. “A realidade produz a ilusão de desenvolver-se para cima e, no fundo, permanece sen-

do o que era”.184

De maneira global, a concepção que se tem a respeito da aquisição da lectoescrita re-

laciona-se a um molde “linear e positivo de desenvolvimento, segundo o qual a criança apren-

de a usar e decodificar símbolos gráficos que representam os sons da fala, saindo de um ponto

x e chegando a um ponto y”.185 Se a hipótese da linguista é verossímil, é justificável dizer que

o processo de formação do leitor também sofre com os falsos pressupostos pedagógicos res-

ponsáveis pela inversão de precedência, ou primazia, dos princípios saber como e saber que,

emersos de uma “sabedoria tradicional da prática educativa atual que enfatiza que onde quer

que o saber como seja de importância crucial, o saber que é uma perda de tempo”186. Dessa

forma, a maneira tradicional que se lança mão “para a aquisição de habilidades para ler e es-

crever, é a atividade motora”187. Tomando o ensino como intervenção e o aparato teórico co-

mo imposição autoritária, trazendo como consequência a perda da experiência possível por

parte do sujeito.

Adorno escreve em meio a uma sociedade capitalista de industrialização avançada e

sua persistência na ameaça do fascismo contida em sociedades aparentemente democráticas,

seu enfoque no impacto filosófico devastador do Holocausto e seu constante ceticismo no que

concerne ao provável aprimoramento dos homens por meio do desenvolvimento técnico são

claramente impulsionados pela interpretação do empirismo cético de Donde Hume, além de

persuadidos pela aversão aos céticos da teoria kantiana - uma linhagem de nômades que recu-

sa qualquer fixação sólida ao chão188 – pois o filósofo duvida do desprezo a um gênero de

pesquisa que não pode ser tratado com indiferença pela espécie humana, bem como do cami-

nho seguro da ciência, tornando incertas as posições do racionalismo dogmático. Alguns co-

mentadores, como Oswaldo Giacoia Junior189, apontam em seus estudos a uma boa leitura de

Martin Heidegger, (ainda que entre eles houvesse alguns pontos de divergência), assumida em

184 ADORNO, Theodor. Palavras e Sinais: modelos críticos 2. Tradução de Maria Helena Ruschel. Petrópolis,Vozes, 1995b. p. 56.185 TFOUNI, Leda Verdiani. Letramento e Alfabetização. 9. Ed. São Paulo, Cortez, 2010. p. 21.186 BERTHOFF, Ann E. Prefácio In: FREIRE, Paulo e MACEDO, Donaldo - Alfabetização: leitura do mundo,leitura da palavra. São Paulo/Rio de Janeiro: Paz e Terra,1990. p. XVI.187 Idem.188 KANT, Immanuel. Crítica da Razão pura. Tradução de Manuela Pinto dos Santos e Alexandre FradiqueMorujão; Introdução e Notas de Alexandre Fradique Morujão. 3. ed. Lisboa : Fundação Calouste Gul- benkian,1994.189 JUNIOR, Oswaldo Giacoia. Ética, Técnica e Educação. In: PUCCI, Bruno; GOERGEN, Pedro; FRANCO,Renato. (Orgs.) Dialética negativa, estética e educação. Campinhas SP, Alínea, 2007.

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seus escritos pelo próprio Adorno, no que concerne ao uso desmesurado da técnica. Uma vez

que o influente filósofo alemão entendia que esta teria sua razão de ser somente no domínio

do desocultamento, isto é, da verdade.

Incutido por essas revoluções na teoria do conhecimento humano, Theodor W. Ador-

no questiona-se quanto ao uso desmedido da técnica, que toma o sujeito como mero objeto de

dominação, impondo-lhe uma adaptação ao sistema positivo. Plausivelmente alegando “contra

isso que, nas esferas espirituais, como na arte e, principalmente, no direito, na política e na

antropologia, não se avança com o mesmo vigor que nas forças materiais”190, e recorrendo a

Auschwitz a fim de compreender as causas que levaram uma nação civilizada a tal barbárie e

questionar o acalentamento perante o acontecimento. Contudo, vale lembrar que ele apreende

os perigos dessa reificação tecnológica das relações humanas como persistentes muito para

além do fracasso da experiência nazista.

O raciocínio filosófico faz com que Adorno construa pressupostos que desconfiem da

relação que se tem entre a visão científica do mundo e os homens, provocando com seu po-

tencial discursivo outros perguntas igualmente inquietantes. Em um primeiro momento: Téc-

nica --- para quê? 191

Não se sabe com certeza como se verifica a fetichização da técnica na psicologia in-dividual dos indivíduos, onde está o ponto de transição entre uma relação racionalcom ela e aquela supervalorização, que leva, em última análise, quem projeta umsistema favorito para conduzir as vítimas a Auschwitz com maior rapidez e fluência,a esquecer o que acontece com essas vítimas em Auschwitz.192

O termo fetichização, expressa a alienação do trabalhador, em que sua força de traba-

lho é convertida em mercadoria, em valor de troca. O fetiche, por sua vez, consiste em um

plano enganador, o qual quer transformar o que não é natural em natural. Assim, a força do

trabalho humano não se originou como mercadoria, converteu-se em tal através das transfor-

mações sócio-históricas. Ainda que a citação seja de um dos mais recentes texto, esse concei-

to é melhor focado por Adorno nos seus estudos sobre a música e a regressão da audição, nos

quais ele analisa a técnica em seu conjunto social, dessa forma, o fetiche pensado por Adorno

ocorre quando, em primazia a uma simples reação, a técnica perfeitamente acabada substitui

a perfeição da sociedade (1999).

190 ADORNO, Theodor. Palavras... p. 55.191 Estrutura da questão construída em alusão a um dos capítulos da obra póstuma de Adorno Educação e Eman-cipação: Educação --- para quê? (1995).192 ADORNO, Theodor W. Educação e Emancipação. Tradução Wolfgang Leo Maar. Rio de Janeiro, Paz eTerra, 1995a. p. 133.

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Neste caso, a razão mais plausível de questionar a capacidade de juízo político desses

estudiosos enquanto estudiosos, que trabalharam em prol de Auschwitz, não é a formação

moral, (pela hipotética possibilidade de absterem-se da criação de tais armamentos), nem

mesmo sua inocência (pela ignorância quanto a sua aprovação ou não de tal utilização), e sim

por habitarem em e contribuírem com um mundo onde as coisas não são discutidas, e a capa-

cidade de pensar perdeu sua importância primeira. Principalmente quando Hannah Arendt

sustenta que tudo o que os homens fazem, sabem ou experimentam só têm significado, só têm

sentido, a partir do momento em que podem ser discutidos (1997), isto é, na medida em que

se tornam atos políticos.

Essas questões postas pelo próprio Adorno, ou inferidas através de seu discurso, são

sugestivas de algumas outras ainda: Como pode o homem, desde sua iniciação escolar, ser

capaz de não pensar, não questionar e não compreender aquilo que, no entanto, é capaz de

executar? Se “durante muito tempo, esses seres, que estavam se fazendo, escreveram o mundo

mais do que falaram o mundo. Tocavam diretamente o mundo e agiam diretamente sobre ele,

antes de falarem a seu respeito”193, é possível deduzir um suposto desacordo entre aquilo que

se faz e aquilo que se pensa?

A reflexão acerca dessas demandas se dá no mesmo sentido proposto por Ann E.

Berthoff, quando, apoiando-se no que traz a teoria freiriana, faz a distinção entre saber que e

saber como, este que a atual sociedade tanto estima, conhecido como know-how. Se de fato há

esse desacordo entre esse saber técnico (saber como, saber fazer, e essa instrução reitera-se

neste momento com o know-how) e o pensamento das criaturas humanas, todas elas serão

servas desse saber como? Dominados por qualquer espécie de técnica que seja capaz de emitir

juízos a todos comunicáveis, por todos verificáveis (ou compartilháveis)?

Categórico como de costume, Adorno argumenta:

na relação atual com a técnica existe algo de exagerado, irracional, patogênico. Istose vincula ao ‘véu tecnológico’. Os homens inclinam-se a considerar a técnica comosendo algo em si mesma, um fim em si mesmo, uma força própria, esquecendo queela é a extensão do braço dos homens.194

Analogamente às questões adornianas, e lembrando do que foi introduzido por Silvia

Collelo no que compete à alienação da comunidade escolar acerca da finalidade da alfabetiza-

193 FREIRE, Paulo. MACEDO, Donaldo. Alfabetização: Leitura da Palavra Leitura do Mundo. Rio de Janeiro,Paz e Terra, 1990. p. 32.194 ADORNO, Theodor. Educação... p. 132.

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ção, emerge a demanda de mais algumas: Lectoescrita --- para quê? Para quê se formam leito-

res?

Segundo Lerner195, na escola brasileira, não raro a aquisição da lectoescrita aparece

sempre de maneira atrelada ao tempo que o estudante está na escola, à vida estudantil. Ler

para aprender, ler em voz alta e escrever para legitimar o aprendizado do ciclo, com interro-

gações heteróclitas (e ao mesmo tempo correntes) advindas da comunidade escolar do tipo:

Professora, que dia será o teste de leitura que aprovará o Joãozinho para o ano seguinte?

tornando essa capacidade bastante artificial e, na maioria das vezes, desprovida de significa-

do, fazendo da técnica “a essência desse saber, que não visa conceitos e imagens, nem o pra-

zer do discernimento, mas o método, a utilização do trabalho de outros, o capital.”196

Se considerado for o que até aqui discorreu-se, esta prática de aquisição estaria le-

vando os sujeitos a barbárie semelhante a Auschwits, uma vez que “pessoas que se enquadram

cegamente em coletivos convertem a si próprios em algo como um material, dissolvendo-se

como seres autodeterminados. Isto combina com a disposição de tratar outros como sendo

uma massa amorfa”.197 Esses sujeitos são formados de tal maneira que eles mesmos se igua-

lam a coisas, motivo pelo qual, quando possível se torna, fazem o mesmo com o próximo.

“Essa forma de ser, Adorno ilustra com a intraduzível expressão fertigmachen (conclu-

ir/liquidar); essa expressão define os homens como coisa preparada, manipulada, e coisa dani-

ficada”.198

A partir do que foi considerado acerca do conceito de política, o leitor somente pode-

rá se formar perante um ato político, só estará preparado para o convívio na polis dessa ma-

neira. Entendido que o sentido no contexto de cada leitura é valorizado, tem seu perfazimento,

perante os outros objetos do mundo, perante outros leitores, perante tudo quanto o leitor tenha

conexão.

Esta construção um tanto quanto imperativa e o abismo que pode ser percebido na

distinção entre duas categorias arendtianas neste momento contribuem na compreensão da

desunião entre a técnica da lectoescrita adquirida por si só, com fim em si mesma, e a leitura

como ato social e político, são elas trabalho e ação. Segundo a autora, esta última consiste em

“la seule activité qui exige la pluralité” 199. Pela ação “l’être humain se révèle, se distingue, et

195 LERNER, Delia. Ler e escrever na escola: o real, o possível e o necessário. tradução Ernani Rosa. PortoAlegre: Artmed, 2002.196 ADORNO, Theodor; HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1985.p. 18.197 ADORNO, Theodor. Educação... p. 129.198 JUNIOR, Oswaldo Giacoia. Ética... p. 131.199 Tradução livre: “a única atividade que exige a pluralidade”.

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s’exposant aux autres, à ses compagnons, montre qui il est, son unicité” 200201. Dessa forma, o

leitor da ação é o leitor da pluralidade, partindo de um dos eixos fundamentais da Condição

Humana arendtiana de que homens vivem na Terra e habitam o mundo, e não Homem.202

Toda leitura irá pressupor uma interação com uma determinada cultura, agindo

constantemente nos moldes do imaginário coletivo que esta possui, isto é, ainda que o sentido

ocorra no plano imaginário individual de cada leitor, fatalmente pela função formadora que

este ato traz consigo, partilha sentidos com membros de sua sociedade também. Assim sendo,

o sentido que se extrai da leitura, irá “immédiatement prendre place dans le contexte culturel

où évolue chaque lecteur.” 203204

Diferentemente do leitor do trabalho que, ainda de acordo com a mesma teoria em

questão, seria aquele que produz um mundo artificial de coisas, vive do outro lado de uma

fronteira individualmente e necessita de uma produção, criativa ou não, para justificar sua

existência humana e possuindo a mundaneidade como sua condição humana. O que é insufi-

ciente para uma vida humana digna de fato, com a participação política de cada um, como

vislumbra as reflexões arendtianas. Percebe-se nesta espécie de leitor a carência de posicio-

namento crítico, em virtude de seu caráter alienado de participar, ou não participar, da vida

activa, uma vez que sua participação social se da “de façon cyclique, répétitive e anonyme”205206.

Apoiando-se em ambas categorias e principalmente na teoria adorniana, é possível

dizer que a leitura é apreendida como uma natureza, como um ser-assim, como um dado esti-

pulado e imutável. Convertendo a relação humana que há na leitura em coisa e privando o

sujeito de uma experiência heterônoma, autêntica e formativa.

Em seus escritos, o pensador frankfurtiano menciona o conceito de consciência coisi-

ficada, ou coisificação, “uma consciência que se defende de qualquer vir-a-ser, frente a qual-

quer apreensão do próprio condicionamento, impondo como sendo absoluto o que existe de

um determinado modo”207. Um dado inalterável, e não como algo que veio a ser. Uma relação

cega com a competência leitora, uma vez que não é questionado o como-ficou-assim:

200 Tradução livre: “o ser humano se revela, se distingue, e se expõem aos outros, a seus companheiros, mostraquem ele é, sua unicidade”.201 AMIEL, Anne. Le vocabulaire de Hannah Arendt. Ellipses, Paris, 2007. p. 7.202 ARENDT, Hannah. A Condição Humana. Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1997.203 Tradução livre: “imediatamente tomar espaço no contexto cultural, onde evolui cada leitor”.204 JOUVE, Vincent. La lecture. Hachette Livre, Paris, 1993. pp. 12-3.205 Tradução livre: “de forma cíclica, repetitiva e anônima”.206 AMIEL, Anne. Le vocabulaire de Hannah Arendt. Ellipses, Paris, 2007. p. 85. Grifos meus.207 ADORNO, Theodor. Palavras... p. 132.

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A consciência coisificada, que entende mal a si mesma como se fosse natureza, é in-gênua: toma a si mesma – algo que veio a ser e que é completamente mediado em si– como se fosse, conforme expressão de Husserl, a esfera do ser das origens absolu-tas, e aquilo que ela arma diante dela como sendo a coisa tão ansiada.208

Seguido dessas palavras, Adorno se utiliza da expressão latina caput mortuum para

alegar que, com esse anseio à objetividade [Salchlichkeit], o sujeito retém a cabeça sem vida

do conhecimento e nada mais. E o mais contraditório é que ao mesmo tempo que essa espécie

de louvor, de culto que se presta a uma técnica que não tem como objetivo primeiro formar

participantes autônomos da cultura escrita, ela possui uma valorização pública dada àqueles

que desta comunidade partilha as habilidades demandantes, uma relação estreita entre o su-

cesso escolar e aquilo que é material. Uma espécie de veneração do que é autofabricado, o

qual, em virtude do seu valor de troca, se aliena do homem. Isso é o que conta para a prosaica

objetividade do pensar orientado pelo lucro: tudo menos a coisa mesma. “Esta se perde naqui-

lo que ela rende para alguém”209(p.193).

Se agora equacionada for a conexão entre o estudo da consciência coisificada e uma

análise da atual relação com a técnica da lectoescrita, extrai-se como consequência que essa

espécie de caráter manipulatório que se mantém constitui “exatamente o tipo de energia psí-

quica requisitado pela civilização predominantemente tecnológica, isto é, o homem tecnológi-

co, ou tecno(buro)crata”.210

Adorno se utiliza das ideias marxistas para criticar o caráter fetichista da mercadoria,

defendendo que ela devolve aos homens, como um espelho, os caracteres sociais do seu pró-

prio trabalho como propriedades naturais e sociais dessas coisas. Para o autor, a situação a-

grava-se quando o homem não é capaz de se reconhecer naquilo que ele mesmo foi e é capaz

de coisificar211. Uma forma de relação social com o próprio trabalho, porém externa.

Dentro de uma maneira coisificada de se apoderar de uma técnica, bem como de re-

produzi-la, seria viável um espaço suficiente dentro de uma alfabetização emancipadora que

possibilitasse que os educandos tomassem parte de seus próprios discursos e, simultaneamen-

te, avançassem para além deles, de modo a desenvolver competência e desenvoltura para lidar

com os demais discursos, inclusive este que lhe é externo (FREIRE, 1990)?

208 Ibidem. pp. 192-3.209 Ibidem. p. 137.210 JUNIOR, Oswaldo Giacoia. Ética... p. 133.211 ADORNO, Theodor. O fetichismo na música e a Regressão da Audição. In: Textos Escolhidos. SP: AbrilCultural, 1999. Coleção: Os pensadores. pp. 77-8.

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A réplica é negativa, uma vez que a imediatidade com que o sujeito concebe e repro-

duz o que recebe, sem o crivo da reflexão, reverte-se num cotidiano de universo tão limitado

que inviabiliza assim qualquer dimensão utópica em contraposição às condições sociais de

exploração a que está submetido.212

A imutabilidade [Immergleichheit] do todo, a dependência das pessoas em relação àsnecessidades vitais, das condições materiais de sua autoconservação, como que seesconde por traz da própria dinâmica, do incremento da presumida riqueza social; is-to favorece a ideologia.213

Nesse sentido que a aquisição de uma escrita não deveria ser diferente de uma pro-

posta de alfabetização em que “o conhecimento, no entanto, deveria ser guiado pelo que não é

mutilado pelas trocas ou – pois não há nada mais que não esteja mutilado – pelo que se oculta

por trás das operações de troca”.214 Uma concepção de alfabetização mediada pela relação de

comprometimento com a utilização de uma técnica, que somente começasse a ser pensada e

compreendida na medida que possuísse um significado no mundo imediato de cada um, par-

tindo de suas necessidades. Esse princípio de formação institucionalizada do leitor seria, en-

tão, essencialmente ética na medida que originaria um novo espírito e posicionamento perante

a técnica e nos tempos atuais perante a voracidade tecnológica.

Uma maneira de aquisição da lectoescrita que não dicotomizasse o produzir e o co-

nhecer, não permitindo que a escola se constituísse como mais um espaço correspondente à

ideologia capitalista.215 Contrariando “os programas de alfabetização em geral (que) oferecem

ao povo o acesso a um discurso predeterminado e preestabelecido, enquanto silenciam sua

própria voz, a qual deve ser amplificada”.216

A partir de tais caminhos é possível pensar-se em uma formação do leitor à luz da te-

oria freiriana. Não tomando o termo teoria em seu sentido acadêmico - como um conjunto de

proposições logicamente encadeadas, querendo ser abrangentes e amplas, com a pretensão de

unificar as mais diversas visões de mundo bem como maneiras de operar nele -, mas a forma-

ção do leitor sugerida por uma teorização freiriana, como prevenção de uma espécie de con-

212 FABIANO, Luiz Hermenegildo. Bufonices culturais e degradação da ética: Adorno na contramão da alegria.In: OLIVEIRA, Newton Ramos de; ZUIN, Antônio Álvaro Soares; PUCCI, Bruno. (Orgs.). Teoria critica, esté-tica e educação. Campinas SP, Editora UNIMEP, 2001. p. 137.213 ADORNO, Theodor. Palavras... p. 56.214 Ibidem. p. 193.215 FREIRE, Paulo. Medo e Ousadia. O Cotidiano do Professor. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1986. p. 19.216 FREIRE, Paulo. MACEDO, Donaldo. Alfabetização... p. 37.

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duta que tem sido corrente no contexto acadêmico educacional. Teorização, por falar de um

autor que não pensou métodos, nem ideias, e sim existências.

Freire acredita que as pessoas ditas comuns, quando interpretam suas próprias expe-

riências manifestam a complexidade que vão compreendendo, através de figuras de lingua-

gem que atrelam seus pensamentos a situações concretas. Por isso, aponta que “a forma crítica

de compreender e de realizar a leitura do texto e a do contexto não exclui nenhuma da duas

formas de linguagem ou de sintaxe” (FREIRE). Os dominantes de ambas sintaxes poderão se

sentir desafiados pelas mesmas inquietações. Logo, torna-se de extrema relevância refletir

como “as pessoas comuns, através de suas formas de expressão peculiares e profundamente

éticas, são capazes de tornar explícitos os problemas do mundo”.217 Essa ponderação é capaci-

tada também pela maneira como Freire pensa a relação entre significante e significado - ainda

que ele não utilize tal nomenclatura, em virtude de sua linguagem acessível, no entanto as

influências do estruturalista suíço são notórias - proposta na dicotomia saussiriana: compre-

endida como ferramenta para o desenvolvimento da consciência crítica do sujeito, pensando

esta como ato fundamental da mente, ou oportunidade de recognição nos Círculos de Cultura,

fazendo com que os participantes alcançassem uma distância em relação ao próprio mundo,

estranhando-o, e consequentemente, reconhecendo-o.

Uma vez que suas reflexões constituem-se em

uma concepção de alfabetização que transforma o material e o objetivo com que sealfabetiza, as relações sociais em que se alfabetiza, é uma concepção que põe o métodoa serviço de uma certa política e filosofia da educação.218

No entanto, não se quer dizer com estas palavras que o educando não deve apropriar-

se dos códigos e culturas das esferas dominantes, de maneira que não seja capaz de transcen-

der a seu meio ambiente. Admite-se que há uma mecanicidade necessária à utilização da lín-

gua escrita, neste contexto entendida como a técnica da capacidade leitora, no entanto, ela não

deve se constituir em uma razão de ser. Ambas teorias em evidência não negam o nem social,

que neste instante quer-se que seja compreendido como objeto de conhecimento comum; nem

a acentuação apenas do desenvolvimento da consciência individual. “Daí a importância da

subjetividade. Mas não posso separar minha subjetividade da objetividade em que se gera”219.

Admite-se que até mesmo a ideia de alfabetização emancipadora considera as duas

dimensões da alfabetização, quando por um lado os alunos devem alfabetizar-se quanto às

próprias histórias e necessidades, a experiências e à cultura de seu mundo imediato; e por ou-

217 FREIRE, Paulo. Medo... p. 180.218 FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade. 17.ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 2008. p. 119.219 Ibidem, p. 29.

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tro devem partilhar um código social comum a todos sem sufocar nenhuma das duas dimen-

sões.

Logo, não tem-se a pretensão de defender que a técnica não deve ser adquirida e tão

pouco menorizada. Uma formação do leitor após Auschwitz deve certamente estar receptiva à

relevância essencial da técnica no mundo contemporâneo. No entanto, não é o sujeito que está

a serviço dela e sim a relação contrária. O que somente poderá ser compreendido, como suge-

re ambos autores em questão, através da auto-reflexão crítica, que poderá fazer com que o

sujeito leitor apreenda a técnica como mais uma dimensão do agir humano. Como potente

braço prolongado do operari humano, pensada como acontecimento paradigmático na história

do ser220.

Dessa forma, uma das preocupações é que a escola tome-a como ferramenta e não

como dominante no processo de formação do leitor, e que pense as possibilidades de ingresso

em uma relação humana e saudável com técnica. O que é possível, uma vez que “as institui-

ções esclerosadas, as relações de produção não são pura e simplesmente um ser, mas sim,

embora como onipotentes, algo feito por pessoas, revogável.”221 A fim de que seja compreen-

dido que ela (a técnica) é somente um meio para o fim, que é uma vida humana digna222.

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220 JUNIOR, Oswaldo Giacoia. Ética...221 ADORNO, Theodor. Palavras... p. 55.222 Idem.

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OBRA ABERTA, MAS NEM TANTO: LIMITES INTERPRETATIVOS COMO CO-LABORADORES NA FORMAÇÃO DO SUJEITO-LEITOR

Patrícia Cristine Hoff223

Prof. Dr. João Luís Pereira Ourique224

Resumo: No âmbito do ensino da literatura, com o advento de teorias literárias ligadas àHermenêutica e à Estética da recepção, percebe-se uma valorização do leitor em um quasedetrimento da autoria, o que vai de encontro à tradição do ensino de literatura, pautada porabordagens histórico-biográficas. A leitura literária passa a ser vista, então, como um proces-so interpretativo, no qual o leitor é quem decodifica a mensagem estética, como refere Um-berto Eco. Levar o leitor em formação a reconhecer e, depois, saber lidar com a linguagemliterária é, pois, um dos maiores desafios do professor de literatura, uma vez que essa lingua-gem carrega marcas de ambiguidade e plurissignificação presentes em toda e qualquer obraartística escrita. A abertura do texto literário – dada a sua linguagem de sentidos múltiplos –não remete, no entanto, ao pensamento de que seu efeito é arbitrário e aleatório, mas que oleitor habilidoso é capaz de extrair um ou mais sentidos de uma mesma obra. A fim de identi-ficar possíveis limites de interpretação do texto literário, esse trabalho preocupa-se em tecerconsiderações sobre como tais aspectos levantados pela teoria podem contribuir para a forma-ção de sujeitos-leitores.

Palavras-chave: Ensino de literatura. Estética da Recepção. Obra aberta. Sujeitos-leitores.

1. Introdução

Na década de 60, Hans Robert Jauss, considerado um dos precursores da teoria da

recepção, proferiu em conferência225, posteriormente intitulada A história da literatura como

provocação à teoria literária, postulações que tiveram repercussão significativa na alteração

do quadro tradicional da história da literatura. Jauss rompe com o pensamento vigente até

então, o qual utiliza como parâmetros de leitura contextos biográficos e históricos da obra

literária, quando afirma que

[a] qualidade e a categoria de uma obra literária não resultam nem das condiçõeshistóricas ou biográficas de seu nascimento, nem tão somente de seu posicionamentono contexto sucessório do desenvolvimento de um gênero, mas sim dos critérios darecepção, do efeito produzido pela obra e de sua fama junto à posteridade, critériosestes de mais difícil apreensão.226

223 Acadêmica do curso de Letras – Português e Inglês e respectivas literaturas pela Universidade Federal dePelotas e bolsista PIBIC/CNPq.224 Orientador225 Conferência ministrada na Universidade de Constança em 13 de abril de 1967, sob o título O que é e com quefim se estuda história da literatura?, depois modificado.226 JAUSS, Hans Robert. A história da literatura como provocação à teoria literária. Tradução de Sérgio Tella-roli. São Paulo: Ática, 1994. pp. 8-9.

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Tem-se, portanto, que a noção de efeito é central dentro dessa nova estética, pois re-

cai na formulação dialógica principal, a priori, a relação entre obra e leitor. Essa relação vem

sendo estudada sob diversos vieses desde a sua primeira aparição significativa, no final da

década de 60.227

Ainda no calor dos debates das teorias da recepção, Roland Barthes, em ensaio de

1968228, causou certa polêmica ao declarar a morte do autor, retirando-o de sua posição sacra

de “Autor-Deus”229 quando destitui da autoria a detenção da palavra, ao ter que “[a] escritura

é a destruição de toda voz, de toda origem.” 230 Ao atribuir à escritura – ou seja, à linguagem

(literária) – a responsabilidade pela existência da obra, Barthes vê no leitor o lugar onde a

texto adquire sentidos – o que é possível apenas em detrimento à figura histórico-psicológica

do autor. Assim, ao pôr em crise a até então predominância dos estudos da intencionalidade

autoral, Barthes desconstrói o mito do autor, ao mesmo tempo em que propõe a criação de um

outro mito, o do leitor:

um texto é feito de escritas múltiplas, saídas de várias culturas e que entram umascom as outras em diálogo, em paródia, em contestação; mas há um lugar em que es-sa multiplicidade se reúne, e esse lugar não é o autor, como se tem dito até aqui, é oleitor: o leitor é o espaço exato em que se inscrevem, sem que nenhuma se perca, to-das as citações de que uma escrita é feita; a unidade de um texto não está na sua ori-gem, mas no seu destino, mas este destino já não pode ser pessoal: o leitor é um ho-mem sem história, sem biografia, sem psicologia; é apenas esse alguém que tem re-unidos num mesmo campo todos os traços que constituem o escrito.231

Mesmo sendo esse leitor um modelo idealizado (“sem história, sem biografia, sem

psicologia”), da mesma forma que o era o autor, agora afastado, mostra-se importante salien-

tar a contribuição dos pensamentos tanto de Barthes quando de Jauss, dentre outros, para os

estudos da estética da recepção, quando o leitor assume posição privilegiada em certos cam-

pos da teoria literária.

2. Problemática da obra aberta

Tendo em mente o texto literário, de uma linguagem que transforma incessantemente

não só as relações que as palavras têm entre si, “mas estabelece com cada leitor relações sub-

227 Regina Zilberman aponta que das tendências críticas que lidam com o leitor/destinatário enquanto peça im-portante da teoria pode-se aludir “à retórica, à semiologia e ao estruturalismo, na medida em que se preocupamcom o processo de decodificação do texto pelos destinatários; à psicanálise e à hermenêutica, por lidarem com aquestão da interpretação; e à sociologia da literatura que [...] analisa a interação da obra com o público.” (ZIL-BERMAN, 2009, p. 15)228 “La mort de l’auteur” (1968). Le bruissement de la langue. Paris: Seuil, 1984.229 BARTHES, Roland. A morte do autor. In O Rumor da Língua. São Paulo: Martins Fontes, 2004. p. 68.230 Ibidem. p. 65.231 Ibidem. p. 69.

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jetivas que o tornam um texto móvel (modificante e modificável)”232, tem-se que sua leitura,

portanto, não se dá de maneira pacífica e transparente, o que exige um bom treinamento por

parte do receptor da obra.

É com base na observância do caráter ambíguo e polissêmico da linguagem estética

que Umberto Eco (1962) formula seu conceito de obra aberta, cabível à obra artística como

um todo e, portanto, também à literatura. Tal conceito, todavia, não pode ser visto como uma

categoria crítica, mas como um modelo hipotético, uma abstração, “uma categoria explicativa,

elaborada para exemplificar uma tendência das várias poéticas.”233 De acordo com Eco,

A poética da obra “aberta” tende [...] a promover no intérprete “atos de liberdadeconsciente”, pô-lo como centro ativo de relações inesgotáveis, entre as quais ele ins-taura sua própria forma, sem ser determinado por uma necessidade que lhe prescrevaos modos definitivos de organização da obra fruída.234

Ao defender o papel ativo do intérprete – o qual atua como decodificador – na leitura

dos textos de valor estético (não apenas literários), abertos por excelência, Eco sofreu críti-

cas235 as quais viam a abertura do texto como espécie de terra sem lei, onde toda e qualquer

interpretação seria válida e aceita. Por conseguinte, a fim de encontrar possíveis limites da

interpretação, Eco amparou-se num profundo estudo semiótico, pensando a leitura a partir do

viés da sua construção enquanto cadeia de signos. Não compete à teoria de Eco analisar, por

exemplo, os aspectos sociológicos da leitura, mas tomar o texto literário a partir de um viés

estrutural, debruçando-se sobre o signo linguístico, visto não como “alguma coisa que está no

lugar de alguma outra coisa”, mas considerado “indissoluvelmente ligado ao processo de in-

terpretação.”236 Para isso, Eco ampara-se em Pierce na defesa da natureza interpretativa do

signo. Tem-se então que

Por interpretação (ou critério de interpretância) deve-se entender o que entendiaPeirce ao reconhecer que cada interpretante (signo, ou seja, expressão ou sequênciade expressões que traduz uma expressão anterior) não só retraduz o “objeto imedia-to” ou conteúdo do signo, mas amplia sua compreensão. O critério de interpretânciapermite partir de um signo para percorrer, etapa por etapa, toda a esfera da semiose.Peirce dizia que um termo é uma proposição rudimentar e que uma proposição éuma argumentação rudimentar.237

232 D’ONOFRIO, S. Teoria do texto 1: Prolegômenos e teoria da narrativa. São Paulo: Ática, 2006. p. 14.233 ECO, Umberto. Obra aberta. Tradução de Giovanni Cutolo. São Paulo: Perspectiva, 2007.p. 26.234 Ibidem. p. 41.235 Tais críticas levaram Eco a escrever a Introdução à segunda edição do livro Obra aberta.236 ECO, Umberto. Semiótica e filosofia da linguagem. Tradução de Mariarosaria Fabris e José Luíz Fiorin. SãoPaulo: Ática, 1991, Série Fundamentos. p. 3.237 Ibidem. p. 60.

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O caráter rudimentar que circunda signo e significante leva, pela necessidade da

construção mais aperfeiçoada dos sentidos, à formulação da semiose ilimitada, apontada por

Peirce e utilizada e por Eco. Esse processo é, de forma simples, explicado por Eco no sentido

de que

para estabelecer o significado de um significante (...) é necessário nomear o primeirosignificante por meio de outro significante que pode ser interpretado por outro signi-ficante, e assim sucessivamente. Temos, destarte, um processo de SEMIOSE ILI-MITADA.238

No livro Os limites da interpretação (1990), ciente da visão generalizante dessa defi-

nição, Eco admite que a semiose ilimitada não é um modelo teórico unificado, ou “científico”,

mas uma prática social, com o estatuto de um discurso filosófico239. Assim, Eco procura ser

fiel ao modelo também hipotético da obra aberta, afirmando que

Uma vez que o texto tenha sido privado da intenção subjetiva que estaria por trás de-le, seus leitores não mais têm o dever, ou a possibilidade, de permanecerem fiéis aessa intenção ausente. É, destarte, possível concluir que a linguagem está presa numjogo de significantes múltiplos, que um texto não pode incorporar nenhum significa-do unívoco e absoluto, que não existe um significado transcendental, que o signifi-cante jamais pode estar em relação de co-presença com um significado continua-mente diferido e adiado, e que todo significante se correlaciona com outro signifi-cante de modo tal que nada fique fora da cadeia significante que prossegue ad infini-tum.240

Diante da cadeia infinita de possibilidades semióticas, torna-se unicamente possível

(mais do que meramente confortável) assumir a posição de que não existem interpretações

certas ou erradas, e que em nenhum momento uma única leitura finaliza todas as possibilida-

des de um texto. Não sendo razoável apontar para a boa interpretação, Eco afirma que, “mais

fácil, ao contrário, é reconhecermos as más.”241. Sobre as más interpretações Eco trata em

Interpretação e superinterpretação (1993), em que tenta manter um elo dialético entre a in-

tentio operis e a intentio lectoris, utilizando sempre o texto como fornecedor e ao mesmo

tempo contestador ou afirmador de uma dada interpretação. Essas duas intenções são code-

pendentes, mas a segunda se coloca à frente, uma vez que

A intenção do texto não é revelada pela superfície textual. [...] É preciso querer “vê-la”. Assim é possível falar da intenção do texto apenas em decorrência de uma leitu-

238 ECO, Umberto. Tratado geral da semiótica. 4ª ed. Perspectiva, 2003. p. 58.239 ECO, Umberto. Os limites da interpretação. Tradução de Pérola Carvalho. São Paulo: Perspectiva, 2010. p.103.240 Ibidem. p. 283.241 Ibidem. p. 291.

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ra por parte do leitor. A iniciativa do leitor consiste basicamente em fazer uma con-jetura sobre a intenção do texto.242

Daí surge a noção de que o texto é um dispositivo concebido para produzir um leitor-

modelo. O texto faz-se como uma espécie de artefato que potencializa algumas leituras em

detrimento de outras. Tais leituras são levadas a cabo pelo receptor, que se torna modelo por

ter que conjecturar sobre as intenções do autor-modelo, as quais se confundem com as inten-

ções do texto. Trata-se, portanto, de um círculo hermenêutico, no qual

mais do que um parâmetro a ser utilizado com a finalidade de validar a interpreta-ção, o texto é um objeto que a interpretação constrói no decorrer do esforço circularde validar-se com base no que acaba sendo o seu resultado.243

Para Eco, reconhecer a intenção da obra é reconhecer uma estratégia semiótica, e a

única forma de provar as hipóteses resultantes da intenção do leitor-modelo é checá-las com o

texto enquanto um todo coerente.244 Por consequência, superinterpretar um texto é atribuir-lhe

conjecturas textualmente passíveis de serem rejeitadas pela coerência interna do texto. Esta,

por seu turno, domina os impulsos do leitor, de outro modo incontroláveis.

3. Contribuições para o ensino de literatura

Afirma-se de diversas formas que os professores devem contribuir para a formação

crítica dos alunos. Paulo Freire245 entende que o aluno crítico é aquele que superou a sua in-

genuidade, no momento em que a curiosidade ingênua passa a ser uma curiosidade crítica,

sobrepujando o senso comum. Para Adorno, em Educação e emancipação (1969), a educação

deve projetar-se tão somente para a emancipação (ou autonomia) do sujeito, a qual é prejudi-

cada não pela “falta de entendimento, mas a falta de decisão e de coragem de servir-se do

entendimento sem a orientação de outrem”.246 Com efeito, o presente trabalho vê o sujeito-

leitor como aquele que exerce a leitura com “liberdade consciente”, para citar Eco, com habi-

lidades e capacidade crítica para preocupar-se tanto com a potencialidade da linguagem quan-

do com a coerência dos sentidos produzidos.

Destacado isso, salienta-se que os aspectos teóricos econianos aqui brevemente apre-

sentados têm por intuito menos pôr em crise os complexos critérios interpretativos que propor

242 ECO, Umberto. Interpretação e superinterpretação. Tradução de Monica Stahel. São Paulo: Martins Fontes,1993. p. 75.243 Ibidem. pp. 75-6.244 Ibidem. p. 76.245 FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 31ª Ed. São Paulo: Paz eTerra, 1996. p. 38.246 ADORNO, Theodor. Educação e emancipação. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995. p. 169.

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hipóteses conceituais a serviço do ensino de literatura e da problematização dos contrapontos

que o circundam. Assim, esse trabalho quer assegurar que muito dos estudos de Eco podem

ser empregados em benefício da formação de sujeitos-leitores autônomos e competentes. Des-

tarte, o modelo hipotético da obra aberta, tão caro a Eco, além de apontar para a objetividade

provocadora da obra de arte, vai de encontro ao empobrecimento das relações entre arte e

visão do mundo de intérprete causado pela cultura de massa247. Em Obra aberta (1962), livro

preocupado com as formas de indeterminação das poéticas contemporâneas, Eco apresenta a

dicotomia entre obra de massa e obra de vanguarda:

As mensagens de massa são mensagens inspiradas numa ampla redundância: repe-tem para o público aquilo que deseja saber. Mesmo quando utiliza soluções estilísti-cas difundidas pela vanguarda, a cultura de massa o faz quando estes modos comu-nicativos já foram assimilados pelo grande público. Daí que ela difunde, por assimdizer, sobre o universo uma confortável cortina de obviedade. A tarefa da literaturade vanguarda é precisamente a de romper essa barreira de obviedade. Diante do jáconhecido (“noto”) a vanguarda propõe o desconhecido (“l’ignoto”). Neste sentidose enquadra no discurso informativo e aberto. Já se disse que a tarefa da literatura é ade manter eficiente a linguagem. Se por “manter eficiente a linguagem” se entende“renovar continuamente as modalidades de uso do código lingüístico comum”, esseé exatamente o objetivo da vanguarda. Com uma particularidade: desde que um mo-do de falar reflete um modo de ver a realidade e de afrontar o mundo, renovar a lin-guagem significa renovar nossa relação com o mundo.248

Britto Jr. aponta para o paradigma do termo vanguarda que, em Eco, perde a defini-

ção tradicional e passa a ser uma postura que visa a ambiguidade como finalidade última do

processo criativo. De grosso modo, a vanguarda tradicional configura-se num conceito aplicá-

vel a um grupo de pessoas orientadas artística e politicamente por um programa pré-

estabelecido de produção. Para Eco, no entanto, as obras consideradas vanguardistas são a-

quelas feitas plurissignificativas, revitalizando no intérprete

efeitos de estranhamento que produzem, por um lado, uma fruição menos compla-cente e mais intelectualmente ativa e, por outro lado, um questionamento das possi-bilidades interpretativas que, por sua vez, redundam numa nova concepção do códi-go que serve de base à comunicação artística e, mais importante, às nossas concep-ções de mundo.249

Fica claro que, para Eco, as obras reducionistas em sentido, apontando para as que se

encaixam nos moldes da cultura de massas (ou seja, as que trazem mensagens redundantes e

óbvias e petrificam a percepção), não têm o mesmo valor estético das obras de vanguarda. O

valor, portanto, ficaria condicionado à linguagem empregada, muito antes de levar-se em con-

247 Cf BRITTO JR. Antonio Barros de. A abertura e a indeterminação dos sentidos da obra literária como possi-bilidades de revolução nas concepções de mundo do leitor. In XI Congresso Internacional da ABRALIC: Tessitu-ras, Interações, Convergências. USP - São Paulo, 2008. p. 6.248 ECO, Umberto. Obra... pp. 282-3. apud BRITTO JR. A abertura... p. 8.249 BRITO JR. A abertura... p. 8.

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sideração qualquer informação extratextual. Isso não significa que o leitor atribui valor ao

texto, mas, retomando a ideia de leitor-modelo, a qualidade da leitura é “imposta” pelas pró-

prias intenções textuais, projetadas no leitor-modelo e refletidas na (e pela) leitura do mesmo.

Logo, o aspecto criativo da obra de vanguarda não é atribuído apenas ao texto. O tex-

to vanguardista se atualiza no leitor, no momento em que cabe a ele produzir inferências múl-

tiplas num processo infinito de manutenção da consciência produtiva. Dado o caráter provoca-

tivo da literatura, comentado anteriormente, sendo uma condição da obra aberta, é trabalho

do sujeito-leitor (aqui uma visão ampliada do leitor-modelo, a qual quer atentar ainda para a

capacidade crítica do receptor) atuar na decodificação dos textos artísticos. É o que também

aponta Regina Zilberman:

o signo estético [em oposição ao signo empregado na linguagem prática do cotidia-no] assim se revela, se o espectador o perceber enquanto objeto estético, o que de-termina, agora por outra via de raciocínio, o reconhecimento da importância de suaatividade perceptiva. É o recebedor que transforma a obra, até então mero artefato,em objeto estético, ao decodificar os significados transmitidos por ela. Em outras pa-lavras, a obra de arte é um signo, porque a significação é um aspecto fundamental desua natureza, mas ela só se concretiza quando percebida por uma consciência, a dosujeito estético.250

É evidente que, a essa altura, não se pode falar em formação de sujeitos-leitores senão a par-

tir da leitura do texto literário – o que, infelizmente, não é um processo óbvio se for levado em consi-

deração o quadro em que se encontra o ensino de literatura atualmente, ainda fortemente apoiado em

contextualizações sócio-históricas das obras e seus autores. Resulta daí uma visão totalmente extrínse-

ca da literatura, sendo o tratamento do texto literário um mero pretexto para conteúdos outros que não

a(s) leitura(s) do texto em si. Marisa Lajolo, em O texto não é pretexto251, aponta para a gravidade de

se trabalhar o texto literário dessa forma, quando maus leitores podem transformar bons textos em

maus textos na medida em que propuserem exercícios “que reduzem ou anulem a carga de ambigui-

dade e plurissignificação do texto poético.”252 Tal noção de “gerar maus textos” retoma a i-

deia de superinterpretação de Eco, quando a interpretação gerada não se sustenta textualmen-

te, indo em direção à má leitura.

Por fim, ainda que toda teoria apresente impasses e limitações, as poucas proposições

de Eco discorridas nesse texto procuram dar conta de aspectos que possam ser de alguma

forma relevantes ao se pensar o ensino de literatura de forma crítica e analítica. De um modo

geral, pontua-se que ao lidar com o texto enquanto construção linguística e ao debruçando-se

sobre os signos o sujeito-leitor desenvolverá a “alfabetização literária”, apoderando-se da lin-

250 ZILBERMAN, Regina. Estética da recepção e história da literatura. São Paulo: Ática, 2009. p. 21.251 LAJOLO, Marisa. O texto não é pretexto. In: ZILBERMAN, Regina (Org.) Leitura em crise na escola: asalternativas do professor. 10. ed. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1991. pp. 51-62.252 Ibidem. pp. 56-6.

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guagem artística, tornando-se um usuário competente, “mesmo que nunca vá escrever um

livro: mas porque precisa ler muitos.”253

Referências

ADORNO, Theodor. Educação e emancipação. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995.

BARTHES, Roland. A morte do autor. In O Rumor da Língua. São Paulo: Martins Fontes,2004

BORDINI, Maria da Glória; AGUIAR, Vera Teixeira de. Literatura: a formação do leitor:alternativas metodológicas. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1988.

BRITTO JR. Antonio Barros de. A abertura e a indeterminação dos sentidos da obra literáriacomo possibilidades de revolução nas concepções de mundo do leitor. In XI Congresso Inter-nacional da ABRALIC: Tessituras, Interações, Convergências. USP - São Paulo, 2008. Dispo-nível em:http://www.abralic.org.br/anais/cong2008/AnaisOnline/simposios/pdf/043/ANTONIO_JUNIOR.pdf. Acessado em: 15 de setembro de 2011.

____. Nem tudo vale: teoria da cooperação interpretativa e dos limites da interpretação segun-do Umberto Eco. 2010. Tese de doutorado. Campinas, Instituto da Linguagem, Unicamp.Disponível em: http://cutter.unicamp.br/document/?code=000475835. Acessado em: 6 de se-tembro de 2011.

D’ONOFRIO, S. Teoria do texto 1: Prolegômenos e teoria da narrativa. São Paulo: Ática,2006.

ECO, Umberto. Os limites da interpretação. Tradução de Pérola Carvalho. São Paulo: Pers-pectiva, 2010.

____. Interpretação e superinterpretação. Tradução de Monica Stahel. São Paulo: MartinsFontes, 1993.

____. Obra aberta. Tradução de Giovanni Cutolo. São Paulo: Perspectiva, 2007.

____. Semiótica e filosofia da linguagem. Tradução de Mariarosaria Fabris e José Luíz Fiorin.São Paulo: Ática, 1991, Série Fundamentos.

____. Tratado geral da semiótica. 4ª ed. Perspectiva, 2003.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 31ª Ed.São Paulo: Paz e Terra, 1996.

JAUSS, Hans Robert. A história da literatura como provocação à teoria literária. Traduçãode Sérgio Tellaroli. São Paulo: Ática, 1994.

253 LAJOLO, Marisa. Do mundo da leitura para a leitura do mundo. São Paulo: Ática, 1993. p. 106.

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LAJOLO, Marisa. Do mundo da leitura para a leitura do mundo. São Paulo: Ática, 1993.

____. O texto não é pretexto. In: ZILBERMAN, Regina (Org.) Leitura em crise na escola: asalternativas do professor. 10. ed. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1991. pp. 51-62.

ZILBERMAN, Regina. Estética da recepção e história da literatura. São Paulo: Ática, 2009.

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MEMÓRIA E SUBJETIVIDADE EM PEDRO PÁRAMO – UM ESTUDO DAS(DES)EQUIVALÊNCIAS DISCURSIVAS ENTRE O ORIGINAL E A TRADUÇÃO

AO PORTUGUÊS

Camila De Carli254

Profª. Drª. Maria Thereza Veloso255

Resumo: Esta pesquisa tenta estabelecer um possível diálogo entre o discurso literário e odiscurso linguístico, considerando, em ambos, os conceitos de língua, sujeito e sentido sob aótica discursiva provinda da Análise do Discurso de filiação francesa. Integrando-se à linha depesquisa Comparatismo e Processos Culturais e tendo por Corpus a novela Pedro Páramo, deJuan Rulfo, no idioma original e em sua tradução para o Português, a proposta é a de compa-rar os conceitos de Memória e de Subjetividade, considerados desde os pontos de vista discur-sivo-linguístico e discursivo-literário.

Palavras-chave: Análise do Discurso. Memória. Subjetividade. Tradução. Pedro Páramo.

1. Introdução

Com o tema Memória e Subjetividade em Pedro Páramo – Um estudo das

(des)equivalências discursivas entre o original e a tradução ao Português, busca-se possibili-

tar relações entre o discurso literário e o discurso linguístico, princípio norteador deste estudo.

A pesquisa se insere na linha de pesquisa Comparatismo e Processos Culturais, suporte neces-

sário à fundamentação das investigações que serão propostas.

O objetivo geral deste trabalho, ao confrontar esses dois discursos, é o de comparar,

em um e outro, como os conceitos de memória e de subjetividade são expressos e como foram

(re)significados na obra Pedro Páramo, de Juan Rulfo, na língua original e na sua tradução

ao português.

A escolha do romance Pedro Páramo como corpus para esta investigação se deve ao

interesse da pesquisadora pela língua espanhola e a literatura hispano-americana, e muito es-

pecialmente pela obra de Juan Rulfo, por conter, em suas páginas, a expressão artística como

uma forma de libertação das angústias vividas pelo escritor. Apesar de a obra ter sido escrita

na metade do século XX, seu texto ajusta-se perfeitamente a aspectos da realidade presente.

Rulfo retrata questões sociais, comprova como os mais fracos da sociedade se veem submeti-

dos a injustiças seculares.

254 Aluna do Mestrado em Letras/Literatura Comparada da URI - Campus de Frederico Westphalen.255 Orientadora

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É nesse âmbito que a obra Pedro Páramo torna-se interessante para o estudo preten-

dido, pois contém, nos registros de memória do sujeito discursivo, histórias vividas, recorda-

ções e buscas significativas, itens que se configuram como de suma importância para o objeti-

vo proposto nesta pesquisa. Outro motivo relevante para a escolha do corpus é a linguagem

utilizada pelo escritor, que se manifesta através de falas populares, poéticas, sugerindo os as-

pectos formais e semânticos relativos à tradução como outro viés possível nesta análise, com-

parando-se em que medida a obra traduzida, corresponde, em sua essência narrativa, à obra

original.

Juan Rulfo, escritor mexicano, iniciou sua vida literária nos primeiros anos da década

de 40, escrevendo secretamente após suas atividades profissionais. Pedro Páramo foi escrito

entre os anos 1953-1954, período considerado como o mais criativo de sua atividade literária.

Nessa época, destacavam-se a originalidade de seu estilo e a força narrativa em textos que,

pelos temas que abordavam, continuavam aparentemente na moda regionalista se considera-

das as mudanças sócio-históricas que se operavam na época.

Quanto às mudanças sócio-históricas do México, vários fatores as desencadearam,

como a busca pelos direitos usurpados da população mexicana e a exclusão dos indígenas

como cidadãos. A questão da terra também estava presente nos conflitos sociais no México,

pois, na metade do século XIX, a maior parte dos indígenas já havia sido expulsa de suas ter-

ras e, também, a grande propriedade agrária foi reforçada e os camponeses despojados de suas

terras, eliminando-se a pequena propriedade. Entre os líderes da Revolução está Emiliano

Zapata.

A obra de Rulfo está vinculada a sua vida, pois remete, através da arte literária, a al-

guns dos acontecimentos de sua infância e adolescência, entre eles, a morte violenta do pai, e,

posteriormente, a morte da mãe, que o vai deixando submerso numa espécie de solidão exis-

tencial.

Para investigar como foram trabalhados por Juan Rulfo, e na sua língua original – a

espanhola -, os conceitos de memória e subjetividade e como foram eles (re)significados na

tradução para a Língua Portuguesa, a teoria utilizada será a Análise do Discurso de linha fran-

cesa. A escolha por essa teoria justifica-se pelas possibilidades analíticas que proporciona,

entre elas, tanto a problematização das maneiras de ler, quanto de levar o sujeito discursivo ou

o leitor a propor questões sobre o que produz e o que ouve nas diferentes situações discursivas

em que eventualmente se encontre.

Por outro lado, a AD permite perceber que não podemos não estar sujeitos à lingua-

gem, a seus equívocos, a sua opacidade. Igualmente nos conduz à compreensão de que não há

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neutralidade no uso da linguagem, nem mesmo no uso mais aparentemente cotidiano dos sig-

nos, pois, como garante Orlandi, “a Análise do Discurso nos coloca em estado de reflexão e,

sem cairmos na ilusão de sermos conscientes de tudo, permite-nos ao menos sermos capazes

de uma relação menos ingênua com a linguagem” (1999, p 9). Nesse sentido, o que se objeti-

va é compreender a língua fazendo sentido, enquanto trabalho simbólico, parte do trabalho

com a linguagem, constitutivo do homem e da sua história.

A partir dos pressupostos teóricos da Análise do Discurso, visando a estabelecer um

possível diálogo comparativo entre o discurso literário e o discurso linguístico, esta pesquisa

fará uso de estratégias analíticas que irão se delineando ao longo do processo do trabalho.

A partir de recortes discursivos (RD), tomados do corpus sob a ótica teórica da Análi-

se do Discurso, serão analisados os conceitos delimitados, respectivamente, a memória e a

subjetividade, enfatizando-se a questão principal da análise, que é encontrar as equivalências

e desequivalências observáveis nessas duas obras, quanto aos aspectos mencionados.

2. Referencial Teórico

Para a realização dos objetivos propostos, toma-se como suporte teórico a Análise

do Discurso de linha francesa, com autores como Michel Pêcheux, fundador da teoria, Eni

Orlandi, Maria Cristina Leandro Ferreira, Francine Mazière e Denise Maldidier. Entre os ele-

mentos constitutivos da AD, a ideologia será estudada através da ótica marxista, segundo

abordagem de Louis Althusser.

Assim, na relação estabelecida neste trabalho entre a literatura e a linguagem, os cami-

nhos de ambas convergem. A literatura representa as emoções, a arte em suas mais variadas

formas de expressão. Entre essas formas, está a linguagem que, através das palavras, dá a es-

trutura necessária para determinadas expressões artísticas, tornando-se assim componente

indispensável da literatura.

Com referência à estrutura citada acima, Dominique Maingueneau (2001) apresenta

em sua obra Elementos de Línguística para o texto literário vários aspectos úteis, linguistica-

mente, à análise de um texto literário. Essas contribuições constituem, então, o possível diálo-

go entre a literatura e a linguística que se pretende evidenciar neste trabalho.

Nesse sentido, salienta-se que a linguagem não serve apenas para designar uma reali-

dade preexistente. Ela faz muito mais: organiza (constitui) diante de nós o mundo em que

vivemos (ORLANDI, 2009, p. 51). Assim, a linguagem é o que contribui para a formação do

sentido, une as pessoas, estabelece a comunicação entre elas.

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Pêcheux (1997) salienta que a linguística se constituiu como ciência no interior de um

constante debate sobre a questão do sentido, ou seja, sobre a melhor forma de banir de suas

fronteiras a questão do sentido:

Se a linguística é solicitada a respeito desses ou daqueles pontos exteriores a seudomínio, é porque, no próprio interior de seu domínio, ela encontra, de certo modo,essas questões que lhe dizem respeito. A linguística não seria afetada por exigênciasem direção à “Semântica” se ela não tivesse se encontrado, de algum modo, com es-sas questões no seu interior (PÊCHEUX, 1997, p. 88).

Já as relações aproximando linguagem e literatura são pertinentes através da Literatura

Comparada, área da literatura que permite estudar e estabelecer comparações entre os polissis-

temas256 literários, as traduções, a intertextualidade, entre outros aspectos, neste sentido, pre-

sentes na área literária.

Análise do Discurso

A Análise do Discurso (AD) será o embasamento teórico utilizado para desenvolver os

objetivos aqui propostos. Surgida no final dos anos 60, na França, esta disciplina pode associ-

ar-se numa dupla fundação, incluindo Jean Dubois, importante linguista, e o filósofo Michel

Pêcheux, considerado, então, o pai da Análise do Discurso de linha francesa. Essa dupla fun-

dação coloca em questão as condições de possibilidade de um campo novo, dentro da conjun-

tura política e teórica do fim da década de 60 do século XX.

Michel Pêcheux sempre esteve envolvido em debates teóricos sobre marxismo, psica-

nálise, epistemologia, situando-se, inicialmente, no terreno da história das ciências. Sua refle-

xão estava voltada às questões da época sobre as ciências humanas. O projeto de Análise do

Discurso, segundo Maldidier (in ORLANDI, 1997, p. 17), nasce em um contexto em que a

linguística estruturalista vive em seu momento feliz e está em plena expansão. Outro fator

importante é o marxismo, que, juntamente com a linguística, apresenta com a Análise do Dis-

curso, “uma arma científica da linguística para oferecer meios novos de abordar a política”

(IDEM, op. cit., p. 18).

256 A teoria do polissistema trabalha com complexos mais amplos que literatura, sem, no entanto, desconsiderá-la. Assim, ela é concebida não como uma atividade isolada da sociedade, regulada por leis inteiramente diferen-tes daquelas que regem o resto das atividades humanas, mas como um fator integrante, muitas vezes exercendo afunção dominante entre os outros. Segundo Even Zohar, da Universidade de Tel Aviv, em sua introdução à“Polysystems Theory”, tudo isso deve-se ao fato de que, dentro do Formalismo Russo, a concepção de literaturasofreu uma série de modificações, passando a integrar-se num arcabouço mais amplo de cultura (NITRINI, 2010,p. 104-105).

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A primeira obra, Análise Automática do Discurso, apresenta um objeto novo para es-

tudo: o discurso. Este livro lançou questões fundamentais sobre textos, leitura e sentido. O

discurso para Pêcheux atuará, a partir de então, no campo da ideologia e do sujeito. O sentido

não dependerá apenas da posição em que o sujeito do enunciado está, mas surgirá pelas signi-

ficações que são concretizadas durante um ato de comunicação.

Gregolin (2001, p. 02) argumenta que o discurso, para Pêcheux, é diferente de enunci-

ado, que é diferente de texto, que coloca o linguístico em articulação com a História. Desde a

sua fundação, o discurso é entendido como um conceito que não se confunde com o discurso

empírico de um sujeito (parole na teoria de Saussure), nem com o texto (o discurso não está

na manifestação de seus encaixamentos e, por ser um processo, é preciso desconstruir a dis-

cursividade para enxergá-lo), nem com a função comunicacional. A análise visa a considerar

o discurso como processo, indagando sobre as condições de sua produção, a partir do pressu-

posto de que o discurso é determinado pelo tecido histórico-social que o constitui.

Orlandi (2009, p. 58) realça que a Análise de Discurso tem como proposta básica con-

siderar primordial a relação da linguagem com a exterioridade. Entendam-se como exteriori-

dade as chamadas condições de produção do discurso: o falante, o ouvinte, o contexto da co-

municação e o contexto histórico-social (ideológico). Essas condições estão representadas por

formações imaginárias, como, por exemplo, a imagem que o falante tem de si, a que tem do

seu ouvinte, dentre outras.

A Análise de Discurso introduz, por meio da noção de sujeito, a de ideologia e a de si-

tuação social e histórica. Ao introduzir a noção de História, trará para a reflexão as questões

de poder e das relações sociais. O discurso é definido não como transmissor de informação,

mas como efeito de sentido entre locutores. Assim, considera-se que o dito não resulta só da

intenção de um indivíduo em informar um outro, mas da relação de sentidos estabelecida por

eles num contexto social e histórico (ORLANDI, 2009, p. 60).

A propósito, na obra O Discurso, Estrutura ou Acontecimento, Michel Pêcheux pro-

põe uma reflexão sobre a linguagem que aceita o desconforto de não se encaixar nas evidên-

cias e no lugar já-feito. Conforme Orlandi (1997), Pêcheux exerceu com sofisticação a arte de

refletir nos entremeios.

O ponto principal da AD constitui-se na tríplice relação com o sujeito assujeitado, fa-

lado por seu discurso, provindo do discurso do “estruturalismo” de Foucault, Althusser e La-

can, com a historicidade de todo enunciado singular, e com a materialidade da língua, com os

linguistas Saussure, Harris e Chomsky (MAZIÈRE, 2007).

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A partir da perspectiva em que neste trabalho serão analisadas as obras – original e

traduzida – é que serão expostas as teorias que contribuirão para a pesquisa, entre elas o sujei-

to, o discurso, a formação discursiva e os intra e interdiscurso. Há que se considerar, também,

que será na medida em que a pesquisa irá sendo realizada que se delinearão os procedimentos

metodológico-investigativos e analíticos, visto que a Análise do Discurso permite modifica-

ções e retomadas ao longo do trabalho de interpretação.

Em relação ao sujeito, é necessário considerar o que Ferreira (2005, p. 21) conceitua

como sujeito. Ele é o resultado entre a relação com a linguagem e a história: não está total-

mente livre, nem totalmente determinado por mecanismos exteriores. “O sujeito é constituído

a partir da relação com o outro, nunca sendo única fonte de sentido, tampouco elemento onde

se origina o discurso”. Considera-se, ainda, que o sujeito estabelece a relação no interior de

uma formação discursiva, já que, como afirma Pêcheux, “os indivíduos são interpelados em

sujeitos falantes (em sujeitos de seu discurso) pelas formações discursivas que representam

‘na linguagem’ as formações ideológicas que lhes são correspondentes” (1997, p. 161).

Já o conceito de formação discursiva é básico na Análise do Discurso, pois é através

dele que serão produzidos os sentidos, que se irão relacionar com a ideologia e, também, que

o analista irá estabelecer regularidades no funcionamento do discurso. Orlandi lembra ser a

formação discursiva “aquilo que numa formação ideológica dada - ou seja, a partir de uma

posição dada em uma conjuntura sócio-histórica dada - determina o que pode e deve ser dito”

(ORLANDI, 1999, p. 43).

Relevantes, também, neste estudo, são os conceitos de inter e intradiscurso. O concei-

to de Interdiscurso, na Análise do Discurso, é tratado como a memória discursiva, como aqui-

lo que fala antes, em outro lugar, independentemente. É o saber discursivo que retorna na

forma de pré-construído, o já dito que está na base do dizível, sustentando cada tomada da

palavra (IDEM, 1999, p. 31).

A partir do fragmento seguinte, retirado da obra que será analisada neste trabalho, o

Intradiscurso, como fio do discurso e o Interdiscurso, como o já-dito, são expressos de forma

clara. Entende-se, ainda, que a questão da memória é de grande relevância na obra trabalhada,

uma vez que esse aspecto – o da memória – está presente a todo momento, devido às circuns-

tâncias em que se passa a narrativa, instigando assim a pesquisa a partir da memória e, por

conseguinte, a subjetividade.

Volvió a darme las buenas noches. Y aunque no había niños jugando, ni palomas, nitejados azules, sentí que el Pueblo vivía. Y que si yo escuchaba solamente el silen-cio, era por que aún no estaba acostumbrado al silencio; tal vez porque mi cabeza

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venía llena de ruidos y de voces. De voces sí. Y aquí, donde el aire era escaso, se oí-an mejor. Se quedaban dentro de uno, pesadas4 (RULFO, 2008, p. 70).

Nesse fragmento, há que destacar, inicialmente, o já-dito, o Interdiscurso presente. Na

primeira frase - “tal vez porque mi cabeza venía llena de ruidos y de voces” - empregam-se

palavras que exemplificam a condição do Interdiscurso. Na menção à cabeça, repleta de ruí-

dos e de vozes, tem-se a presença de uma memória discursiva, relembrando fatos que ocorre-

ram e que estão, sim, presentes na obra na condição de um já-dito.

Há, portanto, que salientar a importância do Intradiscurso e do Interdiscurso na pes-

quisa que será realizada, determinando-se, a partir daquele, o discurso de um sujeito, e a partir

deste, a matéria linguística, ideologia do já-dito, reconhecido pelo sujeito nas diferentes for-

mações discursivas.

Por fim, em relação aos demais temas analisáveis, como a tradução, autores como

Walter Benjamin, Jacques Derrida, Rosemary Arrojo, Ana Helena Souza e Solange Mittmann

serão os estudados. Para compreender a subjetividade, a memória e a psicanálise, estão elen-

cados os autores Michel Pêcheux, Jacques Lacan e Joël Dor.

Os temas supracitados serão desenvolvidos no primeiro e segundo capítulos da dis-

sertação. A análise da obra, integrada a todos esses aspectos, será realizada no terceiro capí-

tulo, em que será possível estabelecer a comparação entre a obra original e a sua tradução ao

português, objetivo deste trabalho.

Referências

CARVALHAL, Tânia Franco. Literatura comparada. 4. ed. São Paulo: Ática, 2006.

FERREIRA, Maria Cristina. Glossário de termos do discurso. Porto Alegre: UFRGS. 2005.

GREGOLIN, Maria do Rosário; BARONAS, Roberto (Orgs.). Análise do Discurso: amaterialidade do sentido. São Carlos: Claraluz. 2001.

ORLANDI, Eni. Análise de Discurso: princípios e procedimentos. Campinas: Pontes, 1999.

____. O que é linguística? 2. ed. São Paulo: Brasiliense, 2009.

MALDIDIER, Denise. Elementos para uma história da Análise do Discurso na França. In:ORLANDI, Eni P. (Org). [et al]. Gestos de Leitura: da História no Discurso. Campinas: U-NICAMP, 1997.

MAZIÈRE, Francine. A Análise do Discurso: história e prática. São Paulo: Parábola, 2007.

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MAINGUENEAU, Dominique. Elementos de Lingüística para o texto literário. São Paulo:Martins Fontes, 2001.

PÊCHEUX, Michel. Análise automática do discurso (AAD-69). In: GADET, Françoise;HAK, Tony (Orgs.). Por uma análise automática do discurso. Uma introdução à obra de Mi-chel Pêcheux. 2. ed. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 1993.

PÊCHEUX, Michel. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. 3. ed. Campi-nas, SP: Editora da UNICAMP, 1997.

____. O Discurso: estrutura ou acontecimento. Trad. Eni Pulccinelli Orlandi. Campinas: Pon-tes, 1997. Edição Original: 1983.

____. Semântica e discurso. Uma crítica à afirmação do óbvio. 3. ed. Campinas, SP: Editorada UNICAMP, 1997.

____. Papel da memória. In: ACHARD, Pierre et al. Papel da memória. Campinas, SP: Pon-tes, 1999.

____. Análise de discurso. Princípios e procedimentos. São Paulo: Pontes, 1999.

RULFO, Juan. Pedro Páramo. 21 ed. Madrid: Cátedra, 2008.

____. Pedro Páramo. Trad. Eric Nepomuceno. Rio de Janeiro: Best Bolso, 2008.

SANTOS, Emanuelle; FERREIRA, Juliana; JUVENAL, Valmira. A Revolução Mexicana:reforma agrária e luta pelo direito de retornar a um passado usurpado. NEC- Núcleo de Estu-dos Contemporâneos. 2009. Disponível em http://www.historia.uff.br/nec/materia/grandes-processos/revolu%C3%A7%C3%A3o-mexicana-reforma-agr%C3%A1ria-e-luta-pelo-direito-de-retornar-um-pass. Acesso em: 21 abril 2012.

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O DISCURSO DA VIOLÊNCIA NA LITERATURA E NO CINEMA:REFLEXÕES A PARTIR DE ELITE DA TROPA 2 E TROPA DE ELITE 2.

Francieli Casagranda Metz257

Profª. Drª. Maria Thereza Veloso258

Resumo: Tendo como fundamento teórico a Análise do Discurso de linha francesa, a presentepesquisa se justifica como uma possível contribuição aos estudos que vêm sendo feitos paraanalisar o discurso da violência em expressões ficcionais, tanto pertencentes ao universo lite-rário, quanto ao universo fílmico. Sob este enfoque, e com o objetivo de compreender a vio-lência como um dos fios constitutivos do tecido social, analisar-se-á o discurso da violênciacomo constituinte de uma Formação Discursiva específica, a policial, em uma perspectivahistórica e sob duas óticas distintas – a dos policiais atentos ao regulamento disciplinar de suacorporação, e a dos milicianos, considerados estes, para os objetivos desta pesquisa, comoaqueles que ignoram as normas disciplinares, procedendo de forma oposta àquela dos queobservam os princípios estabelecidos pelas normas social e legalmente aceitas como condi-zentes com a Formação Discursiva policial.

Palavras-chave: Narrativa literária e fílmica. Análise do discurso. Formação discursiva poli-cial. Violência.

O presente estudo tem como tema O discurso da violência na literatura e no cinema:

reflexões a partir de Elite da Tropa 2 e Tropa de Elite 2. Para tal pesquisa, usufrui-se como

fundamento teórico a Análise do Discurso (AD) de linha francesa, especificamente do filósofo

francês Michel Pêcheux.

A Análise do Discurso é herdeira das Três regiões de conhecimento – Psicanálise,

Linguística, Marxismo. Dentro da tradição marxista, a grande novidade que as teorias de Pê-

cheux trouxeram foi a de romper com uma concepção de ideologia como simples reflexo da

instância econômica e com uma concepção de linguagem como instrumento de comunicação

e língua enquanto sistema anquilosado a uma sintaxe suturada.

Essa teoria se distingue da perspectiva do materialismo histórico, por se ocupar de

uma realidade peculiar, dotada de uma regularidade e um modo de funcionamento irredutível.

Dessa forma o objeto de estudo da AD se diferencia a suas pesquisas ganham autonomia em

relação a outros campos como o das formações econômicas e sociais. Assim as descrições e

as interpretações de discursos têm como uma de suas bases as Ciências da Linguagem e a

Linguística Estruturada que propõem uma concepção de língua como opaca, equívoca e com

uma regularidade interna própria, conforme sustentava Saussure.

257 Mestranda em Letras pela URI, campus de Frederico Westphalen258 Orientadora

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A Análise do Discurso permite uma abordagem alternativa para a compreensão de

fenômenos de ordem semântica. A abordagem materialista proposta por Pêcheux na década de

1960 desencadeou uma trajetória acidentada, com ratificações e retificações, ajustes, desvios e

retomadas. Tal percurso configurou uma obra basilar da AD francesa que tem seu expoente,

em um primeiro momento no Brasil, com a pesquisadora Eni Orlandi. Essa teórica faz uma

interpretação que ressignifica os conceitos pecheutianos, de modo a torná-los possíveis de

serem mobilizados teórico-analiticamente em discursos constituídos, formulados e em circu-

lação no contexto brasileiro. Dito de outro modo, a relação entretida é de interpretação da

obra e não de recepção de conceitos além-mar.

Nessa perspectiva, a presente pesquisa se justifica como uma possível contribuição

aos estudos que vêm sendo feitos para analisar a presença do discurso histórico em expressões

ficcionais, tanto pertencentes ao universo literário, quanto ao universo fílmico. É indispensá-

vel enfatizar, nos estudos e discussões literárias, a importância da História como um dos com-

ponentes do discurso. Neste estudo, particularmente, interessa vê-la como um testemunho

discursivo do caráter autoritário a que sociedade brasileira está submetida desde sua formação

inicial. Sob este enfoque, e com o intuito de compreender a violência como um dos fios cons-

titutivos do tecido social, escolhi analisar o discurso policial em uma perspectiva histórica e

sob dois ângulos distintos, o dos policiais atentos à disciplina e à honestidade no desempenho

de suas obrigações funcionais, e o dos milicianos, para os objetivos desta pesquisa entendidos

como aqueles que ignoram as normas disciplinares, procedendo de forma oposta àquela dos

que observam os princípios estabelecidos pelas normas social e legalmente aceitas como con-

dizentes com a Formação Discursiva policial.

Para tanto, tomei como Corpus o livro Elite da Tropa 2 e o filme Tropa de Elite 2, en-

tendendo que ambos apontam para a existência de um estado permanente de execução da vio-

lência tanto no meio social em seu sentido amplo, como naquele partilhado pelos policiais no

exercício profissional.

Acrescento que a opção pelo Corpus foi determinada por três fatores. Primeiro, por

permitir abordar a temática da violência brasileira nascida – possivelmente e em alguns casos

– do desconforto e da pobreza, analisando a realidade, em toda sua crueza, através da visão

policial, tanto das milícias, quanto do grupo de policiais que lutam contra a criminalidade (o

BOPE). Um segundo fator foi a possibilidade de analisar os discursos dos sujeitos mediante o

referencial teórico da Análise do Discurso, de linha francesa, considerando a importância de

seus três elementos constitutivos – a linguística, o materialismo histórico e a psicanálise –, ou

seja, pela contribuição possível dessas três áreas para a compreensão das condições de produ-

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ção discursiva nos ambientes e situações sob análise; e, um terceiro fator, a possibilidade de

avaliar com que teor de fidelidade ocorreu a transposição do discurso da violência da lingua-

gem literária para a linguagem fílmica, mediante a criação, nesta, de situações simuladoras de

contextos discursivos reais.

Para efeitos da análise, considero, ainda, que o problema a ser discutido diz res-

peito à possibilidade de compreender a violência como uma forma de ação política, capaz de

afetar o meio social em sentido amplo. Visando a atender aos objetivos desta pesquisa, um

primeiro olhar sobre o Corpus sugere a existência de uma tensão, mediada pela violência e

pela política partidária, entre sociedade, milícias e polícia, ou seja, entre os componentes das

formações discursivas (FD) sob análise.

Entende-se pertinente o tema da presente pesquisa na medida em que visa a associar a

ficção com a realidade cotidiana, procurando evidenciar pistas discursivas que justifiquem a

crítica social presente em obras como as que constituem o Corpus deste trabalho. Por meio de

expressões artísticas como a literatura e o cinema, ainda que muitas vezes a alusão a fatos,

personagens e circunstâncias ali esteja de forma subentendida ou implícita, é possível resgatar

ou evidenciar, sob diferentes pontos de vista, a importância de determinados momentos histó-

ricos vividos pela sociedade. A proposta é também relevante pela possibilidade de desnudar,

pela análise de elementos linguísticos e imagéticos presentes respectivamente no discurso

literário e no discurso fílmico, algumas das diversas formas de autoritarismo que perpassam o

tecido social, oriundas de formações discursivas específicas, como, no caso do Corpus sob a

análise, a formação discursiva policial (FDP).

Para viabilizar a pesquisa, o pressuposto inicial é a necessidade de compreender e, ao

mesmo tempo, qualificar, ou seja, categorizar e contextualizar a violência urbana. Com este

objetivo, escolheram-se as obras já mencionadas, uma literária e outra cinematográfica, por

retratarem e, ao mesmo tempo, terem sido ambientadas em um espaço de violência e de ca-

rência, um ambiente abandonado pelo Estado e dominado pelo tráfico, bandidos e milícias.

Para o desenvolvimento desta pesquisa, serão levadas em conta abordagens que, base-

adas na Análise do Discurso, na teoria literária e na linguagem fílmica, poderão contribuir

para a análise e interpretação de elementos relacionados à violência tal como se apresentam

na visão policial presente no livro Elite da tropa 2 e no filme Tropa de Elite 2. Assim a pes-

quisa proposta será feita com base nos pressupostos teóricos da Análise de Discurso, segundo

a qual é ao longo do processo analítico que se delineiam e conformam as estratégias a serem

empregadas.

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Lembramos que a violência entre as milícias e as polícias é um fator preocupante e ca-

paz de desestabilizar a sociedade e se transforma em eficiente instrumento de persuasão social

em seu próprio favor, levando esses grupos ao reconhecimento, pelas comunidades, como

talvez os únicos em eficiência para o controle e diminuição de uma outra espécie de violência,

originada em comportamentos antissociais, nascidos das camadas marginais da sociedade.

Tendo como corpora de análise o livro Elite da Tropa 2 e o filme Tropa de Elite 2, o

objetivo geral desta proposta de pesquisa é identificar, na literatura e no cinema, pistas do

discurso da violência enquanto força política capaz de desestabilizar parcelas significativas

da sociedade civil organizada. Por outro lado, pretendo estudar referenciais discursivos acerca

das causas, características e níveis de violência urbana predominantes no País, avaliar o modo

(se crítico ou não) como os personagens dos corpora em análise concebem a violência a sua

volta, revisar aspectos fundamentais da Análise do Discurso de linha pecheutiana que tenham

a ver com os objetivos da pesquisa. Por fim, justificar, à luz da teoria da Análise do Discurso,

os níveis de discurso utilizados pelos personagens na obra literária original e na sua transposi-

ção para o discurso fílmico.

É oportuno considerar que o problema proposto à abordagem nesta pesquisa necessita

de uma avaliação que ultrapasse pressupostos de ordem literária. A justificativa mais plausível

e que melhor satisfaz essa consideração apóia-se na possibilidade de associação entre Litera-

tura e contexto social, já que, “a análise estética precede considerações de outra ordem”

(CANDIDO, 2000, p. 3). A partir dessa base, e tomando-se como sequências discursivas de

referência (SDR) recortes discursivos (RD) tomados dos corpora, será feita uma análise inter-

pretativa de forma a examinar o modo como as obras sob análise refletem, ou não, uma de-

núncia ao meio social sobre a violência que permeia alguns órgãos encarregados de manter a

ordem e a segurança nas comunidades.

O foco da análise estará na estruturação sintático-lexical das SDs, de forma a identifi-

car, qualitativa e não quantitativamente, como se dá a articulação entre o lingüístico e o ideo-

lógico e se os resultados dessa articulação alcançam o locus para além dos limites das SDs.

É importante ressaltar que por mais que o curso de especialização seja voltado a litera-

tura comparada, a Análise do Discurso permite melhor compreensão das produções do sentido

e de suas determinações histórico-sociais. Isso permite que além do comparatismo possamos

compreender a “historicidade inscrita na linguagem que não nos permite pensar na existência

de um sentido literal, já posto, e nem mesmo que o sentido possa ser qualquer um, já que toda

interpretação é regida por condições de produção” (FERREIRA, 2001, p. 11).

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Para a análise das temáticas selecionadas nos RD, buscar-se-á respaldo em referências

a experiências e fatos sociais, considerando-se autores como Metz, Pêcheux, Saussure, Lacan,

Freud, Foucault, Bernadet, Candido, Veloso, Henry, Martin, Mongin, Mourão, Nunes, Orlan-

di, Ramos, Teixeira, Vanoye e Xavier, entre outros, inserindo-se o presente estudo na Linha

de Pesquisa Comparatismo e Processos Culturais do PPGLC.