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2507 Anais Eletrônicos do III Seminário Nacional Literatura e Cultura São Cristóvão/SE: GELIC/UFS, V. 3, 6 a 8 de junho de 2011. ISSN: 2175-4128 Luiz Eduardo da Silva Andrade (UFS) ii A tarefa de nomear o outro é sempre complexa. A começar pela noção de “outro” que remete a um ser desconhecido e diferente daquele que observa. Contudo, vemos que essa condição de ser o “mesmo” ou o “outro” – familiar ou estranho (Freud, 1976) depende da perspectiva de quem busca nomear. Nessa tentativa de se colocar no mundo, podemos observar que o nome identifica e dá limites. Ainda que não seja o nome propriamente dito, mas aquela partícula pela qual o sujeito é identificado em meio aos demais. Pois ela revela muita coisa, tanto de quem atribuiu, quanto de quem porta. Configurando-se como um recipiente, no nome “estão vertidas as avaliações conscientes ou involuntárias de quem nomeia” (STRAUSS, p. 35, 1999). Inscrevendo os sujeitos na história de um grupo social, familiar ou religioso, por exemplo. O nome categoriza. De modo que o sujeito desprovido ou que não o tenha pode ser considerado sem identidade, uma alteridade em meio aos demais. A tarefa de nomear o outro é sempre complexa. A começar pela noção de “outro” que remete a um ser desconhecido e diferente daquele que observa. Contudo, vemos que essa condição de ser o “mesmo” ou o “outro” – familiar ou estranho (Freud, 1976) depende da perspectiva de quem busca nomear. Nessa tentativa de se colocar no mundo, podemos observar que o nome identifica e dá

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2507Anais Eletrônicos do III Seminário Nacional Literatura e Cultura

São Cristóvão/SE: GELIC/UFS, V. 3, 6 a 8 de junho de 2011. ISSN: 2175-4128 � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � �

Luiz Eduardo da Silva Andrade (UFS)ii

A tarefa de nomear o outro é sempre complexa. A começar pela noção de

“outro” que remete a um ser desconhecido e diferente daquele que observa.

Contudo, vemos que essa condição de ser o “mesmo” ou o “outro” – familiar ou

estranho (Freud, 1976) – depende da perspectiva de quem busca nomear. Nessa

tentativa de se colocar no mundo, podemos observar que o nome identifica e dá

limites. Ainda que não seja o nome propriamente dito, mas aquela partícula pela

qual o sujeito é identificado em meio aos demais. Pois ela revela muita coisa,

tanto de quem atribuiu, quanto de quem porta. Configurando-se como um

recipiente, no nome “estão vertidas as avaliações conscientes ou involuntárias de

quem nomeia” (STRAUSS, p. 35, 1999). Inscrevendo os sujeitos na história de um

grupo social, familiar ou religioso, por exemplo. O nome categoriza. De modo que

o sujeito desprovido ou que não o tenha pode ser considerado sem identidade,

uma alteridade em meio aos demais.

A tarefa de nomear o outro é sempre complexa. A começar pela noção de

“outro” que remete a um ser desconhecido e diferente daquele que observa.

Contudo, vemos que essa condição de ser o “mesmo” ou o “outro” – familiar ou

estranho (Freud, 1976) – depende da perspectiva de quem busca nomear. Nessa

tentativa de se colocar no mundo, podemos observar que o nome identifica e dá

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limites. Ainda que não seja o nome propriamente dito, mas aquela partícula pela

qual o sujeito é identificado em meio aos demais. Pois ela revela muita coisa,

tanto de quem atribuiu, quanto de quem porta. Configurando-se como um

recipiente, no nome “estão vertidas as avaliações conscientes ou involuntárias de

quem nomeia” (STRAUSS, p. 35, 1999). Inscrevendo os sujeitos na história de um

grupo social, familiar ou religioso, por exemplo. O nome categoriza. De modo que

o sujeito desprovido ou que não o tenha pode ser considerado sem identidade,

uma alteridade em meio aos demais.

Essa é uma das características do ser monstruoso, a imprecisão. Miguel

Mix (1993) dirá que ao monstro se apartam a estética e a ética, se fosse comparado

a um homem, este homem seria um estrangeiro, ou seja, um indivíduo que está

deslocado momentaneamente da realidade. O monstro é um ser fronteiriço, vive

no limite do mundo conhecido e do imaginário, característica a qual corrobora o

fato de ele ser inapreensível tanto fisicamente quanto em pensamentos e

motivações. É justamente nessa fronteira do conhecido e do imaginário que Freud

(1976) discute a relação do que é o estranho (Unheimliche) e do que é familiar

(Heimliche). Para o estudioso eles são parte de um mesmo corpo, variando de

acordo com a circunstância de identificação: “Direi, de imediato, que ambos os

rumos conduzem ao mesmo resultado: o estranho é aquela categoria do

assustador que remete ao que é conhecido, de velho, e há muito familiar”

(FREUD, 1976, p. 277).

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Em A menina morta (1954), de Cornélio Penna encontramos várias

discussões acerca da identidade. Se por um lado temos a figura do Comendador,

ancorada no sistema patriarcal, imprimindo uma forte marca identitária,

sustentada pela violência da dominação. Por outro, encontramos personagens de

resistência como D. Mariana, sua esposa, e as escravas. Não obstante, as

identidades estão diluídas e fragmentadas no decorrer da narrativa, como se

lutassem constantemente pelo espaço. Prova disso é o silêncio que permeia as

relações entre os senhores, quebrado apenas pelas micro-narrativas das negras

que ora elucidam ou omitem a memória da família.

Destarte, o objetivo deste trabalho é analisar, a partir do episódio da

mucama sem rosto, a identidade monstruosa dos negros no romance. Certamente

há um paradoxo nessa conceituação, pois como é que um ser sem identificação

(face) tem identidade? Seria nesse caso uma alteridade? A própria cena da escrava

sem rosto e sem nome é misteriosa. São questões que procuraremos discutir no

transcorrer do ensaio.

A narrativa inicia com os preparativos para o sepultamento da menina

morta. Ela, que não tem o nome revelado, arrasta consigo todas as virtudes do

lugar, aludidas pela sensação de perda que todos sentem, inclusive os escravos.

Tudo se passa na fazenda do Grotão, situada no Vale do Paraíba, na fronteira

entre as províncias de Minas Gerais e do Rio de Janeiro. Da parte do

Comendador, moravam na casa-grande as suas primas Dª. Virgínia, Dª. Inacinha

e Sinhá Rola; da parte de D. Mariana, apenas Celestina. Sendo que mais adiante

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chega ao Grotão Carlota, a filha do casal trazida da corte. Eram inúmeros

agregados e três centenas de escravos trabalhando na lavoura de café e dentro da

casa-grande, bem como Frau Luísa, a governanta alemã. O clima de mistério é

constante, não se sabe qual o mal que acarretou na morte prematura da criança,

em verdade fala-se pelos cantos muito mais na falta e nas irrealizações para todos

do que na própria vida da menina.

Luís Bueno (2006, p. 525) no livro Uma história do romance de 30 reserva um

capítulo para a obra de Cornélio Penna. Inicia sua crítica comentando um texto

em que Gilberto Freyre diz não considerar Cornélio um escritor

predominantemente telúrico, juntamente com Machado de Assis, pois ambos

quedam mais ao estilo europeu. Telúrico entenda-se como regionalista,

substantivo derivado de terra. Diz Bueno que a consideração de Freyre é

superficial e correta quando analisada a obra de Cornélio sob o prisma do neo-

realismo, crítica sócio-econômica. No entanto, o sentido de telúrico como

representação da terra não apartaria José Lins do Rego do nosso escritor. Pautado

nas considerações de Maria Arminda Arruda e Manuel Bandeira, Bueno defende

a “mineiridade” de Cornélio, isto estaria expresso na evocação da cidade

interiorana, dos costumes, sem contar o clima e a paisagem serrana. Decerto que

Luís Bueno não adentra em A menina morta, porém estendendo sua análise

encontramos estes traços mineiros na nossa narrativa. Que não se confunda como

romance laudatório dos costumes interioranos, ao contrário, a proposta é abrir a

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cortina e destruir esse mundo falsamente escondido pelo ar religioso, ordeiro e

moralista, onde a identidade negra e a feminina são marginais.

O romance corneliano flui numa atmosfera vaga, mas detalhista na

evocação de determinadas imagens, diz Alfredo Bosi (1978) que

A Menina Morta é um romance de atmosfera mas, ao mesmo tempo, um conjunto absolutamente coeso e verossímil. O efeito de mistério que dele se depreende não se deve a intrusões aleatórias de seres embruxados, mas à própria realidade material e moral de uma fazenda às margens do Paraíba e às vésperas da Abolição. (p. 469)

Daí vemos a exposição do mistério como um elemento revelador: de uma

moral desgastada, de uma sociedade em decadência, de uma economia à beira de

crise e, sobretudo, da escravidão como mácula na história do Brasil. Como

comenta Josalba Fabiana dos Santos (2008): “Na obra corneliana, o mistério

encobre com a mesma intensidade que revela: não é um fim, é um meio”. Ou seja,

a lacuna não significa um espaço vazio, mas um intervalo entre o que se tentou

apagar da memória e o que retorna tal qual um fantasma para assombrar.

Continuando, sobre a importância de A menina morta, Bosi (1978) diz que

“o ‘documento’ é tão rico nesse particular que Augusto Frederico Schmidt pode

dizer: ‘Não se terá escrito sobre a escravidão no Brasil, até hoje, nada mais

impressionante do que alguns dos capítulos de A Menina Morta’” (p. 469). A obra

não tem por obrigação primordial o resgate da história, contudo observe-se que o

resgate histórico do Brasil é tão precário que mesmo uma narrativa brumosa, na

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visão de Schmidt (1958, p. 723), suplanta esta falha. Este é o ponto mais criativo

de Cornélio: trazer à “luz” os fragmentos que na visão “oficial” “mancham” a

nossa história.

Inversamente ao que se imagina como luz – a liberdade, o bem, a verdade,

a razão –, a poética corneliana recupera resíduos com seu mar de metáforas e

densas alegorias. Um dos valores de sua obra está precisamente na redução de

várias imagens à atmosfera de dor e de opressão que a ausência da menina

provoca em cada personagem.

É uma narrativa profunda, beirando o expressionismo, sua visão

apocalíptica do mundo não é colorida – porque nem tudo o é –, Cornélio não

prevê um “fim”, pois compreende que há uma circularidade intrínseca ao mundo.

Haverá sempre o retorno e a constante necessidade de destruição. Diz Adonias

Filho (1958) que

o romancista, sendo dos mais originais da literatura brasileira contemporânea, submete sua arte aos rigores de um artesanato consciente. Inimigo da improvisação, sua técnica é lenta, sua narrativa avança em espiral no sentido da profundeza, procurando sondar a alma humana até os mais ínvios recantos, graças ao manejo da introspecção. (XXXIX)

Com a publicação de A menina morta a literatura brasileira deu um salto

quântico em relação à inovação técnica e temática. Adonias Filho (1958) nomeia

este instante como “transcendência em nossa ficção” e continua dizendo que

Cornélio amplia as possibilidades do romance brasileiro. “Mas, se estas

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possibilidades seriam aproveitadas pelas gerações posteriores, refletem o

imediato entrosamento da ficção brasileira com a própria ficção universal na base

dos problemas extremos que torturam a criatura humana” (p. XLIV).

Sem dúvida a literatura de Cornélio Penna vai incidir sobre problemas do

ser, pontuados na imprecisão com que o autor descreve as cenas e caracteriza as

personagens. Como no episódio chave da nossa análise, que é a passagem da

negra sem rosto (PENNA, Cap. XXVI, 1958). Dadade, escrava que fora ama do

Comendador, sempre recebe a visita de Celestina, parenta de D. Mariana que a

negra propositalmente confunde com uma ancestral da família. Certa vez Dadade

conta à jovem a história de uma mucama que aparecera no quarto da antiga

senhora do Grotão, quando esta zangada dispensara as demais escravas.

Impressionada com a destreza da mucama desconhecida, a senhora tenta a todo

custo ver o rosto dela, enquanto a negra se esquiva baixando a cabeça com os

cabelos caídos e movimentos rápidos na execução das tarefas.

A Sinhá não queria mostrar que estava com medo e teve a lembrança de mandar apagar a vela, e assim, quando a escrava chegasse o rosto perto da chama, poderia ver quem era sem ter de ordenar que se mostrasse. Mas a mucama manobrando para não se voltar estendeu o braço e ia apertar o pavio com os dedos, sem que fizesse um só gesto para descobrir o rosto, quando a senhora puxou-lhe a mão e conseguiu chegar a luz bem perto dos olhos dela, para iluminar em cheio a sua cara... (PENNA, p. 865, 1958).

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Não conseguindo distinguir o que via, a senhora segurou a negra pelos

cabelos “e deu um grande grito, que todos na fazenda ouviram...” (PENNA, p.

865, 1958). Pois a mucama não tinha rosto.

Ironicamente em A menina morta são as negras que delineiam o andamento

da narrativa. Como se dentro daquela estrutura narrativa elas organizassem e

imprimissem a identidade negra, inclusive narrando aos moradores da casa-

grande episódios fantásticos, e de alguma forma inserindo os brancos no seu jogo

de claro-escuro. Tão próprias da escrita alegórica e carregadas de sinais de

Cornélio Penna. São as negras quem controlam a vida dos brancos. Esse é o poder

da identidade que Castells (2008) discute no seu livro, o de imprimir significados

à ordem vigente, contrariando e se instituindo como mais um núcleo de poder.

Nesse misto de realidade e fantasia, como no episódio narrado por Dadade, elas

vão imprimindo suas micro-narrativas, já identificadas por Josalba Fabiana dos

Santos quando a estudiosa diz: “labirínticas, essas histórias não apenas simulam o

romance em questão, mas igualmente simulam a arquitetura da casa-grande, com

muitos corredores e quartos que faziam os mais desavisados se perderem” (p. 70,

2008)

Retomando a história da anciã, Josalba Fabiana dos Santos (p. 97, 2004)

argumenta que “a mucama sem rosto e que fala coisas incompreensíveis é a

síntese do que todos os escravos são para o sistema patriarcal: gente que não tem

o que expressar e que tampouco possui um rosto, uma identidade”. Podemos

pensar que essa destituição da identidade do negro durante a escravidão é uma

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tentativa de afastar o medo premente de alguma revolta. Prática social que é na

verdade uma ação ingênua, pois que se suprime – ou se tenta – a identidade

individual, deixando implícito na sensação de medo dos senhores que há uma

identidade coletiva – do negro, do escravo – a questionar diuturnamente o

patriarcalismo. O fato é que retirando a face do outro não se é obrigado a ver o

que não se quer. Ou como diz Freud sobre a repressão e transformação do

estranho, aqui alinhado com a figura do negro:

Entre os exemplos de coisas assustadoras, deve haver uma categoria em que o elemento que amedronta pode mostra-se ser algo reprimido que retorna. Essa categoria de coisas assustadoras constituiria o estranho. [...] Pois esse estranho não é nada de novo ou alheio, porém algo que é familiar e há muito estabelecido na mente, e que somente se alienou desta através do processo da repressão. (FREUD, p. 300-301, 1976.)

Para o sistema patriarcal, a única imagem do negro que é familiar é a do

seu corpo, enquanto mão-de-obra usada na lavoura de café, dentre outros

afazeres. O horror da Sinhá não está no simples fato de saber da mucama sem a

face, mas na memória “reprimida” que vem à tona quando se procura ver aquilo

que tinha sido histórico-socialmente desfamiliarizado. O rosto da negra nesse

caso, representaria a identidade fraturada no olhar do branco, pois este de

alguma forma se reconhece naquilo que vê na face do outro, do contrário seria

impossível estabelecer as relações de estranhamento e familiarização. Luiz

Nazário (1998) define o ser monstruoso como sendo naturalmente deformado, de

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modo que nunca estará em conformidade com o homem, a sociedade, o espaço ou

o momento histórico. Representa sempre uma diferença, uma anomalia do que

está social e culturalmente instituído. O fato de Cornélio Penna trazer a baila em

1954, auge do desenvolvimento industrial do país com o governo Vargas, essa

narrativa ambientada no século XIX, com figuras fantasmagóricas, é uma prova

de que tamanho estranhamento frente ao sujeito negro só endossa a histórica

“dívida” que ficou para trás quando da formação do ideal nacional. Leia-se da

literatura brasileira. Corroborando o que comentamos anteriormente sobre o

valor histórico que Augusto Frederico Schmidt (1958) atribui ao romance

corneliano. Ao apresentar esse episódio, bem como toda a narrativa de A menina

morta, Cornélio Penna dialoga com a toda a “história do esquecimento” no Brasil

que de alguma forma legou ao negro papéis marginais na sociedade.

Neste ponto lembramos Manuel Castells (2008) quando este entende que

os papéis sociais “são definidos por normas estruturadas pelas instituições e

organizações da sociedade” (p. 23), que nesse caso sempre foram dominadas

pelos brancos, ou melhor, pelo regime patriarcal presente em A menina morta. Já

as “identidades, por sua vez, constituem fontes de significado para os próprios

atores, por eles originadas, e constituídas por meio de um processo de

individuação” (CASTELLS, p. 23, 2008). Novamente, o episódio da mucama sem

rosto dá uma mostra de como funciona esse processo de formação da identidade.

Como que um ser sem nome e sem face passaria pela individuação? A passagem

em questão lança o foco sobre essa massa de pessoas que para o regime patriarcal

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vigente tanto na obra, quanto na sociedade, só é identificada pela cor da pele.

Configurando-se como seres estranhos e, portanto, monstruosos.

Eles são a memória forçada ao esquecimento, como se a mucama tivesse

seu rosto apagado com o tempo. A identidade nacional branca vê os negros como

seres marginais, o branco familiar e os negros como estranhos. Só que, como nos

adverte Freud (1976), o familiar e o estranho são ontologicamente semelhantes. E

esse é o maior susto do branco, descobrir que aqueles seres Outros que estavam

para além das fronteiras do imaginário europeu, agora irrompem no seio da

sociedade patriarcal. A monstrificação do negro está na esfera do que é diferente

do instituído, justifica-se aí a fratura que o negro representa na história do Brasil.

Ele é o intervalo entre o imaginário branco e a realidade diária que assombra a

nação.

Para o projeto nacional esses sujeitos fogem à instituição do que se

entende por comum e nomeável, restando-lhe a alcunha de monstro. Como nos

mostra José Gil (p. 173, 2000):

o outro toma forma no intervalo que vai do Ego-homem ao animal e aos deuses, resultando sempre de uma transformação da humanidade do homem. É a natureza dessa transformação que temos de definir em cada caso se quisermos compreender o significado do Outro. É por isso que as diferentes formas do Outro tendem para a monstruosidade. [...] Por exemplo, embora os índios e negros descobertos nos séculos XV e XVI em África e nas Américas se encontrassem aquém das fronteiras da monstruosidade, a sua humanidade foi objecto de dúvida: eram monstros, animais?

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Em A menina morta, sobretudo na passagem chave da nossa análise, o

contato da Sinhá com a mucama sem rosto representa o encontro do patriarcado

com o desconhecido, com o sujeito sem nome, sem identidade, um estrangeiro.

Ideia de Gil (2000) que se coaduna com Mix (1993), quando eles chamam a

atenção para a imagem do Outro que os europeus montaram, juntando seu

imaginário com a realidade de um novo ambiente – América – repleto de

estranhos.

Dessa forma, vemos que é o estranhamento do patriarcado, frente ao

sujeito negro, que atribui ao escravo a identidade monstruosa, a qual não se

desfaz com o fim da narrativa, já que a libertação dos escravos promovida por

Carlota, filha do Comendador, não significa a resolução do problema. Prova disso

está no próprio diálogo que podemos fazer entre a narrativa corneliana e a

posição do negro historicamente na sociedade brasileira.

Libertar os escravos não significa dar-lhes identidades individuais. De

alguma forma continuam como seres sem nomes, visto que não constituíram na

história, nem significados, nem significações, tal qual condiciona Castells (2008)

para a formação de uma identidade coletiva que fizesse frente ao sistema

patriarcal. Situação que não é imutável, pois que é pontual, assim como anunciara

Freud (1976), o estranho e o familiar nasceram e convivem na fronteira do real

com a imaginação, inscrevendo(-se) aqui e acolá constantemente.

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