Análise crítica da jurisprudência nacional · 341 Mazzuoli, Valerio de Oliveira M478j O...

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O JUDICIÁRIO BRASILEIRO E O DIREITO INTERNACIONAL Análise crítica da jurisprudência nacional

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O JudiciáriO BrasileirO e O direitO internaciOnalAnálise crítica da jurisprudência nacional

O JudiciáriO BrasileirO e O direitO internaciOnalAnálise crítica da jurisprudência nacional

VALERIO DE OLIVEIRA MAZZUOLIProfessor Associado da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT)

Doutor summa cum laude em Direito Internacional pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)Mestre em Direito pela Universidade Estadual Paulista

“Júlio de Mesquita Filho” (UNESP)Professor do Mestrado em Proteção dos Direitos Fundamentais

da Universidade de Itaúna (UIT)Advogado

JAHYR-PHILIPPE BICHARAProfessor Associado da Faculdade de Direito da

Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN)Doutor summa cum laude em Direito Internacional pela

Universidade de Paris I (Panthéon-Sorbonne)Mestre em Direito Internacional Econômico pela Universidade de Paris I (Panthéon-Sorbonne) e

Mestre em Direito Público pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE)

Belo Horizonte2017

341 Mazzuoli, Valerio de OliveiraM478j O judiciário brasileiro e o direito internacional: uma análise crítica2017 da jurisprudência nacional / Valerio de Oliveira Mazzuoli, Jahir- Philippe Bichara. Belo Horizonte: Arraes Editores, 2017. p.145

ISBN: 978-85-8238-302-5

1. Direito internacional. 2. Brasil – Poder judiciário. 3. Ordenamento jurídico – Brasil. 4. Positivismo voluntarista. 5. Justiça federal – Competências. 6. Tratados internacionais. I. Bichara, Jahir-Philippe. II. Título.

CDD(23.ed.)–341 CDDir – 341.1

Belo Horizonte2017

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André Lipp Pinto Basto LupiAntônio Márcio da Cunha Guimarães

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duas Palavras

Diferentemente do direito interno, o direito internacional carac-teriza-se por ser um processo de elaboração descentralizado em que tanto a produção normativa quanto os seus efeitos dependem do con-sentimento dos Estados na adoção de um ou outro comportamento. Esse mecanismo de construção jurídica confere ao direito interna-cional primazia sobre os ordenamentos jurídicos internos, cabendo aos Estados, por meio dos seus poderes constituídos, executar e fazer cumprir suas normas de boa-fé. Não é, assim, simples faculdade do Estado o cumprimento dos ditames do direito internacional público, especialmente dos tratados internalizados e em vigor, senão obrigação que lhe impõe a ordem jurídica internacional da qual faz parte.

O estudo que agora se apresenta– resultado de um diálogo perene que os seus autores mantêm há vários anos – aborda a temática sob a ótica do Poder Judiciário brasileiro em áreas tais como direitos huma-nos, acordos da OMC ou, ainda, transporte aéreo internacional, tudo com o objetivo de avaliar a maneira pela qual os tribunais brasileiros (em especial os tribunais superiores) apreendem a aplicação do direito internacional público à luz de sua dogmática.

Este livro sela uma parceria entre os grupos de estudo de direi-to internacional público da Universidade Federal de Mato Grosso (coordenado pelo coautor Valerio de Oliveira Mazzuoli) e da Uni-versidade Federal do Rio Grande do Norte (coordenado pelo coau-tor Jahyr-Philippe Bichara). Após inúmeros encontros e reuniões conjuntas (em Cuiabá-MT e em Natal-RN), revolveu-se colocar no

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papel as ideias que há tanto tempo se discutem. Este livro é, portan-to, o resultado desse diálogo profícuo.

O ensaio que ora vem à luz é estudo único no direito brasileiro, que até momento não havia sido versado por qualquer internacio-nalista pátrio, devendo, por isso, servir ao aplicador do direito e aos estudantes como roteiro atualizado de análise jurisprudencial atinente à aplicação do direito internacional público no Brasil.

Cuiabá-Natal, maio de 2017.

OS AUTORES

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aBreviaturas e siglas usadas

ampl. ampliada (edição)

Ap. Cív. Apelação cível

art. artigo

arts. artigos

atual. Atualizada

CF/88 Constituição Federal de 1988

CJ Conflito de jurisdição

CPC Código de Processo Civil

DJ Diário da Justiça

DJe Diário da Justiça eletrônico

DOU Diário Oficial da União

ed. edição

loc. cit. locus citatum/lugar citado

Min. Ministro

n. número

OIC Organização Internacional do Comércio

OIT Organização Internacional do Trabalho

OMC Organização Mundial do Comércio

ONU Organização das Nações Unidas

VIII

op. cit. opus citatum/obra citada

p. página(s)

Rel. Relator

rev. revista (edição)

ss. seguintes

STF Supremo Tribunal Federal

STJ Superior Tribunal de Justiça

TJ Tribunal de Justiça

TRF Tribunal Regional Federal

TST Tribunal Superior do Trabalho

v. vide/ver

v. volume

v.g. verbi gratia/por exemplo

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suMáriO

INTRODUÇÃO .............................................................................................. 1

Parte 1FUNDAMENTOS DOGMÁTICOS DA OBRIGATORIEDADE DO DIREITO INTERNACIONAL NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO ............................................................................. 7

CaPítulo 1PRINCÍPIO DA SUPERIORIDADE DO DIREITO INTERNACIONAL COMO ELEMENTO DE RECONHECIMENTO DE SUA OBRIGATORIEDADE NA DOUTRINA DO POSITIVISMO VOLUNTARISTA ...................... 91.1. Prevalência do voluntarismo estatal em Emer de Vattel .................. 101.2. Teoria da autolimitação de Georg Jellinek .......................................... 111.3. Teoria da vontade comum (Vereinbarung) ......................................... 131.4. Teoria da norma hipotética fundamental (Grundnorm) ................. 14

CaPítulo 2PRINCÍPIO DA SUPERIORIDADE DO DIREITO INTERNACIONAL COMO ELEMENTO DE RECONHECIMENTO DE SUA OBRIGATORIEDADE NA DOUTRINA JUSNATURALISTA ............................................................... 172.1. Primazia do direito internacional segundo Verdross ........................ 182.2. Lei moral superior de Louis Le Fur ...................................................... 19

CaPítulo 3CONTRIBUIÇÕES DA DOUTRINA SOCIOLÓGICA ........................ 213.1. Solidariedade internacional segundo Léon Duguit ........................... 223.2. Afastamento do positivismo voluntarista na visão de Georges Scelle 23

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Parte 2FUNDAMENTOS CONSTITUCIONAIS DA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA BRASILEIRA EM MATÉRIA DE DIREITO INTERNACIONAL ........................................................................................ 27

CaPítulo 4PRINCÍPIO DA INAFASTABILIDADE DO CONTROLE JURISDICIONAL DO DIREITO INTERNACIONAL .......................... 294.1. Direito internacional público na Constituição brasileira de 1988 . 304.2. Sentido do princípio geral de direito consagrado no art. 5º, XXXV, da CF/88 ....................................................................................... 314.3. Alcance do princípio da inafastabilidade ............................................ 32

CaPítulo 5COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL EM MATÉRIA DE DIREITO INTERNACIONAL ..................................................................... 375.1. Competência da Justiça Federal para dirimir litígios envolvendo Estados estrangeiros ou organizações internacionais e municípios ou pessoas domiciliadas ou residentes no Brasil ................................ 385.2. Competência da Justiça Federal para dirimir litígios fundados em tratados e contratos internacionais ................................................ 405.3. Competência da Justiça Federal para garantir o cumprimento de tratados internacionais de direitos humanos e outras questões ...... 445.4. Considerações finais ................................................................................ 46

CaPítulo 6COMPETÊNCIA DAS CORTES SUPERIORES BRASILEIRAS NA APLICAÇÃO DO DIREITO INTERNACIONAL........................... 496.1. Competência do STJ em matéria de direito internacional ............. 506.2. Competência do STF em matéria de direito internacional.............. 526.3. Competência do TST na aplicação das convenções da OIT ............ 54

Parte 3CONTROLE EXERCIDO PELO PODER JUDICIARIO SOBRE A APLICAÇÃO DO DIREITO INTERNACIONAL .............................. 59

CaPítulo 7CONTROLE JURISDICIONAL DA APLICAÇÃO DOS TRATADOS NO BRASIL ...................................................................................................... 637.1. Controle de legalidade ............................................................................ 657.2. Controle de convencionalidade ............................................................ 67

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CaPítulo 8CONTROLE DE APLICAÇÃO DOS TRATADOS INTERNACIONAIS DE CUNHO ECONÔMICO ............................... 718.1. Aplicação dos acordos da OMC pelo Poder Judiciário .................... 72 8.1.1. Aplicação do GATT....................................................................... 74 8.1.2. Aplicação do Acordo “antidumping” ........................................ 758.2. Aplicação da Convenção de Montreal de 1999 pelo poder Judiciário brasileiro .................................................................................. 778.3. Aplicação dos tratados internacionais de cunho tributário pelo Poder Judiciário brasileiro ...................................................................... 80

CaPítulo 9CONTROLE DE APLICAÇÃO DOS TRATADOS INTERNACIONAIS DE DIREITOS HUMANOS PELO PODER JUDICIÁRIO ................................................................................... 839.1. Aplicação inédita da Convenção relativa ao Estatuto dos Apátridas de 1954 ..................................................................................... 859.2. Aplicação do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos de 1966 e da Convenção Americana de Direitos Humanos de 1969 pelo Poder Judiciário brasileiro ................................................... 869.3. Aplicação da Convenção Americana de Direitos Humanos ........... 889.4. Aplicação das Convenções da OIT pela justiça do trabalho ........... 89

CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................ 93

REFERÊNCIAS ............................................................................................... 95

ANEXO ............................................................................................................. 97

O ESTADO DA ARTE DA APLICAÇÃO DO DIREITO INTERNACIONAL PÚBLICO NO BRASIL NO ALVORECER DO SÉCULO XXI ........................................................................................... 991. Plano constitucional ................................................................................... 100

1.1. Como se processa a incorporação do Direito Internacional Público na ordem jurídica interna? ......................................................... 1011.2. Qual é a posição do Direito Internacional Público na hierarquia de fontes de Direito interno? .................................................................... 1031.3. Houve alguma alteração constitucional motivada pela adoção de uma convenção internacional? ............................................................ 1051.4. Ocorreu alguma alteração constitucional ou legislativa subsequente a uma decisão de um tribunal internacional (v.g., Corte Interamericana de Direitos Humanos ou Corte

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Internacional de Justiça)? Nesse caso, a decisão foi dirigida ao seu Estado ou a um Estado terceiro? ....................................................... 1061.5. É possível reabrir um processo judicial interno na sequência de uma decisão de um tribunal internacional (v.g., Corte Interamericana de Direitos Humanos ou Corte Internacional de Justiça)? Se sim, em que circunstâncias? .................................................. 108

2. Plano judicial ............................................................................................... 1092.1. Qual o estatuto atribuído ao Direito Internacional Público pela jurisprudência?..................................................................................... 1092.2. Os tribunais recorrem o Direito Internacional Público para afastar a aplicação de normas internas? Se sim, em que casos? Pode qualquer juiz resolver este tipo de conflito normativo ou esta é uma competência apenas dos supremos tribunais/tribunal constitucional? ............................................................................................. 1132.3. Os tribunais admitem afastar a aplicação de normas internacionais com fundamento na sua inconstitucionalidade/ ilegalidade? .................................................................................................... 1142.4. Os juízes recorrem ao princípio da interpretação conforme (v.g. em caso de conflito entre normas internas e normas constitucionais)? Se sim, que parâmetro utilizam: o nacional ou o internacional? ..................................................................................... 1162.5. Que tipo de força é atribuída ao Direito Internacional Público na interpretação do Direito nacional? ...................................... 1172.6. Os juízes (constitucionais ou ordinários) utilizam o Direito Internacional dos Direitos Humanos como parâmetro para declarar a inconstitucionalidade de normas legislativas? ..................... 1182.7. Houve alguma derrogação do mandato constitucional atribuído aos juízes nacionais decorrente da necessidade de respeitar o Direito Internacional Público? ............................................. 1192.8. Na prática (law in action) o tratamento judicial atribuído ao Direito Internacional Público reflete a sua posição que a Constituição/legislação lhe atribuí na hierarquia de fontes internas (law in the books)? ....................................................................... 1202.9. Qual a frequência das referências judiciais ao Direito Internacional Público? As referências são substantivas ou meramente ad abundantiam? .................................................................... 1212.10. A jurisprudência dos tribunais internacionais provocou alguma inversão jurisprudencial relevante? ............................................ 1232.11. Que efeitos são atribuídos às decisões dos tribunais internacionais? Em caso afirmativo, os tribunais nacionais estão obrigados a seguir essas decisões mesmo quando as

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mesmas foram proferidas em casos que envolvem Estados terceiros? ........................................................................................................ 124

3. Plano doutrinário ........................................................................................ 1253.1. Qual é a posição da doutrina sobre a inserção do Direito Internacional Público na hierarquia de fontes de Direito interno? ... 1263.2. Organizações regionais como o Mercosul ou Unasul são observadas como tendo uma natureza e impacto diferente de outras organizações internacionais? A transferência de competências para este tipo de organização é perspectivada como mais problemática do que a efetuada para organizações internacionais de cariz universal? ............................................................. 1273.3. O direito das organizações regionais (v.g., Organização dos Estados Americanos, Mercosul e Unasul) é observado como uma “espécie” de Direito Internacional ou é entendido como um Direito de cariz supranacional?.............................................. 128

4. Conclusão ..................................................................................................... 129

intrOduçãO

Valerio de oliVeira Mazzuoli / Jahyr-PhiliPPe Bichara2

O direito internacional público prevalece sobre o direito inter-no, até mesmo o de índole constitucional. Tal prevalência resulta de uma observação levada a efeito pelos estudiosos da disciplina desde os primórdios das relações entre os membros da sociedade interna-cional. Assim, as normas internacionais que disciplinam as relações entre Estados, organizações internacionais e pessoas privadas, devem ser observadas independentemente de qualquer determinação do or-denamento jurídico interno, seja ele de que natureza for (escrito, costumeiro etc.). Mesmo quando a ordem interna é aplicada por ser mais benéfica que o direito internacional, é esse último que tem pre-valência e cuja voz deve ser ouvida, pois dele é que provém o coman-do que autoriza a aplicação do direito doméstico mais favorável; é o direito internacional que ordena a aplicação da norma interna mais benéfica por meio de “cláusulas de diálogo” (“cláusulas dialógicas”, “cláusulas de retroalimentação”) inseridas nos tratados de direitos humanos, de que é exemplo, inter alia, o art. 29, b, da Convenção Americana sobre Direitos Humanos de 1969, segundo o qual “ne-nhuma disposição da presente Convenção pode ser interpretada no sentido de limitar o gozo e exercício de qualquer direito ou liberda-de que possam ser reconhecidos em virtude de leis de qualquer dos Estados-partes ou em virtude de Convenções em que seja parte um dos referidos Estados”.1

Por outro lado, também já se verifica na atualidade certa ten-dência do direito internacional em evoluir para uma transnaciona-lidade em que as normas não são exclusivamente concebidas por Estados, senão também por entidades privadas aptas, por seus atos constitutivos, a produzir normas exteriores capazes de atingir deter-minados objetos (como atividades desportivas, econômicas, finan-ceiras, contábeis etc.).2

1 Sobre essas “cláusulas de diálogo” nos tratados de direitos humanos, v. MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Tratados internacionais de direitos humanos e direito interno. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 116-128.

2 Cf. MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Curso de direito internacional público. 9ª ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p. 477-478; e CARREAU, Dominique & BICHARA, Jahyr-Philippe. Direito internacional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2015, p. 28-29. Ver também: CARREAU, Dominique. Mondialisation et transnacionalisation du droit internacional. VII Anuário Brasileiro de Direito Internacional, v. 1, n. 12, jan. 2012, p. 167-205.

o Judiciário Brasileiro e o direito internacional: análise crítica da JurisPrudência nacional 3

O direito internacional público, assim, sempre prevalece ao di-reito interno, até mesmo para dizer que esse último é o que deve ser aplicado. Asserção contrária conduziria à negação do direito interna-cional ou, mais precisamente, à negação da dogmática jurídica que atesta (há longos anos) sua existência e primazia nas lições de Hans Kelsen, Georg Jellinek ou Alfred Verdross, dentre tantos outros.

A superioridade do direito internacional relativamente ao di-reito interno decorre da problemática da aceitação da sujeição do Estado às normas emanadas da sociedade internacional, isto é, da compreensão da construção do fundamento de validade do direito internacional em função de seu reconhecimento pelos seus sujeitos, que se manifestam expressamente pela norma pacta sunt servanda ou, de forma tácita, pela opinio juris. Desse modo, o cerne de nossa reflexão sobre a aplicação do direito internacional consiste em saber até que ponto os Estados acolhem a eficácia de suas normas em seus ordenamentos jurídicos ao cumprir com suas obrigações internacio-nais, em especial o Brasil.

Essa questão, embora clássica, é sempre colocada nestes termos: qual é a relação hierárquica entre o direito internacional e o direito interno? A resposta nos remete invariavelmente ao estudo do funda-mento do caráter obrigatório do direito internacional, que encontra na doutrina internacionalista suas mais sólidas justificativas, hoje con-sagradas em dispositivos da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados de 1969.3 De fato, a obrigatoriedade do direito internacional está atualmente prevista no art. 26 da Convenção de Viena de 1969, que expressamente estabelece que “todo tratado em vigor obriga as partes e deve ser cumprido por elas de boa fé”. Essa regra, que con-substancia a vinculação jurídica internacional assentida pelos Estados, em caráter obrigatório, tem sua primazia determinada no art. 27 da mesma Convenção, à luz do qual “uma parte não pode invocar as disposições de seu direito interno como justificativa para o não cum-primento de um tratado”.

3 No Brasil, a Convenção foi aprovada pelo Decreto Legislativo n° 496, de 17.07.2009, e promulgada pelo Decreto n° 7.030, de 14.12.2009, DOU de 15.12.2009, com reservas aos arts. 25 e 66. Essa incorporação traz consequências consideráveis na aplicação dos tratados internacionais no ordena-mento jurídico brasileiro, como se verá adiante.

Valerio de oliVeira Mazzuoli / Jahyr-PhiliPPe Bichara4

Em situações menos constantes, e de forma complementar, não é requerida a manifestação do consentimento dos Estados quando há necessidade de salvaguardar normas tidas como “imperativas” e “inderrogáveis” por serem essenciais ao gênero humano. Tais normas, qualificadas como jus cogens, de acordo com os arts. 53 e 64 da Con-venção de Viena de 1969, impõem-se à sociedade internacional de forma imediata e sem qualquer possibilidade de alteração substancial, sendo sua violação causa de nulidade e de extinção dos tratados, res-pectivamente. O reconhecimento dessa forma de primazia do direito internacional sobre o direito interno encontraria justificativa, assim, na necessidade de fazer prevalecer um corpo de normas internacional-mente reconhecidas como fundamentais para toda a humanidade em razão dos valores éticos e axiológicos que estão a veicular. Em outros termos, a obrigatoriedade internacional desse tipo de norma encontra fundamentação em uma expressão moderna do jusnaturalismo.

Dessas observações liminares infere-se que os Estados, ao aplica-rem o direito internacional, admitem a sua superioridade sobre as nor-mas internas, tanto formalmente no que tange aos tratados em vigor em seu território quanto pelo reconhecimento tácito de uma ordem superior baseada na ética e em valores supremos. Na prática, contudo, constata-se que o respeito ao princípio elementar da preeminência do direito internacional na ordem interna não é uniformemente aceito pelo Poder Judiciário de diversos Estados, entre eles o Brasil. Há um problema crônico, sobretudo no Brasil, de aceitação da prevalência do direito internacional sobre o direito interno que deve ser dissipado, es-pecialmente no momento atual de inserção cada vez maior do país no cenário internacional. O Poder Judiciário há de compreender que o país se insere numa ordem superior e que é inexorável que exista pree-minência desta relativamente à ordem doméstica, mesmo quando (já se disse) há aplicação da norma interna (mais benéfica) em detrimen-to da norma internacional, uma vez que é esta última que comanda (ordena, determina) que se aplique a norma que, no caso, mais proteja os direitos da pessoa humana. Há, como se vê, prevalência do direito internacional relativamente ao direito interno mesmo na hipótese em que o direito internacional deixa de ser aplicado (por sua própria vontade). Essa a mecânica, em sua, que há de ser bem compreendida

o Judiciário Brasileiro e o direito internacional: análise crítica da JurisPrudência nacional 5

pelo Poder Judiciário brasileiro para que não pairem dúvidas sobre a prevalência do direito internacional sobre o direito interno.

No direito brasileiro, o controle da aplicação do direito interna-cional pelo Poder Judiciário decorre, primeiramente, do princípio da inafastabilidade, previsto no art. 5°, XXXV, da Constituição Federal de 1988, que garante às pessoas o acesso à justiça, atribuindo a todo juiz a competência para conhecer qualquer causa que envolva atos lesivos ou ameaça a direitos individuais.

É certo que, à primeira vista, à luz do texto constitucional em vigor, poderia parecer estar o ofício do juiz limitado à apreciação apenas dos tratados incorporados nos moldes dos arts. 49, I, e 84, VIII, da Consti-tuição, o que levaria à conclusão (equivocada) de que as demais fontes do direito internacional público não se veriam ali contempladas. Essa restrição estaria a significar que o juiz não seria competente, v.g., para aplicar um costume internacional ou um dos princípios gerais de direi-to relativos à questão sub judice. Evidente, contudo, que esse raciocínio ressente-se de equívoco, ainda que a Constituição em vigor não tenha feito qualquer referência à aplicação, pelos juízes e tribunais locais, das normas ou princípios do direito internacional geral, como fazem diver-sas outras Constituições. Ora, ao exercer a sua função o juiz detém o poder jurisdicional instituído de dizer o direito, gozando de autonomia plena para extrair da ordem jurídica como um todo quaisquer normas do direito internacional, até mesmo normas de jus cogens, capazes de auxiliá-lo na resolução de questões internas. Tal se dá nitidamente com o costume internacional, que não requer qualquer ato de internalização para que possa operar no plano interno, devendo ser exigido ipsis tan-tum. Resta, porém, que o controle da aplicação do direito internacional “convencionado” parece constituir uma tarefa mais clara e segura para o Poder Judiciário quando o poder legislativo se pronunciou sobre a aprovação de um tratado, por meio do processo legislativo de incorpo-ração, conferindo a este uma força executória formalizada pelos atos do referendo legislativo e da promulgação executiva.4

4 Para um estudo aprofundado do processo de celebração e incorporação de tratados no Brasil, v. MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Direito dos tratados. 2ª ed. rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2014.

Valerio de oliVeira Mazzuoli / Jahyr-PhiliPPe Bichara6

Em verdade, o controle da aplicação do direito internacional pelo Poder Judiciário brasileiro concerne a todas as suas normas interna-cionais, quer convencionais, costumeiras ou principiológicas, deven-do suas jurisdições, contudo, ter atenção maior para com os tratados em razão de comando constitucional expresso (Segunda Parte). Esse controle está fundado na Constituição Federal, que prevê a competên-cia geral do juiz brasileiro a partir do princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional (na Constituição, a Justiça Federal, em especial, possui competência expressa para a aplicação dos tratados). Por ou-tro lado, vale observar o papel do Supremo Tribunal Federal (STF) enquanto guardião da Constituição; do Superior Tribunal de Justiça (STJ) como última instância em matéria de aplicabilidade de tratados relativamente às leis federais; e do Tribunal Superior do Trabalho (TST) enquanto órgão responsável por cumprir a normativa laboral no Brasil, incluindo as Convenções da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Todos esses tribunais superiores ocupam uma posi-ção hegemônica no edifício jurisdicional brasileiro, com a responsa-bilidade de determinar o sentido das decisões das instâncias inferiores quanto à aplicação do direito internacional entre nós.

Neste estudo veremos que as decisões proferidas em matéria de direito internacional nem sempre são satisfatórias do ponto de vista da dogmática internacionalista (Primeira Parte). No levantamento rea-lizado, deu-se ênfase às questões mais discutidas nos pretórios brasilei-ros, especialmente no que tange à garantia de efetividade dos direitos subjetivos advindos da aplicação dos acordos de cunho econômico e dos tratados internacionais de direitos humanos (Terceira Parte).