Análise do discurso - conversa com Eni Orlandi

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    TEIAS: Rio de Janeiro, ano 7, n 13-14, jan/dez 2006 ENTREVISTA 1

    ANLISE DE DISCURSO:CONVERSA COM ENI ORLANDI

    Raquel Goulart Barreto*

    Diferentes textos publicados nas sees Artigose Ensaiosassumem Eni Orlandi como referncia, o que seria

    de se esperar, j que este nmero duplo de Teiasfocaliza as prticas pedaggicas na sua dimenso linguagei-

    ra, implicando a objetivao dos sentidos que nelas circulam. Mas a revista procurou ir alm, chamando a

    prpria para esta conversa.

    Generosamente, a autora abriu espao na sua agenda para as nossas indagaes. Neste espao, pode ser a-

    presentada como Professora Titular do Departamento de Lingstica do Instituto de Estudos da Linguagem,

    como Coordenadora do Laboratrio de Estudos Urbanos da Unicamp, como Pesquisador 1A nas reas de an-

    lise de discurso e de histria das idias lingsticas no Brasil. Mas Eni Orlandi uma referncia que dispensa

    apresentaes. Este espao para ouvi-la.

    Teias Sua longa e importantssima trajetria de trabalho com a anlise de discurso evi-denciada por prmios, como o Jabuti (As formas do silncio: no movimento dos sentidos), e pelassucessivas edies de livros comoAnlise de discurso: princpios e procedimentos, que foi lanadoem 1999 e teve a sua 6 edio em 2005. Para a educao, o mais marcante deles ainda parece serAlinguagem e seu funcionamento: as formas do discurso, lanado em 1983 e na 4 edio em 2006.

    Nele, a tipologia discursiva continua sendo revisitada, como em artigos deste nmero de Teias.Uma questo primeira : como voc v esta permanncia?

    Eni Orlandi Na verdade, o livroA linguagem e seu funcionamento j teve muito mais e-

    dies. Porque muito requisitado na rea de educao. E como as licitaes para compra especifi-cam a edio, o editor no pode fazer outra edio. Assim, ele faz novos livros e coloca na mesmaedio. Creio que j ultrapassou, na realidade, mais de 10 edies. Considero este livro importante

    porque um livro fundador. E ele tem sim uma relao privilegiada com a educao, pois minhadisposio, quando eu pensava as anlises, era levar ns, professores, a compreendermos nossa pr-tica atravs da linguagem. Eu escrevi a maior parte dos artigos no fim dos anos 70 e incio dos 80.poca da ditadura, poca de forte autoritarismo. E eu queria que as pessoas percebessem que noestvamos imunes ao autoritarismo, ou seja, pelo modo como funciona a sociedade e a ideologia,ns fazamos parte desta sociedade autoritria. Queria levar os professores a pensarem suas prticas.A tipologia revisitada com razo, segundo o que penso. E o porque corresponde a um real dalinguagem e exemplar na prtica pedaggica. Eu a pensei procurando no seguir um procedimentoexterno, ou seja, eu no queria buscar elementos externos ao discurso para falar dele. Procurei res-

    peitar o que eu considerava teoricamente relevante na caracterizao do discurso: a relao parfra-se/polissemia, a relao entre os locutores, a relao dos locutores com a constituio do referente,do objeto do discurso.

    Teias Na sua abordagem do discurso pedaggico, Pcheux uma referncia constante.Parece que ele est muito presente nas suas formulaes como ponto de partida, j que voc aponta

    para caminhos que no esto delineados nas obras dele.

    *Professora da Faculdade de Educao da Universidade do Estado do Rio de Janeiro

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    Eni Orlandi Na nica vez em que vi Michel Pcheux, foi no Rio de Janeiro em um Con-gresso de Economia Poltica. Conversei com ele depois da conferncia que ele fez e na qual falavaque a ideologia era um ritual com falhas. Falei-lhe da tipologia que eu tinha formulado como umaforma exploratria de compreender a discursividade. Falei com reservas pois eu mesma tinha o cui-

    dado de no estabelecer uma tipologia com tipos estanques e tambm no queria reduzir a anlisede discurso busca de tipos de discurso. Mas para minha surpresa ele apoiou totalmente minha pro-posta e achou interessante a tipologia que eu propunha justamente porque levava em conta proprie-dades do discurso. Creio, pois, que a permanncia porque ela corresponde a algo que faz compre-ender o discurso, que heuristicamente produtiva, e que continua sendo atual. No voltei a explor-la porque gosto de ver como, uma vez formulada, ela ganhou liberdade para circular e produzir re-flexes. Gosto de ver como ela compreendida de diferentes maneiras com diferentes objetos deanlise. S me preocupa quando a vejo sendo usada como categorizao de falas, de forma estreita,ou quando se carrega de moralismo (oscilando entre o bem e o mal). Um discurso autoritrio o

    pelo seu funcionamento. Pouco importam as intenes de seu locutor. Portanto no uma questomoral. uma questo lingstico-histrica, ideolgica. E no h sujeito sem ideologia. Mas confes-so que tenho muita vontade de explorar mais esta tipologia. Pelo que ela tem de real na relao coma anlise dos discursos.

    Teias E voc tambm buscou dimensionar as questes relativas resistncia a partir doestudo do silncio.

    Eni Orlandi Uma coisa de que me orgulho: o meu livro As formas do silncio, que ga-nhou o prmio Jabuti, foi traduzido para o francs. Um coregrafo, George Appaix, da Companhia

    de Dana La Liseuse, o leu e fez uma coreografia a partir dele, que se chamaJe ne sais quoi (Nosei o qu). Esta coreografia foi apresentada no teatro da Bastilha em Paris e eu e minha filha assis-timos. Foi muito gratificante pra mim. O que me empolgou a coreografia linda que quandoeu era menina e perguntavam o que eu ia ser quando crescesse, eu dizia que queria danar. A est aquesto do silncio. Isto estava silenciado em mim, mas o coregrafo, ao ler meu livro, percebeunele um sujeito que ama a dana. O meu modo de falar da linguagem passou este sentido para ele.Acho isto fantstico.

    Teias H uma frase no seu livro de 1988 (Discurso e leitura) extremamente marcante edesafiadora, em especial para a rea da educao: Compreender, eu diria, saber que o sentido

    pode ser outro (p. 12). A proposta aqui tom-la como mote para que voc aborde as relaes en-tre interpretao e compreenso.

    Eni Orlandi Quanto ao fato de eu afirmar que compreender saber que o sentido podeser outro, desde muito cedo, quando se aprende anlise de discurso, isso vai-se impondo. A incom-

    pletude, a diviso, o poltico, o inconsciente, a ideologia, as diferenas so uma constante paraquem aprende anlise de discurso. Da a teorizar a leitura e afirmar que o sentido pode ser outro sum passo. O que sempre me atraiu, me seduziu na anlise de discurso que ela ensina a pensar, que ela nos tira as certezas e o mundo fica mais amplo, menos sabido, mais desafiador. E pensarque o sentido pode ser sempre outro vai nessa direo. Da a minha necessidade de distinguir inteli-gibilidade, interpretao e compreenso. Porque quem analisa no pode se contentar nem com ainteligibilidade nem com a interpretao. Para a inteligibilidade basta saber a lngua que se fala.

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    Para interpretar, o fazemos de nossa posio sujeito, determinados pela ideologia, nos reconhece-mos nos sentidos que interpretamos. Mas para compreender preciso teorizar. preciso no s sereconhecer, mas fazer o esforo de conhecer. aceitar que a linguagem no propriedade privada. social, histrica. No transparente. Em um livro posterior,Discurso e texto, dei mais um passo

    em relao a isso. E afirmei que no h seno verses. Isso inspirada em um livro do Cerquiglinique se chama O elogio da variante. O plural, o que varia, no o que tem defeito, o que no cor-reto. o cerne mesmo da nossa capacidade de linguagem. Estamos sempre s voltas com verses.Por que uma e no outra? Eis a questo. Por que eu, por que voc? E o sentido pode ser outro paramim mesma, dependendo de minha relao com as condies de existncia. Quantas vezes nos sur-

    preendemos ao ver que soa em uma palavra um sentido que a gente mesmo ainda no tinha percebi-do. Nem poderia. Esta uma questo da historicidade do sentido e da identidade do sujeito. Porisso, em termos de anlise acho interessante o que diz Pcheux: h um batimento entre descrio einterpretao. Para mim, isto significa que para compreendermos precisamos construir um disposi-tivo terico e um dispositivo analtico de interpretao para mediar nossa relao com os sentidos (ecom ns mesmos). Para expor nosso olhar opacidade do texto. Para compreendermos e no ficar-mos repetindo o que j est posto l para que fiquemos atados a sentidos mesmos.

    Teias Seu trabalho tambm sustentado por uma virada importante no que se refere abordagem da ideologia: o excesso no lugar da falta, o imaginrio, as condies de produo dainterpelao...

    Eni Orlandi Esta questo muito importante. Levei a srio o fato de que era necessriopensar a ideologia atravs da linguagem j que a materialidade da ideologia o discurso e a materi-

    alidade do discurso a lngua. O que isso modifica, em relao s cincias humanas e sociais? Tu-do. A ideologia vista assim no um contedo, uma prtica, um funcionamento discursivo.No atravesso a linguagem para encontrar a ideologia, na linguagem a ideologia . No meu livroInterpretao, publicado pela Editora Vozes e reeditado pela Pontes, falo mais largamente sobre are-definio de ideologia no campo da anlise de discurso. Mas fundamentalmente parto da idia deque a histria no transparente e embora os homens faam histria no evidente para eles. Osfatos reclamam sentidos e nisto, diz P. Henry, que est a historicidade. Portanto no h como noligar ideologia e interpretao. H uma injuno interpretao e a ideologia est justamente emque, ao interpretar, o sujeito considera evidente o sentido que constitudo por uma certa materiali-dade em determinadas condies de produo. Mais recentemente, no meu livroLngua e Conheci-mento Lingstico, publicado pela Cortez (2001), em que falo da histria em que nossa lngua foi-seconstituindo ao mesmo tempo em que se constitua um conhecimento sobre ela e se instituam esco-las, programas de ensino etc., num vasto processo de poltica da lngua no Brasil, retomo a questodo sujeito, da histria e da ideologia. Estabeleo ento que h dois movimentos (inseparveis) naconstituio do sujeito. Um primeiro movimento em que temos a interpelao do indivduo em su-

    jeito, pela ideologia, no simblico, constituindo a forma-sujeito histrica. Em seguida, com estaforma-sujeito histrica j constituda d-se ento o que considero como processo de individualiza-o do sujeito. Como sabemos a forma-sujeito-histrica do sujeito moderno a forma capitalistacaracterizada como sujeito jurdico, com seus direitos e deveres e sua livre circulao social. As

    formas de individualizao do sujeito pelo Estado, estabelecidas pelas instituies (entre elas a Es-cola), resultam em um indivduo ao mesmo tempo responsvel e dono de sua vontade. Faz ainda

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    parte destas minhas reflexes reconhecer que h em todo sujeito uma necessidade de lao social quesempre estar presente, ainda que ele viva em situao absolutamente desfavorvel. Pois bem, esteindivduo assim constitudo pelo simblico e pelo histrico, ideologicamente interpelado e indivi-dualizado pelo Estado o que temos na Escola. Neste passo, este um indivduo que tanto pode ser

    mera repetio como diferena. Porque no podemos resistir interpelao, ao assujeitamento lngua, seno no seramos sujeitos, mas podemos resistir aos modos como o Estado nos individua-liza. Podemos, pois, no nos submeter ao modo como as instituies nos fabricam em srie.

    TeiasNeste momento, as tecnologias permitem configuraes textuais cada vez mais di-versificadas e complexas. Voc poderia falar um pouco do desafio da(s) leitura(s) dos textos tecidos

    por mltiplas linguagens?

    Eni Orlandi Tenho desenvolvido esta questo das novas tecnologias e tenho em meu La-boratrio (Laboratrio de Estudos Urbanos na Unicamp Labeurb) um programa de estudos em

    que desenvolvemos pesquisas nessa direo. Alm disso, h vrios alunos que desenvolvem disser-taes e teses sobre o assunto sob minha direo. Isto porque no podemos desconhecer estas ques-tes hoje na escola. Vou te passar algumas idias sobre o como vejo esta questo hoje.

    Interao ou prtica social simblica? Comunidade ou Classe social?Estas questes remetem ao fato de que a anlise de discurso diferente do que se diz no

    discurso dos internautas e cientistas da informao, no exerccio do discurso eletrnico. Devo a-crescentar que eu mesma nos anos 70/80 do sculo XX, levada pela onda da dialogia e do bakhti-nianismo usei a palavra interao para significar a relao entre posies-sujeito, sobretudo quan-do trabalhei com leitura e escola. A palavra era de uso corrente, mas o que eu significava j se re-

    metia noo de discurso e, portanto, a outro sentido. A partir do momento que tive conscinciadisso, deixei de usar a palavra interao. E guardei rigorosamente a distncia terica que vai dapragmtica (interao) e a anlise de discurso que pratico e que tem outros princpios. Na anlise dediscurso o que procuramos entender a linguagem enquanto prtica social simblica (o que muitodiferente de interao). Tampouco a noo de comunidade nos satisfaz. Ela deixa de lado aquesto do conflito que est presente na idia de classe. Num enunciado como o do informaticistaFbio Bastos (03/05/07) (em uma primeira reunio de trabalho sobre o espao urbano, no Labeurb),chamou-me logo a ateno o seu pargrafo sobre o usurio: A internet hoje no mais como erah alguns anos. At pouco tempo atrs navegvamos na internet e somente recebamos dados. Atu-almente sempre interagimos enviando dados que transformam-se em informaes em formato detextos, imagens, sons e vdeos. Navegando na internet muitas vezes nos sentimos no ambiente urba-no. Pensando atravs da anlise de discurso, haveria um deslizamento para noes como: usu-rio=sujeito; navegvamos=percorramos relaes de sentido; dados=fatos de linguagem; interagi-mos=praticamos gestos de interpretao; transformam-se=derivam; informaes=sentidos; formatode textos=textualizam-se em diferentes materialidades significantes como textos, imagens, sons,vdeos; ambiente urbano: condies de produo urbanas. Estes deslizamentos introduzem umagrande diferena entre estes discursos, o do internauta e o do analista de discurso. E isto tem conse-qncias para o modo de uso do instrumento tecnolgico. Estabeleci que h na produo de sen-tidos trs momentos, inseparveis, que so: constituio, formulao e circulao de sentidos.

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    Teias Em que sentido(s) esta formulao se aplica especificamente ao discurso que viajanos meios eletrnicos?

    Eni Orlandi Podemos dizer que quando pensamos a prtica do discurso eletrnico, em-bora os momentos sejam inseparveis, tomamos como ngulo de entrada a circulao dos sentidos,pensando os outros dois momentos atravs deste. O modo de circulao dos sentidos no discursoeletrnico nos faz pensar que, pela sua especificidade, produz conseqncias sobre a funo-autor eo efeito-leitor que ele produz. E estas conseqncias esto diretamente ligadas natureza da mem-ria a que estes sentidos se filiam. E, certamente, materialidade significante de seus meios. Tenhodistinguido trs noes de memria: memria discursiva ou interdiscurso, memria institucional(arquivo) e memria metlica. A memria discursiva ou interdiscurso (M. PCHEUX, 1975, J-J.COURTINE, 1981) a que se constitui pelo esquecimento, na qual fala uma voz sem nome. A-quela em que algo fala antes, em outro lugar, independentemente (M. PCHEUX,1975), produ-zindo o efeito do j-dito. Isto , as nossas palavras trazem nelas outras palavras. Por outro lado, a

    memria institucional ou a que chamo a memria de arquivo ou simplesmente o arquivo, aquelaque no esquece, ou seja, a que as Instituies (Escola, Museu, eventos etc.) praticam, alimentam,normatizando o processo de significao, sustentando-o em uma textualidade documental, contribu-indo na individualizao dos sujeitos pelo Estado. E temos, enfim, a memria metlica, ou seja, a

    produzida pela mdia, pelas novas tecnologias de linguagem. A memria da mquina, da circulao,que no se produz pela historicidade, mas por um construto tcnico (televiso, computador etc.).Sua particularidade ser horizontal (e no vertical, como a define Courtine), no havendo assimestratificao em seu processo, mas distribuio em srie, na forma de adio, acmulo: o que foidito aqui e ali e mais alm vai-se juntando como se formasse uma rede de filiao e no apenas uma

    soma. Quantidade e no historicidade. As diferentes formas de memria acarretam diferenas nocircuito constituio/formulao/circulao e tambm afetam a funo-autor e o efeito leitor. Isto

    porque qualquer forma de memria tem uma relao necessria com a interpretao (e, conseqen-temente, com a ideologia.). Aliada a questo da memria est o fato de que a forma material que otexto mexe com a natureza da informao, produz efeitos sob o modo como ela funciona. A nature-za do significante (diferentes linguagens) intervm na produo do objeto e este objeto, por sua vez,constitui o modo de significao deste gesto simblico. E o que um texto? uma unidade de sig-nificao em relao situao. Esta sua caracterizao pode ser mantida, mas certamente a textua-lidade, sua forma material, sua relao com a memria e com as condies de produo diferemquando difere sua materialidade significante. Ou seja, podemos considerar uma imagem um texto(Tnia Zen, tese de doutorado, 2007), mas com sua materialidade diferente ela constitui um objetosimblico, significante, diferente e que produz efeitos de sentidos especficos sua forma e sua ma-terialidade. Como tenho dito, h uma abertura do simblico e as diferentes linguagens, as diferentesmaterialidades significantes atestam esta abertura pela suas distintas formas de significar produzin-do seus efeitos particulares. A questo ento sendo: como significam estas diferentes formas mate-riais no discurso eletrnico? Como o discurso eletrnico arregimenta sentidos a partir da convivn-cia dessas diferentes materialidades significantes, destas diferentes textualidades na produo deseus efeitos (do discurso eletrnico) de sentidos? Da perspectiva discursiva, o que h na relaodessas formas materiais significantes distintas certamente no simples adio. uma relao mui-

    to mais complexa e que aguarda explicitao. O espao significa, tem materialidade e no indife-rente em seus distintos modos de significar.

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    Teias No caso do espao virtual, que diferenas voc destaca?

    Eni Orlandi Quando pensamos o espao virtual, digital, devemos considerar, j de incio,que forma de enquadramento e que fenmenos ele configura. O fato de pensarmos o urbano digitalnos coloca frente questo: que injunes interpretativas so a produzidas e que natureza de efeitosisso produz tanto sobre o urbano como sobre o virtual. Do mesmo modo que nos anos sessenta, a no-o de leitura, de interpretao posta em questo o que ler significa? dando espao a uma refle-xo que prepara o lugar do discurso, creio que quando pensamos o discurso eletrnico noo queassim batizei ao pensar como chamar a reflexo sobre o virtual pensado nos termos da no transpa-rncia da linguagem -, no podemos deixar de questionar, como um paralelo, o que o enquadramentoda linguagem no discurso eletrnico produz como efeito. E retorna a mesma questo, agora frente aoutro artefato: o que ler a significa? Todas estas questes que coloco aqui tm um objetivo particularque o de pensar a escola nessa conjuntura discursiva que se instala e nos diferentes processos deleitura que se abrem como possibilidade. Talvez da tomada em considerao da materialidade da lei-

    tura no discurso eletrnico possam resultar novos modos de acesso aos sentidos, ao conhecimento.Mas continua, a meu ver, o que j afirmava nos anos 80: ler saber que o sentido pode ser outro. Sque os percursos para esse outro passa por outros modos de circulao, outras conjunturas da signifi-cao. Por fim, gostaria de retomar aqui uma afirmao que fao no livro Cidade dos sentidos, ao mereferir escola. Dizia ento que, se nos anos 80 do sculo XX a grande novidade era dizer que era

    preciso deixar que a vida l fora entrasse para a Escola, nos anos 90 eu pensava que a novidade entoestivesse invertida, ou seja, em levar a Escola para a rua. Dizia isso pensando as pichaes, o rap eoutras formas de relao com a linguagem. Pois bem, agora pondo em jogo a relao do urbano com odigital, penso que a Escola encontra vrios meios de ir para a rua. E um deles , por exemplo, o traba-

    lho que est sendo feito por um conjunto de universidades, o Cidade do Conhecimento, em que se peem circulao o conhecimento atravs do Second Life.1 E no penso que pare a a possibilidade de seexplorarem as novas tecnologias. Mas no posso terminar sem deixar uma pergunta: que espcie desujeito e de sentidos estas novas tecnologias produzem? O que da Escola a se perde? O que se ganha?Que conhecimento este que est na rua? Que sujeito ele constitui?

    Teias Voc termina o livro Terra vista (1990), com a frase: isso, afinal, o principalpara quem trabalha com linguagem: no atravess-la sem se dar conta da sua presena material, dasua espessura, da sua opacidade, da sua resistncia (p. 255). Como voc l esta formulao hoje?

    Eni Orlandi Continuo pensando da mesma forma: a linguagem no um mero instru-mento de comunicao. Ela tem sua materialidade, sua ordem prpria na qual esbarramos. E aanlise de discurso a teoria que sabe trabalhar isto ligando lngua/sujeito/histria, trazendo para areflexo a ideologia, relacionando-a com o gesto de interpretao.

    Teias Como que voc v os encaminhamentos atuais para a questo do discurso?

    Eni Orlandi Vejo a questo do discurso hoje na tenso em que sempre esteve: a dos que apraticam aceitando as contradies, os efeitos, as falhas, o equvoco. E os que querem passar tudo a

    1A referida proposta pode ser encontrada em: http://www.cidade.usp. br/blog/2007/09/01/cidade-do-conhecimento-20-

    no-second-life.

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    limpo e se colocam na perspectiva da pragmtica, somando lngua e contexto, sujeito e sociedade etc.sem mudar de terreno. Outro fato se acrescenta a este: ao invs de aceitar o desafio para pensar por si,

    j que o fundador deixou seus textos abertos para a interpretao, h os que procuram um fechamentoda anlise de discurso juntando autores e autores, teorias e teorias, esquecendo o que diz Paul Henry

    de forma magistral: a questo do sentido uma questo aberta porque uma questo filosfica. Assimcomo o sujeito no origem de si, no tem o domnio de como os sentidos se formam nele, de comoele experimenta os sentidos. , pois, necessrio, para os que praticam a anlise de discurso, aceitar acondio de no colocar o ponto final. Entregar-se ao prazer da descoberta em cada passo. Freqentarautores no para fechar questo, mas para dialogar na diferena. Como diz Pcheux, em seu La Lan-gue Introuvable, na linguagem as questes no se fecham. Elas retornam.

    Teias Sem sugerir aqui um fechamento, queremos que voc nos conte acerca do seumomento, seus projetos, perspectivas.

    Eni Orlandi Meu momento atual. Tento compreender a relao do indivduo (sujeito in-dividualizado) com a sociedade, no processo de individualizao produzido pelo Estado (enquantoarticulador simblico). Trabalho com o pichador, o que se tatua, o delinqente, o terrorista, o mi-grante, o menino do trfico, tendo como referncia a ideologia da mundializao. Tomo a cidadecomo espao de interpretao particular e procuro compreender o discurso urbano. Onde tudo istoque citei acima marca sua presena. Procuro entender o sensvel, o corpo, visando compreender osentido deste lao que nos une mesmo em situaes totalmente adversas e que fazem com que umsujeito mesmo massacrado faz ainda eco na histria e no simblico, no deixando de ser um sujeitosocial. Trabalho com o resto, o a-mais. O que sobra. Isto na anlise de discurso. Em um outro proje-to que trouxe para o Brasil em 1988 O Projeto Histria das Idias Lingsticas e que agora seespalhou pelas diferentes universidades brasileiras desenvolvi um primeiro momento em que pro-curei mostrar como a histria de nossa lngua e a histria do conhecimento sobre ela se articulam aolongo do tempo e das prticas de linguagem estabelecidas no Brasil. Mostro como o sculo XIX foifundamental para os gramticos brasileiros que produziram ao produzir gramticas de brasileiros

    para brasileiros tambm o sujeito brasileiro e como ao organizar a lngua (com gramticas, dicio-nrios, escolas, como o Caraa, o Pedro II etc.) tambm organizavam a sociedade brasileira. Mostrocomo no sculo XX tudo isso muda, com a repblica e desemboco finalmente no modo como o lin-gista se torna a autoridade que cauciona o conhecimento da lngua e o gramtico fica como oguardio da norma. Atualmente, neste projeto, estou pesquisando o perodo da ditadura para mostrar

    como o contexto poltico est presente na maneira como se constitui o conhecimento lingstico dapoca (anos 1960/1980). Na verdade, neste projeto, trato do discurso sobre a lngua ao longo dahistria brasileira. E reivindico o que chamo de processo de descolonizao pelo qual posso dizerque falamos a lngua brasileira. Assim como critico o que a lusofonia enquanto herana da colo-nizao e procuro mostrar que a relao entre pases de colonizao portuguesa deve se pautar

    pelas muitas formas de historicizar as lnguas faladas em seus territrios. E por a vai.

    Teias Por aqui vo os agradecimentos. Aqui, longe de querer promover um fim, registra-mos parte da mensagem em que Eni avalia a entrevista editada: sempre fica a insatisfao de saber

    que no se pode dizer tudo e que, como nos diz o nosso Guimares Rosa, um livro vale por aquiloque nele no deveu caber. So as margens. O que nos liga na vontade de ainda aprender mais.E por a vai...