Análise do discurso e ou análise de conteúdo

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76 Psicologia em Revista, Belo Horizonte, v. 9, n. 13, p. 76-88, jun. 2003 Análise do discurso e/ou análise de conteúdo Maria Emília Amarante Torres Lima * RESUMO Neste artigo fazemos algumas considerações sobre análise de conteúdo e análise do discurso, sobretudo do ponto de vista conceitual e metodológico. Apresentamos conceitos básicos da análise do discurso francesa, iniciada por Michel Pêcheux em 1969, baseada no materialismo histórico, na linguística e na psicanálise. Aqui o sujeito deixa de ser a origem do discurso, para se inserir em processos social, ideológico e discursivo já dados. Trabalhamos sobretudo com conceitos de interdiscurso e intradiscurso, hetereogeneida- de, condições de produção, pré-construído etc. Palavras-chave: Análise de conteúdo; Análise do discurso; Interdiscurso; Intradiscurso; Sujeito. • Texto recebido em abril de 2003 e aprovado para publicação em maio de 2003. * Socióloga, Doutora em Sociologia pela Universidade de Paris VI, Professora Adjunto II da Universidade Federal de Minas Gerais. e-mail: [email protected]. nálise do discurso” tornou-se uma expressão que por vezes aterroriza os meios acadêmicos, quase sempre sob o pretexto de que “é muito complicada”. Quan- tos estudantes já me disseram isso, acrescentando: “Quero fazer análise de conteúdo...”. Para responder a esta questão, considerei oportuno apresentar, neste texto, as po- sições teóricas e conceitos de análise do discurso (refiro-me aqui basicamente à análise do discurso francesa pensada e iniciada por Michel Pêcheux), após uma breve reflexão sobre a análise de conteúdo. Parece-nos importante observar que, antes de uma escolha metolodógica, temos uma pergunta sobre nosso objeto de estudo. Só depois que a pergunta inicial que for- mulamos for trabalhada e elaborada tomaremos nossa direção, sem deixar o barco à deri- va. Ao mesmo tempo, a direção que tomaremos (a metodologia) questionará nossa per- gunta inicial, e esta, nosso método. “A

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    Maria Emlia Amarante Torres Lima

    Anlise do discurso e/ouanlise de contedo

    Maria Emlia Amarante Torres Lima*

    RESUMONeste artigo fazemos algumas consideraes sobre anlise de contedo eanlise do discurso, sobretudo do ponto de vista conceitual e metodolgico.Apresentamos conceitos bsicos da anlise do discurso francesa, iniciada porMichel Pcheux em 1969, baseada no materialismo histrico, na lingusticae na psicanlise. Aqui o sujeito deixa de ser a origem do discurso, para seinserir em processos social, ideolgico e discursivo j dados. Trabalhamossobretudo com conceitos de interdiscurso e intradiscurso, hetereogeneida-de, condies de produo, pr-construdo etc.

    Palavras-chave: Anlise de contedo; Anlise do discurso; Interdiscurso;Intradiscurso; Sujeito.

    Texto recebido em abril de 2003 e aprovado para publicao em maio de 2003.* Sociloga, Doutora em Sociologia pela Universidade de Paris VI, Professora Adjunto II da Universidade

    Federal de Minas Gerais. e-mail: [email protected].

    nlise do discurso tornou-se uma expresso que por vezes aterroriza os meiosacadmicos, quase sempre sob o pretexto de que muito complicada. Quan-tos estudantes j me disseram isso, acrescentando: Quero fazer anlise de

    contedo....Para responder a esta questo, considerei oportuno apresentar, neste texto, as po-

    sies tericas e conceitos de anlise do discurso (refiro-me aqui basicamente anlise dodiscurso francesa pensada e iniciada por Michel Pcheux), aps uma breve reflexo sobrea anlise de contedo.

    Parece-nos importante observar que, antes de uma escolha metolodgica, temosuma pergunta sobre nosso objeto de estudo. S depois que a pergunta inicial que for-mulamos for trabalhada e elaborada tomaremos nossa direo, sem deixar o barco deri-va. Ao mesmo tempo, a direo que tomaremos (a metodologia) questionar nossa per-gunta inicial, e esta, nosso mtodo.

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    Nesse sentido, gostaramos de acrescentar, j nesse momento, que no considera-mos excludentes os dois tipos de anlise, ou seja, um corpus se presta aos dois tipos de an-lise, dependendo da pergunta inicial que fizermos. Estaremos, como pesquisadores, emmovimento, terminando o texto com mais questes do que respostas, o que nos parecepositivo.

    ANLISE DE CONTEDO E ANLISE DO DISCURSO

    A anlise do discurso tem definies bem variadas e bastante amplas, como a anli-se do uso da lngua, o estudo do uso real da lngua, pelos locutores reais em situaesreais. Sobretudo nos pases anglo-saxes, muitos aproximam a anlise do discurso daanlise conversacional, considerando o discurso como uma atividade fundamental in-teracional.

    Essas definies, bastante vagas, dificultam a distino da anlise do discurso de ou-tras disciplinas que taambm estudam o discurso. Maingueneau (1998, p. 13-14) prefereespecificar a anlise do discurso como a disciplina que, em vez de proceder a uma anliselingstica do texto em si, ou uma anlise sociolgica ou psicolgica de seu contexto, visaarticular sua enunciao sobre certo lugar social. Ela est, portanto, relacionada aos g-neros de discurso trabalhados nos setores do espao social (um caf, uma escola, uma lo-ja...) ou aos campos discursivos (poltico, cientfico...).

    O termo lugar diz respeito identidade dos parceiros do discurso. Michel P-cheux (1969, p. 18) ope o lugar que se refere a status socioeconmicos dos quais a socio-logia pode descrever o feixe de traos objetivos caractersticos (patro, empregado...) sformaes imaginrias, isto , a imagem que os participantes do discurso fazem de seuprprio lugar e do lugar do outro. Essas formaes imaginrias so subentendidas porquestes implcitas: Quem sou eu para falar-lhe assim?, Quem ele para que eu lhefale assim?, Quem sou eu para que me fale assim?, Quem ele para que me fale as-sim?. A anlise do discurso deve isolar as relaes complexas entre esses lugares e essasformaes imaginrias.

    Michel Pcheux, o terico mais representativo da anlise do discurso francesa, pro-pe uma relao entre o termo discurso e a descentralizao do sujeito. Esta anlise emer-giu nos anos 1960, e sobre ela nos deteremos com mais detalhes, dada a sua relevncia,largamente constatada em nossa prtica de anlise do discurso. Uma srie de pesquisado-res lingistas e historiadores utilizaram uma metodologia que associava a lingstica estru-tural a uma teoria da ideologia, inspirada, ao mesmo tempo, na releitura da obra deMarx por Althusser e na psicanlise de Lacan.

    Tratava-se de pensar a relao entre o ideolgico e a lingstica, evitando reduziro discurso anlise da lngua ou, ao contrrio, dissolver o discursivo no ideolgico. De-nunciando a iluso que tem o Sujeito do discurso de estar na origem do sentido, a escolafrancesa previlegia os procedimentos analticos, que desestruturam os textos: trata-se de

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    fazer aparecer o discurso como plenitude enganosa, cuja anlise deve revelar a inconsis-tncia fundamental, relacionando-o ao trabalho de foras inconscientes.

    preciso ressaltar que uma das noes fundadoras da anlise do discurso francesa a de condies de produo. Advinda da psicologia social, foi reelaborada por P-cheux, no campo da anlise do discurso, para designar no somente o meio ambiente ma-terial e institucional do discurso (tendo ela aqui uma relao com a noo de lugar), co-mo vimos, mas ainda as representaes imaginrias que os interagentes fazem de sua pr-pria identidade, assim como do referente de seus discursos (Pcheux, 1969, p. 16-23). Es-sas representaes imaginrias se constituem atravs do que j foi dito e do que j foi ou-vido (pr-construdo) (noo que veremos mais tarde). Para Pcheux, elas so ilusrias,pois o vivido dos sujeitos informado, constitudo pela estrutura da ideologia que o de-termina (Pcheux; Fuchs, 1975, p. 24).

    No que concerne anlise de contedo, tomamos como referncia, no presente tex-to, o livro de Laurence Bardin intitulado Anlise de contedo (1977, p. 9-10); a citaodo prefcio um pouco longa, mas essencial para apresentao da anlise de contedo poraqueles que a consideram a anlise ideal de textos:

    O que anlise de contedo atualmente? Um conjunto de instrumentos metodolgicoscada vez mais sutis, em constante aperfeioamento, que se aplicam a discursos (conte-dos e continentes) extremamente diversificados. O fator comum dessas tcnicas mltiplase multiplicadas desde o cculo de freqncias que fornece dados cifrados at a extraode estruturas traduzveis em modelos uma hermenutica controlada, baseada na dedu-o: a inferncia. Enquanto esforo de interpretao, a anlise de contedo oscila entre osdois plos do rigor da objetividade e da fecundidade da subjetividade. Absolve e caucionao investigador por esta atrao pelo escondido, o latente, o no-aparente, o potencial deindito (do no-dito), retido por qualquer mensagem. Tarefa paciente de desocultao,responde a esta atitude de voyeur de que o analista no ousa confessar-se e justifica a suapreocupao, honesta, de rigor cientfico. Analisar mensagens por essa dupla leitura, emque uma segunda leitura substitui a leitura normal do leigo, ser agente duplo, detetive,espio...

    Indicaremos, no momento, apenas alguns problemas que se colocam a partir da lei-tura de um extrato desse prefcio: o que quer dizer a discursos (contedos e continen-tes)? Lembremos novamente que o termo discurso um conceito baseado em toda umareflexo terica elaborada por Michel Pcheux. Foi justamente para romper com a con-cepo instrumental tradicional da linguagem que ele fez intervir o discurso e tentou ela-borar, teoricamente, conceitualmente e empiricamente, uma concepo original sobre es-te. Alm disso, segundo Pcheux, o instrumento da prtica poltica o discurso, ou, maisprecisamente, a prtica poltica, que tem como funo, pelo discurso, transformar as re-laes sociais, reformulando a demanda social, o que nos parece ser indiferente aos ana-listas de contedo.

    O que seria a fecundidade da subjetividade na anlise de contedo? Na anlisedo discurso francesa, a noo de sujeito bem clara, a partir dos conceitos de discurso edos esquecimentos nmero um e nmero dois, que veremos a seguir. O conceito de dis-

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    Anlise do discurso e/ou anlise de contedo

    curso apareceu com o questionamento da clebre dicotomia fundadora lngua/fala, quecolocava a lngua como realidade social e a fala como realidade individual. A lngua seriaento um conjunto de regras sistematizadas, enquanto a fala suporia a autonomia do su-jeito falante na condio de sujeito psicolgico.

    O conceito de discurso veio destituir o sujeito falante de seu papel central, paraintegr-lo ao funcionamento de enunciados, e no mais como sujeito produzindo sen-tido; os textos produzidos so abordados a partir das condies de possibilidade de ar-ticulao com um exterior, por exemplo, as formaes ideolgicas. (Nesse sentido, con-sideramos que Pcheux, Althusser, Foucault e outros, acusados de matar o sujeito, o colo-caram apenas no seu devido lugar, bastante diferente do sujeito da anlise de contedo).

    Ainda sobre a questo da subjetividade, as duas noes de esquecimento que ex-plicitaremos abaixo nos parecem aqui de grande importncia: Pcheux refere-se a umateoria da subjetividade de natureza psicanaltica e com especial relevo a Lacan, para pre-cisar o carter recalcado da matriz do sentido. Os processos discursivos realizam-se no su-jeito, mas no podem ter nele sua origem, mesmo se este tiver a iluso de estar na origemdo sentido. A prtica subjetiva ligada linguagem marcada por dois nveis de recalca-mento: o que Pcheux (1975, p. 7-80) nomeia como esquecimento nmero um e es-quecimento nmero dois.

    O esquecimento nmero um designa paradoxalmente o que nunca foi sabido eque, portanto, toca de mais perto o sujeito que fala, na estranha familiaridade que elemantm com as causas que o determinam... em completa ignorncia de causa. Orlandi(1999, p. 34-36) esclarece que esse esquecimento

    ... tambm chamado esquecimento ideolgico, da instncia do inconsciente e resulta domodo pelo qual somos afetados pela ideologia. Por esse esquecimento temos a iluso desermos a origem do que dizemos, quando, na realidade, retomamos sentidos preexistentes.(...) Na realidade, embora se realizem em ns, os sentidos apenas se representam como ori-ginando-se em ns: eles so determinados pela maneira como nos inscrevemos na lnguae na histria, e por isto que singnificam, e no pela nossa vontade.

    O esquecimento nmero dois uma ocultao parcial. Caracteriza uma zona aces-svel para o sujeito, se este faz um retorno sobre seu discurso (por exemplo, a pedido dointerlocutor). Na medida em que o sujeito se retoma para se auto-explicar o que diz, paraaprofundar o que pensa e para formul-lo de modo mais adequado, pode dizer-se queessa zona nmero dois, que a do processo de enunciao, caracterizada por um fun-cionamento do tipo pr-consciente/consciente. Ele da ordem da enunciao: ao falar-mos, o fazemos de uma maneira, e no de outra, e, ao longo de nosso dizer, formam-sefamlias parafrsticas que indicam que o dizer sempre podia ser outro.

    Esse esquecimento produz em ns a impresso da realidade do pensamento. Essaimpresso, que denominada iluso referencial, nos faz acreditar que h uma relao di-reta entre o pensamento, a linguagem e o mundo, de tal modo que pensamos que o quedizemos s pode ser dito com aquelas palavras, e no outras. Ela estabelece uma relaonatural entre palavra e coisa. Mas esse um esquecimento parcial, semiconsciente, e

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    muitas vezes nos voltamos sobre ele, recorremos a essa margem de famlias parafrsticas,para melhor especificar o que dizemos. o chamado esquecimento enunciativo e queatesta que a sintaxe significa: o modo de dizer no indiferente aos sentidos.

    Voltando ao prefcio de Bardin sobre anlise de contedo, perguntemos: o que esse no-dito (retido por qualquer mensagem)? Tal pergunta supe que todo discurso(ou mensagem, no presente caso) feito para comunicar; ora, lembremos brevemente afrase de Pcheux: A linguagem serve para comunicar e no comunicar.... E, como vere-mos posteriormente, a anlise do discurso se interessa pela linguagem tomada como pr-tica: mediao, trabalho simblico, e no instrumento de comunicao, embora procu-remos nela uma mensagem. Mas, enquanto a anlise de contedo se atm transparn-cia, a anlise do discurso procura o significado, o efeito de sentidos do que dito e nodito, seja decorrente do esquecimento 1 (estruturante) ou do 2, parcial, semiconsciente.

    O que seria o rigor da objetividade e o rigor cientfico seno aqueles definidospelo positivismo ou neopositivismo? A tarefa paciente de desocultao, que respondea uma atitude de voyeur por parte do analista da anlise de contedo, nada tem a vercom a atitude de interpretao do analista da anlise do discurso.

    Em seu livro Anlise automtica do discurso (AAD 69) (1969, p. 62), Michel P-cheux dedica a primeira parte a consideraes sobre Anlise de contedo e teoria do dis-curso, lembrando-nos a j mencionada ruptura da lingstica feita por Saussure, que co-locou a lngua como um sistema, deixando ento a lingstica de ser compreendida comotendo a funo de exprimir sentido; torna a lingstica um objeto do qual uma cincia po-de descrever o funcionamento. Assim, na metfora do jogo de xadrez utilizada por Saus-sure para pensar o objeto da lingstica, no se deve procurar o que cada parte significa,mas as regras que tornam possvel qualquer parte, quer se realize ou no.

    A conseqncia desse deslocamento conceitual introduzido por Saussure consisteem que o texto, de modo algum, pode ser o objeto pertinente para a cincia lingstica,como na anlise de contedo, pois ele no funciona; o que funciona a lngua, isto , umconjunto de sistemas que autorizam combinaes e substituies reguladas por elementosdefinidos, cujos mecanismos colocados em causa so de dimenso inferior ao texto: a ln-gua, como objeto de cincia, se ope fala como resduo no-cientfico da anlise. Comodisse Saussure, separando a lngua da fala, separa-se ao mesmo tempo: o que social doque individual; e o que essencial do que acessrio e mais ou menos acidental.

    Segundo Pcheux, o estudo da linguagem, que havia de incio almejado o estatutode cincia da expresso e de seus meios, pretendendo tratar de fenmenos de grande di-menso, se curvou posio que ainda hoje o lugar da lingstica. Mas, como de regrana histria da cincia, a inclinao pela qual a lingstica constituiu sua cientificidade dei-xou a descoberto o terreno que ela estava abandonando, e a questo que a lingstica teveque deixar de responder continua a se colocar, motivada por interesses a um s tempo te-ricos e prticos:

    O que quer dizer este texto? Que significao contm este texto?

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    So a essas diferentes formas da mesma questo que vrias respostas foram for-necidas pelo que chamamos anlise de contedo e, s vezes tambm, anlise de texto.

    Pcheux (1969, p. 64-66) examina em seguida os diferentes tipos de resposta dadasa essas questes, distinguindo os mtodos no-lingsticos (pr-saussurianos), como omtodo da deduo freqencial e a anlise por categorias temticas, e, por outro lado, osmtodos para-lingsticos (que se referem lingstica moderna e tentam dar uma res-posta questo do sentido contido em um texto).

    Poderamos dizer que, na anlise de contedo, parte-se da exterioridade para o tex-to, enquanto na anlise do discurso francesa, ao contrrio, procuramos conhecer essa ex-terioridade pela forma como os sentidos se trabalham no texto, em sua discursividade. Noque diz respeito ao social, no so os traos sociolgicos empricos, mas as formaes ima-ginrias, que se constituem a partir das relaes sociais que funcionam no discurso (a ima-gem que se faz de um operrio, de um presidente, de um pai, etc). (Ver, a esse respeitono livro A Construo discursiva do povo brasileiro [Lima, 1990], os discursos de Pri-meiro de Maio do presidente Getlio Vargas, em que este ltimo se atm mise en scnediscursiva de um encontro do Estado brasileiro com os trabalhadores, construindo dis-cursivamente a noo de povo e a noo de povo brasileiro atravs do populismo).

    Quanto ao ideolgico, lembra Orlandi (1996, p. 30) que a que melhor podemosapreciar a diferena entre a AD e a anlise de contedo, que ela define como mtodo cls-sico de anlise de linguagem que trata dos contedos da linguagem, dos contedos daideologia. Na AD se trabalha com os processos de constituio da linguagem e da ideo-logia, e no com seus contedos. Lembra a autora que, na perspectiva da AD, a ideologiano x, mas o mecanismo de produzir x. No espao que vai da constituio dos sen-tidos (o interdiscurso) sua formulao (intradiscurso), intervm a ideologia e osefeitos imaginrios (noes que veremos mais adiante).

    H, podemos dizer, um deslocamento, para no separar forma e contedo. A ADtrabalha a forma material (em que o contedo se inscreve), e no a forma abstrata, aquelaque perpetuava a diviso: forma (lingstica) e contedo (cincias sociais). Ela desloca aanlise de contedo como instrumento clssico de estudo da linguagem para as cinciassociais, colocando-se em seu lugar com a noo de discurso definido como efeito de sen-tidos entre locutores. Essa definio traz para a linguagem, nos lembra Orlandi (1996, p.32), a questo de sua forma material, que lingstica e histrica. Esclarece a autora que

    no se est negando aqui o corte saussureano. Nem se est propondo que se some simples-mente o lingstico ao histrico, ao social, produzindo-se um objeto total. Ao contrrio,reconhecendo-se a impossibilidade dessa soma, a proposta uma mudana de terreno te-rico que no pretenda justamente tapar a falta, transpor o impossvel da lngua e o impos-svel da histria, mas trabalhar essa impossibilidade.

    Assim, duas grandes diferenas podem ser detectadas entre anlise de contedo eAD: a primeira consiste em considerar, na anlise de contedo, os contedos das palavras,e no o funcionamento do discurso na produo de sentidos, como na AD, podendo-seassim explicitar o mecanismo ideolgico que o sustenta, ao que chamamos compreenso,

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    ou seja, a explicitao do modo como o discurso produz sentidos. A segunda diferenadiz respeito suposio de transparncia das palavras na anlise de contedo.

    Essa transparncia, que poderamos atravessar para atingir os contedos, postaem causa pela AD, ao considerar o imaginrio como produtor desse efeito e restituir a opa-cidade do texto ao olhar do leitor. Na AD prope-se trabalhar a iluso do sujeito comoorigem e a da transparncia da linguagem e dos sentidos; compreende-se tambm a hist-ria no como sucesso de fatos com sentidos j dados, dispostos em seqncia cronol-gica, mas como fatos que reclamam sentidos, cuja materialidade no possvel de ser apre-endida em si, mas no discurso.

    Poderamos dizer, sucintamente, que o que interessa ao analista do discurso no a classificao, mas o funcionamento; ou ainda, como diz Orlandi (1996, p. 57), Nonos interessa, nessa perspectiva discursiva, a organizao do texto. O que nos interessa o que o texto organiza em sua discursividade, em relao ordem da lngua e das coisas:a sua materialidade.

    Finalmente, a anlise de contedo procura extrair sentidos dos textos, comovoyeur, como vimos no incio, respondendo questo: o que este texto quer dizer? A AD,como vimos, considera que a linguagem no transparente. Desse modo ela no procuraatravessar o texto para encontrar um sentido do outro lado. A questo que ela coloca :como esse texto significa.

    CONCEITOS BSICOS DA ANLISE DO DISCURSO

    No universo discursivo, isto , no conjunto dos discursos que interagem em um da-do momento, a anlise do discurso segmenta campos discursivos, espaos em que for-maes discursivas esto em relao de concorrncia no sentido amplo, delimitam-se re-ciprocamente. Em geral, o analista no estuda a totalidade de um universo discursivo, masele extrai dela um subconjunto, que podemos denominar corpus, constitudo de pelo me-nos dois posicionamentos discursivos, mantendo relaes particularmente fortes.

    J no incio do nosso trabalho de constituio do nosso corpus, no universo dis-cursivo nos deparamos com problemas de restituio de termos (mais ou menos longos)que aparecem no discurso como endfora (Maingueneau, 1998, p. 51-52). A endforarecobre as relaes de anfora e de catfora, ou seja, os diversos fenmenos de retoma-da de um segmento por outro, num mesmo conjunto textual. Ela tem um papel essencialna coeso textual. Empregado estritamente, o termo anfora designa a retomada de umsegmento por outro situado depois; ele se ope catfora, relao na qual o segmento queretoma situado antes daquele que ele retoma.

    A endfora pode ser gramatical (retomada por um pronome, em partituclar) ou le-xical (retomada de uma unidade lexical por outra unidade lexical). Distinguimos tambma endfora segmental e a endfora restauradora. A primeira retoma uma unidade inferior frase (por exemplo, um grupo adjetival); a segunda retoma, condensando, uma unidadede tamanho pelo menos igual frase.

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    O estudo das endforas lexicais de grande interesse para a anlise do discurso, poispermite, em particular, pr em evidncia opes ideolgicas implcitas.

    Formao discursiva (Maingueneau, 1998, p. 67-69)

    Quando fizemos referncia constituio de corpus, utilizamos a noo de forma-o discursiva (empregada essencialmente na escola francesa) introduzida por Foucault(1969, p. 53) para designar conjuntos de enunciados relacionados a um mesmo sistemade regras, historicamente determinadas. Dessa forma, Foucault procurava contornar asunidades tradicionais como teoria, ideologia, cincia. Mas foi com Pcheux queessa noo entrou na anlise do discurso. No quadro terico do marxismo althusseriano,ele adiantava que toda

    formao social, passvel de se caracterizar por uma certa relao entre classes sociais, im-plica a existncia de posies polticas e ideolgicas, que no so o feito de indivduos, masque se organizam em formaes que mantm entre si relaes de antagonismo, de alianaou de dominao.

    Essas formaes ideolgicas incluem uma ou vrias formaes discursivas interli-gadas que determinam o que pode e deve ser dito (articulado sob a forma de uma arenga,de um semo, de um panfleto, de uma exposio oral, de um programa, etc.) a partir deuma posio dada, numa conjuntura dada. Essa tese tem uma incidncia sobre a semn-tica, pois as palavras mudam de sentido, passando de uma formao discursiva a outra.

    A maneira pela qual apreendemos as formaes discursivas oscila entre uma con-cepo contrastiva, em que cada uma pensada como um espao autnomo que pomosem relao a outros, e uma concepo interdiscursiva, para a qual uma formao dis-cursiva s se constitui se se mantm atravs do interdiscurso. Opomos a formao dis-cursiva como sistema de regras superfcie discursiva. Vejamos, com mais detalhes estasduas noes de interdiscurso e intradiscurso.

    O intradiscurso ope-se ao interdiscurso como as relaes entre os constitu-intes do discurso opem-se s relaes desse discurso com outros. Mas preciso recusartoda representao que oporia um interior a um exterior do discurso como dois uni-versos independentes. As problemticas do dialogismo ou da heterogeneidade cons-titutiva mostram que o intradiscurso atravessado pelo interdiscurso.

    Podemos dizer que o interdiscurso est para o discurso assim como o intertexto estpara o texto. O interdiscurso seria assim um conjunto de discusos (de um mesmo campodiscursivo ou de campos distintos, de pocas diferentes...), ou seja, uma articulao con-traditria de formaes discursivas que se referem a formaes ideolgicas antagonistas.Se consideramos um discurso particular, podemos tambm chamar interdiscurso o con-junto das unidades discursivas com as quais ele entra em relao. Segundo o tipo de rela-o interdiscursiva que privilegiamos, pode-se tratar dos discursos citados, dos discursosanteriores de mesmo gnero, dos discursos contemporneos de outros gneros, etc. O in-terdiscurso pode dizer respeito a unidades discursivas de dimenses bem variveis.

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    A memria, por sua vez, como diz Orlandi (1999, p. 31-32), tem suas caracters-ticas, quando pensada em relao ao discurso. E, nessa perspectiva, ela tratada como in-terdiscurso. Este definido como aquilo que fala antes, em outro lugar, independente-mente. Ou seja, o que chamamos memria discursiva: o saber discursivo que torna pos-svel todo dizer e que retorna sob a forma do pr-construdo, o j-dito que est na basedo dizvel, sustentando cada tomada da palavra.

    O interdiscurso disponibiliza dizeres que afetam o modo como o sujeito significaem uma situao discursiva dada. Tudo o que j se disse sobre um tema e seus correlatosest, de certo modo, significando ali, interpelando os sujeitos. Todos esses sentidos j di-tos por algum, em algum lugar, em outros momentos, mesmo muito distantes, tm umefeito sobre o que dito em algum lugar e trazem diferentes pressupostos. A forma dessedito (ou escrito) acaba por trazer, ela tambm, uma memria, ao invs de romp-la co-locando-se fora dela, falando com outras palavras.

    O fato de que h um j-dito que sustenta a possibilidade mesma de todo dizer fun-damental para se compreender o funcionamento do discurso, sua relao com os sujeitose com a ideologia. Deduz-se da que h uma relao entre o j-dito e o que se est dizendo,que a que existe entre o interdiscurso e o intradiscurso, ou, em outras palavras, entre aconstituio do sentido e sua formulao.

    Podemos explicitar essa diferena considerando a constituio o que estamos cha-mando de interdiscurso representada como um eixo vertical em que teramos todos osdizeres j ditos e esquecidos em uma estratificao de enunciados que, em seu conjun-to, representa o dizvel. E teramos o eixo horizontal o intradiscurso , que seria o eixoda formulao, isto , aquilo que estamos dizendo naquele momento dado, em condiesdadas.

    A constituio determina a formulao, pois s podemos dizer (formular) se noscolocamos na perspectiva do dizvel (interdiscurso, memria). Todo dizer, na realidade,se encontra na confluncia dos dois eixos: o da memria (constituio) e o da atualidade(formulao).

    Paralelamente, tambm o interdiscurso, a historicidade, que determina aquiloque, da situao, das condies de produo, relevante para a discursividade. Pelo fun-cionamento do interdiscurso, suprime-se, por assim dizer, a exterioridade como tal, parainscrev-la no interior da textualidade. Isso faz com que, pensando-se a relao da histo-ricidade (do discurso) e da histria (tal como se d no mundo), o interdiscurso que espe-cifica, como diz Pcheux (1983), as condies nas quais um acontecimento histrico (ele-mento histrico descontnuo e exterior) suscetvel de vir a inscrever-se na continuidadeinterna, no espao potencial de coerncia prprio a uma memria.

    preciso no confundir o que interdiscurso e o que intertexto. O interdiscurso todo o conjunto de formulaes feitas e j esquecidas que determinam o que dizemos.Para que minhas palavras tenham sentido, preciso que elas j faam sentido. E isto efei-to do interdiscurso: preciso que o que foi dito por um sujeito especfico, em um momen-to particular, se apague na memria, para que, passando para o anominato, possa fazer

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    Anlise do discurso e/ou anlise de contedo

    sentido em minhas palavras. No interdiscurso, diz Courtine (1984), fala uma voz semnome.

    Se tanto o interdiscurso como o intertexto mobilizam o que chamamos relaes desentido, no entanto o interdiscurso da ordem do saber discursivo, memria afetada peloesquecimento, ao longo do dizer, enquanto o intertexto restringe-se relao de um textocom outros textos. Nessa relao, a intertextual, o esquecimento no estruturante, comoo para o interdiscurso. Parece-nos oportuno lembrarmo-nos do pressuposto, a que fi-zemos referncia anteriormente.

    O fenmeno da pressuposio faz aparecer, no interior da lngua, todo um disposi-tivo de convenes e de leis, que deve ser compreendido como um quadro institucionalregendo o debate dos indivduos. O implcito tem uma dupla utilidade: exprimir algumacoisa sem arriscar ser considerado como responsvel por t-la dito, mas tambm adiantaruma idia, subtraindo-a a eventuais objees. A pressuposio seria uma forma do impl-cito, permitindo dizer alguma coisa fazendo de conta que no estivesse sendo dita.

    Os pressupostos se encontram introduzidos nos discursos como evidncias incon-testveis, o que no quer dizer que eles sejam afirmados como evidentes. Por sua posioexterna ao encadeamento do discurso, o pressuposto aparece como fora de questo.Pressupor uma idia construir um discurso no qual ela no ser colocada em questo,e o engendramento mesmo do discurso que fundamenta essa aparente necessidade depressuposto.

    Ultimamente, noes como, dialogismo, heterogeneidade, pr-construdo,tm trazido importantes contribuies para o desenvolvimento da anlise do discurso e,como veremos, recorrem s noes de formao discursiva e do funcionamento intradis-cusivo e interdiscursivo.

    Dialogismo (Maingueneau, p. 41-42)

    Na retrica, esse termo designava o procedimento que consiste em introduzir umdilogo fictcio em um enunciado. Em anlise do discurso, ele utilizado, aps Bakhtin,para referir-se dimenso profundamente interativa da linguagem, oral ou escrita. O lo-cutor no um Ado, como diz Bakhtin, e por isso o objeto de seu discurso se torna, ine-vitavelmente, o ponto em que se encontram as opinies de interlocutores imediatos (nu-ma conversao ou numa discusso sobre qualquer acontecimento da vida corrente) ouainda as vises do mundo, as tendncias, as teorias (na esfera da troca cultural), etc. MasBakhtin emprega tambm dialogismo no sentido de interxtextualidade.

    Heterogeneidade (Mostrada vs. Constitutiva) (Maingueneau, 1998, p. 78-80)

    Um discurso quase nunca homogneo: mistura diversos tipos de seqncias, pas-sa do plano embreado ao plano no embreado, deixa transparecer de maneira bastante va-rivel a subjetividade do enunciador, etc. (Lembremos, brevemente, que embreantes

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    so unidades lingsticas cujo valor referencial depende do ambiente espao-temporal desua ocorrncia). Dentre os fatores de heterogeneidade, devemos atribuir um papel privi-legiado presena de discursos outros num discurso. Sobre esse ponto, Authier-Revuz(1982) introduziu uma distino amplamente utilizada entre heterogeneidade mostrada(ou representada) e heterogeneidade constitutiva: Heterogeneidade mostrada: corres-ponde a uma presena detectvel de um discurso outro ao longo do texto. Mas devemosdistinguir entre as formas no marcadas dessa heterogeneidade e suas formas marcadas(ou explcitas). As formas no marcadas so identificveis sobre a base de ndices textuaisdiversos ou graas cultura do co-enunciador (discurso indireto livre, aluses, ironia, pas-tiche...). As formas marcadas so assinaladas de maneira unvoca. Pode-se tratar de dis-curso direto ou indireto, de aspas, de glosas que inicam uma no-coincidncia do enun-ciador com o que ele diz.

    Heterogeneidade constitutiva: o discurso dominado pelo interdiscurso. Assim,o discurso no apenas um espao em que vem se introduzir o discurso outro, ele cons-titudo atravs de um debate com a alteridade, independentemente de toda marca visvelde citao, aluso, etc. Essa tese toma diversas figuras, segundo os autores; em Pcheux(1975, p. 146), a dupla referncia psicanlise e concepo althusseriana da ideologiafunda a primazia do interdiscurso sobre cada formao discurisva: O prprio de toda for-mao discursiva dissimular, na transparncia do sentido que a se forma, a objetividadematerial e contraditria do interdiscurso, determinando essa formao discursiva comotal, objetividade material que reside no fato de que isso fala sempre antes, alhures e in-dependentemente, quer dizer, sob a dominao do complexo das formaes ideolgicas(pr-construdo). Voltamos psicanlise lacaniana: o sujeito irredutivelmente cli-vado, dividido pelo inconsciente, mas ele vive na iluso necessria da autonomia de suaconscincia e de seu discurso.

    O que seria ento o pr-construdo, noo introduzida por Pcheux?Distinguimos, segundo Maingueneau (1998, p. 114-115), duas dimenses no dis-

    curso: aquilo sobre o que ele se apia, que ele apresenta como natural, como subtrado assero do enunciador (o pr-construdo), e aquilo que ele pretende trazer, o que eleconstri a partir da. O pr-construdo tem um alcance mais amplo que o pressuposto,que ele integra: por exemplo, certos enunciados anteriores mantidos no interior da mesmaformao discursiva ou numa formao adversa.

    Pcheux (apud Maldidier, 1990, p. 43) define-o como os traos no discurso de ele-mentos discursivos anteriores dos quais esquecemos o enunciador. A esses traos associa-se, para o sujeito, um efeito de evidncia: grupos nominais com artigos definidos, apostos,nominalizaes, etc. O pr-construdo foi, em seguida, reformulado como trao do inter-discurso no intradiscurso. Ele foi, assim, associado a uma das teses essenciais da escolafrancesa, a de uma dissimulao do interdiscurso pelo discurso. De maneira mais vaga,o termo pr-construdo emprega-se para designar qualquer contedo admitido numa co-letividade.

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    Anlise do discurso e/ou anlise de contedo

    CONCLUSO

    Aps essa breve apresentao dos conceitos bsicos para se compreender e realizaruma anlise do discurso, lembremos, com Orlandi (1999, p. 27), que, como a perguntainicial de responsabilidade do pesquisador, essa responsabilidade que organiza sua re-lao com o discurso, levando-o construo de seu dispositivo analtico, optando pelamobilizao desses ou daqueles conceitos, desse ou daquele procedimento, com os quaisele se compromete na resoluo de sua questo. Portanto, sua prtica de leitura, seu tra-balho com a intepretao, tem a forma de seu dispositivo analtico.

    Fazemos tambm mais uma vez referncia a Maingueneau, segundo o qual, paracompreender um enunciado, no basta para um sujeito mobilizar sua competncia lin-gstica; ele deve tambm apelar para um saber enciclopdico, isto , o conhecimento domundo que ele adquiriu. Esse saber varia de indivduo para indivduo, e aberto: enri-quecemo-lo continuamente.

    O pescador, quando sai para o mar, leva consigo os instrumentos de que necessitapara sua pesca, sejam eles redes ou anzis, de diferentes concepes, dependendo do seusaber e do objeto de sua pesca. Assim o pesquisador que sai para a aventura de pescarno discurso seus significados e seu funcionamento.

    Neste sentido, gostaramos de deixar claro, mais uma vez, que a anlise de con-tedo e a anlise do discurso no se excluem, mas trazem resultados diferentes sobre oscorpus de trabalho, como a rede e o anzol jogados nesse mar turbulento, por vezes calmo,ambguo, e que por vezes se silencia (silencia o qu?), trazem diferentes elementos paraa terra.

    Assim o discurso, transparente e opaco, cheio de sementes e semnticas dando ailuso de completude; nesse discurso, seu deslocamento, imbricaes, falhas e faltas ex-plcitas e implcitas so como processos de produo heterognea, significncias. guasclaras, espumas, guas com diversas tonalidades, ocupando toda uma superfcie profun-da. assim o discurso: ambguo, traioeiro, fiel, com falhas, cheio de enigmas, pro-curamos nele um sentido coerente ou no, queremos desvendar seu segredo, compreen-d-lo, apreend-lo, torn-lo presa de nosso intelecto. Mas o discurso se esvai, toma seucurso, e parece que nossos recursos se tornam impotentes diante de sua soberania. Fazero qu? Que tal, ao invs de domin-lo, competir com sua imponncia, navergarmos nessasguas significantes, interromper, romper seu curso, acompanhar seu movimento, comopesquisadores sempre em movimento?

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    Referncias bibliogrficas

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    ABSTRACTThis article consists of considerations about Content Analysis and Dis-course Analysis, from the conceptual and the methodological points ofview. It presents basic concepts of the French Discourse Analysis, started byMichel Pcheux in 1969, based on historical materialism, on linguistics andon psychoanalysis. Here the subject ceases being the origin of discourse, andgets inserted into already given social, ideological and discursive processes.Concepts of interdiscourse, intradiscourse, heterogeneity, production con-ditions, the pre-constructed, etc., are also taken into account.

    Key words: Content analysis; Discourse analysis; Interdiscourse; Intradis-course; Subject.