ANÁLISE ESTILÍSTICA DE ALGUNS POEMAS DE CECÍLIA MEIRELES.pdf

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5/28/2018 ANÁLISEESTILSTICADEALGUNSPOEMASDECECLIAMEIRELES.pdf-slidepdf.com http://slidepdf.com/reader/full/analise-estilistica-de-alguns-poemas-de-cecilia-meirelespdf 21/3/2014 ANÁLISE ESTILÍSTICA DE ALGUNS POEMAS DE CECÍLIA MEIRELES http://www.filologia.org.br/revista/artigo/6(16)14-25.html 1/26 << ANÁLISE ESTILÍSTICA DE ALGUNS POEMAS DE CECÍLIA MEIRELES (I)  Alessandra Almeida da Rocha (CiFEFiL)  1- INTRODUÇÃO 1.1 - OBJETIVO Neste trabalho, procurei mergulhar fundo na obra de Cecília Meireles para compreender detalhadamente o lirismo em seus poemas. A obra de Cecília Meireles, desde a sua primeira leitura, deixou-me pensativa, pois abordam temas tão comuns ao meu íntimo e, creio, de toda a humanidade, tais como a morte, o amor, a fugacidade da vida, a efemeridade dos tempos. A genialidade da poetisa em abordá-los, reflexivamente, sem aterrorizar-nos, tenta-nos, pelo contrário, acordar para uma realidade, suavemente, como é o ritmo de suas poesias, comprovado pelas palavras de Walmir Ayala: “(...) sente-se que o aprendizado da morte começou muito cedo para ela (...), uma visão muito dura e precoce em direção ao grande enigma(...)” (CM, PC, p. 13) E nas palavras da própria Cecília Meireles, que alcançou seu objetivo ao ver sua obra reconhecida: “Acordar a criatura humana dessa espécie de sonambulismo em que tanto se deixam arrastar, mostrar-lhes a vida em profundidade, sem pretensão filosófica ou de salvação - mas por uma contemplação poética afetuosa e participante” (CM, LC, p. 6) Dedico-me a investigar a sua expressividade, seu simbolismo, seus ritmos, através da análise estilística, profunda e carinhosa, assim como são os poemas da autora, compreendendo o fascínio de sua obra durante o tempo e as surpresas que aparecem a cada estudo feito. Aos que lerem o trabalho, entendam o que foi feito e entendam a razão de ser ela um dos grandes destaques do Modernismo Brasileiro até os dias atuais.  - CECÍLIA MEIRELES, A PASSAGEM DE UMA BORBOLETA VERSÁTIL Cecília nasceu no Rio de Janeiro, em sete de novembro de 1901. Órfã de pai (morreu três meses antes do nascimento da filha), antes dos três anos de idade, perde também a sua mãe. Resta-lhe a avó materna, moçambicana, que educa a menina, aprendendo desde então, sobre a morte, a vida, sua efemeridade e solidão, características que surgirão mais tarde em seus textos. Toma gosto pela leitura e pela música desde criança. Cecília segue o caminho de sua mãe, professora primária, em 1917, pelo Instituto de Educação do Rio de Janeiro. Esse amor pelas crianças é traduzido nos livros Olhinhos de Gato, Ou isto ou aquilo e outras obras, assim como pelo seu empenho e dedicação para a implantação da primeira biblioteca infantil, em 1934. Em 1919, publica sua primeira obra, Espectros, ainda com características simbolistas. Já casada com Fernando Correia, que se suicida posteriormente, e mãe de três filhas, sua intensa produção não pára, produzindo crônicas sobre o ensino. Sempre ativa, atuou inclusive no magistério, participando do movimento de 32 ao lado de Fernando Azevedo, Anísio Teixeira, Lourenço Filho, Hermes Lima e outros que propunham mudanças no sistema educacional. Possui poemas publicados nas revistas “Árvore Nova” (1922), “Terra do Sol” (1924) e “Festa” (1ª fase: 27 -28; 2ª fase: 34 -35).

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    A autora era ligada ao grupo espiritualista que defendia a Literatura Brasileira na base doequilbrio e do pensamento filosfico, nas palavras de Darcy Damasceno, o que no implicavacompromisso de ordem doutrinria, mas apenas delineava a feio espiritual de sua arte,inspirada em elevado misticismo, ainda segundo o estudioso.

    Na primeira fase da poesia de Ceclia Meireles, nota-se a influncia da idia Kantiana sobre aelevao dos valores individuais a categoria universal e percebe-se o isolamento do mundo,romanticamente, afastando-se a autora das coisas mundanas.

    Entre 1930 e 1934, tempo que passou sem publicar poesias, dedicou-se Pgina da educao,no Dirio de Notcias, participando intensamente no processo de modernizao da educao.

    Em 1935, fica viva e torna-se professora de Literatura Luso-Brasileira e de Tcnica e CrticaLiterrias da Universidade do Distrito Federal.

    Seu livro Viagem, em 1938, recebe o prmio da Academia Brasileira de Letras. Publicado no anoseguinte, sendo reconhecida como grande escritora nacional. Internacionalmente, apenasposteriormente.

    Casa-se em 1940 com o professor Heitor Grillo. Neste ano, leciona cultura e Literatura Brasileirana Universidade do Texas. Sucedem-se viagens a pases da Europa e Amrica Latina divulgando

    a nossa cultura.Em 1942, publica Vaga Msica, que trata de temas como o mar associado aos sons musicais, queso os veculos da viagem e dos sonhos da poetisa.

    Em Mar Absoluto reiterada a importncia do mar para a compreenso da obra da autora, pois omar simboliza natureza e a sua fuso com o ser humano, tendo sido publicado em 1945. Em1949, publicao de Retrato Natural, no qual a autora se descreve suavemente. Doze Noturnosda Holanda e O Aeronauta foram escritos na Holanda em 1952. Romanceiro da Inconfidncia,conta o fato histrico da Inconfidncia Mineira. A poetisa conceituou como uma narrativarimada, sendo publicado em 1953. As outras obras da autora foram : Canes e Girof Girofl,em 1956; Metal Rosicler, em 1960; Poemas escritos na ndia, 1962; Solombra, 1963 e Ou Isto ou

    Aquilo em 1964.No dia 9 de novembro de 1964 falece no Rio de Janeiro, tendo em 1965, a Academia Brasileira deLetras conferido poetisa o Prmio Machado de Assis, pelo conjunto de sua obra.

    - ESCOLHA DA AUTORA E DOS POEMAS

    A escolha de Ceclia Meireles veio por afinidade. H dois anos, quando tive que elaborar umensaio estilstico para o curso de especializao, estava perdida e ansiosa com o tempo quepassava e com o trabalho que deveria ser feito.

    Li poesias de vrios autores, mas ao ler Motivo, senti que era este poema, essa poetisa, quedeveria estudar. Ele envolveu-me e tocou-me profundamente. Entretanto, angustiava-me amonografia. Resolvi continuar com a mesma autora, Ceclia Meireles, tendo sido sugerido pelaprofessora e orientadora Iza Quelhas a escolha de outras poesias para a ampliao do estudo.

    O critrio para escolha dos poemas foi o mesmo de Motivo, o qual se encontra no trabalho: queme envolvesse e pudesse propiciar uma leitura da obra direcionada pelos estudos estilsticos.

    Aps uma leitura exaustiva da obra, foram escolhidos os poemas: Retrato, Epigrama n.2, Criana,Noes, Acontecimento, Herana e Assovio, que pertencem ao premiado livro Viagem, publicadoem 1939, mostrando o seu amadurecimento e reconhecimento natural.

    Neles vemos algumas caractersticas de Ceclia: o lirismo; a conscincia da efemeridade; o tempodas pessoas, das coisas; a solido, a morte, a melancolia, a tristeza, preocupao com temasuniversais, reflexo filosfica e musicalidade.

    Veremos a ligao entre cada um deles, que parece ter sido costurado pacientemente pelaautora, ao final.

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    - ESTUDO DA OBRA NA ATUALIDADE

    Ao pesquisar sobre a poetisa, li pesquisadores consagrados ao estudo da autora, tais comoLeodegrio A. de Azevedo Filho e, principalmente, Darcy Damasceno, apaixonado pela obra eprofundo analista da poesia da autora.

    Duas obras recentes chamaram a minha ateno. A primeira foi a dissertao de mestrado da

    professora Ruth Villela Cavalieri, que aborda o Ser e o Tempo em Ceclia . O outro, o livro AFarpa na lira: Ceclia Meireles na revoluo de 30, mostrando outra face de Ceclia, aquela quecriticava e lutava ferozmente pelo ensino brasileiro e sua modificao. Deparei-me, ento, comseu lado poltico no suficientemente conhecido, o que foi interessante e auxiliou-me nacompreenso de outros aspectos de sua obra.

    Creio que existem outras, alm destas, obras atuais sobre a autora, pois por mais que se fale,sempre se achamfatos novos sobre a poetisa.

    2 - ESTABELECIMENTO DO CORPUS

    Aps leitura dos principais livros de Ceclia Meireles, resolvi selecionar um conjunto de poemasque pudesse ser significativo para a compreenso de sua obra. Desse modo, os poemasescolhidos foram publicados no livro Viagem : Vaga Msica. (Coleo Poesis, editora NovaFronteira, 1982). Este esclarecimento feito para se conhecer de qual obra foram tirados ospoemas em estudo, sem fazer-lhesnenhuma alterao.

    Os poemas escolhidos remetem,cada um com sua especificidade ao tema da viagem, apesar deconstrues e abordagens diferentes, sugerindo uma trajetria espiritual repleta de diferentesmatizes.

    - ANLISE ESTILSTICA E RECURSOS USADOS

    Este estudo procura focalizar um determinado corpus da obra de Ceclia, mesmo assim, esseestudo tambm pretende ampliar algumas questes. Ento, faz - se necessrio um pequenoesclarecimento sobre o campo estilstico utilizado.

    Como a poesia ceciliana explora muito os recursos da musicalidade, fez-se necessriocompreender alguns aspectos da fonologia, destacando o uso das assonncias, aliteraes,rimas, cavalgamentos, cesuras e a sua significao em relao ao poema e obra. Em algunsmomentos nos detivemos no emprego de algumas classes de palavras, significativas na poesia ouem alguns aspectos da sintaxe, procurando estudar a significao de palavras ligadas aos seusaspectos expressivos, isto , o seu lxico-semntico.

    Notar-se- que aspectos da estilstica fnica, lxica, semntica foram privilegiadas pordestacarem as construes caractersticas da obra ceciliana.

    Figuras como a anttese, a metfora, o hiprbato, a gradao, a anfora, a epanadiplose eoutras sero vistas e comentadas o seu aparecimento, mostrando os significados que nos podemsugerir. A pontuao tambm, em alguns momentos, ser estudada.

    3 - ANLISE DOS POEMAS

    3.1- MotivoEu canto porque o instante existe

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    e a minha vida est completa

    No sou alegre nem sou triste:

    sou poeta

    Irmo das coisas fugidias;

    no sinto gozo nem tormento.

    Atravesso noites e dias

    no vento.

    Se desmorono ou edifico,

    se permaneo ou me desfao,

    - no sei, no sei. No sei se ficoou se passo

    Sei que canto. E a cano tudo.

    Tem sangue eterno a asa ritmada

    E um dia sei que estarei mudo:

    - Mais nada

    Logo que iniciamos a leitura do poema, notamos que todo elaborado em primeira pessoa, trata-se do eu lrico, que se refere subjetividade, ao ntimo, descrio dos sentimentos.Observemos este exemplo.

    Eu canto porque o instante existe

    E a minha vida est completa

    Notamos tambm a presena de vrios predicativos do sujeito, referindo-se subjetividade do

    eu lrico. Exemplificando:

    No sou alegre nem sou triste:

    Sou poeta.

    No poema, como um todo, percebemos logo de incio algumas das principais caractersticas dapoesia de Ceclia Meireles, tais como leveza e a delicadeza com que tematiza a passagem dotempo, a transitoriedade da vida e a fugacidade dos objetos, que parecem intocveis em seuspoemas, com uma linguagem altamente feminina, intuitiva e sensorial, decorrendo assim, umcerto tom melanclico dos mesmos.

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    Exemplo:

    Irmo de coisas fugidias

    Atravesso noites e dias no vento

    Alfredo Bossi, em seu livro Histria Concisa da Literatura Brasileira, define: Com Ceclia Meirelesa vertente intimista, (...), afina-se ao extremo e toca os limites da msica abstrata. (AB, p.515)

    importante ressaltar que, por ter estudado msica, seus poemas tematizam a musicalidadecomo uma importante caracterstica. Exemplos:

    Sei que canto. E a cano tudo.

    Tem sangue eterno a asa ritmada

    No ltimo terceto do soneto, primeiro verso, h aliterao da oclusiva /k/, o que sugere o ritmoda batida do corao, quando eterniza a msica, a cano, enquanto a assonncia da vogal /a/sugere um sentimento de alegria do eu lrico.

    Na primeira estrofe, o eu lrico d importncia ao tempo presente, criao do seu poema.Afirma que o poeta declara os sentimentos para as pessoas, mas o poeta imparcial.

    No terceiro verso desta estrofe h uma anttese entre alegre X triste. Entretanto, ao colocaras palavras no e nem, o eu lrico d um tom de indiferena, mas a melancolia persiste como uso das consoantes semi-abertas /o/, /e/ e as vogais fechadas /u/ e /i/.

    O eu lrico se contenta em ser apenas poeta, como afirma no quarto verso deste quarteto,apesar de a sua existncia ser triste.

    Outra ocorrncia importante e recorrente na obra de Ceclia o uso dos verbos existir e ser,que sugerindo o tom existencialista de Cec lia Meireles.

    Na segunda estrofe, chama a ateno ao valor que se d s coisas passageiras, para que nonos prendamos a elas, pois passam como o vento. Deve -se agir como o poeta, que livre, comoo vento. Logo, no sente gozo nem tormento.

    Em seu primeiro verso h assonncia dos fonemas /a/, /i/, /o/ e a presena do fonema /s/,ocorrendo uma aliterao, que lembra a passagem do tempo, de forma rpida, com um vento,

    como diz o eu lrico.Na terceira estrofe, percebemos um conflito interior, uma dvida do eu lrico, que no sabe qualdeciso tomar: a de parar ou a de continuar. A dvida com relao a sua existncia permanecena repetio da expresso No sei. Ocorre uma anttese entre as formas verbais fico(terceiro verso) e passo (quarto verso), pois a transitoriedade da vida mais uma vez questionada. As formas fico (terceiro verso) e edifico (primeiro verso) esto rimando e nspodemos pensar que, enquanto vivemos, edificamos algo na terra, de ordem espiritual oumaterial, mas quando passamos, tudo se desfaz, como observamos na rima que acontece nosegundo e no quarto versos.

    Na quarta estrofe, o eu lrico reafirma a importncia dada ao presente, ao tempo do agora,

    inicia- do na primeira estrofe, pois o poeta continua a cantar e diz que a cano tudo, assimcomo o poema, porque so eternizados com o passar do tempo, assim como o vo ritmado dasasas dos pssaros, enquanto que ele e ns somos finitos - um dia, ficaremos mudos e noseremos mais nada. A msica, que muitos consideram desnecessria, ser e eterna, como oesprito.

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    Esse poema todo elaborado em antteses, o que se pode observar em: alegre # triste;noite # dia; desmorono # edifico; permaneo # defao; fico # passo.

    Percebemos, ento, que o poema uma metfora que representa a fugacidade da vida e comoas pessoas a deixam passar, sem dar o real valor ao que realmente importa, tambm notamos aexistncia de um eufemismo nos terceiro e quarto versos da ltima estrofe, pois se evita apalavra morte, substituindo-a por uma expresso menos desagradvel.

    Vejamos:

    E um dia sei que estarei mudo:

    - Mais nada.

    Notamos tambm no interior de alguns versos, uma pausa interna, denominada cesura, na qual o

    eu lrico faz uma reflexo sobre o que vai tratar poeticamente.

    Exemplos:

    Eu canto / porque o instante existe

    No sou alegre / nem sou triste

    No sei, / No sei./No sei se fico.

    Ou passo.

    Sei que canto / E a cano tudo.

    Tem sangue eterno / a asa ritmada.

    No segundo verso da quarta estrofe, aparece o hiprbato, que resulta da inverso na ordemnatural das palavras relacionadas entre si, realando a eternidade do esprito.

    Analisemos:

    Tem sangue eterno a asa ritmada

    Nas ltimas estrofes podemos dizer que ocorre a gradao, ou seja, o encadeamento gradual dostermos relativos a uma idia, que intensifica a dvida do eu lrico sobre uma deciso a sertomada.

    Vejamos:

    Se desmorono ou se edifico,

    se permaneo ou me desfao

    - no sei, no sei. No sei se fico

    ou passo.

    No poema de Ceclia Meireles notamos a presena de uma certa feio do clssico noModernismo, principalmente no que se refere s rimas, no caso do poema todo composto de

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    rimas alternadas.

    Na primeira estrofe, h a rima do primeiro e terceiro versos e do segundo e do quarto versos. Nasegunda estrofe ocorre o mesmo esquema: primeiro e terceiro versos e segundo e quarto versos.Na terceira estrofe: primeiro e terceiro versos. Na quarta estrofe: primeiro e terceiro versos e dosegundo e quarto versos.

    Observamos, tambm, a existncia da rima rica, ou seja, rimas entre palavras de classesgramaticais diferentes, na primeira estrofe, o primeiro e terceiro versos e segundo e quarto

    versos. Tambm, na segunda estrofe, o primeiro e terceiro versos. No restante do poema,constata-se a presena da rima pobre, isto , rimas com palavras de classes gramaticaissemelhantes. A herana simbolista da poeta reconhecida por essas mtricas.

    Notamos a existncia do encavalgamento em duas partes do poema, ou seja, o sentido de umverso interrompido no final do mesmo e vai completar-se no prximo:

    No sou poeta nem sou triste:

    Sou poeta.

    Atravesso noites e dias

    no vento.

    Se permaneo ou me desfao

    - No sei, no sei. No sei se fico

    ou passo.E um dia sei que estarei mudo:

    - mais nada.

    Ocorre a crase, ou seja, a fuso de sons semelhantes em:

    Eu canto porque o instante existe

    Se desmorono ou se edifico,

    se permaneo ou me desfao

    Tem sangue eterno a asa ritmada.

    E uma dia sei que estarei mudo:

    Existe a presena da sinalefa e do hiato, que denominado o encontro de dois elementos

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    voclicos semelhantes cuja pronncia obriga a manuteno da abertura da boca, podendoocorrer entre duas palavras, enunciados sem pausa ou no interior da mesma palavra, nestesversos: (GC, PDAP)

    Eu canto porque o instante existe

    E a minha vida est completa

    No sou alegre nem sou triste:

    Sou poeta.

    Sei que canto. E a cano tudo.

    Tem sangue eterno a asa ritmada.

    E um dia estarei mudo:

    - mais nada.O uso dessas figuras denominadas cavalgamento, sinalefa, hiato e crase contribuem para aprorrogao da reflexo na primeira figura citada e a efemeridade da vida, nas duas posteriores.

    Ocorre a sinrese, fuso, numa s, de duas vogais prximas pertencentes a slabas distintas naprimeira estrofe do quarto verso, ou seja, a passagem de um hiato a ditongo e tambm na quartaestrofe, no terceiro verso.

    O poema Motivo riqussimo de significaes e atravs da deteco dos fatos estilsticos vemos

    como a poetisa os utiliza com tanta propriedade, criando o seu estilo, que o torna nico.O ttulo Motivo pode significar uma esperana que o eu lrico sente para poder continuarvivendo, apesar de conscientemente saber que ela, a vida, uma passagem para um outro planodesconhecido.

    3.2 - Retrato

    Eu no tinha este rosto de hoje,

    assim calmo, assim triste, assim magro,

    nem estes olhos to vazios,

    nem o lbio amargo

    Eu no tinha estas mos sem fora,

    to paradas e frias e mortas;

    eu no tinha este corao

    que nem se mostra.

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    Eu no dei por esta mudana,

    to simples, to certa, to fcil:

    - em que espelho ficou perdida

    a minha face?

    No incio da leitura do poema Retrato,notamos tambm a presena da primeira pessoa, o eulrico descrevendo o seu prprio rosto, esse rosto que ele no mais reconhece como sendo o seu,como nesse primeiro verso: Eu no tinha esse rosto de hoje, a idia intensificada pelo advrbiode negao e pelo pronome demonstrativo, que sugere a passagem de tempo, a transitoriedadeda vida; e a melancolia do eu lrico ao fazer esta constatao, continuando no segundo verso,no qual h a repetio da palavra assim, que indica uma mudana ocorrida tanto no ntimo, napersonalidade, como em assim calmo, assim triste, quanto fisicamente, assim magro.

    O uso seguido da palavra assim d um ritmo lento a esse verso, como se a sugerida passagemfosse tranqila e quase imperceptvel para o eu lrico.

    Na terceira estrofe a constatao continua na percepo dos olhos to vazios, devido aossofrimentos e experincias vividos e o lbio amargo, no quarto verso d continuidade a essaidia. Ocorre uma anfora, nome dado figura que resulta quando se repete a mesma palavra oufrase no comeo de vrios versos, da palavra nem no incio do terceiro e quarto versos destaprimeira estrofe, na qual o eu lrico continua reiterando a sua negao da percepo de suasmudanas.

    No primeiro verso da segunda estrofe, o eu lrico observa a mudana ocorrida, nas suas mos,partes significativas e simblicas do corpo e que simbolizam fora e luta pela vida, no poema,esse hoje sem fora e j no se luta mais como nos tempos remotos, passados. O eu lricocontinua descrevendo-as no segundo verso como to paradas e frias e mortas, destacando-se otom melanclico. Novamente, nesse verso a repetio da conjuno e imprime lentido ao ritmo

    do verso e sugere a passagem da vida para morte.Ainda nesta estrofe, no terceiro verso, o eu lrico descreve seu corao, metfora para os seussentimentos, que, antes, eram mostrados, expostos e atualmente esto retrados, escondidos,como dito no quarto verso.

    Ocorre na segunda estrofe uma anfora, com a expresso eu no tinha que introduz o poema. o eu lrico reafirmando a no percepo dessa passagem de tempo, o que provoca umsentimento de perplexidade.

    Na terceira estrofe, no primeiro verso, o eu lrico percebe e assume que mudou fisicamente einteriormente e que isto foi to simples, to certa, to fcil, como se l no segundo verso. Mais

    uma vez, o poeta fala-nos da transitoriedade da vida, dessa passagem para outro lugar,passagem esta que universal, pois acontecer com todos ns, sem saber quando, nem onde,e, mesmo assim, ficamos surpresos com isto. H a repetio da palavra to mostrando acerteza da evoluo e o ritmo torna-se acelerado como a passagem da vida.

    No penltimo e ltimo versos da ltima estrofe h um questionamento eu lrico, que ficadesejoso em saber em que momento ele perdeu a sua vitalidade. O poeta fala isso no poemametaforicamente: espelho seria o lugar, o momento; face seria a vida, a juventude.

    Ceclia Meireles, magnfica e liricamente, aborda o tema da passagem da vida e da suatransitoriedade de maneira filosfica, universal e simples, influncias estas recebidas do grupoespiritualista ao qual pertenceu, o que aparece em toda a sua obra.

    Sobre essa transitoriedade e fugacidade do tempo, Darcy Damasceno, em Poesia do Sensvel edo Imaginrio, afirma: Contnuo latejar, a conscincia da fugacidade no apenas se torna a molamestra do lirismo, como, por ansioso esforo de apreenso do fugidio, busca no concreto asamarras dos fios imaginativos. (p. 37)

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    Observamos neste poema a gradao que ocorre nestes versos:

    assim calmo, assim triste, assim magro

    to paradas e frias e mortas

    to simples, to certa, to fcil

    Essas gradaes sugerem a evoluo, a passagem de tempo do poema.

    Em dois momentos ocorre o cavalgamento:

    eu no tinha este corao

    que nem se mostra.

    - Em que espelho ficou perdidaa minha face?

    Ocorre a sugesto ou a impresso de que o eu lrico fez uma pausa no seu pensamento aoconstatar todas as mudanas ocorridas.

    Ocorrem cesuras nos seguintes exemplos:

    Eu no tinha / este rosto de hoje

    Eu no tinha / estas mos sem fora

    eu no tinha / este corao

    Eu no dei / por esta mudana

    Este recurso nos sugere a conscientizao do eu lrico, da sua mudana lenta e gradual.

    interessante ressaltar que o poeta faz um jogo com as palavras magro (o segundo verso,primeira estrofe) e amargo (quarto verso, primeira estrofe). As letras da primeira apareceminseridas e na segunda, como se o final da existncia estivesse por pouco tempo e isso o deixaamargurado. Isto ocorre novamente em mortas (segundo verso, segunda estrofe) e mostra(quarto verso, segunda estrofe), significando que a morte sempre se mostra em nossa vida.

    O poeta segue a estrutura de trs estrofes e cada uma delas composta por quatro versos,resqucios da influncia simbolista e sua forma tradicional, nunca abandonadas por Ceclia.

    Ela utiliza principalmente de assonncias de /e/ e /o/:

    Eu no tinha este rosto de hoje

    nem estes olhos to vazios

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    Dando-nos um sentimento e uma idia de melancolia permanente. Usa tambm de aliterao de/r/ em:

    to paradas e frias e mortas

    Nesses versos indica-se o grande obstculo que a morte. Nota-se a musicalidade presente,fato caracterstico no poema.

    Tambm notamos as impresses sensoriais sugeridas no poema., principalmente a imagem visualque surge com o uso das palavras rosto, calmo, triste, magro, olhos, lbio, mos,

    espelho, face e a imagem do paladar e do tato em amargo, fora, parada, fria,morta, sugerindo que o corpo demonstra toda sua tristeza, toda a sua passagem desta vidapara o desconhecido.

    O ttulo Retrato se encaixa perfeitamente ao poema porque a palavra simboliza algo esttico,parado, eternizado e o eu lrico ansiava se eternizar, porm o tempo no permitiu e, por isso,ao final do poema se indaga em que momento de sua vida a sua juventude foi eternizada pela

    imobilidade, como acontece nos lbuns de famlia.3.3 - Epigrama N 2

    s precria e veloz, Felicidade.

    Custas a vir, e, quando vens, no te demoras.

    Foste tu que ensinastes aos homens que havia tempo,

    e, para te medir, se inventaram as horas.

    Felicidade, s coisa estranha e dolorosa.

    Fizeste para sempre a vida ficar triste:

    porque um dia se v que as horas todas passam,

    e um tempo, despovoado e profundo, persiste.

    O poema iniciado por um predicativo do sujeito que vem antecedendo a palavra felicidade, aofazer uma afirmao sobre a mesma. narrado em segunda pessoa:

    s precria e veloz, Felicidade.

    A palavra felicidade, neste verso funciona como um vocativo, pois personificada. Assim, elapassa a ter vida e a ser tratada como uma pessoa que convive entre ns. O predicativo, citado, jnos sugere a transitoriedade e a fugacidade da felicidade, como vemos em:

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    s precria e veloz, Felicidade.

    No segundo verso desta primeira estrofe, o eu lrico parece conversar com a Felicidade,mostrando que difcil prend-la, pois a sua passagem rpida, quase no se percebe a suaexistncia.

    No terceiro verso, h umainverso Foste tu, sugerindo que o eu" lrico culpe a Felicidade por

    fazer com que os homens acreditem na existncia do tempo, que viviam melhor antes destanoo.

    A atribuio da culpa continua na quarta estrofe, pois se afirma que a Felicidade ensinara aoshomens a inveno das horas para medir o tempo, para marcar o momento de felicidade que elestm em suas vidas, visto que ela (a felicidade) extremamente passageira. A respeito disto, aprpria Ceclia Meireles define a felicidade: Os dias felizes esto entre as rvores, como ospssaros (CM, LC, p. 15)

    Para ela, esse sentimento mutante, fugaz, como foi observado no poema, at ento.

    A personificao da felicidade continua a ser usada, pois esse vocativo surge novamente nesse

    primeiro verso, da segunda estrofe, seguido do predicativo do sujeito s coisa estranha edolorosa. Notamos uma percepo do eu lrico sobre a felicidade, ou seja, quanta dor ela capaz de deixar. H uma anttese entra as palavras felicidade X dor, indicando o contrasteque existe. Achamos que quem feliz no sofre e essa idia desconstruda, pois atravs dador, do sofrimento,que alcanamos a felicidade.

    No segundo verso da segunda estrofe, o eu lrico categoricamente afirma que a vida sempreser triste porque os homens buscam uma coisa que dura pouqussimo tempo, que existe emapenas alguns momentos, como observado no terceiro verso, que diz:

    porque um dia se v que as horas passamA palavra horas uma metfora e significa tudo, ou seja, felicidade, vida, objetos e queacabaro sem deixar marcas de sua presena.

    No ltimo verso desta ltima estrofe, h continuidade do verso anterior, como se fosse finalizadaa sua conversa, pois apenas o tempo continuar a existir, porm sem ningum, acima de naese povos, persistir e existir durante as geraes e os milnios.

    O tema abordado do da fugacidade da felicidade, de sua meterica passagem na vida de cadaser humano, que tambm muito breve. Existe uma ligao entre a fragilidade da vida e dafelicidade, pois ns vivemos buscando a felicidade, deixamos que passe em pequenos momentosdo nosso dia-a-dia, enquanto o tempo, imperdovel, age silenciosamente.

    Ocorrem rimas alternadas entre as palavras demoras (segundo verso, primeira estrofe) ehoras (quarto verso, primeira estrofe), sugerindo a passagem rpida das horas. Tambm, entretriste (segundo verso, segunda estrofe) e persiste (quarto verso, segunda estrofe), pois atristeza por essa existncia da felicidade persiste, percebendo-se a melancolia que existe nessardua procura.

    O recurso do cavalgamento usado em:

    Foste tu que ensinaste aos homens que havia tempo,

    e, para te medir, se inventaram as horas.

    Fizeste para sempre a vida ficar triste:

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    porque um dia se v que as horas todas passam,

    e um tempo, despovoado e profundo, persiste.

    Tais versos nos sugerem que o dilogo entre a felicidade e o eu lrico tranqilo, semperturbaes.

    Para demonstrar a passagem veloz dessa tal felicidade, o poeta usa palavras que imprimem umritmo acelerado, tais como: veloz, horas, passam, tempo.

    Existe a presena de sinalefa e hiato nestes versos:

    s precria e veloz, Felicidade

    Foste tu que ensinaste aos homens que havia tempo

    e, para te medir se inventaram as horas.

    Felicidade, s coisa estranha e dolorosa.

    Fizeste para sempre a vida ficar triste:porque um dia se v que as horas todas passam,

    e um tempo, despovoado e profundo, persiste.

    Esses versos mostram-nos a fluidez do discurso do eu lrico. A presena da cesura indica-nosuma pequena pausa do eu lrico em seu pensar. Observemos estes versos:

    Foste tu / que ensinaste aos homens que havia tempo,

    porque junto um dia se v / que as horas todas passam.

    O poema composto por dois quartetos, uma das formas tradicionais, herana dos simbolistas,bastante utilizada na obra de Ceclia.

    Neste poema h o uso das assonncias em /a/, /i/,/o/,/e/, indicando a tristeza, dor e melancoliado eu" lrico, vejamos estes exemplos:

    Felicidade, s coisa estranha e dolorosa

    e um tempo, despovoado e profundo, persiste.

    As aliteraes em /s/ e /r/ nos lembram tanto a velocidade, quantoos obstculos, como nos versosabaixo:

    porque um dia o se v que as horas todas passam

    e, para te medir, se inventaram as horas.

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    A imagem visual sugerida no poema pelas palavras horas, tempo, passam, dizendo-nosque vemos a vida correr.

    O ttulo Epigrama, que significa poesia breve e satrica, representa esse dilogo que gostaramosde travar com a felicidade e que Ceclia consegue, em um tom irnico bem suave, na qual elasatiriza a felicidade e nossa insana procura, deixando-a escapar em quase todos os momentos denossa existncia.

    ANLISE ESTILSTICA DE ALGUNS POEMAS DE CECLIA MEIRELES (2 parte)

    3.4 - Criana

    Cabecinha boa de menino triste,

    de menino triste que sofre sozinho,

    que sozinho sofre, - e resiste.

    Cabecinha boa de menino ausente,

    que de sofrer tanto, se fez pensativo,

    e no sabe mais o que sente...

    Cabecinha boa de menino mudo,

    que no teve nada, que no pediu nada,

    pelo medo de perder tudo.

    Cabecinha boa de menino santo,

    que do alto se inclina sobre a gua do mundo

    para mirar seu desencanto

    Para ver passar numa onda lenta e fria

    a estrela perdida da felicidade

    que soube que no possuiria.

    No primeiro verso da primeira estrofe, o eu lrico inicia a descrio de um menino de maneira

    afetiva,quando coloca o substantivo cabea no diminutivo cabecinha, reforado, logo emseguida, pelo adjetivo boa. A palavra cabecinha uma metfora para a personalidade, ouseja, um menino de boas atitudes. Apesar disso, o menino um ser triste.

    No primeiro e segundo versos ocorre uma epanadiplose, pois este iniciado com a expresso quefinaliza o anterior, observemos:

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    Cabecinha boa de menino triste,

    de menino triste que sofre sozinho,

    Neste verso o pronome que d uma idia de continuidade das qualidades desse menino.

    Novamente, no terceiro verso, existe uma epanadiplose, com uma pequena inverso sintticano existente no verso anterior, para reforar a vida sofrida e solitria desta criana. O uso dotravesso d uma pausa e uma intensidade ao verso para mostrar a resistncia da criana, comovemos:

    que sozinho sofre, - e resiste.

    No primeiro verso desta segunda estrofe ressaltado, mais uma vez, a atitude da criana pelo

    uso da anfora, com a alterao de adjetivo, que passou para ausente, sugerindo mudana deestado, como se v:

    Cabecinha boa de menino ausente

    A caracterstica do sofrimento retomada no segundo verso da segunda estrofe e, por isso, fezcom que o menino se tornasse um ser reflexivo sobre a sua vida, a sua existncia. Nestemomento, lembra-nos a prpria Ceclia que, desde criana, aprendeu a conviver com a morte(seus pais, seu primeiro marido), a dor, a solido, o silncio, o significado da existncia, semtraumas, mas de maneira realista, como dito pela prpria poetisa: ...Essas e outras mortesocorridas na famlia acarretaram muitos contratempos materiais, mas, ao mesmo tempo, mederam, desde pequenininha, uma tal intimidade com a mote que docemente aprendi essasrelaes entre o Efmero e o Eterno (...) (CM, LC, pg.1)

    Podemos pensar que o menino do poema uma metfora da prpria vida de Ceclia quandocriana.

    No terceiro verso da mesma estrofe, o eu lrico descreve o menino como perdido em seussentimentos, pois por refletir sobre si mesmo, no sabe o que sente. Isto reforado pelo usodas reticncias:

    e no sabe mais o que sente...

    Na terceira estrofe, primeiro verso, se usa a anfora e o adjetivo utilizado, neste instante

    mudo, dizendo-nos que ele, o menino, est sem palavras, sem ao, diante do que vive esofre:

    Cabecinha boa de menino mudoO eu lrico/narrador completa, no segundo verso, a carncia emotiva e material do menino,acentuado pelo uso das palavras no e nada, mostrando que ele tinha receio de perder aspoucas coisas boas que a vida lhe deu (ltimo verso da terceira estrofe).

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    Nesta estrofe aparecem as antteses entre as palavras ter x perder; tudo x nada,retratando a oscilao que ocorre em nossa vida,mais voltada para o lado material, enquanto oespiritual deixado de lado. Mas, na verdade, tudo passageiro e efmero e deixamos deaproveitar os verdadeiros sentimentos.

    Na quarta estrofe, o menino transformou-se em santo, em anjo, indicando que ele est morto e oseu esprito vai analisar sua vida e passagem terrestre. O recurso da anfora utilizado.

    O eu lrico/narrador nos diz que o menino/anjo, do alto, podemos pensar, ento, em inocncia ecu, se pe a observar a correria do mundo, representada pela gua e a sua tristeza, angstia,enquanto pertencia a esse mundo carnal (segundo e terceiro versos da quarta estrofe).

    O smbolo da onda usado no primeiro verso da ltima estrofe, sugerindo um ritmo lento aoverso e tambm ao poema, e assim como a conscientizao que, durante a vida, ele nunca forafeliz e que a felicidade efmera, encerrando o poema melancolicamente.

    O tema do poema a infelicidade da vida, a sua transitoriedade, anunciada a todo instante pelamorte, encarada como fato natural e verdadeiro. O poema construdo com cinco estrofes, cadauma com trs versos, podendo sugerir as cinco fases do ciclo humano.

    Ocorrem rimas alternadas entre triste (primeiro verso, primeira estrofe) e resiste (terceiroverso, primeira estrofe), indicando a resistncia do menino triste em viver; ausente (primeiroverso, segunda estrofe) e sente (terceiro verso, segunda estrofe), mostrando que, apesar dasua ausncia, ele no deixa de sentir as coisas; mudo (primeiro verso, terceira estrofe) e

    tudo (terceiro verso, terceira estrofe), dizendo que, na sua mudez, tem tudo o queconquistou; santo (primeiro verso, quarta estrofe) e desencanto (terceiro verso, quartaestrofe), no qual santificou-se pela sua vida desencantada; fria (primeiro verso, quinta estrofe)e possuiria (terceiro verso, quinta estrofe), na qual a possesso da fria felicidade, intil.

    Analisando as rimas vemos o trabalho de construo do poema, pela autora, nos detalhesfonticos.

    Para reforar, utiliza assonncias de /e/, /i/, /o/, como nesse verso:de menino triste que sofre sozinho

    E aliteraes de /q/, /n/, /d/, em:

    que no teve nada, que no pediu nada

    Nos dois recursos utilizados faz-se perceptvel a fora de sua tristeza nas assonncias e umaforte afirmao sobre a sua falta com as aliteraes.

    Podemos afirmar que todo o poema construdo de cavalgamentos, no qual o eu lrico narra /declara suavemente a passagem do menino pela terra e sua passagem ascensional para outroplano, verso por verso, estrofe por estrofe.

    A poetisa usa formas verbais que reforam as imagens visuais como, por exemplo, em vermos.As palavras so triste, sofre, pensativo, mudo, gua, onda e as imagens tcteis naspalavras gua, onda, fria so sugestivas para que possamos sentir as mesmas sensaes

    do menino. Ceclia constri um poema marcado pela sinestesia com onda e gua, que nossugere a mtua troca de sensaes entre o ser humano e o mundo. Nota-se a gradao nafigura do menino que se tornasse um santo: triste; ausente; mudo; santo. Ou seja, passada carne para o esprito.

    O ttulo escolhido para esse poema Criana simboliza a imaturidade do ser humano para a vida

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    ps - morte, para qual ningum nunca est preparado, pois somos inocentes para o que vir,visto que a vida e a felicidade so efmeras, no se pode voltar atrs. Para isso, devemosconservar a pureza, como a de uma criana.

    3.5 - Noes

    Entre mim e mim, h vastides bastantes

    para a navegao dos meus desejos afligidos.

    Descem pela gua minhas naves revestidas de espelhos.

    Cada lmina arrisca um olhar, e investiga o elemento que a atinge.

    Mas, nesta aventura do sonho exposto correnteza,

    s recolho o gosto infinito das respostas que no se encontram.

    Virei-me sobre a minha prpria existncia, e contemplei-a.

    Minha virtude era esta errncia por mares contraditrios,

    e este abandono para alm da felicidade e da beleza.

    Oh! meu Deus, isto a minha alma:

    qualquer coisa que flutua este corpo efmero e precrio,

    como passiva e inmera...o vento largo do oceano sobre a areia

    Desde o primeiro verso, quando iniciamos a leitura do poema, notamos que todo construdo emprimeira pessoa, referindo-se subjetividade, ao ntimo, descrio dos sentimentos, comovemos:

    Entre mim e mim, h vastides bastantes

    para a navegao dos desejos afligidos

    Nesta primeira estrofe ocorre um hiprbato, que nos d a idia de vastido, da amplido queexiste na alma do eu lrico. A construo repetida do pronome mim usado para acentuar

    essa distncia interior, citada anteriormente, e nela os desejos, as angstias passeiam, habitameste ser reflexivo.

    Do primeiro para o segundo verso h o encavalgamento, que sugere uma pausa para acomplementao do pensamento do eu lrico.

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    Na segunda estrofe, o eu lrico diz que a gua, com o seu movimento, levar suas esperanas,metfora de naves, e que elas so cobertas por suas dores, angstias, tristezas, representadaspor espelhos, mas essas esperanas continuaro a existir, apesar dos momentos e problemas, preciso tirar boas experincias e ensinamentos, o que representado pela palavra lmina.

    Na terceira estrofe, o eu lrico usa a palavra sonho significando vida, pois breve, como aprimeira e fica merc dos acontecimentos, representada pela palavra correnteza, que noslembra um movimento, um ritmo rpido, no qual podemos pensar na rpida passagem da vida esua brevidade.

    Darcy Damasceno sobre a brevidade da vida em Ceclia Meireles diz: Vemos assim avivarem-seos rastros da alma alertada contra os desenganos do mundo, desenganos que se enfeixam numtpico principal: o da brevidade da vida. (CM, PC, DD, pg.42)

    E sobre o smbolo do sonho, revela-nos: A insegurana do ser humano, a fragilidade das coisas,a inconstncia da sorte, a idia de que tudo sonho so temas que, direta ou indiretamente,daquele (brevidade da vida) decorem. (CM, PC, pg.42)

    Dessa vida que um sonho passageiro, o poeta busca apenas, ou tenta, respostas para osquestionamentos infinitos, mas que so sem respostas, como a morte.

    Na quarta estrofe, o eu lrico volta-se para si mesmo, seus pensamentos, suas atitudes,refletindo sobre elas. Neste verso, se usa o tempo passado, em oposio ao presente, como quea alma do eu lrico estivesse olhando para algo esttico, sem vida, o corpo morto, que foi til edeixou de s-lo para essa alma, que saiu do seu casulo.

    O segundo verso continua no passado para que as lembranas do eu lrico surjam, constatandoque a sua virtude, que era a de errar pelos caminhos contraditrios de sua existncia, o faziaforte. A sua solido valia mais que a felicidade e a beleza que so desgastveis pelo tempo comose v neste terceiro verso.

    A solido um trao caracterstico na poesia de Ceclia Meireles, como foi dito pela prpria:Minha infncia de menina sozinha deu-me duas coisas que parecem negativas, e foram sempre

    positivas para mim: silncio e solido(...) (CM,LC, pg.3)A ltima estrofe iniciada por uma exclamao, indicando uma surpresa do eu lrico por notarque a sua alma atemporal, perante o corpo precrio, passageiro, transitrio, comparando estecorpo com o vento, passageiro, e a alma, comparada areia, representando a eternidade.

    Como vemos esta poesia toca no tema da transitoriedade da vida, dando melancolia a esta.

    A transitoriedade foi definida da seguinte forma por Darcy Damasceno, nas obras de CecliaMeireles:

    A considerao das coisas resulta na conscincia de que a vida umfluxo constante e o tempo tudo corri; a constatao da transitoriedadeemerge como o verme antecipado do podre que um dia h de ser oapetecvel fruto da vida .Da que s descargas dos sentidos sesobreponha a indagao, a anlise, a atitude inteligente.(CM, PC, DD,pg.40)

    O poema no segue as construes tradicionais de outros poemas da autora. Desta vez, apoetisa adota o verso livre, caracterstico do Modernismo e que a autora utiliza em alguns

    momentos na sua obra. V-se tambm que no h rima no poema, composto de cinco estrofes(as trs primeiras com dois versos e as duas ltimas com trs versos), talvez para simbolizar aliberdade que tem a nossa alma, que no se enquadra em regras, depois de livre.

    H a presena da natureza ao usar as palavras gua, correnteza, mares, vento,oceano, representando a vida humana.

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    Os recursos da assonncia de /a/, /e/, /o/, como nesse verso:

    Descem pela gua minhas naves revestidas de espelhos

    E das aliteraes de /s/, /r/, em:

    Minha virtude era esta errncia por mares contraditrios

    Tais recursos sugerem o som do vento e o som do mar, velozes com a vida.

    Noes, ttulo do poema, pode significar, ter idia, ter conscincia. Durante o poema o eu lricovai tendo a noo de sua vida que efmera e de sua alma que eterna. Isto universal,acontecer com todas as pessoas, em todas as pocas.

    3.6 - Acontecimento

    Aqui estou, junto tempestade,

    chorando como uma criana

    que viu que no era verdade

    o seu sonho e a sua esperana.

    A chuva bate-me no rosto

    e em meus cabelos sopra o vento.

    Vo-se desfazendo em desgosto

    as formas do meu pensamento.

    Chorarei toda a noite, enquanto

    perpassa o tumulto nos ares,

    para no me veres em pranto,

    nem saberes, nem perguntares:

    Que foi feito do teu sorriso,

    que era to claro e to perfeito ?

    E o meu pobre olhar indeciso

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    no te repetir: Que foi feito...?

    A primeira estrofe inicia-se em seu primeiro verso com o advrbio de lugar aqui, no qual o eulrico afirma a sua presena neste mundo, com a tempestade que simboliza as atribulaesfortes e passageiras vividas. Desde j, v-se que o poema em primeira pessoa.

    H a ocorrncia de um hiprbato Aqui estou (...) para acentuar este lugar que o eu lrico /

    poeta vive. Ele, no segundo verso, nos diz que passa por aqui sofrendo, o que representadopelo verbo chorar, como se fosse uma criana, ou seja, inocentemente. Para nos transmitir talsignificado usa uma comparao.

    Essa criana inocente, o eu lrico, percebe que a sua vida, representada metaforicamentepela palavra sonho e a sua esperana, seus anseios e desejos eram irreais, como se podeobservar nos dois ltimos versos. O poeta passa do narrador de primeira pessoa para a terceirasugerindo que a figura de sua imagem na infncia tivesse voltado e nota-se este adultoangustiado, como vemos nessa estrofe.

    A segunda estrofe iniciada por uma personificao da chuva e do vento. Devido a sua angstiade crise existencial, a natureza ganha vida e, tambm, parece tocar ou at mesmo agredir o eu

    lrico:

    A chuva bate-me no rosto

    e em meus cabelos sopra o vento.

    No segundo verso existe um hiprbato para suavizar a atitude da natureza com relao ao eulrico, dando um ritmo tranqilo ao poema.

    O eu lrico fala-nos que seus conceitos, presentes em seu pensamento, so destrudos pela suatristeza, pelas suas derrotas na vida. Usa, nestes versos, outro hiprbato, para intensificar ador.

    A continuao da dor persiste na terceira estrofe e simbolizada, no primeiro verso, pela palavranoite, enquanto o eu lrico no entender o seu conflito existencial, no permitindo que asoutras pessoas o ajudem, como dito nos dois ltimos versos.

    O eu lrico no se sentiria bem, se as pessoas o indagassem sobre a sua antiga alegria, contidana palavra sorriso, que transmitia luz e bem-estar ao prximo e ele mostra atravs de seuolhar, sua pobreza e indeciso espiritual, desconhecendo o seu paradeiro e retomando aindagao.

    Percebemos que a fugacidade das coisas, a transitoriedade da vida est presente no poema, aocontar-nos a perda da alegria e esperana.

    interessante observar que o poema est sintetizado em rimas alternadas, que estoencaixadas nos quatro versos, como a sugerir que, at nos pequenos detalhes da nossa vida, otempo passa, vejamos: tempestade (primeiro verso, primeira estrofe) e verdade (terceiroverso, primeira estrofe); criana (segundo verso, primeira estrofe) e esperana (quartoverso, primeira estrofe); posto (primeiro verso, segunda estrofe) e desgosto (terceiro verso,segunda estrofe); vento (segundo verso, segunda estrofe) e pensamento (quarto verso,segunda estrofe); enquanto (primeiro verso, terceira estrofe) e pranto (terceiro verso,terceira estrofe); ares (segundo verso, terceira estrofe) e perguntares (quarto verso,terceira estrofe); sorriso (primeiro verso, quarta estrofe) e indeciso (terceiro verso, quartaestrofe); perfeito (segundo verso, quarta estrofe) e feito (quarto verso, quarta estrofe).

    O poema apresenta o recurso do cavalgamento que sugere a lentido do eu lrico ao perceber asmudanas que sofreu sua vida, como nesses exemplos:

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    A chuva bate-me no rosto

    e em meus cabelos sopra o vento.

    Que foi feito do teu sorriso,

    que era to claro e to perfeito?

    A natureza transmite-nos imagens sensoriais para que sintamos o mesmo que o eu lrico. Paraisto, o poeta usou as palavras tempestade, criana, chuva, vento, noite, ares. Anatureza, em Ceclia Meireles, segundo Darcy Damasceno, panormica e solidria com ossentimentos do ser humano, pois engloba, simbolicamente, os aspectos fsicos e psquicos deambos, como no verso:

    perpassa o tumulto nos ares

    Utiliza-se de aliteraes /p/, /t/ e /s/, sugerindo a violncia e rapidez de seus pensamentos eassonncias de /e/, /o/ e /i/, acentuando a sua tristeza e dor, como por exemplo:

    Que foi feito do teu sorriso (...)

    O ttulo colocado Acontecimento a conscientizao do eu lrico sobre a perda das melhorescoisas de sua vida, que o marcaram definitivamente.

    3.7 - Herana

    Eu vim de infinitos caminhos,

    e os meus sonhos choveram lcido pranto

    pelo cho.

    Quando que frutifica, nos caminhos infinitos,

    essa vida,que era to viva, to fecunda,

    porque vinha de um corao ?

    E os que vierem depois, pelos caminhos infinitos,

    do pranto que caiu dos meus olhos passados,

    que experincia, ou consolo, ou prmio alcanaro ?

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    21/3/2014 ANLISE ESTILSTICA DE ALGUNS POEMAS DE CECLIA MEIRELES

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    O poema iniciado em primeira pessoa, o eu lrico diz que percorreu longas jornadas, ou seja,que viveu longas experincias. Usa a metfora infinitos caminhos para filosofar sobre si mesmo.Os sonhos tidos durante a vida foram se acabando, conscientemente. importante vermos abonita personificao feita em sonhos choveram e lcido pranto para a construo do sentidoglobal do poema, como ocorre na primeira estrofe.

    Na segunda estrofe o eu lrico indaga-se em que momento de suas experincias vividas, houveviva- cidade e criao, inspiradas por um grande amor, que passou e o fez sofrer.

    Na terceira estrofe, h uma nova indagao, desta vez, sobre o futuro da humanidade, que viratravs das novas geraes, durante o tempo, representado pela metfora caminhos infinitos.O eu lrico questiona-se, se a sua vida servir de exemplo e preocupa-se com o futuro dos queviro, se estes sero mais felizes, mais experientes do que ele. No ltimo verso desta estrofeexiste uma gradao, na qual h um desejo de alcano da felicidade para essa gerao futura,por parte do eu lrico.

    Nas trs estrofes ocorre o cavalgamento sugerindo uma reflexo do poeta, que inicia o poemafazendo uma afirmao e, depois, pergunta-se sobre o passado e o futuro. Darcy Damascenoobserva o seguinte sobre as interrogaes do passado: A melancolia face impossibilidade deser reter o fruto dos instantes leva nostlgica e desalentada interrogao ante o passado, viso retrospectiva de fatos, coisas, acontecimentos, e dor de sua essncia (...) (CMPC, p.

    22)

    Na primeira estrofe a expresso infinitos caminhos, que invertida na segunda estrofe paraenfatizar a lembrana de seu passado e na terceira, retoma a forma do incio.

    O poema composto por trs estrofes, com trs versos cada uma. Ocorre rima nos ltimosversos de cada estrofe, o que pode significar que a prxima gerao poder encontrar um grandeamor ou lutar por t-lo, com o uso das palavras cho, corao e alcanaro.

    O poema possui um ritmo lento, triste e angustiante para tratar sobre o passado, sobre o vivido.

    A natureza est representada nos verbos chover e fecundar, sugestivas do cuidado com a

    qual as geraes vindouras so preparadas, com carinho, pelas anteriores.Como nos outros poemas, nota-se a presena de aliteraes e assonncias, reforando oesprito reflexivo do eu lrico.

    Herana, o ttulo escolhido pela autora reflete a pergunta deixada na ltima estrofe do poema.H a preocupao de deixar bons exemplos para a prxima gerao preocupada com ela.

    Constata-se o lirismo da autora no ttulo e inclusive o seu casamento perfeito com o corpusdopoema.

    3.8 - Assovio

    Ningum abra a sua porta

    para ver que aconteceu:

    samos de brao dado,

    a noite escura mais eu.

    E ela no sabe o meu rumo,

    eu no lhe pergunto o seu:

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    no posso perder mais nada,

    se o que houve j se perdeu.

    Vou pelo brao da noite,

    levando tudo o que meu:

    - a dor que os homens me deram,

    e a cano que Deus me deu.

    O eu lrico pede as pessoas, ao mundo que no o incomodem e que no o questionem sobre ascoisas passadas, passado este simbolizado pela palavra porta, no primeiro e segundo versos,da primeira estrofe. Complementando-a o eu lrico conta-nos que a sua nica companheira anoite, cheia de mistrio, de tristeza, de melancolia, sugerida pelo uso do pleonasmo noiteescura e o uso do advrbio de intensidade mais, que reforam a idia dessa amizade. Outro

    fator intensificador o uso do hiprbato, que sugestivo dessa fortaleza, dessa unio entre anoite e o eu lrico, observada nos ltimos versos.

    Na segunda estrofe, o eu lrico se contenta com a companhia da noite, pois ambos no sequestionam sobre o passado, o presente e menos ainda sobre o futuro, representado por rumo.

    O eu lrico afirma que no pode perder tempo em viver, visto que sua vida foi marcada porperdas humanas, irreversveis. importante, na finalizao do terceiro e quarto versos, apresena das palavras nada e perdeu, que refora as perdas citadas anteriormente e odesejo de no permitir que elas continuem, quando diz, enfaticamente:

    no posso perder mais nada

    Vimos que o eu lrico continua caminhando sozinho, apenas junto com a noite, na terceiraestrofe, carregando tudo o que est marcado em sua alma, que a dor deixada pelos homensperdidos e passados em sua vida, mas que o sustentam de p, de cabea erguida e a sua vidadada por Deus. A vida representada pela palavra cano, que sugere algo passageiro esuave, como o ritmo da vida, associada figura de Deus, o nico que pode tir-la.

    Nesse poema nota-se a presena da forte influncia espiritualista em sua arte, surgida em 1918,

    nas revistasrvore Nova, Terra de Sole Festa, e que iria reiterar-se em todos os seus poemas,como a sugerir que refletssemos sobre a nossa condio efmera.

    Ressaltamos que a poetisa ao construir o terceiro verso utiliza o travesso para destacar a dorsofrida.

    O poema composto por trs estrofes, cada uma delas com quatro versos. Ocorre a presenade rimas entre aconteceu e eu (primeira estrofe); seu e perdeu (segunda estrofe); meue deu (terceira estrofe). O interessante que, em todas as palavras no poema, est inserida apalavra eu, presente na primeira estrofe, sugerindo a intensificao da dor, da figura do eulrico a cada momento do caminho percorrido por ele durante a vida.

    O cavalgamento observado em toda a poesia, indicando uma pausa reflexiva do eu lrico, etambm para dar uma suavidade rtmica a mesma, acentuada pelas assonncias de /e/, /o/, /u/e /a/, como por exemplo:

    Ningum abra a sua porta

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    se o que houve j se perdeu

    E aliteraes de /d/ e /c/ em:

    e a cano que Deus me deu

    Apesar das palavras nada (terceiro verso, segunda estrofe) e tudo (segundo verso, terceiraestrofe) estarem distantes uma da outra, entendemos que h uma anttese, para vermos o medodo eu lrico em perder o tudo que neste instante possui: a sua dor e a sua vida.

    A noite o nico elemento da natureza que surge na poesia para simbolizar a sua realcompanheira, que personificada neste verso:

    Vou pelo brao da noite

    O ttulo Assovio nos indica algo passageiro, transitrio e, ao mesmo tempo, musical, como acano e a prpria vida, apesar dos sofrimentos existenciais do ser humano.

    4 - CONCLUSO

    O estudo das poesias de Ceclia Meireles permitiu o estudo de algumas particularidadesexpressivas de sua obra, ressaltando-se a presena marcante da subjetividade em seu estilo.Num momento decisivo para o Modernismo, a obra ceciliana parece sustentar as marcas doetreo e do atemporal, do particular (o espiritualismo da autora, por exemplo) e do universal (aprpria poesia).Esta subjetividade universal, visto que os poemas parecem refletir no papel asdores e as angstias de toda a humanidade.

    Alm disso, Ceclia Meireles nos faz refletir sobre existncia, to efmera, traduzida por ela, quefaz uso de imagens sensoriais para a visualidade potica de seus temas.

    O vocabulrio utilizado simples, assim como a sintaxe, apesar de ser notria a vasta cultura da

    poetisa. Mas, mesmo simples, repleto de simbolismo, no qual o leitor deve ater - se aosdetalhes que compem o grande fio que liga as palavras e os vrios sentidos sugeridos no texto.

    Geralmente, o ritmo dos poemas estudados lento e suave, indicando tambm como a poetisaera delicada ao criar a representao do som de suas letras. Em algumas passagens o ritmo acelerado, mas a suavidade no desaparece.

    A natureza metaforiza a nossa condio de humanos, portanto efmeros, mas eternos, devido aassociao que se faz indiretamente com Deus.

    A anlise estilstica, em todos os seus nveis (semntico, fnico, sinttico, morfolgico e lexical emesmo rtmica), vem mostrar a sua importncia para a compreenso do estilo de Ceclia Meireles

    e a necessidade de ir alm da gramtica tradicional, que, s vezes, no consegue responder asnossas indagaes sobre a inquietante imaginao potica.

    A estilstica tambm est presente no s em poesias, mas em todos os tipos de texto. verdade que por no ter havido divulgao, h alguns anos atrs, alguns professores de LnguaPortuguesa sentiram dificuldade em reconhec-la. Porm, este quadro, atualmente, tem mudado

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    devido a existncia de obras diversas sobre o assunto.

    Este trabalho teve a inteno de mostrar o estudo de alguns poemas dessa poetisa, poltica eprofessora verstil, que fascina qualquer pessoa, leitora de sua arte pela primeira vez, atravsdos temas abordados e to ligados a sua vida pessoal, tambm o seu estilo, presente naorganizao potica, nas combinaes de palavras e sons. A estilstica foi utilizada paracompreendermos os mecanismos usados pela autora para expressar o seu lirismo.

    Para finalizar, esclareo que pretendi contribuir, de alguma forma, para os estudos de Lngua

    Portuguesa.BIBLIOGRAFIA:

    a) Obras da autora:

    MEIRELES, Ceclia. Viagem;Vaga Msica. Rio de Janeiro : Nova Fronteira, 1982.(Coleo Poesis).

    ______. Flor de poemas. Notcia biogrfica, bibliografia e estudo crtico de DarcyDamasceno. 6aed. Rio de Janeiro : Nova Fronteira, 1984. (Coleo Poesis).

    ______. Poesia Completa. Introduo de Walmir Ayala, notcia biogrfica ebibliografia de Darcy Damasceno. Rio de Janeiro : Nova Aguilar, 1994.

    ______. Literatura Comentada. So Paulo: Abril, 1980.

    b) Obras sobre a poesia e a vida da autora:

    AZEVEDO FILHO, Leodegrio. Poesia e Estilo de Ceclia Meireles.Rio de Janeiro : JosOlympio, 1970.

    BARBADINHO NETO, Raimundo. Os escritores modernistas brasileiros diante doproblema da lngua. In: Antologia de textos do Modernismo. Rio de Janeiro : AoLivro Tcnico, 1982.

    BOSI, Alfredo. Histria da Literatura Brasileira. 3a edio. So Paulo : Cultrix, 1994.

    CAVALIERI, Ruth Villela. Ceclia Meireles: o Ser e o Tempo na Imagem Refletida.Dissertao de Mestrado. Rio de Janeiro : PUC, 1983.

    CAMPOS, Geir. Pequeno dicionrio de arte potica. So Paulo : Cultix, 1978.

    CUNHA, Celso. Cintra, Lindley. Nova Gramtica do Portugus Contemporneo.Rio deJaneiro : Nova Fronteira, 1985.

    DAMASCENO, Darcy. Ceclia Meireles:O Mundo Contemplado.Rio de Janeiro : Orfeu,1967.

    ______. Ceclia Meireles:poesia, por Darcy Damasceno. Rio de Janeiro : Agir, 1974.

    LAMEGO, Valria.A Farpa na Lira: Cec lia Meireles na revoluo de 30. Rio de Janeiro: Record, 1996.

    MELO, Gladstone Chaves de. Ensaios de Estilstica da Lngua Portuguesa. Rio deJaneiro : Padro, 1976.

    MONTEIRO, Jos Lemos.A Estilstica. So Paulo : tica, 1991.

    POSSENTI, Srio. Discurso, estilo e subjetividade.So Paulo : Martins Fontes, 1993.(Texto e linguagem).

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    ROCHA LIMA, Carlos Henrique da. Gramtica Normativa da Lngua Portuguesa. 32aed. Rio de Janeiro : Jos Olympio, 1994.

    SIMES, Darclia, org.A Estilstica Singular de I-Juca Pirama. Rio de Janeiro : UERJ,Depext, 1997.

    TAVARES, Hnio Teoria literria.4a ed. Lisboa :Bernardo lvares S.A, 1969.