Análise Estrutural da Narrativa

145
::> DE ENSAIOS ~UNICATION~" 4~ EDiÇÃO Roland Barthes A. J. Greimas Claude Bremond Umberto Eco Jules Gritti Violette Morin Christian Metz Tzvetan Todorov Gerard Genette NOVAS PERSPECTIVAS EM COMUNICAÇAO ANALISE ESTRUTURAL ~A ".A~~\[I~~ N.Chllm. 82.01 A532s =690 4. ed. Título: Análise estrutural da narrativa : pesquisas semiológicas . 11111111111111111111111111111111111111111111111111 10128991 Ac. \55923 82.01 A532s =690 4. ed. Cnpll: JoRo 1.11111 PI'/r'6'1U11~, 11.1 EDITORA V07,EH 1."'1 H, NOVAS PERSPECTIV A f, EM COMUNICA'~A() A criação das faculdadeR dI' 1'(1111111111'11111111, "I' "".""11 lmlH' trial e do sentido heuríRtko 110NC'lIflo 1111_11I1!l1.lilll~1!l ~" lI! h, em muitas universidadl'fl liRII"",. li 1'"11111111"",,", ri" ,j. encontro a uma realidade dI' 1'1I1111 flllll 11 11'ltIÍtttIl/íkilllli.,j, técnica despe-se a forma COlllllllklllll'lI ,!t' _1U1Itllll! ,1111111 sença no próprio estilo da liIlRIIIIIlI'III ,I., ,1••1111 ••••••• " I' h se um novo universo sígnico 11111' 1"'~11I1ti ~"I •• hl"l ••• I~ do de uma disciplina tamb{.m '·MIIC,.'lríl'tl' II ~"ll,hlllllllll cute-se nesta coleção a impol'lJlIll'lll di' "111'1•• I. ""~,,,,, tos, a possibilidade de, com a M"h~lítlll~l111 li•• ItIIlH fi nação de classe não se execlltlll' ,lln'flllll.'HI" 111' linguagem, de forma explícita, ma" 11111111,,, '''"''111" lItlH" I 'H! sa presente em seus efeitoR. 1'1:dl'hlltl,llI ultlllll 11 1i"1~11l1,, teórico e analítico desta nova dl/ll('I'11I1I1I '111., "lltIlH" li' I~,,~ à observação anterior, prefel'il'illll1 I'hll 1lI11 I Ih, I~II1I•• ideologias ou das linguagens idl'olólllt'II", ',IIIU"II!!"''' curso, estruturalismo ou mm'xilHll0, ('1l1111'1~"'II'"1 I mo são discussões metodológiclIi-l '1111'1'111111" ,""'llIlUl'''I!, ,1.," conquistas ou não deste novo ('olllll'c'IIIIl'lIfll 'lll"",. 111~I' .1 que a orientação globalizante da wh'C;hll 111111 1"" 11,," h,,, "el" ou aquela tendência, mas evidenciall,lo",. '1"1•• I"" 1,"11,," dp,'II"" ao mesmo tempo geral e profunda ,10 III'oh"'1I1!1 'hll! 11l~1hll Semiologia, Teoria de Linguagem I'!lio 1'1'111111" flIIIA" 'Iii" lIi fluem decisivamente na constrnção (I" 1111I11 Ii''''l" ""Iill ••lll gica, e conseqüentemente influem IlIlIIh{'1II 1111 •• 'ltll,••llh'" ,I" método da «velha» filosofia, torna lido Ioelll l'lI"••no IHi! 10 '. dentro da semiologia uma posição 1'111'1' 1\ /"11I111,I., """li", I mento. E aqui cabe o lugar da episf,('1II011l1l111111111"111"!\II" estudos de comunicação. Esta estuda f,lIdll~ n~ IUIIIIII" "li ••" cas ou simbólicas no interior da vidn MIIl'i 11 I, ,1111 >lH 1'111 apresentados estudos sobre suas raízl's ItI~"lI'tffl" 11,11I1"i ção industrial) e novas formas de CII11 1-1 1111 lU "1111111 U I h"II, •• tria cnltural), bem como estudos de dllC'lIIl1, 1If"I'IIII1111.'11111 tica, ciência e a relação entre a SemiolllRill c' U 1,1111,1110,'''" Esta coleção é indispensável para 01' C'III'I-IIIMMllltl" "'''''''Iil de Comunicação, Semiologia, FundallJ('1I11111 ('11'111 IIft'o ••• 1,1 Comunicação, Cultura de Massa, OJlillilill "M,II"II 1111110 preencher uma lacuna bibliográfica {Om 1,111/1'1111 1'11I'"" li•••• ". principalmente para as Faculdades dI' ('I{'II,'lu •• H',dul ••, Comunicação, Biblioteconomia, Letras I' /)C'MI'II Ito 111.111 ••1I I" I

Transcript of Análise Estrutural da Narrativa

::> DE ENSAIOS~UNICATION~"

4~EDiÇÃO

Roland BarthesA. J. Greimas

Claude BremondUmberto Eco

Jules GrittiViolette Morin

Christian MetzTzvetan TodorovGerard Genette

NOVASPERSPECTIVAS

EM COMUNICAÇAO

ANALISEESTRUTURAL

~A ".A~~\[I~~N.Chllm. 82.01 A532s =690 4. ed.Título: Análise estrutural da narrativa :

pesquisas semiológicas .

11111111111111111111111111111111111111111111111111

10128991 Ac. \55923

82.01A532s

=6904. ed.

•Cnpll: JoRo 1.11111

PI'/r'6'1U11~, 11.1

EDITORA V07,EH 1."'1H,

NOVAS PERSPECTIV A f,

EM COMUNICA'~A()

A criação das faculdadeR dI' 1'(1111111111'11111111,"I' "".""11 lmlH'trial e do sentido heuríRtko 110NC'lIflo 1111_11I1!l1.lilll~1!l~" lI!h,já em muitas universidadl'fl liRII"",. li 1'"11111111"",,", ri" ,j.encontro a uma realidade dI' 1'1I1111flllll 11 11'ltIÍtttIl/íkilllli.,j,técnica despe-se a forma COlllllllklllll'lI ,!t' _1U1Itllll! ,1111111

sença no próprio estilo da liIlRIIIIIlI'III ,I., ,1••1111••••••• " I'hse um novo universo sígnico 11111'1"'~11I1ti ~"I ••hl"l ••• I~do de uma disciplina tamb{.m '·MIIC,.'lríl'tl' II ~"ll,hlllllllllcute-se nesta coleção a impol'lJlIll'lll di' "111'1••I. ""~,,,,,tos, a possibilidade de, com a M"h~lítlll~l111 li•• ItIIlH fi

nação de classe não se execlltlll' ,lln'flllll.'HI" 111'linguagem, de forma explícita, ma" 11111111,,,'''"''111" lItlH" I 'H!sa presente em seus efeitoR. 1'1:dl'hlltl,llI ultlllll 11 1i"1~11l1,,teórico e analítico desta nova dl/ll('I'11I1I1I'111., "lltIlH" li' I~,,~à observação anterior, prefel'il'illll1 I'hll 1lI11I Ih, I~II1I••ideologias ou das linguagens idl'olólllt'II", ',IIIU"II!!"'''curso, estruturalismo ou mm'xilHll0, ('1l1111'1~"'II'"1 Imo são discussões metodológiclIi-l '1111'1'111111",""'llIlUl'''I!, ,1.,"conquistas ou não deste novo ('olllll'c'IIIIl'lIfll 'lll"",. 111~I' .1que a orientação globalizante da wh'C;hll 1111111"" 11,," h,,, "el"

ou aquela tendência, mas evidenciall,lo",. '1"1•• I"" 1,"11,,"dp,'II""ao mesmo tempo geral e profunda ,10 III'oh"'1I1!1 'hll! 11l~1hllSemiologia, Teoria de Linguagem I'!lio 1'1'111111"flIIIA" 'Iii" lIifluem decisivamente na constrnção (I" 1111I11Ii''''l" ""Iill ••lllgica, e conseqüentemente influem IlIlIIh{'1II 1111•• 'ltll, ••llh'" ,I"método da «velha» filosofia, torna lido Ioelll l'lI" ••no IHi! 10'.dentro da semiologia uma posição 1'111'1'1\ /"11I111,I., """li", Imento. E aqui cabe o lugar da episf,('1II011l1l1111111111"111" !\II"estudos de comunicação. Esta estuda f,lIdll~ n~ IUIIIIII" "li ••"cas ou simbólicas no interior da vidn MIIl'i11I, ,1111 >lH 1'111

apresentados estudos sobre suas raízl's ItI~"lI'tffl" 11,111I1"ição industrial) e novas formas de CII111-1 1111lU "1111111U I h"II, ••tria cnltural), bem como estudos de dllC'lIIl1, 1If"I'IIII1111. '11111tica, ciência e a relação entre a SemiolllRill c' U 1,1111,1110,'''"Esta coleção é indispensável para 01' C'III'I-IIIMMllltl" "'''''''Iilde Comunicação, Semiologia, FundallJ('1I11111 ('11'111IIft'o ••• 1,1Comunicação, Cultura de Massa, OJlillilill "M,II"II 1111110preencher uma lacuna bibliográfica {Om 1,111/1'11111'11I'"" li••••".principalmente para as Faculdades dI' ('I{'II,'lu •• H',dul ••,Comunicação, Biblioteconomia, Letras I' /)C'MI'IIIto 111.111••1I I" I

ROLAND BARTHES j A. J. GRElMASCLAUDE BREMOND j UMBERTO ECO j fULESGRITTlj VIOLETTE MORlN j CHRISTlANMETZ / TZVETAN TODOROV / GÉRARDGENETTE

COLEÇÃO Novas Perspectivasde Comunicação / 1

ORIENTAÇÃO Antônio Sérgio Lima Mendonçae Luiz Felipe Baeia Neves

A ltális e

Estruturalda Narrativa

Pesquisas Semiológicas

Introdução à ediyão brasileira por

Milton José Pinto

4~ edição

•Editora Vozes Limitada1976

1

Sumário

Titulo do original francês:L'Analyse Structurale du Récit

© Communications Editions du Seuil n" 8/1966

Tradução deMaria Zélia Barbosa PintoRevisão deMilton José Pinto

© 1971 da tradução portuguesa:Editora Vozes Ltda.Rua Frei Luís, 100Petrópolis, RJBrasil

MiltonJosé

PintoRoland

BarthesA. J.

GreimasClaude

B'rel1wndUmberto

EcoJutes

G1'ittiViolette

MorinChristian

Mel::TzvetanTodorol'GémrdGenetteDossiê:

Introdução: Mensagem Narrativa 7

Introdução à Análise Estruturalda Nanutiva 19Elementos para uma Teol'iada Interpretação da Narrativa Mítica 61A Lógica dos Possíveis Narrativos 110

Janies Bom!: Uma Combinatória Narrativa 13(j

Uma Narrativa de Imprensa:Os últimos Dias de um "Grande Homem" 163A Historieta Cômica 174

A Grande Sintagmática do Filme Nal'l'ativo 201

As Categorias da Nal'l'ativa Literária 209

Pronteiras da Narrativa 255

Escolha Bibliográfica 275

5

7

1 Ver Ferdinand de Sau$sure, Cours de Linguistique Générale IPayot, Paris 1969).pp. 32-35 ..

MILTON JOSÉ PINTO

Mensagem

1.1. Seria ridículo tentar definir com precisão, dentrodas dimensões deste ensaio, o que se entende no contextofilosófico-científico de hoje em dia como estruturalismo.Vou apenas introduzir algumas noções muito sumáriasque facilitarão a compreensão do que se segue. A noçãode estrutura em ciências humanas não difere muito do

que em matemática se denomina um conjunto; um todo

Dedico aSebastião Uchoa LeiteTherezinha Castro

O. Cinco anos se passaram entre a publicação francesados ensaios reunidos neste livro e a sua tradução bra­sileira. Naquela época começava a esboçar-se apenas oque hoje me parece já uma aquisição (embora longocaminho ainda falte ser percorrido): uma teoria dos dis­cursos, região essencial de uma Semiologia tal corno aanunciou Saussurre. 1 Proponho-me neste artigo introdutó­rio à edição brasileira da Análise ~strutural da Narrativaa mostrar o lugar e a vez da mensagem narrativa (quetambém se poderia denominar efeito narrativo) numa talteoria. Para tanto torna-se necessário postular algunsprincípios de epistemologia estruturalista.

Introdução: ANarrativa

constituído por partes articuladas. As partes são chama­das elementos, as articulações definidas por uma expres~são indicadora de relações, por meio da qual é possívelobter qualquer elemento do conjunto. Esta expressãorecebe o nome de modelo. Assim, por exemplo, o con­junto dos números pares apresenta o seguinte modelo:Np = 2n, sendo n > 1; o dos números ímpares,Ni = 1 + 2n, sendo n ~ O. Em ambos os casos n é umnúmero inteiro. O estruturalismo procura fazer o mesmocom as ciências humanas: considera um determinado«objeto» (um enunciado lingüística, um mito, as relaçõesde parentesco numa comunidade, etc.) como um conjuntoformado de elementos e procura definir as relações entreesses elementos num modelo. Agindo deste modo, talcomo a física, por exemplo, ao analisar determinado fe­nômeno de seu campo, é obrigado a introduzir a noçãode pertinência, isto é, a considerar como relevantes ape­nas determinados elementos, que são incorporados, dei­xando de lado outros como irrelevantes. O que nãoimpede que, numa etapa posterior, a estrutura encontradaseja ela mesma considerada como um elemento e rela­cionada com outros elementos abandonados na primeiraanálise, produzindo uma estrutura mais complexa, dotadade maior poder de explicação, mas de menor generali­dade. Pela própria natureza dos «objetos» dos quais seocupam, as ciências humanas, ao lado dos modelos acimadefinidos, são ainda obrigadas a trabalhar com modelosqualitativos, em relações são expressas concretamente:alto/baixo, cultura/natureza, cru/cozido, mas que cadavez mais tendem a ser consideradas como categoriasapenas discriminatórias, isto é, formais.' Outra noçãoimportante do estruturalismo é a de combinatória. Assimcom a partir de um todo dado, por operações de segmen­tação ou partição e comutação ou substituição se podemdeterminar seus elementos (e seu modelo ), a partir desseselementos e do modelo pode-se reconstituir teoricamenteo todo: esta segunda operação é a combinatória. Uma

• L'opposltion entre nature et culture, sur laquelle nous avons )adls Inslsté,nous semble aujourd'hul offrir une valeur surlout méthodologlque", diz ClaudeLévl-Strauss em La Pensée Sauvage (Plon, Paris 1962), p. 327. Cf. ainda AlglrdasJulien Greimas, Du Sens _ Essais Sémiotiques (Ed. du Seull, Paris 1970), p. 32.

8

combinatória generalizada de um número qualquer deelementos segundo determinado modelo fornece sempreuma quantidade muito maior de casos teóricos em rela­ção às ocorrências empiricamente atestadas. Isto significaque um fator externo à estrutura (a «história») introduzrestrições seletivas de escolha entre as combinações teo­ricamente possíveis: o emissor de determinada mensa­gem, por exemplo, além de selecionar uma entre as váriasmensagens que poderiam ser transmitidas na situaçãodada, realiza ainda uma segunda seleção entre as com­binações teoricamente possíveis dos elementos que for­mam a mensagem. 3

1.2. Deve-se chamar teoria (e somente nesta acepção apalavra me parece empregada adequadamente) a umalinguagem conceitual que especifica abstratamente a for­ma que devem ter os modelos (lógicos, matemáticos,lingüísticos ou outros) usados como instrumentos meto­dológicos de transformação de uma linguagem factual(<<objeto») numa outra linguagem (<<int~rpretação»), quese convencionou denominar conhecimento.' Distingue-seassim teoria e metodologia, e estabelece-se a dupla pres­suposição que as une: não tem sentido falar-se de umateoria que não desemboque numa praxis concreta de aná­lise, nem de uma coleção de procedimentos heurísticosque não sejam orientados por uma pertinência conceituallogicamente primeira. Deixam-se portanto de lado certasconcepções epistemológicas muito comuns na etapa inicialde desenvolvimento do estruturalismo lingÜístico, em quecom freqüência teoria e método eram confundidos ou sereduzia a primeira ao segundo. Com efeito, como mostraNoam Chomsky os chamados métodos de descobertacriados pelo estruturalismo nascente (operações de seg­mentação e comutação, sem o preestabelecimento de umapertinência conceitual) são na realid~de processos deverificação que pressupõem um conhecimento intuitivo

• E' o principio essencial contido em Le Langage, de Louls H)elmslev, eretomado entre outros por A. J. Greimas, op. cit., pp. 103-115e 135·156, eEllseo Verón, Ideologia, Estrutura e Comunicação, tradução de Amélla Cohn(Cuitrix, São Paulo 1970), p. 178.• Cf. Milton José Pinto, 'por uma teoria da Interpretação semântica dos dis­cursos", in Estruturalismo e Teoria da Linguagem (Vozes, PetrópoP').

9

daquilo que se vai encontrar. • O mesmo poder-se-ia dizerda grande maioria dos métodos de análise literária empre­gados na atualidade, quaisquer que sejam as correntes deque se reclamam (estilística, crítica temática, psicanálise,sociologia, etc.), que consistem na determinação de es­truturas significantes imanentes à obra considerada, apartir de significações a ela postuladas, seja intuitiva­mente estabelecidas, seja colhidas no contexto históricoou individual em que surgiu. Numa verdadeira teoria comvocação científica, a interpretação é a etapa final e nãoum pressuposto do processo cognitivo.

1.3. Discurso é um exemplo empiricamente atestado delinguagem (um filme, um conto, um romance, um poema,uma pintura, um fragmento de conversa cotidiana, dc.são discursos). Linguagem tem portanto aqui sentidolato: designa, como já sugeria Louis Hjelmslev G, qual­quer sistema semiótico. A característica fundamental dosdiscursos é a sua heterogeneidadc do ponto de vistascmiolÓgico: todo discurso admite uma pluralidade de in­terpretações homogêneas, podendo-se pois afirmar quesão constituídos pela imbricação de diversas mensagens.Um enunciado contendo uma Única frase, «objeto» deeleição ela lingüística, admite já esta heterogeneidade, emesmo fazendo abstração dos sistemas modeladores se­cundários que poderão deformá-Io no instante da comu­nicação (como a entoação), pode ser interpretado portrês modelos semânticos (pelo menos): o fonológico, odenotativo (que A. J. Greimas prefere denominar semio­lógico) e o sintático (semântico na nomenclatura dcGreimas). ' O modelo sintático, constituído por um con­junto ele operações lógicas que pressupõem implicita­mente um sistema de codificação da «realidade», já (,bem um nível de significação de segundo grau, do tipoque Hjell11slev dcnominoll propriamente conotação, aban-

• Cf. Noam Avram Chomsky, Syntactic Structures (Mouton. Haia 1957). pp.95ss; Nicolas Ruwet, Introduction à Ia Grammaire Générative (Plon. Paris 1967).pp. 75·77.•• Louis Hjelmslev. Prolégomenes a une Théorie du Langage, tradução revistapor Ann<,: Marie Léonard (Ed. de Mlnult. Paris 1968). capo 22., Cf. A. J. Gr'eimas. Sémantique Structurale (Larousse. Paris 1966). pp. 45·68;Emilio Garroni. Semiotica ed estetica (Laterza. Barl 1968). pp. 72·73.

10

danando certas concepções muito difundidas mas ingê­nuas, de conotação era o emprego «afetivo» de um vo­cábulo.· Caso se aceite a denominação de mitologiaspara os sistemas conotativos e de cosmologias, para osdenotativos (observe-se ainda que os sistemas fonológi­tos são também denotativos, pois remetem para umaorganização de determinadas percepções), vê-se que umenunciado IingÜístico é constituído semanticamente pela'imbricação de duas mensagens de tipo cosmológico euma de tipo mitológico (pertencente a este grande uni­verso mítico que se chama «metafísica ocidental»). Acoisa se complica ainda mais quando a um enunciado seseguem outros enunciados, constituindo um discurso: or­ganizações transfrásicas instituem outros níveis de signifi­cação de segundo grau, cada um deles pressupondo novossistemas conotativos ou mítologias implícitas. ~

1.4. Podem-se criar modelos pa.ra interpretação dascosmologias e mitologias imbricadas em um discurso.Como estamos todos irremediavelmente presos ao univer­so da linguagem (<<objeto», método, teoria e interpre­tação são linguagens), o discurso-interpretação será elepróprio formado pela imbricação de cosmologias e mito­logias. Ciência e ideologia são duas formas de enunciaro discurso-interpretação. Enquanto a primeira «se definepor uma luta constante e ininterrupta contra a çonotação»pela «introdução de elementos que denotam as própriasoperações realizadas pelo emissor»·, neutralizando assimo efeito das mitologias (embora não eliminando-as de seudiscurso, o que seria impossível: o pensamento humanoé essencialmente animista), a segunda Se caracteriza pornão explicitar os sistemas semânticos míticos que regem asoperações que realiza. Pode-se dizer que a ciência perse­gue o ideal de uma denotação absoluta, tal como O Con­ceptualismo medieval, realizando uma tarefa de Sísifo:denotar suas conotações 1., enquanto que a ideologia secompraz em aceitar sua própria linguagem como umabsoluto, preguiçosamente aceitando um Nominalismo de• Cf. L. Hjelmslev, Pmlégomenes, capo 22.• Ver Eliseo Verón, op. cit., pp. 1828S.tO Cf. Eliseo Verón, op. cit., pp. 182s8.

11

fato, íludindo-se sobre si mesma." Uma nova precisa ose faz necessária, que dê maior refinamento a esta dis­tinção. Com efeito, uma análise mais apurada mostrariaque a ciência não só explicita suas mitologias, corno con­sidera operatoriamente as categorias que as constituemde um modo apenas discriminatório, indicativo de opera­ções formais.]2 Pode-se assim prever ao lado da ciência,que trabalha com categorias explicitadas e discriminató­rias, e da ideologia, que utiliza categorias implícitas equalitativas (isto é, «pesadas» de significação), uma ter­ceira forma intermediária de encarar o discurso-interpre­tação, a fílosofia, que trabalha com categorias explicita­das porém qualitativas. Ciência, filosofia e ideologia nãosão mutuamente exclusivas, pelo contrário, os discursos­interpretação trabalham simultaneamente com as trêsformas de enfoque (sobretudo nas chamadas «ciênciashumanas ou sociais»), com dominância ora de uma, orade outra, compondo formas híbridas que Piaget propôsdenominar sabedorias. ]O Parece-me que o estruturalismo,com muitas hesitações, recuos e poucos e lentos progres­sos, vem conseguindo transformar os discursos-interpre­tação destas (pseudo) ciências em sabedorias com do­minância da enunciação científica.

1.5. E' preciso advertir no entanto contra dois perigusque rondam constantemente as interpretações estrutura­listas. Chamar-se-á ao primeiro pulverização. Consistemuna fragmentação excessiva do todo, na ilusão de al­cançar maior «profundidade» ou de «esgotar» suas possi­bilidades interpretativas, sem haver estabelecido aprioris­ticamente os modelos conceituais pertinentes para talfragmentação, misturando de modo arbitrário cosmolo­

gias e mitologias ou delimitandrl-as de maneira i!TIprecisa.O segundo perigo será denominado normatividade e con­

siste na descrição superficial (no mau sentido da pala­vra) das estruturas aparentes, sem possibilidade de ge-

] 1 A Comparação me toi sugerida pelo Prof. lufs Costa lima, a Quem douo crédito.] 2 Ver nota 2."Cf Jean Piaget. Segesse et lIusíons de Ia Philasophie (Presses Unlversitai.­res de France, Paris 1968), cc. 11 e 111.

12

neralização conceitual, mesmo quando emprega técnicasrefinadas como a estatística. Ambos têm sua origem naconfusão de teoria e metodologia de que já se falou, eestão largamente difundidos, constituindo no meu enten­der o principal defeito a apontar nos artigos que seseguem (com exceção talvez do artigo de Greimas),apesar do brilhantismo inegável de alguns (especialmenteos de Barthes e Bremond). Constitui um tipo de enun­ciação ideológica considerar uma análise pulverizada ounormativa como objeto de ciência, ignorar os limites desua validade, sua precariedade teórica. Mas cabe pergun­tar se não constituem etapa inevitável no desenvolvimentode uma ciência, em parte recuperável, desde que se su­perem determinados obstáculos que entravam seu avanço.A separação e a interpretação das diversas mensagensque imbricadas constituem os discursos deve, com o de­senvolvimento da instância conceitual ou teoria, deixar deser uma operação em risco de pulverização ou norma ti­vidadee transformar-se numa verdadeira experimenta­ção, dirigida por modelos que lhe são logicamente ante­riores e que visa, simultaneamente, a aperfeiçoar a com­preensão das mensagens implicadas e a dos modelosempregados. Mas até que se alcance uma tal etapa, cabeao experimentado r a humildade de reconhecer e indicarsuas próprias limitações.

2. O lugar e a vez da narrativa.

2.1. A narrativa parece ser apenas um sistemaconota­tivo transfrásico, uma mitologia, entre as diversas que sepodem misturar para formar um discurso. Não é portantoum tipo de discurso, como afirma a retórica, e comoparecem acreditar a maioria, se não todos, dos autoresque colaboraram neste livro (pelo menos em 1966). Comseu estudo, não se esgotam as possibilidades interpreta­tivas potenciais de um discurso, bem longe disso, e ha­verá mesmo alguns, sobretudo quando nos aproximamosda literatura contemporânea, em que sua eficácia inter­pretativa será muito reduzida. Entretanto, entre todas

13

as mitologias e cosmologias que podem constituir umdiscurso, a narrativa é um caso privilegiado: mesmo queos modelos já propostos careçam ainda de aperfeiçoa­mento, constituem um corpo de teoria e metodologia emnada negligenciável, e creio que ela pode desempenharem relação à teoria da interpretação semântica dos dis­cursos papel semelhante ao que a lingüística vem desem­penhando no cômputo das ciências humanas, isto é, o deuma região teórica piloto na qual outras regiões possíveisem desenvolvimento vêm colher modelos heurísticos. E'neste sentido que se orientam as proposições que seseguem. O tom dogmático por vezes presente neste en­saio deve Ser encarado apenas como um exercício deênfase retórica e não em absoluto. Quase todas as asse r­ções que aqui se fazem são antes problemas colocadosdo que respostas dadas.

2.2. Uma teoria interpretativa da narrativa deve conter,como estabeleceu Lévi-Strauss para os mitos indígenas H,

duas componentes: a armadura, elemento invariante, es­pécie de gramática comum a todas as narrativas-exem­plo; e o código, estrutura formal, constituída por um«feixe de categorias sêmicas redundantes» organizadasnum sistema taxinômico que dá conta «dos princípiosorganizadores do universo mitológico do qual é a mani­festação realizada nas condições históricas dadas", istoé, uma componente relativa ao contexto. Deve ficar claroque contexto aqui refere-se exclusivamente a uma situa­ção lingüística: o código é em última análise um dicio­nário em que determinados lexemas narrativos estão de­finidos por um semema (conjunto de semas). Estas duascomponentes podem ser consideradas como universaismetodológicos. ,. A instância gramatical da teoria com­porta dois níveis de profundidade: um conceituat, de

" Cf. Claude Lévl-Stt'Buss. Le Cru et Le eult (Plon, Paris 1964), p. 205.10 Ver aqui mesmo, A. J. Grelmas ·Elementos para uma Taorla da Interpre­tação da Narrativa Mrtlca·.10 Cf. Milton José Pinto, op. clt., onde se mostra como astas categoriascorrespondem às que Hjelmslev denominou esquema e norma e às que Chomskydenomina gramática e dicionário. Parece-me ainda que podemos aproximá-Ia deefeito de presença e efeito de significação em Alain Badlou, •A autonomiado processo estético·, In Estruturalismo - Antologia de Textos Te6ricos(Portugálla,L1sboa 1968), pp. 321ss.

14

caráter genérico, em que determinados lexemas-valoressão afirmados ou negados em operações sucessivas queformam um algoritmo dialético, a partir do modelo teó­rico básico que parece presidir qualquer manifestaçãosignificativa ", que se pode exprimir por uma correlaçãode contraditórios:

sl s2

sl s2

Outro superficial (no bom sentido), em que estas opera­\'ões se transformam em ações realizadas por persona­gens antropomorfos, que são classificados em seis cate­gorias por um modelo actancial. ,. As ações elas própriasagrupam-se em sintagmas narrativos, constitutívos de ummodelo transformacional que articula as situações iniciale final da narrativa segundo as categorias antes/depois .••Como observa aqui mesmo Roland Barthes, estes mo­delos valem mais pelas possibilidades combinatórias infi­nitasque possibilitam do que por sua forma canônicamatricial: eles instauram a narrativa como um jogo re­

grado, e o narrador como o jogador que escolhe o pró­ximo lance dentro das liberdades e restrições que lhe

impõem as regras. O fato de que não dão bem conta daperspectiva do sujeito das ações, ressaltado ainda aquipor Barthes e Bremond, não me parece relevante: namaioria das narrativas existe uma perspectiva privilegia­da dada na própria estrutura e cuja interpretação fazparte da descrição semântica. Nos casos em que estaperspectiva não existe, os modelos podem ser aplicadosquantas vezes forem necessárias para dar conta do jogode defrontações de valores que se instituem (e a ausênciada perspectiva privilegiada do «herói» deve também nestecaso receber a interpretação devida).

2.3. Já se chamou atenção para o caráter afli17lista dope41samento humano. A narrativa é talvez a manifestação

" Ver A. J. Greilnas, Ou Sens, pp. 135-155e 160-162.1. Ver aqui mesmo, A. J. Greimas, op. clt." Ibidem. ibidem.

15

estudos (aspectos; modos; estruturas causais, temporaise espaciais dos discursos) podem servir de ajuda noacesso ao nível mais genérico que se propõe. 22

22 Ver aqui mesmo, Tzvetan Todorov. "As categorias da narrativa literária";ibidem, "Poétique", ln Qu'est·ca que le structuralisme? lE:d. du Seuil. Paris19681.pp. 97-132." Cf. A. J. Greimas. Sémantlque. pp. 134-136.•• As análises de crônicas-narrativas jornalfsticas serão publicadas no próximoano pela Editora Vozes. As demais em revistas especializadas.

17

2.4. Ao contrário da mensagem estética, a mensagemfigurativa pertence, como a fábula, ao nível do enunciado.Com efeito, Greimas notou que em determinados discur­sos (a poesia dita «moderna» é um exemplo quase puro)a comunicação do feixe redundante de categorias sêmi­cas (isotopia) que esgota as possibilidades significativasde uma dada mensagem, em lugar de se fazer pela ins­tituição de personagens antropomorfos, realizava-se pelaanimização de determinados lexemas, cujo papel era, nes­tas manifestações, semelhantes ao de personagens. 23 Oslexemas encarregados da transmissão da isotopia eramprecisamente aqueles que recebem na retórica a designa­ção de figuras: imagens, símbolos, sintagmas e defini­ções metafóricas, etc. Isto permite, mais uma vez, em­pregar os modelos transformacional e actancial da nar­rativa, com vistas à interpretação do sistema transfrásicoassim instituído, mas aqui as dificuldades no estabeleci­mento da pertinência conceitual que dirigirá a aplicaçãodos modelos ainda não estão totalmente superadas. Gran­de parte do trabalho ainda é feita por tentativas, indu­tivamente, correndo-se o risco das análises resultantesapresentarem os habituais defeitos de pulverização e nor­matividade, isto é, de não constituírem verdadeiros obje­tos de ciência, mas apenas sabedorias com predominânciaideológica.

2.5. Exemplos concretos de análise empregando os mo­delos e conceitos que foram explicitados neste artigoestão em vias de realização e publicação." A maioria dosexemplos em análise refere-se à literatura de comunica-

Análise Estrutural - 216

mais típica deste fenômeno: existe mesmo, como observaGreimas, uma tendência geral dos discursos à narrativi­zação. 20 Quer-me parecer que a característica principaldos discursos que nossa cultura denomina literários (en­globando aqui as literaturas do consumo de massa, nãovalorizadas esteticamente por essa mesma cultura) é jus­tamente esta tendência à animização, à narrativização.Creio assim que ao lado da narrativa-fábula, que tematé aqui sido objeto da atenção mais explícita, podem-seainda considerar duas outras formas (pelo menos) demanifestação da mensagem narrativa que poderiam serdenominadas (talvez com impropriedade, mas só o futu­ro dará a última palavra), mensagem figurativa e men­sagem estética. As três formas tendem a se misturar, emcombinações e intensidades diversas, nos discursos em­píricos, mas pode-se dizer que duas delas estarão semprepresentes, e que uma destas é sempre a mensagem esté­tica. Em que consiste este novo sistema conotativo trans­frásico (mitologia) que se procura delimitar? Diversosautores neste mesmo livro referem-se à clássica distinçãoentre história (estória seria mais apropriada em portu­guês) ou fábula e discurso (numa acepção diferente daque empregamos neste ensaio) ou assunto, comum aosforma listas russos e a Benveniste. 21 A mensagem estéticacorresponderia à segunda das categorias citadas, consti­tuindo-se no sistema conotativo que organiza a enuncia­ção da fábula. Sem jogo de palavras, a mensagem esté­tica seria uma narrativa da narração, em que determina­dos personagens (narrador, leitor-ouvinte e outros adeterminar) definir-se-iam pelas ações que exercem noinstante da narração, considerada esta como uma provaoriunda de um contrato previamente estabelecido (talcomo no modelo narrativo da fábula), possibilitandoassim sua classificação nas categorias SujeitojObjeto,DestinadorjDestinatário, AdjuvantejOponente do modeloactancial. Na situação presente dos estudos literários pa­rece que as categorias destacadas por Todorov em seus

• 0 Iblefem. Sémantlque. pp. 134.136.U Ver aQlll mesmo os artigos de Barthes. Todorov e Genette.

culariza a boa e a má literatura: internacional, trans­histórica, transcultural, a narrativa está aí, como a vida.

Uma tal universalidade da narrativa deve levar a

concluir por sua insignificância? E' ela tão geral quenada podemos afirmar, senão descrever modestamente al­gumas de suas variedades, muito particulares, como ofaz algumas vezes a história literária? Contudo mesmoestas variedades, como dominá-Ias, como fundamentarnosso direito a distingui-Ias, a reconhecê-Ias? Como oporo romance à novela, o conto ao mito, o drama à tragédia(fez-se isto mil vezes), sem se referir a um modelo co­mum? Este modelo está implicado em todo discurso(parole) sobre a mais particular, a mais histórica dasformas narrativas. E', pois, legítimo que, em lugar de seabdicar de qualquer ambição de discorrer sobre a narra­tiva, sob o pretexto de se tratar de um fato universal,se tenha periodicamente interessado peja forma narrativa(desde Aristóteles); é desta forma normal que o estru­turalismo nascente faça uma de suas primeiras preocupa­ções: não se trata para ele sempre de dominar a infini­dade das falas (paroles), conseguindo descrever a «lín­gua» da qual elas são originadas e a partir da qualpodem ser produzidas? Diante da infinidade de narrati­vas, da muItiplicidade de pontos de vista pelos quais sepodem abordá-Ias (histórico, psicológico, sociolÓgico,etnoJógico, estético, etc.), o analista encontra-se quasena mesma situação que Saussure, posto diante do hete­róclito da linguagem e procurando retirar da anarquiaaparente das mensagens um principio de classificação eum foco de descrição. Permanecendo no período atual,os Formalistas russos, Propp, Lévi-Strauss ensinaram­nos a resolver o dilema seguinte: ou bem a narrativa éuma simples acumulação de acontecimentos, caso em quesó se pode falar dela referindo-se à arte, ao talento ouao gênio do narrador (do autor) - todas formas míticasdo acaso - 2, ou então possui em comum' com outras

2 Existe, bem entendido. uma "a,te" do narrador: é o poder de engendrarnarrativas (mensagem) a partir da estrutura (do código); esta arte correspondeà noção de performance em Chomsky, e esta noção está bem afastada do"gênio" de um autor, concebido romanticamente como um segredo individual,dificilmente explicável.

20

narrativas uma estrutura acessível à análise, mesmo queseja necessária alguma paciência para explicitá-Ia; poishá um abismo entre a mais complexa aleatória e a maissimples combinatÓria, e ninguém pode combinar (produ­zir) uma narrativa, sem se referir a um sistema implícitode unidades e de regras.

Onde pois procurar a estrutura da narrativa? Nasnarrativas, sem dúvida. Todas as narrativas? Muitos co­mentaristas, que admitem a idéia de uma estrutura nar­rativa, não podem entretanto Se resignar a retirar a aná­lise literária do modelo das ciências experimentais: elespreconizam intrepidamente que se aplique à narração ummétodo puramente indutivo e que se comece por estudartodas as narrativas de um gênero, de uma época, de umasociedade, para em seguida passar ao esboço de um mé­todo geral. Este projeto de bom senso é utópico. Aprópria lingüística, que só tem umas mil línguas a abar­car, não o faz; sabiamente, fez-se dedutiva, e assim,desde aí, ela se constituiu verdadeiramente e progrediu apassos de gigante, chegando mesmo a prever fatos queainda não tinham sido descobertos. 3 Que dizer então daanálise narrativa, colocada diante de milhões de narrati­vas? Ela está por força conden;1da a um procedimentodedutivo; está obrigada a conceber inicialmente um mo­delo hipotético de descrição (que os lingüistas ameri­canos chamam uma «teoria»), e a descer em seguidapouco a pouco, a partir deste modelo, em direção àsespécies que, ao mesmo tempo, participam e se afastamdele: e somente ao nível destas conformidades e diferen­

ças que reencontrará, munida então de um instrumentoÚnico de descrição, a pluralidade das narrativas, sua di­versidade histórica, geográfica, cultural.'

• Ver a história do a hitita postulado por SAUSSUREe descoberto de fatocinqüenta anos mais tarde; em: BENVENISTE:Problemes de Linguistique géné.rale, Gallimard 1966, p. 35.'lembremos as condições atuais da descrição lingüística; " ... A estruturalingüística é sempre relativa não somente aos dados do corpus mas tambémà teoria gramatical que descreve estes dados" (E. BACH. An introduction totransformatíonal grammar, New York 1964, p. 29, E também de BENVENISTE(op.eit., p. 119): "." Reconheceu-se que a linguagem devia ser desecrita comouma estrutura formal, mas que esta descrição exigia primeiramente o estabe­lecimento de procedimentos e de cr'ltérios adequados e que em suma a rea­lidade do objeto não era separável do método próprio para defini-Ia",

21

Para descrever e classificar a infinidade das narra­tivas, é necessário pois uma «teoria» (no sentido pragmá­tico do qual se acabou de falar), e é para pesquisá-la eesboçá-Ia que é preciso inicialmente trabalhar.' A elabo­ração desta teoria pode ser grandemente facilitada se,desde o início, ela for submetida a um modelo que lheforneça seus primeiros termos e seus primeiros principios.No estado atual da pesquisa, parece razoável· dar comomodelo fundador à análise estrutural da narrativa a pró­

pria lingüística.

I. A líNGUA DA NARRATIVA

1. Acima da fraseI

E' sabido, a lingüística para na frase: é a última unidadeda qual se julga com direito de tratar; se, com efeito, afrase, sendo uma ordem e não uma série, não pode serreduzida à soma das palavras que a compõem, e constituipor isso mesmo uma unidade original, um enunciado, aocontrário, não é apenas a sucessão das frases que o com­põem:. do ponto de vista da Lingüística, o discurso nãotem nada que não se reencontre na frase: «A frase, dizMartinet, é o menor segmento que é perfeitamente e inte­gralmente representativo do discurso.»' A Lingüísticanão saberia pois se dar um objeto superior à frase, por­qu~ acima da frase não há mais que outras frases: tendodescrito a flor, o botânico não se pode dedicar a des­crever o buquê.

E entretanto é evidente que o próprio discurso (como

conjunto de frases) é organizado e que por esta organi­zação ele aparece como a mensagem de uma outra língua

• o caráter aparentemente "abstrato" das contribuições teóricas que se seguemneste número vem de uma preocupação metodológlca: a de formalizar rapida­mente as análises concretas: a fonnalização não é uma generalização comoas outras.6 Mas não imperativo [ver a contribuição de CL. BREMOND, mais lógica quelingüística) .'Réflexions sur Ia phrase", in Language and Society [MELANGES JANSEN),Copenhague 1961, p. 113.

22

(langue), superior à língua (langue) dos lingüistas: 8 odiscurso tem suas unidades, suas regras, sua «gramá­tica»: além da frase e ainda que composto unicamentede frases, o discurso deve ser naturalmente o objeto deuma segunda lingüística. Esta l.il1güística do discursoteve durante muito tempo um nome glorioso: a Retórica;mas, como seqüência de todo um jogo histórico, a retóricatendo passado para o lado das belas-letras e as belas­letras tendo-se separado do estudo da linguagem, foinecessário retomar recentemente o problema como novo:a nova lingüística do discurso não está ainda desenvolvi­da, mas está ao menos postulada, pelos próprios lingüis­tas.· Este fato não é insignificante: embora constituindoum objeto autônomo, ~_.ªpartir. ela lingüística que.o dis­curso deve ser estudado; se for necessário dar uma hi­pótese de trabalho a uma análise cuja tarefa é imensa eos materiàÍs infinitos, 9.JUaisJa.zoável seria postular uma.relação homológica entre a frase e o discurso, na me­dida em que uma. mesma organização formal regula demaneira verossímil todos os sistemas semióticos quais­

quer que sejam suas substâncias e dimensões: o discursoseria uma grande «frase» (cujas unidades não precisa:­r1ãm-seTnecessaiiamente frases), tudo como a frase,mediante certas especificações, é um pequeno «discurso».Esta hipótese se harmoniza bem com certas proposiçõesda antropologia atual: Jakobson e Lévi-Strauss têmobservado que a humanidade podia-se definir pelo poderde criar sistemas secundários, «demultiplicadores» (ins­trumentos que servem para fabricar outros instrumentos,dupla articulação da linguagem, tabu do incesto permi­tindo a multiplicação das famílias) e o lingüista soviéticolvanov supõe que as linguagens artificiais não poderiamser adquiridas a não ser a partir da linguagem natural::) importante, para os homens, sendo poder usar diversos;istemas de significação (sens), a linguagem naturalljuda a elaborar as linguagens artificiais. E' pois legítimo

E' evidente, como notou JAKOBSON, que entre a frase acima dela há tran­,ições: a coordenação, por exemplo, pode agir mais longe que a frase., Ver notadamente BENVENISTE,op. cit., capo X. - Z. S. HARRIS: "Dlscourse.~nalysis", Language, 28, 1952,1.30. - N. RUWET: "Analyse structurale d'un~oeme français", Linguistic, 3, 1964, 62-83.

23

postular entre a frase e o discurso uma relação «secun­

dária» - que se denominará homológica, para respeitaro caráter puramente formal das correspondências.

A língua geral da narrativa não é evidentementemais que um dos idiomas oferecidos à lingüística do dis­curso 10, e ela se submete- em conseqüência à hipótesehomológica: estruturalmente, a narrativa participa dafrase, sem poder jamais se reduzir a uma soma de frases:a narrativa é uma grande frase, como toda frase COl.J.s~tatativa, é de uma certa maneira o esboço de uma pe­quena narrativa. Se bem que elas disponham aí de signi­ficantes originais (freqüentemente muito complexos)encontram-se com efeito na narrativa, aumentados e

transformados à sua medida, as principais categorias doverbo: os tempos, os aspectos, os modos, as pessoas;além disso, 0S próprios «sujeitos» opostos aos predica­dos verbais não deixam de se submeter ao modelo frá­

sico: a tipologia actancial proposta por A. J. Greimas 11

reencontra na multiplicidade dos personagens da narra­tiva as funcões elementares da análise gramatical. A ho­mologia que se sugere aqui não tem apenas um valorheurístico: implica numa identidade entre a linguagem ea literatura (enquanto esta for uma espécie de veículoprivilegiado da narrativa): não é mais possível concebera literatura como uma arte que se desinteressa de todarelação com a linguagem, já que a usa como um instru­mento para exprimir a idéia, a paixão ou a beleza: alinguagem não cessa de acompanhar o discurso estenden­do-lhe o espelho de sua própria estrutura: a literatura,singularmente hoje em dia, não cria uma linguagem daspróprias condições da linguagem? 12

10 Será precisamente uma das tarefas da lingüística do díscurso fundar umatípologia dos discursos. Provisoriamente, podem-se reconhecer três grandes ti­pos de discurso: metonímico (narrativa). metafórico (poesía lírica, disCUl'SOsapienciall. entimemático (discurso intelectual).11 Cf. inlra, 111, 1."E' necessário lembrar aqui esta Intuição de MALLARMÉ, formada no mo­mento em que projetava um trabalho de lingüística: "A linguagem pareceu-lheo instrumento da ficção: seguirá o método da linguagem (determiná-Ia). Alinguagem r'efletindo sobre si mesma. Enfim a ficção parece-lhe ser o proce­dimento mesmo do espírito humano - é ela que põe em jogo qualquer mé­todo, e o homem está reduzido à vontade" (Oeuvres complétes, PLÉIADE, p.851). Lembre~se que para MALLARMÉ: "a Ficção ou Poesia" (ib., p. 335).

24

2. Os níveis da significação

A lingüística fornece desde o princípio à análise estruturalda narrativa um conceito decisivo, porque, dando-se contaimediatamente do que é essencial em todo sistema de signi­ficação, a saber sua organização, permite por sua vez apli­car como uma narrativa não é uma simples soma de pro­posições e classificar a massa enorme de elementos queentram na composição de uma narrativa. Este conceitoé o de nível de descrição."

Uma frase, é sabido, pode ser descrita, lingüistica­mente, em muitos níveis (fonético, fonológico, gramatical,contextual); estes níveis se apresentam numa relação hie­rárquica, pois, se cada um tem suas próprias unidades esuas próprias correlações, obrigando a uma descriçãoindependente para cada um deles, nenhum nível podepor si só produzir significação (sens): toda unidade

que pertence a um certo nivel só tomará uma significaçãocaso se possa integrar em um nível superior: um fone­ma, embora perfeitamente descritível, em si não querdizer nada; só participa da significação (sens) integradoem uma palavra; e a própria palavra deve-se integrarnuma frase. "~Jeoriadosnívej8-(tal como a enunciouBenveniste ) fornece dois tipos de relações: distribucio­

nais (se as relações estão situadas em um mesmo nível),integrativas (se elas são estabelecidas de um nível aooutro). Segue-se que as relações distribucionais não bas­tam para dar conta da significação. Para conduzir uma

análise estrutural, é necessário pois em primeiro lugardistinguir muitas instâncias de descrição e colocar estasinstâncias numa perspectiva hierárquica (integratória).

Os níveis são operações." E' portanto normal queprogredindo, a lingüística tenda a multiplicá-Ios. A aná-

" "As descrições lingüísticas não são nunca monovalentes. Uma descrição nãoé exata ou falsa; é melhor ou pior, mais ou menos útil". (J. K. HALLlDAV:"Lingulstique générale et Linguistique appliquée", Etudes de Linguistiqueappliquée. 1, 1962, p. 12)."Os niveis de integração foram postulados pela Escola de Praga (v. J.VACHOK: A Prague School Reader in Linguistics. Indiana Univ, Press, 1964,p. 468!. e retomado desde aí por muitos lingüistas. Foi, em nosso entender,BENVENISTEque deu a análise maís esclarecedora (op. cit., capo Xl.lã "Em termos algo vagos, um nível pode ser considerado como um sistemade símbolos, regras, etc. os quais devem-se usar para representar as ex­pressões"_ (E. BACH, op. cit •• pp. 57-58).

25

lise do discurso não pode ainda trabalhar a não ser sobreníveis rudimentares. À sua maneira, a retórica tinha assi­nalado no discurso pelo menos dois planos de descrição:a dispositio e a elocutio. 16 Em nossos dias, em sua aná­lise da estrutura do mito, Lévi-Strauss já precisou queas unidades constitutivas do discurso mítico (mitemas)só adquiriram significação porque são reunidas em pilhas(paquets) e que as próprias pilhas se combinam;" e T.Todorov, retomando a distinção dos Formalistas rus­sos, propõe trabalhar sobre dois grandes níveis, porsua vez subdivididos: a lzistória (o argumento), com­preendendo uma lógica das ações e uma «sintaxe» dospersonagens, e o discurso, compreendendo os tempos,os aspectos e os modos da narrativa. ,. Qualquer queseja o nÚmero dos níveis propostos e qualquer definiçãoque se dê, não se pode duvidar de que a narrativa sejalima hierarquia de instâncias. Compreender uma narra-

. tiva não é somente seguir o esvaziamento da história, étambém reconhecer nela «estágios», projetar os encadea­mentos, horizontais do «fio» narrativo sobre um eixo im­plicitamente vertical; ler (escutar) uma narrativa não ésomente passar de uma palavra a outra, é também passarde um nível a outro. Permita-se aqui uma espécie deapólogo: em A Carta Roubada, Poe analisou com perspi­cácia o fracasso do Chefe de Polícia, impotente paradescobrir a carta: suas investigações eram perfeitas, dizele, «no círculo de sua especialidade»: o Chefe de Po­lícia não omitia nenhum lugar, «saturava» inteiramenteo nível da «perquisição»; mas para encontrar a carta.protegida por sua evidência, era preciso passar paraoutro nível, substituir a pertinência do policial pela doreceptador. Da mesma maneira, a «perquisição» exerci dasobre um conjunto horizontal de relações narrativas em­bora sendo completas, para ser eficaz, deve também diri­gir-se«verticalmente»: a significação não está «ao cabo»da narrativa, ela a atravessa: tão evidente quanto A Carta

10 A terceira parte da retórica, a inventio, não concernia à linguagem: tra·tava das res, não das verba."Anthropologie structurale. p. 23.I. Aqui mesmo, infra: "As categorias da narrativa literária".

26

Roubada, não escapa menos do que esta a qualquer ex­ploração unilateral.

Muitas tentativas serão ainda necessárias antes de

se poder assegurar os niveis da narrativa. Estas qUe sevão propor aqui constituem um perfil provisório, cujavantagem é ainda quase exclusivamente didática: permi­tem situar e grupar os problemas, sem estar em desa­cordo, crê-se, com algumas análises já realizadas."Propõe-se distinguir na obra narrativa três níveis de des­crição: o nível das «funções» (no sentido que esta pa­lavra tem em Propp e em Bremond), o nível das «ações»(no sentido que esta palavra tem em Greimas quandofala dos personagens como actantes) e o nível da «narra­ção» (que é, grosso modo, o nível do «discurso» emTodorov). Será bom lembrar que estes três níveis estãoligados entre si segundo um modo de integração pro­gressiva: uma função não tem sentido se não tiver lugarna ação geral de um actante; e a própria ação recebesua significação última pelo fato de ser narrada, confiadaa um discurso que tem seu próprio código.

lI. AS FUNÇÜES

I. A determinação das unidades

Todo sistema sendo a combinação de unidades cujasclasses são conhecidas, é preciso primeiramente dividir anarrativa e determinar os segmentos do discurso narra­tivo que se possam distribuir em um pequeno nÚmero declasses; em uma palavra, é preciso definir as unidadesnarrativas mínimas.

Segundo a perspectiva integrativa que foi definidaaqui, a análise não se pode contentar com uma definiçãopuramente distribucional das unidades: é preciso que asignificação seja desde o princípio o critério da unidade:é o caráter funcional de certos segmentos da história que

,. Tive a preocupação. nesta Introdução, de constranger o menos possível aspesquisas em curso.

27

faz destes unidades; donde o nome de «funções» que se'deu imediatamente a estas primeiras unidades. Desde osFormalistas russos 2. constitui-se em unidade todo seg­mento da história que se apresenta como o termo de umacorrelação. A alma de toda função é, caso se possa dizer,seu germe, fato que lhe permite semear a t:1arrativa deum elemento que amadurecerá mais tarde, sobre o mes­mo nível, ou além, sobre um outro nível: se, em UmCoração Simples, Flaubert nos informa em um certo mo­mento, aparentemente sem insistir nisto, que as filhas dosubprefeito de Pont-I'Evêque possuíam um papagaio, éporque este papagaio vai ter em seguida uma grandeimportância na vida de Félicité: a enunciação deste de­talhe (qualquer que seja a forma lingÜística) constituipois uma função, ou unidade narrativa.

Tudo, numa narrativa, é funcional? Tudo, até omenor detalhe, tem uma significação? A narrativa podeser integralmente cortada em unidades funcionais? Serávisto daqui há pouco que existem sem dúvida muitos tiposde funções, pois há multos tipos de correlações. Distoresulta que a narrativa só se compõe de funções; tudo,em graus diversos, significa aí. Isto não é uma questãode arte (da parte do narrador), é uma questão de es­trutura: na ordem do discurso, o que se nóta é, por defi­nição, notável; .mesmo quando um detalhe parece irre­dutivelmente insignificante, rebelde a qualquer função, eletem pelo menos a significação de absurdo ou de inútil:ou tudo significa ou nada. Poder-se-ia dizer de umaoutra maneira que a arte não conhece ° ruído (no senti­do informacional da palavra): 21 é um sistema puro, não

,. Ver notadamente B. TOMACHEVSKI, Thématique [1925), in: Théorie de IaLittérature, Seuil 1965. - Um pouco mais tarde. PROPPdefinia a função como"a ação de um personagem, definida do ponto de vista de sua significaçãopara o desenvolvimento do conto na sua lDtalidade" (Morphology of Folktale,p. 20). Ver-se-à aqui mesmo a definição de T. TODOROV ("A significação(ou a função) de um elemento da obra é sua pOSSibilidade de entrar emcorrelação com outros elementos desta obm e com a obra inteira"), e asprecisões trazidas por A. J. GREIMAS, que veio a definir a unidade por suacorrelação paradígmática, mas também por seu lugar no Interior da unidadeslntagmática do qual ela faz parte." E' por isso que ele não se confunde com "a vida", que só conhece co­municações "interferenciais". A "interferência [além da qual não se pode ver)pode existir em arte, mas então a Utulo de elemento codificado (WATTEAU,por exemplo); ainda esta "interferência" é também desconhecida do códigoescrito: a escritura é fatalmente nítida.

28

há, não há jamais unidade perdida", por mais longo,por mais descuidado, por mais tênue que seja o fio quea liga a um dos níveis da história. 2,

A função é. evidentemente, do ponto de vista IingÜís­lico, uma unidade de conteúdo: é «o que quer dizer»um enunciado que o constitui em unidade funcional 24 nãoa maneira pela qual isto é dito. Este significado consti­tutivo pode ter significantes díferentes, freqÜentementemuito retorcidos: se (em Goldfinger) me é enunciadoque james Bond viu um homem de cerca de cinqüenta.anos, etc., a informação contém simultaneamente duas.funções, de pressão desigual; de um lado a idade dopersonagem enquadra-se em um certo retrato (cuja «uti­lidade» para o restante da história não é nula, mas di­fusa, retardada), e de outro lado o significado imediatodo enunciado é que Bond não conhece seu futuro inter­locutor: a unidade implica pois uma correlação muitoforte (abertura de uma ameaça e obrigação de identifi­car). Para determinar as primeiras unidades narrativas,é pois necessário jamais perder de vista o caráter fun­cional dos segmentos que se examinam, e admitir porantecipação que não coincidirão fatalmente com as for­

mas que reconhecemos tradicionalmente nas diferente~ Jpartes do discurso narrativo (ações, cenas, parágrafo~diálogos, monólogos interiores, etc.), ainda menos comas classes «psicológicas» (condutas, sentimentos, inten­ções, motivações, racionalizações dos personagens).

Da mesma maneira, já que a «língua» (Zangue) danarrativa não é a língua (Zangue) da linguagem articula­da - embora bem ireqüentemente sustentada por ela -,as unidades narrativas serão substancialmente indepen­dentes das unidades lingÜistit:as; elas poderão certamen-

22 Ao menos em literatura. onde a liberdade de notação (em continuação aocaráter abstrato da linguagem articulada) conduz a uma responsabilidade bemmais forte que nas artes "analóglcas", tais como o cinema.23 A funcionalidade da unidade narrativa é mais ou menos imediata [portantoaparente). segundo o nível onde atua: quando as unidades são colocadas nomesmo nível (no caso do suspense. por exemplo), a funcionalidade é muitosensível; muito menos quando a função é saturada sobre o nível narracional:um texto moderno, fracamente significante sobre o plano da anedota. só en­contra uma grande força de Significação sobre o plano da escritura.24 "As unidades sintáticas (acima da frase) são de fato unidades de conteúdo"tA .J. GREIMAS, Cours de Sémantique Structurale, curso mimeografado, VI 5._ A exploração do nível funcional, portanto, faz parte da semântica geral.

29

te coincidir, mas por acaso, não sistematicamente; asfunções serão representadas ora por unidades superioresà frase (grupos de frases de talhes diversos, até a obrano seu todo), ora inferiores (o sintagma, a palavra, cmesmo, na palavra, somente certos elementos literários; ,.quando nos é dito que, estando de guarda no seu gabi-

. nete do Serviço Secreto e tendo tocado o telefone, «Bondlevantou um dos quatro receptores», o monemaquatroconstitui sozinho uma unidade funcional, pois remete aum conceito necessário ao conjunto da história (o de umaalta técnica burocrática); de fato, a unidade narrativanão é aqui a unidade lingÜística (a palavra), mas so­mente seu valor conotado (lingüísticamente, a palavrajquatroj não quer dizer jamais «quatro»); isto explicaque certas unidades funcionais possam ser inferiores àfrase, sem deixar de pertencer ao discurso: elas ultra­passam, então, não a frase, à qual permanecem mate­rialmente inferiores, mas o nível de denotação, que per­tence, como a frase, à lingüística propriamente dita.

2. Classes de unidades

Estas unidades funcionais, é necessário reparti-Ias emum pequeno número de classes formais. Caso se queiradeterminar estas classes sem recorrer à substância doconteúdo (substância psicológica, por exemplo), é neces­sário novamente considerar os diferentes níveis da signi­ficação: certas unidades têm como correIa tas unidadesde mesmo nível; ao contrário, para saturar as outras, énecessário passar a um outro nível. Daí, desde o início,duas grandes classes de funções, umas distribucionais,outras integrativas. As primeiras correspondem às fun­ções de Propp, retomadas notadamente por Bremond,mas que consideramos aqui de uma maneira infinita­mente mais detalhada que estes autores; é para elas que

:G "Não se deve partir da palavra como um elemento Indlvlsível da arteliterária, tratá-Ia como o tijolo com o Qual se constrói o edlffclo. Ela édecomponível em 'elementos verbais' multo menores· (J. TYNIANOV, citado porT. TODOROV. in: Langages. 6, p. 18).

30

se reservará o nome de «funções» (embora as outras uni­dades sejam, elas também, funcionais); o modelo é clás­sico a partir da análise de Tomachevski: a compra deum revólver tem como correlato o momento em que seráusado (e se não é usado, a notação transforma-se emsigno de veleidade, etc.), tirar o telefone do gancho temcomo correlato o momento em que ai será recolocado; aintrusão do papagaio na casa de Félicité tem como cor­relato o episódio do empalhamento, da adoração, etc. Asegunda grande classe de unidades, de natureza integrã='tiva, compreende todos os «índices» (no sentido muitogeral da palavra); ,,' a unidade remete então, não a umato complementar e conseqÜente, mas a um conceito maisou menos difuso, necessário entretanto ao sentido dahistória: indices caracteriais concernentes aos persona­gens, informações relativas à sua identidade, notaçõesdas «atmosferas», etc.; a relação da unidade e de seucorrelato não é mais então distribucional (freqÜentementemuitos índices remetem ao mesmo significado e sua or­dem de aparição no discurso não é necessariamente per­tinente), mas integrativa; para compreender «para queserve» uma notação indicial, é necessário passar para11mnível superior (ações dos personagens ou narração),pois é somente aí que se esclarece o índice; a potênciaadministrativa que está por trás de Bond, indexada pelonÚmero de aparelhos telefônicos, não tem nenhuma inci­dência sobre a seqüência das ações onde se engaja Bondaceitando a comunicação; ela não toma sentido a nãoser ao nível de uma tipologia geral dos actantes (Bondestá do lado da ordem); os índices, pela natureza decerta forma vertical de suas relações, são unidades ver-odadeiramente semânticas, pois, contrariamente às «fun­ções» propriamente ditas, eles remetem a um significadonão a uma «operação»; a sanção dos índices é «maisalta», por vezes mesmo virtual, fora do sintagma explí­cito (o «caráter» de um personagem pode não ser jamaisnomeado, mas entretanto ininterruptamente indexado), éuma sanção paradigmática; ao contrário, a sanção das

;. Estas designações, como as que se seguem, podem ser todas provisórias.

31

'" VAL~IW falava de 'slgnos dllatórlos". O romance policial faz grande usodestas unidades "desorientadoras",

ser saturado por uma multidão de incidentes pequenos ede descrições pequenas: «Bond se dirigiu à sua mesa,levantou um receptor, posou seu cigarro», etc. Estas ca­tálises permanecem funcionais, na medida em que entramem correlação com um núcleo, mas sua funcionalidade éatenuada, unilateral, parasita: trata-se aqui de uma fun­cionalidade puramente cronológica (descreve-se o quesepara dois momentos da histórià), enquanto que no lia­me que une duas funções cardinais, se investe uma fun­cionalidade dupla, ao mesmo tempo consecutivas e con­seqüentes. Tudo deixa pensar, com efeito, que a molada atividade é a própria confusão da consecução e daconseqüência, o que vem depois sendo lido na narrativacomo causada par; a narrativa seria, neste caso, umaaplicação sistemática do erro lógico denunciado pela es­colástica sob a fórmula past hac, erga prapter hac, quebem poderia ser a divisa do Destino, do qual a narrativanão é em suma mais que a «língua» (Zangue); e este«esmagamento» da lógica e da temporalidade é a arma­dura das funções cardinais que o realiza. Estas funçõespodem ser à primeira vista muito insignificantes; o queas constitui não é o espetáculo (a importância, o volume,a raridade ou a força da ação enunciada), é, se podeser dito, o risco: .as funções cardinais são' os momentosde risco da narrativa;. entre estes pontos da alternativa,entre estes «dispatchers», as catálises dispõem de zonasde segurança, de repousos, de luxos; estes «luxos» nãosão entretanto inúteis: do ponto de vista da história, énecessário repeti-Ia, éL catálise pode ter uma funcionali..,dade fraca mas não absolutamente nula: seria ela pura­mente redundante (em relação a seu núcleo), não parti­ciparia menos da economia da mensagem; mas não é ocaso: uma notação, na aparência expletiva, tem sempreuma função discursiva: ela acelera, retarda, avança odiscurso, ela resume, antecipa, por vezes mesmo desorien­ta: 29 o notado aparecendo sempre como o notável, a ca­tálise desperta sem cessar a tensão semântica do discurso,

33Análise Estrutural - 332

2T Isto não Impede que finalmente o encadeamento sintagmátlco das funçõespossa recobrlr relações paradigmáticas entre funções separadas. como é admi­tido desde L~VY·STRAUSS e GREIMAS.,. Não se podem reduzir as Funções a ações (verbos) e os indlces a quali­dades (adjetivos), pois há ações que são Indlclais. sendo 'slgnos' de umcaráter. de uma atmosfera, etc.

«Funções» é sempre «mais longe», é uma sanção sin­tagmàtica." Funções e Indices recobrem portanto umaoutra distinção clássica: as Funções implicam relata me­tonímjcos, os indices relata metafóricos; uns correspon­dem a uma funcionalidade do fazer, as outras a umafuncionalidade do ser. n

Estas duas grandes classes de unidades, Funções eíndices, deveriam já permitir uma certa classificação dasnarrativas. Certas narrativas são fortemente funcionais(assim os contos populares), e em oposição certas outrassão fortemente indiciais (assim os romances «psicológi­cos» ); entre estes dois pólos, toda uma série de formasintermediárias, tributárias da história, da sociedade, dogênero. Mas não é tudo: no interior de cada uma destasgrandes classes, é imediatamente possível determinarduas subc1asses de unidades narrativas. Para retomar aclasse das Funções, suas unidades não têm todas a mes­ma «importância»; algumas constituem verdadeiras arti­culações da narrativa (ou de um fragmento da narrati­va); outras não fazem mais do que «preencher» o espaçonarrativo que separa as funções-articulações: chamemosas primeiras de funções cardinais (ou núcleas) e as se­gundas, em consideração à sua natureza completiva, ca­tálises. Para que uma função seja cardinal, é suficienJeque a ação à qual se refere abra (ou mantenha, ou feche)uma alternativa conseqüente para o seguimento da his­tória, enfim que ela inaugure ou conclua uma incerteza;se, em um fragmento da narrativa, a telefane taca, é·igualmente possível que seja respondido ou que não oseja, o que não impedirá de levar a história para doiscaminhos diferentes. Em oposição entre duas funçõescardinais, é sempre possível dispor de notações subsidiá­rias, que se aglomeram em torno de um núcleo ou deoutro sem modificar-lhe a natureza alternativa: o espaço

que separa «a telefane tocau» e «Band atendeu» pode

11 Aqui mesmo. G. GENETTEdistingue dois tipos de descrições: ornamental esignificativa. A descrição significativa deve evidentemente ser relacionada como nlvel da história e a descrição ornamental com o nlvel do discurso. o queexplica que ela tenha constituído durante multo tempo um "tragmento· retó­rico perfeitamente codificado: a descriptio ou ekphrasis. exerclcio multo va·lorlzado pela neo-retórlca.

possui uma funcionalidade incontestável, não ao nível dahistória, mas ao nivel do discurso."

.Nú(;le()s e. catálises, índices e informantes (aindauma vez pouco importam os nomes), tais são, parece, aspril11l:.irasclasses entre as quais. podem-se repartir asunidages do. nível funciol1ªI. E' necessário completar estaclassificação com duas observações. Para começar'llrnaunidade pode pertencer ao mesmo tempo a duas classes'diferentes: beb~r um uísque (no hall de um aeroporto)é uma ação que pode servir de catálise à notação (cardi­nal) de esperar, mas é também e ao mesmo tempo oíndice de uma certa atmosfera (modernidade, descontra­ção, lembrança, etc.): dito de outra maneira, certas uni­dade podem ser mistas. Deste modo um jogo é possívelna economia da narrativa; no romance Goldfinger, Bond,devendo revistar o quarto de seu adversário, recebe umpasse-partout de seu comanditário: a notação é uma purafunção (cardinal); no filme este detalhe é mudado: Bondrouba brincando a carteira de uma camareira que nãoprotesta; a notação não é mais somente funcional, mastambéminciicial, remete ao caráter de Bond (sua desen­voltura 'eseu sucesso junto às mulheres). Em segundolugar, é necessário ressaltar (fato que será tratado emoutro lugar mais tarde) que as quatro classes das quaisse vêm de tratar podem ser submetidas a uma outradistribuição, mais conforme, além disso, ao modelo Iin­gÜístico. As catálises, os índices e os informantes têmcom efeito um caráter comum: são expansões em rela-,ção aos núcleos: os núcleos (vai ser logo visto) .formamconjuntos acabados de termos pouco numerosos, são re­gidos por uma lógica, são. ao mesmo tempo necessáriose suficientes; esta armadura d~da, as outras unidadesvêm preencher segundo um modo de proliferação emprincípio infinito: sabe-se que isto é o que se passa coma frase, feita de proposições simples, complicadas ao

diz ininterruptamente: houve, vai haver significação; afunção constante da catálise é pois, em todo estado ele_causa, uma função fática (para retomar a palavra deJakobson): mantém o contato entre o narrador e o nar:­ratário (narrataire). Digamos que não se pode supril11irum núcleo sem alterar a história, mas que não se podesuprimir uma catálise sem alterar o discurso. QUé:\º!o às~g;undagrande classe de unidades narrativas (os índi­ces), classe integrativa, as unidades que aí se encontramtêm em comum o fato de não poderem ser saturadas(completadas) a não ser ao nível dos personagens ou danarração; elas fazem portanto parte de uma relação pa­ramétrica ", cujo segundo termo, implícito, é contínuo,extensivo a um episódio, um personagem ou Uma. obrail1teira; pode-se entretanto distinguir aí indices propria­mente ditos, remetendo a um caráter, a um sentimento,a uma atmosfera (por exemplo de suspeita), a umafilosofia, e informações, que servem para identificar, parasituar no tempo e no espaço. Dizer que Bond está deguarda em um escritório cuja janela aberta deixa ver aLua entre grossas nuvens que passam é indexar umanoite de verão tempestuosa, e esta dedução mesma formaum índice atmosferial que remete ao clima pesado, an­gustiante de uma ação que não se conhece ainda. Osíndices têm pois sempre significados implícitos; os in­formantes, ao contrário, não o têm, pelo menos ao nívelda história: são. dados puros imediatamente significantes_Os índices implicam uma atividade de deciframento: tra­ta-se para o leitor de aprender a conhecer um caráter,uma atmosfera; os informantes trazem um conhecimentotodo feito; sua funcionalidade, como a das catálises, épois fraca, mas não é nula: qualquer que sej a sua «pa­lidez em relação ao resto da história, o informante (porexemplo a idade precisa de uma personagem) serve paradar autenticidade à realidade do referente, para enraizara ficção no real: é um operador realista, e neste título,

•• N. RUWET chama elemento paramétrlco um elemento que é constante du­rante toda a duração de uma peça de música (por exemplo o tempo de umellegro de Bach. o caráter mon6dlco de um 8010).

34 3" 35

infinito por duplicações, preenchimentos, recobrimentos,etc.: como a frase, a narrativa é infinitamente catalisáveI.Mallarmé dava uma tal importância a este tipo de estru­tura que constitui com ela seu poema Jamais un coupde dés que se pode bem considerar, com seus «nós» eseus «ventres», suas «palavras-nós» e suas «palavras­rendas» como o brasão de toda narrativa de toda lin­guagem.

3. A sintaxe funcional

Como, segundo qual «gramática», estas diferentes uni­dades se encadeiam umas às outras ao longo do sintagmanarrativo? Quais são as regras da combinatória funcio­nal? Os informantes e os índices podem livremente secombinar entre eles: tal é por exemplo o retrato, quejustapõe sem constrangimento d{ldos de estado civil etraços caracteriais. Uma relação de implicação simplesune as catálises e os núcleos: uma catálise implica neces­sariamente a existência de uma função cardinal à qual seligar mas não reciprocamente. Quanto às funções cardi­nais, é uma relação de solidariedade que as une: umafunção desta espécie obriga a uma outra da mesma espé­cie e reciprocamente. E' sobre esta Última relação quese deve parar um instante: primeiramente para que defi­na a própria armadura da narrativa (as expansões sãosuprimíveis, os nÚcleos não o são), em seguida porquepreocupa principalmente aos que procuram estruturar anarrativa.

Já se assinalou que por sua própria estrutura, anarrativa instituía uma confusão entre a consecução e aconseqüência, o tempo e a lógica. E' esta ambigüidadeque forma o problema central da sintaxe narrativa umalógica intemporal? Este ponto dividia ainda recentementeos pesquisadores. Propp, cuja análise, sabe-se, abriu ca­minho aos estudos atuais, prende-se absolutamente àirredutibilidade da ordem cronológica: o tempo é a seusolhos o real e por esta razão parece-lhe necessário en­raizar o conto no tempo. Entretanto, o próprio Aristóteles,opondo a tragédia (definida pela unidade de ação) à

36

IlÍstória (definida pela pluralidade de ações e unidade doII'mpo), atribuía já o primado do lógico sobre o crono­IÚgico." E' o que fazem todos os pesquisadores atuais(Lévi-Strauss, Greimas, Bremond, Todorov), que pode­riam todos subscrever sem dúvida (embora divergindo:,obre outros pontos) a proposição de Lévi-Strauss: «Aordem de sucessão cronológica resolve-se numa estruturaIlIatricial atempora1.» a3 A análise atual tende com efeitoa «descronologicizar» o contínuo narrativo e a .«relogici­zar», a submetê-Ia ao que MalIarmé chamava, a propá-­sito da língua francesa, «os primitivos raios da lógica.» ••Ou mais exatamente - é este ao menos nosso desejo ­a tarefa é conseguir dar uma descrição estrutural da ilu­são cronológica;~ él.lógica narrativa a dar conta do tem­po narrativo. Poder-se-ia dizer de uma outra maneiraque a temporalidade não é mais do que uma classeestrutural da narrativa (do discurso), tudo como se nalíngua, o tempo não existisse a não ser sob a forma desistema; do ponto de vista da narrativa, o que chamamostempo não existe, ou ao menos só existe funcionalmente,como elemento de um sistema semiótico: o tempo nãopertence ao discurso propriamente dito, mas o referente;a narrativa e a língua só conhecem um tempo semiológi­co; o «verdadeiro» tempo é uma ilusão referendal, «rea­lista», como o mostra o comentário de Propp, e é a estetítulo que a descrição estrutural deve tratá-Io."

Qual é pois esta lógica que constrange as principaisfunções da narrativa? E' o que se procura estabelecerativamente e o que tem sido até aqui mais largamentedebatido. Remeter-se-á pois às contribuições de A. J.Greimas, CI. Bremond e T. Todorov, publicadas aquimesmo, e que tratam todas da lógica das funções. Trêsdireções principais de perquisa tornam-se claras, expos­tas mais adiante por T. Todorov. O primeiro caminho

32 Poétique, 1459 a.33 Citado por GL BREMOND:"le message narratif". Communlcatlons, n. 4, 1964." Ouant au Livre Oeuvres Completes, Pl~IADE. p, 386.ao A sua maneira. como sempre perspicaz mas inexplorada. VAl':RV anunciou oestatuto do tempo narrativo: "A crença no tempo agente e fio condutor' éfundada sobre o mecanismo da memória e sobre o do discurso combinado'(Tel Quel, 11. 348); nós sublinhamos: a Ilusão é um efeito produzido pelopróprio discurso.

37

(Bremond) é mais propriamente lógico: trata-se de re­constituir a sintaxe dos comportamentos humanos empre­gados pela ,narrativa, de traçar o trajeto das «escolhas»às quais, em cada ponto da história, tal personagem éfatalmente submetido:l6 e de por às claras o que se po­deria chamar uma lógica energética "', pois ela se apo­dera dos personagens no momento em que escolhemagir. O segundo modelo é IingÜístiCü (Lévi-Strauss, Grei­mas): a preocupação essencial desta pesquisa é de des­cobrir nas funções oposições paradigmáticas, estas oposi­ções, de acordo com o princípio jakobsoniano do «poético»,estando «estendidas» ao longo da trama da narrativa(ver-se-á entretanto aqui mesmo os desenvolvimentos no­vos pelos quais Greimas corrige ou completa o para­digmatismo das funções). O terceiro caminho, esboçadopor Todorov é um pouco diferente, pois instala a análiseao nível das «ações» (isto é, dos personagens), ten­tando estabelecer as regras pelas quais a narrativa com­bina, varia e transforma um certo número de predicadosde base.

Não é questão de escolher entre estas hipóteses detrabalho; elas não são rivais mas concorrentes, e estãosituadas além disso atualmente em plena elaboração. Oúnico complemento que se permitirá aqui Ihes trazer con­ceme às dimensões da análise. Mesmo se são colocadosà parte os índices, os informantes e as catálises, restaainda numa narrativa (sobretudo se se trata de um ro­mance, e não mais de um conto) um grande número defunções cardinais; muitas não podem ser dominadas pelasanálises que se acabam de citar, as quais trabalharamaté agora sobre as grandes articulações da narrativa.E' necessário entretanto prevel uma descrição suficien­temente detalhada para dar conta de todas as unidadesda narrativa, de seus menores segmentos; as funçõescardinais, lembremos isto, não podem ser determinadas

•• Esta concepção lembra uma opinião de Arlstóteles: a proalresis, escolha ra­cional das ações acometer. fundamenta a práxls, ciência prática que não produznenhuma obra distinta do agente. contrariamente a paJésJ•• Nestes termos, dl,­se-á que o analista tenta reconstltulr a práxls Interior à narrativa.31 Esta lógica fundada sobre a alternativa (fazer isto ou aquilo) tem o mMltode daI' conta do processo de dramatlzação da qual a narrativa é ordinariamentea sede.

38

por sua «importância», mas apenas pela natureza (du:­pIamente illlplicativa) de suas relações: uma «chamadatclefônica»,por mais fútil que pareça, de um lado con}­porta ela mesma algumas funções cardinais (tocar, aten­der, falar, desligar), e de outro lado, tomado em bloco,(' necessário poder relacioná-Ia pelo menos de etapa emdapa, às grandes articulações da anedota. A coberturaluncional da narrativa impõe uma organização de subs­tituição, cuja unidade de base não pode ser mais quelI111pequeno agrupamento de funções, que se chamará,:tqui (seguindo Cl. Bremond) uma «s~güência».

Uma seqÜência é uma série lógica de núcleos, uni­dos erJt[esi por uma. relação de solidariedade "": a se­qüência abre-se assim que um de seus termos não tenhaantecedente solidário e se fecha logo que um de seustermos não tenha mais conseqüente. Para tomar umexemplo voluntariamente fútil, pedir uma consumação,recebê-la, consumi-Ia, pagá-Ia, estas diferentes funçõesconstituem uma seqüência evidentemente fechada, poisnão é possível fazer preceder a encomenda ou fazer se­guir o pagamento sem sair do conjunto homogêneo«Consumação». A seqüência é com efeito sempre nomeá­vel. Determinando as grandes funções do conto, Propp,depois Bremond, têm sido levados a nomeá-Ias (Fraude,Traição, Luta, Contrato, Sedução, etc.): a operação no­minativa é igualmente inevitável para as seqüências fú­teis, o que se poderia chamar de «micro-seqüências»,as que formam freqÜentemente o grão mais fino do te­cido narrativo. Estas denominações são unicamente res­ponsabilidade do analista. Dito de outra maneira, _.~Iªssão puramente metalingiiísticas? Elas o são sem dú­vida, já que tratam do código da narrativa, mas pode-seimaginar que fazem parte de uma metalinguagem interiordo próprio leitor (ou ouvinte), que compreende todauma série lógica de ações como um todo nominal: leré nomear; escutar, não é somente perceber uma lingua­gem, é também construi-Ia. Os títulos das seqüências

". No sentido hjelmsleviano da dupla implicação: dois termos pressupõem-seum ao outro.

39

41

•• Este contraponto foi pressentido pelos Formallstas russos. que esboçaram-lheatlpologla; ele lembra slnda as principais estruturas "retorcidas" da frase(cf._ lnfra, V, 1).

Ajuda

! 1--,Vigilância Captura Punição

etc.

Petição

I I iEncontro Solicitação Contrato

II I ----,Interpelação Saudação Instalação

I I IEstender-a-mãoapertá-Ia soltá.la

Esta representação é evidentementeanaIítica. O leitor,ele mesmo, percebe uma série linear de termos. Mas oque é necessário notar é que os termos de muitas seqüên­cias podem muito bem imbricar-se uns nos outros: umaseqüência não acabou e já, intercalando-se, o termo inicialde uma nova seqüência pode surgir: as seqüências des­locam-se em contraponto 40; funcionalmente, a estruturada narrativa é fugata: é assim que a narrativa, ao mes­mo tempo, é (<<tient»)e pretende ser (<<aspire»). A im­bricação das seqüências só pode com ·efeito permitir, nointerior de uma mesma obra, uma interrupção por umfenômeno de rutura radical, se alguns blocos (ou «es­temas) estanques, que, então, a compõem, são de algummodo recuperados ao nível superior das Ações (dos per­sonagens): Goldfinger é composto de três episódios fun­cionalmente independentes, pois seus este mas funcionaiscessam duas vezes de comunicar: não há nenhuma relação

eles mesmos micro-seqüências. Toda uma rede de sub­rogações estrutura assim a narrativa, das menores ma­trizes às maiores funções. Trata-se aí, bem entendido, delima hierarquia que permanece interior ao nível funcional:é somente quando a narrativa pode ser aumentada, deetapa em etapa, do cigarro de Ou Pont ao combate de130nd contra Goldfinger, que a análise funcional está ter­minada: a pirâmide das funções está em contacto entãocom o nível seguinte (o das Ações). Há pois ao mesmotempo uma sintaxe interior às seqüências e uma sintaxe(sub-rogante) das seqüências entre elas. O primeiro epi­sódio de Goldfinger toma deste modo uma forma «es­temática» :

rAbordagem

40

são bastante análogos a estas palavras-cobertura (cover­words) de máquina de traduzir, que cobrem de umamaneira aceitável uma grande variedade de sentidos ede matizes. A língua da narrativa, que está em nós,comporta inicialmente estas rubricas essenciais: a lógicafechada que estrutura uma seqüência está indissoluvel..,_mente ligada a seu nome: toda função que inaugura umasedução impõe desde sua aparição, ao nome que elafaz surgir, o processo inteiro da sedução, tal qual apren­demos em todas as narrativas que formaram em nósa língua da narrativa.

Qualquer que seja sua pouca importância, sendocomposta de .um pequeno número de núcleos (quer dizer,de fato, de «dispatchers»), a seqüência comporta sem­pre momentos de risco, e é isto que justifica a análise:poderia parecer irrisório constituir em seqüência a sérielógica dos pequenos atos que compõem o oferecimentode um cigarro (oferecer, aceitar, acender, fumar); masé que, precisamente, em cada um destes pontos, umaalternativa, e pois uma liberdade de sentido, é possível:Ou Pont, o coma'nditário de James Bond, oferece-lhefogo com seu isqueiro, mas Bond recusa; a significaçãodesta bifurcação é que Bond instintivamente teme umabrincadeira (gadget piegé). :Jl) A seqüência é portanto, casose queira, uma unidade lógica ameaçada: é o que ajustifica a mínimo. Ela é também fundada a máximo:fechada sobre suas funções, resumida em um nome, aprópria seqüência constitui uma unidade nova, prestes afuncionar como o simples termo de uma outra seqüência,maior. Eis uma micro-seqüência: estender a mão, aper­tá-Ia, soltá-Ia; esta Saudação torna-se uma simples fun­ção, de um lado, toma o papel de um índice (falta deenergia de Ou Pont e repugnância de Bond), e de outroforma globalmente o termo de uma seqüência maior, de­nominada Encontro, cujos outros termos (aproximação,parada, interpelação, saudação, instalação) podem ser

'0 E' multo posslvel encontrar. mesmo neste nlvel Infinltesimal. uma oposiçãode modelo paradigmátlco. senão entre dois termos, ao menos entre dois pólosda seqüência: a seqüênCia Oferta de cigarro apresenta. em suspenso, o pa·radigrna Perigo/Segurança (exposto por CHEGLOV em sua análise do ciclo deSherlock Holmes), Suspeita/Proteção, Agressivldade/Amizade.

seqÜencial entre o episódio da piscina e o de Fort-Knox;mas subsiste uma relação actancial, pois os personagens(e por conseguinte a estrutura de suas relações) são osmesmos. Reconhece-se aqui a epopéia (<<conjunto de fá­bulas múltiplas»): a epopéia é uma narrativa interrompidano nível funcional mas unitária no nível actancial (istose pode verificar na Odisséia ou no teatro de Brecht). E'necessário portanto coroar o nível das funções (que for­nece a maior parte do sintagma narrativo) por um nívelsuperior, no qual, pouco a pouco, as unidades do pri­meiro nível retirem sua significação, e que é o níveldas Ações.

li!. AS AÇõES

I. Por um estatuto estrutural dos personagens

Na Poética aris.ti'>télica, a noção de personagens é secun­dária, inteiramente submissa à noção de ação: pode haverfábula sem «caracteres», diz Aristóteles, mas não exis­tiriam caracteres sem fábula. Esta perspectiva foi reto­mada pelos teóricos clássicos (Vossills). Mais tarde, opersonagem, que até ai não era mais que um nome, oagente da ação ", tomou lima consistência psicológica,tornou-se um indivíduo, uma «pessoa», breve um «ser»plenamente constituído, mesmo que ele não fizesse nada,e bem entendido, antes mesmo de agir"; o personagemcessou de ser subordinado à ação, encarnou de iníciouma essência psicológica; estas essências podiam sersubmetidas a um inventário, cuja forma mais pura foi alista dos «empregos» do teatro burguês (a coquette, opai nobre, etc.). Desde sua aparição, a análise estruturalteve a maior repugnância em tratar o personagem comouma essência, mesmo que fosse para c1assificá-Io; como

•• Não esqueçamos Que a tragédia clássica só conhecia ainda ·atores·, não•personagens·..•• A "personagem-pessoa" reina no romance burguês; em Guerra e Paz, NicolauRostov é Inicialmente um bum rapaz, leal, corajoso, ardente; o Prlnclpe Andréum ser bem educado, desencantado, ate.: o Que Ihes acontece, os ilustra,mas não os faz.

42

IliII

() lembra aqui T. Todorov, Tomachevski chegou até alIcgar ao personagem toda importância narrativa, pontode vista que ele atenuou em seguida. Sem chegar a re­Iirar os personagens da análise, Propp reduziu-os a umalipologia simples, fundada não sobre a psicologia, mas';obre a unidade das ações que a narrativa lhes atribuiu(Doador de objeto mágico, Ajuda, Mau, etc.).

Desde Propp, o personagem não cessa de impor à;ll\álise estrutural da narrativa o mesmo problema: de11m lado os personagens (por qualquer nome que Iheschame: dramatis personae ou actantes) formam um pla­110 de descrição necessário, fora do qual as «pequenasações» narradas deixam de ser inteligíveis, de sorte que~;e pode bem dizer que não existe uma só narrativa nomundo sem «personagens»", ou ao menos sem «agentes»;mas por outro lado estes «agentes bastante numerosos,não podem ser nem descritos nem classificados em ter­mos de «pessoas», seja que se considere a «pessoa»como uma forma puramente histórica, restrita a certosgêneros (em verdade, os que conhecemos melhor) e quepor conseguinte é preciso reservar o caso, muito vasto,de todas as narrativas (contos populares, textos contem­porâneos) que comportam agentes, mas não pessoas; istoé, que se admita que a «pessoa» não é mais que umaracionalização crítica imposta por nossa época a purosagentes narrativos. A análise estrutural, muito preocupadaem não definir o personagem em termos de essênciaspsicológicas, esforçou-se até o presente, através de hi­póteses diversas, das quais encontrar-se-á eco em algumasdas contribuições que se seguem, em definir o persona­gem não como um «ser», mas como um «participante».Para CI. Bremond, cada personagem pode ser o agentede seqüências de ações que lhe são próprias (Fraude,Sedução); quando uma mesma seqüência implica doispersonagens (é o caso normal), a seqüência comporta

.3 Se uma parte da literatura contemporânea tratou do "personagem·, não foipara destrui-Ia (coisa Impossivel). e sim para despersonallzá-Io, o Que é com­pletamente dlfel'ente. Um romance aparentemente sem personagens. como Drame•de PHIUPPE SOLLERS,recusa Inteiramente a pessoa em proveito da IIngugaem,mas collServa ainda um jogo fundamental de actantes, diante da ação mesmada fala (parolt!). Esta literatura conhece sempre um ·sujelto·, mas esse ·su­jeIto· é a partir de então o da linguagem.

43

duas perspectivas, ou, caso se prefira, dois nomes (oque é Fraude para um é Logro (duperie) para outro);em suma, cada personagem, mesmo secundário, é o heróide sua própria seqüência. T. Todorov, analisando umromance «psicológico» (Les Liaisons Dangereuses), parte,não dos personagens-pessoas, mas das três grandes re­lações nas quais se podem engajar e que ele chamapredicados de base (amor, comunicação, ajuda); estasrelações estão submetidas pela análise a dois tipos deregras: de derivação quando se trata de dar conta deoutras relações e de ação quando se trata de descrevera transformação destas relações no curso da história:há muitos personagens em Les Liaisons Dangereuses,mas «o que se diz» (seus predicados) deixa-se classifi­car. Enfim, A. J. Greimas propôs descrever e classificaros personagens da narrativa, não segundo o que são, massegundo o que fazem (donde seu nome de actantes),já que participam de três grandes eixos semânticos, quese encontram além disso na frase (sujeito, objeto, com­plemento de atribuição, complemento circunstancial) eque são a comunicação, o desejo (ou a busca) e aprova"; como esta participação se ordena por pares, omundo infinito dos personagens é ele também submetidoa uma estrutura paradigmática (Sujeito/Objeto, Doador/Destinatário, Adjuvante/Oponente), projetada ao longo danarrativa; e como o actante, define uma classe, ele sepode preencher com atores diferentes, mobilizados se­gundo as regras de multiplicação, de substituição ou decarência.

Estas três concepções têm muitos pontos comuns. Oprincipal, é necessário repetir, é definir o personagempela sua participação em uma esfera de ações, estasesferas sendo pouco numerosas, típicas, classificáveis; épor isso que se chamou aqui o segundo nível de des­crição, embora sendo o dos personagens, nível das Ações:esta palavra não se deve pois entender aqui no sentidodos pequenos atos que formam o tecido do primeironível, mas no sentido das grandes articulações da práxis(desejar, comunicar, lutar).•• Sémantlque Structurale, lAROUSSE. 1966, pp. 129s.

44

2. O problema do sujeito

Os problemas levantados por uma classificação dos per­sonagens da narrativa não estão ainda bem resolvidos.Certamente se está de acordo que os inumeráveis perso­nagens da narrativa podem ser submetidos a regras desubstituição e que, mesmo no interior de uma obra, umamesma figura pode absorver personagens diferentes ";por outro lado o modelo actancial proposto por Greimas(e retomado numa perspectiva diferente por Todorov),parece resistir bem à prova de um grande número denarrativas: como todo modelo estrutural, vale menos porsua forma canônica (uma matriz de seis actantes) quepelas transformações regra das (carências, confusões, du­plicações, substituições), às quais ele se presta, deixandoassim esperar uma tipologia actancial das narrativas 46;

entretanto, no momento em que a matriz tem um bompoder classificador (é o caso dos actantes de Greimas),não dá bem conta da multiplicidade das participações,desde o momento em que estas são analisadas em termosde perspectivas; e quando estas perspectivas são respei­tadas (na descrição de Bremond), o sistema dos perso­nagens fica muito esfacelado; a redução proposta porTodorov evita os dois obstáculos, mas ela só foi apli­cada até hoje a uma única narrativa. Tudo isto podeser harmonizado rapidamente, parece. A verdadeira' di­ficuldade ventilada pela classificação dos personagens éo lugar (e portanto a existência) do sujeito em todamatriz actancial, seja qual for a fórmula. Quem é osujeito (o herói) de uma narrativa? Há ou não há umaclasse privilegiada de atores? Nosso romance habituou­nos a acentuar de uma maneira ou de outra, por vezesretorcida (negativa), um personagem entre outros. Maso privilégio está longe de cobrir toda a literatura narra-

"A psicanálise acreditou largamente nestas operações de condensação. ­MALLARMIOjá dizia, a propósito de Hamlet: "Comparsas, ,Isto é necessá.'io, poisno ideal da pintura da casa tudo se move segundo uma reciprocidade sim·bólica de tipos entre eles ou relativamente a uma só figura" (Cravonné authéâtre, PlIOIADE. p. 301).46 Por exemplo: as narrativas onde o objeto e o sujeito se confundem em ummesmo personagem são narrativas da busca de si mesmo, de sua própl'ia Iden­tidade (O Asno de Ouro); narrativas onde o sujeito persegue objetos suces­sivos (Mme. Bovary). etc.

45

tiva. Assim, muitas narrativas põem em ação, em tornode uma presa, dois adversários, cujas «ações» são deste

modo igualadas; o sujeito é então verdadeiramente duplo,sem que se possa por antecipação reduzi-Io por substi­tuição; é mesmo talvez a única forma arcaica corrente,como se a :narrativa, à semelhança de certas línguas,tivesse conhecido também um dual de pessoas. Este dualé mais interessante na medida em que aparenta a narra­tiva à estrutura de certos jogos (muito modernos), emque doisadveq;ários iguais desejam conquistar um objetoposto em circulação por um árbitro; este esquema lembraa matriz actancial proposta por Greimas, o que não podeespantar a quem se quiser persuadir que o jogo, sendouma linguagem, participa também da mesma estrutura

simbólica que se encontra na língua e na narrativa: ojogo também é uma frase." Se pois se conserva umaclasse privilegiada de atores (o sujeito da procura, dodesej o, da ação), é ao menos necessário suavizá-Ia sub­

metendo este actante às categorias mesmas da pessoa,não psicológica, mas gramatical: uma vez mais, será ne­cessário aproximar-se da lingüística para poder descrevere classificar a instância pessoal (eu/tu) ou apessoal (ele)singular, dual ou plural, da ação. Serão - talvez _ as

categorias gramaticais da pessoa (acessíveis nos pro­nomes) que darão a chave do nível aciona!. Mas comoestas categorias não se podem definir a não ser em re­lação à instância do discurso, e não à da realidade ", ospersonagens, como unidades do nível acional, só encon­tram sua significação (sua inteligibilidade) se são inte­grados ao terceiro nível da descrição, que chamamosaqui nível da Narração (por ,oposição às Funções eàsAções).

H A anaállse do ciclo James Bond, feito por U. ECO um pouco mais adiante.refere-se mais ao jogo do Que à linguagem.•• Ver as análises da pessoa apresentadas por BENVENISTEem Problemes deLingulstique générale.

46

IV. A NARRAÇÃO

1. A comunicação narrativa

Mesmo que haja, 110 interior da narrativa, uma grandefunção de troca (repartida entre um doador e um be­neficiário), da mesma maneira, homologicamente, a nar­rativa, como objeto, é alvo de uma comunicação: há umdoador da narrativa, há um destinatário da narrativa.Sabe-se, na comunicação lingüística, eu e tu são abso­lutamente pressupostos um pelo outro; da mesma ma­neira, não pode haver narrativa sem narrador e sem ou­vinte (ou leitor). Isto é talvez banal, e entretanto aindamal explorado. Certamente o papel do emissor foi abun­dantemente parafraseado (estuda-se o «autor» de um ro­mance sem se perguntar além disso.se ele é bem o «narra­dor»), mas quando se passa para o leitor, a teoria lite­rária é muito mais pudica. De fato, o problema não éde interiorizar os motivos de narrado r nem os efeitos quea narração produz sobre o leitor; é o de descrever o có­digo através do qual narrador e leitor são significadosno decorrer da própria narrativa. Os signos do narradorparecem à primeira vista mais visíveis e mais numerososque os signos do leitor (uma narrativa diz mais freqüen­temente eu que tu); na realidade, os segundos são sim­plesmente mais disfarçados que os primeiros; assim, cadavez que o narrador, cessando de «representar», relacionafatos que conhece perfeitamente masque o leitor ignora,produz-se, por carência significante, um signo de leitura,porque não teria sentido que o narrado r desse a si mes­mo uma informação: Leo era o dono desta boate ", diz­nos um romance na primeira pessoa: isto é um signodo leitor, próximo do que jakobson chama de função co­nativa da comunicação. Por falta de inventário, deixar­se-á entretanto de lado no momento os signos da recep-

•• Double bang à Bangkok. A frase funciona como uma 'plscadela' ao leitor,como se alguém se dirigisse a ele. Ao contrário. o enunciado •Assim, Léo acabade sair' é um Signo do narrador. pois Isto faz parte de um raclocinlo efetuadopor uma •pessoa' .

47

r,,, J, LACAN: '0 sujeito do qual lalo quando lalo é o mesmo que aqueleque fala?"•• E. BENVENISTE. op. clt.

que o próprio autor (que se mostre, se esconda ou seapague) disponha de «signos» com os quais salpicariasua obra, é necessário supor entre a «pessoa» e sualinguagem uma relação signalética que faz do autor umsujeito pleno e da narrativa a expressão instrumentaldesta plenitude; a isto a análise estrutural não se poderesolver: quem fala (na narrativa) não é quem escreve(na vida) e quem escreve não é quem é."

De fato, a narrativa propriamente dita (ou códigodo narrador) só conhece, como também a Iingua, doissistemas de signos: pessoal e apessoal; este dois siste­mas não beneficiam forçosamente marcas lingüísticas li­gadas a pessoa (eu) e a não-pcssoa (ele); pode haver,por exemplo, narrativas, ou pelo menos episódios, escri­tos na terceira pessoa e cuja instância verdadeira é en­tretanto a primeira pessoa. Como decidir isto? E' sufi­ciente «rewrite» a narrativa (ou a passagem) do elepara eu: enquanto esta operação não atrai nenhuma outraalteração do discurso a não ser a própria troca dos pro­nomes gramaticais, é certo que se permanece em umsistema de pessoa: todo o começo de Goldfinger, emboraescrito na terceira pessoa, e de fato falado por JamesBond; para que a instância mude é necessário que orewriting torne-se impossível; assim a frase: «ele per­cebeu um homem de uns cinqÜenta anos, de porte aindajovem, etc.», é perfeitamente pessoa, a despeito do ele(<<Eu,James Bond, percebi, etc.»), mas o enunciado nar­rativo «o tilintar do gelo contra o vidro pareceu dar aBond urna brusca inspiração» não pode ser pessoal porcausa do verbo «parecer», que se torna signo do apessoal(e não o ele). E' certo que o apessoal é o modo tradi­cional da narrativa, a língua tendo elaborado todo umsistema temporal próprio da narrativa (articulado comoo aoristo) ••, destinado a afastar o presente daquele quefala: «Na narrativa, diz Benveniste, ninguém fala.» En­tretanto a instância pessoal (sob forma mais ou menosdisfarçada) invadiu pOtlCOa pouco a narrativa, a narra-

ção (embora também importantes), para dizer uma pa­lavra sobre signos da narração. 00

Quem é o doador da narrativa? Três concepçõesparecem até aqui ter sido enunciadas. A primeira consi­dera que a narrativa é emitida por uma pessoa (nosentido plenamente psicológico do termo); ,esta pessoatem um nome, é o autor, em que se trocam sem inter­rupção a «personalidade» e a arte de um indivíduo per­feitamente identificado, que toma periodicamente a penapara escrever uma história: a narrativa (notadamenteum romance) não é então mais que a expressão de umeu que lhe é exterior. A segunda concepção faz do narra­dor uma espécie de consciência total, aparentemente im­pessoal, que emite a história do ponto de vista superior,o de Deus": o narrador é ao mesmo tempo interior aseus personagens (poiS' sabe tudo o que neles se passa)e exterior (pois não se identifica mais Com um que comoutro). A terceira concepção, a mais recente (HenryJames, Sartre), preconiza que o narrador deve limitar suanarrativa ao que podem observar ou saber os persona­gens; tudo se passa como se cada personagem fosseum de cada vez o emissor da narrativa. Estas três con­cepções são igualmente constrangedoras na medida emque parecem todas três ver no narrador e nos persona­gens pessoas reais, «vivas» (é conhecida a indefectívelpotência deste mito literário), como se a narrativa sedeterminasse originalmente em seu nível referencial (tra­ta-se de concepções igualmente «realistas»). Ora, ao me­nos ,em nosso ponto de vista, narrador e personagenssão essencialmente «seres de papel»; o autor (material)de uma narrativa não se pode confundir em nada com onarrador desta narrativa "'; os signos do narrador sãoimanentes à narrativa, e por conseguinte perfeitamenteacessíveis a uma análise semiológica; mas para decidir

o. Aqui mesmo. TODOROV trata em outro lugar da imagem do narradar' e daimagem do leitor.

"' "Quando é que se escreverá do ponto de vista de uma blague superior, istoé, como o bom Deus os vê do alto?" (FLAUBERT,Préface à Ia vie d'écrivain,Seul/, 1965, p. 91) .

., Distinção cada vez mais necessária. na escala que nos ocupa, que histo­ricamente uma massa considerável de narrativas não tem autor (narrativasorais. contos populares, epopéias confiadas aos aedos, a recltantes. etc.'.

48 Análise Estrutural 4 49

50

ção estando relacionada ao hic et nunc da locução (éa definição do sistema pessoal); também vê-se hoje emdia muitas narrativas, e das mais correntes, misturar aum ritmo extremamente rápido, freqüentemente nos limi­tes de uma mesma frase, o pessoal e o apessoal; assimesta frase de GOldfinger:

51

2. A situação da narrativa

seu lugar (codificado) no discurso. E' esta pessoa formalque se tenta hoje em dia fazer falar; trata-se de umasubversão importante (o público tem mesmo a impressãode que não se escrevem mais «romances») pois ela visaa fazer passar a narrativa, da ordem puramente constata­tiva (que ocupava até o presente) à ordem performativa,segundo a qual a significação de uma fala (parole) é oato mesmo que a profere": hoje, escrever não é «narrar»,é dizer que se conta, e relacionar todo o referente (<<oque se diz») a este ato de locução; é porque uma parteda literatura contemporânea não é mais descritiva, mastransitiva, esforçando-se para realizar na fala (parole)um presente tão puro, que todo discurso se identificacom o ato que o produz, todo logos sendo reduzido _ ouestendido - a uma lexis."

o nível narracional é pois ocupado pelos signos da narra­tividade, o conjunto dos operadores que reintegram fun­ções e ações na comunicação narrativa, articulada sobreseu doador e seu destinatário. Alguns desses signos játêm sido estudados: nas literaturas orais, conhecem-secertos códigos de r,ecitação (fórmulas métricas, proto­colos convencionais de apresentação), e sabe-se que o«autor» não é aquele que inventa as mais belas histórias,mas o que domina melhor o código cujo uso partilhacom os ouvintes: nestas literaturas, o nível narracionalé tão nítido, suas regras tão constrangedoras, que édifícil conceber um «conto» privado de signos codifica­dos da narrativa (<<era uma vez», etc.). Em nossas li­teraturas escritas, descobriu-se muito cedo as «formas do

discurso» (que são de fato signos de narratividade):classificação dos modos de intervenção do autor, esbo-

•• Sobre o performatlvo. cf. lnfra a contribuição de T. TODOROV. _ Oexemplo clássico de performatlvo é o enunciado: eu declaro a guerra, quenão •constata· nem •descreve· nada. mas esgota sua signifIcação na suaprópria proferlção (contrariamente ao enunciado: o rei declarou a guerra, queé constatlvo. descr'itivo).51 Sobre a oposição logos e lexis, ver mais adiante o texto de G. GENETTE.

4*

fijIIiir

lI1*IIIf.!;t,~

pessoal

pessoalapessoal

apessoal

Seus olhoscinza-azuladoséstavam fixados sobre os de Du Pont

que não sabia qual postura tomarpOis este olhar fixo comportava um misto de

candura, de ironia e de autodecepção

A mistura dos sistemas é evidentemente sentida como umafacilidade. Esta facilidade pode ir até à trucagem: umromanCe policial de Agatha Christie (Cinco e Vinte eCinco) só mantém o enigma enganando sobre a pessoada narração: uma pessoa é descrita do interior, quandojá é o assassino M; tudo se passa como se em uma mesmapessoa houvesse uma consciência de testemunha, ima­nente ao discuso, e uma consciência de assassino, ima­nente ao referente; só o entrelaçamento abusivo dos doissistemas permite o enigma. Compreende-se pois que nooutro pólo da literatura se faça do rigor do sistema es­colhido uma condição necessária da obra - sem entre­tanto poder sempre honrá-]o até o fim.

Este rigor - procurado por certos escritores con­temporâneos - não é forçosamente um imperativo es­tético; o que se chama romance psicológico é ordinaria­mente marcado por uma mistura dos dois sistemas, mo­bilizando sucessivament.e os signos da não-pessoa e osda pessoa; a «psicologia» não pode com efeito - para­doxalmente - acomodar-se com um puro sistema dapessoa, pois reduzindo toda a narrativa à instância únicado discurso, ou caso se prefira ao ato de locução, é oconteúdo mesmo da pessoa que é ameaçado: a pessoapsicológica (de ordem referencial) não tem nenhuma re­lação com a pessoa lingüística, que não é jamais definidapor disposições, intenções ou traços, mas somente por•• Modo pessoal: ·Parecla mesmo a Burnaby que nada parecia mudado. ete•.- O processo é ainda mais grosseiro em O assassinato da Rogar Akrovid. jáque o assassino ai diz francamente eu.

çada por Platão, retomada por Diômedes'" codificaçãodos começos e fins de narrativas, definição dos diferentesestilos de representação (a omUo directa, a orailo indi­rcela, com seus inquit, a oratio tecta) "', estudo de «pontosde vista», etc. Todos estes elementos fazem parte donível narracional. E' necessário acrescentar evidentementea escritura no seu conjunto, pois seu papel não é o de«transmitir» a narrativa, mas de mostrá-Ia.

E' com efeito em uma amostra da narrativa, quese vêm integrar as unidades dos níveis inferiores: a for­ma Última da narrativa, como narrativa, transcende seusconteÚdos e suas formas propriamente narrativas (fun­ções e ações). Isto explica que o código narracional sejao último nível que nossa análise pode atingir, salvo sairdo objeto-narrativa, isto é, salvo transgredir a regra daimanência que a fundamenta. A narração não pode comefeito receber sua significação do mundo que a usa,acima do nível narracional, começa o mundo, isto é, ou­tros sistemas (sociais, econômicos, ideológicos), cujostermos não são mais apenas as narrativas, mas elemen­tos de uma outra substância (fatos históricos, determi­nações, comportamentos, etc.). Do mesmo modo que alingüística para na frase, a análise da narrativa parano discurso: é necessário em seguida passar a uma outrasemiótica. A lingÜística conbece este gênero de fronteiras,que ela já postulou - senão explorou - sob o nomede situação, Halliday define a «situação» (em relaçãoa uma frase) como o conj unto dos fatos lingüísticasnão associados 80; Prieto, como «o conjunto dos fatos co­nhecidos pelo receptor no momento do ato sêmico e in­dependentemente deste».·' Pode-se dizer da mesma ma­neira que toda narrativa é tributária de uma «situaçãode narrativa», conjunto de protocolos segundo os quaisa narrativa é consumida. Nas sociedades ditas «arcaicas»,

'0 Genus IICtlvum vai lmltatlvum (não há Intervenção do narrador no dis­curso: teatro, por exemplo); Genus annaratlvum (s6 o poeta tem a palavra:sentenças, poemas, didáticos); enus commune (mistura dos dois gêneros: aepopéia).• 0 H. SORENSEN:Mélanges Jansen, p. 150.•• J. K. HAlllDAV: "lIngulstique générale et lInguistlque appllquée', in:Etudes de lingulstique appllquée, n. 1. 1962, p. 6.Ol L. J. PRIETO: Prlncipes de Noologie, Muton et Co, 1964, p. 36.

52

I

I

a situação de narrativa é fortemente codificada"'; só,em nossos dias, a literatura de vanguarda sonha aindacom protocolos de leitura, espetaculares em Mallarmé,que queria que o livro fosse recitado em público segundouma combinatória precisa, tipográficas em Butor que tentafazer acompanhar o livro COm seus próprios signos. Masno corrente, nossa sociedade escamoteia também o maiscuidadosamente possível a codificação da situação de nar­rativa: não se contam mais os procedimentos de narra­ção que tentam naturalizar a narrativa que vai seguir,fingindo dar-lhe como causa uma ocasião natural, e, casose possa dizer, «desinaugurá-la»: romances por cartas,manuscritos pretensamente reencontrados, autor que en­controu onarrador, 'filmes que lançam sua história antesdos letreiros. A repugnância de mostrar seus códigosmarca a sociedade burguesa e a cultura de massa quedela se originou: a uma e a outra, são necessáriossignos que não pareçam signos. Isto não é, entretanto,caso que se possa dizer, um epifenômeno estrutural: pormais familiar, por mais negligente que seja hoje o fatode abrir um romance, um jornal ou ligar um aparelho detelevisão, nada pode impedir que este ato modesto ins­tale em nós, de um só golpe e no seu todo, o códigonarrativo do qual teremos necessidade. O nível narracio­nal tem deste modo um papel ambíguo: contíguo à si­tuação da narrativa (e por vezes mesmo incluindo-a),ele abre sobre o mundo onde a narrativa se desfaz (seconsome); mas ao mesmo tempo, coroando os níveis an­teriores, ele fecha a narrativa, constituindo-a definitiva­mente como fala (parole) de uma língua que prevê econtém sua própria metalinguagem.

V. O SISTEMA DA NARRATIVA

A língua propriamente dita pode ser definida pelo con­curso de dois processos fundamentais: a articulação, ousegmentação, que produz unidades (é a forma, segundo

•• o conto, lembrava L. SEBAG, pode ser dito a todo momento e em todolugar. náo a narrativa mltica.

53

Benveniste), a integração, que recolhe estas unidades emunidades de um nível superior (é o sentida), Este duploprocesso se reencontra na língua da narrativa; ela tam­bém conhece uma articulação e uma integração, umaforma e 'uma significação.

t. Distorção e expansão

A forma da r.arrativa é essencialmente marcada por doispoderes: o de distender os signos ao longo da história,e o inserir nestas distorções as expansões imprevisíveis.Estes dois poderes aparecem como liberdades; mas o tí­pico da narrativa é precisamente incluir estes «afastamen­tos» na sua língua .• 3

A distorção dos signos existe na língua onde Bailya estuda, a propósito do francês e do alemão 0<; há dis­taxia, desde que os signos (de uma mensagem) não se­jam simplesmente justapostos, desde que a linearidade(lógica) é perturbada (o predicado precedendo por exem­plo o sujeito). Uma forma notável da distaxía encon­tra-se quando as partes de um mesmo signo são sepa­radas por outros signos ao longo da cadeia da mensa­gem (por exemplo, a negação ne jamais e o verbo apardonné em: ele ne nous a jamais pardonné): o signosendo fracionado, seu significado está repartido em di­versos significantes, distantes uns dos outros e em quecada um considerado à parte não pode ser compreendido.O que já foi visto a propósito do nível funcional, é exa­tamente o que se passa na narrativa: as unidades deuma seqÜência embora formando um todo ao nível destamesma seqÜência podem ser separadas umas das outraspela inserção de unidades que vêm de outras seqüências:já foi dito, a estrutura do nível funcional é uma fuga.·5

., VALÉRY: "O romance aproxima-se formalmente do sonho; pode-se definirambos pela consideração desta curiosa propriedade: que todos os seus afas­tamentos Ihes pertencem".o<CH. BALLY: Lin!luistique Générale et Lin!luistique Française, Berne, 4' ed.,1965.

.6 Cf. lI'VI-STRAUSS (Anthropolo!lie structurale, p. 234): "Relações que pro­venham do mesmo grupo podem aparecer em Intervalos afastados, quandonos colocamos em um ponto de vieta diacrõnlco.' A. J. GREIMAS insistiusobre o afastamento das funções (Sémantique structurale.)

54

Segundo a terminologia de BaIIy, que opõe as línguassintéticas, onde predomina a distaxia (como o alemão)e as línguas analíticas, que respeitam mais a linearidadelógica e a monossemia (como o francês), a narrativaseria uma língua fortemente sintética, fundada essencial­mente sobre uma sintaxe de encaixamento e de desen­volvimento: cada ponto da narrativa irradia em muitasdireções ao mesmo tempo: quando James Bond pedeum uísque esperando o avião, este uísque, como índice,tem uma valor polissêmico, é uma espécie de nó simbólicoque se assemelha a diversos significados (modernidade,riqueza, ociosidade); mas como unidade funcional, o pe­dido de uísque deve percorrer, pouco a pouco, numerosasetapas (consumação, espera, partida, etc.) para encon­trar sua significação final: a unidade é «tomada» portoda a narrativa, mas também a narrativa não «subsiste»a não ser pela distorção e irradiação de suas unidades.

A distorção generalizada dá à língua da narrativasua marca própria: fenômeno de pura lógica, porque éfundada sobre uma relação, freqÜentem ente longínqua, eporque mobiliza uma espécie de confiança na memória in­telectiva, substitui sem cessar a significação da cópiapura e simples dos acontecimentos relatados; segundo a«vida», é pouco provável que em um encontro, o fato dese sentar não siga imediatamente o convite para tomarum lugar; na narrativa, estas unidades, contíguas de umponto de vista mimético, podem ser separadas por umalonga seqüência de inserções pertencendo a esferas fun­cionais completamente diferentes: assim se estabelece umaespécie de tempo lógico, que tem pouca relação com otempo real, a pulverização aparente das unidades sendosempre mantida firmemente sob a lógica que une os nú­cleos da seqÜência. O «suspense» não é evidentementemais que uma forma privilegiada, ou, caso se prefira,exasperada, da distorção: de um lado mantendo umaseqüência aberta (por procedimentos enfáticos de retar­damento e de adiantamento), reforça o contacto com oleitor (ou ouvinte), detém uma função manifestamentefática; e por outro lado, oferece-lhe a ameaça de uma

55

sequencia inacabada, de um paradigma aberto (se, comocremos, toda seqÜência tem dois pólos), isto é, umaperturbação lógica, e é esta perturbação que é consumidacom angÚstia e prazer (enquanto é sempre finalmentereparada); o «suspense» é pois um jogo com a estru­tura, destinado, caso se possa dizer, a arriscá-Ia e a glo­rificá-Ia: constitui um verdadeiro «thrilling» do inteligí­vel: representando a ordem (e não mais a série) na suafragílidade, realiza a idéia mesma de língua: () que apa­rece mais patético é também o mais intelectual: o «sus­pense» captura pelo «espírito», não pelas «tripas». '"

O que pode ser separado pode ser também preen­chido. Distendidos, os nÚcleos funcionais apresentam es­paços intercalares, que podem ser acumulados quase in­finitamente; podem-se preencher os interstícios com umnúmero muito grande de catálises; entretanto, aqui, urnanova tipologia pode intervir, pois a liberdade de catálisepode ser regulada segundo o conteúdo das funções (cer­tas funções são mais expostas que outras à catálise: aEspera, por exemplo .,,) e segundo a substância da nar­rativa (a escritura tem possibilidades de diérese - epois de catálise - bem superiores às do filme: pode-se«cortaD> um gesto recitado mais facilmente do que omesmo gesto visualizado).·· O poder catalítico da narra­tiva tem por corolário seu poder elítico. De uma parte,uma função (ele comeu uma refeição substancial) podeeconomizar todas as catálises virtuais que ela contém (odetalhe da refeição w; de outra parte, é possível reduziruma seqÜência a seus núcleos e uma hierarquia de se­qÜências a seus termos superiores, sem alterar a signifi­cação da história: uma narrativa pode ser identificada,mesmo se seja reduzido seu sintagma total a seus actantes

o. J. P. FAVE, a propósito do BaphOlllet de KLOSSOVSKI: "Raramente a fic­ção (ou a narrativa) desvendou tão nitidamente o que ela é sempre forçosa·mente: uma experimentação do "pensamento" sobre a "vida"." Tel Quel.n.O 22. p. 88.61 A Espera só tem loglcsmente dois núcleos: 1.0 espera colocada; 2.0 esperasatisfeita ou frustl'ada; mas o primeiro núcleo pode ser largamente catalí­sado. às vezes mesmo Infinitamente IEn attendant Godot): ainda um jogo.desta vez extremo, como a estrutura.•• VAL~RV: "Proust divide - e nos dá a sensação de poder dividir indefi­nidamente - o que os outros escritores se acostumaram a vencer".o. AquJ ainda há especificações segundo a substãncla: a literatura tem umpodeI' elltico inlgualável - que o cinema não tem.

56

e a suas grandes funções, de tal modo que elas resultemda assunção progressiva das unidades funcionais. ro Ditode outro modo, a narrativa oferece-se ao resumo (o quese chamava antigamente o argumento). À primeira vista,acontece o mesmo em todo discurso; mas cada discursotem seu tipo de resumo; o poema Jirico, por exemplo,sendo apenas a vasta metáfora de um só significado",resumi-Ia é dar este significado, e a operação é tão drás­tica que faz desaparecer a identidade do poema (resu­midos, os poemas líricos se reduzem aos significadosAmor e Morte): de onde a convicção de que não se poderesumir um poema. Ao contrário, o resumo da narrativa(se é conduzido segundo critérios estruturaís) mantém aindividualidade da mensagem. Dito de outra maneira, anarrativa é traduzível, sem prejuízo fundamental: o quenão é traduzíveI só se determína no último nível, narra­cional: os significantes de narratividade, por exemplo,podem dificilmente passar do romance ao filme, que sóconhece tratamento pessoal excepcionalmente "'; e a úl­tima classe do nível narracional, a saber a escritura, nãopode passar de uma língua a outra (ou passa muito mal).A tradutibilidade da narrativa resulta em descobrir es­

trutura de sua língua; por um caminho inverso seriaentão possível encontrar esta estrutura distinguindo e clas­sificando os elementos (diversamente) traduzíveis e in­traduzíveis de uma narrativa: a existência (atual) desemióticas diferentes e concorrentes (literatura, cinema,histórias em quadrinhos, rádío) facilitaria muito este ca­minho de análise.

,. Esta redução não Cort'esponde forçosamente à decomposição do livro emcapítulos; parece ao contrário que. cada vez mais, os capltulos têm porpapei instalar ruturas, Isto é, suspenses (técnicas do folhetim).7l N. RUWET ("Analyse atructuraie d'un poeme françals", L1ngulstlcs, n.O 3,1964, p. 82): O poema pode ser compreendido como o resultado de umasérie de transformações aplicadas à proposição "Eu te amo". RUWET fazjustamente alusão, ali. à análise do' dellrlo paranóico dado por Freud apropósito do Presidente Schreber (Clnq psychanalyses)."Ainda uma vez, não há nenhuma relação entre a "pessoa" gramatical donarrador e a "personalidade" (ou a subjetividade) que um metteur en scéne põena sua maneira de apresentar uma história: a câmera-eu (Identlflcada con­tinuamente ll{l olho de um personagem) é um fato excepcional na históriado cinema.

57

2. Mimesis e Significação

Na língua da narrativa, o segundo processo importante éa integração: o que foi separado em um certo nível (umaseqüência, por exemplo) é reunido com mais freqüênciaem um nível superior (seqüência de um alto grau hierár­quico, significado total de uma dispersão de índices, açãoele uma classe de personagens); a complexidade de umanarrativa pode-se comparar à de um organograma, capazde integrar os movimentos para trás e os saltos paradiante; ou mais exatamente, é a integração, sob formasvariadas, que permite compensar a complexidade aparen­temente indomável, das unidades de um nível; é ela quepermite orientar a compreensão de elementos descontí­nuos, contínguos e heterogêneos (tais quais são dadospelo sintagma, que só conhece uma dimensão: a suces­são) ; caso se chame, com Greimas, isotopta, a unidadede significação (a que, por exemplo, impregna um signoe seu contexto), dir-se-á que a integração é um fator deisotopia: cada nível (integratório) dá sua isotopia àsunidades do nivel inferior, impede a significação de «os­cilar» - o que não deixaria de se produzir, caso não sepercebesse a decalagem dos níveis. Entretanto, a inte­gração narrativa não se apresenta de uma maneira sere­namente regular, como uma bela arquitetura que condu­ziria por chicanas simétricas, de uma infinidade de ele­mentos simples, a algumas massas complexas; com muitafreqÜência uma mesma unidade pode ter dois correlatos,um sobre um nível (função de uma seqüência), outrosobre um outro (índice remetendo a um actante); anarrativa apresenta-se assim como uma série de elemen­tos mediatos e imediatos, fortemente imbricados; a elis­taxia orienta uma leitura «horizontal», mas a integraçãosuperpõe-Ihe uma leitura «vertical»: há uma espécie de«encaixamento» estrutural, como um jogo incessante depotenciais, cujas quedas variadas dão à narrativa seu«tonus» ou sua energia: cada unidade é percebida noseu afloramento e sua profundidade e é assim que anarrativa «anda»: pelo concurso destes dois caminhos,a estrutura ramifica-se, prolifera, descobre-se - e reco-

58

bra-se: o novo não cessa de ser r,egular. Há seguramenteuma liberdade da narrativa (como há uma liberdade detodo locutor, diante de sua língua), mas esta liberdadeé ao pé da letra limitada: entre o código forte da línguae o código forte da narrativa, estabelece-se, caso possaser dito, um vazio: a frase. Caso se tente abarcar oconjunto de uma narrativa escrita, vê-se que ela parte domais codificado (o nível fonemático, ou mesmo merismá­tico) , se distende progressivamente até à frase, pontoextremo da liberdade combinatória, depois recomeça ase estender, partindo de pequenos grupos de frases (mi­ero-seqÜências), ainda muito livres, até às grandes ações,que formam um código forte e restrito: a criatividade danarrativa (ao menos sob sua aparência mítica de «vida»)situar-se-ia assim entre dois códigos, o da lingÜistica e oda translinguística. E' por isto que se pode dizer para­doxalmente que a arte (no sentido romântico do termo)está no trabalho dos enunciados de detalhe, enquantoque a imaginação é do domínio do código: «Em suma,dizia Poe, ver-se-á que o homem engenhoso está semprecheio do imaginativo e que o homem verdadeiramenteimaginativo não é outra coisa mais que um analista ... ». "

E' necessário pois vir a tratar do «realismo» danarrativa. Recebendo um telefonema no escritório ondeestá de guarda, Bond «sonha», diz-nos o autor: «As co­municações com Hong-Kong são sempre tão ruins e tãodifíceis de obter.» Ora, nem o «sonho» de Bond nem amá qualidade da comunicação telefônica são a verdadeirainformação; esta contingência parece talvez «viva», masa informação verdadeira, a que germinará mais tarde, éa localização do telefonema, a saber Hong-Kong. Assim,em toda narrativa, a imitação permanece contingente;"a função da narrativa não é ele «representar», é de cons­tituir um espetáculo que permanece ainda para nós muitoenigmático, mas que não saberia ser de ordem mimética;a «realidade» de uma seqÜência não está na continuação«natural» das ações que a compõem, mas na lógica que

" Le double assassinat de Ia rue Morgue, trad. BAUDElAIRE."G. GENETTE tem razão em reduzir a mimesis aos fl'agmenlos de diálogonarrados ld. infra); ainda o diálogo apresenta sempre uma função intellglvele não mlmética.

59

ções extratextuais sem as quais o estabelecimento daisotopia narrativa seria impossível.

3. O sujeito que fala (= o leitor) não pode serconsiderado como o invariante da comunicação mítica,pois esta transcende a categoria de consciente vs incons­ciente. O objeto da descrição situa-se ao nível da trans­missão, do texto-invariante, e não ao nível da recepção,do leitor-"variável.

Somos obrigados, por conseguinte, a partir não deuma teoria semântica constituída, mas de um conjuntode fatos descritos e de conceitos elaborados pelo mitó­logo; nós procuramos:

19 Se uns e outros podem ser formulados em termosde uma semântica geral suscetível de dar conta, entreoutras, da interpretação mitológica;

29 que exigências as conceptualizações dos mitólo­gos colocam a esta teoria semântica.

Escolhemos para isso o mito de referência bororaque serve a Lévi-Strauss, em Le Cru et le Cui!, de pontode partida para a descrição do universo mitológico to­mado em uma de suas dimensões; a da cultura alimentar.Entretanto, enquanto que Lévi-Strauss se tinha propostoa inscrever este mito-ocorrência no universo mitológicoprogressivamente constituída, nosso objetivo será o departir do mito de referência considerado como uma uni­dade narrativa, tentando explicitar os procedimentos dedescrição necessários para alcançar, por etapas sucessi­vas, a lisibilidade máxima deste mito. Nesta pesquisametodológica, nosso trabalho consistirá essencialmenteno reagrupamento e na exploração de descobertas quenão nos pertencem.

11. AS COMPONENTES ESTRUTURAIS DO MITO

II.l As três componentes

Toda descrição do mito deve levar em conta, segundoLévi-Strauss, três elementos fundamentais: 1Q a armadu­ra; 29 o código; 3Q a mensagem.

62

Nós nos perguntaremos portanto 19 como interpretar,no quadro de uma teoria semântica, estas três compo­nentes do mito e 29 que lugar atribuir, a cada uma delas,na interpretação de uma narrativa mítica.

11.2 A armadura

E' preciso entender por armadura (que é um elementoinvariável) o status estrutural do mito na qualidade denarração. Estes status parece ser duplo: 19 pode-se dizerque o conjunto das propriadades estruturais comuns atodos os mitos-narrativas constitui um modelo narrativo,29 mas esse modelo deve dar conta simultaneamente (a)do mito considerado como unidade discursiva transfrá ...sica e (b) da estrutura do conteÚdo que é manifestadopor meio dessa narração.

I. A narrativa, unidade discursiva, deve ser consi­derada como um algorismo, isto é, como uma sucessãode enunciados cujas funções-predicados simulam lingüis­ticamente um conjunto de comportamentos .orientadospara um objetivo. Na qualidade de uma sucessão, a nar­rativa possui uma dimensão temporal: os comportamen­tos ali apresentados mantêm entre eles relações de ante­rioridade e posteridade.

A narrativa, para ter um sentido, deve ser um tod.ode significação; ela apresenta-se, por isso, como umaestrutura semântica simples. Disso resulta que os desen­volvimentos secundários da narração, não encontrandoseu lugar na estrutura simples, constituem uma camadaestrutural subordinada: a narração, considerada comoum todo, terá por contrapartida uma estrutura hierárquicado conteÚdo.

2. Uma subclasse de narrativas (mitos, contos, peçasde teatro, etc.) possui uma característica comum quepode ser considerada como a propriedade estrutural destasubclasse de narrativas dramatizadas: a dimensão tem­poral, sobre a qual se encontram situadas, é dicotomizadaem um antes vs um depois.

A este antes vs depois discursivo corresponde oque se chama uma «reviravolta da situação» que, sobre

63

6465

sobre o plano discursivo e a outra sobre o plano estru­tural. Talvez não seja inÚtil precisar que por isotopiaentendemos um conjunto redundante de categorias se­mânticas que torna possivel a leitura uniforme da narra­tiva, tal como ela resulta das leituras parciais dos enun­ciados após a resolução de suas ambigüidades, estaresolução ela mesma sendo guiada pela procura da leituraúnica.

1. A isotopia narrativa fica determinada por umacerta perspectiva antropocêntrica que faz com que a nar­rativa seja concebida como uma sucessão de aconteci­mentos cujos atores são seres animados, agentes oupacientes. Neste nível, uma primeira categoriza~~ão: indi­vidual vs coletivo permite distinguir um herói associa Ique, separando-se da comunidade, aparece como umagente graças ao qual se produz a reviravolta da situação,que se coloca, dito de outra Jorma, como mediador per­sonalizado entre a situação-antes e a sítuação·-depois.

Vê-se que esta primeira isotopia reencontra, do pontode vista lingüística, a análise de signos: os atores e osacontecimentos narrativos são lexemas (= morfemas, nosentido norte-americano), analísáveis em sememas (=acepções ou «sentidos» das palavras) que se encontramorganizados, por meio de relações sintáticas, em enun­ciados univocos.

2. A segunda isotapia se situa, ao contrário, no nívelda estrutura do conteÚdo postulado a este plano dis­cursivo. Às seqüências narrativas correspondem conteÚdoscujas relações recíprocas são teoricamente conhecidas. Oproblema que se apresenta à descrição é o da equiva­lência a estabelecer entre os lexemas e os enunciadosconstitutivos das seqüências narrativas e as articulaçõesestruturais dos conteúdos que Ihes corresponde, e é aresolvê-I o que vamos nos empregar. Por enquanto bastadizer que esta transposição supõe uma análise em semas(= traços pertinentes da significação) que somente elapode permitir a colocação entre parênteses das proprie­dades antropomórficas dos lexemas-atores e dos lexemas­acontecimentos. - Quanto às performances do herÓi queocupam a parte central na economia da narrativa, só

Análise Estrutural - 5

c{mteÚdo invertido

conteÚdo colocado

antes

depois

o plano dói estrutura implícita, não é outra coisa que umainversão dos signos do con teÚdo. Uma correlação existeassim entre os dois planos:

3. Restringindo, uma vez mais, o inventário de nar­rativas, encontra-se que um grande nÚmero delas (oconto popular russo, mas também nosso mito de referên­cia) possuem uma outra propriedade que consiste emcomportar uma seqüência inicial e uma seqüência finalsituadas sobre planos de «realidade» mitica diferenteselo corpo da narrativa ela mesma.

A esta particularidade da narração corresponde umanova articulação de conteÚdo: aos dois conteÚdos tópicos-- dos quais um é colocado e o outro, invertido - en­contram-se adicionados dois outros conteÚdos corre/atosque estão, em princípio, na mesma relação de transfor­mação que os conteÚdos tópicos.

Esta primeira definição de armadura, que não estáem contradição com a fórmula geral do mito propostahá pouco tempo por Lévi-Strauss, mesmo se não é intei­ramente satisfatória - pois não permite ainda, no estadoatual de nossos conhecimentos, estabelecer a classificaçãodo conjunto das narrativas considerado como gênero __constitui entretanto um elemento de previsibilidade dainterpretação não neglígenciável: pode-se dizer que a pri­meira etapa dos procedimentos, no processo da descriçãodo mito, é a divisão da narrativa mítica em seqüênciaàs quais deve corresponder, a título de hipótese, umaarticulação previsivel dos conteúdos.

11.3 A mensagem

Uma tal concepção da armadura deixa prever que amensagem, isto é, a significação particular do mito-ocor­rência, se situa, ela também, sobre duas isotopias simul­taneamente e dá lugar a duas leituras diferentes, uma

informações do contexto. Nesta perspectiva, pode tomarduas formas diferentes: 1) pode-se pwcurar eJucidar aleitura de um mito-ocorrência comparando-o a outrosmitos ou, de maneira geral, porções sintagmáticas danarrativa a outras porções sintagmáticas; 2) pode-se co­locar em correlação tal elemento narrativo com outroselementos comparáveis.

O estabelecimento da corr~lação de dois elementosnarrativos não idênticos pertencendo a duas narrativasdiferentes leva a reconhecer a existência de uma disjun­ção paradigmátíca que, operando no interior de uma ca­tegoria semântica dada, faz com que se considere osegundo elemento narrativo como a transformação doprimeiro. Entretanto - e isto é o mais importante ­constata-se que a transformação de um dos elementostem por conseqÜência provocar transformações em cadeiaao longo de toda a seqÜência. Esta constatação, por suavez, comporta as duas conseqÜências teóricas seguintes:

19 ela permite afirmar a existência de relações neces­sárias entre os elementos cujas conversões são concomi­tantes;

29 permite delimitar os sintagmas narrativos danarrativa mítica, definíveis simultaneamente por seus ele­mentos constitutivos e por seu encadeamento necess~rio;

39 finalmente, permite definir os elementos narrativoseles mesmos não mais somente por sua correlação para­digmática, isto é, no fundo, pelo procedimento da comu­tação, há pouco proposto por Lévi-Strauss, mas tambémpor sua colocação e sua função no interior da unidadesintagmática da qual fazem parte. A dupla definição doelemento narrativo corresponde, como se vê, ao enroqueconvergente, pragueano e dinamarquês, da definição dofone ma.

E' inÚtil insistir sobre a importância desta definiçãoformal das unidades narrativas cuja extrapolação e apli­cação a outros universos sem"ãnticos não podem deixarde se impor. No estágio atual, ela só pode consolidarnossas tentativas de delimitação e de definição de taisunidades a partir das análises de V. Propp. Não podendoproceder aqui a verificações exaustivas diremos simples-

675'66

podem corresponder às operações lingüísticas de trans­formação, dando conta das ínversões de conteúdo.

Uma tal concepção da mensagem que seria lisive!sobre duas isotopias distintas, das quais a primeira seriaapenas a manifestação discursiva da segunda, não étalvez senão uma formulação teórica. Ela pode corres­ponder somente a uma subclasse de narrativas (os contospopulares, por exemplo), enquanto que uma outra sub­classe (os mitos) seria caracterizada pela imbricação, emuma única narrativa, das seqÜências situadas ora sobreuma, ora sobre a outra das duas isotopias. Isto nosparece secundário na medida em que (a) a distinção queacabamos de estabelecer enriquece nosso conhecimento domodelo narrativo e pode mesmo servir de critério à clas­sificação das narrativas, (b) na medida em que, igual­mente, ela separa nitidamente dois procedimentos dedescrição distintos e complementares, contribuindo assimà elaboração de técnicas de interpretação.

IrA O código

A reflexão mitológica de Lévi-Strauss, desde seu primeiroestudo sobre a Strueture du Mytlze até os MytllOlogiquesde hoje, está marcada por uma mudança de interesse que,dirigido inicialmente sobre a definição da estrutura domito-narrativa, compreende agora a problemática da des­crição do universo mitológico, concentrada primeiro sobreas propriedades formais da estrutura acrônica, encaraatualmente a possibilidade de ul11a descrição comparativaque seria simultaneamente geral e histórica. Esta intro­dução do comparativismo contém contribuições metodo­lógicas importantes que é necessário explicitar.

IIA.t. A definição das unidades narrath'as

A utilização, por via de comparação, dos dados que podefornecer o universo mitológico é, à primeira vista, apenasuma exploração, concebida sob um certo ângulo, das

mente, a título de hipótese, que três tipos caracterizadosde sintagmas narrativos podem ser reconhecidos:

19 os sintagmas performanciais (provas);29 os sintagmas contra tuais (estabelecimentos e

rupturas de contrato);

39 os sintagmas disjuncionais (partidas e regressos)Vê-se que a difinição dos elementos e dos síntagmas

narrativos não é obtida a partir do conhecimento docontexto, mas da metodologia geral de estabelecimentodas unidades lingüisticas e que as unidades assim defi­nidas o são com vantagem para o modelo narrativo, istoé, da armadura.

11.4.2. Delimitações e reconversões

o conhecimento teórico das unidades narrativas podedesde logo ser explorado ao nível dos procedimentos dedescrição. Assim, a colocação em paralelo de duas se­qüências quaisquer, das quais uma é a seqüência a inter­pretar e a outra, a seqüência transformada, pode ter doisobjetivos diferentes:

19 Se a seqüência a interpretar parece situar-se so­bre a isotopia presumida para o conjunto da narrativa,a comparação permitirá determinar, no interior da se­

qüência dada, os limites dos sintagmas narrativos queali estão contidos.

E' preciso entretanto prevenir contra a concepçãosegundo a qual ossintagmas narrativos, correspondendoàs seqüências do texto, seriam eles mesmos contínuos eamalgamados: sua manifestação, ao contrário, toma comfreqüência a forma de significantes descontínuos, de talmodo que a narrativa, analisada e descrita como umasérie de sintagmas narrativos, deixa de ser sincrônica eisomorfa em relação ao texto tal corno se apresenta emestado bruto.

29 Se a seqüência a interpretar parece invertida emrelação à isotopia presumida, a comparação, confirmandoesta hipótese, permitirá proceder à reconversão do sin-

68

tagma narrativo reconhecido e ao restabelecimento daisotopia geral.

Utilizando o termo de reconversão, proposto porHjelmslev no seu Langage, nós esperamos introduzir umanova precisão, a fim de distinguir as verdadeiras trans­formações, isto é, as inversões dos conteúdos, correspon­dendo seja às exigências do modelo narrativo, seja àsmutações intermíticas, das manifestações antifrásicas dosconteúdos invertidos e cuja reconversão, necessária aoestabelecimento da isotopia, não muda nada do statusestrutural do mito.

Notemos aqui, rapidamente, que o procedimento dereconversão que acabamos de examinar, não deixa delevantar o problema teórico mais geral, o da existênciade dois modos narrativos distintos que se poderiam de­signar com o modo deceptivo e o modo verídico. Emborase apoiando sobre uma categoria gramatical fundamental,a do ser versus parecer, que constitui, como se sabe, aprimeira articulação semântica das proposições atributi­vas, o jogo da decepção e da verdade provoca o imbri­camento narrativo, bem conhecido em psicanálise, queconstitui freqüentemente uma das principais dificuldadesda leitura, porque cria, no interior da narrativa, camadashierárquicas de decepção cstilística, cujo número resta emprincípio indefinido.

IIA.3. Contexto e dicionário

A exploração das informações fornecidas pelo contextomitológico parece, por conseguinte, situar-se ao nível doselementos narrativos que se manifestam no discurso soba forma de lexemas. E' preciso ainda distinguir as ca­racterísticas formais, que eles comportam necessariamen­te, de suas características substanciais. As primeiras são(1) ou propriedades gramaticais que fazem com que os!exemas sejam, por exemplo, ou bem actantes ou bempredicados, (2) ou propriedades narrativas que eles tiramda definição funcional do papel que assumem tanto nointerior do sintagma narrativo quanto na narrativa con-

69

siderada em seu conjunto. Assim, os actantes podem serSujeitos-heróis ou Objetos-valores, Destinadores ou Des­tinatários, Oponentes-traidores ou Adjuvantes-forças be­néficas. A estrutura actancial do modelo narrativo fazparte da armadura, e os jogos das distribuições, dasacumulações e das disjunções dos papéis fazem parte dosavoir-faire do descritor anteriormente à utilização docódigo.

Estas precisões são introduzidas apenas para esta­belecer uma nítida separação entre exploração do contextoe exploração dos conhecimentos relativos ao modelonarrativo. O contexto apresenta-se sob a forma de con­teúdos investidos, independentes da própria narrativa eassumidos a posteriori pelo modelo narrativo. Estes con­teúdos investidos são, ao mesmo tempo, já conteúdosconstituidos: do mesmo modo que um romancista cons­titui pouco a pouco, prosseguindo sua narrativa, seuspersonagens a partir de um nome próprio arbitrariamenteescolhido, assim a efabulação mítica ininterrompida cons­tituiu os atores da mitologia, providos de conteúdos con­ceituais, e é este conhecimento difuso dos conteúdos, queos bororos possuem e não o descritor, que forma a ma­téria primeira do contexto e que se trata de organizarem código.

Sendo dado que estes conteúdos constituidos estãomanifestados sob a forma de lexemas, pode-se considerarque o contexto em seu conjunto é redutível a um dicio­nário mitológico no qual a denominação «jaguar» estariaacompanhada de uma definição comportando, (1) de umlado, tudo que se sabe sobre a «natureza» do jaguar (oconjunto de suas qualificações e, (2) do outro, tudo oque o jaguar é suscetível de fazer ou sofrer (o conjuntode suas funções). O verbete «jaguar» não seria, nessecaso, muito diferente do artigo «mesa», cuja definição,proposta pelo Dictionnaire générale de Ia langlle fran­çaise, é:

I? qualificativa: «superfície plana de madeira, pe­dra, dc., suportada por um ou diversos pés» e

29 funcional: «sobre a qual colocam-se objetos (paracomer, escrever, trabalhar, brincar, etc.) ».

70

Este dicionário (com a condição de que não com­porte os etc.) poderia prestar grandes serviços:

J o permitindo resolver, em uma certa medida, ambi­gÜidades de leitura dos enunciados míticos, graças aosprocedimentos de seleção de compatibilidades e de ex­clusão de incompatibilidades entre os diferentes sentidosde lcxemas;

2(' facilitando a ponderação da narrativa, isto é, per­mitindo (a) preencher as lacunas devidas à utilizaçãolitótica de certos lexemas e (b) condensar certas seqÜên­cias em expansão estilistica, os dois procedimentos para­lelos visando a estabelecer um equilíbrio econômico nanarração.

11.4.4. Dicionário e código

Infelizmente, um tal dicionário, para ser constituído eutilizado, pressupõe uma classificação prévia dos conteú­dos constituídos e um conhecimento suficiente dos mode­los narrativos. Assis, limitando-se unicamente aos lexe­mas-actantes, poder-se-ia dizer que eles surgem todos deUill «sistema dos seres» do qual fala Lévi-Strauss, de umsistema que classificaria todos os seres animados ou sus­cetíveis de animização, indo dos espíritos sobrenaturaisaté os «seres» minerais. Mas percebe-se imediatamenteque uma tal classificação não seria «verdadeira» em si:dizer, por exemplo, que o jaguar pertence à classe dosanimais não tem sentido, mitologicamente falando. Amítologia não se interessa senão pelos quadros classifica­t{nios, ela só opera com os «critérios de classificação»,isto é, categorias sêmicas, e não com os lexemas que seencontram assim classificados. Este ponto, metodologica­mente importante, merece ser precisado.

I. Suponhamos que uma oposição categórica, a dehumanos versus animais, encontra-se posta em correlação,no interior de uma narrativa, com a categoria do modelonarrativo: anterioridade versus posteridade. Neste caso,ela funcionará como uma articulação dos conteúdos tópicosem conteúdos colocados e conteúdos invertidos: segundo

71

72

cru + fresco + animal ~ cru + fresco + vegetal(jaguar) (cervo)

e a transformação lingüística resume-se em uma substi­tuição paradigmática no interior da categoria (alimento)animal versus vegetal, cuja justificação deve ser pro-

73

curada ao nível das exigências estruturais do modelonarrativo.

Em relação ao dicionário que continuamos a ter emvista, o exemplo presente é o oposto do que havíamosestudado em (1):

a) no primeiro caso, a denomínação 'não muda, en­quanto que o conteúdo muda;

b) no segundo caso, a denominação muda, o con­teúdo muda também, mas parcialmente.

O que dá conta dessas mudanças é, por conseguinte,a análise sêmica dos conteúdos e não a análise situadaao nível dos lexemas. O dicionário, para ser completo,deveria portanto poder indicar as séries de denominaçõesequivalentes, como resultado das transformações reconhe­cidas ao nível do código. Resulta disso que o dicionário,cuja necessidade para a interpretação automática dosmitos pareceria imperiosa, só se pode constituir em fun­ção dos progressos conseguidos em nosso conhecimentoda armadura e do universo mitológico articulado em có­digos particulares: um verbete de dicionário só teráconsistência no dia em que for solidamente enquadradopor um conjunto de categorias semânticas elaboradasgraças às outras componentes da teoria interpretativa dosmitos.

11.4.5. Código e manifestação

Nossos esforços para precisar as condições nas qj.1aisum dicionário mitológico seria possível e rendável permi­tem-nos compreender melhor o que é preciso entender,na perspectiva de Lévi-Strauss, por código e, mais parti­cularmente, por código alimentar. O código é uma estru­tura formal (1) constituída por um pequeno número decategorias sêmicas (2) cuja combinatória é suscetível dedar conta, sob a forma de sememas, do conjunto deconteúdos investidos que fazem parte da dimensão esco­lhida do universo mitológico. Assim, a título de exemplo,

Iit'iJ

\~,

tt

I,

depois

(do) cru + fresco

antes

(do) cozido + fresco

os termos correlatos, dir-se-á que os humanos eram anti­gamente animais, ou inversamente. Sobre o plano lexe­mático entretanto, o jaguar poderá passear ao longo detoda a narrativa sem mudar de denominação: na primeiraparte, ele será um ser humano, na segunda, um animal,ou inversamente. - Dito de outro modo, o conteúdo doIcxema «jaguar» não é somente taxinômico, ele é aomesmo tempo posicional.

2. Entre os numerosos «efeitos de sentido» que podecomportar o lexema «jaguar», o que finalmente seráreconhecido como pertinente para a descrição dependeda isotopia geral da mensagem, isto é, da dimensão douniverso mitológico da qual o mito particular é a ma­nifestação. Se a dimensão tratada é a da cultura alimen­tar, o jaguar será considerado em sua função de consu­midor, e a análise sêmica de seu conteúdo permitirá vernele, em correlação com o antes versus depois narrativos,como consumidor: Por

conseguinte, dizer que o jaguar é mestre do fogo não écorreto: ele o é apenas em certas posições e não emoutras. O dicionário em vista deve comportar não somenteas definições positivas e invertidas do jaguar, ele pres­supõe a classificação do universo mitológico segundo asdimensões culturais fundamentais que pode comportar.

3. Existem, finalmente, transformações de elementosnarrativos que se situam não entre os mitos, mas nointerior do mito-ocorrência. Este é o caso do nosso mito

referência que apresenta a metamorfose do herói-jaguarem herói-cervo. Sobre o plano de código alimentar, tra­ta-se muito simplesmente da transformação do consumidordo

o código alimentar poderia ser apresentado, parcialmente,sob forma de uma árvore:

cru vscozido/ ~fresco

podre/ \ /\animal

vegetalanimalvegetal(jaguar)

(cervo)(urubu)(tartaruga)

Caso se considere que cada percurso, de cima parahaixo, dá conta de uma combinação sêmica constitutivade um semema e que cada semema representa um con­teÚdo investido como «objeto de consumo», vê-se quea combinatória visa a esgotar, nas condições estabelecidasa priori, todos os conteúdos-objetos de consumo possiveis.

A caela semema corresponde, por outro lado, sobreo plano da manifestação narrativa, Iexemas particulares(que colocamos entre parênteses). A relação que existeentre o lexema e o semema que dá conta de seu conteúdoé constrangedora ele duas maneiras diferentes:

19 O ]exema manifestado aparece cada vez comosujeito de consumo em relação ao semema que é objetode consumo. Trata-se pois de uma relação constante,definida semanticamente e que se pode considerar comoa distância estiUstica entre o plano da manifestação e oplano do conteúdo.

29 A escolha desta ou daquela figura animal paramanifestar ta] combinação códica do conteúdo não de­pende da estrutura formal, mas constitui entretanto umfechamento do carpas mitológico como se encontra ma­nifestado numa comunidade cultural dada. Isto quer dizerque o inventário ]exemático de uma mitologia (quer dizer,() dicionário) representa uma combinatória relativamenteaberta. Compreende-se deste modo que o mesmo códigopode dar conta de diversos universos mitológicos compa­ráveis, mas manifestados de maneira diferente e queconstitui assim, desde que seja bem construido, um mo­delo geral que fundamenta o comparativisll1o mitológico.

74

,

I

ifi!

A armadura e o código, o modelo narrativo e omodelo taxinômico são, por conseguinte, as duas compo­nentes de uma teoria da interpretação mitológica e alisibilidade maior ou menor dos textos miticos é funçãodo conhecimento teórico dessas duas estruturas cujo en­contro tem o efeito de produzir as mensagens miticas.

]]1. A MENSAGEM NARRATIVA

II 1.1. A práxis descritiva

Teoricamente pois, a leitura da mensagem mitica pressu­põe o conhecimento da estrutura do mito e a dos prin­cípios organizadores do universo mitológico do qual é amanifestação realizada nas condições históricas dadas.Praticamente, este conhecimento é apenas parcial, e adescrição aparece assim como uma práxis que, operandoconjuntamente com a mensagem-ocorrência e os modelosda armadura e do cÓdigo, consegue aumentar simultanea­mente nosso conhecimento da mensagem e o dos modelosque lhe são imanentes. - Seremos portanto obrigadosde partir do plano manifestado e de suas isotopias va­riadas, procurando ao mesmo tempo atingir a isotopiaestrutural única da mensagem e definir, na medida dopossivel, os procedimentos permitindo efetuar esta pas­sagem.

Após ter dividido o texto em seqüências correspon­dentes às articulações de conteúdo previsiveis, tentaremosanalisar cada seqüência separadamente, procurando deli­mitar, com a ajuda de uma transcrição normalizada, oselementos e os sintagmas mÍticos que contém.

111. 2. A divisão em seqüências

A articulação presumida do conteúdo segundo as duascategorias de

conteúdo tópico vs conteúdo correlatoconteúdo colocado vs conteúdo invertido

permite a divisão do texto em quatro seqüências. Asduas seqüências tópicas parecem entretanto suscetíveis de

75

76

III.3. A transcrição em unidades narrativas

A transposição que vamos operar consiste:

2" retendo somente as unidades narrativas reconhe­cidas, ele permite a eliminação dos elementos da narra­tiva não pertinentes à descrição e a explicação de outroselementos que lhe são indispensáveis;

IIIA.I. A seqüência inicial

1Q permitindo separar as unidades narrativas, eleconstitui os quadros formais no interior dos quais osconteúdos poderão em seguida serem vertidos e correta­mente analisados;

do mito, abandonando provisoriamente ao texto os con­teúdos da mensagem propriamente ditos.

As finalidades dos procedimentos propostos são ·asseguintes:

77

3Q ele deve permitir, finalmente, a identificação e aredistribuição das propriedades semânticas dos conteúdosque lhe provêm do modelo narrativo, seja da posição dosconteúdos que lhe provêm do modelo narrativo, seja daposição dos conteÚdos no interior da narrativa, seja dastransformações comandadas pelo modelo.

Os limites deste artigo não nos permitem justificarplenamente esta transcrição. Precisamos somente que,preocupados em primeiro lugar pelo estabelecimento dossintagmas narrativos, procederemos, em uma primeiraetapa, à normalização das funções que poderemos reunirem algo ritmos, para retomar em seguida a análise dosactantes da narrativa.

«Em tempos muito antigos, aconteceu que as mulheresforam à floresta, para colher as palmas que serviam àconfecção de «meias»: protetores do pênis entregues aosadolescentes por ocasião da iniciação. U!TI rapazinho se­guiu sua mãe às escondidas, surpreendeu-a e violou-a.

Quando esta chegou de volta, seu marido notou asplumas arrancadas, ainda presas ao cinto de casca deárvore e semelhantes àquelas com que se ornamentam os

II

ConteúdoCorre1ato

FinalVingança

Conteúdo colocado

Conteúdo t6pico

Retôrno

NARRATIVA MITlCA

Conteúdo t6pico

Ninho I Ninhodas almas das araras

Conteúdo invertido

Inicial

ConteúdoCorrelato

Seqüênciasnal'"rallva;s

CONTEÚDOS

uma nova subdivisão, cada uma comportando séries deacontecimentos situados sobre duas isotopias aparente­mente heterogêneas: a primeira compreende duas expe­dições. sucessivas do herói, a segunda separa espacial­mente os acontecimentos relativos ao retôrno do herói,situando alguns na aldeia, outros na floresta. Esta se­gunda divisão pragmática, que teremos de justificar maistarde, permite pois desarticular a narrativa em seis se­qÜências:

1Q na apresentação do texto sob a forma canônicade enunciados narrativos comportando cada um sua fun­ção, seguida de um ou vários actantes;

2Q na organização dos enunciados em algo ritmosconstitutivos de sintagnzas narrativos.

Uma tal transcrição é de natureza seletiva: só extraido texto as informações que são esperados em vista doconhecimento das propriedades formais do modelo nar­rativo. (Tentaremos aplicar aqui à análise da narrativamítica as formulações das unidades narrativas, obtidasessencialmente como resultado do reexame da estruturado conto popular de Propp; cf. nossa Sémantique s/me­tura/e, Laroussc, J 966). A narrativa assim transcritaapresenta apenas, por conseguinte, a armadura formal

78

Comentário

(em sincre·tismo)

(roubo dosinstrumentos)

IV. Prova principalLuta + vitória (filho; espíritos aquáticos)

Conseqüência: liquidação da falta (filho)

!. ContratoProposição (pai) vs Aceitação (filho)

lI. Prova qualificanteProva hipotáxica (avó; filho) (consulta)Conseqüência: recepção do ajudante (3 ajudantes)

IlI. DtsjunçãoPartida (filho) + Deslocamento horizontal rápido (filho +

ajudantes)

lhe trazer o grande chocalho de dança (bapo), que dese­ja. O rapaz consulta sua avó, e esta revela-lhe o perigomortal que se liga à empresa; recomenda-lhe conseguira ajuda do beija-flor.

Quando o herói, acompanhado do beija-flor, chegaà morada aquática das almas, espera na margem, enquan­to o beija-flor voa com presteza, corta o cordão pelo qualestá suspenso o chocalho: o ,instrumento cai n'água eressoa, «jo!». Alertadas pelo ruído, as almas atiram suasflechas. Mas o beija-flor voa tão depressa que reganhaa margem indene, com sua presa.

O pai ordena então a seu filho que lhe traga opequeno chocalho das almas, e o mesmo episódio se re­produz, com os mesmos detalhes, o animal ajudante sen­do desta vez a juriti de vôo rápido (Leptoptila sp., umpombo). No decorrer da terceira expedição, o rapaz seapodera dos butoré: guizos barulhentos feitos com cascode caititu (Dycotylts torquatus) enfiados num cordão eque se usa enrolado em torno do tornozelo. Foi ajudadopelo gafanhoto (Ecridium cristatum, E. B., vol. t, pág.780), cujo vôo é mais lento que os dos pássaros, demodo que as flechas o atingiram diversas vezes, mas semmatá-Io.»

79

lI!. bis. ConjunçãoDeslocamento horizontal rápido + retorno (filho)

r. bis. Realização do contratoLiquidação da falta (filho)Não restabelecimento do contrato (Pai).

Conseqilência geralQualificação do herói

I

(violação)(a mãe émarcada.

não o filho)

Conseqiiéncias geraisPunição do traidor (pai; filho)

r. DECEPÇAOa) Di.~junção

Partida (mulheres) + deslocamento deceptivo (filho)b) ProvaLuta + Vitória (filho; mãe)Conseqüência: marca invertida (mãe)

11. REVELAÇAOa) Conjunção

Retorno (mãe; filho) + Reconhecimento da marca (pai;mãe)b) Prova

Prova glotificante simulada e invertida (pai; adolescentes)(dança e não luta; traidor e não herói)

Conseqüência: revelação do traidor (filho) (e não doherói)

jovens. Suspeitando de alguma aventura, ordenou que sefizesse uma dança, para saber que adolescente usava umornamento semelhante. Mas, para seu grande estupor,constata que somente seu filho estava neste caso. Ohomem reclama uma nova dança, com o mesmo re­sultado.»

A comparação da seqüência transcrita com o esque­ma narrativo permite ver que esta corresponde, na eco­nomia geral da narrativa, ao nível do conteúdo invertido,à decepção do poder e, ao nível do conteudo colocado, àpunição do traidor: o possuidor encontra-se privado, pelocomportamento deceptivo do antagonista, de um objetomágico (não natural) que lhe conferia um certo poder.O sujeito «frustrado» não o pode recuperar a não ser queo traidor seja inicialmente reconhecido e, a seguir, punido.'- A parte tópica da narrativa que daí decorre será apunição do filho-traidor, ordenada pelo pai que se tornouimpote'nte (de um modo não natural).

IIIA.2. Expedição ao ninho das almas

«Persuadido de seu infortÚnio e desejoso de vingar-se,ele envia o filho ao «ninho» das almas, com a missão de

Conseqüência; sucesso da prova.

c) DisjunçãoPartida (filho; pai) + Deslocamento ascensional

(filho)

absorção docru podre)

(caça e absorçãocarne crua animal)

(morte do herói)

81

d) Prova principalLuta -+ Vitória (pai; filho)

lagartos)da

Conseqüência: fracasso da provab) Prova positiva

Luta + Vitória (urubus; filho) (caça e

(confronto deceptivo:inversão dos papéis)

Conseqüência: retomada do deslocamento (filhoe) Conseqüência contratual: suspensão do contrato

11. ALIMENTAÇAO ANIMALa) Prova negativa

Luta + Vitória (filho;

1.SUSPENSAO DO CONTRATOa) Contrato

Proposição (pai) + Aceitação (filho)b) Prova qualijicante

Prova hipotáxica (avó; filho) (consulta)ConseqUência: recepção do ajudante (filho) (o

bastão)

sobre ele, devorando primeiro os lagartos, e depois ata­cando o próprio corpo do infeliz, começando pelasnádegas. Reanimado pela dor, o herói expulsa seus agres­sores, mas não antes que eles tivessem devorado com­pletamente sua parte traseira. Assim satisfeitos, os pás­saros tornam-se salvadores: com seus bicos, levantam oherói pelo cinto e pelas faixas dos braços e das pernas,retomam o vôo e o depositam docemente ao pé damontanha.

O herói volta a si, «como se acordasse de um so­

nho». Tem fome, come frutas selvangens, mas percebe que,privado da parte traseira, não pode guardar () alimento:este escapa de seu corpo mesmo sem ter sido digerido.Inicialmente perplexo, o rapaz lembra-se de um conto desua avó, em que o herói resolvia o mesmo problemamodelando-se 11m posterior artificial, com uma massafeita de tubérculos esmagados.

Após ter, deste modo, reencontrado sua integridadefísica c enfim· se alimentado ... »

AnaliSr Estrutural .-- fi80

1. Encontramos nesta seqÜência um certo número decaracterísticas estruturais da narração bem conhecidas:a) o caráter muitas vezes implícito da prova qualificanteque só se manifesta pela conseqüência, b) a inversãosintagmática resultante do caráter deceptivo da prova,em que o roubo, seguido da perseguição, substitui-se àluta aberta, c) o sincretismo das funções que constituema perseguição, analisável em luta + deslocamento rápido,d) a triplicação da seqüência, cuja significação só podeser encontrada por uma análise sêmica dos ajudantes(ou dos objetos do desejo).

2. Em relação à economia geral, a seqÜência trans­crita deve corresponder à qualificação do herói.

Comentário

IIIA.3. Expedição ao ninho de araras

«Furioso por ver seus planos frustrados, o pai convidao filho para ir com ele capturar araras que fazem seusninhos no flanco do rochedo. A avó não sabe bem comoenfrentar o novo perigo, mas entrega ao neto um bastãomágico ao qual ele se poderá segurar, em caso de queda.

Os dois homens chegam ao pé da muralha; o paiergue uma longa vara e ordena ao filho subir nela. Logoque este atinje a altura dos ninhos o pai retira a vara;o rapaz tem apenas tempo de enfiar seu bastão numarachadura. Ele fica suspenso no vazio, gritando por so­corro, enquanto o pai vai embora.

Nosso herói percebe um cipó ao alcance da mão;alcança-o e iça-se penosamente até o cump-. Após terrepousado, põe-se à procura de alimento, confeccionaum arco e flechas com ramos, caça os lagartos queabundam sobre o platô. Mata grande quantidade deles, ependura os excedentes em sua cintura e nas faixas dealgodão que cercam seus braços e tornozelos. Mas oslagartos mortos apodrecem, exalando um ma] cheiro tãoabominável que o herói desmaia. Os urubus carniceiros(Cathartes urubu, Coragyps atratus foetens) abatem-se

Conseqüência: sucesso da prova.

c) DisjunçãoPartida (filho; pai) + Deslocamento ascensional

(filho)

e absorção docru podre)

(caça e absorçãocarne crua animal)

(morte do her6i)

81

d) Prova principalI,uta + Vitória (pai; filho)

lagartos)da

Conseqüência: fracasso da provab) Prova positiva

Luta + Vitória (urubus; filho) (caça

(confronto deceptivo:inversão dos papéis)

ConseqUência: retomada do deslocamento (filhoe) Conseqüí!nda contratual: suspensão do contrato

lI. ALIMENTAÇÃO ANIMALa) Prova negativa

Luta + Vitória (filho;

I. SUSPENSÃO DO CONTRATOa) Contrato

Proposição (pai) + Aceitação (filho)b} Prova qualificante

Prova hipotáxica (avó; filho) (consulta)Conseqüência: recepção do ajudante (filho) (o

bastão)

sobre ele, devorando primeiro os lagartos, e depois ata­cando o próprio corpo do infeliz, começando pelasnádegas. Reanimado pela dor, o herói expulsa seus agres­sores, mas não antes que eles tivessem devorado com­pletamente sua parte traseira. Assim satisfeitos, os pás-osaras tornam-se salvadores: Com seus bicos, levantam oherói pelo cinto e pelas faixas dos braços e das pernas,retomam o vôo e o depositam docemente ao pé damontanha.

O herói volta a si, «como se acordasse de um so­nho». Tem fome, come frutas selvangens, mas percebe que,privado da parte traseira, não pode guardar o alimento:este escapa de seu corpo mesmo sem ter sido digerido.Inicialmente perplexo, o rapaz lembra-se de um conto desua avó, em que o herói resolvia o mesmo problemamodelando-se 11m posterior artificial, com lima massafeita de tubérculos esmagados.

Após ter, deste modo, reencontrado sua integridadefísica e enfim· se alimentado ... »

Anàlis~ Estrutural o fi

1. Encontramos nesta seqÜência um certo número decaracterísticas estruturais da narração bem conhecidas:a) o caráter muitas vezes implícito da prova qualificanteque só se manifesta pela conseqÜência, b) a inversãosintagmática resultante do caráter deceptivo da prova,em que o roubo, seguido da perseguição, substitui-se àluta aberta, c) o sincretismo das funções que constituema perseguição, analisável em luta + deslocamento rápido,d) a triplicação da seqÜência, cuja significação só podeser encontrada por uma análise sêmica dos ajudantes(ou dos objetos do desejo).

2. Em relação à economia geral, a seqÜência trans­crita deve corresponder à qualificação do herói.

Comentário

80

III.4.3. Expedição ao ninho de araras

«Furioso por ver seus planos frustrados, o pai convidao filho para ir com ele capturar araras que fazem seusninhos no flanco do rochedo. A avó não sabe bem comoenfrentar o novo perigo, mas entrega ao neto um bastãomágico ao qual ele se poderá segurar, em caso de queda.

Os dois homens chegam ao pé da muralha; o paiergue uma longa vara e ordena ao filho subir nela. Logoque este atinje a altura dos ninhos o pai retira a vara;o rapaz tem apenas tempo de enfiar seu bastão numarachadura. Ele fica suspenso no vazio, gritando por so­corro, enquanto o pai vai embora.

Nosso herói percebe um cipó ao alcance da mão;alcança-o e iça-se penosamente até o cume. Após terrepousado, põe-se à procura de alimento, confeccionaum arco e flechas com ramos, caça os lagartos queabundam sobre o platô. Mata grande quantidade deles, ependura os excedentes em sua cintura e nas faixas dealgodão que cercam seus braços e tornozelos. Mas oslagartos mortos apodrecem, exalando um mal cheiro tãoabominável que o herói desmaia. Os urubus carniceiros(Cathartes urubu, Coragyps atratus {oetens) abatem-se

Comentário

III.4.4. O retomo do herói

filho)

83

I. RETORNO DO HER6Ia) Retorno negativo

Partida (filho) + Deslocamento horizontal (filho) (a par­tir do lugar da prova)

Retorno deceptivo (filho) (não conjunção pelo fato daausência do ponto ad quem)

b) Retorno positivoPartida redundante (filho) + Deslocamento (filho)Prova hipotáxíca (avó; filho) (consulta)Conseqüência: recepção do ajudante (filho) (marcas do

bastão)Retorno verdadeiro incógnito Oargato)

Oargatofilho)

Ele volta à sua aldeia, mas encontra o lugar abandonado.Por muito tempo, vagueia à procura dos seus. Um dia,nota marcas de passos e de um bastão, que reconhececomo sendo o de sua avó. Segue os traços, mas, temendomostrar-se, transforma-se num lagarto cujos movimentosintrigam longamente a velha e seu segundo neto, irmãomais moço do precedente. Decide enfim manifestar-se aeles sob seu aspecto verdadeiro. (Para reencontrar a avó,o herói transforma-se sucessivamente em quatro pássarose uma borboleta, não identificados, Colb. 2, pp. 235-236).

Nesta noite, houve uma violenta tempestade acom­panhada por um aguaceiro, e todos os fogos da aldeiase apagaram, com exceção do da avó, a quem, na manhãseguinte, todo o mundo veio pedir brasas notadamente asegunda mulher do pai assassino.»

Reconhecimento da marca (avó;11. LIQUIDAÇÃO DA FALTA

a) Liquidação negativaAtribuição da água malfazeja + Privação do fogo ben.

fazejob) Liquidação positiva

Atribuição do fogo benfazejo (avó; comunidade)Reconhecimento do herói marcado (madrasta)Não revelação do herói (pai; filho) (acolhimento co­

mum e não glorificante)Conseqüência geral: revelação do traidor e sua punição

1. Notar-se-á inicialmente o paralelismo entre as seqüên­cias 3 e 4: à duplicação das provas negativa e positiva

lI!. ALIMENTAÇÃO VEGETALa) Disjunção

Deslocamento descensional (filho) (em sincretismocom a prova precedente: comportamento benfazejodos oponentes > ajudantes)

b) Prova negativaLuta simulada (filho; frutos selvagens) (colheita e

não caça)Vitória deceptiva (filho) (absorção de alimento vege­tal fresco)Conseqüência: fracasso da prova (impossibilidade de

alimentar-se)c) Prova positiva

Prova qualificante hipotáxica (avó; filho) (consultaem lembrança)

Conseqüência: recepção do ajudante (filho) (ajudantevegetal)

Prova principal:Luta simulada redundante + Vitória (filho; frutos

selvagens)Conseqüência: sucesso da prova Oíqüídação da falta:

impOSSibilidade de alimentar-se)Conseqüência geral:

Liqüídação da falta (aquiSição de certos modos dealimentação)

82

Comentário

1. A transição semântica desta seqÜência faz ressaltaruma das características estruturais do mito estudado: eleaparece cada vez mais como uma construção hipotáxicadesenvolvendo, em diversos níveis, os mesmos esquemasnarrativos. Assim, a seqÜência da qual nos ocupamos nomomento corresponde, na economia geral da narrativa, àprova principal; considerada em si mesma, ela realizaentretanto, sozinha, o esquema narrativo no qual o algo­ritmo «suspensão do contrato» toma lugar como provaqualificante; este, por sua vez, aparece após a transcri­ção, como uma narrativa autônoma comportando umaprova qualificante e uma prova principal. Resulta daí amanifestação do esquema narrativo sobre três níveis hie­rárquicos diferentes: um sintagma narrativo, seguindo onível em que sua leitura está situada, é pois susceptívelde receber sucessivamente diversas interpretações.

2. Uma outra característica do modelo narrativo: aprova pelo absurdo, que ainda não tínhamos encontrado,aparece pela primeira vez nesta seqÜência.

I

corresponde aqui, primeiramente, o retôrno negativo epositivo e, em seguida, a liquidação da falta sob suasduas formas negativa e positiva.

2. Notar-se-á, como procedimento característico, ademonstração pelo absurdo da impossibilidade de resta­belecer o contrato, devido ã ausência do destinador aoqual o objeto da busca deveria ser entregue, o que ne­cessita uma nova busca de um novo destinador (avó).

3. Notar-se-á ainda, como característica deste mitoparticular, o fato de que situa o conteúdo invertido (istoé, pelo que sabemos até este estágio da análise, a au­sência do fogo) não no tempo mítico de antigamente,mas no cotidiano de hoje e apresentado como uma extin­ção acidental do fogo. A descrição deve, em casos comoeste, operar a reconversão do cotidiano em mítico: vê-seque o procedimento ele próprio se define, à primeira vista,como uma conversão estilistica.

III.4.5. A vingança

«Ela reconheceu seu enteado, tido por morto, e correupara advertir O marido. Como se não fosse nada, esteapanhava seu chocalho ritual e acolhe seu filho com oscantos destinados a saudar o retôrno dos viajantes.

Entretanto, o herói sonha em se vingar. Um diaquando passeia na floresta com seu irmão menor, quebraum galho da árvore api, ramificado como chifres. Agindosegundo instruções do mais velho, o menino solicita eobtém de seu pai que ordene uma caça coletiva; trans­formado no pequeno roedor mea, localiza sem se deixarver o lugar onde seu pai se coloca ã espreita. O heróiarma então sua testa com os falsos chifres, transform.a-seem cervo, e ataca seu pai com tal impetuosidade que oespeta. Sempre galopando, dirige-se a um lago, onde pre­cipita sua vítima.~

r. Contrato deceptivoDecepção (innão) + Submissão (pai) (decepção do

"querer")Ordem (pai) + Aceitação (homens) (pai: falso man­

dante)

84

T

H. DisjunçãoPartida (pai; homens) + Deslocamento horizontal (pai;

homens) (disjunção dos lares da aldeia)IH. Prova qualijicante

Transformação do ajudante em deceptor (irmão ~mea) + Extorsão das informações (mea) (decepçãodo "saber": o caçador torna-se caçado)

Conseqüência: recepção do ajudante (falsos chifres demadeira)

Prova qualificante (filho) (Transformação do herói emvítima simulada: cervo)

IV. Prova principalLuta (pai; filho) (o falso caçador contra o falso caçado)Vitória (filho) (a falsa vitima sal vitoriosa)Conseqüência: deslocamento (pai) (disjunção da comu-

nidade)Conseqüência geral: punição do traidor

Comentário

1. A seqüência inteira desenrola-se sobre o modo de­ceptivo. Somente, contrariamente ao que se passa emoutras narrativas, a decepção não se apresenta aqui a)nem como a conversão do conteúdo da seqüência, talcomo se manifesta na Expedição ao ninho das almas,em que o elemento narrativo invertido, provocando asoutras transformações, é o objeto da falta (água versusinstrumentos), nem b) como inversão do sintagma nar­rativo, caracterizada pela inversão das funções em que,por exemplo, o roubo seguido da perseguição, situa sin­tagmaticamente a conseqÜência antes da própria prova- mas como uma inversão na distribuição dos papéisaos actantes previsíveis. Assim, o pai comporta-se comoo organizador da caçada, enquanto é o filho que a or­ganiza de fato; o pai considera-se como caçador, enquan­to na realidade é a vítima vigiada por antecipação; oherói, caçador verdadeiro, disfarça-se, ao contrário, em ví­tima-cervo. - Insistimos sobre este esquema, bastantefreqÜente, porque permite abordar, no futuro, uma tipolo­gia da decepção.

2. A leitura da seqÜência, impossível sem a utiliza­ção do código, pode ser entretanto facilitada pela for­mu[açiío de hipóteses, seja comparando-a às seqüênciasprecedentes, seja procurando determinar, pelo registro

85

das redundâncias, a isotopia própria à seqüência estudadaapenas.

a) O retôrno do herói foi seguido, lembremo-nosdisto, da liquidação negativa da falta sob forma de doisefeitos complementares: afirmação da água malfazeja enegação do fogo benfazejo. A liquidação positiva da faltaapareceu como a afirmação do fogo benfazejo: é lógicosupor que a seqüência estudada neste momento seja des­tinada à manifestaçã.o do termo complementar, isto é, àdenegação da água malfazeja. A hipótese a reter serápois a identificação entre

disjunção do pai = negação da água malfazejao que permite supor a correlação entre o pai e a águamalfazeja.

b) A procura das redundâncias permitindo estabele­cer a isotopia própria apenas à seqüência em estudopermite supor um eixo vegetal (o herói e seu irmão menortransformam-se em vegetarianos; a arma punitiva dotraidor é de origem vegetal). Se isto acontece, a este eixoopõe-se logicamente um eixo animal que deve ser aqueleonde se situa o antagonista que, com efeito, se definepositivamente, como caçador, como o consumidor de ali­mento animal. Se, além disso, se observar que trata-sede ambos os lados de comedores do cru (isto é evidentepara o cervo e o mea, mas convém igualmente ao pai quese encontra distanciado do fogo dos lares), a figura dopai parece entrar em correlação com o cru animal (hipó­tese que, vê-Io-emos, só se verificará parcialmente).

lII.4.6. A seqüência final

«Imediatamente, este é devorado pelos espíritos buiogoêque são os peixes canibais. Do festim macabro restaapenas no fundo da água uma ossada descarnada, e ospulmões que sobrenadam, sob forma de plantas aquáticascujas folhas, diz-se, parecem-se a pulmões.

De volta à aldeia, o herói vinga-se também das es­posas de seu pai (das quais uma é sua própria mãe) ».

86

I. DisjunçãoPartida (pai; filho) + Deslocamento horizontal rápido

(pai; filho)Chegada ao lugar da prova (pai) (imersão = conjunção

com a água)II. Prova negativa

Luta + Vit6ria (piranhas, pai) (absorção da· parte caronal = cru animal)

Conseqüência: morte do herói-traidorlU. Prova positiva

Luta + Vit6ria (pai; piranhas) (não absorção da parteessencial: pulmões + ossada)

Conseqüência: sobrevivência do her6i-traidorIV. Disjunção definitiva

Partida descensional + Transformação em espírito aquá·tico (?) (ossada)

Partida ascensional + Transformação em planta aquática

Comentário

Se analisamos em duas provas distintas o combate dotraidor com os espíritos canibais, é a) para melhor se­parar as duas conseqüências divergentes da prova, mastambém b) para estabelecer um certo paralelismo es­trutural oom as seqüências precedentes.

li 1.5. Os actantes e as relações contratuais

A transcrição à qual acabamos de proceder permitiu com­preender o encadeamento das funções constitutivas dossintagmas narrativos. Mas ao mesmo tempo negligencia­mos o segundo aspecto desta normalização, a transcriçãodos actantes que deixamos provisoriamente sob a formade atores da narrativa, subdivindo assim o procedimentoproposto em duas etapas sucessivas.

Esta codificação dos actantes, se ela é pouco ren­dável para os sintagmas-provas cujo estatuto é simplese cuja estrutura, redundante, encontra sua importânciaquando se trata das unidades contratuais às quais cabe opapel da organização de conjunto da narrativa. As fun­ções que os definem constituem um jogo de aceitaçõese recusas de obrigações entre as partes contratantes eprovocam, em cada momento, novas distribuições e re-

87

88

Atôres Contrato-puniçãoDupla transformaçãoContrato-punição---F~ ~ I~::+(S)+T 0::+5 OJ I O~+ (SJ/-T

------------ - -------Pai O, O, +T T-------

A redundância que marca a ruptura do contrato(contrato suspenso - contrato recusado - contratorompido) e a pr{)cura do novo destinador impedem dever nitidamente a simetria da narrativa devida ao para­lelismo das redistribuições dos papéis entre o pai e ofilho. Pode-se resumi-Ias da maneira seguinte:

89

Comentário

1. Basta reconhecer que existem duas formas distintasdo contrato, 1) contrato voluntário que origina umamissão de salvação e 2) contrato involuntário do qualdecorre uma missão de resgate, e ver na vingança estasegunda Iorma de obrigação contratual, para se dar contade que existe uma articulação cOntratual do modelo nar­rativo em seu conjunto_ A parte tópica do mito apareceentão como a execução do contrato primitivo, decorrenteda seqÜência inicial; a seqÜência final, por sua vez, en­contra-se ligada da mesma maneira ao corpo da narrativa.A partir daí, pode-se formular uma nova correspondên­cia entre a manifestação narrativa e a estrutura do con­teÚdo que está assim manifestado: às correlações entreconteúdos não isótopos do mito, ao nível de sua es­trutura, correspondem as relações contratllais, no nívelda narração.

2. A passagem de um contrato a outro efetua-segraças a uma dupla transformação, isto é, graças à subs­tituição paradigmática dos termos sêmicos que operam nointerior de duas categorias simultaneamente: 1) o paitorna-se traidor, e o filho, qualificado, herói completo(5 => T); 2) o traidor não podendo ser destinador (in­compatibilidade estrutural que havíamos já observadoanalisando um corplls psicodramático), o pai se transIor­ma em destinatário, passando o papel de destinador a

Filho = D2 + SPai:::: (DI) + TFilho = Dt 1- SAvó:::: (Dt>

ACTANTES

Filho::.: TPai", DIFilho :c: D;!HS) +T

Pai e= DIFilho == D;tHS> +T

Pai := DI+TFilho", D::+S

Avó == D,

Pai=T

Pai == TFilho = Df.Pai = Dz + S + T

FUNÇÕES

RetôrnoAusência do paiBusca do dcstinadorRetôrno e dom

SEQÜÊNCIAS·

Partida para o ninho das almas

Punição do traidorContrato aceito j Proposição

l AceItação e partidaObs.: Colocamos entre parênteses o herói não qualificado.

Partida para o ninho das araraso I Proposição

Contrato aceito I ·t - tOd( Acel açao e par I a

C t t I Combate deceptivoon ra o SUspenso ·l Conseqüência

Obso; o papel T passa do Filho ao Pai.

Retôrno do herói

DI (destinador) vs D2 (destinatário)S (sujeito-herói) vs O (objeto-valor)A (adjuvante). vs T (oponente-traidor)

distribuições de papéis. Assim, não é senão 110 níveldestas distribuições de papéis que se pode esperar poderresolver .o problema, difícil à primeira vista, da trans­Iormação do Iilho-traidor em herói e aquela, paralela, dopai-vítima em traidor.

Adotando o sistema de abreviatura simples para no­tação dos actantes da narrativa:

poder-se-á apresentar, sob Iorma condensada, as princi­pais obrigações contratuais e as distribuições correlativa~de papéis na parte tÓpica da narração.

Contrato recusado

Nôvo contrato

Obs.: o destinador ausente e o nôvo manifestador não manifestado estdo entreparênteses.

( Distribuição do fogoAntigo contrato rompido l) Não glorificaçãodo heróiVingança

Punição do traidorNôvo contrato invertido \ Proposição

l Aceitação e partida

91

Vinganç.Ninho dou illma, r Ninho du arôlns'lOtopiai

Código natur.1

Código alimentar

Prova qualificante I Prova principal I Prova glorificante"ninho das almas" "ninho das araras" "vingança"

Duas isot{)pias, revelando a existência de duas codi­ficações diferentes da narrativa, aparecem assim nitida­mente. A interpretação do mito terá por finalidade, nesteestágio, o estabelecimento da equivalência entre os doiscódigos e a redução do conjunto da narrativa a umaisotopia única. Ela propõe ao descritor ü problema daescolha estratégica, a saber: qual é a isotopia fundamen­tal, na qual é preciso traduzir a segunda isotopia, con­siderada" como aparente?

Duas ordens de considerações pleiteiam em favor daescolha do código alimentar.

1Q A transcrição formal permite constatar a diferençade niveis em que se situam os conteúdos a analisar nasduas isotopias: caso se considere que esses conteúdos semanifestem na mensagem narrativa, sob a forma canô­nica das conseqüências das provas e, por conseguinte,dos objetos de procura, vê-se que, no primeiro caso, osobjetos são apresentados sob forma de lexemas (água,fogo) e, no segundo, sob forma de combinações desemas (cru, cozido, podre, fresco, etc.). Pode-se dizerque a análise do conteúdo tendo atingido o nível sêmicoé mais profunda do que a que sf"~ situa ao nível dossignos: é pois o nível da análise sêmica que deve serretido como fundamental.

2Q A economia geral do modelo narrativo prevê, nodesenrolar da narrativa, a sucessão de três tipos deprovas:

Parece evidente que é a prova principal que está en··carregada de tratar do conteúdo tópico do mito: sua

seu filho (DI ~ D2). A hipótese que havíamos formu­lado, servindo-nos de informações tiradas de análises an­teriores não mitológicas, mas literárias, e segundo a quala prova é a manifestação, sobre o plano narrativo, datransformação dos conteúdos, confirma-se aqui: a duplatransformação que formulamos aqui ao nível dos actantescorresponde, com efeito, à prova deceptiva na narrativa.

IV.I. A bi-isotopia da narração

A transcrição formal não nos deu a chave de uma lei­tura isótopa única, bem ao contrário: a narrativa pareceser concebida propositadamente de tal maneira que ma­nifesta sucessivamente, em sua parte tópica, duas isoto­pias simultaneamente. Pode-se mesmo perguntar se asvariações de isotopias, correspondendo às seqüências danarrativa, não constituem um dos traços distintivos quepermitem opor a narrativa mítica aos outros tipos de nar­ração, como o conto popular, por exemplo.

Assim, se a seqüência «expedição ao ninho das al­mas» pudesse ser considerada, após sua reconversão, se­gundo a equivalência procura da ossada "" procura daágua, como manifestando a isotopia da água (e do fogo),a seqüência «expedição ao ninho das araras» abandonaa missão aparente da procura dos instrumentos e nãose ocupa mais senão de problemas de regime alimentar,animal e vegetal. O retorno do herói, por sua vez, émarcado pela doação do fogo (e da água), mas a se­qüência «vingança» que se segue é quase i1isível: é comesforço que se pode encontrar nela, graças a formulaçõesdedutivas, a preocupação da disjunção da alimentaçãovegetariana e carnívora. A parte tópica da narraçãoapresenta pois assim:

90

IV. A MENSAGEM ESTRUTURAL

Obs. O espaço limitado não nos permite desenvolver a teoriados actantes, que mostraria que a primeira transformação é, narealidade, a de A T (e não de S T) como indicamos porSimplificação.

isotopia tem portanto fortes razões de manifestar o COIl­teÚdo no nível fundamental.

Mas, definitivamente, é a convergência destas duasordens de considerações que constitui o elemento decisivo

da escolha estratégica. Vamos, por conseguinte, começara explicação e a integração do código a partir desselugar privilegiado que é a seqÜência correspondente àprova principal.

IV.2. O Objeto da procura

Sem nos preocuparmos mais com a unidade contratualque introduz a prova principal da narrativa, só temos

que analisar a própria seqÜência, cortada em dois seg­mentos graças à disj unção espacial, os quais se articulamcada um sob a forma de provas notificando o fracassoou o sucesso de Ulll certo lllodo de alimentação:

ALIMENTAÇÃO

animal (no alto) 1-~eget:;···(embaiXO)

-~:~=~-_.._--::::_..._L fracass~__ L~ce~: __ 1

Admitindo--se a hipótese sl'gundo .1 qLlal as quatroprovas assim distribuidas são apenas manifestações nar­

rativas das transformaçõl's estruturais, dir-se-á que osdois fracassos devem ser considerados como negações eos dois sucessos, C0/l10 afirmações de certos modos ali­mcn tares.

I. O regime alimentar negado em primeiro lugar éo consumo do cra animal; é negado, porque canibal: ocÓdigo, mas também o contexto discursivo, nos informam

que o herói, tendo-se tornado «mestre da água» graçasà prova qualificante, é na realidade UllJ lagarto, miniatu­rização terrestre do crocodilo, e, com efeito, é sob formade lagarto que ele se apresenta na volta à avó. Pode-sedizer que o canihalismo é a manifestação narrativa da

92

conjunção das identidades e que a morte e a putrefaçãoresultante é de fato a morte, a desaparição do sentido.

2. O regime alimentar, afirmado em prosseguimento,é o consumo do cozido animal. O herói morto consti­

tui-se em alimentação que -se define como o cru animalpodre. Os urubus carniceiros, só consumindo a parte«crua e podre» do herói (os lagartos restantes e o tra­seiro «podre»), realizam pois a disjunção podre vs frescoe a negação do cru podre. Esta operação, que poderiaparecer canibal à primeira vista, não o é na realidade,pois os urubus são, no mundo invertido de antes, osmestres do fogo. Sem entrar nos detalhes do contexto queo leitor de Lévi-Strauss já conhece e, notadamente, seminsistir demais sobre seu papel de feiticeiros, capazes deoperar a purificação pelo fogo e a ressurreição dos mortos,pode-se dizer que sua vitória é a vitória dos consumido­res do cozido e, por conseguinte, a afirmação do con­sumo do cozido animal podre. A transformação que cor­responde a esta prova é a substituição do termo cru,pelo termo cozido no interior da categoria sêmica cru l'Scozido.

3. Não é inÚtil notar, nesta ocasião, o fenÔmenocstilistico freqÜente de conotação redundante. Assim, adisjunção alto JlS baixo, que corresponde à deposição doherói no sopé da montanha, encontra-se em outras nar­

rativas boraro. Estes eram antigamente araras que, umavez descoberto seu segredo, jogaram-se na fogueira ar­dente transformando-se assim, com disjunção, em pássa­ros (alto) e plantas (baixo) encontrados entre as cinzas.

Por outro lado, os sacerdotes bororo aj udam a procuraralimentos: «como aras, colhem os frutos»: o herÓi-arara,

ao revelar-se embaixo, reencontra pois a parte vegetalcomplementar de sua natureza.

4. O regime alimentar que é negado pela segundavez é o consumo do cru vegetal. Mais precisamente, nãoé o objeto a consumir (os frutos selvagens) que sãopostos em questão, mas o consumidor em sua qualidadede objeto de consumo (para os urubus). O herói, comose sabe, está desprovido de posterior, negado enquanto

93

94

Destinador ~ Objeto ~ Destinatário

M

não Vcrufogo mortal

podreágua mortal

95

Vida Mort",

cozidofogo vital

frescoágua vital

v

não M

Se cozido ~ V. então cru !:::L. não V, eSe podre ~ M. então fresco ~ não M

teúdos que articulam os objetos de consumo, ou ao níveldas articulações dos destina dores ou destinatários. Nessesentido, a definição da isotopia geral do discurso quepropusemos em outro lugar e pela qual esta não é a ite­ração de uma única categoria semântica, mas de umfeixe organizado de categorias, parece aplicável à narra­tiva mítica: o objeto de consumo que está em causa nodiscurso está estilisticamente presente ora com seu con­teúdo próprio, ora sob forma de conteúdos distanciadoscom a a.iuda de relações que se podem definir catego­ricamente. O estabelecimento da leitura única consistirápois na redução desses afastamentos estilísticos.

2. Ao considerar de mais perto as duas funções depurificação pelo fogo e de putrefação pela água, perce­be-se que uma pode ser denominada como vital e a ou­tra, como mortal, e que a distância que separa o cru docozido é a da oposição da vida e da morte. Uma novaconotação, mais geral, das categorias elementares, devidaa seu caráter vital e benéfico ou mortal e maléfico, pa­rece possível. Com efeito.

Por outro ladu:l nova categoria conotativa permite,graças à colocação entre parênteses da distância estilís­tica entre o produtor e o objeto produzido, uma distri­buição paralela dos termos sêmicos recobertos pelos le­xemas de fogo e de água. O quadro abaixo resumirábrevemente os resultados desta redução que conduz àconstrução de um código bivalente, mas isomorfo. Estenão poderá ser considerado como corretamente estabele­cido senão na medida em que permitirá dar conta doconjunto de conteúdos tópicos manifestados.

(consumidor)(produtor)

IV.3. A construção do código

cru e podre. O paradigma de substituição é assim abertoao nível do corpo do herói: a parte podre, já estandoausente, ainda não foi substituída pela parte fresca.

5. A transformação do consumidor cuja parte ani­mal, crua e podre é substituída, com a ajuda de umajudante (que se identifica com esta parte nova de suanatureza) vegetal, cru e fresco, e a possibilidade de sealimentar assim reencontrada constituem pois a afirmaçãodo consumo do cru vegetal fresco.

Em conclusão, pode-se dizer que a) a disjunção altovs baixo opera a distinção entre dois eixos de consumo:animal vs vegetal; b) a primeira série de provas consistena transformação do cru em cozido; c) a segunda sériede provas recobre a transformação do podre em fresco.

Suspendendo momentaneamente a análise, pode-se expe­rimentar agora organizar o que já conseguimos a fim dever se já é possível a construção de um código dandoconta do conjunto da manifestação tópica do mito.

1. Observar-se-á inicialmente que a seqÜência es­tudada coloca o problema da alimentação sob forma derelação entre o consumidor e o objeto consumido e queas categorias que postulamos para articular o conteúdode diversos objetos de consumo (cru vs cozido; fresco vspodre) só puderam ser estabelecidas afirmando-se ou ne,..gando-se a possibilidade desta ou daquela relação. __Sendo assim, o fogo e a água aparecem, em relação aoobjeto de consumo, na relação que é a do produtor como objeto produzido: é o fogo que transforma, com efeito,o cru em cozido, é a água que, a partir do fresco, produzo podre. O objeto de consumo situa-se assim entre

Desde agora pode-se dizer que a manifestação nar­rativa em seu conjunto se situa ora ao nível dos con-

!

(1) afirmação de não M (fresco rJ água vital)(2) comportando a negação de M(podre ~ água mortal).

(1) afirmação de V (cozidoCo:!:fogo vital)(2) implicando a negação de não V (cru 0d. fogo mortal).

IIIIIRetõrno positivoDom positivo

97

~Retõrno negativoDom negativo

Resulta daí que o primeiro dom do herói é o domda morte, e não da vida: é somente por intermédio donovo destinador-avó que renovará seu dom, desta vezpositivo.

Observar-se-á que o algoritmo dialético do dom en­contra-se duplamente invertido em relação ao da procuraporque: 19 enquanto dom, está invertido sintagmatica­mente, e a afirmação aí precede a negação e assim su­cessivamente; 29 enquanto dom negativo, está invertidoem seus termos: afirma as propriedades de morte, e nãode vida. Consiste pois em

herói quanto a liquidação da falta apresentando-os sobformas negativa e positiva:

o episódio da caça deceptiva só pode ser logica­mente a manifestação da segunda parte do algoritmo,isto é:

O) afirmação de M (podre !::>L água mortal)(2) originando a negação de não M (fresco C:L água vital)(1) a negação de V (cozidorV fogo vital)(2) implicando a afirmação de não V (cru C:L fogo mortal).

O dom negativo estabelece, por conseguinte, a re­lação necessária entre dois conteúdos afirmados, isto é,entre M + não V, o que é a definição mesma da mortee, por isso mesmo, da anticultura.

2. Desse modo, pode-se supor que o dom positivoterá a mesma estrutura sintagmática operando sobre con­teúdos diferentes, afirmando a vida, e não a morte. Adistribuição do fogo, realizada pela avó, pode-se trans­crever como constituindo a primeira parte do algoritmo:

Uma tal interpretação, se bem que muito possível, nãoleva entretanto a adesão d() descritor como uma evidência.

Análise Estrutural - 796

IV.5. A liquidaç[io da falta

O) negar o termo cru (não V)(2) afirmar o termo cozido (V)(1) afirmar o termo fresco (não M)(2) negar o termo padre (M).

IVA. A transformação dia/ética

No quadro assim estabelecido, o conjunto das transfor­mações contidas na seqÜência estudada é suscetível deser compreendido sob a forma de um algoritmo dialético.Com efeito, as provas que se seguem consistem em:

A asserção dialética, oferecendo a sintese, consistiráentão em postular a existência de urna relação necessáriaentre o cozido e o fresco (V + não M), termos perten­centes a categorias de conteÚdo originalmente distintas,afirmando que sua conjunção constitui a vida, isto é, acultura alimentar, ou, transpondo 110 cÓdigo paralelo,que a conjunção do fogo cio lar e da chuva benfazejaconstituem as condições «natllfais» desta cultura.

Esta análise toma ao mesmo tempo evidentes as ma­nifestações lexemáticas dos atores assumindo ao mesmotempo as funções do produtor e do consumidor: assimo urubu-carniceiro que, enquanto comedor do cru podre,é o pássaro da morte, uma vez situado em um antesmítico, assume as funções do produtor do fogo e torna-seo pássaro da vida, operando ressurreições. Do mesmomodo, o jaguar come-cru e a tartaruga come-podre cons­tituem, com inversão, o par cultural perfeito. Não é deadmirar a partir dai que nosso herói tenha o nome doconsumidor transformado no ele destinador, o de Geri­guiguiatugo, isto é, de jaguar-tartaruga. (A interpretaçãode jaguar = fogo e de tartaruga = lenha constitui umaconotação paralela, categorizável sem referência a seuestatuto de consumidor).

1. Viu-se que o comportamento deceptivo do destinador­pai teve como conseqÜência desdobrar tanto o retorno do

terior. O quadro abaixo colocará em evidência o iso­morfismo proposto:

(1) a negação do cozido (V) (o filho substitui-se ao esposo)(2) levando à afirmação do cru (não V) e(1) afirmação do pOdre (M)(2) comportando a negação do fresco (não M) (a mulher é ne­

gada como mãe)

M

não V

podreespôsa

crucriança masco

99

frescomãe(avó)

cozidoespôso

v

Não M

Uma ta! distribuição apresenta-se, sem nenhuma dú­vida, como uma simplificação grosseira: ela deveria, emprincípio, bastar para justificar o isomorfismo entre asduas dimensões culturais do universo mitológico e tornarpossível a transcodagem de um sistema no outra. Assimcomo está, o quadro dá conta de um certo número defatos: a) a mulher borora é um fruto podre; b) en­quanto mãe ela é doadora de alimento e, embora man­tendo sua natureza vegetal, constitui o termo complexoM + não M (enquanto que a avó, não sendo mais esposa,cor responde ao imico termo não M); c) o comporta­mento sexual no interior do casamento é vital: é umcozimento que, pela conjunção com o podre, provoca afermentação e a vida; d) o macho solteiro e, sobretudo,a criança não iniciada são rejeitados para o lado docru ·e do fogo mortal.

2. A violação, graças a este código bivalente (outrivalente), pode ser interpretado como uma prova, quemanifesta uma série de transformações que se podemreunir em um Único algoritmo dialético:

o ato sexual extraconjugal seria pois a expressãoda conjunção do cru e do podre, e iclentificar-se-ia coma asserção dialética instaurando a morte: não somenteo filho afirma assim sua natureza anticultural, acontece

Em aparência pelo menos, tudo se passa como se a ope­ração caça tivesse sido montada para por em presençao cru vs o fresco e não o podre vs o fresco. Com efeito,o pai, tendo recusado glorificar o herói, não participanecessariamente dos benefícios do fogo, permanece «cru».De maneira redundante, sua crueza encontra-se confir­

mada pela disjunção dos homens em relação aos fogosda aldeia, onde se encontravam em situação de caçado­res do cru.

Se a descrição apresenta, nesse ponto, alguma di­ficuldade, é porque o código que construimos está aindaincompleto: só estabelecemos o isomorfismo entre as ca­tegorias alimentares articulando o objeto de consunH>,c as categorias «naturais» diferenciando os produtores,deixando de lado a articulação que permite descrever,de maneira isomorfa, os consumidores que apresentam,em relação ao objeto, um afastamento estilístico compa­rável ao dos produtores. Somos pois obrigados a aban­donar provisoriamente a análise começada para tentarcompletar inicialmente nossos conhecimentos do códigosobre este ponto preciso.

98

IV.5. A cultura sexual

I. Introduzindo a categoria vida vs morte, pudemos COll­

tituir uma classificação cultural que, sempre articulandoo código do mito segundo duas dimensões diferentes,possui entretanto um caráter mais geral do que a cul­tura alimentar que ela organiza.

Sendo assim, pode-se tentar aplicar esta classifica­ção ao plano da cultura sexual procurando estabelecerequivalência entre valores culinários e sexuais que só serãoreconhecidos como isomorfos se puderem comportar umadistribuição formalmente idêntica. E' preciso precisar ime­diatamente que se trata aqui da cultura sexual, isto é,do conjunto de representações relativas às relações se­xuais, que é de natureza lingÜística e axiológica, e nãoda estrutura de parentesco que lhe é logicamente an-

101

IV.7. Qualificação e desqualificação

Seqüência final

Disjunção em seguida a umaderrota - da sociedade cul­tural

Conjunção com os espíritosaquáticos - em vista de umaposição conjuntiva (:integra­ção)

Desqualificação do herói

Procedimento analitico:articulação em elementos cons-

Obs. Do ponto de vista das técnicas de descrição, procura­mos valorizar assim o procedimento do comparativismo interno ànarrativa: já o praticamos, analisando sucessivamenteos dois as­pectos da liquidação da falta, enquanto procura e enquanto dom.

traz ida pelo ajudante-deceptor mea sobre o lugar emque ele se encontrava à espreita, transforma-o em sercaçado, Isto é, em podre. A vitória do cervo, armado defalsos chifres (= madeira fresca) dá conta, por conse­guinte, da transformação que se inscreve como a ne­gação do podre, correlativa da afirmação do fresco.

Resta-nos examinar a última seqüência que consagra adisjunção do pai-traidor (não V + M) da comunidade.Já se notou que o estatuto do pai é, neste ponto da narra­tiva, simétrico ao do filho em seguida à violação: a) doponto de vista do conteúdo, definem-se todos os doiscomo agentes da morte, como simultaneamente crus epodres; b) do ponto de vista da estrutura sintagmáticada narrativa, são objeto de vingança, isto é, obrigados ;\executar uma contra-punição. Resulta daí que as seqüên­cias «expedição ao ninho das almas» e «imersão nolago», consecutivas das duas disjunções, devem ser, emprincípio, comparáveis. Pode-se então tentar justapô-Iase interpretá-Ias simultaneamente, pondo em evidência asidentidades e as diferenças.

Expedição ao ninho das almas

Disjunção em seguida a umavitória - da sociedade anti­cultural

Conjunção com os espíritosaquáticos - em vista de umaposição d:isjuntiva (combate)

Qualificação do herói

Procedimento analitico:articulação em elementos cons-

100

o mesmo com o pai, cuja qualidade de «cozinheiro» énegada e que, ligando-se a partir de então com suamulher (e, sobretudo, com sua nova esposa que aparecea propósito) não poderá senão reproduzir a asserçãonão V + M. Em seguida à violação, os dois protagonistasmachos encontram-se portanto definidos da mesma ma­neira, mas enquanto que o filho, passando - se bemque sobre uma outra dimensão cultural - por umasérie de provas heróicas, se transformará para tornar-seo contrário daquilo que era no início, o pai ficará semprecom sua natureza crua e podre.

3. Esta extrapolação, na medida em que é correta,permite um certo número de constatações relativas tantoao estatuto da narração quanto aos procedimentos dedescrição: 1) vê-se que a construção do código pressu­põe o estabeleCimento de uma classificação cultural degeneralidade suficiente para que possa integrar as co­dificações isomorfas não somente dos conteúdos tópicos,mas também dos conteúdos correlatos; 2) vê-se que oencadeamento sintagmático que interpretamos como umarelação de causa e efeito (o' contrato punitivo) corres­ponde a passagem de uma dimensão cultural a uma outra(cultura sexual em cultura alimentar).

4. o estabelecimento da equivalência entre diferentescódigos permite-nos, por outro lado, compreender melhorcêrtos procedimentos estilísticos da narração. Assim, osdois elementos constitutivos da natureza dos protagonis­tas - e que, no nível do código sexual, correspondemà natureza masculina e à natureza feminina - encon­tram-se entre si em uma relação que se pode generalizarsob a forma da categoria agente vs paciente. Isto per­mite interpretar as inversões de papéis que se podemobservar nos episódios de caça:

a) enquanto crus, os atores são caçadores (caça aoslagartos, caça ao cervo);

b) enquanto podres, eles são caçados (pelos urubus,pelo cervo).

Pode-se voltar agora à análise deixada em suspensoe reler o episódio da caça final: se o pai, enquantocaçador, afirma bem sua natureza de cru, a informação

102

o procedimcnto que consiste em utilizar o quadrocomparativo para a exploração dos dados contextuaisao nível dos lexemas permitiu separar a articulaçãogeral das duas seqiiências.

a) Viu-se que a disjunção do herÓi em relação àsociedade dos homens tem por conseqÜência sua conjun­ção com a sociedade dos espíritos. Resulta disto a con­frontação da natureza do herÓi com as qualidades cor­respondentes da supra natureza.

b) Os dois herÓis, idênticos quanto à sua natureza,terão entretanto um comportamento diferente. Esta di-

carregado de uma potenciaHda-de de morte

herói derrotadoà conquista de uma anticulturasofre as provasperde qualidadesque transmite aos espiritos

Sujeito-heróiSujeito-her6i

carregado de uma potenciaHda-de de vida

herói vitoriosoà conquista de uma culturaprovoca as provasadquire qualidadesque arranca dos espíritos

c) Uma tal análise mantém-se entretanto ao nívellexemático e aparece como insuficiente. A descrição pro­cura atingir o nivel da articulação dos conteÚdos e darconta das transformações subjacentes às seqÜências narra­tivas_ As questões que se apresentam desde o início sãoas seguintes: a que corresponde, ao nível das transfor~mações estruturais, a qualificação do herói? Que trans­formações comporta, por seu lado, a desqualificação doherÓi?

lcrença só pode provir de seu estatuto sintagmático en­quanto actantes-sujeitos que se encontra polarizado damaneira seguinte:

103

Segundo as previsões fornecidas pelo modelo narrativo,a seqÜência que se intercala entre a partida do herói e adcfrontação da prova principal é destinada a qualificar oheróí, isto é, a acrescentar-lhe qualidades das quais es­tava desprovido c que o tornarão capaz de superar aprova. Entretanto, caso se considere a composição sê­mica do contelido de nosso herói antes e depois da qua­lificação, não se encontra ai diferença notável: o heróii.•. em um caso como em outro, cru podre.

Em que consiste este caso de qualificação? Parecehem que sÓ pode residir na aquisição das qualidadesvirtuais que, embora sendo contraditórias e complemen­tares em relação à natureza, conferem entretanto ao heróio poder de afirmar e de negar, transformam-no em meta­sujeito das transformações dia/éticas (o que indicam,além disso, imperfeitamente, as designações como «rncs-

IV.8. A qualificaçâo do herói

3. Piranha

Conjunção com o podre (o la­go-pântano é a manifestaçãodo podre)

Conjunção com o cru:a) afirmação do 'cru: piranha== pOdre == fogo mortalb) conjunção das identidades:a parte crua do herói é absor­vida e não substituída (cf. ca­nibalismo dos urubus)

titutivos por disjunção (de­sarticulação)

1. Ossada

2. Pulmões - Plantasaquáticas

Conjunção máxima em relaçãoaos espíritos aquáticos (baixo)

(assada == espíritos aquáticos ==

morte absoluta)

Conseqüências

Identificação das qualidades doherói com as da natureza: pos­sibilidade da anticultura nãohumana

Disjunção em relação ao podre(pombo = de:;truidor da água

mortal)

3. Gafanhoto ferido

2. Pombo

DisjWlçãO máxima em relaçãoaos espíritos aquáticos (aIt-o)

(anti-água == fogo = vidaabsoluta)

titutivos por adjunção (sobforma de ajudantes)

1. Beija-flor

Disjunção em relação ao cru:a) afirmação do cru: gafanho­to = destruidor dos jardins ==

seca = fogo mortalb) pOiõsibilidade de afirmaçãodo fresco: o ferimento, pelosespíritos aquáticos, é a nega­ção do cru absoluto

Conseqüencias

Aquisição complementar, peloherói, das qualidades em opo­sição à sua natureza: possibi­lidade da cultura humana

Comentário

104

em que o signo da negação indica o poder que possui avida de negar a morte. Traduzido em termos cotidiano,isto quer dizer que o herói se tornou mestre eventual daágua maléfica.

2. O herói, que é ao mesmo tempo cru (não V),identifica-se por sua vez com o gafanhoto, destruidor dejardins que, estes, só são possíveis graças à água be­néfica. E' a este título que ele é ferido pelos espíritos

Dinamicamente

não V

Estaticamente

não V + não M

105

IV.9. A cultura «natural»

A desqualificação do pai, herói da aventura aquática, édevida essencialmente, como se viu, à sua hlta de com­batividade, a seu estatuto de herói derrotado que se en­caminha para a morte. O episódio sob a água corres­ponde, sabe-se, ao duplo enterramento (da carne e dosossos) praticado pelos bororo. Em lugar de adquirir no­vas propriedades que o qualificariam, o herói desarti­cula-se e reúne cada um dos termos definindo sua na­tureza com o termo correspondente no mundo dos espi­ritos. A conjunção dos termos contraditórios que carac­teriza a qualificação corresponde aqui a conjunção dos

em que a negação indica o poder da água vital de negaro caráter absoluto do fogo mortal.

3. O protocolo da transcrição dos conteúdos com­portando categorias complexas e de suas transformaçõesnão estando estabelecido, diremos ingenuamente que oherói qualificado apresenta-se seja como

(M + V) + (não V + não M)

seja como negador dos conteúdos «mortais»:

aquáticos, isto é, tornado inapto a destruir completamenteos efeitos da água benéfica. Enquanto gafanhoto ferido,o herói vê o termo cru de sua natureza transformar-se

no termo complexo não V + não M, o que quer dizer que,no segundo aspecto de sua natureza, ele é

-- ---M + não V == (M + não V)

Esta última transcrição visualiza melhor a permanênciada natureza «mortal» do herói, à qual veio ajuntar-seuma segunda natureza que o institui como meta-sujeito.

MDinamicamente

M+V

Estaticamente

tre do fogo» ou «mestre da água»). O herói qualificadocomportaria pois, na sua natureza, e seu conteúdo pró­prio, e os termos contraditórios suscetíveis de negá-Ia.Seria apenas em seguida à sua qualificação que se tor­naria verdadeiramente mediador cujo conteúdo categóricoseria complexo, compreendendo ao mesmo tempo os ter­mos s e não s de cada categoria. - O caráter hipo­tético de nossas formulações provém, sem dúvida, daausência quase total de conhecimentos relativos à arti­culação do modelo narrativo neste pormenor, e nossosesforços tendem mais a detetar as propriedades estru­turais do modelo do que a interpretar a seqüência.

1. O herói que é podre (M), no momento em quedecide enfrentar a primeira prova qualificante, não podea este título opor-se aos espíritos aquáticos que, elestambém, comportam a determinação M. A defrontaçãosó é possível graças ao ajudante beija-flor que, pelo fatode sua disjunção máxima em relação à água (mas tam-.bém porque é não bebedor e muito freqÜentemente «mes­tre do fogo»), representa o têrmo díametralmente opostoa M, isto é, o termo V. Pela adjunção à sua naturezada propriedade V, que define o ajudante beija-flor, oherói se transforma no termo complexo M + V, isto é,em um ser ambíguo, mediador entre a vida e a morte. _

E' esta natureza complexa que lhe permite em seguidaapresentar-se como pombo, isto é, ao mesmo ternpo con­sumidor e negador do podre. Isto permite-nos dizer queo herói, neste estágio, é

106

Começamos assim a entrever que a instituição deuma ordem anticultural só pode ser a disjunção máximados termos cuja aproximação ameaçaria a cultura.

2. E' neste quadro que convém interpretar a se­qÜência de acontecimentos. O podre, disjunto do cru, ma­

nifesta-se sob duas formas (ossada vs pulmões): porum lado, em um movimento descensional, ele vai al­cançar o lugar onde se encontram as almas e reunir-se.1 elas numa sobrevida mortal; por outro lado, t.'m ummovimento ascensionaJ, () podre «sobrenada», isto é, se-

termos idênticos, isto é, a neutralização do sentido. Asimetria encontra-se, uma vez mais, mantida: o termoneutro da estrutura elementar da significação é com efeitosimétrico ao termo complexo.

As possibilidades oferecidas pelo comparativismo es­tando assim exploradas, pode-se interrogar agora sobrea significação da seqíiência enquanto se apresenta comoconteÚdo correlato da parte tópica positiva do mito. Osdois conteÚdos, tÓpico e não tÓpico, são supostos ex­primir a instauração de uma certa ordem, situada sobreduas dímensões do universo mitológico diferentes. Res­ta-nos pois responder a duas questões: qual é a ordemassim instaurada, correlativa da instituição da cultura ali­mentar? Qual é a dimensão em que se encontra situadaesta ordem?

I. O encontro do herói com as piranhas constituiao mesmo tempo uma análise e um deslocamento de suanatureza: constitui inicialmente a dísjunção absoluta dosdois elementos constitutivos desta natureza: o cru é aceito

e reunido à natureza crua das piranhas; o podre é re­jeitado e vai reunir-se com outros elementos. - Vê-se

que esta disjunção não é outra coisa senão o rompi­mento do conceito sintético (não V + M) que define todaanticultura; se a cultura acaba de ser instituída como

uma síntese, a anticultura, esta, encontra-se desorgani­zada:

107

para-se da água para aparecer, numa primeira metafor­fose, sob forma vegetal, como uma planta aquática.

Ora, parece que os bororo sabem com muita feli­cidade que a ascensão vertical do podre não se inter­rompe ai e que sob a forma de um Ramo de Flores ­pela via metafórica que é justamente a afirmação e aconjunção de identidades - que este se fixa no céu econstitui a constelação das Plêiades. A disjunção do crue do cozido encontra-se assim consolidada com a ajudade uma inversão disjuntiva espacial: o fogo maléfico, deorigem celeste, é mantido na água e encarnado naspiranhas; a água maléfica, de origem antes subterrânea,é projetada no céu, sob a forma de uma constelaçãode estrelas.

3. A reorganização da natureza - (o termo exatopara designá-Ia seria a cultura natural: ela constitui comefeito a nova dimensão mitológica que tentamos conso­lidar) - não se interrompe aí. Poder-se-ia sugerir que() fresco, definido precedentemente em termos de culturaculinária, sofre a mesma transformação e encontra-se pro­jetado no ceu sob a forma de Tartaruga terrestre, «mes­tre do fresco», na sua qualidade de come-podre, e aífixa-se sob a forma da constelação do Corvo. A água,tanto mortal quanto vital, encontra-se assim reunida nocéu. Duas precisões podem ser acrescentadas para ex­plicar a nova disposição: ,a) a relação entre a Tartaruga(não M) e o Ramo de Flores (M) é, não o esqueçamos,a de relações contratuais estabelecidas entre o destina­dor (filho) e o destinatário (pai) encarregado de umamissão de resgate, e a natureza malfazeja está subordi­nada à natureza benfazeja; b) o herói só pôde deixar aterra porque aí deixou seu irmão menor, aparecido, pelo

processo da duplicação, no próprio momento do retornodo herói: o mea preencheria pois, sobre a terra, as fun­ções do protetor do fogo dos lares (V), permanecendoao mesmo tempo ligada, pelos laços do sangue, à águahenfazeja (não M). - Resta finalmente a Última dis­junção, complementar de uma inversão espacial, a dofogo maléfico e benéfico; o primeiro, dominado, porque

Ij' ~

Anttcultura(não V vs M)vs

Cultura(V + não M)

108

natural

correlatos

colocados

culinária

tópicos

M + não VI V + não M I não M ~ Mnão V vs V

objeto de consumo I produtor

109

A. J. GREIMAS

Ecole Pratique des Hautes Etudes,Paris.

invertidos

consumidor

sexual

correlatos

V. A ESTRUTURA DA MENSAGEM

Apresentaremos, sob a forma de um quadro, os principaisresuIt.1dos obtidos na interpretação deste mito bororo:

Obs.: Os limites destes estudo não permitem insistir (a) nemsobre o caráter descontinuo (e singular) dos valores culturais(Tartaruga, Mea) opondo-se ao caráter continuo (e plural) dosvalores culturais (Ramo de Flores, Piranhas); (b) nem sobre ainstauração da ordem diacrônica das estações que resultam dasrelações de subordinação sintagmática entre não M e M. CI.Lévi-Strauss é suficientemente explícito a esse respeito.

Perspectivaestilística

Ilesultado das I não V + MIransformações

Dimensãocultural

(;onteúdos

I

1

JI';

Disjunção··Conjunção

Céu

Terra

~

VMea

não MTartaruga

MPlêiades

Disjunção

não VPiranhas

Conjunção-Disjunção~ >

~

Céu

Agua

Disjunção

está fixado na água (piranhas), o segundo, presente so­bre a terra, pois sua conjunção com a água seria nefasta.

4. Resulta daí que a instauração da cultura consistena inversão topolÓgica da ordem da natureza. Utilizandoduas categorias das quais uma é topológica (alto vsbaixo) e outra biolÓgica (vida vs morte), a «civilização»da natureza consiste no enquadramento dos valores na-­turais nos dois cÓdigos simultâneamente, que sÓ sãoisomorfos com inversão de sinais:

A disjunção topológica fundamental consiste em se­parar os valores mortais (M e não M) remetidos aocéu, dos valores vitais (V e não V), situados aqui em­baixo, colocando assim a) a impossibilidade da asser­ção M + não V que destruiria a cultura e b) ressalvandoentretanto, graças aos laços de sangue, uma possibilidadede conjunção cultural não M + V. Uma segunda dis­tinção a) opera a dísjunção entre não V, situado naágua e V, situado sobre a terra, duplamente disjuntos,pois sua conjunção ameaçaria a cultura e b) opera umaconjunção espacial (no céu entre M e não M, porque seencontra em uma relação de subordínação cultural)_

Em conclusão, pode-se dizer que a cultura natural,introduzindo um novo código, consolida o caráter discretodos valores naturais afirmando a impossibilidade dasconjunções «contra natureza» e a possibilidade de certasoutras relações «segundo a natureza». Poderia ser re­presentada simbolicamente como

(não M .,...M) vs (não V vs V).

de perspectivas provoca uma flexibilidade do método.Lembremos e precisemos as transformações que se pa­recem impor:

19 A unidade de base, o átomo narrativo, perma­nece a função, aplicada, como em Propp, às ações e aosacontecimentos que, agrupados em seqüências, engen­dram uma narrativa;

29 Um primeiro agrupamento de três funções en­gendra a seqÜência elementar. Esta tríade corresponde àstrês fases obrigatórias de todo processo:

a) uma função que abra a possibilidade do processosob forma de conduta a conservar ou de acontecimentoa prever;

b) uma função que realize esta virtualidade sob for­ma de conduta ou de acontecimento em ação;

c) uma ação que fecha o processo sob forma deresultado esperado;

39 Diferente de Propp, nenhuma destas funções nc­cessita a que a segue na seqüência. Ao contrário, quandoa função que abre a seqüência é colocada, o narrado rconserva a liberdade de fazê-Ia passar à ação ou demantê-Ia em estado de virtualidade: se uma conduta éapresentada como devendo ser mantida, se um aconte­cimento pode ser previsto, a atualização da conduta oudo acontecimento pode tanto ter lugar, como não seproduzir. Se o narrador escolhe atualizar esta condutaou este acontecimento, conserva a liberdade de deixaro processo ir até seu termo, ou de interrompê-Ia no seucaminho: a conduta pode atingir ou não seu objetivo, oacontecimento seguc ou não seu curso até o termo prc­visto. A rede das possibilidades assim aberta para a se­qÜência segue o modelo:

A Lógica dos PossíveisNarrativos

CLAUDE BREMOND

o estudo semiológico da narrativa pode ser dividido emdois setores: de um lado, a análise das técnicas denarração; de outro lado, a pesquisa de leis que rejamo universo narrado. Estas leis mesmas pertencem a doisníveis de organização: a) elas refletem as constrições lÓ­gicas que toda série de acontecimentos ordenada sob aforma de narrativa deve respeitar sob pena de ser inin­teligivel; b) elas acrescentam a estas constrições, váli-

j das para todas as narrativas, as convenções de seu uni­verso particular, característico de uma cultura, de umaépoca, de um gênero literário, do estilo de um narradorou, no limite, apenas desta narrativa mesma.

O exame do método seguido por V. Propp paraseparar os caracteres específicos de um destes universosparticulares, o do conto russo, convenceu-nos da necessi­dade de traçar, anteriormente a toda descrição de umgênero literário definido, o mapa das possibilidades ló­gicas da narrativa. 1 Nesta condição, o projeto de umaclassificação dos universos da narrativa, fundado sobrecaracteres estruturais tão precisos quanto os que servempara os botânicos ou naturalistas definirem os objetos deseu estudo, deixa de ser, quimérico. Mas este alargamento

1 "te message narratlf", in Communicatlons 4, pp. 4.32.

110

,

~

~

1j

1

VirtualidadeCex.: fima atingir)

J Atualização(ex.: conduta

pára atingll'o fim)

~\Ausência <

de atualização(t!x.: inél'cia.impedimento de agir)

111

I fim atíngidl)

(ex.: sucessoda conduta)

+-lfim frustrado(ex.: fracaSSoconduta)

o ciclo narrativo

Toda narrativa consiste em um discurso integrando umasucessão de acontecimentos de interesse humano na uni-

113

tiva) correspondente à função malfeito cOmetido. Poder­se-ia especificar em processo servivel (recompensa) seaqui se tratasse de um benefício cometido.

c) O «emparelhamento», por exemplo:

A sigla vs (versus), que serve aqui de ligação àsduas seqÜências, significa que o mesmo acontecimento,que preenche uma função a na perspectiva de um agen­te A, preenche uma função b caso se passe à perspectivade B. Esta possibilidade de operar uma conversão sis­temática de pontos de vista, e de formular suas regras,deve-nos permitir delimitar as esferas de ação corres­pondentes aos diversos papéis (ou dramatis personae).Em nosso exemplo, a fronteira passa entre a esfera deação de um agressor c a de um justiceiro na perspectivade quem a agressão torna-se malfeitoria.

Estas são as regras que colocamos à prova nas pá­ginas que se seguem. Tentamos proceder a uma recons­tituição lógica das linhas de partida da rede narrativa.Sem pretender explorar cada itinerário até às ramifi­cações últimas, tentaremos seguir as principais artérias,reconhecendo, ao longo de cada percurso, as bifurcaçõesem que os ramos mestres se cindem, engendrando sub­tipos. Traçaremos o quadro das seqÜências-tipos, bemmenos numerosas do que se poderia crer, entre as quaisdeve necessariamente optar o narrador de uma história.Este quadro tornar-se-á mesmo a base de uma classifi­cação de papéis assumidos pelos personagens das nar­rativas.

Anãll~( Estrutural - fi

Dano a infligir vsMalfeito a cometer

! !Processo agressivo

vsMalfeitoriai J,Dano infligido

vsMalfeito cometido = Feito 8 retribuir

III\"iIII

li'I

112

Malfeito a cometertMalfeitoriatMalfeito cometido == feito a retribuirt

processo retribuidortfeito retribuído

{ Danoa~

_"'" retrlb..,... ~ •••••••••Peito retrlbufdo Dano infligido

49 As seqÜências elementares se combinam entre sipara engendrar as seqüências complexas. Estas combina­ções se realizam segundo configurações variáveis. Cite­mos as mais típicas:

a) O encadeamento sucessivo, por exemplo:

O signo =, que empregamos aqui, significa que oacontecimento preenche simultaneamente, na perspectivade um mesmo papel, duas funções distintas. Em nossoexemplo, a mesma ação repreensível qualifica-se na pers­pectiva de um «retríbuidof» como fechamento de um pro­cesso (a malfeitoria) em relação ao qual representa pas­sivamente a testemunha e como abertura de um outroprocesso onde ele vai representar um papel ativo (apunição).

b) O enclave, por exemplo:

Esta disposição aparece quando um processo, paraatingir seu fim, deve incluir aí um outro, que lhe sirvade meio, este podendo por sua vez incluir um terceiro,etc. O enclave é o grande impulsionador dos mecanismosde especificação das seqÜências: aqui, o processo retri­buidor se especifica em processo agressivo (ação puni-

lllal!e1to cometido == Feito a retribuirI

114

Todas as seqÜências elementares que isolaremos emseguida são especificações de uma ou de outra destas

categorias, que nos fornecem assim um primeiro princí­pio de classificação dicotômica. Antes de nos engajar nasua exploração, precisemos as modalidades segundo asquais o melhoramento e a degradação se combinam umCom o outro na narrativa:

a) Por junções sucessivas. Vê-se imediatamente queuma narrativa pode fazer alternar, segundo um ciclocontínuo, fases de melhoramentos e de degradação:

= Melhoramento a obtertProcesso de melhoramentot

= Melhoramento obtido

115

Degradação produzida~

Processo de degradação.t.

Degradação possivel

E' menos evidente que esta alternativa é não somentepossível, mas necessária. Seja um início de narrativa queapresente uma deficiência (afetando um indivíduo ou umacoletividade sob forma de pobreza, doença, tolice, faltade herdeiro masculino, flagelo crônico, desejo de saber,amor, etc.). Para que esta amostra de narrativa se de­senvolva, é necessário que este estado evolua, que algu­ma coisa aconteça, própria para modificá-Ia. Em que sen­tido? Pode-se pensar, seja em um melhoramento, sejaem uma degradação. De direito, entretanto, só o melho­ramento é possível. Não que o mal não possa aindapiorar. Existem narrativas nas quais as infelicidades sesucedem em cascata, como se uma degradação chamasseoutra. Mas, neste caso, o estado deficiente que marca ofim da primeira degradação não é o verdadeiro pontode partida da segunda. Este degrau de parada - estesursis - equivale funcionalmente a uma fase de melho­ramento, ou ao menos de preservação do que ainda sepode salvar. O ponto de partida da nova fase de degra­dação não é o estado degradado, que só pode ser me­lhorado, mas o estado ainda relativamente satisfatório,que só pode ser degradado. Do mesmo modo, dois pro­cessos de melhoramento não se podem suceder enquantoo melhoramento realizado pelo primeiro deixa a desejar.Implicando esta carência, o narrado r introduz em sua nar­rativa o equivalente de uma fase de degradação. O es­tado ainda relativamente deficiente que daí resulta servede ponto de partida à nova fase de melhoramento.

b) Por enclave. Pode-se considerar que o fracassode um processo de melhoramento ou de degradação emcurso resulta da inserção de um processo inverso que oimpede de atingir a seu termo normal. Tem-se então os.esquemas seguintes:

>.,

I Processo (Melhoramento obtidoI de melhol'amento ~iMelhoramento~~ , não obtidoI Ausência de processoI de melhommento

IProcesso I Degradação

de melhoramento ~1 produzida~ IDegradação evítadaAusência de processode degradacão

Degtadaçãoprevisível

dade de uma mesma ação. Onde não há sucessão nãohá narrativa, mas, por exemplo, descrição (se os objetosdo discurso são associados por uma contigUidade espa­cial) , dedução (se eles estão implicados), efusão lírica(se eles evocam por metáfora ou metonímia), etc. Ondenão há integração na unidade de uma ação, não há narra­tiva, mas somente cronologia, enunciação de uma su­cessão de fatos não coordenados. Onde enfim não háimplicação de interesse humano (onde os acontecimentosrelacionados não são produzidos nem por agentes nemsofridos por pacientes antropomorfos) não pode havernarrativa, porque é somente por relação com um projetohumano que os acontecimentos tomam significação e seorganizam em uma série temporal estruturada.

Segundo eles favoreçam ou contrariem este projeto,os acontecimentos da narrativa podem-se classificar emdois tipos fundamentais, que se desenvolvem segundo asseqüências seguintes:

Melhoramentoa obter

li!

,I;'

117

Processo de melhoramento

o narrador pode-se limitar a dar a indicação de umprocesso de melhoramento, sem explicitar suas fases. Sediz simplesmente, por exemplo, que os negócios do heróise arranjam, que ele se curou, que se tornou bem com­portado, se embelezou, enriqueceu, estas determinações,que tratam do conteúdo da evolução sem especificar oseu como, não nos pode servir para caracterizar sua es­trutura. Por outro lado, se ele nos diz que o herói res­tabeleceu seus negócios ao fim de grandes esforços, seele relaciona a cura à ação de um medicamento ou deum médico, o embelezamento à compaixão de uma fada,o enriquecimento ao sucesso de uma transação vanta­josa, o bom comportamento às boas resoluções tomadasem seguida a uma falta, podemos apoiar-nos sobre asarticulações internas destas operações para diferenciardiversos tipos de melhoramento: quanto mais a narra­tiva entra no detalhe das operações, mais esta diferen­ciação pode ser aprofundada.

Coloquem-nos primeiro na perspectiva do beneficiá­rio do melhoramento. Seu estado deficiente inicial im­plica a presença de um obstáculo que se opõe à reali­zação de um estado mais satisfatório, e que é eliminadoà medida que o processo de melhoramento se desenvolve.Esta eliminação do obstáculo implica por sua vez a in­tervenção de fatores que agem como meios contra oobstáculo e a favor do beneficiário. Se pois o narra­dor escolhe desenvolver este episódio, sua narrativa se­guirá este esquema:

2 Fica entendido Que o beneflciárlo não está necessariamente consciente doprocesso empreendido em seu favor. Sua perspectiva pode permanecer vir­tual, como a da Bela Adormecida no Bosque enquanto espera o Prírn;ipeEncantado.

Melhoramentoa obter

'+'

Processo demelhoramento

'+'

Melhol amentoobtido

Degradaçãopossível

'+'

Processo deQegradação

'+'

Degradaçãorealizada

I Degradação, possívelt

Processo dedegnlClação

vs

vs

vs

Degnlda<.;àopossível

'+'

Processo de

degradaçilo IDegr!daçào Degmdac;àorealizada cvitada

Melhoramentoa obtertPI'ocesso demelhoramentotMelhoramentoobtído

A!"lhol'illl1cn toIl obtertProceEso delll('lhoraruento

M0.lhOl'amentoniio obtido

c) Por emparelhamento. A mesma série de aconte­eimen tos não pode ao mesmo tempo, e na sua relaçãocom um mesmo agente, se caracterizar como melhora­mento e como degradação. Esta simultaneidade torna-seem compensação possível se o acontecimento afetar aomesmo tempo dois agentes animados por interesses opos­tos: a degradação da sorte de um coincide com a rnc­lhoria da sorte do outro. Tem-se o esquema:

116

A possibilidade e a obrigação de passar assim, porconversão dos pontos de vista, da perspectiva de umagente à de um outro são capitais para o prosseguimentode nosso estudo. Elas implicam a recusa, ao nível deanálise em que trabalhamos, das noções de Herói, de«Vilão», etc., concebidas como marcas de identificaçãodistribuídas de uma vez por todas, aos personagens.Cada agente é seu próprio herói. Seus parceiros se qua­lificam na sua perspectiva como aliados, adversários, etc.Estas qualificações se invertem quando se passa de umaperspectiva para outra. Longe pois de construir a estru­tura da narrativa em função de um ponto de vista pri­vilegiado - o do «heróí» ou o do narrador - os mo­delos que elaboramos integram na unidade de um mesmoesquema a pluralidade das perspectivas próprias dos di­versos agentes.

118

-- a estrutura da realização da tarefa e seus de­senvolvimentos possíveis;

- todos os detalhes da relação de aliança postu­lada pela intervenção de um aliado;

- as modalidades e as conseqÜências da ação em­preendida contra um adversário.

Intervenção do aliado

119

o narrador pode limitar-se a mencionar a execução datarefa. Se escolhe desenvolver este episódio, é conduzidoa explicitar, primeiramente a natureza do obstáculo en­contrado, em seguida a estrutura dos meios empregados- intencionalmente e não mais fortuitamente desta vez- para eliminá-Io. Estes meios, eles próprios, podemfaltar ao agente, seja intelectualmente, se ignora o quedeve fazer, seja materialmente, se não tem à sua dis­posição os instrumentos dos quais tem necessidade. Aconstatação desta carência equivale a uma fase de de­gradação que, neste caso, se especifica em problema aresolver, e que, como anteriormente, pode ser reparadade duas maneiras: ou as coisas se arranjam por elasmesmas (se a solução procurada cai do céu), ou umagente assume a tarefa de arranjá-Ias. Neste caso, estenovo agente se comporta como aliado intervindo em pro­veito do primeiro que se torna por sua vez beneficiá riopassivo da ajuda que lhe é assim oferecida.

Realização da tarefa

A intervenção do aliado, sob a forma de um agenteque se encarrega do processo de melhoramento, podenão ser motivada pelo narrador, ou ser explicada pormotivos sem ligação com o beneficiário (se a ajuda éinvoluntária): neste caso, não se pode falar propriamentede intervenção de um aliado: surgindo do cruzamentofortuito de duas histórias, o melhoramento é produtoda sorte.

Acontece diferentemente quando a intervenção é mo­tivada, na perspectiva do aliado, por um mérito do be­neficiário. A ajuda é então um sacrifício consentido noquadro de uma troca de serviços. Esta troca mesma po­de-se revestir de três formas:

~

ir~~~~~eis

o~anizaçãOdos meIos

~Sucessodos meiof:

Melhoramentoa obter-- ..J.-

Obstáculoa eliminar-

Processo I Processode mel11oramento de eliminação

Melhoramento lObstáculoobtido eliminado

Neste estágio, só podemos encontrar uma dramatispersona, o beneficiário do melhoramento, usufruindo pas­sivamente de um feliz concurso de circunstâncias. Nema ele, nem a ninguém cabe então a responsabilidadede ter reunido c posto em ação os meios que derruba­ram o obstáculo. As coisas «acabaram bem» sem que al­guém se ocupasse delas.

Este isolamento desaparece quando o melhoramento,em lugar de ser imputado à sorte, é atribuído à inter­venção de um agente, dotado de iniciativa, que o assumea título de tarefa a cumprir. O processo de melhora­mento se organiza então em conduta, o que implica queele se estruture numa rede de fins-meios que pode se.rdetalhada ao infinito. Além disso, esta transformação in­troduz dois papéis novos: de um lado, o agente queassume a tarefa em proveito de um beneficiário passivorepresenta em relação a este Último o papel de um meio,não mais inerte, mas dotado de iniciativa e de interessespróprios: é um aliado; por outro lado, o obstáculo en­frentado pelo agente pode-se encarnar em um agente,ele próprio dotado de iniciativa e de interesses próprios:este outro é um adversário.

Para. dar conta das dimensões novas assim abertas,devemos examinar:

,

11,1

'li

- ou a ajuda é recebida pelo beneficiário em con­trapartida de uma ajuda que ele mesmo fornece a seualiado em uma troca de serviços simultâneos: os doisparceiros estão então solidários na realização de umatarefa de interesse comum;

- ou a ajuda é fornecida em reconhecimento deum serviço passado: o aliado se comporta como deve­dor do beneficiário;

- ou a ajuda é forneci da na espera de uma com­pensação futura: o aliado se comporta como credor dobeneficiário.

A posição cronológica dos serviços trocados deter­mina assim três tipos de aliados e três estruturas denarrativa. Caso se trate de dois associados solidaria­

mente interessados na realização de uma mesma tarefa,as perspectivas do beneficiário e do aliado se aproxi­mam até coincidir: cada um é beneficiário de seus pró­prios esforços unidos aos de seu aliado. No limite, sóhá um personagem, desdobrado em dois papéis: quandoum herói infeliz se propõe a remediar sua sorte «aju­dando a si mesmo», ele se cinde em duas drama tis per­sonae e se torna seu próprio aliado. A realização datarefa representa uma degradação voluntária, um sacri­fício (atestado pelas expressões: dar-se ao trabalho de,penar para, etc.) destinados a pagar o preço de ummelhoramento. Quer se trate de um só personagem sedesdobrando, ou de dois personagens solidários, a con­figuração dos papéis permanece idêntica: o melhoramentoé obtido graças ao sacrifício de um aliado cujos inte­resses estão solidários com os do beneficiário.

Em lugar de coincidir, as perspectivas opõem-sequando o beneficiário e seu aliado formam uma duplacredor/devedor. O desenvolvimento de seus papéis podeentão se formalizar assim: seja A e B tendo a obtercada um melhoramento distinto do outro. Se A recebe

a ajuda de B para realizar o melhoramento a, A torna­se devedor de B e deverá por sua vez ajudar B a rea­lizar o melhoramento b. A narrativa seguirá o esquema:

120

Perspectiva Perspeeti 'IaPerspecti 'IaPerspectivade A

de Bde Ade Bbeneficiál'io

aliadoaliadobeneficiál'ioda ajuda

obl'igantereconhecidoda ajuda-------

Ajuda Serviçoa

j'eCehel'vs possível't

i'Recepção

Açãode ajuda

v st tvAjuda

ServiçoDividaAjudalccebida

v srealizadov sa quitarv sa reccbert tQuitação

Recepçãoda dívida

v sde ajudat tDivida

Ajudaquitada

v srccebida

As tf(~S formas ele aliados que acabamos de distin­guir - o associado solidário, o credor, o devedor -­intervêm em função de um pacto que rege a troca dosserviços e garante a contrapartida cios serviços presta­dos. Ou este pacto permanece implícito (está entendidoque todo sacrificio merece pagamento, que todo filhodeve obedecer a seu pai que lhe deu a vida, o escravoao mestre que conservou a sua, etc.); ou resulta de umanegociação particular, explicitada na narrativa com mais

ou menos detalhe. Do mesmo modo que o emprego dosmeios podia ser precedido de sua procura, no caso emque sua carência pusesse obstáculo à realização da ta­refa, assim a ajuda deve ser negociada, no caso emque o aliado não traga espontaneamente seu concurso.No quadro desta tarefa prioritária, a abstenção do fu­turo aliado faz dele um adversário que se trata de con­

vencer. A negociação, que reencontraremos daqui há pou­co, constitui a forma pacifica de eliminação do adversário.

Eliminação do adversário

Entre os obstáculos que se opõem à realização de umatarefa, alguns, já o vimos, só se opõem a uma forçade inércia; outros se encarnam nos adversários, nos agen­tes dotados de iniciativa que podem reagir por condu-

121

Optando pela negociação, o agente escolhia eliminar oadversário por uma troca de serviços que o transfor­mava em aliado; optando pela agressão, escolhe infligir­lhe um dano que, para ser afastado, requer normalmentelima conduta de proteção. Se esta fracassa, tem-se:

sível a procura de um acordo são reunidas. Resta ne­gociar as modalidades de troca e as garantias de umaexecução leal dos compromissos.

O esquema simplificado da negociação pode ser fi­gurado como segue:

= Compromissos

a curPr1r= Qultamcnto dos

compromlsso$

compr!rnftl.!C'scwnprldQs

Per3'pecttvacomum d3 duas

partes

Pactoa concluir

= Pactoa conclutr

NegJlação

Pa!toconcluIdo

Perspctivado agredidO

Perigoa afastar

.J,

Processoprotetor

•••

Fracassode proteção

vs

vs

vs

123

Perspectivado sedu.ric!o

•• RecepçAode ajuda.

vs AjudarecebldA

vs Desejopcsslvel

YS con&pçiiodo desejo

•• D}sejO = Ajudaconcebido ... a receber

~Danoa infligir

•••

Processoagressivo

~Danoinfligido

Perspcttvado agressoT

Adversárioao eliminar

I

ReceJX'ftode aJuda.

Ajudl~rccd;'11da

l~Seduçlo

a oP1arwseProcessosedutor

~Sucesso

de ,wduçAo

A agressão

Processo deeliminação

Adversárioeliminado

Perspectit'a.do "edutor

AjUdaa receber

122

tas aos processos engajados contra eles. Resulta disto

que a conduta de eliminação do adversário deve, paradat conta desta resistência e de suas diversas formas,organizar-se segundo estratégias mais ou menos com­plexas.

Deixamos de lado o caso em que o adversário de­saparece sem que o agente seja responsável por suaeliminação (se ele morre de morte natural, cai sob osgolpes de outro inimigo, torna-se mais acomodado coma idade, etc.): neste caso, há somente um melhoramentofortuito. Para levar em conta só o caso em que a eli­minação do adversário é imputável à iniciativa do agente,distinguiremos duas formas:

- pacifica: o agente esforça-se por obter do ad­versário que cesse de por obstáculos a seus projetos. E'a negociação, que transforma o adversário em aliado;

- hostil: o agente esforça-se por infligir ao ad­versário um dano que o coloca em incapacidade de fazerpor mais tempo obstáculo a seus empreendimentos. E'a agressão, que visa a suprimir o adversário.

A negociação

A negociação consiste para o agente em definir, de acor­do com o ex-adversário e futuro-aliado, as modalidadesde troca de serviços que constituem o objetivo de suaaliança. E' ainda necessário que o próprio principio destatroca seja aceito pelas duas partes. O agente que tomaa iniciativa deve fazer de maneira que o parceiro adeseje igualmente. Para obter este resultado, pode uti­lizar seja a intimidação, seja a sedução. Se escolhe asedução, esforça-se por inspirar o desejo de um serviçoque quer oferecer em troca do que pede; se escolhe aintimidação, esforça-se por inspirar o medo de um pre­juízo que pode causar, mas igualmcnte poupar, e quepode assim servir de mocda de troca para o serviço quedeseja obter. Se a operação tem sucesso, os dois par­ceiros estão em igualdade: A deseja um serviço de B,como B um serviço de A. As condições que tornam pos-

IIII

124

A primeira das três fases da cilada, a trapaça, éela mesma uma operação complexa. Trapacear é ao mes­

.1110 tempo dissimular o que. é, simular o que não (~, e

A vantagem permanece, no esquema acima, para ()agressor. Esta saída não tem nada de fatal, Se o ad­versário parece dispor de meios de proteção eficazes, oagressor tem interêsse em enfrentá-Io desguarnecido. Aagressão reveste-se então da forma mais complexa dacilada. Fazer cilada é agir de modõ que o agredido, emlugar de se proteger como poderia fazê-Io, coopera àsua revelia com o agressor (não fazendo o que deviaou fazendo o que não devia). A cilada desenvolve-seem três tempos: primeiro, uma trapaça; em seguida, sea trapaça tem sucesso, um erro da vítima; enfim se ()processo de erro é conduzido até seu termo, a explo­ração pelo trapaceiro da vantagem adquirida, que colocaà sua mercê um adversário desarmado:

l:rro acometer

:::.

Aparência 11

acreditável

procb deconvicção

JAparência 11

acreditada

Perspectiva d4 vitimaPerspectivado tTapacetro

l~ ~

Ser x + Não ser 11 vsa d1ss1mular a lÚI1luJar

... ~Proéesso + Processo vs

de dIsslmulação de slmuJação~ ...

Ser x + Não ser 11 vsd1ss1mulado s1muladQ

125

substituir o que não é pelo que é em um parecer aoqual a vítima reage como a um ser verdadeíro. Pode­se pois distinguir em toda trapaça duas operações com­binadas, uma dissimulação e uma simulação. A dissimu­lação somente não é suficiente para constituir a trapaça(salvo na medida em que ela dissimula a ausência dedissimulação); a simulação apenas não é também sufi­ciente, pois uma simulação que se mostra como tal (ado comediante por exemplo) não é uma trapaça. Paramorder a isca, a vitima tem necessidade de crê-Ia ver­dadeira e de não perceber o anzol. O mecanismo datrapaça pode figurar-se pelo esquema seguinte:

Levando mais longe a classificação, poder-se-ia dis­tinguir muitos tipos de trapaça diferenciados pela ma­neira de simulação empregada pelo trapaceiro para mas­carar a agressão que prepara:

a) o trapaceiro pode simular uma situação impli­cando a ausência de toda relação entre ele e a futuravítima: finge não estar presente, no sentido próprio (casoele se esconda) ou no figurado (se ele finge dormir,olhar para outro lado, estar tomado de Ulll acesso deloucura, etc.);

b) o trapaceiro pode simular intenções pacíficas:propõe uma aliança, tenta seduzir ou intimidar sua ví­tima, enquanto prepara clandestinamente a rutura dasparlamcntações ou a tradição do pacto;

c) o trapaceiro simula intenções agressivas de modoque a vítima, ocupada em repetir um assalto imaginá­rio, se descobre e fica sem defesa contra o ataque real.

Trapaça a /c.zerL-

Processo de {

trapaça

Vitima feIta

Perspectiva doagressor-tra;paceiro

Ocasião aaproveitar

L. •

IPrejuízo

a infligir

Exploração Processoda ocasião agressivo

Ocasião Prejuízoaproveitada infligido

1!:rropossível

J,Processode êrro

J.1!:rrocometido vs

Perspectiva doagredido-vítima

Processo de Processoeliminação de cilada

AdversárIo Vitima caleliminado na cilada

Perspectivado agreEsor-trapaceiro

Adversárioa eliminar

~Vitima aarmar cilada

~Vitima afazer

~Trapaça

J.Vittmafeita vs

I!'II

li,!ii

III

"

lill'

Retribuições: recompensa e vingança

O dano causado pelo agressor à sua vítima pode serconsiderado como um serviço ao contrário, não maisconsentido pelo credor, mas arrancado pelo devedor, cha­mando em contrapartida a inflição de um dano propor­cionado, assimilável no recobrimento do crédito aberto:o devedor paga entretanto a dívida de um empréstimoforçado. A recompensa do serviço prestado e a vingan­ça do prejuízo sofrido são as duas faces da atividaderetribuidora.

Como a retribuição dos serviços, a retribuição dosprejuízos resulta de um pacto, que, ou fica ímplícito(fodo malfeito merece castigo, o sangue chama o sangue,etc.), ou se explicita nas cláusulas de uma aliança parti­cular, sob forma de ameaça contra as ruturas de contrato.

Um novo tipo, o retribuidor, e dois subtipos o re­tribuidor-recompensador e o retribuidor-punidor, apare­cem aqui. O retribuidor é de qualquer modo a garantiados contratos. Na sua perspectiva, todo serviço torna-seum favor que pede uma recompensa, todo prejuízo ummalfeito que pede um castigo. Seu papel coincide como do devedor pontual a reembolsar suas dívidas, e supreas faltas do devedor insolvente ou recalcitrante.

Processo de degradação

Um processo de melhoramento, chegando a seu termo,realiza um estado de equilíbrio que pode marcar o fimda narrativa. Se escolhe prosseguir, o narrador deve re­criar um estado de tensão, e, para fazer isto, introduzirforças de oposição novas, ou desenvolver germes no­civos deixados em suspenso. Um programa de degra­dação se instaura então. Ou pode-se referir à ação defatores imotivados e inorganizados, como quando dizque o herói sai doente, começa a se aborrecer, vê novasnuvens apontar no horizonte, sem que a doença, os abor­recimentos, as nuvens sejam apresentadas como agentesresponsáveis, dotados de iniciativa, e cujos comporta-

126

mentos se articulam em condutas realizadoras de pro­jeto: neste caso, o processo de degradação permaneceindeterminado ou só se especifica em má sorte, concursode circunstâncias infelizes. Ou ao contrário, é referidoà iniciativa de um agente responsável (um homem, umanimal, um objeto, uma entidade antropomorfa). Esteagente pode ser o beneficiário mesmo, caso cometa umerro de conseqüências graves; pode ser um agressor;pode ainda ser um credor com quem o beneficiário temuma divida a saldar (em troco de um serviço prestadoou de um dano infligido); pode ser enfim um devedorem favor de quem o beneficiário escolhe deliberadamen­te sacrificar-se.

Já encontramos estas formas de degradação. Nãosão apenas os contrários, mais ainda, pela passagemde uma perspectiva a outra, os complementares das for­mas de melhoramento:

- ao melhoramento por serviço recebido de umaliado credor corresponde a degradação por sacrifícioconsentido em proveito de um alíado devedor;

- ao melhoramento por agressão infligi da, corres­ponde a degradação pela agressão sofrida;

- ao melhoramento por sucesso de uma cilada,corresponde a degradação por erro (que pode igualmenteser considerado como o contrário da tarefa: fazendo,não o que deve, mas o que não deve, o agente atingeo objetivo inverso do que visava);

-- ao melhoramento por vingança obtida, correspon­de a degradação por castigo recebido.

O processo de degradação anunciado por esses di­versos fatores pode desenvolver-se sem encontrar obs­táculos, ou porque estes não se apresentam por si mes­mos, ou porque ninguém quer ou não pode interpor-se.Se ao contrário os obstáculos surgem, funcionam comoproteções do estado satisfatório anterior. Estas proteçõespodem ser puramente fortuitas, resultar de um feliz con­CLlrso de circunstâncias; podem igualmente realizar a in­tenção de resistência de um agente dotado de iniciativa.

127

A obrigação

Encontramos acima o caso do melhoramento obtido gra­ças à ajuda de um aliado credor. Esta prestação, cons­trangendo o beneficiário a pagar ulteriormente sua dí­vida, leva a uma fase de degradação. Esta sobrevém damesma maneira em todos os casos onde um «reconhe­cido» é obrigado a cumprir um dever que lhe custa. Aobrigação, como vimos, pode resultar de um contratoem boa e devida forma, explicitado em uma fase ante-

129

pecífica: a advertência (destinada a prevenir o erro) ouo cinismo (destinado· a dissipá-Ia). Por vezes os pró­prios fatos se encarregam oportunamente; em outro casoaliados clarividentes assumem esta tarefa. Enunciando oulembrando a regra, tendem a encarná-Ia, mesmo que elesnão sejam seus autores; se a vítima ignora seus con­selhos, esta perseverança no erro traz-Ihes prejuízo, ea catástrofe que se segue é ao mesmo tempo a sançãodesta transgressão nova.

Enquanto o aliado que encarna a regra é tratadocomo adversário, o adversário que ajuda a transgredi-Iaé tratado como aliado. Conforme ignore ou conheça asconseqüências da pseudo-ajuda que fornece, ele próprioé vítima ou trapaceiro. Neste Último caso, a trapaçainsere-se, como fase p1"eparatória de uma cilada, ou umamanobra de agressão.

A degradação que resulta do erro pode marcar ofim da narrativa. O sentido disto é então dado peloafastamento que separá o fim visado do resultado ob­tido: encontra um correspondente psicológico na oposi­ção presunção/humilhação. Se· o narrador escolhe pros­seguir, os diversos tipos de melhoramento que assinala­mos estão à sua disposição. Entre estes, entretanto, háum que convém eletivamente à reparação das conseqüên­cias do erro, porque representa o processo inverso: é arealização da tarefa, pela qual o agente, usando destavez meios adequados, restabelece por seu mérito a pros­peridade arruinada por sua tolice.

Análise Estrutural - 9128

Neste caso, elas se organizam em condutas cuja formadepende, de um lado, da configuração do perigo, deoutro da tática que o protetor escolhe.

Estas proteções podem ter sucesso ou fracassar.Neste Último caso, o estado degradado que se segue abrea possibilidade de processos, de melhoramento compen­sadores entre os quais alguns, vamos ver, tomam a formade uma reparação especificamente adaptada ao tipo ckdegradação sofrida.

o erro

Pode-se caracterizar o processo do erro como uma ta­refa cumprida ao contrário: induzindo ao erro, o agentepõe em ação os meios que são precisos para atingir oresultado oposto a seu objetivo, ou para destruir asvantagens que quer conservar. No decorrer desta tarefainvertida, processos nocivos são considerados como meios,enquanto que regras próprias para assegurar ou con­servar uma vantagem são tratadas como obstáculos.

O narrado r pode apresentar estas regras como im­pessoais, derivando da simples «natureza das coisas»;sua transgressão só traz prejuízo ao imprudente que,dando início a um encadeamento funesto de causas eefeitos, sanciona ele próprio o erro que comete. Mas anarrativa pode igualmente fazer disto interdições que ema­nam da vontade de um legislador. Trata-se então decláusulas restrítivas introduzidas por um aliado «obri­gante» no tratado que estabelece com o reconhecido.Este é engajado a observá-Ias para beneficiar, ou con­tinuar a se beneficiar de um serviço (permanecer noparaíso terrestre, etc.). A transgressão da regra traz pre­juízo ao aliado «credor» e é este dano que pede, even­tualmente, a intervenção de um retribuidor que sancionaa traição do pacto. O erro consiste aí, não na infra­ção mesma, mas na ilusão de poder transgredir impu­nemente a regra.

O elemento motor do erro sendo a cegueira, estaforma de degradação chama uma forma de proteção es-

I',

A agressão sofrida

tipula a contrapartida esperada, ou que esta seja dei­xada à discrição de um retribuidor.

O sacrifício apresenta assim o duplo caráter de excluira proteção e p2dir uma reparação. Normalmente, o pro­cesso sacrificial deve ir até seu termo com o concurso davítima (se o sacrifício parece ser uma loucura, aliadospodem dar conselhos, mas esta proteção dirige-se contraa decisão, que constitui um erro, e não contra o própriosacrificio). Em oposição, a degradação resultante do sa­crifício pede uma reparação, sob forma de recompensa, e(, neste estágio que uma proteção pode intervir. O pacto,com as garantias de que se cerca (juramento, refém, etc.),prevê também isto.

A agressão sofrida difere dos outros tipos de degradaçãona medida em que resulta de uma conduta que se propõeintencionalmente o dano como objetivo de sua ação. Paraatingir este objetivo, o inimigo pode, ou agir diretamente,por agressão frontal, ou manobrar obliquamente, esfor­çando-se por suscitar e utilizar as outras formas de de­gradação. Duas delas prestam-se a esta manobra: o erro,pelo qual..) agredido, induzido pelo seu inimigo, deixa-secair em uma cilada; a obrigação, pela qual o agredido,ligado a seu agressor por um compromisso irrevogável,deve quitar-se de um dever ruinoso (acontece além dissofreqÜentemente que o agrcssor combina os dois procedi­mentos: engana sua vítima sugerindo-lhe um pacto dano-­so, depois o elimina exigindo a execução do contrato).

O agredido tem a escolha entre se deixar apanhar e seproteger. Se escolhe a segunda solução, os modos deproteção que lhe são oferecidos podem reagrupar-sc emtrês estratégias: primeiro, tentar suprimir toda relaçãocom o agressor, colocar-se fora do seu alcance, fugir;segundo, aceitar a relação com aquele, mas tentar trans­formar a relação hostil em relação pacífica, negociar(cf. supra); enfim, aceitar a relação hostil, mas devol­vê-Ia golpe contra golpe, ripas/ar.

131!J*130

rior da narrativa (como quando um herói vendeu suaalma ao diabo). Ela pode igualmente derivar das dis­posições «naturais» do pacto social: obediência do filhoao pai, do vassalo ao suserano, etc.

Na disjunção de cumprir seu dever, o reconhecidopode procurar proteger-se contra a degradação que oameaça. Seu credor torna-se um agressor ao qual eletenta escapar, seja rompendo o canto (empreendendo afuga), sej a por meios pacíficos e leais (negociando umarevisão do contrato), seja por meios agressivos (provo­cando uma prova de força ou armando uma cilada). Nocaso em que julga ter sido vítima de uma trapaça, aliquidação agressiva de seus compromissos lhe aparece,não somente como uma defesa legítima, mas como urnaoperação justiceira. Na perspectiva do credor, ao con­trário, a liquidação dos compromissos redobra a dívida:o reconhecido vai ter de pagar, não somente por umserviço, mas por um prejuizo.

Se ao contrário, o devedor não pode ou não queresquivar-se a suas obrigações, se ele voluntariamenteos salda ou se ele, por escolha ou à força, é constran­gido a manter seus compromissos, a degradação de seuestado que resulta disto pode marcar o fim da narra-­tiva (cL a Filha de jefté, etc.). Se o narrador querprosseguir, pode recorrer às diversas formas de melho­ramento que assinalamos. Urna delas, entretanto, é pri­vilegiada: consiste em transformar o cumprimento do de­ver em sacrifício meritório, pedindo por sua vez umarecompensa. O pagamento da divida converte--se assimem abertura de crédito_

o sacrifício

Enquanto outras formas de degradação são processossofridos, o sacrifício é uma conduta voluntária, assumidaem vista de um mérito a adquirir, ou ao menos quetorna o agente digno de uma recompensa. Há sacrifíciocada vez que um aliado presta serviço sem ser obri­gado, e se constitui assim em credor, que um pacto es.-

133

Melhoramento, degradação, reparação: o circuito danarrativa está agora fechado, abrindo a possibilidade dedegradações seguidas de reparações novas, segundo umciclo que se pode repetir indefinidamente. Cada uma destasfases pode ele própria se desenvolver ao infinito. Mas no

curso ele seu desenvolvimento, será levada a se especificar,_por uma série de escolhas alternativas, em uma hierarquiade seqÜências encravadas, sempre as mesmas, que deter­minam cxaustivamente o campo do «narrável». O enca­deamcnto das funções na seqÜência elementar, depois dasseqÜências elementares na seqÜência complexa é simul­taneamente livre (pois o narrador deve a cada momentoescolher a continuação de sua narrativa) e controlado(pois o narrador só tem escolha, após cada opção, entre

fOl'ma o dano a ínfligir ao culpado em serviço a devolver­lhe, e obtém em contrapartida um serviço proporcional).Enfim o culpado é desqualificado pela dissimulação deseu malfeito. Ele induz o retribuidor em erro fazendo-sepassar por inocente e, eventualmente, fazendo passar noseu lugar um inocente por culpado.

Se estas pretensões são vãs, a degradação que re­sulta do castigo pode marcar o fim da narrativa. Estase constrói então sobre a oposição Malfeito/Castigo. Seo narrador escolhe prosseguir, deve introduzir uma fasede melhoramento que pode ser qualquer uma das queforam descritas. Uma delas entretanto deve ser privilegia­da pois representa uma reparação específica: trata-se demelhoramento obtido por um sacrifício: ao malfeito _tentativa de melhoramento demeritória conduzindo a umadegradação por castigo - responde então a penitência- tentativa de degradação meritória conduzindo à reabi­litação do culpado, segundo o esquema:

merecido

(recompensa)(benefício)

~ Penitência

I~ 1\"'" ,

Degradação Melhoramento

(castig(l)(malfeito)

demeritório ~ merecida ~ meritória ~

Melhoramento Degradação

QuedaI~-----I\.

Se estas proteções são ineficazes, o agressor infligeo dano esperado. O estado degradado que resulta daípode marcar, para a vítima, o fim da narrativa. Se onarrador escolhe prosseguir, uma fase de reparação dodano é aberta. Esta pode operar-se segundo todas asmodalidades de melhoramento que reconhecemos (a víti­ma pode curar-se, tomar a si a tarefa de reparar os des.­gastes, receber socorros caritativos, voltar-se contra ou­tros inimigos, etc.). Existe, entretanto, em acréscimo aestas, uma forma de reparação específica: a vingança,que consiste, não mais em restituir à vítima o equivalentedo dano sofrido, mas em infligir ao agressor o equiva­lente ao prejuízo causado.

o castigo

132

Todo dano pode tornar-se, na perspectiva de um rctribui­dor, um malfeito a ser punido. Na perspectiva do justiçado,o retribuidor é um agressor e a ação punitiva que pretendeuma ameaça de degradação. Ao perigo assim criado, ojustiçado reage por uma atitude de submissão ou dedefesa. Neste último caso, as três estratégias assinaladasmais acima - a fuga, a negociação e a prova de fôrça-- são igualmente possíveis. Somente, entretanto, a se­gunda, a negociação, prenderá aqui nossa atenção, poisela supõe a colaboração do retribuidor, e nos remete aoexame das condições pelas quais este se deixa convencera renunciar a sua tarefa. Para que a situação de Malfeitoa punir desapareça, ou ao menos deixe de ser percebida,é preciso que um dos três papéis em presença (o culpado,a vítima, ou o próprio retribuidor) perca sua qualificação.A vítima é desqualificada pelo perdão, graças ao qual oretribuidor restabelece, entre o antigo culpado p ela, ascondições normais do pacto (pois o perdão é sempre con­dicional: transforma retroativamente o dano infligido emserviço obtido, e pede em contrapartida um serviço pro­porcional). O retribuidor desqualifica-se ele próprio pelacorrupção (obtida por sedução ou intimidação), que esta­belece, entre o culpado e ele, o liame de um pacto (trans-

1,'11

',·'1

."'111:1

'I:

'li

!:!'!ii1"'11

lil!1'11,

'1111

os dois termos, descontínuos e contraditórios, de umaalternativa). E' pois possível esboçar a priori a redeintegral das escolhas oferecidas; dar um nome e assinalarseu lugar em uma seqüência a cada forma de aconteci­mento realizado por estas escolhas; ligar organicamenteestas seqüências na unidade de um papel; coordenar ospapéis complementares que definem o devir de uma si­tuação; encadear os devires em uma narrativa ao mesmotempo imprevisível (pelo jogo das combinações disponí­veis) e codificável (graças às propriedades estáveis eao nÚmero finito dos elementos combinados).

Este engendramento dos tipos narrativos é ao mesmotempo uma estruturação das condutas humanas agentese pacientes. Elas fornecem ao narrador o modelo e amatéria de um devir organizado que lhe é indispensávele que seria incapaz de encontrar em outro lugar. De­sejada ou temida, seu fim comanda um encadeamento deações que se sucedem, se hierarquizam, se dicotomizamsegundo uma ordem intangível. Quando o homem, na ex­periência real, combina um plano, explora na imaginaçãodos desenvolvimentos possíveis de uma situação, refletesobre a marcha da ação empreendida, rememora as fasesdo acontecimento passado, ele narra para si mesmo asprimeiras narrativas que poderíamos conceber. Inversa­mente, o narrador que quer ordenar a sucessão crono­lógica dos acontecimentos que relata, dar-lhes uma signi­ficação, não tem outro recurso a não ser ligá-Ios na uni­dade de uma conduta orientada em direção a um fim.

Aos tipos narrativos elementares correspondem assimas formas mais gerais do comportamento humano. Atarefa, o contrato, o erro, a cilada, etc., são categoriasuniversais. A rede de suas articulações internas e de suasrelações mÚtuas define a priori o campo da experiênciapossível. Construindo, a partir das formas mais simplesda narratividade, seqüências, papéis, encadeamentos desituações cada vez mais complexas e diferenciadas, lan­çamos as bases de uma classificação dos tipos de narra­tiva; além disso, definimos um quadro de referência para

134

o estudo comparado desses comportamentos que, sempreidênticos na sua estrutura fundamental, se diversificam aoinfinito, segundo um jogo de combinações e de opçõesinesgotável, segundo as culturas, as épocas, os gêneros,as escolas, os estilos pessoais. Técnica de análise literária,a semiologia da narrativa tira sua possibilidade e suafecundidade de seu enraizamento em uma antropologia.

CLAUDE BREMOND

École Pratique des Hautes Études, Paris.

135

UMBERTO ECO

1'11

i:;

lames Bond:Uma CombinatóriaNarrativa 1

É em 1953 que Fleming publica o primeiro romance dasérie 007, Casino Royal. Primeira obra que não podeescapar ao jogo normal das influências literárias: porvolta de 1950, o escritor que abandonava o filão do ro­mance policial tradicional para passar ao policial de açãonão podia ignorar a presença de Spillane.

Casino R<,yal deve, sem dúvida, ao menos dois ele­mentos característicos a Spillane. Primeiramente a jovem,Vesper Lynd, que inspira um amor confiante a Bond,revela-se no final um agente inimigo. Em um romancede Spillane o protagonista tê-Ia-ia matado, mas em Fle­ming a mulher tem o pudor de suicidar-se; entretanto areação de Bond diante do fato é semelhante à transfor­mação do amor em ódio e da ternura em ferocidade quese encontra em Spillane. «Está morta a vagabunda», tele­fona Bond a seu correspondente de Londres e isto fechaeste incidente sentimental.

Em segundo lugar, Bond está obcecado por umaimagem: a de um japonês especialista em códigos secretos

'Este texto foi extrafdo de uma obra coletiva, traduzida do Italiano, tiCaso Bond, que será editado pt'Oximamente pela editora Plon. Constituios três primeiros capitulas de um artigo intltulado: "les structures nalTa­tives chez Fleming", in Le Cas Bond, Milano, Bompiani, 1965,

136

~.

I

~!

I

rI

I

I

I

II

que ele abateu friamente no trigésimo sexto andar doarranha-céu R. C. A. no Rockfel1er Center, atingindo-ona face de uma janela do quadragésimo andar do arra­nha-céu em frente. Esta analogia não é um acaso. MikeHammer aparecia constantemente perseguido pela lem­brança de um pequeno japonês morto na selva durantea guerra, entretanto com maior participação emotiva (umavez que o homicídio de Bond, autorizado administrativa­mente por seu duplo zero, é mais assético e burocrático).A lembrança do japonês é a origem da inegável neurosede Mike Hammer, de seu masoquismo e de sua provávelimpotência; a lembrança de seu primeiro homicídio po­deria ser a origem da neurose de James Bond, se nãofosse pelo fato de, em Casino Royal, tanto a personagemquanto o autor resolverem o problema de outra maneiraque não a via terapêutica, isto é, excluindo a neurose douniverso das possibilidades narrativas. Decisão que in­fluenciará a estrutura dos onze romances futuros deFleming e que provavelmente é a origem de seu sucesso.

Após a volatização de dois búlgaros que tinham ten­tado fazê-Io explodir com uma bomba, após ter sido tor­turado com golpes sobre os testículos, após a eliminaçãode Le Chiffre por U111 agente soviético que lhe inflige umferimento na mão e apÓs ter-se arriscado a perder amulher amada, Bond, saboreando a convalescência dosjustos em um leito de hospital, tagarela com seu colegafrancês Mathis e torna-o ciente de suas perpiexidades.São eles lutadores de uma causa justa? Le Chiffre, quefinanciava as greves dos operários franceses, não preen­chia «uma l11is~ão maravilhosa, verdadeiramente vital,talvez a melhor de todas e a mais elevada»? A diferençaentre o bem e o mal é verdadeiramente tão nítida, reco­nhecível, como o quer a hagiografia da contra-espiona­gem? Neste momento, Bond está maduro para a crise,para o reconhecimento salutar da ambigÜidade universal, epara tomar o caminho percorrido pelo protagonista de LeCarré. Mas no momento em que ele se interroga sobre aaparência do diabo e em que está pronto para reconhecerno adversário um «irmão separado», James Bond é salvopor Mathis:

137

••...Quando você voltar a Londres, descobrirá que há outrosChiffre que tentam destruí-Io, destruir seus amigos e seu país."M" lhe falará. E agora que viu um homem verdadeiramentemau, saberá sob que aspecto o mal pode apresentar-se, irá àprocura dos maus para destruí-Ios e proteger assim os que vocêama, e você mesmo... Cerque-se de seres humanos, meu caroJames. E' mais fácil lutar por eles do que por princípios. Mas...não me decepcione transformando-se você mesmo em humano.Perderíamos uma máquina maravilhosa".

Foi por esta frase lapidar que Fleming definiu opersonagem de Bond para os romances que viriam. DeCasino Royal, restar-Ihe-á a cicatriz na face, o sorriso umpouco cruel, o gosto da boa comida e uma série de ca­racteristicas acessórias minuciosamente catalogadas nocurso deste primeiro volume. Mas, convencido pelo dis­curso de Mathis, Bond abandonará as vias incertas dameditação moral e do tormento psicológico, com todosos perigos de neuroses que poderiam dai decorrer. Bondcessará de ser um assunto para psiquiatras (a não servoltar a sê-Io no último romance, aliás atípico, da série(The Man witlz the Golden Gun), e tornar-se-á uma má­quina magnífica, como o querem, Mathis, o autor e opúblico. A partir deste momento, Bond não meditará maissobre a verdade e sobre a justiça, sobre a vida e sobrea morte a não ser em raros momentos de tédio, de pre­ferência nos bares dos aeroportos, contudo sem jamaisse deixar dominar pela dúvida (nos romances pelo me­nos, pois ele se permite algum luxo intimista nas novelas).De uÍn ponto de vista psicológico, uma conversão tãosúbita, provocada por algumas frases pronunciadas porMathis, é pelo menos curiosa; não é forneci da em outrolugar justificação alguma a este respeito. Nas últimaspáginas de Casino Royal, Fleming renuncia de fato àpsicologia enquanto motor da narração e decide transporcaracteres e situações para o nivel de uma estratégiaobjetiva e convencional. Fleming realiza assim sem osaber uma escolha familiar a inúmeras disciplinas con­temporâneas; passa do método psicológico ao métodoformal.

Existem já, em Casino Royal, todos os elementospermitindo construir uma máquina funcionando à base

138

~

de unidades suficientemente simples sustentada por re­gras rigorosas de combinação. Esta máquina, que funcio­nará sem falha nos romances seguintes, está na origemdo sucesso da «saga 007», um sucesso que, de maneirasiguJar, é devido não só ao consentimento das massasquanto à apreciação dos leitores mais refinados. Resta

agora examinar em detalhe esta máquina narrativa paradeterminar quais são as razões de seu sucesso. Trata-sede construir um quadro descrevendo as estruturas narra­tivas em Ian Fleming, procurando avaliar ao mesmo tem­po a incidência provável de cada elemento sobre a sensi­bilidade do leitor.

Esta pesquisa é feita nos romances seguintes, enu­merados na ordem de sua publicação (as datas de reda­ção devem provavelmente ser avançadas em um ano):Casino Royal, 1953; Live and Let Die, 1954; Moonraker,1955; Diamonds are Forever, 1956; From Russia withLove, 1957; Dr. No, 1958; Goldfinger, 1959; Thunderball,1961; On her Majesty's Secret Service, 1963; Vou OnlyLive Twice, 1964. Nós nos reportaremos igualmente àsnovelas de For Your Eyes Only, de 1960, e a The Manwitlz the Golden GUll, 1965. Em compensação, não trata­remos de Tlze Spy wlzo Loved Me que ocupa um lugarinteiramente à parte.

1. A oposição dos caracteres e dos valores

Os romances de Fleming parecem construidos sobre umasérie de oposições fixas que permitem um número limitadode modificações e de interações. Estes pares constitueminvariantes ao redor das quais gravitam os pares menoresque constituem, de um romance para outro, variantesdaqueles. Enumeramos aqui quatorze pares; quatro destesopõem quatro caracteres segundo diversas combinações,enquanto que os outros constituem oposições de valores,diversamente encarnados pelos quatro caracteres de base.Os quatorze pares são:

139

140

• KINGSLEY AMIS, The Jemes Bond Dossier, London 1965. Encontrar-se-ãodiversas Interpretações de James Bond no estudo de LAURA LlLU •JamesBond et Ia critique·. in Le Cas Bond.• op. cito

141

confiar na improvisação). Se Bond é o herói e possuiconseqüentemente qualidades excepcionais, «!vb represen­ta a Medida, compreendida como valor nacional. Emrealidade, Bond não é tão excepcional quanto uma leituraapressada dos livros (ou a interpretação espetacular queos filmes dão aos livros) pode fazer pensar. O próprioFleming afirma tê-Io concebido como um personagem to­talmente comum, e é do contraste com «1\1» que emergea estatura real do 007, dotado de superioridade física,de coragem e de agilidade de espírito, sem possuir poristo estas qualidades nem outras em uma medida excep­cional. E' mais uma certa força moral, uma fidelidadeobstinada a seu dever - sob as ordens de «M», semprepresente como guia - que lhe permitem superar certasprovas inumanas sem exercer faculdades sobre-humanas.

A relação Bond-«M» supõe sem dúvida alguma umaambivalência afetiva, um amor-ódio recíproco, e isto semque haja necessidade de recorrer a explicações psicoló­gicas. No começo de The Man witlz lhe Golden Gun,Bond, emergindo de uma longa amnésia e condicionadopelos soviéticos, tenta uma espécie de parricídio ritual ati­rando sobre «M» C0111 uma pistola de cianeto. O gestodecorre de uma série de tensões narrativas que se tinhamestabelecido cada vez que «M» e Bond se tinham encon­trado face a face.

Colocado por «IvI» na rota do Dever a todo preço,Bond entra em contraste com o Mau. A oposição põe emjogo diversos valores, dos quais alguns são apenas va­riantes do par caraterológico. Bond representa indubita­velmente Beleza e Virilidade diante do Mau que se apre­senta ao contrário, como monstruoso e impotente. Amonstruosidade do Mau é um dado constante, mas paraesclarecê-Ia é preciso introduzir aqui uma noção de mé­todo que será igualmente válida no exame de outrospares. Entre as variantes, é preciso considerar também aexistência de «papéis de substituição»; isto significa queexistem personagens de segundo plano cuja função só seexplica se são considerados como variações de um doscaracteres principais, dos quais «assumem» por assimdizer algumas das características. Os papéis de substi-

,

II

iI

'l-

I

h) Cupidez - Ideal1) Amor - Mortej) Risco - Programação1) Fartura - Privação

m) Natureza excepcional - Me­dida

n) Perversão - Candurao) Lealdade - Deslealdade

a) Bond - UM"b) Bond - O Mauc) O Mau - A Mulherd) A Mulher - Bonde) O Mundo livre - A União

Soviéticaf) A Grã-Bretanha - os Paí­

ses não anglo-saxõesg) Dever - Sacrifício

Estes pares não representam elementos «vagos» mas«simples», isto é, imediatos e universais e, examinandode mais perto o alcance de cada par, percebe-se que asvariantes possíveis cobrem uma extensa gama e esgotamtodos os achados narrativos de Fleming.

Com Bond - «M», tem-se uma relação dominado­dominante que caracteriza desde o começo os limites eas possibilidades do personagem Bond, e dá campo livreàs aventuras. Já se falou em outro lugar da interpretaçãoque convém dar, no ponto de vista psicológico ou psica­nalítico da atitude de Bond diante de «M». 1 E' fato que,mesmo se atendo puramente à narrativa, «M» coloca-sediante de Bond como detentor de uma informação totalconcernente aos acontecimentos. Daí sua superioridadesobre o protagonista, que depende dele e que parte emdireção a suas diversas tarefas em condição de inferiori­dade em relação à onisciência de seu chefe. Não é raroque o chefe envie Bond para aventuras cujo resultado elejá previu; Bond encontra-se então vitima de uma mano­bra, por mais bem intencionada que seja, e não esperaque o desenrolar dos fatos ultrapasse as tranqÜilas pre­visões de «M». A tutela sob a qual «M» mantém Bond,submetido pela autoridade a visitas médicas, a curas na­turistas (Tlzunderball), a modificações em seu armamento(Dr. No), torna cada vez mais indiscutível a autoridadedo chefe. Portanto, em «M», adicionam-se facilmenteoutros valores como a religião do Dever, a Pátria (ou aInglaterra) e o Método (que funciona como ,elemento deProgramação em face da tendência típica "de Bond em

1,'111:

'!illll

,11;

tuição funcionam de ordinário para a Mulher e para oMau, e às vezes para «M», se entretanto for necessáriointerpretar como «substitutos» de «M» certos colaborado­

res excepcionais de Bond, como Mathis de Casino Royal,que são portadores de valores pertencentes a «fvh comoa chamada ao Dever ou ao Método.

Quanto às encarnaçõcs do Mau, enumeremo-Ias na

ordem. Em Casino Royal, Le Chiffre é pálido, glabro,com cabelos ruivos cortados à escovinha, uma boca pe­quena como a de uma mulher, dentes postiços de altaqualidade, orelhas pequenas com lóbulos grandes, mãospeludas; não ri nunca. Em Live and Lei Die, Mr. Big,negro do Haiti, tem uma cabeça que se assemelha a umabola de futebol, apresentando o dobro das dimensões

normais e absolutamente esférica. «A pele era de umpreto-acizentado terroso, esticada e brilhante como o

rosto de um afogado de uma semana. O crânio era calvo,com exceção de alguns fiapos cinza-castanho acima dasorelhas. Não tinha nem cílios nem sobrancelhas e os olhos

eram extraordinariamente separados, de tal modo que nãose podiam fixar os dois ao mesmo tempo ... Eram maisolhos de um animal que de um homem e lançavam cha­mas.» As gengivas pareciam anêmicas.

Em Diamonds Are Forever, o Mau cinde-se em três

figuras de substituição. Há em primeiro lugar Jac].;: eSeraffímo Spang, dos quais o primeiro é corcunda e temcabelos ruivos (Bond ... «não se lembrava de ter visto

jamais um corcunda de cabelos ruivos»), olhos que pa­reciam emprestados a um empalhador, orelhas de lóbulosdesproporcionais, lábios vermelhos e secos, uma ausênciaquase que total de pescoço. Seraffimo tem um rosto corde marfim, sobrancelhas negras e cerradas, cabelos hirsu­

tos e penteados à escovinha, maxilares «proeminentes eimpediosos». Caso se acrescentar que Seraffimo está ha­bitualmente vestido com calças de pele preta bordadascom prata, usa esporas de prata, uma pistola de coronhade marfim, um cinto preto C0111 muniç(jes e que conduzum trem modelo 1870 com um equipamento da épocavitoriana, forma-se um quadro completo para filme emtecnico]or. A terceira figura de substituição é a do senhor

142 I

I4

"Winter que viaja com uma pasta de documentos de couro,onde está escrito sobre a lingüeta da fechadura: «Meugrupo sangUíneo é F», e que, em realidade, (~um matadora soldo dos Spang. E' um indivíduo gordo e suarento,com uma verruga sobre a mão, um rosto flácido, olhosesbugalhados.

Em Moonraker, Hugo Drax tem um metro e oitenta,espáduas «excepcionalmente largas», uma cabeça enormee quadrada, cabelos ruivos, o lado direito do rosto bri­lhante e todo pregueado como conseqÜência de uma in­tervenção de cirurgia plástica mal sucedida, o ôlho direitodiferente do esquerdo, maior como resultado de uma con­

tração da pele da pálpebra, «de uma vermelhidão penosa».Tem espessos bigodes vermelhos, costeletas que vão atéos lóbulos das orelhas, com alguns tufos suplementaressobre as maçãs do rosto. Além disso, seus bigodes esfor­çam-se por dissimular, mas sem grande sucesso, seu ma­xilar superior proeminente e dentes que sobressaem demaneira muito nítida. O dorso das mãos é coberto porurna espessa penugem vermelha e, no conjunto, a perso­nagem evoca um diretor de circo.

Em From Russia witlz Love, o Mau dá origem atrês personagens de substituição :Red Orant, o matadorprofissional a soldo de Smersh, de cHios ralos cor de

areia, olhos azuis lavados e opacos, boca pequena e crucl,inumeráveis sardas sobre uma pele de um branco leitoso,

e poros profundos e espaçados; o Coronel Grubozaboys­chikov, cl1efe de Smersh, de rosto estreito e pontudo,olhos redondos como duas bolas de gude translúcidas.empapuçados por duas bolsas caídas e moles, boca enormee sinistra, crânio complemente nu; e enfim Rosa Klebb,de láhios Úmidos e pálidos mancha elos ele nicotina, vozrouca, uniforme e privada de toda emoção, com um metroe sessenta, chata, braços curtos, pescoço curto, clavículasenormes, cabelos grisalhos, reunidos em um coque aper­tado e «obsceno», «olhos brilhantes de cor marrom daro»,óculos grossos, naris pontudo com narinas largas enfari­nhado de pó de arroz, «o antro Úmido ela boca quc scabria e se fechava continuamcntc como se fosse mano­

brado por um sistema de fios», a aparência geral de um

143

extremidades brilham como o osso, e que pode quebrara balaustrada de madeira de uma escadaria com um soco.

E' em Thunderball que aparece pela primeira vezStravo Blofeld, reencontrado em On Her Majes!y's SecretService e em You Only Live Twice, romance onde eleenfim morre. Como substitutos, ele tem, em Thunderball,o Conde Lippe e Emílio Largo. Todos dois são belos eagradáveis, embora vulgares e cruéis, mas sua monstruo­sidade é toda interior. Em On Her Majesty's SecretService, aparece Irma Blut, a alma danada de Blofeld,uma longinqua reencarnação de Rosa Klebb, e mais umséquito de «vilões» que morrem tragicamente. No terceiroromance, o papel principal é retomado e levado a seuparoxismo pelo monstro Blofeld, já descrito em Thun­derball: dois olhos que parecem lagos profundos, cerca­dos «como os olhos de Mussolini» por duas esc!eróticasde um branco muito puro, de uma simetria que lembraos olhos das bonecas, por causa também dos cHios negrose sedosos do tipo feminino, dois olhos puros em um rostoinfantil, marcado por uma boca vermelha úmida «comoum fcrimento mal cicatrizado», sob um nariz grosseiro;no conjunto, uma expressão de hipocrisia, de tirania ede crueldade «em um nível shakesperiano». Pesa cento evinte quilos, informa-se em On Her Majes!y's Secre!Service e não tem lóbulos nas orelhas. Seus cabelos sãocortados à escovinha. Esta singular unidade de fisionomiade todos os Maus por profissão confere uma certa unidadeà relação Bond -- O Mau, sobretudo se se acrescentaque, de ordinário, o mau se distingue também por todauma série de características raciais e biográficas.

O Mau vê o dia em uma zona ética que vai da Eu­ropa Central aos países eslavos e à bacia do Mediterrâneo.E' habitualmente de sangue mestiço e suas origens com­plexas e obscuras. E' assexuado ou homossexual; em todocaso, não é sexualmente normal. Dotado de qualidadesexcepcionais de invenção e de organização, ele empreen­deu por sua prÓpria conta uma atividade considerável quelhe permite juntar uma imensa fortuna, graças à qual tra­balha em favor da Rússia. Com esse fim, concebe umplano cujas características e dimensões são próprias da

1''1::11

ser sexualmente neutro. Em From Russia with Lave, en­contra-se também uma variante que é retomada em muitospoucos dos outros romances. Entra aí em cena um serfortemente caracterizado, que apresenta muitas qualida­des morais do Mau, ressalvando-se que ele as utiliza emvista do bem ou se bate sempre ao Jado de Band. Poderepresentar lima certa Perversão e é certamente portadorde uma Natureza excepcional, mas conserva-se sempre doJado da Lealdade. Trata-se de Darko Kerim, o agenteturco. Há alguns casos análogos: o chefe da espionagemjaponesa, Tiger Tanaka, em Yau Only Live Twice; Dracoem On Her Majesty's Secrel Service; Enrico Colomba em«Riesico» (uma novela de For Yours Eyes Only) e, demaneira parcial, Quarel! em Dr. No. Estes personagenssão substitutos simultaneamente do Mau e de «M»; nósos chamaremos de «substitutos ambíguos~). Com eles,Bond estabelece uma espécie de aliança compet;tiva; eleos ama e os teme ao mesmo tempo, ele os utiliza e osadmira, ele os domina e se Ihes submete.

Em Dr. No, o Mau, além de sua altura desmesurada,distingue-se pela ausência de mãos, substituídas por pin­ças de metal. Sua cabe raspada tem o aspecto de LImagota invertida, a pela é translúcida, sem rugas, as maçãsdo rosto parecem de marfim velho, suas sobrancelhasparecem pintadas, seus olhos não têm cilios, têm a apa­rência de «duas pequenas bocas negras»; o nariz é finoe acaba muito próximo da boca que respira a crueldadee a decisão.

Em Goldfinger, a personagem do mesmo nome ésimplesmente o monstro perfeito. O que o distingue é afalta total de proporções. «Ele era pequeno, não ultra­passando um metro e cinqÜenta, e, em cima de um corpoatarracado e pesado, plantado sobre duas robustas pernasde camponês, sua enorme cabeça redonda parecia engas­tada entre suas espáduas. A impressão era que Goldfingertinha sido feito por uma reunião de partes pertencentesa diversas pessoas.» E as diversas partes deste corpo nãose correspondiam. Em suma, era um pequeno homem malfeito, de cabelos vermelhos e um rosto bizarro. Seu substi­

tuto é o coreano Oddjob, de dedos em espátulas, cujas

144 Análise Estrutural - 10 145

pelo bridge, mas só sente prazer em trapacear. Sua his·tória não deixa suspeitar atividades sexuais notáveis.

Os chefes dos personagens de substituição de FramRussia witlz Lave são soviéticos; é evidentemente de seutrabalho pela causa comunista que estes personagens tiramfartura e poder. Rosa Klebb é sexualmente neutra: «Erapossível que ela tivesse prazer no ato físico, mas o instru­mento não importava.» Quanto a Red Orant, é um lo­bisomem que mata por paixão; leva uma vida luxuosa àscustas do governo soviético, em uma villa com piscina. Oplano consiste em atrair Bond para uma cilada complicada,utilizando como isca uma mulher e um aparelho paracodificar e descodificar os telegramas cifrados, matá-Ioem seguida e fazer fracassar a contra-espionagem inglesa.

O Dr. No é de sangue mestiço de chinês e alemão.Trabalha para a Rússia. Não demonstra tendências se­xuais bem definidas; tendo entre as mãos Honeychile,propõe-se a fazê-Ia ser devorada pelos caranguejos deCrab Key. Vive de uma florescente indústria de guanoe é bem sucedido ao fazer desviar os mísseis teleguiadoslançados pelos americanos. No passado, edificou sua ri­queza enganando as organizações criminosas das quaisera o caixa. Vive em sua ilha, em um palácio de um faustofabuloso, uma espécie de aquário gigante.

Ooldfinger é provavelmente de origem báltica masdeve ter sangue judeu. Vive faustosamente do comércio edo contrabando de ouro, e pode assim financiar os movi­mentos comunistas na Europa. Projeta roubar o ouro deFort Knox (e não torná-Io radioativo como o afirma en­ganosamente o filme), e obtém, para fazer explodir asúltimas barreiras, uma bomba atômica tática subtraida àsforças da OTAN. Tenta envenenar a água de Fort Knox.Não tem relações sexuais com a jovem que tiraniza e res­tringe-se a cobri-Ia de ouro. Trapaceia no jogo por voca­ção, empregando custosos expedientes como a luneta e orádio; trapaceia para ganhar dinheiro, embora seja fa­bulosamente rico e viaje sempre com uma reserva de ouroimportante em sua bagagem.

Blofeld, por Slla vez, é filho de pai polonês e de mãegrega. Utiliza sua qualidade de empregado do telégrafo,

ficção científica; estudado em seus menores detalhes, visaa colocar em sérias dificuldades ou a Inglaterra ou oMundo livre em geral. A figura do Mau reúne de fato osvalores negativos que identificamos em alguns pares deoposições, em particular os polos União Soviética e paísesnão anglo-saxões (a condenação racista atinge particular­mente os judeus, os alemães, os eslavos e os italianos,sempre considerados como metecos), a Cupidez elevadaao nível de paranóia, a Programação como metodologIatecnicizada, o Fausto satráp:co, a Natureza excepcionalfísica e psíquica, a Perversão física e moral, a Deslealdaderadical.

Le Chiffre, que alimenta os movimentos subversivosna França, descende de uma «mistura de raças mediterrâ­neas com os ancestrais prussianos e poloneses»; temtambém sangue judeu, revelado por «pequenas orelhasde lóbulos carnudos». Jogador, embora leal, trai entre­tanto seus patrões e procura recuperar por meios crimi­nosos o dinheiro perdido no jogo. E' masoquista (é pelomenos o que assegura sua ficha do Serviço Secreto) em­bora heterossexual. Montou uma enorme cadeia de casasde tolerância, mas dilapidou seu patrimônio levando umavida mundana.

Mister Big é um negro. Suas relações com Solitaire,que ele explora, são ambíguas (jamais obteve seus favo­res). Ajuda os soviéticos graças à sua possante organiza­ção criminal fundada sobre o culto vudu, procura e escoanos Estados Unidos tesouros escondidos desde o séculoXVII, controla grandes negócios escusas (rackets) e pre­para-se para arruinar a economia americana introduzindono mercado clandestino quantidades consideráveis demoedas raras.

A nacionalidade de Hugo Drax é imprecisa: é inglêspor adoção, mas de fato é alemão. Possui o controle dacolombita, material indispensável para a construção dereatores e faz presente à Coroa britânica de um fogueteextremamente possante. Em realidade, seu projeto é fazercair sobre Londres este foguete de ogiva atômica, e fugirem seguida para a Rússia (equação comunismo = na­zismo). Freqüenta clubes muito fechados, é apaixonado

146 10· 147

,~:i li 111

na Polônia, para começar um lucrativo comércio de infor­mações secretas; torna-se chefe da mais vasta organizaçãoindependente de espionagem, de chantagem, de rapina ede extorsão de fundos. Assim, com Blofeld, a RÚssiadeixa de ser o inimigo habitual, em virtude do relaxa­mento da situação internacional, e o papel de organizaçãomaléfica é retomado pelo Spectre. O Spectre tem entre­tanto todas as características de Smersh, aí compreendidoo emprego de elementos eslavo-Jatino-gennânicos, os mé­todos de tortura e intimidação, o ódio jurado às Potênciasdo Mundo Livre. Entre os planos de ficção científica deBlofeld, o de Thunderball consiste em subtrair à OTANduas bombas atômicas, e em fazer chantagem por estemeio com a Inglaterra e os Estados Unidos. Em On HerMajesty's Secret Service, prevê a preparação em umaclínica de montanha de jovens camponeses alérgicos coma finalidade de difundir vírus mortais destinados a arrui­nar a agricultura e a criação britânicas. Em Vou OnlyLive Twiee, Última etapa da carreira de Blofeld, que seencaminha de agora em diante para a loucura sanguinária,ele se restringe, em uma escala política mais reduzida, naorganização de um jardim dos suicidas, que atrai, ao longodas costas japonêsas, legiões de herdeiros dos kamikase,desejosos de se fazer envenenar por plantas exóticas refi­nadas e mortais, para grande prejuízo do patrimôniohumano democrático japonês. O gosto de Blofeld por umfausto de sátrapa manifesta-se já no modo de vida queleva na montanha em Piz Gloria, e mais ainda na Ilha deKyushu, onde vive como tirano da Idade Média e passeiaem seu !wrtlls delicíarum protegido com uma armadurade ferro. Anteriormente, Blofeld havia mostrado desejo dehonrarias (aspirava a ser reconhecido como CondeBleuville). Sexualmente impotente, vive maritalmente comIrma Blofeld, ela também assexuada e também repug­nante. Para retomar a palavra de Tiger Tanaka, Blofeld«é um demônio que tomou" uma aparência humana».

\

Só os maus de DiamOlids Are Forever não têm ne­nhuma conivência com a RÚssia. Em um certo sentido, ogangsterismo . internacional dos Spang apareceria como

148

uma prefiguração do Spectre, e de resto, Jack e Seraffimoapresentam todas as taras habituais.

Aos atributos típicos do Mau opõem-se as qualidadesde Bond, em particular a Lealdade ao Serviço, a Medidaanglo-saxônica oposta à natureza excepcional do sanguemestiço, a escolha da Privação e a aceitação do Sacrifíciocontra o Fausto que o inimigo demonstra, a improvisação(Risco) oposto à fria Programação e que triunfa desta, osentido do Ideal oposto à cupidez (Bond ganha às vezesno jogo o dinheiro do Mau, mas aplica habitualmente aenorme soma ganha em seu Serviço ou em favor daamante do momento, como o faz em benefício de JillMasterson; de toda maneira, quando conserva o dinheiro,não faz disto um fim em si). De outro ponto de vista,certas oposições axiológicas não funcionam apenas nasrelações Bond - o Mau, rrtaS também no interior docomportamento de próprio Bond: a;>sim, Bond é geral­mente leal, mas não despreza combater seu inimigo comas próprias armas deste, trapaceando com o trapaceiro efazendo-lhe chantagem (et. Moonraker ou GOldfinger).Natureza excepcional e Medida, Risco e Programaçãoopõem-se igualmente nos gestos e nas decisões do próprioBond, em uma dialética de observação do método e decabeçadas, e é precisamente esta dialética que torna fas­cinante o personagem, que lhe dá vantagem precisamenteporque não é absolutamente perfeito (como o são aocontrário «M» e o Mau). Dever e Sacrifício aparecemcomo elementos de debate interior cada vez que Bondsabe que deverá fazer fracassar os planos do Mau comrisco de sua vida e, neste caso, é o ideal patriótico (Grã­Bretanha e Mundo livre), que têm a primazia. A preo­cupação racista de afirmar a superioridade do homembritânico tem igualmente seu papel. Em Bonel opõem-setambém Fausto (gosto pelas boas refeições, refinamentono trajar, escolha de hotéis, criação de eocktails, etc.) ePrivação (Bond está sempre pronto a abandonar o Faus­to, mesmo se ele toma a forma da A,1ulher que se oferece,para enfrentar uma nova situação de Privação, cujo pontoculminante é a tortura).

149

I!:II:III;

Temos insistido longamente sobre o par Bond - oMau por que ele resume de fato todas as oposiçõesenumeradas, inclusive o jogo entre Amor e Morte, que,sob a forma primordial de uma oposição entre Eros eTanatos, princípios de prazer e de realidade, se manifestano momento da tortura (teorizada de maneira explícitaem Casino Royal por uma espécie de relação erótica entrecarrasco e vítima).

Esta oposição se aperfeiçoa na relação entre o Maue a Mulher. Vesper é tiranizada pelos soviéticos que asubmeteram a uma chantagem, e portanto por Le Chiffre;Solitária é a vítima submissa de Big Man; Tiffany Caseé dominada pelos Spang; Tatiana está sob o domínio deRosa Klebb e do governo soviético em geral; JilI e TilIyMasterson são dominadas de maneira diversa por Gold­finger, e Pussy Galore trabalha sob suas ordens; DominoVitali curva-se às vontades de Blofeld por intermédio desuas relações físicas com Emilio Largo, figura de substi­tuição; as jovens inglêsas hospitalizadas em Piz Glóriaestão sob o controle hipnótico de Blofeld e sob a vigi­lância virginal de Irma Blunt, figura de substituição;Honeychile, ao contrário, mantém apenas uma relaçãosimbólica com o poder do Dr. No, passeando pura e semexperiência pela órla de sua ilha maldita, e é apenas nofinal que o Dr. No oferece seu corpo nu aos caranguejos(Honeychile foi dominada pelo Mau por intermédio dobrutal Mander, que a violou, e que ela fez punir com jus­tiça pela picada de um escorpião, antecipando assim suavingança sobre No quando recorre aos caranguejos).Enfim, Kissy Suzuki, que vive em sua ilha à sombra docastelo maldito de Blofeld, sofre por parte dele um domí­nio puramente alegórico, como toda a população do lugar.A meio caminho, Gala Brand, que é agente do Serviço,torna-se entretanto a secretária de Hugo Drax e estabe­lece com ele uma relação de submissão. Na maior partedos casos, esta relação torna-se mais perfeita pela tortura,que a mulher sofre do mesmo modo que Bond. Aí o parAmor-Morte funciona igualmente no sentido de uma co­municação erótica mais íntima das duas vítimas atravésda prova comum.

150

o esquema que é comum a todas as mulheres deFleming é o seguinte: }9 a jovem é bela e boa; 2'1 elatornou-se fria e infeliz por duras provas sofridas durantea adolescência; 3'1 isto a preparou para servir o Mau;4'1 por seu encontro com Bond ela realiza sua própriaplenitude humana; 5'1 Bond a possui mas acaba porperdê-Ia.

Este curriculum vitae é comum a Vesper, a Solitaire,a Tiffany, Tatiana, Honeychile, Domino, parcialmente aGala, distribuído equitativamente entre as três mulheresde substituição de Goldfinger (GiII, TiIly e Pussy; asduas primeiras conheceram um passado doloroso, mas sóa terceira foi violada por seu tio; Bond possui a primeirae a terceira, a segunda é morta pelo Mau, a primeiratorturada com o ouro; a segunda e a terceira são lésbicase Bond só resgata a terceira, etc.). O passado das jovensde Piz Glória é mais confuso e mais incerto: cada umateve um passado infeliz, mas Bond só possui de fatoapenas uma (ele se casa paralelamente com Tracy, depassado infeliz, dominada além disso pelo pai, Draco,substituto ambiguo, e que é morta no final por Blofeldque realiza então seu domínio sobre ela e conclui com aMorte a relação de Amor que ela mantinha com Bond).Kissy Suzuki sofreu uma experiência holIywoodiana quea tornou prudente em relação à vida e aos homens.

Em cada caso, Bond perde cada uma destas mulhe­res ou por sua própria vontade ou pela de outrem (nocaso de Gala, é a mulher que se casa com outro, emboracontra a vontade). Assim, no momento em que a Mulherresolve a oposição com o Mau para entrar com Bond emuma relação purificador-purificada, salvador-salva, elavolta para o domínio do negativo. O par Perversão-Can­dura combateu durante muito tempo dentro dela (combateexterior na relação Rosa Klebb- Tatiana). Este combatefaz dela parente próxima da virgem perseguida richardso­niana, portadora de pureza através, malgrado e contra alama. Ela apareceria igualmente como resolvendo o con­traste entre raça escolhida e sangue mestiço não anglo­saxônico, pois pertence freqüentemente a uma raça in­ferior. Mas, a relação erótica findando sempre por uma

151

morte real ou simbólica, Bond recobra, quer queira ounão, sua pureza de celibatário anglo-saxônico. A raçapermanece ao abrigo da contaminação.

2. As situações de jogo e intriga como «partida»

Os diversos pares de oposição (dos quais só considera­mos algumas possibilidades de variantes) aparecem comoos elementos de uma ars combinatoria de regras bastanteelementares. E' claro que, no curso do romance, o leitornão sabe se, nem em que momento da ação, o Mau ba­terá Bond ou Bond o Mau, e assim sucessivamente. Masantes do fim do livro, a álgebra deve-se desenvolver se­

gundo um código fixado por antecipação, como no jogochinês que 007 e Tanaka disputam no inicio de You OnlyLive Twice: a mão bate o ponto, o punho bate dois dedos,dois dedos batem a mão. «M» bate Bond, Bond bate oMau, o Mau bate a Mulher, mesmo quando é Bond quembate a Mulher primeiro; o mundo livre bate a União So­viética, a Inglaterra bate os países impuros, a Morte bateo Amor, a Medida bate a Natureza excepcional, e assimsucessivamente.

Esta interpretação da intriga em termos de jogo nãoé fruto do acaso. Os livros de Fleming são dominados poralgumas situações-chave que chamaremos «situações dejogo». Vêem-se aparecer aí antes de tudo algumas situa­ções arquétipos, como a Viagem ou a Refeição. A Viagempode-se fazer de Auto (e aqui intervém uma rica simbo­logia do automóvel, característica de nosso século); pode­se fazer por Trem (outro arquétipo, do gênero séculoXIX este), ou por Avião, ou ainda de Navio. Mas, emgeral, uma refeição, uma perseguição por automóvel ouuma corrida louca de trem são sempre jogadas sob aforma de desafio, de partida. Bond dispõe a escolha dospratos como se dispõem as partes de um quebra-cabeças;prepara-se para a refeição com os mesmos escrÚpulos demétodo que para uma partida de bridge (ver a conver­gência dos dois elementos em uma relação meios-fins emMoonraker) e compreende a refeição como um fator de

152

jogo. Do mesmo modo, trem e viatura são os elementosde uma aposta feita com o adversário: antes que a viagemtermine, um deles aplicou seus golpes e pôs seu adversá­rio em xeque-mate.

E' inútil lembrar aqui que lugar proeminente ocupamem cada livro as situações de jogo no sentido próprio epreciso de jogo de azar com suas convenções. A maneiraminuciosa de descrever estas partidas será ob.ieto deoutras considerações no parágrafo que consagraremos àstécnicas literárias. Se as partidas ocupam tal lugar aqui,é porque elas constituem, de algum modo, modelos redu­zidos e formalizados desta situação de jogo mas geral queé o romance. O romance, tendo sido dadas as regras decombinações dos pares de oposições, desenvolve-se comouma seqüência de «lances» que respondem a um código,c que obedecem a um esquema perfeitamente regrado.

Este esquema invariável é o seguinte:

A. - "M" joga e confia uma missão a Bond.B. - O Mau joga e aparece a Bond (eventualmente sob uma

forma substitutiva).C. - Bond joga e inflige um primeiro fracasso ao Mau _ ou

o Mau inflige um fracasso a Bond.D. - A Mulher joga e apresenta-se a Bond.E. - Bond consegue a Mulher; ele a possui ou empreende apossessão.F. - O Mau prende Bond (com ou sem a Mulher, ou em mo­

mentos diversos).G. - O Mau tortura Bond (com ou sem a Mulher).H. - Bond bate o Mau (ele o mata ou mata o substituto ou

assiste à sua morte).r. - Bond convalescente se entretém com a Mulher, que per­

derá em seguida.

O esquema é invariável no sentido que todos oselementos estão sempre presentes em cada romance; po­der-se-ia afirmar que a regra do jogo fundamental é«Bond joga e ganha em oito lances», ou, em razão daambivalência Amor-Morte, na medida em que «o Mauresponde e ganha em oito lances». Não foi dito que oslances devam sempre ser jogados na mesma ordem. Umaesquematização minuciosa dos dez romances estudados

mostrará alguns destes construí dos a partir do csque-

153

155

Encontra com Félix Leiter queinforma Bond sobre os Spang.

Aparição dos substitutos doMau no salão de banhos delama e punição do jockey traI­dor, antecipação simbólica datortura de Bond. Todo o episó­dio de Sara toga constitui umaminuciosa situação de jogo.

Bond decide ir a Las Vegas.Descrição dos lugares.

Outra longa e minuciosa situa­ção de jogo. Partida com Tif-

de Seraffimo

(A) "M" envia Bond para aAmérica sob o disfarce deum falso contrabandista.

(B) Os Maus (os Spang) apa­recem indiretamente nadescrição que é feita aBond.

(D) A Mulher (Tiffany Case)encontra-se com Bond naqualidade de intermediária.

Are Forever por exemplo, representando à esquerda aseqüência dos lances diretos e à direita a l11ultiplicidadedos lances indiretos:

Longa interrupção em Saratoga,nas corridas. Ajudando Leiter,Bond prejUdica de fato osSpang.

Longo e curioso prólogo, queintroduz ao contrabando dosdiamantes na África do Sul.

Minuciosa viagem em avião: aofundo dois substitutos do Mau.Situação de jogo, duelo imper­ceptível caça-caçadores.

(B) Primeira aparição em aviãodo substituto do Mau,Winter (grupo sangUineoF).

(B) Encontro com Jack Spang.

(E) Bond começa a seduzirTiffany.

(C) Bond inflige um primeirofracasso ao Mau.

(B) ApariçãoSpang.

154

ma ABCDEFGHI (Dr. No, por exemplo), mas, com maisfreqüência, há inversões e repetições de diversas natu­rezas. Por vezes, Bond encontra o Mau no começo doromance e lhe inflige uma primeira derrota; só depoisé que lhe será confiada uma missão por «M». Esteé o caso do Goldfinger que apresenta um esquema dotipo BCDEACDFGDHEHI, no qual pode-se notar a repetiçãode muitos lances com dois encontros e duas partidasjogadas contra o Mau, duas seduções e três encontroscom mulheres, uma primeira fuga do Mau após sua der­rota, e sua morte no fim, dc. Em From Russia With Lave,os Maus multiplicam-se graças à presença do substitutoambíguo Kerim, em luta com o substituto do Mau e aoduplo duelo mortal de Bond com Red Grant e com RosaKlebb, presa após ter ferido gravemente Bond; de sorteque o esquema, muito complicado é BBBBDA(BBC)EFGHGH(I). Presencia-se aqui um longo prólogo na Rússia, coma parada dos substitutos do Mau, e uma primeira relaçãoentre Tatiana e Rosa Klebb, o envio de Bond à Turquia,um longo parêntese no curso do qual aparecem os vicá riosKarim e Krilenku, com a derrota deste último; a seduçãode Tatiana, a fuga no trem com a tortura infligida porsubstituição a Kerim, a vitória sobre Red Grant, o se­gundo round com Rosa Klebb que, no momento em queé batida, inflige a Bond graves ferimentos. No trem, edurante os últimos golpes, Bond consuma sua convales­cência de apaixonado por Tatiana, prevendo a separação.

O conceito de tortura sofre ele próprio variações econsiste ou tem uma vexação direta, ou em uma espéciede percurso de horror ao qual Bond é submetido, sejapor vontade expressa do mau (Dr. No), seja por acaso,para escapar do Mau (percurso trágico na neve, perse­guição, avalancha, corrida vertiginosa através de pequenascidades suiças em On fler Majesty's Secret Service).

Ao lado da seqüência de lances diretos, há lugarpara numerosos lances indiretos, que enriquecem a aven­tura de escolhas imprevistas, sem entretanto alterar oesquema de base. Caso se quisesse dar uma representa­ção gráfica desta maneira de proceder, poder-se-ia re­sumir como se segue a trama de um romance, Diamonds

1'111'1'. I

'I;

fany como crupiê. Jogo de me­sa, esgrima amorosa indiretacom a mulher, jogo indiretocom Seralfimo. Bond ganhadinheiro.

(C) Bond inflige um novo fra­casso ao Mau.

Na noite seguinte, longa fuzi­laria entre automóveis. Asso.ciação Bom . Emie Cureo.

(F) Spang captura Bond.

Longa descrição de Spectrevillee do trem de brinquedo deSpang.

(G) Spang faz torturar Bond.

Bond ajudado por Tiffany co­meça mna fuga fantástica emum pequeno vagão através dodeserto, perseguido pela loco­motiva de brinquedo conduzi­da por Seraffimo. Situação dejogo.

(H) Bond bate Seraffimo quese esmaga com sua loco­motiva contra a montanha.

Repouso com o amigo Leiter,partida por navio, longa con­valescença amorosa com Tiffa­ny, entre trocas de telegramascifrados.

(E) Bond possui enfim Tiffany.(B) O substituto do Mau, Win­

ter, reaparece.Situação de jogo no navio.Partida mortal jogada por des­10camentÇls infinitesimais entreos dois matadores e Bond. Asituação de jogo é simbolizadapor apostas sobre o tempo depercurso do navio.Os matadores capturam Tiffu·ny, Ação acrobática de Bondpara atingir a cabina da joveme matar os assassinos,

(H) Bond bate definitivamenteos substitutos do Mau.

156

Meditação sobre a morte dian­te dos dois cadáveres. Retor­no a casa.

(I) Bond sabe que pOderáaproveitar o repouso me·recidocom Tiffany. Entre­tanto ...

... desvio do caso para Áfricado Sul onde Bond destrói oúltimo elo da cadeia.

(fI) I30nd bate pela terceiravez o Mau na pessoa deJack Spang.

Seria possível traçar um esquema deste gênero paracada um dos dez romances. As invenções colaterais sãomuito rícas e constituem a carne do esqueleto narrativopróprío a cada um; elas constituem sem nenhuma dúvídaum dos principais encantos da obra de Fleming, mas nãoprovam, senão em aparência, sua faculdade de invenção.Com efeito é fácil ligar essas invenções colaterais a fontesliterárias precisas; elas agem pois como uma lembrançafamiliar de situações aceitáveis para o leitor. A tramaverdadeira permanece imutável e o «supense» estabele­ce-se de maneira curiosa sobre uma seqüência de acon­tecimentos inteiramente esperados. I~esumamos: a tramade cada livro de Fleming é a grosso-modo a seguinte:Bond é enviado a um lugar dado para esclarecer e' evitarum plano de tipo science-fiction, urdido por um indivíduomonstruoso de origem incerta, em todo caso não inglês,que, utilizando uma atividade própria seja como produtorseja como chefe de uma organização, não somente ganhadinheiro enormemente, mas faz o jogo dos inimigos doOcidente. Indo enfrentar este ser monstruoso, Bond en­contra uma mulher dominada por ele e a Iiherta de seupassado estabelecendo com ela uma relação erótica, in­terrompida pela captura de Bond pelo Mau e pela torturaque lhe é infligida. Mas Band derrota o Mau que morrede maneira horrível, e depois repousa de suas durasfadigas entre os braços da mulher, que ele está entre­tanto destinado a perder.

157

ill

r,ililll!!!111

E' para se perguntar como este mecanismo rígido écompatível com uma procura de sensações e de surpresasimprevisiveis. Em realidade, o que caracteriza o romancepolicial, seja ele enquête ou ação, não é tanto a variaçãodos fatos quanto o retorno de um esquema habitual noqual o leitor poderá reconhecer alguma coisa já vista eque lhe agradou. Sob a aparência. de uma máquina pro­duzindo informação o romance policial é, ao contrário,uma máquina produzindo redundância; fingindo comovero leitor, ela se afunda em uma espécie de preguiça deimaginação e fornece evasão contando não o que é igno­rado, mas o já conhecido. Enquanto que, entretanto, noromance policial antes de Fleming, o esquema imutávelé constituído pela personalidade do policial e de suaequipe, por seu método de trabalho e por seus tiques, en­quanto que é no interior deste esquema que se desenrolamacontecimentos sempre imprevisíveis (e o mais imprevisí­vel será a própria pessoa do culpado), no romance deFleming o esquema monta a mesma cadeia de aconteci­mentos e as mesmas características de personagens se­cundários. O que antes de tudo se conhece desde o co­meço em Fleming é precisamente o culpado com suascaracterísticas e seus planos. O prazer do leitor consisteem encontrar-se mergulhado em um jogo do qual se co­nhecem as peças e as regras, e mesmo o desfecho foraalgumas variações mínimas.'

Poder-se-ia comparar um romance de Fleming a umapartida de futebol, em que se conhece desde o começoa ambiência, o nÚmero e a personalidade dos jogadores,as regras do jogo, o fato de que ele se realizará emterreno gramado. A Única diferença é que em urna par­tida de futebol ignora-se até o fim a Última informação:quem será o ganhador? Seria mais exato compará-Ia auma partida de basquetebol jogada pelos Harlem GlobeTrotters contra uma pequena equipe provinciana. Sabe sede maneira certa e em virtude de que regras os HarlemGlobe Trotters a vencerão; o prazer consistirá então emver com que achados e que virtuosismo atingirão o mo-

• Sobre esta caracterlstlca "Iteratlva" da narração popular, cf. os estudosde meus Apocolittici e Integrati, Bompianl, 1964.

158

mento final, com que manobras enganarão o adversário.Nos romances de Fleming, celebra-se pois de maneiraexemplar este elemento de jogo esperado e de redundân­cia absoluta que caracteriza os instrumentos de evasãoque funcionam no domínio das comunicações de massa.Perfeitos em seu mecanismo, estes engenhos são repre­sentativos das estruturas narrativas que trabalham sobreconteÚdos evidentes e que não aspiram a declaraçõesideológicas particulares. E' verdade, entretanto, que estasestruturas assinalam de passagem, inevitavelmente, po­sições ideológicas e que estas posições ideológicas nãoderivam tanto dos conteÚdos estruturados quando da ma­neira de estruturar os conteúdos na narração.

3. Uma ideologia maniqueísta

Os romances de Fleming têm sido diversamente acusadosde macartismo, de fascismo, de culto do excepcional e daviolência, de racismo e assim sucessivamente. E' difícil,após a análise que acabamos de realizar, negar queFleming se incline a pensar que o homem anglo-saxão ésuperior às raças orientais ou mediterrâneas, ou que eleprofessa um anticomunismo viscera I. E' entretanto mar­cante que cessa de identificar o mal com a RÚssia desdeque a situação internacional permite ao menos o temorsegundo a consciência comum; é marcante que, apresen­tandoa quadrilha negra de Mister Big, Fleming demoraa reconhecer as novas raças africanas e sua contribuiçãopara a civilização contemporânea (o gangsterismo negrorepresentaria uma prova da perfeição atingida em todosos domínios pelos povos de cor); marcante que a suspeitade ter sangue judeu, insinuada em relação a certos per­sonagens, seja temperada por uma nuança de dÚvida,Que ele reprove ou que absolva as raças inferiores, Fle­ming não ultrapassa jamais o racismo larvar do homemcomum, o que nos faz suspeitar que nosso autor nãocaracteriza seus personagens de tal ou tal maneira comoconseqÜência de uma decisão ideológica mas por puraexigência retórica.

159

Witll Love, seus soviéticos são tão monstruosamente, tãoincrivelmente maus que não pareceria possível levá-Ias asério. E entretanto Fleming faz preceder o livro de umbreve prefácio no qual explica que todas as atrocidadesque ele narra são absolutamente verídicas. Ele escolheucomo instrumento a fábula e a fábula quer ser constlmidacomo verossímil, sob pena de transformar-se em um apó­logo satírico. Dir-se-ia quase que o autor escreve sellslivros para uma dupla leitura e que os destina aos queos tomam por ouro em barra como para os que saberãorir de tudo. Mas é necessário, para que possam represen­tar este duplo papel, que o tOI11seja autêntico, ingênuo,digno de fé, de uma clareza truculenta. Um homem quefaz uma tal escolha não é nem fascista nem racista; ésomente um cínico, um engenheiro de romances paraconsumo de massa.

Flcrning não é reacionário pelo fato de preencher alacuna «mal» de seu esquema com um russo ou umjudeu; é reacionário porque procede por esquemas. ACO!1struç:ào por esquemas, a bi"partição maniqueísta l'sempre dogmática, intolerante. O democrata é o que re­cusa os esquemas e que reconhece as l1uanças, as dis­tinções e justifica as contradições. Fleming é reacionáriocomo o é na sua origem a r;lbuJa, qualquer fábula. E'o espírito conservador ancestral, dogmático e estático,das fábulas e dos mitos, que transmitem uma sabedoriaelel11C'ntar,construída e transmitida por um simples jogode luz e sombra, e a transmitem por imagens indiscutÍ­veis não permitindo a crítica. Se Fleming é fascista, eleo (~porque é próprio do fascismo ser incapaz de passarda mitologia para a razão, tender a governar servindo-sede mitos e fetiches.

Os próprios nomes dos protagonistas participamdesta natureza mitológica; por uma imagem ou um ca­Jembur, eles revelam de maneira imutável o caráter dopersonagem, desde o início, sem possibilidade de modifi­cações ou de conversão (impossível chamar-se Branca deNeve se não se Ó branca como a neve, de fisionomiacomo de coração). O mau vive do jogo? Chamar-se-áL(' Clziffre. Está a serviço dos vermelhos? Chamar-se-á

IIH'j,1

'I":IIIII!I:II:

RetÓrica entende se aqui com o sentido original quelhe deu Aristóteles: uma arte de persuadir que se deveapoiar, para fundamentar raciocínios convincentes, sobreos endoxa, isto é, sobre as coisas que a maioria daspessoas pensa.

Fleming pretende, com o cinismo do gentleman de­sencantado, construir uma m'áquina narrativa que funcio­ne. Para fazer isto, decide recorrer aos atrativos maisuniversais e mais seguros e põe em jogo elementos ar­quétipos que são aqueles já aprovados nas fábulas tradi­cionais. Revejamos um momento os pares de característi­cas que entram em oposição: «M» é o Rei e Bond oCavaleiro investido de uma missão; Bond é o Cavaleiroe o Mau é o Dragão; a Mulher e o Mau estão entre elescomo a Bela e a Fera; Bond, que traz a Mulher de voltaà plenitude de seu espírito e de seus sentidos, é o Prín­cipe que desperta a Bela Adormecida. Entre o Mundolivre e a União Soviética, entre a Inglaterra e os paísesnão anglo-saxões apresenta-se novamente a relação épicaprimitiva entre Raça eleita e Raça inferior, entre Brancoe Negro, entre Bem e Mal.

Fleming é racista como o é todo ilustrador que,desejando representar o diabo, faz-lhe os olhos repuxa­dos, como o é a ama que, desejando evocar o BichoPapão, sujere que é um negro.

E' singular que Fleming seja anticomunista com amesma indiferença que é anti-racista e antialemão. Nãoé que seja reacionário em um caso e democrata no outro.E' simplesmente maniqueísta por motivos de comodidade.

Fleming procura oposições elementares; para daruma fisionomia às forças primitivas e universais, recorrea c1ichês. Para identificar os c1ichês, prende-se à opiniãocomum. Em período de tensão internacional, o mau co­munista torna-se clichê, como o é, a partir de um mo­mento historicamente dado, o criminoso nazista impune.Fleming emprega-os a um e a outro com a maior indi­ferença.

No máximo tempera sua escolha pela ironia, masesta ironia é completamente mascarada e só se revelapor um exagero levado ao absurdo. Em From Russia

160 Al1;ili~e Estrutural -- I1 161

bem que é menos a narrativa particular concernente aJoão XXIII que nos ocupa aqui, de que um substratonarrativo válido para um personagem reconhecido e pro­clamado «grande homem» - de onde nosso título ­no interior de um universo de verossimilhança ou de opi­nião pÚblica provável (e presumida como tal pela im­prensa). Após termos prevenido alguns erros, estamosdiante de uma surpresa: o «repórter» expedindo no diaa dia seus artigos em sua mesa de redação, acaso sereconhecerá em uma análise de impulsos dramáticos, deseqiiências, de funções ativas e expressivas, etc.? O mes­mo é pedir ao homem da rua que fala o «neofrancês»que se enquadre na gramática que se venha a formardeste idioma!

Logo que a eventualidade ela morte de ... (JoãoXXIII) é seriamente encarada, a narrativa h)rnalisticainstaura-se. Cessará com a própria morte para dar lu­gar às narrativas seguintes: funerais, eleições no Con­clave, caso Profumo! A primeira vista, a diégese de umconto, de uma obra dramática, de um filme ... parecediferir da de uma narrativa de jornal: a primeira emanade uma criação fabuladora, a segunda é comandada diaa dia pelo acontecimento; na primeira, «o suspense» émanipulado, na segunda aparece inteiramente dado. OaContecimento opor-se ia à estrutura como a natureza ao«artefato», o acidental ao categoria!. E entretanto «sejaa ação 'vivida ou representada, é suscetível das mesmasapreciáções, cai sob as mesmas categorias».· No instanteem que o acontecimento é apresentado, o vivido trans­muta-se em representado, o dado circunstancial é apreen­dido segundo as «categorias» da narrativa. Imaginemosum instante que a última doença se tenha reduzido a umalonga coma'; um mínimo de modulação temporal comsignos de agravação ou de melhoramento, numa distribui­ção das funções ativas ou expressivas em tôrno do mo­ribundo, teriam, entretanto, parecido necessárias. No casode João XXIII apenas um jornal, Le Monde, esforçou-se

• tlenrl Gouthier. Théãtre et Existence, Aubler, 1952, p. 13.• Exercício não multo gratuito no caso das narrativas de jornal contandoa agonia de Churchill.

164

•..

'r

••

por esvaziar toda a reconstrução narrativa e forneceruma reportagem denotada, sublinhando, em caso de ne­cessidade, seu projeto de objetividade; ele não foi menosconstrangido a registrar a narratividade comum < e pro­ceder à ablação de elementos que teriam perturbado seuprojeto. r. Atenuações e reduções que rendem tributo àregra geral, à diégese cOl11umente instaurada.

U 111 eixo rccitativo é esboçado, qual é sua orienta­ção'? Etienne Souriau, a partir de lima espécie de axio­lagia estética • e Greimas sistematizando sobre a base deum postulado freudiano, o princípio do Prazer " estrutu­ram toda «narrativa-procura», senão toda narrativa, se­gundo o eixo do desejo: «a força vetoria!» (sujeito) éorientada em direção do «8em» ou do «valor» (objeto)diz Souriau; Greimas retoma: o Sujeito desl'ja ()

DesejoObjetú, Sujeito --~ Objeto. Segundi) este eixo, umanarrativa de doença mortal poderia ser a de uma luta

Desejocontra a morte, a do desejo de cura: Sujeito --.~ Cura,Mas diversas modificações podem intervir. Postulado porpostulado, podemos recuperar «narrantes» segundo urnaestrutura fundada sobre o principio de r~ealidadc, a

Aceitaçãoaceitação da Necessidade: Sujeito "-- ~ Necessida-de = Morte.

Ou ainda, na medida em que o esquema j udaico­cristão introduz narrantes específicos, a Necessidade podetransrnutar·-se em «Providência», a morte tornar-·se objetointermediário em vista do Objeto final (<<VielaEterna»)e o desejo transfigurar-se,

• A 28 de maio de 1963. o jornal cortou por antecipação qualquer alternativa,todo "suspense". declarando a doença "Incurável". Mas a 31 de maio ele co.menta as novas melhoras e instaura um mlnimo de modulação temporal: "Oestado de saúde de João XXIII permanece grave apesar da melhora registradadesde dois dias" (uma, tItulo) ... "Não parece portanto mais inverossímil queo desenlace fatal só se produza daqUi a diversas semanas· (p. 20)., O dooote pa~sa rapidamente das "1Iusães" à "lucidez· sobre seu estado. Porisso ele só proferirá urna parte das palavras transcritas pelo conjunto dos jor­nais, às da resIgnação à morte (e não as da espera da cura).• !.es 200000 sltuations dramatiques, Flammarlon, 1940., Cours de sémanllque, Institut Poincaré. Centro de Ilngüistica quantitativa,abril 1964, capo VI: '" 'analyse actantiella" (mimeografado).

165III1

III

I,

166

• Esta hipótese não tem nada de gratuita ou paradoxal. Ao chegar as seqüên­cias de "melhora" a narrativa se ameniza em lugar de se intensificar. asfunções ativas e expressivas conhecem uma notávei redução.

Doença incurávelMelhora possívelAgravamento irremedi.áveL

1. E"'lCemplode disjunção: signos de doença incurável ~ ~ signosde cura possível.

2 e 'I- Exemplos de dilema: doença X ou doença Y -.-.,.,. todasduas incuráveis.em algumas horas ou em algumas semanas -~ mortecerta.

do desenlace, vão determinar tinia paradigmática de umaparte t' de outra do eixo da transitividade, a alternativaentre os signos de Enfraquecimento e de Restabe!eci­mento.

Na maior part(~ dos jornais estudados, esta alterna­tiva toma uma dupla figura estrutural: a dísjunção queopõe dois termos suspende a conclusão e a faz dt:penderdo termo vitorioso, -- o dilema (no sentido aristotélico)que opõe dois termos enquanto a conclusão permanecea mesma seja qual for o termo retido.

167

o «sllspense» comporta ou lima estrutura paradig­lllática, a disj unção (exemplo 1: vai-se curar? não sevai curar?), - ou a projeção do paradigma sobre o eixotemporal ou sintagmático (exemplo 3: logo? ou maistarde;;) .

A escolha dos impulsores narrativos comanda a de­limitação das seqÜências da narrativa. Cada jornal jogacom estes impuisores e determina as seqÜências conformeslIa prÓpria escritura narrativa, mas todos os jornais (co­tidianos e hebdomadários) obedecem .a um esquema. nar­rativo comum, a uma espécie de temído fundamental:

1. Dilema2. DisjuIIção3. Dilema

Le M,onde confirma à sua maneira a regra comumporque registra .a Melhora e a «reviravolta» que conduzà Agonia. As mais preciosas testemunhas desta rítmicaternária <;ãü Ff'lll1ce Soir c Le Parísien Libéré. France­

Soir, que começa pelo dilema com conclusão fatal, parecedever fixar a narrativa; mas introduz uma segunda se­qÜência de Melhora fortemente marcada. Le ParisienLibéré que experimenta alguma hesitação em introduzir aseqÜência da Melhora (<<Calmaria», «Melhora provisÓria»)

....I

,.

••

Morte ~~Vida eterna

Os personagens exercendo suas funções ativas ou ex­pressões em torno do Sujeito podem diferir deste quantoao objeto do desejo ou da aceitação: a Multidão podedesejar a cura, enquanto o sujeito moribundo aceita amorte (e deseja a «Vida eterna»). O próprio narradof(jornalista), traçando as orientações de uns e de outros,pode significar a sua prÓpria. De fato as narrativas demorte, na imprensa, atestam que a posição cio narradoé ambivalente. A narrativa esboça-se porque a morte {~provável, entrevista e preparada C0l110 conclusão normal;mas logo o narrador tende a professar o desejo (e a es­perança) ele uma improvável cura, a conduzir SLla narra­tiva segundo este eixo do desejo. A morte é esperada, acura «desejada». Desde então a narrativa é como amea­çada por uma dupla decepção: de um lado a morte es­capa-lhe, torna-se pura informação, fora da narrativa; -~de outro a cura seria uma suspensão pura e simples, nãouma conclusão.' A narrativa iniciada tende a uma COI1-­

c1usão, a morte, que o narrador diz temer e se revelapassível de uma suspensão, a cura, que o narrador dizesperar.

Para discernir estruturas llO interior desta mistura deeixos, devemos estabelecer diversos 11 íveis de análise: ()da transitividade «natural» e das funçÔes ativas e ex-­pressivas que ai se exercem - (o de um itinerário «es­piritua1» com conotação hagiográfica que vale no caso deJoão XXIII, mas para o qual reservamos um estudo maisaprofundado) - o do narraelor em luta com as fontesde Informação, do qual falaremos brevemente. A arn­bivalência entrevista no narrador ohriga-nos a nos apoiarfórtemente sobre a transitividade ele base. A perspectivada morte-conclusão e do desejo de cura (com ameaçade sllspensão da narrativa), a incerteza quanto â hora

Aceitação

Sujeito - L ) Necessidade =Desejo

compensa isso narrando in extremis um Restabelecimentorepentino, conotando-o mesmo de miraculoso.

Entrevemos já que a segmentação das seqüênciasrevela a escritura narrativa de cada jornal. Le ParisienLibéré, mais hesitante, Le Figaro, mais variável, marli-ofestam um ritmo calmo, desenvolvem sua narrativa emcerca de seis seqüências: doença misteriosa -o)- doençaincurável -".. calmaria -~ melhora provisória -~ agra­vamento -",.. agonia. L' Aurore e Frances-Soir precipitamo ritmo e comportam quatro seqüências, de resto muitodiferentes de um jornal para o outro. France Soir:Doença incurável -~ Melhora .--".. Agravamento -."..Agonia. Aurore: Doença misteriosa -.".. Doença incurá­vel -".,. Melhora -.,»o Agonia. Este último jornal «lança»muito cedo a Agonia e atesta seu constrangimento porvê-Ia prolongar-se: «a atroz agonia do papa prolonga-ose» (3 de junho, uma). Entre os dois grupos col-oca-seLa Croix. Posição de meio termo com as cinco seqüên­cias: Doença misteriosa -~ Doença incurável -"..Melhora -".. Agravamento -~ Agonia. Esta poderiaser a narrativa simplificada.·

A distribuição das funções, de uma parte e de outrado eixo de transitividade, suscita múltiplas dificuldadesdas quais eis algumas. O paradigma, AdjuvantejOpo­nente, proposto por Greimas em virtude do postulado dedesejo (cura) é válido para toda narrativa de morte? Nocaso da morte de um «grande homem», os personagensoponentes desaparecem ou entram na sombra. Se elesreaparecem pode ser em um processo marginal: oposiçãoaos familiares do doente e não ao sujeito (France-Soír,Paris-Match: oposição a Monsenhor Capovilla) - oposi­ção mais à obra passada que à pessoa (L'Allrore).Pode ser ) latente que afiara por via indireta; o doentemanifesta cordialidade em relação aos parentes e des­maia com a chegada dos dignitários oficiais (France­Soir). Na falta de personagens-oponentes, a oposição podeser significada por entidades tais como a Doença, de

• A asslf'llllar entretanto uma certa timidez - ou precaução pedagógica, napassagem da primeira à segunda seqüência,

168

•.

..I

ondc O tcma da «luta» (France-Soir, L' Allrore, Paris­Matclz), mas o indice pode inverter-se a partir do mo­mento em que o eixo de aceitação (da morte) substitui­se ao de desejo (de cura).'· Assim também, sem rcnun­ciar a recolher qualquer processo marginal de oposição,qualquer afloramento do latente e toda conotação de«luta», vale mais conservar-se solidamente no eixo detransitividadc. Para começar este determina uma partiçãoentre funções que significam Restabelecimento. E' o casoda função de Vigilância (os guardas de honra, «anjosda morte», conota o France-Soir) que anuncIa a mortepróxima, - e da função de Colaboração vestigio dasaúde anterior (ou recuperável). Contudo mais freqUente­mente o eixo de transitividade atravessa as mesmas fun­ções que podem ser afetadas pelo índice Enfraquecimentoou Restabelecimento segundo a situação. Aí o registro se.desdobra: propomos chamar funções ativas as que inter­Ivêm diretamente no processo da doença e contribuempara determinar suas fases (tratamentos médicos, vindados membros da família, etc.), - funções expressivas,as que «ressoam» (em tempo, ou contratempo, segundoo caso) nas diversas fases da doença (reações do SlI­,jeito, dos parentes, da Multidão. 11 Surge uma nova difi­culdade: podemos repartir as funções expressivas segundoo conteúdo expresso, Inquietude ou Esperança, mas so­1110Sreduzidos por um instante a reagrupar as funçõesativasl1D gênero global de Assistência e a reparti-Ias em«espécies» ou categorias sociológicas: assistência médica,eclesiástica, doméstica, familiar. A heterogeneidade dasbases de partição saita aos olhos; um trabalho maiselaborado na sistematização deveria conseguir reduzi-Ia.

De imediato, esta partição das funções ativas e ex­pressivas dos dois lados do eixo de transitividade c estadistribuição das diversas «espécies» sociológicas do gê­nero Assistência permitem-nos analisar convergências e

parV~uiaridades nas escrituras narrativas. Convergências

•• Sem contar Que "Doença" opor-se-ia a "Cura", isto é, ao fim, ao objeto,mais ainda do que ao SUjeito." A Multidão e o sujeito doente exercem unlcemente as funções expressivasenquanto que todas as categOl'ias de Assistência exercem alternativamente fun­ções ativlls e expreSSivas.

169

el11 torno da Assistência médica e familiar; visita trans­1'erida ou tratamentos ineficazes (diria La Palisse), pre­.sença silenciosa, significam Enfraquecimento; em umaperspectiva «diacrônica», enquanto que a assistência mé­dica se inscreve na própria corrente da doença, a assis­tência familiar pode intervir contra a corrente, significarRestabelecimento pelos entretenimentos, no momento emque a situação parecia desesperada. (Divergências na po­.sição significante da Assistência eclesiástica tanto pri­vada quanto oficial ... mas aqui entramos na substânciade UI11anarrativa particular a da morte ele um sobernopontifice). Divergências nas relações entre funções ativase funções expressivas: enquanto na maior parte dos jor­nais funções ativas e funções expressivas constituem re­dundância no interior da mesma «espécie» (os médicosmencionam sua esperança ao mesmo tempo que forne­cem tratamentos eficazes): em L' Aurore produz-se umadistorção: os médicos anunciam a esperança a despeitoda ineficácia dos tratamentos, ete. Franee-Soir, Franee­Dimanehe, Paris-MateI! dão o primado à Inquietude, aum lamento contínuo da Multidão, Le Parisien Libéréfaz alternar Esperança e Inquietude, noticiando a Espe­rança coletiva no prÓprio momento da morte. As fun­ções expressivas da Multidão dão lugar a conotações asmais variadas, reveladoras de uma espécie de «sociologiaafetiva» n de cada jornal: Multidão anárquica e infantilde L' Aurore, Multidão disciplinada de La Croix e de LeFigaro, Multidão patética de Franee-Soir, Multidão co­lorida, exótica e dramatúrgica do Le Monde, etc. (A ex­pressividade pessoal do sujeito moribundo, João XXIIIque põe em jogo o registro dos recursos à Gratificaçãodivina e se inscreve em um itinerário «espiritual» di~­tinto da transitividade «naturabJ, será objeto de estudosparticulares mais aprofundados).

Para ilustrar as precedentes análises, eis o esquemaque se pode construir a partir da narrativa do FrGnce­Sair. Lembremos, entre outras particularidades, que aMultidão, na sua função expressiva (ou coral), não ex-

"Além disso uma análise mais diretamente sociológica apresentaria certa­mente interesse: quem compõe a Multidão neste ou naquele jornal'

170

.-I

I

I

I

I"

I

I

I

. I

'/,"

prime aí jamais a Esp(~rança, diferindo da maior partedos outros jornais .

A narrativa de impresa - notadamente nos coti­Lhanos - caracteriza-se enfim por uma espécie de jogoll1ctanarrativo, o das relações entre narrado r e fontes deinformação. Este jogo participa simultaneamente de duasfunções atribuídas à linguagem por Roman jakobson: afunção metalingÜística ou deciframento das informações,a função referendal ou recurso ao contexto, à «realidade».No caso de uma narrativa de morte, o contexto estáescondido, protegido. A fonte de informação, ao mesmotempo detém o código a decifrar e mediatiza o contexto.O papel do narrador vai pois mais especialmente mani­festar-se pela posição que ele se outorga diante da fontede informação.

Na maior parte dos cotidianos - salvo L'Humanitéque se alinha nas informações oficiais (vaticanas) ­uma oposição revela-se constante nas primeiras seqüên­cias da narrativa: entre Informantes oficiais (<<fontes au­torizadas», Rádio Vaticano, ele.) e Informantes oficiosos(rumores, declarações privadas, etc.). Enquanto os In­formantes oficiais dão informações sibílinas, tendendo aacentuar os signos de Restabelecimento e atenuar os deEnfraquecimento, os Informantes oficiosos tendem, porllma formulação explícita mas excessiva, à accntuaçãodos signos de Enfraquecimento. La Croix explicita estaoposição em termos de complementaricclade e reparte astarefas, senão os lugares, entre oficiais e oficiosos.

Dois jornais tentam introduzir lima espécie mista,Informantes meio--oficiais -- meio-oficiosos. Para L' Au­

rore, são os membros da família, para o Le MOnde sãoos «diplomatas», Enquanto a família, semelhante aosInformantes oficiais, tende a acentuar os signos de Res­tabclccimento e atenuar os de Enfraquecimento, «os di­plomatas» do Le Monde propõem uma formulação ade­quada ..

Na medida em que a narrativa progride, o narradotende a dissociar mais oficiais e oficiosos, mas procuraU1n3 t:spécie de cstatuto de analogia com os Informantesoficiais. Le Figaro denuncia as indiscrições e formula-

111

ções excessivas <,Iosoficiosos, dá prioridade ao Policia-­mento exercido pelos oficiais e valoriza o policiamentointerno de sua própria narrativa. Le Monde denuncia aretÓrica indiscreta de informantes oficiosos (que ousammanipular o «suspense») e descreve a justa posição donarrador, situado na Secretaria de Imprensa, a meio ca­minho entre fontes oficiais e rumúres incontroláveis. LaCroix que reprova as formulações excessivas, errôneas,dos Informantes oficiosos opera uma reconciliação finalrealçando os papéis dos oficiais e dos oficiosos, os pri­meiros introduzidos na intimidade da alcova, os segundos(jornalistas) credenciados pela Secretaria de Estado.France-Soir e sobretudo France-Dimanclze terminam porcriar uma total analogia entre o narrador e os intimosda' alcova; os intermediários oficiais desaparecem; suanarrativa assume diretamente a referência ao contexto.

Uma narrativa-procura comporta freqUentemente etalvez normalmente o registro da Gratificação, que do­mina o da transitividade. Greimas (op. cit.) propõe ()esquema seguinte:

JULES GRITTl

173

Gratificação

Destinador ~~ DestinatáriotDesejOSujeito

A análise narrativa, ciência nascente, mal se aven­turou em semelhante campo de investigações. A narrativade imprensa deverá prestar-se a isto. No caso particularconcernente aos últimos dias de João XXIII, o sistema deGratificação recupera, ao menos sobre o modo citacional,hom número de elementos do que poderia ser o esquema.narrativo próprio da Tradição judaico-cristã, e endossaconotações hagiográficas. Outros tantos domínios abertosà analise narrativa. De imediato, podemos emitir umadupla constatação: a narrativa jornalística desenvolve-seantes de tudo ao nível da transitividade «natura!», a his­tória de uma doença mortal; mas ela testemunha umaespantosa capacidade de «ingurgitar» rapidamente osmais variados narrantes culturais.

...

I

I

rI

...

I

I

I

I

""

!

,,,1

FUNÇOfSEXPRESSIVAS,

~c:

~c:om

zoc:m-<c:o-m

zoc:m...c:om

-<:D)....

iE f r-'e;;;. q:: Sl I Im. m -12-+ ::! •..•.o. n -~ I Io < (» J

P>=; I~ •...•. ..J

or;rn'"

<õ;2

~ r--(')o --m 2

~<~-~bZ; A'" ~.?j o ~p ~ o(') m~

~::;Õ»O

-o:ucr,(J)c,

~. q ~~~ ..••.~->~:; ~ ...:

;:p ~

oõ(J)»

172

I

P1>'" '"'" '"w (i)

íri1íri

2 z(') (')~ i>

~UNçoES l f-UNÇOesATIVAS ATIVAS------ ------

:o (I) fTIm C 2'" ~ ."~---~---~

C....-~ O g...•..... I m» ~ Q

§:: I ~~ ~Õ O(')oç;""o'"P«)>­o

...•:D»--2

... '"

~ ril)

> ?:!

;;; ~m s:

~ Q'" (')m >5 ~~?:;.f:-'-~rn ~

l::c:•....

------ :::!o)­o

-,

m'"."m

<;';-'Z~

FUNÇõESEXPRESSIVAS

...:o>

....ti)

/ ."/ m

/ :D

./ or--, /' ;p.

I I ,,/I I (')I 1"'---- ~, _ < ml_J T-ç:-~

~ <:'" >

r,I II 1+------L.J

174 175

) A. J. Greimas abriu-nos o caminho ao sublinhar os "traços formais constantes·destas ·hlstórlas" e designando suas "duas partes": a "narratlva·apresentação"e o "diálogo dr'llmatlzante" (ln S6manllque Structurale, larousse, 1966, p. '70l.Desdobramos somente a segunda parte.

cia única que coloca, argumenta, e resolve uma certaproblemática. Esta seqüência nos parece ser uniforme­mente articulada por três funções 1 que ordenamos comose segue: uma função de normalização que situa os per­sonagens; uma função locutora de deflagração, com ousem locutor que coloca o' problema a resolver, ou ques·­tiona;enfim uma função inter-locutora de distinção, comousem interlocutor, que resolve «comicamente» o pro­blema, que responde «comicamente:. à questão. Esta úl­tima função faz bifurcar-se a narrativa do «sério» .parao «cômico», e dá à seqüência narrativa sua existênciade narrativa· disjunia, de historieta «última:..

A bifurcação é possível graças a um elemento polis­sêmico, o disjuntor sobre o qual a história deflagrada(normalização e locução) tropeça e se volta para tomaruma direção nova e inesperada. E' a existência necessáriadeste disjuntor que tende a fazer classificar indiferente­mente todas estas historietas nas espécies de jogos depalavras. De fato uma dezena de narrativas apenas, nas180 propostas, respondem a esta definição: são as narra­tivas em que o disjl.lntor é apenas uma palavra-signifi­cante, uma palavra tomada somente em sua existênciavisual ou fônica, independentemente das significações quepode veicular. Obtém-se um calembur que liberta os sig­nificados e as significações de qualquer constrangimentodo sentido. Ao cabo da seqüência, a narrativa desagrcga­se propositadamente em um caos perfeito; pode mesmo,por essa arte da acrobacia no vazio, quase não ser. ecom freqüência mesmo não ser, uma narrativa. France­Sair arrisca-se pouco a e&$e suicídio, seja por excessode refinamento já que apenas os aprendizes riem do ca­lembur como delírio verbal puro, seja por insuficiênciade refinamento,pois que somente 9S cntediados riem docalembur como traço de espírito de segundo grau, comoparódia da paródia.

Estas historietas só raramente são jogos de palavras.São mais largamente jogos de signos. Sem dúvida a pa-

'1'

"

~~1

~..,;

," ,

Iil II

1

VIOLETTE MORIN

A HistorietaCômica,

Em uma rubrica intitulada «A Última», France-SOir apre­senta cada dia uma historieta breve c engraçada. Ela éalgumas vezes tão curta ou tão «engraçada» que seuvalor de narrativa poderia ser posto em questão. Masestas «historietas» são finalmente também narrativas. Co­1110 estas, e melhor ainda, fazem evoluir uma situaçãoviva em função de reviravoltas imprevistas. Como estas,e mais ainda, despertam a vontade de desmontar-Ihes asconexões. Colecionamos estas historietas durante 180 dias

consecutivos, sem selecionar nem avaliar o gênero, o es­pirito ou o «valor» de cada uma delas. A fim de con­frontar sua inesgotável variedade de estilo e de falas(paroles), tivemos muitas vezes de reconstituir seu dis­.::urso; restabelecer aqui elipses destinadas a torná-Iasmais percucientes, suprimir lá redundâncias destinadas aenchê-Ias de «suspense» ; tivemos de localizar funçõesque sua desordem calculada tornava mais surpreendentes.Com a Iinearidade do traço de espírito restabelecida,estas narrativas apresentaram enfim certas constâncias deconstrução que tentamos classificar. Elas são compará-oveis pelo número de palavras pois que a maioria contémapenas de 25 a 40. São todas redutíveis a uma seqüên-

I. AS FIGURAS COM ArnrCULA.çAO BLOQUEADA

J. As narraUvas com disjunçãa semântica:ArticulaçãO' blaqueada por inversão das signos.

Seis narrativas somente fazem parte desta figura:

.~ QJ

.3"C1t::O'"OQJ

.•..Glt::;:jolO'

'"- QJ!:il •..•

.. .8o tI.l ••.. ol •..•

~ o.'§•.•t- •..•tl ••• o<:.:> ••••• "CI

o

..;.8tiltilP,

o•...

"ElI::•...'"U

'-

<O

•.. '"00.•..•...tIl·_aj<l>o. t:: .

•...•...

ot'lêoi::i::J'O

~~~~~"'03","""'Q)~I=:'"'" o >::.ou 0:1;:l"l

0°0,=o QJ •

t::1=:0QJ ••••'O

",tilooon~ :n.- '"<1)0 ••••I=: •..•;!j ~c.> ° 0:1

§,ê§

'--'QJ

.. 'o••• til

'"~ .~~~1:' 8 §;

-o::

<1)<1>;:l .•••O't::

o:l

:ti°o~ M o

~ã:Zp.. ~

o~s:::

i:i S~tIl-·t ~ E<:lI=:". Q;) Q)" o. 'O

o

~'õ~

•...ro

;:g

,g E'"

ol'~•••• QJ.- •...<1).,,o til

i::Q;)

~o.

Ol aj ás0i:: o..Q)og.~ .=

•....•..'" til •..•

Jj E 11..;

'3;:j<l)~:::Q)Ul~~ til li)

al ~od <ll._I'< ;:j <I> olP O''l:; •..•

Ll'i

o·~oaso.~Ql 'l:$ 0>1<11N

1IJ;:l·~~l':8<'li O''t;\

S ~'<ll§Q)

,iil !! 8 O'"CI

âl::~;'<I>o.- ;:! <ll P.

1fJ aiC/2 ;:l'o E.. 1ii ~.~ (1)•• Q) ~ ~° o

~tQ~ •• ·áS~ ~;~.~Ôl~gl=:~I':.':lSp..s:d~t::o

cc.oi::

'0;1oU

,c:i°E

éOl,,;Q) ~~ o...·wo c.>'O

-ãE<ll

2 E•...

0Q),03 N o>7 ol'ol••.••••• 1::

;":Q)0l

1!'O.r.:~ I::;:l .-C' o N,,0.8

-o::

Q) coUl

t:: •..•0\1)c.>.r.:al~

;:l

,g E <ó.- °@ tU .~

Eiil .•.•

E J3 ~p~J.'l..,.

ci'~'~õ....E

:§ '-~.3

-.. s:: _QJ

g~dt:: .3 o.°l::olo:l •.•• p..

àióS~"'0<1>til •••

:ti .$I (j).o .~

s:§ 'm ~olP.

•..•-e S ::l""<I> <I)

"'<IItIl

•• ;:j0«1> '" oã80E•..~ E o&. uo

I (J) ;jo u.~ eu.oS'"'t1lE ol o•...E<I> o"'<11o

;:l(Q) ti) Q)u .••00>::~ S ~n

o;=:i:i °2 ...;"'" t::ol';::.B"~~S'8 QJ P­

oro.':-.':lSt:: '"o ••.•<:.>

l':olQl'O

00.••• on0._•...Egbcc

SS"iP;:l::::M

~2~.2~ :>-.f..)as~Q)0"''0Ult::°ê~gJQ) O' •..•U)o<ll.g

lol 't:l ol.. ~ o~~ô;ac-. .~ .~ s:: Cf.ltj 'cj;'.-1 o

:~ 19 2> cn:~;:;l l::.r.: o •..•o

(I) o.~ ÚJ

Wt:;e;<ll

.. S 5l u:>

,2 Ql 'O",,<IlQl

<:lgj;:j<ll

~"d O'~'" t:: Ql ol

"''O '"<:l", tI.l

't;\5isf'"

~b';S~<u I-oIcoJ..t

~~,g'~2iori>u:>

<I)

't:l

'"dUl

o'" o"2:§ .~\I) ol~Sti

QJQ)•...

<V......:>ç:s

1':0'0'~o2.~ :g.8'Ou

áioo p, '",,,

Õ'Oololo •...

.- Q)

'80.H

'ro&: ••t:: ;:j 'H o~(/)' Pt

~ Q) 'o :::1':.E ri.i ~QJOo•..•"'bll•..• QJO!o o •....~{i ~ P,.~ c:i

'1'8 {l gs 'ê<l) m: ....,~~ ~--tr.led rn

;::l QJ j::.= 'P

g<ll~g.8~....,;l .•..••

o

~

~~•..•0.0.",Ql'P"CIOool •..•pO@ P.C) •..._~

~" .8,tj ro

.:::0Q

6 ó cdQ)",Q•..• ol

6o<ll.r.:'O~

~~;aC) .~ o. ~ tcdE).... ~~(ljo .. VJ._ b/)

;::.g u:> 'O.~ ::l

~"g2S~'" '" t:: ::lE: ~ ~ crf0- l::QJ'~

~ ~.s É·go~:::~5.~

'"

6!ii~'\j 00.._.~ l:: o.~.- o:;'Il)~ <ll~, Z-t ;:s\lJ.o-t cr,o::l;:l O' otI)~~

....,'/.

c:::

<cn::,«

o~v,,>:::.J zl)"U;::)zO-'::>-,c/)0::-U-.:.LJO

<­7oU;

..c.; c

~~C.-,'-tt:,":,Vd~.:;~""l-I~:Jij'J

'~O

f~

~7.

:.rJ1<Cl u·<o •...•I--:::·~'·Y.::T.:7.-. ~~~z

(,(;:t"'1

?I~

~ I

/1i'iI

irj

Íl'h~

,

)h

~riI

,~I'I,I

r/,,"

1I,

176

l- uma figura com articulação bloqueada;2- uma figura com articulação regressiva;3· uma figura com articulação progressiva.

lavra «prendre» é um disjuntor de qualidade, pelo me­nos nas historietas estudadas, nas quais o significado(<<apropriar-se», <.:fazerseu» ... ) está sempre presente; apolissemia deste signo é rica, ao capricho de mÚltiploscontextos: «prendre» pode significar «cO'mprar» em umalaja, «casar-se» na prefeitura, «roubar» quandO' se é 10­drãa, «beber» quandO' se está em um café ... ; mas estecaráter verbal não é o mais corrente: com mais freqüên­cia os signos se apagam diante dos elementos referenciais

da narrativa: gesto, ação, sentimento, cujas diversas sig­nificações ou polissem ia alimentam a disjunção.

Em lugar de «disjuntar»' a significação do signo«prendre» (prendre un verre/une femme) pode-se disjun­tar a significação do gesto designado pelos signos «pren­dre un verre» com: prendre-un-verre de récanciliafionj derupture.

E' sobre a natureza do disjuntor que operamos aprimeira classificação. Distinguimos as narrativas comdisjunçãa semântica, quando o disjuntor é um signo, dasnarrativas com disjunçãa referendal, quando o disjuntor éum elemento ao qual se referem os signos, um Referen­cia!. Em cada série, discernimos três figuras narratiavscomparáveis por seus modos disjuntivos de articulação:

Exporemos estas figuras em cada uma das classesindicadas. Este trabalho terá portanto três partes impos­tas pelas três figuras de articulação cada parte, duasclasses: as disjunções semânticas e as disjunções re­ferenciais.

: E' preciso arriscar este neologismo, pois "dlsjuntar" não é "separar": trata-sede um conceito analftlco, oriundo da noção de dísjuntor; O mesmo para dis.juntado, disjuntllr·se, empregados em seguida.

com duas narrações paralelas, duas narrações ligadaspelo dorso, que não podem mais nem se aproximar, nemse separar. Pode-se conceber o esquema da figuraassim ':

Narrativa normal FN ~ FE ~ D ~tNan-ativa parasita FN --~ FD' ~

E' sem dúvida neste grupo que as variantes de ar­ticulação lão proporcionalmente mais numerosas. O pri­meiro e ~ sexto caso são comparáveis por sua forma par­ticularmente clássica de disjunção: no primeiro caso,«divã/cama de pregos» e «gato/porco-espinho» referem­se a uma categoria sêmica de conforto e repousam sobrea antonímia «macio/picante»; no segundo caso «carneiro /pastor», a categoria sêmica vigilância recobre a dicotomia«homem/animal» ou mais precisamente (a escolha) «se-

\nlzor/escravo». Um por inversão, o outro por permutaçãodisjuntam-se em uma equivalência de contrariedade quearriscaria ser a verdadeira apenas se uma falha viessegarantir sua anormalidade parasita. Nesses casos, é afunção de normalização que assume esta falha; é ela queé anormal. O faquir está em oposição categórica macio /picante, com o resto da sociedade e basta desenvolversua normalidade anormal, para que a equivalência decontrariedade torne-se naturalmente paradoxal. O carneiroem face de seu pastor está em contradição com as nor­mas desde o instante em que se explica; basta que estanormalidade-anormal se desenvolva para que a disjunçãoprevisível (se ele fala como pastor, é «normal» que ospapéis se possam um dia inverter) faça irromper o pa­radoxo (pois não é finalmente normal que o carneiro fale).

A terceira narrativa surge de uma combinação maissutil. A oposição dos antônimos bonito/feio e inteligente/idiota provocaria uma inversão radical (o menino poderiamuito simplesmente «enganar-se» e dizer feio como ma­mãe e idiota como papai), se ela não fosse corrigidana equivalência pela permutação dos termos papai/mamãe.Mas por sua vez esta permutação enriquece a narrativa

'FN. FE. FD ~ Funções de Normalização. de Deflagração. de Dlslunção;O = Disjuntor.

Esse sistema de disjunção constrói narrativas emque a intelocução se opõe à locução sobre certos signos,pretendendo respeitar a significação de todos os signos.A pretensão é formalmente justificada na medida em queo duplo sistema de oposição, que articula a passagem deuma função à outra, equivale formalmente à uma repe­tição. A intelocl.lção toma os termos da locução em umsentido oposto, pois neutraliza o contra-senso da signifi­cação obtida, por uma nova oposição de sentido contrá­rio ou por uma permutação de socorro. Essa reviravoltasimétrica dá ilusão de uma espécie de equivalência ma­temática, ou de confiante tautologia: se 3 = 3 quando3 -- 3 = O, porque, «ser bonito» não seria igual a«não ser feio» se «bonito» é o contrário de «feio». E'no seio desta ambivalência natural que trabalha a dis­j unção da narrativa. A ambivaiência pode ser reforçada:multiplicam-se à vontade os erros de equivalências nãose utilizando pares de antônimos verdadeiros mas simpares de oposições relativas. A «relatividade» é objetode uma escolha que constitui toda a qualidade do con­teúdo narrativo. A oposição relativa não é oposição dequalquer coisa. Ela está apoiada em uma categoria sê­micél que sela a homogeneidade da narrativa. Se a rela­tividade das oposições é necessária para que a interlo­cução não seja (como em matemática) simplesmente«verdadeira» ou «falsa» face à locução, a categoria sê­mica não é menos necessária para garantir a homogenei­dade dos termos opostos, e salvar a disjunção da in­coerência.

Note-se que a função de normalização articula igual­mente e independentemente um do outro a deflagração ea disjunção já que os dois estão em oposição simétricadiante dela. A narrativa torna-se portanto bivalente. Elaé disjuntada por duas narrativas igualmente conseqüen­tes: a Narrativa normal por hipótese, a que é indicadapela função de normalização e pela função de deflagra­ção; e a narrativa de disjunção, narrativa parasita porhipótese, que se torna nesse sistema tão normal quantoa outra pois que é, como aquela, articulada diret,amentesobre a função de normalização. Vê-se pois uma narrativa

178

~!

't

il

j

II

IlI\j

1

12·179

Reproduzimos alguns exemplos, tomados entre as vinte eseis narrativas conformes a esta disjunção.

~. As narrativas com disjunção referencial:Àrticulação bloqueada por polissemias antinômicas.

FUNÇÃOINTERLOCl /T( 11IA

DE DlSj Ul''';,\O

A criada: Não, masfaleI a um quarto dehora com o gato.

o africano: Sim, co­meram·se os três úl­timos há poucos dias.

o louco: Sim. a pro­va, toque meu nariz,está frio.

o outro: Bah! E'uma história ele sedormir em pé.(= maçante).

Alguém: Que o fa­ça; não recomeçaráduas vezes.

FUNÇÃOLOCUTORA DE

DEFLAGRAÇÃO

o pai: Você o viu?

O médico: Você es­tá bem certo?

Alguém: Você temcerteza?

FUNÇÃODE

NORMALlZAÇÃ()

1. A criança procu­ra o papagaio.

181

pelo discurso do outro, encontra-se bloqueado indefinida­mente diante dele.

Esta oposição na equivalência impõe aos persona­gens da narrativa uma intimidade de relações e de ardiscomparáveis aos de um casal. Do mesmo modo que cer­tos trocadilhos (contre-peterie) só se justificam pela des­coberta de uma situação pornográfica, esta figura não sedisjunta eficazmente senão pela colocação de LIma tra­gédia acoplada em paralelo: «nem sem você, nem com1I0CÓ). uu< certo ardil imobiliza a agressão e a tornasimuitan~amente incisiva c impotente; não há pior humi­lhação do que ser contraditado na aprovação (sistemaapropriado às crianças e aos loucos) e não há pior impo­tência do que ser dividido entre um verdadeiro-falso eum falso-verdadeiro.

2. O louco quepensava ser um ca·chorro afirma ter­se curado.

3. O africano afir­ma que não exis­tem mais canibais.

4·. Dois loucos dis- Um: Mandei cons-cutem. truir uma cama

vertical.

5. Se uma criança Subentendido: quequiser jogar-se pe- fazer?Ia janela?

II

jt

'I

~I

J

l\

1\

I180

de uma categoria sêmica, os pais, na qual a oposiçãoidealmente «relativa» de papai/mamãe homogeneiza e com­promete simultaneamente a equivalência obtida: o con­trário de mamãe/bonita não é necessariamente um papai/feio mas não o exclui.

Quanto aos três Últimos exemplos, casos 2, 4 e 5,os termos disjuntores estão em oposição tão relativa quea disjunção irrompe necessariamente por pouco que serepuxe (pelos cabelos ... ) seus significados até de.scobrirneles uma semia comum. A categoria horário-dos-trenSpode rccobrir a oposição indicador/sala de espera; a ca­tegoria atividade-da-mulher-no-lar pode recobrir a opO­sição cozinlw/tricô; a atividade elementos-do-.contorto­feminino pode recobrir a oposição mar/marido. A desco­berta destas oposições categÓricas é um dos mÚltiplos«prazeres» deste sistema disjuntivo. O risco corrido é

nestes três casos a incoerência. Donde por vezes, parareforçar a disjunção, a necessidade de um adjuvante des­tinado a tornar a oposição proposta mais antonimica:«o tricô, este, não queima». Se o adjuvante não estivesselá, a opção do marido em favor do tricô contra a cozinhaseria apenas em sentido próprio e figurado, singular.

As narrativas deste~ sistema são portanto duplasnarrativas: uma narrativá convencionalmente dita normalvem apoiar-se sobre uma narrativa convencionalmente ditaparasita, cada uma encontrando-se igualmente fortaleci dae destruída pela outra. O conteÚdo' destas narrativas

parece ter traços conformes ao sistema de disjunção queos articula. A ausência de defrontação, já que existe si­l11ultâneamente oposição e equivalência, entre a locução ea interlocução, torna a problemática nula (caso do faquirem face do homem normal) Oll anulada (não se saberánunca o que pensa o marido de sua mulher, o chefe daestação do viajante, o carneiro do pastor e inversamente).Não há pergunta nem resposta entre um locutor e ó in­terlocutor. Uma espécie de surdez mental torna-os tãoconciliadores quanto irreconciliáveis. Cada um, enganado

• Que n~o nos propomos estudar aqui, mas enquadrá.Ia também em umacerta "forma",

6. Urna jovem e um A jovem: Tenho 17 O senhor: Eu tam­senhor discutem. anos. bém, mas na desor­

dem ( = na ordemcontrária).

7. Um rapazinhoentrando em casaa uma hora da ma­miá, afirma que sã"apenas dez.

8. No dentista.

9. O aluno deve fa­zer mna redaçãosobre o sonho deser rico.

10. O aluno devecopiar 100 vezes:eu não sei fazercontas.

11. Um marido pro·cura sua mulherao longo de um rioe encontra alguémque a viu.

12. Um turista emLondres encontraum garoto.

13. Alguém censura(}I amigo por dei·xar a mulher manodar em casa.

14. A mulher dirigeo carro, com o ma­rido ao lado.

15. Um jovem es­pera sua noiva emum café.

O pai:' Mas o re­lógio bateu limahora ...

O cliente: O se­nhor me disse queele era tão bomquanto um verda­deiro, mas ele medói.

O professor: Porque uma folha embranco?

O professor: Porque copiou apenastrinta vezes.

O marido: Se osenhor a viu, nãodeve estar longe.

O turista: Diga,menino, vê-se comfreqüência o solpor aqui?

O amigo: Não achaque estou certo?

A mulher: Ah, essespedestres!

o jovem ao gar­çom: Estou inquie­to, minha noiva es­tá atrasada.

182

O rapazinho: ... é oque dizia; desde quan­ào os relógios batemos zeros?

o dentista: Justamen­te, pois aí está!

O aluno: E' ° meusonho, professor.

O aluno: Não sei fa·zer contas, professor.

o fulano: Sobretudoporque a correntezanão está muito forte.

o menino: Não sei,meu Senhor, só tenhotreze anos.

() marido: De acordo,ela exige ísto e aqui·10 ... , mas nflo é pre­Cl50 exagerar, tambémposso mandar no pei­xe dourado.

(j marido: De acordo,querida, mas desçada calçada.

o garçom: Se estáatrasada, é p o r quevirá!

113. O a.'1lígo diante O amigo: .Deve ser A mãe: De modo ne­da mãe de dois difícil dist.ingui-los. nhum, eu os mandogémeos. contar: um só vai até

76, o outro até 110.

Este sistema de dis.lunção propõe narrativas em que:l intelocução confirma a locução por uma prova quea desmente ou inversamente a desmente por uma provaque a confirmar Dito de outro modo, a interlocução jus­tifica-se, dando razão à opinião locutora que lhe é con­trária. Enconkamos o mesmo paralelismo que na dis­junção precedente em que uma falsa justificação formala tornava possível. No caso de que nos ocupamos, elaé possível por uma falsa justificação empírica. O resul­tado é comparável nos dois sistemas: a narrativa normalfio locutor e a narrativa parasita do intelocutor se refor­<:-{lm em Slla oposição. Temos pois uma narrativa normal:() marido procura a mulher e vê sua angústia confirmar-seao saber que ela derivava ao sabor da correnteza, haviapouco; e uma narrativa parasita: o informante, tendoacabado de vê-ia à deriva, afirma ao marido que allIulher não está longe. A disjunção apóia-se na atividademental do locutor: encontrar-a-mulher, atividade que ainterlocução parasita por uma inversão de significações:morta/viva. As narrativas consolidam-se pelas costas, pa­ralelamente, como na figura precedente:

Narrativa normal FN ~ FE ~ D ~i'

Narrativa parasita FN _._.~ FD' -?-

Diversas variantes são possíveis no interior do sis­tema. Até o exemplo 8, a superposição das duas signifi­cações contraditórias é feita por um só personagem, ointelocutor. Este último, como a serpente que morde aprópria cauda, disjunta-se ele próprio. Nos outros exem­plos, a disjunção retoma seu lugar entre o locutor e ointerlocutor. As duas funções; colocadas sobre suas pa­ralelas, só se destroem logicamente no infinito.

Os conteúdos destas narrativas são comparáveis aosprecedentes em alguns pontos, notadamente na impulsão

183

~P.adoente,dobradoUdoente:Osenhor Sei(sal) í de cozinhaú mesmo: Mas de bi-

~de dor, vai ver o mé-111edisseparacomer ouSelle 1 de bicicletacicieta,machucamujo

(Üco.t~dosemsal. (selim) to.

1(), Um depressivo do·

Udoente:asenhor Gonflé à blocr próprio

Omesmo:Agoraes-brado

dedorvaiaome disse para repetir: (muitoiln- toucomoestômagomédico.

"Eu sou muito impor-portante~ figuradoc1i1~tado.t.lllte" (gonflé à blocL

ou muitoiinchado)

Il11.

Ummaridoagri-(;.7Iliz:MasporquePUsr do tecidoUmarido:Porque ela

(~Lamulher. comum ferro de en- (pregasi (próprio)começavaa ter maus

~·olnar?ou maus

1 do caráterhabitos(plis).

hábitos)(figurado)

12. Dois loucos tomam

Fm:Estáfrio. MaUlotr de banhoCoutro:Sim,supor-

banho a .15"C. (maiôou) roupa de ta-sebemomaiô

agasalho)I baixo(mazllotí.

Manche r nzar(Mancha

I1 parteou manga)

1 deumal roupa

Doublure

r papel(prega

j teatralou ator

) parte elesubstituto)

l urnaroupa

Matou

r gatoou ~ resfriadoMa toux (minha

Itosse)

l

FUNÇÃO DE

NORMALIZAÇÃO

1. Alguns homens jo­gam bridge em umcafé.

2. Subentendido: Emfrancês tricot é sinô­mmo de pull-over.

3. Subentendido: ca­çada.

4. Duas traças traba­lham em um guarda­roupa.

S. Um gato resfriadoentra em uma far­mácia.

G. Um pinheiro vêaproximar-se um co­Jh~cior de resina.

7. a canibal chega àsobremesa,

8. a pai de dois gê­meos vai visitar o mé·dico.

FUNÇÃO LOCUTORA

DE DEFLAGRAÇÃO

o garçom: Para queme a cerveja (biere)?

Pergunta: a que é umpUll sem over?

Pezgunta: Que presapl'efere o advogadO?

o pai: Mas por quet;en1eos?

biêre (cerve­ja ou cai­Xão)

aver ouOvaire(ovário)

defesas

trone(tronco oucaixa deesmolas)

Suisse(queijo)Esqui­mau,r

Facteur(fator oucarteiro)

DISJüNTOR

r bridge~l enterro

{ Pullglândulasgenitais

do advogadodo elefante

( de árvore

~ deJJgTeja

alimentocidadãos

razões '.empregadodoscorreios

FUNÇÃOIN TERLOCUTORA

DE DISJUNÇÃO

Um jogador: Para omorto.

Resposta: Um tricô·sleril.Justificativa:Tricosteril.

Resposta: a elefante,para tomar suas de­fesas.

Uma traça: Estou-mepreparando para atra­vessar a manga (Man­che).

A outra traça: Quantoa mim, só me dedicoa pregas (doublurcs).

o gato: Queria um xa­rope para minha tosse(ma toux) ,

o pinheiro: Cuidadocom o pilhado r detroncos (tronc l.

o canibal: Já estoufarto destes queijinhos(snisses l. Amanhã, vouquerer um picolé(csquimau),

() doutor: Na base,'. '. eXistem dois fatores

(facteurs) .

ill

li,

111',

psicológica que os anima. Um caráter fundamental deardil rege sua articulação, mesmo se, como é ocaso,este ardil é involuntário; a paradoxal eficacidade da jus­tificação, que não é uma justificação, subsiste sempre.Uma mesma moderação na agressividade opõe os doislocutores: eles são impermeáveis um ao outro.

Entretanto a disjunção referendal mobiliza um con­junto de conteúdos mais variados e mais ricos do que asemântica. No grupo precedente, a articulação estavabloqueada por signos, e portanto indiretamente pelo hu­mor que os atualizava, o que reduzia a problemática aconflitos passageiros e as relações dos personagens arelações privilegiadas em que o humor, precisamente, co­manda os dramas. Neste, a articulação liberada formal­mente de qualquer constrangimento sinalizador não im­põe nenhum acidente preciso de humor, nenhuma relaçãoprivilegiada entre os personagens. Ela bloqueia as signifi­cações em níveis mais amplos. Cada caso representa emdefinitivo um par generalizável de indivíduos, locutor einterlocutor: o imbecil ou o enganado-feliz fazem frentecomum diante do sensato-feliz. Caso se queira generalizara articulação destas historietas, poder-se-ia dizer que elaopõe o bem-aventurado ao realista, ficando entendidoque um ardil ingênuo serve de suporte aos dois.

11. AS FIGURAS COM ARTICULAÇÃO REORESSIV A

1. As narrativas com disjunção semântica:Articulação regressiva por homonímio de significantes.

Uma vintena de narrativas parecem articuladas por estesistema de disjunção. Reproduzimos uma dúzia delas, detendências as mais variadas:

Nestas narrativas, as duas primeiras funções, extre­mamente pouco distintas quando há pouco ou nenhumpersonagem, deflagram uma narrativa cuja coerência for­mal é respeitada até o fim apesar de um «desarranjo» nomeio do caminho: a história tropeça em um signo-·dis­juntor e engana-se de significado. Ao contrário do para-

186

lelismo precedente, temos aqui uma seqüência uni-linear;sua forma é conseqÜente mas seu sentido é absurdo. Estaconseqüência encadeia até a fusão as duas primeiras fun­ções à terceira e, inversamente, a terceira regressa empermanência para as duas primeiras, até seu ponto departida. A terceira função, a narrativa parasita, por exem­plo uma bicicleta-sem-selim-machuca, tornar-se-ia normalse não estivesse ligada ao fato de que um regime-sem-salprovocou o acidente. E' a coesão das três funções quedisjunta a terceiral E' o mesmo que dizer que a linearidadedesta narrativa fecha-se sobre si mesma como a qua­dratura do círçúlo: não há saída. Pode-se desenhar oesquema da figura assim:

.:\'al'l:;jjya normal". FN + FE + FD-t- II DI t

FN' ~ F1::' ~ FD'Narrativa parasita

A coesão formal desta figura é consolidada por umsistema de articulação preciso. Para evitar o caso limitedo calembur (o famoso «comment vos-tu-yau de poêle»que teria seu lugar no sistema), o disjuntor é transferidode uma narrativa à outra com o elemento que o funcio­naliza: «sons» (sem), em «sans-ovaires» (sem ovários);«Wl sirop pou,.» (um xarope para), em «un sirop pourma-toux» (um xarope para minha tosse); «un pilleur de»,em «un pilleur de trono> (um pilhador de tronco) ... »;este ajudante funcional consolida o rigor do formalismoe toma por isso mais brilhante, e portanto mais signifi­ficante, a coincidência disjuntante.

Pode-se estudar, nestas narrativas, algumas variantesnarrativas, em função da natureza do ajudante; elas vãodo quase-calembur quando o ajudante não tem senão umfraco potencial de ativação, à história propriamente dita,no caso inverso. As preposições «sons» 01.1 «paur» sãoapenas evidentemente pré-posicionais. Elas não dão aodisjuntor uma posição suficientemente significante paraque a disjunção se opere a todo custo: «sons aver» se

187

189

• Pode-se evidentemente pensar Que o marido zomba do juiz (caso 11). Masas razões de riso do zombador são tão numerosas Quanto os próprios zom:badores e não podem ser tomadas em consideração. De Qualquer modo. épossive! adiantar Que o marido agt'8va 'catastroflcamente" seu caso.

parasita dupla.

~ FDI

D' -+- D"'t

~ FD' '"Narrativa

FN ~ FE-iI,

FN' ~ FE'

Narrativa normal

Casos 1 e 7

Em todos os! casos, a narrativa normal funde-se com

uma ou diversas narrativas parasitas em uma seqÜêncianarrativa formalmente homogênea. A disjunção liga-se aesta discursividadeformal que concilia em circuito fechadodOlis universos irreconciliáveis. O conteúdo destas historie-.

tas\ressente-se destas quadraturas-circulares simples, du­plas ou desdobradas. Um único personagem, ou doisidênticos como dois loucos ou duas traças, realiza e

suporta a disjunção. Quando existe um locutor, juiz oudoutor, este não é senão o álibi destinado a revelar o

monólogo do interlocutor. A disjunção põe em causa ainterlocução reSOlvendo uma problemática de sua defini­ção, sua natureza, ou seus hábitos. A fissura mental

participa da vida «interior»; ao se disjuntar, o sujeitotorna-se objeto dedisjunção ou, caso se queira, psicolo­gicamente, de agressão. Ao contrário do diálogo prece­dent~ em que a agressividade, mesmo surda, ia de umpersonagem ao outro, no molóJogo presente ela não visaà ninguém. Imbecil ou J'ouco, a vida interior do inter­

locutor regride na anormalidade catastrófica. Esta figuradisjunta, nos limites em que os jogos de signos lhepermitem, as infelicidades da consciência individual. •

Narrativa normal ... FN ~ FE .:> FD.• II D' ::: D"I t I

FN' ~ FE' "*' FD' 't '" I" narrat. parasitaFN" ~ FE" ~ FD" ... 2" narrat. parasita

Narrativa parasita dqplicada.

188

disjunta em um «tricot-stérile» (tricô-'stéril). Esta dis­junção calemburesca seria tão fácil (ou banal ... ou gra­tuita) quanto o seria a disjunção «haricot vert» (feijãoverde = vagem) (não dizemos mais ou menos cômica),se uma segunda disjunção não viesse dar consistência aprimeira coincidência e introduzir como justificativa deapoio a semia farmacêutica do tricosteril. Salva-se a fra­

queza de uma primeira disjunção por uma segunda (trico{stérilejtricostéril) e a fraqueza das duas primeiras narra­tivas, por uma terceira (alusão ao ungÜento farmacêuti­co). Na primeira historieta se «pour» introduzisse apenas«ie mort» (o morto) sem a «biere» (caixão), ou inversa­

mente, nenhuma semia necrológica perturbaria o jogo debridge. Com o ajudante «m'imger» (comer), que é entre­tanto muito ativo, o Esquimau destinado ao canibal

arriscava-se a ser um disjuntor fácil, já que, na Groen­lândia ou outro lugar, é preciso que o canibal comaalguém. A feliz existência do Petit-Suisse vem reforçar adisj unção e tornar a refeição mais notável. A coesão formal

da seqÜência cresce na mesma proporção que o poderfuncional do ajudante. Com ajudantes como traverser(atravessar), prendre (tomar), manger (comer) precisa­mente, e com muitos outros, a narrativa parasita adquireuma significação por si mesma pois articula-se mais signi­ficativamente com a narrativa normal.

A estas variantes de ajudantes, juntam-se variantesde articulações que participam dos próprios disjuntores.As narrativas lineares podem enriquecer-se segundo ()nÚmero de semias disjuntadas. Nos exemplos 1 e 7, osdois disjuntores reforçam a própria semia parasita (ne­crologia para o primeiro, e refeição canibal para o séti­mo); eles dobram a disjunção. No exemplo 4, os doisdisjuntores trazem duas sem ias distintas, uma marítima eoutra teatral com «manche» (Mancha) e «doublure»(substituto), que enriquecem a figura desdobrando adisjunção. Poder-sc-iam designar a.ssim as variantes doesquema precedente:

1I

~1I

i'll:111

Irll

II

2. As narrativas com disjunção referendal:Articul11ção regressiva por polissemia simples.

o número das historietas sendo mais importante nestegrupo e nos que se seguem, alongaremos a lista de exem­plos. Consideremos os exemplos seguintes;

O garoto: Até aqui, oserviço era bem feito.

o pequeno: Sií.o 150mangas.

A laureada: Um ma­rInheiro tatuado.

O manager: Não temimportância, você virácarregado.

o porteiro: Esta é aviga, em frente estáa porta.

O outro: Oh não! Ma­mãe faz a comida.

O guarda: Vê-se bemque não é o senhorque vai enterrá-l0.

O presidente: Quegênero de leitura\'ocê levaria parauma ilha deserta?

O amigo do filhodo cirurgião: Queé uma gastrecto­mia?

Os pais: Meu Deus,qu~ milagre. Masque \\ aconteceu?

O boxeador: Ondefica ele?

O cliente: Bam!!!

O dono: Con!>ole-se,será substituído.

Um: Em :!lU.a casafazem-se oraçõesantes das refeições?

10. Uma gastrecto­mia é uma opera·ção que o cirur·gião está fawndo.

12. Até os onzeanos, o garoto nãotinha pronunciadouma só palavra,subitamente, à me­sa, ele pede o sal.

11. O presidente di­ante da laureadanum concurso debeleza.

13. Um boxeador,antes da luta, in­quieta-se sobre alocatização do ca­maxi.im.

14. O porteiro indi­ca um quarto aocliente: "Entre naprimeira porta de­pOis da viga".

15. DoIs garotosconversam.

16. O guarda doZoo chora o ele­fante morto.

191

Neste sistema, como no precedente, a interlocuçáoresponde formalmente à locução, mas enganando-se designificação sobre um elemento referenciaI da narrativa.E' trocando as motivações deste elemento disjuntor queela parasita o sentido da narrativa normal. Este parasitis­mo é ambíguo na medida em que a polissernia disjuntantenão é privilegiada. As semias rnodificadas não são con­traditórias como na primeira figura: são indiferentes evariáveis ao infinito. A narrativa normal vem a ser simul­taneamente persistente e perturbada, reconhecida e des­truída pela narrativa parasita, como precedentemente. Ofato de que o escocês não compra, por economia, o jornal

o corso: Quem car­regará o luto na vol­ta?

O mesmo: TomeI Es­tava consignada.

FUNÇÃOlNTERLOCUTORA

DE DISJUNÇÃO

O mesmo: Comprareia edição da tarde,que trará a lista dasvítimas.

Outro escocês: Sim,de qualquer maneiraé honesto, não creioque guarde a moeda.

O filho: Escreve, vouassobiar para chamaro cachorro, veremosse está molhado.

O corso: Então me dêdois deles.

Marie-Chantal: Por quemeu marido me com­prou um marcador.

.1farie-Chantal: Não sei,Vim de avião.

Mane-Chantal: Deixedif>so; é um homemcomo os outros.

O amigo: Por quetrouxe o asno?

Um: quebra umagarrafa na cabeçado outro.

o escoces: Ele he­sita diante do qui­osque e não com­pra o jornal.

Os pais: O médicoe bom?

190

FUNÇÃO LOCUTORA

DE DEFLAGRAÇÃO

O pai: Chove?

o livreiro: Leveeste. Quando aca­bar de ler, o tra­balho já estará fei­to pela metade.

Gladys: Por quê?

Gladys: Onde fica?

Gladys: Não t,enhocoragem de medespir diante dele.

1. Um escocês sabepela manhã que otrem em que viaja­va sua esposa so­frera um acidente.

fUNÇÃO DENORMALIZAÇÃO

5. O pai e o fi­lho corsos fazem asesta.

4. Um carso vaili um enterro comseu asno.

2. Dois escocesesestão brigando.

3. Dois pais esco­ceses procuram ummédico: seu bebêhavia engolido umamoeda.

6. Um corso querum livro de agri­cultura.

7. Marie--Chan­t a I quer comprarum livro.

9. Gladys vai aomédico.

8. M a r i e·C 11a n­t 8 1 volta de Mai­orca.

1:1,

"Iil,!li

1i1'1

~IIII:

III'I

192

da manhã, não exclui que ele possa saber a tarde comuma impaciência ainda maior se sua mulher morreu. Ofato de que Marie-Chantal compra livros porque seumarido lhe deu um marcador não exclui que ela tenhamais do que antes a ocasião de lê-ios. E' a coesão' formaldas três funções que parasita a terceira. E esta terceiraregride constantemente nas duas primeiras para justificarseu próprio movimento. As narrativas normais e parasitascompletam-se dividindo-se e a história, como anterior­mente, gira em uma circularidade sem fim: o interlocutorsubstitui por lima motivação acessória, inconfessável, im­provisada ... uma motivação normal. Reencontramos aquadratura cirClllar da figura precedente:

As variantes do sistema são pouco numerosas emfunção da simplicidade e da flexibilidade de sua articula­ção. O disjuntor referendal é o suporte de uma multidãode complementos que basta modificar não importa emque nível (causas, fins, conseqüências, lugar ... ) parater uma disjunção. Donde o grande nÚmero das narrati­vas deste grupo. Donde igualmente, e em função destegrande número, uma necessidade de selecioná-Ias arti­culando-as em certos tipos dc conteÚdo.

Esses conteúdos com efeito têm tendência a fazerressaltar certos traços comuns baseados em defeitos decaráter. Encontramos um bom nÚmero de narrativas arti­culadas psicologicamente pela avareza dos escoceses, apreguiça dos corsos, a frivolidade mundana de Marie­Chantal. Reencontramos aí o caráter intimista das histó­

rias anteriores. Reencontramos a ausência de agressivi­dade de um personagem para com o outro, a não ser estaregressão mental engendrada pelo aspecto convencional­mente deceptivo (para o locutor) de receber uma respostaque deflora invariavelmente a questão. Quando os doislocutores têm o mesmo caráter, isto é, o mesmo defeito:

FUNÇÃO LOCUTOI~A

DE DEFLAGI\AÇÃO

19.'-l

Primeiro I a d r ã o: Segundo ladrão: Não,Você põe todo seu para meu advogadO!dinheiro de ladopara a velhice?

o pai: Como você O filho: Sem que tea quer? (Se te Ia vejam.prends comment?)

O motorista: O que O garagista: Uma fo-se pode salvar (en to.tirer)?

Primeiro mendigo: Segundo mendigo: NaVocê especula com daqueles que saem.quais minas?

F\I~Jç?í() DENClRJ\\ALlZAÇÃO

FUNÇÃOINTERLOCUTOf\A

DE DISJUNÇÃO

1. Dois I a d r õ e s Primeiro I a d r ã o: Segundo ladrão: Desaem da prisão, Toma-se (prende) quem?

alguma coisa?

5. O motorista deuma viatura aciden'tada vai à garagem.

1. As figuras com disjunção semâMica:ArtiClllação progressiva por IlOmonimia de significações.

2. Dois ladrões dis·cutem.

dois corsos, dois escoceses ... a regressão opera-se, forada própria narrativa, na consciência. dÚplice do leitor­ouvinte.

Mas ai os conteÚdos das narrativas com articulaçãoregressiva ainda se enriqueceram passando da disjunçãosemântica à disjunção referencia!. Em lugar de disjuntarhumores caracteriais em situações excepcionais eles dis­j untam traços de caráter estabilizados, tipos sociais. Po­(~er-se-ia generalizar a articulação de seus conteÚdos di­zcndo que opõem o idealismo do caráter ao prosaismodos caracteres ficando entendido que a carência dos ca­racteres torna a oposição não categórica.

IlL AS FIGURAS COM ARTICULAÇÃOPROGRESSIV A

Análise Estrutural - 13

Tomemos os exemplos seguintes:

3. Um pai quer ofe­recer uma bicicletaa seu filho·proble­ma, que se temcomportado bem.

4. DoIs mendigosencontram· se naBolsa.

Nan'at. parasita.

FDtDt

1"0' '"

FX -> FI<:: ->~II

FN' """FE' """

J\',UTativa normal ...

I

11

,11,

';11'

111'1

!i!I:1

'I!II

li:IIl

":11

1:,

li!!

111

.1

194

Neste grupo, a narrativa normal não tropeça em umsigno enganando-se de significado, mas em um ou váriossignos, enganando-se de significações. Este sistema tornaas duas primeiras funções essenciais. A função de norma­lização propõe uma situação na qual os personagens têmum papel. A locução de deflagração concretiza sua pro­blemática em função deste papel. O interIocutor não res­

ponde mais somente e automaticamente a um signo, masinterpreta este signo segundo sua lógica própria. Dito deoutro modo, há nestas narrativas duas lógicas consecutivase heterogêneas, a normal contra a parasita, que a coerên­cia formal da narrativa liga uma a outra. Elas não sebloqueiam uma na outra nem paralelamente, nem circular-

195

FN ~ FE ~ D __. FDi'

FD' +- FE' +- FN' ..Narrativa parasita.

Narrativa normal

mente; elas se slIcedem trocando de caminho e justifi­cam-se separadamente. Temos pois uma figura livre eaberta cujo esquema poderia estabelecer-se assim:

J3'

As variações de articulação são ínfimas nestes siste­

mas. Elas podem ser enriquecidas por uma segundadisjunção desencadeada, como no c.templo do garção del'afl~ (caso 8): uma primeira disjunção (polis~emia\, se­mântica) provoca a reação do recebedor; uma seg~nda(polisscmia referendal) provoca a do garção. Elas p;odemser inversamente enfraqueci das por uma modificação dossignos como nos exemplos 9 e 10: fazer marclza-à-ré naauto-escola não significa voltar atrás (faire marchearriere); puder nas corridas «em» ou «cOm» I1TTl cavalonão significa fluder 11m cavalo. Sem dúvida não é poracaso se os personagens escolhidos são uma velha damae ullla avÓ: suas faculdades mentais ou auditivas são co­nl1ecidamente deficientes.

E' ao nível dos conteÚdos que estas narrativas são

mais ricas. Seu ritmo duplamente conseqÜente (duplalÓgica dos locutores, coerência formal da seqÜência) pa­n~ce torná-Ias aptas a utilizar elementos disjuntores maisestruturados socialmente. Como os exemplos o mostram,os conteÚdos apÓiam-se sobre mecanismos psicossociolÓ­gicos de condicionamentos conformes aos mecanismos

simultaneamente autornatizados e interpretativos do siste­ma. Um estudo dos conteÚdos poderia fazer neste grupoo recenseamento das condições sociais «disjuntadas»; detodos esses meninos-problema, velhos, mendigos, gara­gistas, garçons de café ... Esses condicionamentos n.ftoexcluem traços de caráter encontrados em outras histo­rietas, mas igualmente condicionados, como a avariceescocesa ou a preguiça dos corsos; os mesmos temaspodem cavalgar vários grupos.

Não é preciso dizer, já que tomamos a agressividac!écomo teste de articulação psicológica, que esta é imper-

A velha da1TUZ: InlÍ­til, não recuo nuncadiante de pessoa al­guma.

() doente: Então nãolhe devo nada?

o garção: Que quero senhor, é tudo queconsegui botar de la­do desde que come­cei a traballlar ernsua casa.

o recebedor: O se­nhor está zombandode mim.

A outra: Tanto me·lhor! Que terlamos fei­to dele se tivéssemosgan.hado'?

o outro: Sim, mascom juros altos.

A babá: Andar? Mas.ele n.ão precisará mln­Cl.l andar.

o médico: Ej' a suaconstituição que vo·cê deve seu resta·belecimento.

o patrão: Por queeste Chapéu duran·te o trabalho e,ainda por cima, delado?

o garção: O se­nhor aceita as gOl"jetas?- Não se aborreça,levo tudo de volta.

o professor: E ago­ra, vamos fazer amarcha à ré (fairemarche arriere).

Uma: P e r d e mosneste cavalo.

Um: Dê-me (prê­ter) um pouco deatenção.

Um passante: Quebela criança! Jáanda?

8. O garção de ca·fé vai pagar seusimpostos.

9. A velha damana Auto-escola.

6. o garção do ca·fé trabalha, com ochapéu sobre a ore­lha.

7. O convalescenteescocês diante deseu médico.

10. Duas avós jo­gam nas corridasde cavalos.

12. Uma criança ri­ca com sua babáno jardim.

11. Dois amigos es­coceses encontram­se.

"I

"

11;

,111

11'"

I:I!,;I

:11111

.• ·:111111

.1'11!!I,

llillf!il

ceptível. Os personagens não se opõem diretamente. Ggarção de café com-o-chapéu-de-lado somente deixa aflo­rar o insulto dirigido ao patrão, pois que a noção degorjeta engaja menos a responsabilidade do último doque a do cliente. A agressividade, se ela existe·, é intei­ramente latente, difusa, agressiva pela surprêsa; o locutordescobre, mais do que um contraditor, um «mundo» decontradições. Esta articulação é tão «progressiva» que odiálogo poderia ir ... muito longe. Se quiséssemos ca­racterizar este sistema, diríamos que ele opõe a inocênciaà perversão, levando em conta o condicionamento socialque as comanda e reduz sua distância.

2. As narrativas com disjunção referencial:Articulação progressiva com polissemia antonímica.

FUNÇÃO DE FUNÇÃO LOCUTORA FUNÇÃO

NORMALIZAÇÃO DE DEFLAGRAÇÃO INTERLOCUTORA

DE DISJUNÇÃO

• Mas não existe sempre agresslvldade?

A outra: Depois detudo que ela lhe fez'?

o jovem: Vim aquipara humilhar-me, pa­dre, não para vanglo­nar·me.

o padre: Pode ficarsossegada, minha fi­lha, não é orgulho, éum erro.

o outro: Porque ha­via perdido meu guar­da-chuva.

o outro: Porque melembrei onde o tinhaesquecido.

Marie-Chantal: Ah, Quehorrível!

Marie-Chantal: Ah, Quehorrível!

o policirll: .Já sei, seuadversário já me te­lefonou.

o dono: Então, pro·curemos juntos e di­vidamos.

() condenado: Sim,mas com esta tarifanão tenho coragem.

o outro glita pelajanela: Quando tiveracabado, passe-me ojornal.

Gladys: Está desfi­gurada.

Uma: Adoro a na­tureza.

Um: Mas quandoele disse: "Não co­meterás adultério",você começou arir?

o padre: Você cor­tejou muitas mu­lheres?

Um: Quando o pa­dre disse: "Nãoroubarás", você fi­cou verde.

197

A jovem: Padre, eume acuso de orgu­lho: quando meolho no espelho,acho que sou bela.

Gladys: Um cirur­gião lhe refará orosto como era an­tes.

o medroso: Doishomens vão·se ba­ter; vão até lá, pa­ra evitar 11mcrime.

o ladrão: Dinheiro!

o presidente: Vocêtem aIs'Uma coisaa acrescentar?

Um motorista abreo jornal e lê.

14. Um condenadopor insultar umpolícia está diantedo tribunal.

8. Duas a m i g a sconversam.

10_ A jovem vemconfessar-se.

11. Dois amigosdiscutem ao sairda igreja.

1;:). Na véspera deum duelo, um dosadversários. c o mmedo, telefona àpolícia.

9. Um jovem con­fessa-se antes dese casar.

12. Gladys informaMarie-Chantal que·a mãe de Gérard so­frera um acidente.

15. O dono ouve ànoite barulho naloja; desce e en­contra um ladrão.- Que está pro·curando?

lG. Dois automobi·listas, face a face,recusam-se dar pas·sagem.

j~

o carrasco: Bah! Sa·be muito bem quetodo mundo precisaviver ...

o empregado: Ah, nãosenhor, isto eu façode graça.

o garção: aparente­mente, Sir, pratica na­tação.

A garçonete: Sou ape­nas garçonete, não vi­sionária.

Maria: E para Mada­me?

o marido: Porque an­tigamente você tocavapiano.

A mulher: Não me ca·lei, estou descansando.

o cliente: Que é is­to aí?

o cliente: Garção,que é que ela estáfazendo aí?

Patrão: E' para is·to que eu lhe pago?

o condenado: Vocênão tem vergonha?

o marido: Maria,traga-me o conha­que.

A mulher: Antiga·mente v o c ê meapertava as mãos.

o marido: Eu sa·bia bem que vocêacabaria por secalar.

196

6. Um cliente en·contra vestígios decafé em sua xícara.

4. O empregado bei­ja a secretária.

7. Em Londres, umcliente encontrauma mosca na so­pa.

3. O marido sus­tenta nos braços amulher desmaiada.

5. O condenado di­ante do carrasco.

2. Um marido, apÓsuma briga, pareceter a última pala·vra.

1. Uma mulher cen­sura o marido porsua indiferença.

I

Ilill

198

As variações de figuras são tecnicamente inexistentes,como sempre que se trata de significações. Elas podemaparecer ao nível das relações entre o locutor e o intcf"'locutor: podem ir da agressão alusiva (caso 3) à agressãoprecisa (caso 8). Podem ir da agressão direta (caso 2 e6) à agressão por pessoa interposta (caso 11 e 12). Nosdois Últimos casos, não é o locutor que é agredido, masindiretamente a mãe de Gérard ou o padre (como sequiser), Um sistema de compensação funciona então evem dobrar a artículação disjuntora. A agressividade in­direta fazia correr um risco de fraqueza de transmissãojá que se podia não compreender imediatamente (caso dopadre), Oll um risco de não-disj unção, já que se podia

Este sistema de disjunção referendal com articulaçãoprogressiva distingue-se da regressiva como caso limiteou privilegiado. A intcrlocução é díametralmente opostaà locução. Daí uma especificidade própria a este sistema,especificidade que exprime mais do que um grau superiorde divergência entre as significações normais e parasitas.Nesta figura, o locutor traz seu coeficiente pessoal depresença, sua opinião, os quais o interlocutor leva emconta na sua resposta. Dito de outro modo, enquanto osistema regressivo propunha uma espécie de reconheci­mento destruidor do normal pelo parasita, este propõe,de certo modo, sua refutação reabilitadora. A função nor-'mal está logicamente articulada na função parasita com aÚnica exceção da intenção dramática: a lógica das signi­ficações.deflagradas é conservada mas as opiniões que asdcflagram são invertidas. Esta troca de direção se operasobre significações de segundo grau, significações designificações. Na consecução lógica das funções disjuo-"tantes, as duas Últimas, a problemática deflagrada segueseu caminho, mas desnaturando-se no decorrer da dis­junção. Temos como na articulação semântica precedenteuma seqÜência conseqÜente e aberta, mas livre.

199

considerar o primeiro lance «sério» (caso da mãe deGérard).

Sobre o plano do conteúdo, estas narrativas, comosuas sósias progressivas anteriores, apresentam um certograu de temperança na problemática que opõe os locuto­res. Uma certa inocência de réplica disjuntora lhe écomum. Os interlocutores anunciam de saída um pontode vista empirico que só a interpretação revela agressivo.Mas, aí ainda, passando do semântico ao referendal, ocampo dos conteúdos da figura intensifica-se e alarga­se: a guerra não é aberta, mas as cargas explosivas estãocolocadas. Os exemplos de agressão feroz, disfarçadasob o reconhecimento inocente de um fato, são numero­sos; a intcrlocutora toma gentilmente o partido de suaamiga contra a natureza que lhe fez tanto mal; o padrevem gentilmente em socorro de sua pecadora para dizer­lhe que se tinha enganado, elc. Este desvio mediador entrea reconciliação tacticia e a agressividade real é a marcaprÓpria de~;te sistema. Os exemplos 15 e 16 são privile­giados; o interlocutor-motorista mima a locutor para me­lhor exasperá-Ia; o interlocutor··roubado mima o ladrãopara melhor mistificá-Ia.

Dizemos que mesmo camuflado, o sistelna destal'igurd pode atingir a ferocidade. Ela opera a disjunçãoem um nivel de significações extremamente sensíveis para() locutor; contesta-lhe o conformismo de sua existência,Slla llOí10rabilidade. O cliente que encontrou a mosca nocafé e que teve a infelicidade de não apreciar os exercíciosde natação do inseto sente-se negado enquanto homem­cliente. Poder-se-ia generalizar a articulação psicossocio­lÓgica destas historietas dizendo que opõe o conformismo(w cinismo ficando entendido que estas historietas en­carregam-se de relativizar os extremos. '

Em todas estas narrativas com três funções, a arti­culação maior, a que disjunta a seqÜência entre a locuçãoe a interlocução, tem sentido Único. A narrativa toma porhipótese a bifurcação parasita. A estabilidade seqÜencialtem a resistência de um nó gÓrdio: não se pode desatá-Io

r Não damos, para aliviar este trabalho, as 7 narrativas residuais, das 180recolhidos. cujo hermetisrno resulta de uma mistura dos sistemas deSCi"itas.

FN ,,,.. F'F. ."... D FU'IrFD' ~ FE' ~ FN'

Narrativa parasita.

Narrativa norrrml

:1,

I'

til

!'II'

III

J,~III

:Iill'

é, unidades formadas de muitos planos. O sexto é forne­cido pelos segmentos autônomos que consistem em um sóplano, isto é, p(anos autônomos.

1. A Cena reconstitui por meios já H!micos umaunidade ainda sentida como «concreta» e como análogaàquelas que nos oferece o teatro ou a vida (um lugar,um momento, uma pequena ação particular e concentra­da). No cenário, o significante é fragmentário (muitosplanos, que são todos apenas «perfis» - Absc!wttungen- parciais), mas o significado é percebido como unitário.Todos os perfis são interpretados como extraídos de umamassa comum, pois a «visão» de um filme é de fato umfenômeno mais complexo, pondo em jogo constantementetrês atividades distintas (percepções, reestruturações docampo memória imediata) que se relançam sem cessaruma e Dutra e trabalham sobre os dados que elas forne­cem a si mesmas. Os hiatos espac:ais ou temporais nointerior da cena são hiatos de câmera, não hiatosdiegéticos.

2. A SeqÜência constrói uma unidade mais inédita,mais especificamente fílmica ainda, a de uma ação com­plexa (embora única) desenvolvendo-se através de muitoslugares e «saltando» os momentos inÚteis. Exemplo-tipo;as seqÜências de perseguição (unidade de lugar, masessencial e não mais literal; é «o lugar da perseguiçãm~,isto é, a paradoxal unidade de um lugar móvel). Nointerior da seqÜência, há hiatos diegéticos, emborareputados insignificantes, ao menos no plano da denotação(os momentos saltados são «sem importância para ahistória» ). E' o que diferencia estes hiatos dos que afusão com negro ([ondu au noir) assinala (ou qualqueroutro processo ótico ) entre dois segmentos autônomos:

ainda do império Cinematográfico e das análises dos teóricos clássicos docinema (análises sem dúvida muito incompletas. mesmo em seu nfvel; ver asdiversas "tábuas de montagem"]. Esta etapa. tornada indispensável pelo estadoatual da semiologia do cinema (disciplina noscente]. deverá ser ultrapassadaem benefício de uma formalização mais completa que fará aparecer melhoras escolhas reais (isto é. mais ou menos inconscientes] diante das quais seencontra colocado o cineasta em cada ponto da cadeia fílmica. Esta formaIi­zação mais completa não significará llma mudança das opiniões emitidas quantoà linguagem cinematográfica. mas um aperfeiçoamento da metalinguagem se­miol69ica (trabalho em curso].

202

estes últimos são considerados super-significantes (neles,nada nos é dito, mas deixa-se compreender que haveriamuito a dizer: a fusão com o negro é um segmento fíI­l11icoque não oferece nada para se ver, mas que é muitovisível). Contrariamente à cena, a seqüência não é olugar onde coincidem - pelo menos em principio - otempo JíJmico e o tempo diegético.

3. O Sintagma Alternante (exemplo-tipo; o que sechama «montagem paralela» ou «montagem alternada»segundo os autores) não se apóia mais sobre a unidadeda coisa narrada, mas sobre a da narração, que mantémaproximados os ramos diferentes da ação. Este tipo demontagem é rico em conotações diversas, mas define-seprimeiro como sendo uma certa maneira de construir adenotação.

A montagem alternante divide-se em tres subtipos,caso se escolha como pertinência a natureza da denotaçãotemporal. Na montagem alternativa, o significado da al­ternância é, no plano da denotação temporal, a alternânciac!iegética (a das «ações» apresentadas). Exemplo; doisjogadores de tênis, cada um sendo «enquadrado» nomomento em que a bola está com ele. Na montagem al-·ternada, o significado da alternância é a simultaneidadediegética (exemplo; os perseguidores e os perseguidos).Na montagem paralela (exemplo: o rico e o pobre, aalegria e a tristeza), as ações aproximadas não têm entreelas nenhuma relação pertinente quanto à denotação tem­pora!, e esta defecção do sentido denotado abre a portaa todos os «simbolismos», para os quais a montagemparalela é um lugar privilegiado.

4. O Sintagma FreqÜentativo (exemplo: marchamuito longa a pé pelo deserto traduzida por uma sériede vistas parciais por fusões encadeadas em cascata) põesob nossos olhos o que poderemos jamais ver no teatroou na vida: um processo completo, reagrupando virtual­mente um número indefinido de ações particulares queseria impossível abarcar em um olhar, mas que o cinemacomprime até nos oferecer sob forma praticamente unitá-

203

ria. Além dos significantes redundantes (procedimentosóticos, música, etc.), o significante distintivo da montagemfreqüentativa será procurado na sucessão aproximada deimagem repetitiva. No nivel do significante, o carátervetorial do tempo, que é próprio do «narrativo» (seqÜên­cias ordinárias), tem tendência a enfraquecer-se, por vezesa desaparecer (retornos cíclicos). Dentre os significados,podem-se distinguir três tipos de sintagmas freqüentati­vos: o freqüentativo pleno abraça todas as imagens emuma grande sincronia, no interior da qual a vetorialidadedo tempo cessa de ser pertinente. O semifreqüentativo éuma sucessão de pequenas sincronias e traduz uma evo­lução contínua com progressividade lenta (um processopsicológico na diégese, por exemplo): cada «flash» épercebido como extraído de um grupo de outras imagenspossíveis, correspondendo a um estágio do processo; masem relação ao conjunto do sintagma, cada imagem vem-secolocar no seu lugar sobre o eixo do tempo: a estruturafreqüentativa não se desenvolve pois na escala do sin­tagma inteiro, mas apenas na de cada um de seus está­gios. O sintagma em chave consiste em uma série debreves evocações tratando de acontecimentos oriundos deuma mesma ordem de realidades (exemplo: cenas deguerra); nenhum destes fatos é tratado Com a amplidãosintagmática à que poderia pretender; contentamo-noscom alusões, pois é apenas o conjunto que se destina aser levado em conta pelo filme. Há aqui um equivalentefílmico (balbuciante) da conceptaalização.

5. O Sintagma Descritivo opõe-se aos quatro tipospré-citados pelo fato que nos últimos a sucessão dasimagens sobre a tela (= lugar do significante) corres­pondia sempre a alguma forma de relação temporal nadiégese (= lugar do significado). Não seriam sempreconsecuções temporais (exemplo: montagem alternante nasua variante paralela, montagem freqüentativa na Slla

variante «plena»), mas seriam sempre relções temporais,No sintagma descritivo, ao contrário, a Sucessão dasimagens sobre a tela corresponde unicamente a séries decoexistências espaciais entre os fatos apresentados (no-

204

tar-se-á que o significante é sempre linear e consecutivo,enquanto que o significado pode ou não sê-Ia).

Isto não implica em nada que o sintagma descritivopossa-se aplicar somente a objetos ou fi pessoas imóveis.Um sintagma descritivo pode muito bem tratar de ações,com a condição de que sejam açõ~s nas quais o únicotipo de relação inteligível seja Q paralelismo espacial(em qualquer momento do tempo em que sejam tomadas),isto é, ações que o espectador não pode mentalmentecolocar lado a lado no tempo (exemplo: um rebanho decarneiros em marcha: tomadas dos carneiros, do pastor,do cão, etc.).

Em resumo, o sintagma descritivo é o único sintagmano qual os agenciamentos temporais do significante nãocorrespondem a nenhum agenciamento temporal do signi­ficado, mas somente a agenciamentos espaciais destesignificado.

6. O Plano Autônomo não se reduz apenas ao fa­moso «plano-seqÜência», comporta também algumas destasimagens que se chamam insertos (<<inserts») assim comodiversos casos intermediários. O plano-seqüência (e seusdiversos derivados) é uma cena (ver acima) tratadasenão em um só «plano», ao menos em uma só tomada.Os insertos definem-se por seu estatuto interpolado. Casose escolha como princípio de classificação a causa destecaráter interpolado, distinguir-s'e-ão quatro grandes sub­tipos de insertos: as imagens' não-diegéticas (metáforaspuras), as imagens ditas subjetivas (isto é, as que nãosão visadas - como presentes, mas visadas - como - au­sentes pelo herói diegético; exemplo: lembrança, sonho,alucinação, premonição, ,etc.), as imagens plenamentediegéticas e «reais» mas deslocadas (isto é, subtraídas desua colocação fílmica normal e colocadas intencionalmen­te como enclave em um sintagma onde parecem estranhas;exemplo: no meío de uma seqüência relativa aos perse­guidores, uma imagem única dos perseguidos) e enfiminsertos explicativos (detalhe aumentado, efeito de lupa;o motivo é subtraído de seu espaço empírico e colocadono espaço abstrato de uma intelecção). Todas estas es­pécies de imagens só são insertos quando apresentadas

205

I

[ •.. 11

"'1

l~I~'I

• 'I

);,

I

1I

II

I1

111'1'

uma só vez, e no meio de um sintagma estranho. Mas seelas são organizadas em série e apresentadas em alter­nância Com uma outra série, dão lugar a um sintagmaalternante (é um exemplo fílmico de transformação).

Diégese e filme

Estes seis grandes tipos sintagmáticos só podem serdescobertos em relação à diégese, mas dentro do filme.Correspondem a elementos de diégese, não à «diégese»simplesmente. Esta última é o significado remoto do filmetomado em bloco, enquanto os elementos de diégese sãoos significados próximos de cada segmento fílmico. falardiretamente da diégese (como se faz nos cine-clubes) nãonos dará jamais a decupagem sintagmática do filme,porque assim se volta a examinar significados sem terem conta seus significantes. Inversamente, querer delimi­tar unidades sem levar em conta o todo da diégese (comonas «mesas de montagem» de certos teóricos da época docinema mudo), é operar sobre significantes sem signifi­cados, pois o próprio do filme narrativo é narrar. O signi­ficado próximo de cada segmente fílmico está unido aeste mesmo segmento por indissolúveis laços de recipro­cidade semiológica (principio da comutação) e apenasum vaivém metódico da instância filmica (significante)à instância diegética (significado) dá-nos alguma opor­tunidade de dividir algum dia o filme de maneira nãomuito contestável. .

Sintagmática e montagem

Cada um dos seis grandes tipos sintagmáticos _ ouantes cada um dos cinco primeiros, porque para o planoautônomo o problema não se coloca - pode-se realizarde duas maneiras: seja pelo recurso à montagem propria­mente dita (como era o caso mais freqÜente no cinemaantigo), seja pelo recurso a formas de agenciamentosintagmático mais sutis (como é o caso freqüente no ci-

206

nema moderno). Agenciamentos que evitam a colagem(= filmagem em continuidade, planos longos, planos­seqÜência, etc.) não deixam de ser construções sintag­máticas, atividades de montagens no sentido amplo, comobem o mostrou Jean Mitry. Se é verdade que a montagemconcebida como manipulação irresponsável, mágica etodo-poderosa está ultrapassada, a montagem como cons­trução de uma inteligibilidade por meio de «aproximações»diversas não está de maneira nenhuma «ultrapassada»,porque o filme é de toda maneira discurso (isto é, lugarde concorrência de diversos elementos atualiza dos ).

Exemplo: uma descrição pode-se realizar em um só«plano», fora de toda montagem, por simples movimen­tos de aparelho: a estrutura inteligível reunindo diferentesmotivos apresentados será a mesma que a que reÚne os di­ferentes planos de um sintagma descritivo clássico. A mon­tagem propriamente dita representa uma forma elementarda grande sintagmática do filme, pois cada «plano» isolaem princípio um motivo único: por este fato as relaçõesentre motivos coincidem com relações entre planos, o quetorna a análise mais fácil do que nas formas complexas(e culturalmente «modernas») da sintagmática cinema­tográfica.

ConseqÜência: uma análise mais intensa da sintag­mática dos filmes modernos exigiria que se revisse oestatuto do plano autônomo (= o sexto de nossos gralhdes tipos), porque ele é suscetível de conter os cincoprimeiros.

Conclusão

Existe uma organização da linguagem cinematográfica,uma espécie de «gramática» do filme. Ela não é arbitrária(contrariamente às verdadeiras gramáticas) e não éimutável (evolui mesmo mais rápido que as verdadeirasgramáticas).

A noção de «gramática cinematográfica» é hojemuito depreciada; tem-se a impressão que não existemais. Mas é porque não foi procurada no lugar onde era

207

necessária. Fez-se sempre referência implicitamente àgramática normativa de línguas particulares (= línguasmaternas dos teóricos do cinema), enquanto que o fenô­meno lingüistico e gramatical é infinitamente mais vastoe concerne as grandes figuras fundamentais da trans­missão de toda informação. Somente a lingüística gerale a semiologia geral (disciplinas não normativas, sim­plesmente analíticas) podem fornecer ao estudo da lin­guagem cinematográfica «modelos» metodológicos apro­priados. Não é suficiente pois constatar que não existenada no cinema que corresponda à proposição consecutivafrancesa ou ao advérbio latino, que são fenômenos lin­güísticos infinitamente particulares, não necessários, nãouniversais. O diálogo entre o teórico do cinema e o se­miólogo não se pode estabele~ senão em um pontosituado contra a corrente das especificações idiomáticasou destas prescrições conscientemente obrigatórias. O queprecisa ser compreendido é o fato de que os filmes sejamcompreendidos. A analogia icônicanão saberia dar contasozinha desta inteligibilidade das concorrências no dis­curso fílmico. Aí está a tarefa de uma grande sintagmática.

CHRISTIAN METZ

Centre National de la Recherche Scientifique

208

AsdaLit

HISTÓHIA E DISCURSO. Ao nivel mais geral, a obraliterária tem dois aspectos; ela é ao mesmo tempo uma,história e um discurso. Ela é história, no sentido em queevoca uma certa realidade, acontecimentos que teriamocorrido, personagens que, deste ponto de vista, se con­fundem com os da vida real. Esta mesma história poderiater-nos sido relatada por outros meios; por um filme, porexemplo; ou poder-se-ia tê-Ia ouvido pela narrativa oral deuma testemunha, sem que fosse expressa em um livro.Mas a obra é ao mesmo tempo discurso: existe um nar­radar que relata a história; há diante dele um leitor quea percebe. Neste nível, não são os acontecimentos relata­dos que contam mas a maneira pela qual o narrador nosfez conhecê-Ias. As noções de história e de discurso foram

Caso se decida que a obra é a maior I.mídade lite­rária, é evidente que a questão do sentido da obra nãotem sentido. Para ter um sentido a obra deve ser inciuídaem um sistema superior. Se não se faz isto, é necessárioconfessar que a obra não tem sentido. Ela só se relacionacom ela mesma, é pois um index sul, ela indica-se a siprópria sem enviar a nenhum outro lugar.

Mas é uma ilusão crer que a obra tem uma existênciaindependente. Ela aparece em um universo literário po­voado pelas obras já existentes e é aí que ela se integra.Cada obra de arte entra em relações complexas com asobras do passado que formam, segundo as épocas, dife­rentes hierarquias. O sentido de Madame Bovary é o dese opor à literatura romântica. Quanto à sua interpreta ..ção, ela varia segundo as épocas e as críticas.

Nossa tarefa aqui é propor um sistema de noçõesque poderão servir ao estudo do discurso literário. Umi··tamo-nos, de um lado, às obras em prosa, e de outro, aum certo nível de generalidade na obra: o da narrativa.Apesar de ser a maior parte do tempo o elemento domi­nante na estrutura das obras em prosa, a narrativa nãoé entretanto o único. Entre as obras particulares queanalisaremos, voltaremos mais freqÜentemente aLesLiaisons Dangereuses.

!'I

IIII

ções, que surgem no curso da leitura, as que se ligam àliteralidade? Como isolar o domínio do que é propria­mente literário, deixando à psicologia e à história o quelhes pertence? Para facilitar este trabalho de descrição,propusemo-nos .a definir duas noções preliminares: osentido e a interpretação.

O sentido (ou a função) de um elemento da obraé sua possibilidade de entrar em correlação com outroselementos desta obra e com a obra inteira.' O sentidode uma metáfora é o de se opor a tal outra imagem oude ser mais intensa que ela em um ou muitos graus. Osentido de um monólogo pode caracterizar um persona­gem. E' o sentido dos elementos da obra em que pensavaFlaubert quando escrevia: «Não há no meu livro umadescrição isolada, gratuita; todas servem a meus perso­nagens e têm influência longínqua Oli imediata sobre aação.» Cada elemento da obra tem um ou muitos sentidos(salvo se esta é deficiente), que são em número finHo eque é possível estabelecer uma vez por todas.

O mesmo não se dá com a interpretação. A inter­pretação de um elemento da obra é diferente segundo apersonalidade do crítico, suas posições ideológicas, se­gundo a época. Para ser interpretado é incluído em umsistema que não é o da obra mas o do crítico. A inter­pretação de uma metáfora pode ser, por exemplo, umaconclusão sobre as pulsões de morte do poeta ou sobresua atração por tal «elemento» da natureza mais que portal outro. O mesmo monólogo pode então ser interpretadocomo uma negação da ordem existente ou, digamos, comose questionasse a condição humana. Estas interpretaçõespodem ser justificadas e elas são, de todas as maneiras,necessárias; mas não esqueçamos que se trata de inter­pretações.

O SENTIDO DA OBRA. Mas então, dir-nos-ão, em quese transforma a obra ela mesma? Se o sentido de cadaelemento reside na possibilidade de integrar-se em umsistema que é a obra, esta última teria um sentido?

1 Cf. Tynlanov. ·De !'évolutlon Ilttéralre", p. 123; aqui como sempre nestetexto. as citações dos formallstas russos remetem à coletânea Th60rle deLlttéramre, ed. du Seuil, 1965; que Indicaremos daqui por diante por n.

210 14$ 211

,

1.1

lilll

·11'

,'111

definitivamente introduzidas nos estudos da linguagemapós sua formulação categórica por E. Benveniste.

São os formalistas russos que, primeiro, isolaramestas duas noções que chamaram fábula (<<oque efetiva­mente ocorreu») e assunto (<<amaneira pela qual o leitortoma conhecimento disto») (Tomachevski, TL, p. 268).Mas Lados já havia sentido bem a existência destes doisaspectos da obra, e escreveu duas introduções: o Prefáciodo Redator introduz-nos à história, a Advertência doEditor, ao discurso. Chklovski declarava que a histórianão é um elemento artístico mas um material pré-Iiterário;somente o discurso era para ele uma construção estética.Acreditava pertinente para a estrutura da obra o fato deque o desenlace fosse colocado antes do nó da intriga;mas não o fato que o herói realize tal ato em lugar detal outro (na prática os formalistas estudavam um eoutro). Entretanto os dois aspectos, a história e o dis­curso, são todos os dois igualmente literários. A retóricaclássica ter-se-ia ocupado dos dois: a história originar­se-ia da inventio, o discurso da dispositio.

Trinta anos mais tarde, em uma crise de arrependi­mento, Chklovski passava de um extremo a outro, afir­mando: ·«E' impossível e inútil separar a parte circuns­tancial de seu encadeamento composicional, pois tratasempre da mesma coisa: o conhecimento do fenômeno»(O xudozhestvennoj proze, p. 439). Esta afirmação nosparece tão inadmissível como a primeira: é esquecer quea obra tem dois aspectos e não apenas um. E' verdade quenão é sempre fácil distingui-Ias; mas não cremos que,para compreender a unidade mesma da obra, seja neces­sário isolar estes dois aspectos. E' o que vamos tentaraqui.

I. A NARRATIVA COMO HISTÓRIA

Não é necessário crer que a história corresponda a umaordem cronológica ideal. E' suficiente que haja mais deum personagem para que esta ordem ideal se torne ex­tremamente afastada da história «natural». A razão disto

212

é que, para salvaguardar esta ordem, deveríamos saltara cada frase de um personagem para outro para dizero que este segundo personagem fazia «durante este tem­po». Pois a história raramente é simples: contém fre­qüentemente muitos «fios» e é apenas a partir de umcerto momento que estes fios se reúnem.

A ordem cronológica ideal é antes um processo deapresentação, tentado nas obras recentes, e não é a eleque nos referimos falando da história. Esta noção corres­ponde antes a uma exposição pragmática do que se pas­sou. A história é pois uma convenção, ela não existe aonível dos próprios acontecimentos. O relato de um agentede polícia sobre um fait divers segue precisamente asnormas desta convenção, expõe os acontecimentos o maisclaramente possível (enquanto o escritor que daí tira aíntriga de sua narrativa passará em silêncio tal detalheimportante que nos será revelado apenas no fim). Estaconvenção está tão largamente difundida que a deforma­ção particular feita pelo escritor na sua apresentação dosacontecimentos é confrontada precisamente com ela e nãocom a ordem cronológica. A história é uma abstração poisela é sempre percebida e narrada por alguém, não existe«em si».

Distinguiremos, não nos afastando nisto da tradição,dois níveis de história.

a) Lôgica das ações

Tentemos para começar considerar as ações em umanarrativa por elas mesmas, sem levar em conta a relaçãoque elas mantêm com os outros elementos. Que herançanos legou aqui a poética clássica?

As REPETIÇÕES.T0dos os comentários sobre a«técnica» da narrativa apóiam-se sobre uma simplesobservação: em toda obra, existe uma tendência à repe­tição, que concerne à ação, aos personagens ou mesmoa detalhes da descrição. Esta lei da repetição, cuja ex­tensão ultrapassa de muito a obra literária, precisa-se emmuitas formas particulares que levam o mesmo nome (e

213

,;,11

I

justificadamente) que certas figuras retóricas. Uma des­tas formas seria por exemplo a antitese, contraste quepressupõe, para ser percebido, uma parte idêntica emcada um dos dois termos. Pode-se dizer que, em LesLiaisofls Dangereuses, é a sucessão das cartas que obe­dece ao contraste: as diferentes histórias devem-se al­ternar, as cartas sucessivas não concernem ao mesmopersonagem; se elas são escritas pela mesma pessoa,haverá uma oposição no conteúdo ou no tom.

Uma outra forma de repetição é a gradação. Quandouma relação entre os personagens permanece idênticadurante muitas páginas, um perigo de monotonia espreitasuas cartas. E' por exemplo o caso de Mme. de Tourve1.Ao longo da segunda parte, suas cartas exprimem omesmo sentimento. A monotonia é evitada graças à gra­dação: cada uma de suas cartas dá um indício suple­mentar de seu amor por Valmont, de modo que a confis­são de seu amor (1.90) vem como uma conseqüêncialógica do que precede.

Mas a forma que é de longe a mais difundida doprincípio de identidade é o que se chama comumente oparalelismo. Todo paralelismo é constituído por duasseqÜências ao menos, que comportam elementos seme­lhantes e diferentes. Graças aos elementos idênticos, asdissemelhanças encontram-se acentuadas: a linguagem,nós o sabemos, funciona antes de tudo através das di­ferenças.

Podem-se distinguir dois tipos principais de parale­lismo: o dos fios da intriga, que trata das grandes unida­des da narrativa; e o das fórmulas verbais (os «detalhes»).Citemos alguns exemplos do primeiro tipo. Um dessesdesenhos confronta os casais Valmont-Tourvel e Danceny­Cécile. Por exemplo, Danceny faz a corte a Cécile soli­citando o direito de escrever-lhe; Valmont conduz seuflerte da mesma maneira. Por outro lado. Cécile recusaa Danceny o direito de escrever-lhe, exatamente comoTourvel o faz para Valmont Cada um dos participantesé caracterizado mais nitidamente graças a esta compara.­ção: os sentimentos de Tourvel contrastam com os deCécile, e acontece o mesmo quanto a Valmont c Danceny.

214

Outro desenho paralelo concerne aos casais Valmont­Cécile e Mertcl.lil-Danceny; ele serve menos à caracte­rística dos heróis que à composição do livro, pois semisto Merteuil permaneceria sem ligação importante comos outros personagens. Pode-se destacar aqui que umdos raros defeitos na composição do romance é esta fracaintegração de Mme. de Merteuil na rede das relaçõesentre os personagens; assim não temos provas suficientesde seu encanto Jeminino que representa entretanto umpapel tão importante no desenlace (nem Belleroche nemPrévan estão diretamente presentes no romance),

O segundo tipo de paralelismo apóia-se sobre umasemelhança entre fórmulas verbais articuladas em cir­cunstâncias idênticas. Eis por exemplo como Cécile ter­mina uma de suas cartas: ({E' preciso que eu terminepois já é quase uma hora; assim M. de Valmont nãodeve tardar» (1.1 09). Mme. de Tourvel conclui a sua deuma maneira semelhante: «Desejaria em vão escrever-lhedurante mais tempo; eis a hora em que ele (Valmont)prometeu vir, e qualquer outra idéia me abandona»(1.132). Aqui as fórmulas e as situações semelhantes(duas mulheres esperam seu amante que é a mesma pes­soa) acentuam a diferença nos sentimentos das duasamantes de Valmont e representa uma acusação indiretacontra ele.

Poder-se--ia fazer a objeção de que uma tal seme­lhança arrisca-se fortemente a passar despercebida, sendoas duas passagens separadas às vezes por dezenas oumesmo por centenas de páginas. Mas uma tal objeçãosó concerne a um estudo situado ao nível da percepção;enquanto nós nos colocamos constantemente no da obra.E' perigoso identificar a obra com sua percepção em umindivíduo; a boa leitura não é a do «leitor médio», masa melhor leitura possível.

Estas observações sobre as repetições são bem fa­mJliares à poética tradicional. Mas não há necessidade dedizer que a rede abstrata, por ela própria, é de uma talgeneralidade que poderia dificilmente caracterizar este ouaquele tipo de narrativa. Por outro lado, este enfoque édemasiado «formalista»: ele só se interessa por uma re-

215

217

As ações que compõem cada tríade são relativamentehomogêneas e se deixam facilmente isolar das outras.Destacam-.se três tipos de tdades: o primeiro concerne àtentativa (frustrada ou realizada) de concretizar um pro­jeto (as tdades da esquerda), o segundo, uma «preten­são», terceiro, um perigo.

O MODELOHOMOLÓGICO.Antes de tirar uma conclu­são qualquer desta primeira análise, procederemos a umasegunda, fundada também sobre os métodos correntes deanálise do folclore e, mais particularmente, da análisedos mitos. Seria injusto atribuir este modelo a Lévi­Strauss, pois por ter-lhe dado uma primeira imagem, esteautor não pode ser considerado responsável peja fórmulasimplificada que apresentaremos aqui. Segundo este, su-

t·:~ I,.'-h

I

r~~'

lação formal entre as diferentes ações, sem levar absolu­tamente em conta a natureza dessas ações. De fato aoposição não está propriamente entre um estudo das«relações» e um estudo das «essências», mas entre doisníveis de abstração e o primeiro revela-se como demasia­damente elevado.

Existe uma outra alternativa para descrever a lógicadas ações: aqui ainda se estudam as relações que elasentretêm: mas o grau de generalidade é muito menoselevado, e as ações são caracterizadas de mais perto.Pensamos, evidentemente, no estudo do conto popular edo mito. A pertinência destas análises para o estudo danarrativa literária é certamente maior do que se pensahabitualmente.

O estudo estrutural do folclore data de muito poucotempo, e não se pode dizer que no momento atual setenha feito um acordo sobre a maneira pela qual se deveproceder para analisar uma narrativa. Pesquisas ulterio­res provarão o maior ou menor valor dos modelos atuais.De nossa parte Iimitar-nos-emos aqui, à guisa de ilustra­ção, a aplicar dois modelos diferentes à história central

de Les Liaisolls Dangereuses para discutir as possibili­dades do método.

O MODELOTRIÁDICO.O primeiro método que expo­remos é uma simplificação da concepção de CI. Bremond(d. «Le message narratif», Comml1llicatiolls, 4). Segundoesta concepção, a narrativa inteira é constituida peloencadeamento ou encaixamento de micronarrativas. Cada

uma destas micronarrativas é composta de três (ou porvezes de dois) elementos cuja presença é obrigatÓria.Todas as narrativas do mundo seriam constituídas, se­gundo esta concepção, por diferentes combinações de umadezena de micronarrativas de estrutura estável, que cor­responderiam a um pequeno número de situações essen­ciais na vida: poder-se-ia designá-Ias por palavras corno«trapaça», «contrato», «proteção», etc.

Assim a história das relações entre Valmont e Tourvelpode ser apresentada como se segue:

216

Desejo de agradar de Valmont

IConduta de sedução

ITourvel concede sua simpatia

II

Desejo de amor de Valmont\

Conduta de ~eduçãoI

Amor rejeitado por TourvelI

Desejo de amor de ValmontI

Conduta de seduçãoI

AlT'~- concedido por Tourvel

Desejo de amor de ValmontI

Trapaça de sua parte

Amor realizado

== Pretensóes de ValmontI

Objeções de MeurteilI

Objeções rejeitadasII

== Pretensões de TourvelI

Objeções de VolangesI

Objeções rejeitadasII

== Perigo para TourvelFuga de amor

== Separação dos amorosos

== Conclusão de um pacto, etc.

põe-se que a narrativa representa a projeção sintagmáticade uma rede de relações paradigmáticas. Descobre-se poisno conjunto da narrativa uma dependência entre certoselementos, c procura-se encontrá-Ia na sLlcessão. Esta de­

pendência e, na maior parte dos casos, uma «homologia»,isto é, uma relação proporcional de quatro termos(A: B :a: b). Pode-se também proceder na ordem inversa:tentar dispor de diferentes maneiras os acontecimentos

que se sucedem, para descobrir, a partir das relaçõesque se estabelecem, a estrutura do universo representado.Procederemos~ aqui desta segunda maneira e, na falta deprincípio já estabelecido, contentar'-nos-emos com umasucessão direta e simples.

As proposições que inscrevemos no quadro que sesegue resumem G mesmo fio de intriga, as relaçÔcs VaJ­mont-Tourvel até à queda de Tourvel. Para este fio, énecessário ler as linhas horizontais que representam ()

aspecto sintagmático da narrativa. Em seguida compare ..mos as proposições colocadas LIma sob a outra (em umamesma coluna, presumida paradigma) e procuremos seudenominador comum.

,111'

ValmontdesejaTourvel deixa-seMerteui!tentaValmontrejeitaagradar admirarpor obstáculo ao03 conselhosprimeiro desojode MerteullVaJrr;onr pf'OCUf'.aseduzir

TOllrvelconc·'f}-VolangestentaTourvelrejeitade-lhe suacolocar ob:qtá-os conseihossimpatia culo il simpatiade VolangesValmont declara

TourvalresisteValmontTourvelrejeitaseu amor persegue-··ao amorII

obstinadamenteI

Valmol1t procuraTourvelconce·Tourv"i fogeVaimont.,-eJaltanovamente de·lho seudiante doamornaBpa~'énc!aseduzir amor o :amor

O amor éreal izado ___

Procuremos agora o denominador comum de cadacoluna. Todas as proposições da primeira concemem àatitude de Valmont em relação a Tourvel. Inversamente,a segunda coluna conccrne exclusivamente a Tourvel lê

caracteriza seu comportamento diante de Valmont. Aterceira coluna não tem um suJeito por denominador co­mum mas todas as proposições descrevem atos, no senti­do forte da palavra. Enfim, a quarta possui um predicado

218

comum, é a rejeição, a reçusa (na última linha, é umarejeição fingida). Os dois membros de cada par encon­tr<lnl-Se em uma relação quase antitética, e podemosconstruir a proposição:

Valmoflt: Tourvel: os atos: a rejeição dos atos

Esta apresentação parece sobretudo justificada namedida em que indica corretamente a relação geral entreValmont e Tourvel, a única ação brusca de Tourvel, etc.

Diversas conclusões impõem-se a partir destas aná­lises:

t. Parece evidente que, na narrativa, a sucessão dasações não é arbitrária, mas obedece a uma certa lógica.A aparição de um projeto provoca a aparição de umobstáculo, o perigo provoca uma resistência ou uma fuga,ete. E' muito possível que estes esquemas de base sejamem número limitado e que se possa representar a intrigade qualquer narrativa como uma derivação deles. Nãoestam os seguros que seja necessário preferir uma divisãoà outra, e não estava em nosso projeto tentar decidi-Ia, apartir de um único exemplo. ll.S pesquisas empreendidaspelos especialistas do folclore (sobre o modelo triádico,cf. aqui mesmo, CI. Bremond; sobre o modelo homoIógico,cf. aqui mesmo, P. Maranda) mostrarão qual é o maisapropriado à análise das formas simples da narrativa.

O conhecimento dessas técnicas e dos resultados

obtidos graças a elas é necessário para a compreensãoda obra. Saber que tal sucessão de ações parte dessalógica permite-nos não lhe procurar uma outra justifica­ção na obra. Mesmo se um autor não obedece a estalógica, devemos conhecê-Ia: sua desobediência toma todo

seu sentido precisamente em relação à norma que estalógica impõe.

2. O fato que segundo o modelo escolhido obtemosum resultado diferente a partir da mesma narrativa éum pouco inquietante. Revela-se de um lado que estamesma narrativa pode ter multas estruturas; e as técnicas

219

'I"

em questão não nos oferecem critério algum para esco­lher uma delas. Por outro lado, certas partes da narrativasão apresentadas, nos dois modelos, por proposições dife­rentes; entretanto em cada caso permanecemos fiéis àhistória. Esta maleabilidade da história nos adverte deum perigo: se a história permanece a mesma, emboramodifiquemos algumas de suas partes, é que estas nãosão verdadeiras partes. O fato de que no mesmo lugarda cadeia apareça uma vez «pretensões de Valmont», euma outra, «Tourvel deixa-se admirar», assinala-nos umamargem perigosa de arbitrário e mostra que não podemosestar seguros do valor dos resultados obtidos.

3. Um defeito de nossa demonstração prende-se àqualidade do exemplo escolhido. Um tal estudo das açõesapresenta-as como um elemento independente da obra;privamo-nos assim da possibilidade de reuni-Ias aos per­sonagens. Ora Les liaisons dan,c;ereuses participa de umtipo de narrativa que se poderia chamar «psicológica» eonde estes dois elementos estão muito estreitamente liga­dos. Não seria o caso do conto popular nem mesmo dasnovelas de Boccacio onde o personagem não é mais, namaior parte do tempo, que um nome que permite reuniras diferentes ações (aí se encontra o campo de aplicaçãopor excelência dos métodos destinados ao estudo da lÓgicapor ações) . Veremos mais adiante como é possível aplicaras técnicas discutidas aqui às narrativas do tipo de Lesliaisons dangereuses.

b) Os personagens e suas relaç6es.

«0 herÓi não é necessário à história. A história comosistema de motivos pode inteiramente dispensar o heróie seus traços característicos», escreve Tomachevski (TL,p. 296). Esta afirmação nos parece entretanto relacio­nar-se de preferência às histórias anedóticas ou quandomuito às novelas do Renascimento do que à literaturaocidental clássica que se estende de D. Quixole ao Ulisses.Nesta literatura, o personagem parece-nos representar umpapel de primeira ordem e é a partir dele que se organi-

220

zam os outros elementos da narrativa. Não é entretantoo caso em certas tendências da literatura moderna emque o personagem desempenha novamente um papel se­cundário.

O estudo do personagem coloca mÚltiplos problemasque estão ainda longe de ser resolvidos. Vamo-nos detersobre um tipo de personagem que é relativamente omelhor estudado: o que é caracterizado exaustivamentepor suas relações com os outros personagens. Não épreciso crer que, pelo fato de que o sentido de cadaelemento da obra equivale ao conjunto de suas relaçõescom os outros, todo personagem se defina inteiramentepor suas relações com os outros personagens. E entre­tanto o caso para um tipo de literatura e notadamentepara o drama. E' a partir do drama que E. Souriau tirouum primeiro modelo das relações entre personagens; nÓso utilizaremos na forma que lhe deu A. J. Greimas. Lesliaisons dangereuses, romance por cartas, aproxima-se emmuitos pontos de vista do drama e este modelo perma­nece válido para ele.

Os PREDlCADOS DE BASE. À primeira vista, estas re­lações podem parecer muito diversas, por causa do gran­de nÚmero de personagens, mas percebe-se rapidamenteque é fácil reduzi-Ias a três apenas: desejo, comunicaçãoe participação. Comecemos pelo desejo que é atestadoem quase todos os personagens. Na sua forma mais di­fundida que se poderia designar de «amor», é encon­trado em Valmont (para com Tourvel, Cécile, Merteuil, aViscondessa, Emilie), em Merteuil (para com BcIleroche,Prévan, Danceny), em Tourvel, Cécile e Danceny. O se­gundo eixo, menos evidente mas também tão importante,é o da comunicação, e ele se realiza na «confidência».A presença desta relação justifica as cartas francas,abertas, ricas de 'informação, como se espera entre con-·fidentes. Assim na maior parte do livro, Valmont e Mer­teuil encontram-se em relação de confidência. Tourveltem como confidente Mme. de Rosemonde; Cécile, pri­meiro Sophie, depois Merteuil. Danceny confia-se a Mer­teuil e a Valmont, Volanges a Merteuil, etc. Um terceirotipo de relação é a que se pode chamar a participação,

221

"'I

II!i,!

que se realiza pela «ajuda». Por exemplo, Valmont ajudaMerteuil em seus projetos; Merteuil ajuda primeiro o casalDanceny-Cécile, mais tarde Valmont em suas relaçõescom Cécile. Danceny ajuda também no mesmo sentidoembora involuntariamente. Esta terceira relação está pre­sente muito menos freqUentemente e aparece como umeixo subordinado ao eixo do desejo.

Estas três relações possuem uma generalidade muitogrande, pois estão já presentes na formulação deste mo­delo, tal qual a deu A. J. Oreimas. Não queremos entre­tanto afirmar que seja necessário reduzir todas as re­lações humanas, em todas as narrativas, a estas três.Seria uma redução excessiva que nos impediria de ca­racterizar um tipo de narrativa precisamente pela pre­sença destas três relações. Cremos em oposição que asrelações entre personagens, em toda narrativa, podemsempre ser reduzidas a um pequeno número e que estarede de relações tem um papel fundamental para a es­trutura da obra. E' nisto que se justifica nosso intento.

Dispomos pois de três predicados que designam re­lações de base. Todas as outras relações podem-se de­rivar destas três, com a ajuda de duas regras de deri­vação. Uma tal regra formaliza a relação entre um pre­dicado de base e um predicado derivado. Preferimos estamaneira de apresentar as relações entre predícados àsimples enumeração, porque aquela é Jogicamente maissimples e porque, por outro lado, dá corretamente contada transformação dos sentimentos, que se produz nocorrer da narrativa.

A REGRA DE OPOSiÇÃO. Chamaremos a primeira regracujos produtos estão mais difundidos regra de oposição.Cada mli dos três predicados possui um predicado opos­to (noção mais estreita que a negação). Estes predica­dos opostos estão menos freqüentemente presentes quesem, correlatos positivos; e isto é motivado naturalmente

pelo fato de que a presença de uma carta é já o signode llma relação :mligável. Assim o oposto do amor, oódio, é mais um pretexto, um elemento preliminar, queuma relação bem explícitada. Pode-se destacar na Mar-

222

quesa, para com Gercourt, em Valmont, para com Mme.de Volanges, em Danceny, para com Valmont. Tr;ata""·s~~sempre de um móvel, e não de um ato presente.

A relação que se opõe li confid.ênd,"~é mais freqi:ienteembora permaneça igualmente impHcita: é a ação detomar um segredo público, de exibi-h A narrativa sobrePrévan, por exemplo, é fundada inteiramente sobre odireito de prioridade de narrar o acontecimento. Do me:;·­mo modo, a intriga geral será resolvida por um gestosemelhante: Valmont, depois Dal1ceny, publicarão as car­tas da Marquesa, e isto será sua mais grave punição.De fato, este predicado está presente mais freqUentementedo que se pensa, embora permaneça latente: o perigode se fazer conhecer pelas pessoas determina uma grandeparte dos atos de quase todos os personagens. E' diantedeste perigo, por exemplo, que Cédle cederá às inves­tidas de Valmont. E' neste sentido também que é con­duzida uma grande parte da educação de Mme. de Mer­teuil. E' com este objetivo que VaJmont e Merteuil pro­curam constantemente apoderar-se das cartas comprome­tedoras (de Cécile): está aí o melhor meio de prej udicarGercourt. Em Mme. de Tourvel, este predicado sofreuma transformação pessoal: nela, o medo do comentáriodos outros é interiorizado e 111ânifesta"se na importânciaque dá à sua própria consciência. Assim no final dolivro, pouco antes de sua morte, ela não lamentará oamor perdido, mas a violação das leis de sua consciência,que equivalem, no final das contas, à opinião pública, àspalavras dos outros: «Enfim falando-me da maneira cruelpela qual havia sido sacrificada, acrescentou: «Eu meacreditava disp't>sta a morrer por causa disto, e tinhacoragem de fazê-Ia; mas sobreviver à minha infelicidadee à minha vergonha é o que me é impossível» (L 149).

Enfim u ato de ajudar encontra seu contrário node impedir, de se opor. Assim Valmont põe obstáculoàs ligações de Merteuil com Prévar. e de Danceny comCécile, Mme. de Volanges aos mesmos.

A REGRA DO PASSIVO. Os resultados da segundaderivação a partir dos três predicados de base estão

223

As TRANSFORMAÇÕESPESSOAIS. Chamamos com omesmo nome - dizemos «amor» ou «confidência» ­

sentimentos que experimentam personagens diferentes eque têm freqüentemente teor desigual. Par encontrar osmatizes podemos introduzir a noção de transformaçãopessoal de uma relação. Já assinalamos a transformaçãoque sofre o medo da divulgação em Mme. de Tourvel.Um Qutro exemplo é-nos fornecido pela realização doamor em Valmont e MerteuiL Estes personagens decom­puseram previamente, poder-se-ia dizer, o sentimento deamor, e descobriram aí um desejo de possessão e aomesmo tempo uma submissão ao objeto amado: guar­daram disto apenas a primeira metade, o desejo de pos­sessão. Este desejo, uma vez satisfeito, é seguido pelaindiferença. Tal é a conduta de Valmont com todas assuas amantes, tal é também a de Merteuil.

225Análise Estrutural - 15

postular a existência de dois níveis de relações, o deser e o de parecer. (Não esqueçamos que estes termosconcernem à percepção dos personagens e não a nossa.)A existência destes dois níveis é consciente em Merteuile Valmont e eles utilizam a hipocrisia para chegar aseus fins. Merteuil é aparentemente a confidente de Mme.de Volanges e de Cécile, mas de fato serve-se delaspara vingar-se de Gercourt. Valmont age do mesmomodo com Danceny.

Os outros personagens apresentam também certa du­plicidade nas suas relações; ela se explica desta vez nãopela hipocrisia, mas pela má-fé ou pela ingenuidade.Assim TourveJ ama Valmont mas não ousa confessá-Ioa si mesma e o dissimula sob a aparência da confidência.O mesmo com Cécile, o mesmo com Danceny (nas suasrelações com Merteuil) .. Isto nos leva a postular a exis­tência de um novo predicado que só aparece neste grupode vítimas e que se situa ao nível secundário em re­lação aos outros: é o de tomar consciência, de perceber.Designará a ação que se produz quando um personagemse dá conta de que a relação que tem com outro per­sonagem não é a que acreditava ter.

224

menos difundidos; correspondem à passagem da voz ati­va à voz passiva, e podemos chamar esta regra de regrade passil1o. Assim Valmont deseja Tourvel mas é tam­bém desejado por ela; ele odeia Volanges e é odiadopor Danceny; ele se confia a Merteuil e é confidentede Danceny; torna pública sua aventura com a Viscon­

dessa, mas Volanges apregoa suas próprias ações; ajudaDanceny e é ajudado por este último a conquistar Cécile;opõe-se a certas ações de Merteuil e ao mesmo temposofre a oposição vinda da parte de Volanges ou deMerteuil. Em outras palavras, cada ação tem um sujeitoe um objeto; mas contrariamente à transformação lin­güística ativa-passiva, não as trocaremos aqui de lugar:só o verbo passa para a voz passiva. Tratamos todos osnossos predicados como verbos transitivos.

Assim chegamos a doze relações diferentes que en­contramos no curso da narrativa, e que descrevemos coma ajuda de três predicados de base e de duas regras dederivação. Notamos aqui que estas duas regras não têmexatamente a mesma função: a regra de oposição servepara engendrar uma proposição que não pode ser ex­pressa de outra maneira (por exemplo, Merteuil impedeValrnont a partir de Merteuil ajuda Valmont); a regrado passivo serve para mostrar o parentesco de duas pro­posições já existentes (por exemplo, Valmont ama Tour­vel e Tourvel ama Valmont: esta última é apresentada,graças à nossa regra, como uma derivação da primeira,sob a forma Valmont é amado por Tourvel).

O SER E O PARECER. Esta descrição das relaçõesfazia abstração de sua encarnação em um personagem.Se os observamos sob este ponto de vista veremos queuma outra distinção está presente em todas as relaçõesenumeradas. Cada ação pode primeiramente parecer amor,confidência, etc., mas pode em seguida revelar-se comolima relação totalmente diferente de ódio, de oposição eassim sucessivamente. A aparência não coincide neces­sariamente com a essência da relação embora se trate

da mesma pessoa e do mesmo momento. Podemos pois

,11

'!III"

Recorde-se que introduzimos, na discussão preceden­te, uma distinção entre o sentimento aparente e o senti­mento verdadeiro que experimenta um personagem porum outro, entre o parecer e o ser. Teremos necessidadedesta distinção para formular nossa regra seguinte.

R2. Sejam A e B dois agentes, e que A ama Bao nível do ser mas não ao do parecer. Se A tomaconsciência ao nível do ser, age contra este amor.

Um exemplo da aplicação desta regra é-nos for­necido pelo comportamento de Mme. de Tourvel, quandotoma consciência de que está apaixonada por Valmont:deixa bruscamente o castelo e torna-se ela mesma umobstáculo à realização deste sentimento. O mesmo ocorrecom Danceny quando descobre estar apenas em uma re­lação de confidência com Merteuil: mostrando-lhe queé um amor idêntico ao que tem por Cécile, Valmont leva-oa renunciar a esta nova ligação. Já notamos que a «re­velação» presumida por esta regra é o privilégio de umgrupo de personagens que podemos denominar os «fra­cos». Valmont e Merteuil que não fazem parte destesnão têm possibilidade de «tomar consciência» de umadiferença entre os dois níveis pois não perderam jamaisesta consciência .

Passemos agora às relações que designamos pelonome genérico de participação. Formularemos aqui a re­gra seguinte:

R3. Sejam A, B e C, três ,agentes, e que A e Btenham uma certa relação com C. Se A toma consciên­cia que a relação B-C é idêntica à relação A-C, eleagirá contra B.

Notamos para começar que esta regra não refleteuma ação que «é evidente»: A poderia agir contra C.Podemos dar-lhe muitas ilustrações. Danceny ama Céciiee acredita que Valmont seja confidente dela; desde quese apercebe de que de fato se trata de amor, age contra

V'• ~·I

;;1<1

~' ',I• " "111.' I"

Façamos agora um rápido balanço. Para descrevero universo dos personagens temos aparentemente neces­sidade de tês noções. Há em primeiro lugar os predi­cados, noção funcional, tal como «amar~, «confiar-se»,etc. Há, por outro lado, personagens: Valmont, Merteuil,etc. Estes podem ter duas funções: ou ser os sujeitos,ou ser os objetos das ações descritas pelos predicados.Empregaremos o termo genérico de agente para desig­nar simultaneamente o sujeito e o objeto da ação. Nointerior de uma obra, os agentes e os predicados sãounidades estáveis, o que varia são as combinações dedois grupos. Enfim, a terceira noção é a das regras dederivação: estas descrevem as relações entre os diferentespredicados. Mas a descrição que podemos fazer com aajuda destas noções permanece puramente estática; a fimde poder descrever o movimento destas relações e, poraí, o movimento da narrativa, introduziremos uma. novasérie de regras que chamaremos, para distingui-Ias dasregras de derivação, regras de ação.

REGRAS DE AçÃO. Estas regras terão como dados departida os agentes e os predicados dos quais falamos eque se encontram já em uma certa relação; elas pres­creverão, como resultado final, as novas relações, quese devem instaurar entre os agentes. Para ilustrar estanova noção, formularemos algumas das regras que re..gem Les Liaisons Dangereuses.

As primeiras regras tratarão do eixo do desejo .

RI. Sejam Ae B dois agentes, e que A ama B.Então, A age de maneira que a transformação passivadeste predicado (isto é a proposição «A é amado porB») se realiza também.

A primeira regra visa a refletir as ações dos per­sonagens que estão apaixonados ou fingem-no. AssimValmont, apaixonado por Tourvel, faz tudo para queesta comece a amá-Io por sua vez. Danceny, apaixo­nado por Cécile, procede da mesma maneira; do mesmomodo Merteuil ou Cécile.

22615" 227

'li,"

'I

'I!IIII

Valmont; provoca-o para duelo. Do mesmo modo Vai ..

mant crê ser o confidente de Merteuil e não pensa queD;mceny possa ter a mesma relação; quando o sabe, agecontra ele (com a ajuda de Cécile). Merteuil que co­nhec~ esta regra serve-se dela para agir sobre Valmont:é neste sentido que lhe escreve uma carta para mostrar­lhe que Belleroche se apoderou de certos bens dos quaisValmont se acreditava único detentor. A reação é imediata.

Pode-se destacar que muitas ações de oposição as­sim como as de ajuda não se explicam por esta regra.Mas se observamos de perto estas ações, nós nos aper­ceberemos de que elas são cada vez a conseqüência deuma outra ação que, ela, participa do primeiro grupode relações, centradas em torno do desejo. Se Merteuilajuda Danceny a conquistar Cécile, é porque odeia Ger­court e isto é para ela um meio de vingar ..se; é pelasmesmas razões que ajuda Valmont em suas investidascontra Cécile. Se Valmont impede Danceny de fazer acorte a Mme. Merteuil, é porque é ele, Valmont, quea deseja. Enfim se Danceny ajuda Valmont a ligar-sea Cécile, é porque acreditava assim aproximar-se elepróprio de Cécile pela qual estava apaixonado. E assimsucessivamente. Percebe-se igualmente que estas açõesde participação são conscientes nos personagens «fortes»(Valmont e Merteuil), enquanto elas permanecem incons­cientes (e involuntárias) nos personagens «fracos».

Passemos agora ao último grupo de relações queassinalamos: os da comunicação. Eis pois nossa quartaregra:

R4. Sejam A e B dois agentes, e que B seja con­fidente de A. Se A torna-se o agente de uma propo­sição engendrada por RI, troca de confidente (a au­sência de confidente é considerada como um caso-limiteda confidência).

Para ilustrar R4, podemos lembrar que Cécile trocade confidente (Mme. de Merteuil em lugar de Sophie)desde que a ligação com Valmont começa; da mesma

228

maneira, Tourvel, apaixonando-se por Valmont, tomaMme. de Rosemonde por confidente; pela mesma razão,em grau mais fraco ela tinha cessado de fazer suas con­fidências a Mme. de Volanges. Seu amor por Cécile levaDanceny a se confiar a Valmont; sua ligação com Mer­teuil interrompe esta confidência. Esta regra impõe res­trições ainda mais fortes no que concerne a Valmont eMerteuil pois estes dois personagens não se podem con­fiar um ao outro. Conseqüentemente toda troca de confi­,dente significa a interrupção de qualquer confidência.Assim Merteuil cessa de se confiar a partir do momentoem que Valmont se torna demasiado insistente em seudesejo de amor. Do mesmo modo que Valmont párasua confidência a partir do momento em que Merteuildeixa ver seus próprios desejos, diferentes dos seus. Osentimento que anima Merteuil na Última parte é bemo desejo de posse.

interromperemos aqui a sucessão de regras que de­vem engendrar a narrativa de nosSo romance, para for­mular algumas notas.

1. Precisemos para iniciar o alcance destas regrasde ação. Elas refletem as leis que governam a vida deuma sociedade, a destes personagens de nosso romance.O fato de que se trata aqui de personagens imagináriose não reais não aparece na formulação: com a ajudade regras semelhantes, poder-se-ia descrever os hábitose as leis implícitas de não importa qual grupo homo­gêneo de pessoas. Os próprios personagens podem terconsciência destas regras: encontramo-nos pois aqui aonível da história c não ao do discurso. As regras assimformuladas correspondem às grandes linhas da narrativasem precisar como cada uma das ações prescritas serealiza. Este preenchimento do desenho poderá ser descrito,cremos nós, com a ajuda das técnicas que dão conta desta«lógica das ações» da qual falamos anteriormente.

Pode-se notar de outro ponto de vista que, no seuconteúdo, estas regras não diferem sensivelmente dasobservações que já foram feitas sobre Les Liaisons. Istonos leva a abordar o problema do valor explicativo de

229

nossa apresentação: é evidente que uma descrição quenão pode ao mesmo tempo fornecer-nos uma aberturasobre as interpretações intuitivas que damos à narrativafoge à sua finalidade. E' suficiente traduzir nossas regrasem uma linguagem comum para ver sua proximidade dosjulgamentos que têm com freqüência sido levantados apropósito da ética de Les Liaisons dangereuses. Por exem­plo, a primeira regra que representa o desejo de imporsua vontade sobre a de outro foi revelada pela quasetotalidade dos críticos que o interpretaram como uma«vontade da potência», ou «mitologia da inteligência».Além disto, o fato de que os termos dos quais nos ser­vimos nestas regras estão ligados precisamente a umaética parece-nos altamente significativo: poder-se-ia fa­cilmente imaginar uma narrativa em que estas regrasseriam de ordem social, ou formal, etc.

2. A forma que demos a estas regras exige umaexplicação particular. Poder-se-ia facilmente reprovar-nospor dar uma formulação pseudo-erudita a banalidades:por que dizer «A age de maneira que a transformaçãopassiva deste predicado se realize também em lugar de«Valmont impõe sua vontade a Tourvel»? Cremos entre­tanto que o desejo de tornar nossas afirmações precisase explícitas não pode, em si, ser um defeito; e nós nosreprovaríamos mais se elas não fossem sempre bastanteprecisas. A história da crítica literária formiga de exem­plos de afirmações com freqüência tentadoras mas que,por causa de uma imprecisão terminológica, conduzirama pesquisa a impasses. A forma de «regras», que demosa nossas conclusões, permite testá-Ias, «engendrando»sucessivamente as peripécias da narrativa.

Por outro lado, somente uma precisão elaborada dasformulações poderá permitir a comparação válida das leisque regem o universo de diferentes livros. Tomemos umexemplo: nas suas pesquisas sobre a narrativa, Chklovskiformulou a regra que, na sua opinião, permitirá dar contado movimento das relações humanas em Boiarde (Ro­land apaixonado) ou em Pouchkine (Eugênio Oneguin):«Se A ama B, B não ama A. Quando B começa a amar

230

A, A não ama mais B» (TL, p. 171). O fato de que estaregra tem uma formulação semelhante à das nossas per­mite uma confrontação imediata do universo destas obras.

3. Para verificar as regras assim formuladas, de­vem-se colocar duas questões: todas as ações no ro­mance podem ser engendradas com a ajuda destas regras?E todas as ações engendradas com a ajuda destas regrasencontram-se no romance? Para esponder à primeiraquestão, devemos primeiro lembrar que as regras for­muladas aqui têm sobretudo um valor de exemplo, enão a de uma descrição exaustiva; por outro lado, naspáginas que se seguem mostraremos os móveis de certasações que dependem de outros fatores na narrativa. Noque concerne à segunda questão não cremos que umaresposta negativa possa fazer duvidar do valor do mo­delo proposto. Quando lemos um romance, sentimos in­tuitivamente que as ações descritas decorrem de umacerta lógica; e não podemos dizer, a propósito de outrasações que não fazem parte dele, que elas obedeçam aesta lógica. Em outras palavras sentimos através de cadaobra que não existe apenas a fala (parole), que existetambém uma língua (langue) da qual ela não é maisque uma das realizações. Nossa tarefa é estudar preci­samente esta língua. E' apenas nesta perspectiva quepodemos enfocar a questão de saber por que o autor es­colheu estas peripécias para seus personagens mais queoutras, já que umas e outras obedecem à mesma lógica.

lI. A NARRATIVA COMO DISCURSO

Tentamos, até o momento, fazer abstração do fato deque lemos um livro, de que a história em questão nãopertence à «vida» mas a esse universo imaginário quesó conhecemos através do livro. Para explorar a segunda

parte do problema, patiremos de uma abstração inversa:consideramos a narrativa unicamente enquanto discurso,fala (parole) real dirigida pelo narrador ao leitor.

Separaremos os procedimentos do discurso em trêsgrupos: o tempo da narativa, onde se exprime a relação

231

:1'1

:II!III'til,

entre o tempo da história e o do discurso; os aspectosda narrativa, ou a maneira pela qual a história é per­cebida pelo narrador, e os modos da narrativa, que de­pendem do tipo de discurso utilizado pelo narrador paranos fazer conhecer a história.

a) O tempo da narrativa

O problema da apresentação do tempo na narrativa im­põe-se por causa de uma dissemelhança entre a tempo­ralidade da história e a do discurso. O tempo do dis­curso é, em um certo sentido, um tempo linear, enquantoo tempo da história é pluridimensional. Na história, mui­

tos acontecimentos podem-se desenrolar ao mesmo tempo;mas o discurso deve obrigatoriamente colocá-los um em

seguida ao outro; uma figura complexa encontra-se pro­jetada sobre uma linha reta. E' daí que vem a necessi­dade de romper a sucessão «natural» dos acontecimentos

mesmo se o autor desejava segui-Ia de mais perto. Masa maior parte do tempo, o autor não tenta encontraresta sucessão «natural» porque utiliza a deformação tem­poral para certos fins estéticos.

A DEFORMAÇÃO TEMPORAL. Os formalistas russos

viam na deformação temporal o único traço do discursoque o distingue da história; é por isto que eles colo­cavam aquela como centro de suas pesquisas. Citemosa propósito um trecho de La Psychologie de l'ar! dopsicólogo Lev Vygotski, livro escrito em 1925 mas queapenas acaba de ser publicado: «Sabemos já que a baseda melodia é a correlação dinâmica dos sons que aconstituem. Acontece exatamente o mesmo com o verso

que não é a simples soma dos sons que o constituemmas sua sucessão dinâmica, uma certa correlação. Domesmo modo que dois sons, combinando-se, ou duas

palavras, sucedendo-se, formam uma certa relação quese define inteiramente pela ordem de sucessão dos ele­mentos, assim dois acontecimentos ou ações, combinan­

do-se dão juntos uma nova correlação dinâmica, que é

232

inteiramente definida pela ordem e pela disposição destesacontecimentos. Assim os sons a, b, c, ou as palavras

a, b, c, ou os acontecimentos a, b, c trocam completa­mente de sentido e de significação emocional, se os co­

locamos, digamos, na ordem seguinte: b, c, a; b, a, c.Imaginemos uma ameaça e em seguida sua realização:um assassinato; obter-se-á uma certa impressão se üleitor é posto primeiramente ao corrente da ameaça, de­pois conservado na ignorância quanto à sua realização,e enfim se o assassínio não é relatado a não ser após

este suspense. A impressão será entretanto completamenteoutra se o autor começa pela narrativa da descobertado cadáver, e então somente, em uma ordem cronológicainversa, narra o assassínio e a ameaça. Conseqüente­mente a disposição mesma dos acontecimentos na narra­tiva, a combinação mesma das frases, representações,imagens, ações, atos, réplicas, obedece às mesmas 1cisde construção estética às quais obedecem a combinaçãodos sons em melodia ou palavras em 'Verso» (p. 196).

Vê-se nitidamente, nesta passagem, uma das prin­

cipais características da teoria formalista, e mesmo daarte que lhe era contemporânea: a natureza dos acon­tecimentos conta pouco, só importa a relação que man­têm (no caso presente, é uma sucessão temporal). Osformalistas ignoravam pois a narrativa como história,ocupando-se apenas da narrativa como discurso. Pode-seaproximar esta teoria da dos cineastas russos da época:são os anos em que a montagem era considerada comoo elemento artístico propriamente dito de um filme.

Notemos de passagem que as duas possibilidades

descritas por Vygotski foram realizadas nas diferentesformas do romance policial. O romance de enigma co­

meça pelo fim de uma das histórias contadas, para atin­gir o seu início. O romance negro, em oposição, relataprimeiro as ameaças para chegar, nos últimos capítulosdo livro, aos cadáveres.

ENCADEAMENTO, ALTERNÂNCIA, ENCAIXAMENTO. As

observações anteriores relacionam-se à disposição tem­poral no interior de uma só história. Mas as formas

233

mais complexas da narrativa literária contêm diversashistórias. No caso de Les Liaisons dangereuses, pode­se admitir que existem três histórias, que contam asaventuras de Valmont com Mme. Tourvel, Cécile e Mme.de Merteuil. Sua disposição respectiva revela-nos umoutro aspecto do tempo da narrativa.

As histórias podem-se ligar de muitas maneiras. Üconto popular e coletâneas de novelas conhecem já duasdelas, o encadeamento e o encaixamento. O encadea­mento consiste simplesmente em justapor diferentes his­tórias: uma vez acabada a primeira, começa-se a se­gunda. A unidade é -assegurada, neste caso, por umasemelhança na construção de cada uma: por exemplo,três irmãos partem sucessivamente à procura de um ob­jeto precioso; cada uma das viagens fornece a basede uma das histórias.

O encaixamento é a inclusão de uma história nointerior de uma outra. Assim todos os contos das Mile uma Noites são encaixados no conto sobre Sherazade.

Vê-se aqui que estes dois tipos de combinação repre­sentam uma projeção rigorosa das duas relações sintá­ticas fundamentais, a coordenação e a subordinação.

Existe entretanto um terceiro tipo de combinaçãoque podemos chamar a alternâneia. Consiste em contaras duas histórias simultaneamente, interrompendo orauma ora outra, para retomá-Ia na interrupção seguinte.Esta forma caracteriza evidentemente gêneros literáriosque perderam toda ligação com a literatura oral: estanão pode conhecer a alternância. Como exemplo célebrede alternância pode-se citar o romance de Hoffman LeChat Murr, onde a narrativa do fato alterna com a domúsico; igualmente o Reeit de Souffrances de Kierkegaard.

Duas destas formas manifestam-se em Les Liaisonsdangereuses. De um lado, as histórias de Tourvel e deCécill alternam-se ao longo de toda a narrativa; de ou­tro, ~3io ambas encaixadas na história do casal Merteuil­Valmont. Este romance, entretanto, sendo bem construí­do, não permite estabelecer limites nítidos entre as his­tórias: as transições estão aí dissimuladas; e o desenlace

234

de cada uma serve para desenvolvimento à seguinte.Além do mais, elas estão ligadas pela imagem de Valmontque mantém relações estreitas com cada uma das trêsheroínas. Existem outras ligações múltiplas entre as his­tórias; elas se realizam com a ajuda dos personagenssecundários que asseguram funções em muitas histórias.Por exemplo, Volanges, mãe de Cécile, é amiga e pa­rente de Merteuil e ao mesmo tempo conselheira deTourvel. Danceny liga-se sucessivamente a Cécile e MeF­teuil. Mme. de Rosemonde oferece sua hospitalidade tantoa Tourvel como a Cécile e sua mãe. Gercourt, antigoamante de Merteuil, quer esposar Cécile. etc. Cada per­sonagem pode acumular múltiplas funções.

Ao lado das histórias principais, o romance podeconter outras, secundárias, que só servem habitualmentepara caracterizar um personagem. Estas histórias (asaventuras de Valmont no castelo da Condessa, ou comEmile; as de Prévan com os «inseparáveis»; as da Mar­quesa com Prévan ou BeIleroche) são no nosso casomenos integradas ao conjunto da narrativa que às his­tórias principais, e nós as sentimos como «encaixadas».

TEMPO DA ESCRITURA,TEMPO DA LEITURA.A estas

temporalidades próprias dos personagens, que se situamtodas na mesma perspectiva, acrescentam-se duas outrasque pertencem a um plano diferente: o tempo da enun­ciação (da escritura) e o tempo da percepção (da lei­tura). O tempo da enunciação torna-se um elementoliterário a partir do momento em que é introduzido nahistória: caso em que o narrador nos fala de sua próprianarrativa, do tempo que tem para escrever ou para contá­Ia. Este tipo de temporalidade se manifesta muito fre­qüentemente na narrativa que se apresenta como tal;pensemos por exemplo na famosa reflexão de TristamShandy sobre sua impotência em terminar a n~rrativa.Um caso limite seria aquele em que o tempo da enun­ciação é a única temporalidade presente na narrativa:esta seria uma narrativa inteiramente voltada sobre simesma, a narrativa de uma narração. - O tempo daleitura é um tempo irreversível que determina nossa per-

235

'I!

111111"

cepção do conjunto; mas pode também tornar-se umelemento literário com a condição de que o autor o leveem conta na história. Por exemplo no início da páginadiz-se que são dez horas; e na página seguinte que sãodez e cinco. Esta introdução inocente do tempo da lei­tura na estrutura da narrativa não é a única possível:existem outras nas quais não nos podemos deter; indi­quemos apenas que se toca aqui no problema da signi­ficação estética das dimensões de uma obra.

b) Os aspectos da narrativa

Lendo uma obra de ficção, não temos uma percepçãodircta dos acontecimentos que descreve. Ao mesmo tempoque estes acontecimentos, percebemos, embora de umamaneira diferente, a percepção que dele possui aqueleque os narra. E' aos diferentes tipos de perccpção, rc-.conhecíveis na narrativa, que nos referimos pelo termode aspectos da narrativa (tomando esta palavra em umaacepção próxima de seu sentido etimológico, isto é,«olhar» ). Mais precisamente, o aspecto reflete a relaçãoentre um ele (na história) e um eu (no discurso), entreo personagem e o narrador.

J. Pouillon propôs uma classificação dos aspectos danarrativa, que retomaremos aqui com modificações meno­res. Esta percepção interna conhece três tipos principais.

NARRADOR> PERSONAGEM (A VISÃO «POR TRÁS»). Anarrativa clássica utiliza com mais freqüência esta fór­mula. Neste caso, o narrador sabe mais que seu perso­nagem. Não se preocupa em nos explicar como adquiriueste conhecimento: vê através dos muros da casa tanto

quanto através do crânio de seu herói. Seus personagensnão têm segredos para ele. Evidentemente, esta formaapresenta diferentes graus. A superioridade do narradorpode-se manifestar seja em um conhecimento dos dese­jos secretos de alguém (que este alguém ele próprioignora), seja no conhecimento simultâneo dos pensamen-

236

tos de muitos personagens (do que nenhum deles é ca­paz), seja simplesmente na narração dos acontecimentosque não são percebidos por um único personagem. As­sim Tolstoi em sua novela Três Mortes conta suces­sivamente a história da morte de uma aristocrata, deum camponês e de uma árvore. Nenhum dos persona­gens percebeu-as em conjunto; estamos pois em pre­sença de uma variante da visão «por trás».

NARr~ADoR = PERSONAGEM (A VISÃO «COM»). Esta

segunda forma é também difundida em literatura, sobre­tudo na época moderna. Neste caso, o narrador sabetanto quanto os personagens, não pode fornecer umaexplicação dos acontecimentos antes de os personagensa terem encontrado. Aqui também pode-se estabelecermuitas distinções. De um lado, a narrativa pode serconduzida na primeira pessoa (o que justifica o pro­cesso) ou na terceira pessoa, mas sempre segundo avisão que um mesmo personagem tem dos acontecimen­tos: o resultado, evidentemente, não é o mesmo; sabe­mos que Kafka tinha começado a escrever O Castelona primeira pessoa, e só modificou a visão muito maistarde, passando para a terceira pessoa mas sempre noaspecto «narrador» = «personagem». Por outro lado, onarrador pode seguir um único ou muitos personagens(as modificações podendo ser sistemáticas ou não). En­fim, pode-se tratar de uma narrativa, consciente por partede um personagem, ou de uma «dissecação» de seucérebro, como em muitas narrativas de Faulkner. Vol­taremos um pouco mais tarde sobre este caso.

NARRADOR<PERSONAGEM (A ViSÃO «DE FORA»). Nes­te terceiro caso, o narrador sabe menos que qualquerdos personagens. Pode-nos descrever unicamente o quese vê, ouve, etc. mas não tem acesso a nenhuma cons­ciência. Certamente, este puro «sensualismo» é uma con­venção pois uma tal narrativa seria incompreensível; masexiste como modelo de uma certa escritura. As narra­tivas deste gênero são muito mais raras que as outras,e a utilização sistemática deste processo não foi feita

237

no século XX. Citemos uma passagem que caracterizaesta visão:

«Ned Beaumont passou de novo diante de Madvige esmagou a ponta de seu charuto em um, cinzeiro decobre com os dedos que tremiam.

«Os olhos de Madvig permaneceram fixos sobre odorso do jovem até que ele se voltasse e retomasse. Ohomem louro teve um rictus ao mesmo tempo afetuosoe exasperado» (D. Hammett, A Chave de Vidro).

De uma tal descrição não podemos saber se os doispersonagens são amigos ou inimigos, se estão satisfeitosou descontentes, ainda menos em que pensam fazendoestes gestos ... Eles mal são mencionados: prefere-sedizer «o homem louro», «o jovem». O narrador é poisuma testemunha que não sabe nada e, mesmo mais, nãoquer sab~r nada. Entretanto a objetividade não é tãoabsoluta como se desejaria (<<afetuoso e exasperado»).

VÁRIOSASPECTOS DE UM MESMO ACONTECIMENTO.Voltemos agora ao segundo tipo, aquele no qual o nar­radar possui tantos conhecimentos quanto os persona­gens. Dissemos que o narrador pode passar de perso­nagem a personagem; mas ainda é preciso especificarse estes personagens contam (ou vêem) o mesmo acol1­tecimento ou muitos acontecimentos diferentes. No pri­meiro caso, obtém-se um efeito particular que se poderiachamar uma «visão estereoscópica». Com efeito, a plu­ralidade de percepções nos dá uma visão mais complexado fenômeno descrito. Por outro lado, as descrições deum mesmo acontecimento nos permitem concentrar nossaatenção sobre o personagem que o percebe pois já co­nhecemos a história.

Consideremos novamente Les Liaisons dangerellses.Os romances por cartas do século XVIII utilizavam nor­malmente esta técnica, para a Faulkner, que consisteem contar a mesma história várias vezes mas vista porpersonagens diferentes. Toda a história de Les Liaisonsé contada de fato duas, e freqüentem ente mesmo três

238

vezes. Mas observando estas narrativas de perto, des­

cobrimos que não somente nos dão uma visão estereos­cópica dos acontecimentos, mas ainda são qualitativa­mente diferentes. Recordemos brevemente esta sucessão.

O SER E O PARECER.Desde o começo, as duas his··t6rias que se alternam nos são apresentadas sob pontosde vista diferentes: Cécile conta inocentemente suas ex­periências a Sophie, enquanto Merteuil as interpreta nassuas cartas a Valmont; por outro lado, Valmont informaa Marquesa sobre suas experiências com Tourvel, queescreve ela mesma a Volanges. Desde o começo podemosdar conta da dualidade já notada ao nível das relaçõesentre os personagens: as revelações de Valmout ins­truem-nos sobre a má fé que Tourvel põe nas suasdescrições; o mesmo em relação à inocência de Cécile.Com a chegada de Valmont a Paris, nós nos damosconta do que são de fato Danceny e seus atos. Ao fimda segunda parte, é a própria Merteuil que dá duasversões do caso Prévan: uma do que é, a outra do quedeve parecer aos outros. Trata-se pois novamente daoposição entre o nível aparente e o nível real, ou ver-dadeiro.

A ordem de aparição das versões não é obrigatóriamas é utilizada com fins diferentes. Quando a narrativade Valmont ou de Merteuil precede a dos outros perso­nagens, lemos esta última antes de tudo como uma in­formação sobre quem escreve a carta. No caso inverso,uma narrativa sobre as aparências desperta nossa curio­sidade e esperamos uma interpretação mais profunda.

Vemos pois que o aspecto da narrativa que participado «ser» se aproxima de uma visão «por trás» (do caso«narrador>personagem»). Embora a narrativa seja sem­pre narrada por personagens, alguns deles podem tal co­mo o autor revelar-nos o que os outros pensam ou sentem.

EVOLUÇÃODOS ASPECTOS DA NARRATIVA.O valordos aspectos da narrativa modificou-se rapidamente desdea época de Laclos. O artifício que consiste em apresentar

2.39

FALA DOS PERSONAGENS, FALA DO NARRADOH. Seprocuramos uma base lingüística nesta distinção, é-nosnecessário, à primeira vista, recorrer à oposição entre afala (parole) dos personagens (o estilo direto) e a fala(parole) do narrador. Uma tal oposição nos explicariaporque temos a impressão de assistir a atos quando omodo utilizado é a representação, enquanto esta impres­são desaparece no momento da narração. A fala dospersonagens em uma obra literária goza de um estatutoparticular. Relaciona-se, como toda fala, à realidade de­signada, mas representa igualmente um ato, o ato dearticular esta frase. Se um personagem diz: «Você émuito bela», é que não somente a pessoa à qual sedirige é (ou não é) bela, mas que este personagemrealiza diante de nossos olhos um ato: articula uma

frase, faz um cumprimento. Não é preciso crer que asignificação destes atos se resume no simples «ele diz»;esta significação conheceria a mesma variedade que osatos realizados com a ajuda da linguagem; e estes sãoinumeráveis.

Entretanto esta primeira identificação da narração eda representação peca por seu lado simplista. Ficando­se aí, segue-se que o drama não conhece a narração,a narrativa não-dialogada, a representação. Entretantopode-se facilmente convencer-se do contrário. Tomemoso primeiro caso: Les Liaisons dangereuses, tal como odrama, só conhece o estilo direto, toda a narrativa sendoconstituída por cartas. Contudo este romance conhecenossos dois modos: se a maior parte das cartas repre­sentam atos e participam assim da representação, ou­tras informam apenas sobre acontecimentos que se de­senrolaram em outro lugar. Até o desenlace do livro,esta função é assumida pelas cartas de Valmont à Mar­quesa e em parte pelas respostas desta; após o desen­lace, é Mme. de Volanges que retoma a narração. Quan­do Valmont escreve a Mme. de Merteuil, só tem umobjetivo: informá-Ia sobre os acontecimentos que lheocorreram; assim ele começa suas cartas por esta frase:«Eis o boletim de ontem». A carta que contém este

241Análise Estrutural - 16

c) Os modos da narrativa

240

a história através de suas projeções na consciência deum personagem será mais e mais utilizado no decorrerdo século XIX, e, depois de ter sido sistematizado porHenry James, tornar-se-á regra obrigatória no séculoXX. Por outro lado, a existência de dois níveis quali­tativamente diferentes é uma herança dos tempos maisantigos: o século das Luzes exige que a verdade sejadita. O romance posterior contentar-se-á com m~lÍtasversões do «parecer» sem pretender uma versão que sejaa única verdadeira. E' preciso dizer que Les Liaisonsdangereuses se distingue Com vantagem de muitos outrosromances da época pela discrição com a qual este níveldo ser é representado: o caso Valmoni, ao fim do livro,deixa o leitor perplexo. E' neste mesmo sentido que seconduzirá uma grande parte da literatura do século XIX.

Os aspectos da narrativa concerniam à maneira pela quala história era percebida pelo narrador; os modos danarrativa concernem à maneira pela qual este narradorno-Ia expõe, no-Ia apresenta. E' a estes modos da nar­rativa a que nos referimos quando dizemos que um es­critor nos «mostra>,' as coisas, enquanto tal outro só faz

«dizê-Ias>,'. Existem dois modos principais: a represen­tação e a narração. Estes dois modos correspondem,em um nível mais concreto, às duas noções que já en­contramos: o discurso e a história.

Pode-se supor que estes dois modos na narrativacontemporânea vêm de duas origens diferentes: a crô­nica e o drama. A crônica, ou a história, é, crê-se, umapura narração, o autor é uma simples testemunha querelata fatos; os personagens não falam; as regras são asdo gênero histórico. Em oposição, no drama, a histórianão é relatada, desenvolve-se diante de nossos olhos(mesmo se só fazemos ler a peça); não há narração,a narrativa está contida nas réplicas dos personagens.

vemo-Io agora, não sobre as categorias implícitas massobre sua manifestação, o que pode nos induzir facilmenteem erro. Encontraremos este fundamento na oposiçãoentre os aspectos subjetivo e objetivo da Iínguagem.

Toda fala é, sabe-se, ao mesmo tempo um enun­ciado e uma enunciação. Enquanto enunciado, ela serelaciona com o sujeito do enunciado e permanece por­tanto objetiva. Enquanto enunciação, ela se relacionaao sujeito da enunciação e guarda um aspecto subjetivopois representa em cada caso um ato realizado pelosujeito. Toda frase apresenta estes dois aspectos masem graus diferentes; certas partes do discurso têm porÚnica função transmitir esta subjetividade (os pronomespessoais e demonstrativos, os tempos do verbo, certosverbos; cf. E. Benveniste «De Ia subjetivité dans le lan­gage», em Problemes de linguistique générale), outrosconcernem antes de tudo à realidade objetiva. Podemospois falar, com John Austin, de dois modos do discurso,

c~nstatativo (objetivo) e performativo (subjetivo).Tomemos um exemplo. A frase «M. Dupont chegou

a casa às dez horas, em dezoito de março» tem umcaráter essencialmente objetivo; não traz à primeira vistanenhuma infomação sobre o suieito da enunciação (aúnica informação é que a enunciação tem lugar depoisda hora indicada na frase). Outras frases, em oposição,têm uma significação que concerne quase exclusivamenteao sujeito da enunciação, por ex.: «Você é um impedI!»Uma tal frase é antes de tudo um ato da pessoa quea pronuncia, uma injúria, embora ela guarde tambémum valor obietivo. E' apenas o contexto global do enun­ciado, entretanto, que determina o grau de subjetividadeprópria a uma frase. Se nossa primeira proposição ti­vesse sido tomada na réplica de um personagem, poder-se­ia tornar uma indicação sobre o sujeito da enunciação.

O estilo direto está ligado, em geral, ao aspectosubjetivo da linguagem; mas como o vimos a propósitode Valmont e de Mme. de Volanges, esta subjetividadese reduz por vezes a uma simples convenção: a infor­mação é-nos apresentada como vinda do personagem

"

'11'1'

1'11

'11

1111"1111,111,

, ,'1'111'li'··

«boletim» não representa nada, pertence à pura narra­ção. Acontece o mesmo às cartas de Mme. de Volangesa Mme. de Rosemonde ao fim do romance: são «bole­tins» sobre a saúde de Mme. Tourvel, sobre as infelici­dades de Mme. de Merteuil, etc. Notamos aí que estarepartição dos modos em Les Liaisons dangereuses éjustificada pela existência de diferentes relações: a nar­ração aparece nas cartas de confidência, que é atestadapela simples existência da carta; a representação con­cerne às relações amorosas e de participação, que ad­quiriram assim uma presença mais sensivel.

Tomemos agora o caso inverso, para ver se o dis­curso do autor participa sempre da narração. Eis umexcerto de L'Education Sentimentale:

" ... entravam na rua Caumartin, quando, de repente, irrom­peu atrás deles um ruído semelhante ao estalar de uma imensapeça de seda que é rasgada. Era a fuzilada do Boulevard desCapucines.

- Ah! Caçam-se alguns burgueses, diz Frederico tranqilila­mente.

"Pois há situações em que o homem menos cruel está tãodesligado dos outros, que veria perecer o gênero humano semum batimento do coração".

Colocamos em itálico as frases que participam darepresentação; como se vê, o estilo direto só cobre umaparte. Este excerto transmite a representação por trêsformas de discursos diferentes: pelo estilo direto; pelacomparação; e pela reflexão geral. As duas últimas par­ticipam da fala do narrador mas não da narração. Elasnão nos informam sobre uma realidade exterior ao dis­curso, mas tomam seu sentido da mesma maneira queas réplicas dos personagens; somente, desta vez, elasnos informam sobre a imagem do narrador e não sobrea de um personagem.

OBJETIVIDADE E SUBJETIVIDADE NA LINGUAGEM. De­vemos abandonar esta nossa primeira identificação danarração com a fala do narrador e da representaçãocom a dos personagens, para encontrar-Ihes um funda­mento mais profundo. Uma tal identificação fundar-se-ia,

24215· 243

'111,

l'i:l'i

1,1, ,I!,

I· '''1'11;1,

e não do narraclor, mas não sabemos nada sobre estepersonagem. Inversamente, a fala do narrador pertencegeralmente ao plano da enunciação histórica, mas nomomento de uma comparaç:ão (como de outra figuraretórica) ou de uma reflexão geral, o sujeito da enun­ciação torna-se aparente, e o narrado r se aproxima as­sim dos personagens. Assim as falas do narrador emFlaubert assinalam-nos a existência de um sujeito daenunciaçã.o que faz comparações ou reflexões sobre anatureza humana.

ASPECTOS E MODOS. Os aspectos e os modos danarrativa são duas categorias que entram em relaçõesmuito estreitas e que concernem, todos os dois, à ima­gem do narrador. E' por isso que os críticos literáriostiveram tendência a confundi-Ias. Assim Henry Jameseem seguida Percy Lubbock distinguiram dois estilosprincipais na narrativa: o estilo «panorâmico» e o estilo«cênico». Cada um destes termos acumula duas noções:a cênica é ao mesmo tempo a representação e a visão«com» (narrador = personagem); o «panorâmico» é anaração e a visão «por trás» (narrador> personagem).

Contudo esta identificação não é obrigatória. Paravoltar aLes Liaisons dangereuses, podemos lembrar queaté o desenlace a narração é confiada a Valmont quetem uma visão próxima daquela «por trás»; em oposi­ção, após o desenlace, ela é retomada por Mme. deVolanges que compreende pouco os acontecimentos quesobrevêm e da qual a narrativa participa inteiramenteda visão «com» (senão «de fora»). As duas categoriasdevem pois ser bem distinguidas para que se possa emseguida dar conta de suas relações mútuas.

Esta confusão aparece como mais perigosa aindacaso nos lembremos que atrás de todos estes processosse desenha a imagem do narrado r, imagem tomada porvezes pela do autor mesmo. O narrador em Les Liaisonsdangereuses não é evidentemente Valmont, este não émais que um personagem provisoriamente encarregadoda narração. Abordamos aqui uma nova questão impor­tante: a da imagem do narrador.

244

IMAGEMDO NARRADORE IMAGEMDO LEITOR.O nar­rador é o sujeito desta enunciação que representa umlivro. Todos os processos de que temos tratado nestaparte nos trazem de volta a este sujeito. E' ele quedispõe certas descrições antes das outras, embora estasas precedam no tempo da história. E' ele que nos fazver a ação pelos olhos de tal ou tal personagem, oumesmo por seus próprios olhos, sem que lhe seja poristo necessário aparecer em cena. E' ele, enfim, que es­colhe relatar-nos tal peripécia através do diálogo de doispersonagens ou mesmo por uma descrição «objetiva».Temos portanto uma quantidade de informações sobreele, que nos deveriam permitir compreendê-Io, situá-Iocom precisão; mas esta imagem fugitiva não se deixaaproximar e se reveste constantemente de máscaras con­traditórias, indo desde a de um autor em carne e ossoà de um personagem qualquer.

Há entretanto um lugar em que, parece, aproxima­mo-nos suficientemente desta imagem: podemos chamá­10 de nível apreciativo. A descrição de cada parte dahistória comporta sua apreciação moral; a ausência deuma apreciação representa uma tomada de posição tam­bém muito significativa. Esta apreciação, dizemos de ime­diato, não faz parte de nossa experiência individual deleitores nem da do autor real; ela é inerente ao livro

e não se poderia corretamente compreender a estruturadesta sem ter isto em conta. Pode-se, com Sthendal,descobrir que Mme. de Tourvel é o personagem maisimoral de Les Liaisons dangereuses; pode-se, com Si­mone de Beauvoir, afirmar que Mme. de Merteuil éaí o personagem mais atraente; mas são interpretaçõesque não pertencem ao sentido do livro. Se não conde­namos Mme. de Merteuil, se não tomamos o partido daPresidente, a estrutura da obra teria sido alterada. E'preciso dar-se conta de início que existem duas inter­pretações morais, de caráter realmente diferente: umaque é interior ao livro (em toda obra de arte imitativa),e outra que os leitores dão em se preocupar com a ló­gica da obra; esta poae variar sensivelmente segundo

245

1I'IIi ,I

":111'

,1,1,

as épocas e a personalidade do leitor. No livro, MOle.de Merteuil recebe uma apreciação negativa, Mme. deTourvel é uma santa, etc. Cada ato possui aí sua apre­ciação embora possa não ser a do autor nem a nossa(e este é um dos critérios dos quais dispomos parajulgar o sucesso do autor).

Este nível apreciativo nos aproxima da imagem donarrador. Não é necessário para isto que este nos dirija«diretamente» a fala: neste caso, ele se assimilaria, pelaforça da convenção literária, aos personagens. Para adi­vinhar o nível apreciativo, recorremos a um código deprincípios e de reações psicológicas que o narrador pos­tula comum ao leitor e a ele mesmo (este código nãosendo admitido por nós hoje, encontramo-nos no estadode distribuir diferentemente os acentos de avaliação).No caso de nossa narrativa, es.te código pode ser redu­zido a algumas máximas bastante banais: não façaismal; sede sinceros; resisti à paixão, etc. Ao mesmotempo, o narrador apóia-se sobre uma escala avaliativa

das qualidades psíquicas; é graças a ela que respeita­mos e tememos Valmont e Merteuil (pela força de seuespírito, por seu dom de previsão) ou preferimos Tour­vel a Cécile Volanges.

A imagem do narra,dor não é uma imagem solitária;desde que aparece, desde a primeira página, ela é acom­panhada do que se pode chamar «a imagem do leitor».Evidentemente, esta imagem tem tão poucas relaçõescom um leitor concreto quanto a imagem do narrador,com o autor verdadeiro. Os dois encontram-se em de­

pendência estreita um do outro, e desde que a imagemdo narrador começa a sobressair mais nitidamente, oleitor imaginário encontra-se também desenhado com maisprecisão. Estas duas imagens são próprias a toda obrade ficção: a consciência de ler um romance e não um

documento leva-nos a fazer o papel deste leitor imagi­nário e ao mesmo tempo apareceria o narrador, o quenos relata a narrativa, já que a própria narrativa é ima­ginária. Esta dependência confirma a lei semiológica

246

geral segundo a qual «eu» e «tu», o emissor e o re­ceptor de um enunciado, aparecem sempre juntos.

Esta imagens se formam a partir das convençõesque transformam a história em discurso. O fato mesmode que lemos o livro do começo ao fim (isto é, comoo teria desejado o narrador) nos leva a fazer o papeldo leitor. No caso do romance por cartas, estas con­venções são teoricamente redllZidas ao mínimo: é comose lêssemos uma verdadeira coletânea de cartas, o au­tor não toma nunca a palavra, o estilo é sempre direto.Mas na sua Advertência do Editor, Laclos destrói jáesta ilusão. As outras convenções concernem à exposiçãomesma dos acontecimentos e, em particular, à existênciade diferentes aspectos. Assim observamos nosso papelde leitor desde que sabemos mais que os personagens poisesta situação contradiz uma verossimilhança no vivido.

III. A INFRAÇÃO À ORDEM

Pode-se resumir todas as observações que apresentamosaté aqui dizendo que tinham por objeto a estrutura li­terária da obra, ou, como diremos de agora em diante,uma certa ordem. Empregamos este termo como umanoção genérica para tod~ as relações e estruturas ele­mentares que estudamos. Mas nossa apresentação nãocontém nenhuma indicação sobre a sucessão na narra­tiva; se as partes da narrativa fossem intercambiadas,esta apresentação não seria sensivelmente modificada. Nopresente, deter-nos-emos sobre o momento crucial dasucessão própria da narrativa: o desenlace, que repre­senta, como iremos ver, uma verdadeira infração à or­dem precedente. Observamos esta infração tomando comoúnico exemplo Les Liaisons dangereuses.

A INFRAÇÃO NA HISTÓRIA. Esta infração é sensívelem toda a última parte do livro, e em particular entreas cartas 142 e 162, isto é, entre a rutura de Valmontcom Tourvel e a morte de Valmont. Ela concerne logo

247

de inicio à imagem mesma de Valmont, personagemprincipal da narrativa. A quarta parte começa pela quedade Tourvel. Valmont pretende na sua carta 125 que setrata de uma aventura que não se distingue em nadadas outras; mas o leitor apercebe-se facilmente, sobre­tudo ajudado por Mme. de Merteuil, que o tom traiuma outra relação que não é a declarada: desta vez,trata-se de amor, isto é, ~da mesma paixão que animatodas as «vítimas». Substituindo seu desejo de posses­são e a indiferença que o seguia por amor, Valmontdeixa seu grupo e destrói já uma primeira repartição.E' verdade que mais tarde sacrificará este amor paraafastar as acusações de Mme. de Merteuil, mas estesacri fieio não resulta da ambigüidade de sua atitudeprecedente. Mais tarde, ainda Valmont realiza outras SClI1­

dagens que deveriam reaproximá-Io de Tourvel (escreve­lhe, escreve a Volanges, sua última confidente); e seudesejo de vingança contra Merteuil deveria também in­dicar-nos que se arrepende de seu primeiro gesto. Masa dúvida que não é levantada; o Redator .di-Io explici­tamente em uma de suas Notas (1. 154) sobre a cartade Valmol1t enviada a Mme. de Volanges para ser re­metida a Mme. de Tourvel e que não está presente nolivro: «E' porque não se encontrou nada na continuaçãodesta correspondência que pudesse resolver esta dúvida,que se tomou a iniciativa de suprimir a carta de Mmc.de Valmont».

A conduta de Valmont com Mme. de Merteuil é

também muito estranha, vista na perspectiva da lógicaque esboçamos anteriormente. Esta relação parece reu­nir elementos muito diversos, e até então incompatíveis:há desejo de posse, mas também oposição e ao mesmotempo confidência. Este último traço (que é portanto umadesobediência à nossa quarta regra) se revela como de­cisivo para a sorte de Valmont: ele continua a se con­fiar à Marquesa mesmo após a declaração de «guerra».E a infração da lei é punida pela morte. Do mesmomodo Valmont esquece que pode agir em dois níveispara realizar seus desejos, dos quais se servia tão habil-

248

mente antes: nas cartas à Marquesa, confessa ingenua.omente seus desejos sem tentar dissirrmlá-Ios, adot.ar umatática mais flexível (o que deveria fazer por causa daatitude de Merteuil). Mesmo sem referir-se às cartasda Marquesa a Danceny, o leitor pode-se dar conta queela põe fim à sua relação amiga com Valmont.

A INFRAÇÃO NO DISCURSO. Damo-nos conta aquide que a infração não se resume simplesmente a umaconduta de Valmont, que não está mais conforme asregras e distinções estabelecidas; ela concerne igualmenteà maneira pela qual somos advertidos a seu respeito.Ao longo da narrativa, estávamos certos da veracidadeou da falsidade dos atos e dos sentiment.os, relatados:o comentário constante de Merteuil e de Valmont inforo•

mava·-nos sobre a essência mesma de qualquer ato, da·o

va-nos o próprio «ser», e não somente o «parecer». Maso desenlace consiste precisamente na suspensão das con­fidências entre os dois protagonistas: estes cessam dese confiar a quem quer que seja e somos, repentina­mente, privados de saber com certeza, somos privadosde ser e devemos sozinhos tentar adivinhá-lo através doparecer. E' por esta razão que não sabemos se Val­mont ama ou não ama verdadeiramente a Presidente;é pela mesma razão que não estamos certos das ver­dadeiras razões que levam Merteuil a agir (já que atéaí todos os elementos da narrativa tinham uma inter­pretação indiscutível): desejaria verdadeiramente matarValmont sem temer as revelações que ele poderia fazer?Ou ainda Danceny foi muito longe na sua cÓlera e dei­xou de ser uma simples arma entre as mãos de Mer­teuiI? Não o saberemos jamais.

Observamos anteriormente que a narração estavacontida nas cartas de Valmont e de Merteuil, antes destemomento de infração, e, mais tarde, nas de Mme. deVolanges. Esta troca não é uma simples substituição,mas a escolha de uma nova visão: enquanto nas trêsprimeiras partes do livro, a narração situa-se ao níveldo ser, na última, ela toma o do parecer. Mme. de Vo-

249

"11'11"11'

langes não compreende os acontecimentos que a cercam,só percebe as aparências (mesmo Mme. de Rosemondeé melhor informada do que ela; mas ela não narra).Esta troca de ótica na narração é particularmente sen­sível em relação a Cécile: como na quarta parte dolivro não há cartas suas (a única que assina é ditadapor Valmont), não temos nenhum meio de saber qualé, neste momento, seu «ser». Assim o Redator tem ra­zão em prometer-nos, na sua Nota de conclusão, novasaventuras de Cécile: não conhecemos as verdadeiras ra­zões de sua conduta, seu destino não está claro, seufuturo é enigmático.

VALORDA INFRAÇÃO.Pode-se imaginar no romanceuma quarta parte diferente, uma parte tal que a ordemprecedente não seja infringida? Valmont teria sem dú­vida encontrado um meio mais flexível para romper comTourvel; se sobreviesse um conflito entre ele e Merteuil,saberia resolvê-Io com mais habilidade e sem expor-sea tantos perigos. Os «devassos» teriam encontrado umasolução que Ihes permitisse evitar os ataques de suaspróprias vítimas. Ao fim do livro, teríamos os dois cam­pos tão separados como no começo, e os dois cúmplicestambém igualmente poderosos. Mesmo se o duelo comDanceny tivesse ocorrido, Valmont teria sabido não seexpor ao perigo mortal ...

E' inútil continuar: sem fazer interpretações psico­lógicas, damo-nos conta de que o romance assim con­cebido não seria mais o mesmo; não seria mesmo maisnada. Só teríamos a narrativa de uma simples aventuragaIante, a conquista de uma «pudica», com uma conclu­são «bizarra». Isto nos mostra que não se trata aquide uma particularidade menor da construção mas de seucentro mesmo: tem-se antes a impressão de que a nar­rativa inteira consiste na possibilidade de conduzir pre­cisamente a este desenlace.

O fato de que a narrativa perderia toda a sua es­pessura estética e moral se não tivesse este desenlaceencontra-se simbolizado no romance mesmo. Com efeito,

250

a história é apresentada de tal maneira que deve suaprópria existência à infração da ordem. Se Valmont nãotivesse transgredido as leis .de sua própria moral (e asda estrutura do romance), não teríamos jamais vistopublicada sua correspondência, nem a de Merteuil: estapublicação de suas cartas é uma conseqüência de suarutura e, mais genericamente, da infração. Este detalhenão é devido ao acaso, como se poderia crer: a histó­ria inteira não se justifica, com efeito, senão na medidaem que existe uma punição do mal pintada no romance.Se Valmont não tivesse traído sua primeira imagem, olivro não teria o direito de existir.

As DUASORDENS.Até aqui não caracterizamos estainfração à ordem a não ser de uma maneira negativa,como a negação da ordem precedente. Tentamos agoraver qual é o conteúdo positivo destas ações, qual é osistema que Ihes é subjacente. Olhemos primeiro seuselementos: Valmont, o devasso, apaixona-se por uma«simples» mulher; Valmont esquecendo-se de usar a as­túcia com Mme. de Merteuil; Cécile indo arrepender-sede seus pecados no mosteiro; Mme. de Volanges fa­zendo o papel de conselheira ... Todas estas ações têmum denominador comum: obedecem à moral convencio­

nal, tal qual existia no tempo de Laclos (ou mesmomais tarde). Portanto a ordem que determina as açõesdos personagens no e após o desenlace é simplesmentea ordem convencional, a ordem exterior ao universo dolivro. Uma confirmação desta hipótese é dada tambémpela nova retomada do caso Prévan. Ao fim do livro,vemos Prévan restabelecido na sua antiga grandeza;entretanto lembramo-nos que, no conflito com a Mar­quesa, todos os dois tinham exatamente os mesmos de··sejos escondidos e manifestados. Merteuil tinha simples-'mente conseguido ser a mais rápida, não era a maisculpada. Nço é pois uma justiça suprema, uma ordemsuperior que se instaura no fim do livro; é unicamentea moral convencional da sociedade contemporânea, moralpudibunda e hipócrita, nisto diferente da de Valmont eMerteuil no resto do livro. Assim a «vida» torna-se parte

251

'11

, 'I

"11,11

integrante da obra; sua existência é um elemento es­sencial que devemos conhecer para compreender a es­trutura da narrativa. E' somente neste momento de nossaanálise que a intervenção do aspecto social se justifica:acrescentemos que ela é também de fato necessária. Olivro pode parar porque estabelece a ordem que existena realidade.

Colocados nesta perspectiva, podemos aperceber-nosque os elementos desta ordem convencional estavam pre­sentes também anteriormente; e eles explicam estes acon­tecimentos e estas ações que não podiam estar no sis­tema que descrevemos. Aqui se inscreve por exemplo aação de Mme. de Volanges junto a Tourvel e Valmont,uma ação de oposição que não tinha as mesmas moti­vações que as refletidas por nossa R3. Mme. de V0­langes odeia Valmont não porque esteja no número dasmulheres que ele abandonou, mas de acordo com seusprincípios morais. Acontece exatamente o mesmo quantoà atitude do Confessor de Cécile que se torna; também,um oponente: é a moral convencional, exterior ao uni­verso do romance, que guia seus passos. São ações cujamotivação ou móveis não estão no romance, mas foradele: age-se assim porque é preciso, é a atitude naturalque não pede justificação. Enfim, podemos encontrarlá também a explicação da atitude de Tourvel que seopõe obstinadamente a seus próprios sentimentos em no-­me de uma concepção ética que diz que a mulher nãodeve enganar o marido.

Vemos assim toda a narrativa em uma nova pers-­pectiva. Ela não é a simples exposição de uma ação,mas a história do conflito entre duas ordens: a do livroe a do seu contexto social. Em nosso caso até seudesenlace, Les Liaisolls dangereuses estabelece uma no­va ordem, diferente da do meio exterior. A ordem ex­terior só está presente aqui como um móvel para certasações. O desenlace representa uma infração a esta or­dem do livro e o que o segue nos conduz a esta mesmaordem exterior, à restauração do que estava destruidopela narrativa precedente. A apresentação desta parte

252

do esquema estrutural em nosso romance é particular­mente instrutiva: ajudado pelos diferentes aspectos danarrativa, Lados evita tomar posição a respeito destarestauração. Se a narrativa precedente era conduzidaao nível do ser, a narrativa final está inteiramente noparecer. Não sabemos qual é a verdade, conhecemosapenas as aparências; e não sabemos qual é a posiçãoexata do autor: o nível apreciativo está dissimulado. Aúnica moral da qual tomamos conhecimento vem de Mme.de Volanges; ora, como feito a propósito, é precisamenteem sua3 últimas cartas que Mme. de Volanges é ca­racterizada como uma mulher superficial, privada deopinião própria, mexeriqueira, etc. Como se o autor nospreservasse de conceder confiança demasiada aos jul­gamentos que ela emite! A moral do fim do livro res­tabelece Prévan em seus direitos; é esta a moral deLados? E' esta ambigüidade profunda, esta abertura ainterpretações opostas que distingue o romance de Laclosde numerosos romances «bem construidos» e o colocaao nível das obras-primas.

A INFRAÇÃO COMO CRITÉRIO TIPOLÓGlCO. Pode-sepensar que a relação entre a ordem da narrativa e aordem da vida que a cerca não deve ser necessaria­mente a que se realiza em Les Liaisons dangerellses.Pode-se supor que a possibilidade inversa existe também:a narrativa que explícita em seu desenvolvimento a or­dem existente fora dela, e cujo desenlace introduziriauma ordem nova, precisamente a do universo romanesco.Pensamos por exemplo nos romances de Dickens, queapresentam em sua maioria a estrutura inversa: ao longode todo o livro, é a ordem exterior, a ordem da vidaque domina as ações dos personagens; no desenlaceproduz-se um milagre, tal personagem rico revela-se su­bitamente como um ser generoso, e torna possível ainstauração de uma ordem nova. Esta nova ordem ­o reino da virtude -- só existe evidentemente no livro,mas é ela que triunfa após o desenlace.

Não é entretanto certo que se deva encontrar emtodas as narrativas uma infração semelhante. Certos ro-

253

• 393 a .• 11fada. I. 12-16., tradução francesa de Mazon•• 393 e. tradução francesa de Chambry.

poeta narra «falando em seu próprio nome, sem pro­curar fazer crer que é um outro que fala»': assim,quando Homero no canto I da llíada nos diz a pro­pósito de Crisés: «ele tinha vindo às belas naves dosAqueus, para reaver sua filha, trazendo um imenso res­gate e segurando, sobre seu bastão de ouro, as fitasdo arqueiro ApoIo; e ele suplicava a todos os Aqueus,mas sobretudo aos dois filhos de Atreu, bons estrate­

gistas».· Ao contrário, a imitação consiste, a partir doverso seguinte, no fato de Homero fazer falar o próprioCrisés, ou, segundo Platão, de falar tingindo ser Crisés,e «esforçando-se para nos dar na medida do possívela ilusão de que não é Homero que fala, mas sim ovelho, sacerdote de Apoio». Eis o texto do discurso deCrisés: «Atridas e vós também, Aqueus de boas gre­vas, possam os deuses, habitantes do Olimpo, conceder­vos a destruição da cidade de Príamo, e depois vossoretorno sem ferimentos a vossos lares! Mas a mim, res­tituí minha filha! E para isso, ,aceitai o resgate quevedes aqui, por consideração ao filho de Zeus, ao ar­queiro ApoIo». Ora, ajunta Platão, Homero teria po­.dido igualmente prosseguir sua história sob uma formapuramente narrativa, narrando as palavras de Crisésem vez de reproduzi-Ias, o que, para a mesma passagem,teria dado, em estilo indireto e prosa: «O sacerdotetendo chegado pediu aos deuses que lhes concedessema tomada de Tróia e os preservassem de morrer em com­bate, e pediu aos Gregos que lhe devolvessem a filhaem troca de um resgate, e por respeito ao deus».' Estadivisão teórica, que opõe, no interior da dicção poética,os dois modos puros e heterogêneos da narrativa e daimitação, conduz e funda uma classificação própria dosgêneros, que compreende os dois modos puros (narra­tivo, representado pelo antigo ditirambo, mimético, re­presentado pelo teatro), mais um modo misto, 10u, maisprecisamente, alternado, que é o da epopéia, como seacaba de ver pelo exemplo da llíada.

257AnAlise Estrutural - 17

Valéry diante de um enunciado como «A marquesa saiuàs cinco horas». Sabe-se quanto, sob formas diversase muitas vezes contraditórias, a literatura moderna viveue ilustrou esse espanto fecundo, como se quis e se fez,em seu fundo mesmo, interrogação, abalamento, con­testação do propósito narrativo. Esta questão falsamenteingênua: por que a narrativa? - poderia pelo menosincitar-nos a pesquisar, ou mais simplesmente a reco­nhecer os limites de certo modo negativos da narrativa,a considerar os principais jogos de oposições por meiodos quais a narrativa se define, se constitui em facedas diversas formas da não-narrativa.

Die{!esis e mimesis<..'

256

Uma primeira oposição é aquela indicada por Aristóte­les em algumas frases rápidas da Poética. Para Aris­tÓteles, a narrativa (diegesis) é um dos dois modos daimitação poética (mimesis), o outro sendo a represen­tação direta dos acontecimentos por atores faiando eagindo diante do público. 1 Aqui instaura-se a distinçãoclássica entre poesia narrativa e poesia dramática. Estadistinção estava já esboçada por PIa tão no 39 livro daRepública, com duas diferenças, a saber que, por umlado, Sócrates nega ali à narrativa a qualidade (isto é,para ele, o defeito) da imitação, e que por outro ladoele toma em consideração aspectos de representação di­reta (diálogos) que podem comportar um poema nãodramático como os de Homem. Há portanto, nas ori­gens da tradição clássica, .duas partições aparentementecontraditórias, em que a narrativa opof--se-ia à imitação,aqui como sua antítese, e lá como um dos seus modos.

Para Platão, o domínio daquilo que ele chama lexis(ou maneira de dizer, por oposição a logos, que designao que é dito) divide-se teoricamente em imitação pro­priamente dita) (mimesis) e simples narrativa (diegesis).Por simples narrativa, Platão compreende tudo o que o

• 1448 a.

~I

enquanto imitadores, a começar pelos dramaturgos, esem exceção de Homero, julgado ainda demasiado mi­mético para um poeta narrativo, só admitindo na Cidadeum poeta ideal cuja dicção austera seria tão poucomimética quanto possível; enquanto que Aristóteles, si­metricamente, coloca a tragédia acima da epopéia, elouva em Homero tudo o que aproxima sua escriturada dicção dramática. Os dois sistemas são portanto idên­ticos, com a única reserva de uma inversão de valores:para Platão como para Aristóteles, a narrativa é ummodo enfraquecido, atenuado da representação literária- e percebe-se mal, à primeira vista, o que poderiafazê-Ios mudar de opinião.

E' necessário entretanto introduzir aqui uma obser­vação com a qual nem Platão nem Aristóteles parecem.ter-se preocupado, e que restituirá à narrativa todo oseu valor e toda a sua importância. A imitação direta,tal como funciona em cena, consiste em gestos e falas.Enquanto que constituída por gestos, ela pode eviden­temente representar ações, mas escapa aqui ao planolingüística, que é aquele onde se exerce a atividade es­pecífica do poeta. Enquanto que constituída por falas,discursos emitidos por personagens (é evidente que emuma obra narrativa a parte de imitação reduz-se a isso),ela não é rigorosamente falando representativa, pois quese limita a reproduzir tal e qual um discurso real oufictício. Pode-se dizer que os versos 12 a 16 da Ilíada,citados mais acima, nos dão uma representação verbaldos atos de Crisés, mas não se pode dizer a mesmacoisa dos cinco versos seguintes: eles não representamo discurso de Crisés: trata-se de um discurso realmentepronunciado, eles o repetem, literalmente, e caso se tratede um discurso fictício, eles o constituem, do mesmomodo literalmente; nos dois casos, o trabalho da repre­sentação é nulo, nos dois casos, os cinco versos deHomero se confundem rigorosamente com o discurso deCrisés: não acontece evidenremente a mesma coisa comos cinco versos narrativos que precedem, e que não seconfundem de nenhuma maneira com os atos de Crisés:

A classificação de Aristóteles é à primeira vistacompletamente diferente, pois que reduz toda a poesiaà imitação, distinguindo somente dois modos imitativos,o direto, que é o que Platão nomeia propriamente imi­tação, e o narrativo, que Aristóteles denomina, comoPIa tão, diegesis. Por outro lado, Aristóteles parece iden­tificar plenamente não só, como Pltão, o gênero dramá­tico ao modo imitativo, mas também, sem levar em con­sideração em princípio seu caráter misto, o gênero épicoao modo narrativo puro. Esta redução pode prender-seao fato de que Aristóteles define, mais estritamente doque Platão, o modo imitativo pelas condições cênicasda representação dramática. Ela pode justificar-se igual­mente pelo fato de que a obra épica, qualquer que sejaa parte material dos diálogos ou discursos em estilodireto, e mesmo se esta parte sobrepuja a da narrativa,permanece essencialmente narrativa visto que os diálo­gos são aí necessariamente enquadrados e conduzidospelas partes narrativas que constituem, no sentido pró­prio, o fundo, ou, caso se queira, a trama de seu dis­curso. De resto, Aristóteles reconhece em Homero estasuperioridade sobre os outros poetas épicos, que ele in­tervém pessoalmente o menos possível em seu poema,colocando na maior parte das vezes em cena persona­gens caracterizados, conforme o papel do poeta, que éimitar o mais possível.' Desse modo, ele parece bemreconhecer implicitamente o caráter imitativo dos díá­logos homéricos, e portanto o caráter misto da dicçãoépica, narrativa em seu fundo, mas dramática na suamaior extensão.

A diferença entre as classificações de PIa tão e Aris­tóteles reduz-se assim a uma simples variante de ter­mos: essas duas classificações concordam bem sobre oessencial, quer dizer, a oposição do dramático e do nar­rativo, o primeiro sendo considerado pelos doís filósofoscomo mais plenamente imitativo que o segundo: acordosobre o fato, de qualquer modo sublinhado pelo desa­cordo sobre os valores, pois PIa tão condena os poetas

• 1460 0,

25817* 259

«A palavra cão, diz William James, não morde». Casose chame imitação poética o fato de representar pormeios verbais uma realidade não verbal, e, excepcio­nalmente, verbal (como se chama imitação pictural ofato de representar por meios picturais uma realidadenão-pictural, e, excepcionalmente, pictural), é preciso ad­mitir que a imitação encontra-se nos cinco versos nar­rativos, e não se encontra de modo nenhum nos cincoversos dramáticos, que consistem simplesmente na in­terpolação, ao meio de um texto representando acon­tecimentos, de um outro texto diretamente tomado a es­ses acontecimentos: como se um pintor holandês doséculo XVII, numa antecipação de certos procedimentosmodernos, tivesse colocado no meio de uma naturezamorta não· a pintura de concha de ostra, mas uma con­cha de ostra verdadeira. Esta comparação simplista foiintroduzida aqui para indicar claramente o caráter pro­fundamente heterogêneo de um modo de expressão aoqual nos habituamos tanto, que não percebemos as maisabruptas modificações de registro. A narrativa «mista»segundo Platão, quer dizer, o modo de relação maiscorrente e mais universal, «imita» alternativamente, sobreo mesmo tom e, como diria Michaux, «sem mesmo vera diferença», uma matéria não verbal que ela deve efe­tivamente representar o melhor que puder, e uma ma­téria verbal que se representa por si mesma, e que secontenta o mais das vezes em citar. Caso se trate de

uma narrativa histórica rigorosamente fiel, o historiador­narrador deve ser muito sensível à mudança de regime,quando passa do esforço narrativo na relação dos atosrealizados à transcrição mecânica das falas pronuncia­das, mas quando se trata de. uma narrativa parcial oucompletamente fictícia, o trabalho .da ficção, que seexerce igualmente sobre conteúdos verbais e não verbais,tem sem dúvida por efeito mascarar a diferença quesepara OS dois .tipos de imitação, dos quais um está,se posso dizê-l o, em prise direta, enquanto que o outrofaz intervir um sistema de engrenagens mais complexo.Admitindo (o que é entretanto difícil) que imaginar

260

atos e imaginar falas procede .da mesma operação men­tal, «dizer» esses atos e dizer essas falas constituemduas operações verbais muito diferentes. Ou antes, sóa primeira constitui uma verdadeira operação, um atode dicção no sentido platônico, comportando uma sériede transposições e equivalências, e uma série de esco­lhas inevitáveis entre os elementos da história a seremretidos e os elementos a serem abandonados, entre osdiversos pontos de vista possíveis, etc., - todas as ope­rações evidentemente ausentes quando o poeta ou o his­toriador se limita a transcrever um discurso. Pode-secertamente (deve-se mesmo) contestar esta distinção en­tre o ato de representação mental e o ato de represen­tação verbal - entre o lagos e a lexis -, mas istosignifica contestar a própria teoria da imitação, queconcebe a ficção poética como um simulacro da reali~dade, tão transcendente ao discurso que ° institui quan­to o acontecimento histórico é exterior ao discurso dohistoriador ou a paisagem representada no quadro: teo­ria que não faz nenhuma diferença entre ficção e re­presentação, o objeto da ficção se reduzindo por ela aum real fingido e que espera ser representado. Ora,resulta que nesta perspectiva a noção mesmo de imita­ção sobre o plano da lexis é uma pura miragem, quedesaparece à medida que nos aproximamos dela: a lin­guagem só pode imitar perfeitamente a linguagem, oumais precisamente, o discurso só pode imitar perfeita­mente um discurso perfeitamente idêntico; em resumo,um discurso só pode imitar ele mesmo. Enquanto lexis,a imitação direta é, exatamente, uma tautologia.

Nós fomos assim conduzidos a esta conclusão ines­

perada, que o único modo empregado pela literaturaenquanto representação é o narrativo, equivalente verbalde acontecimentos não verbais e também (como mostrao exemplo forjado por Platão) de acontecimentos ver­bais, a não ser que ele se apague neste último casodiante de uma citação direta na qual se anula todafunção representativa, aproximadamente como um ora­dor judiciário pode interromper seu discurso para deixar

261

o tribunal examinar uma prova concreta. A representa­ção literária, a mimesis dos antigos, não é portanto anarrativa mais os «discursos»: é a narrativa, e somentea narrativa. Platão oporia mimesis a diegesis como umaimitação perfeita a uma imitação imperfeita; mas a imi­tação perfeita não é mais uma imitação, é a coisa mes­mo, e finalmente a única imitação é a imperfeita. Mi­mesis é diegesis.

Narração e descrição

Mas a representação literária assim definida, se ela seconfunde com a narrativa (no sentido lato), não sereduz aos elementos puramente narrativos (no sentidoestrito) da narrativa. E' preciso agora introduzir de di­reito, no seio mesmo da diegesis, uma distinção que nãoaparece nem em Platão nem em Aristóteles, e que de­senhará uma nova fronteira, interior ao domínio da re­~resentação. Toda narrativa comporta com efeito, emboraintimamente misturadas e em proporções muito variá­veis, de um lado representações de ações e de aconte­cimentos, que constituem a narração propriamente dita,e de outro lado representações de obJetos e persona­gens, que são o fato daquilo que se denomina hoje adescrição. A oposição entre narração e descrição, alémde acentuada pela tradição escolar, é um dos traçosmaiores de nossa consciência literária. Trata-se no en­tanto aqui de uma, distinção relativamente recente, daqual seria necessário estudar algum dia o nascimentoe o desenvolvimento na teoria e na prática da litera­tura. Não parece, à primeira vista, que tenha tido umaexistência muito ativa antes do século XIX, quando aintrodução de longas passagens descritas em um gênerotipicamente narrativo como o romance coloca em evi­dência os recursos e as exigências do procedimento.·

Essa persistente confusão, ou despreocupação emdistinguir, que indica muito claramente, em grego, o em-o"Encontramo-Ia entretanto em Boileau. a propósito da epopéia:·Sede vivo e apressado em vossas narrações;Sede rico e pomposo em vossas descr'ições·.

(Art. Poét. 111, 257-258).

262

prego do termo comum diegesis, deve-se talvez, sobre­tudo, ao status literário muito desigual dos dois tiposde representação. Em princípio, é evidentemente possí­vel conceber textos puramente descritivos, visando a re­presentar objetos em sua úníca existência espacial, forade qualquer acontecimento e mesmo de qualquer dimen­são temporal. E' mesmo mais fácil conceber uma des­crição pura de qualquer elemento narrativo do que oinverso, pois a mais sóbria designação dos elementose circunstâncias de um processo pode já passar porum esboço de descrição: uma frase como «A casa ébranca com um telhado de ardósia e janelas verdes»

não comporta nenhum traço de narração, enquanto queuma frase como «O homem aproximou-se .da mesa eapanhou uma faca» contém pelo menos, ao lado dos doisverbos de ação, três substantivos que, por menos qua­lificados que estejam, podem ser considerados como des­critivos somente pelo fato de designarem seres animadosou inànimados; mesmo um verbo pode ser mais ou me­nos descritivo, na precisão que ele dá ao espetáculo daação (basta para se convencer deste fato comparar «em­punhou a faca», por exemplo, a «apanhou a faca»),e por conseguinte nenhum verbo é completamente isentode ressonância descritiva. Pode-se portanto dizer quea descrição e mais indispensável do que a narração,uma vez que é mais fácil descrever sem narrar do quenarrar sem descrever (talvez porque os objetos podemexistir sem movimento, mas não o movimento sem obje­tos). Mas esta situação de princípio indica já, de fato,a natureza da relação que une as duas funções na imensamaioria dos textos literários: a descrição poderia serconcebida independentemente da narração, mas de fatonão se a encontra por assim dizer nunca em estadolivre; a narração, por sua vez, não pO,de existir semdescrição, mas esta dependência não a impede de re­presentar constantemente o primeiro papel. A descriçãoé muito naturalmente ancilla narrationis, escrava semprenecessária, mas sempre submissa, jamais emancipada.Existem gêneros narrativos, como a epopéia, o conto,

263

a novela, o romance, em que a descrição pode ocuparum lugar muito grande, e mesmo materialmente o maior,sem cessar de ser, como por vocação, um simples au­xiliar da narrativa. Não existem, ao contrário, gênerosdescritivos, e imagina-se mal, fora do domínio didático(ou de ficções semididáticas como as de Jules Verne),uma obra em que a narrativa se comportaria como au­xiliar da descrição.

O estudo das relações entre o narrativo e o des­critivo reduz-se portanto, no essencial, a considerar asfunções diegéticas da descrição, isto é, o papel repre­sentado pelas passagens ou os aspectos descritivos naeconomia geral da narrativa. Sem entar entrar aqui nodetalhe deste estudo, reter-se-á pelo menos, na tradi­ção literária «clássica» (de Homero ao fim do séculoXIX), duas funções relativamente distintas. A primeiraé, de certa forma, de ordem decorativa. Sabe-se que aretórica tradicional, classifica a descrição, do mesmomodo que as outras figuras de estilo, entre os orna­mentos do discurso: a descrição longa e detalhada apa­receria aqui como uma pausa e uma recreação na nar­rativa, de papel pUlamente estético, como o da esculturaem um e,difício clássico. O exemplo mais célebre dissoé talvez a descrição do escudo de Aquiles no cantoXVIII da I1íada. T E' sem dÚvida a este papel de cenárioque pensa Boileau quando recomenda a riqueza e apompa nesse gênero de trechos. A época barroca ficoumarcada por uma espécie de proliferação do excursodescritivo, muito sensível por exemplo no Moyse sauvéde Saint-Amant, mas que acabou por destruir o equi­líbrio do poema narrativo em seu declínio.

A segunda grande função da descrição, a mais cla­ramente manifestada hoje, porque se impôs, com Balzac,na tradição do gênero romanesco, é ,de ordem símulta­neamente explicativae simbólica: os retratos físicos, asdescrições de roupas e móveis tendem, em Balzac, eseus sucessores realistas, a revelar. e ao mesmo tempo

, Pelo menos como a tradição clássica a interpretou e Imitou. E' preciso notarcontudo que a descrição neste caso tende a animar·se e portanto a se nar­rativlzar.

264

a justificar a psicologia dos personagens, dos quais sãoao mesmo tempo signo, causa e efeito. A descrição torna­se aqui, o que não era na época clássica, um elementomaior da exposição: que se pense nas casas de Mlle.Cormon em La Vieille Fille ou de Balthasar Claes emLa Recherche de l'Absolu. Tudo isso é não obstante jábem conhecido para que continue insistin,do. Notemossomente que a evolução das formas narrativas, subs­tituindo a descrição ornamental pela descrição signifi­cativa, tendeu (pelo menos até o início do século XX)a reforçar a dominação do narrativo: a descrição perdeusem nenhuma dúvida em autonomia o que ganhou emimportância dramática. Quanto a certas formas do ro­mance contemporâneo que apareceram inicialmente co­mo tentativas de liberar o modo descritivo da tiraniada narrativa, não é certo que seja preciso verdadeira­mente interpretá-Ias assim: caso se considere sob esteponto de vista, a obra de Robbe·Grillet apareceria talvezsobretudo como um esforço para realizar uma narrativa(uma história) por meio quase exclusivo de descriçõesimperceptivelmente mO,dificadas de página em página, oque pode passar ao mesmo tempo por uma confirmaçãonotável de sua irredutível finalidade narrativa.

E' necessário observar enfim que todas as diferen­

ças que separam descrição e narração são diferençasde conteúdo, que não têm propriamente existência se­miológica: a narração liga-se a ações ou acontecimen­tos considerados como processos puros, e por isso mes­mo põe acento sobre o aspecto temporal e dramáticoda narrativa; a descrição ao contrário, uma vez que sedemora sobre objetos e seres considerados em sua si­multaneidade, e encara os processos eles mesmos comoespetáculos, parece suspender o curso do tempo e con­tribui para espalhar a narrativa no espaço. Estes doistipos de discurso podem portanto aparecer como expri­mindo duas atitudes antitéticas ,diante do mundo e daexistência, uma mais ativa, a outra 1l1ais contemplativae logo, segundo uma equivalência tradicional, mais «poé­tica». Mas do ponto de vista dos modos de represen-

265

"["ti

fação, narrar um acontecimento e descrever um objetosão duas operações semelhantes, que põem em jogo osmesmos recursos da linguagem. A diferença mais sig­nificativa seria talvez que a narração restitui, na suces.­

são temporal .do seu discurso, a sllcessão igualmentetemporal dos acontecimentos, enquanto que. a descriçãodeve modular no sucessivo a representação de objetossimultâneos e justapostos no espaço: a linguagem nar­rativa se distinguiria assim por uma espécie de coinci­

dência temporal com seu objeto, do qual a linguagemdescritiva seria ao contrário irremediavelmente privada.Mas esta oposição perde muito de sua força na litera­tura escrita, onde nada impede o leitor de voltar atrás

e de considerar o texto, em sua simultaneidade espa­cial, como um analogon do espetáculo que descreve: oscaligramas de Apollinaire ou as disposições gráficas doCoup de dés só fazem levar ao limite a exploração decertos recursos latentes da expressão escrita. Por outro

lado, nenhuma narração, mesmo a da reportagem ra­diofônica, não é rigorosamente sincrônica ao aconteci­

mento que relata, e a variedade das relações que podemguardar o tempo da histÓria e o da narrativa acaba dereduzir a especificidade da representação narrativa. Aris­tóteles observa já que uma das vantagens da narrativasobre a representação cênica é poder tratar diversasações simultâncas 8: mas é obrigada a tratá-Ias sucessi­vamente, e então sua situação, seus recursos e seuslimites são análogos aos da linguagem descritiva.

Parece portanto claro que, enquanto modo da re­

presentação literária, a descrição não se distingue bas­tante nitidamente da narração, m~m pela autonomia de

scus fins, nem pela originalidade .dc seus meios, paraque seja necessário romper a unidade narrativo-descri­tiva (a dominante narrativa) que Platão e Aristótelesdesignaram narrativa. Se a descrição marca uma fron­

teira da narrativa, é bcm uma fronteira interior, e, tudosomado, bast:mte indecisa: englobar-se-á portanto semprejuÍZO, na noção de narrativa, todas as formas da re-

8 1459 b.

266

presentação literária, e considerar-se-á a descrição nãocomo um dos seus modos (o que implicaria uma espe­cificidade de linguagem), porém, mais modestamente,como um de seus aspectos - mesmo sendo este, deum certo ponto de vista, o mais atraente.

Narrativa e Discurso

Ao ler-se a República e a Poética, parece que Platão·e Aristóteles reduziram apriorística e implicitamente ocampo da literatura ao domínio particular da literaturarepresentativa: poiesis = mimesis. Caso consideremostudo o que se encontra excluído do poético por estadecisão, veremos desenhar-se uma última fronteira danarrativa, que poderia ser a mais importante e a maissignificativa. Trata-se somente, nada mais nada menos,da poesia lírica, satírica e didática: seja, para só citaralguns dos nomes que um grego dos séculos V ou IVdevia conhecer, Píndaro, Alceu, Safo, Arquíloco, Hesíodo.

Assim, para Aristóteles, e apesar de que usa o mesmometro que Homero, Empédocles não é um poeta: «E'preciso chamar a um poeta e ao outro físico e nãopoeta».· Mas certamente Arquíloco, Safo, Píndaro nãopodem ser chamados físicos: o que possuem em comumtodos os excluídos da Poética é que sua obra não con­siste em imitação, por narrativa ou representação cênica,de uma ação, real ou fingida, exterior à pessoa e flt

palavra do poeta, mas simplesmente em um discursomantido por ele diretamente ~ em seu próprio nome.Píndaro canta os méritos do vencedor olímpico. Ar­

quíloco invectiva seus inimigos políticos, Hesíodo dáconselhos aos agricultores, Empédocles ou Parmênidesexpõem sua teoria do universo: não há neles nenhumarepresentação, nenhuma ficção, simplesmente uma falaque se investe diretamente no discurso .da obra. Pode­se dizer a mesma coisa da poesia elegíaca latina e de

tudo que chamamos hoje muito largamente poesia lírica,

• 1447 b.

267

e, passando à prosa, de tudo que é eloqüência, reflexãomoral e filosófica 1., exposição científica ou paracientí­fica, ensaio, correspondência, diário íntimo, etc. Todoesse domínio imenso de expressão direta, quaisquer quesejam seus modos, seus torneios, suas formas, escapaà reflexão da Poética enquanto negligencia a funçãorepresentativa da poesia. Temos aí uma nova divisão,de uma amplitude muito grande, pois que divide emduas partes de importância sensivelmente igual o con­junto do que chamamos hoje literatura.

Esta divisão corresponde aproximadamente à dis­tinção proposta recentemente por Emile Benveniste 11 en­tre narrativa (ou história) e discurso, com a diferençaque Benveniste engloba na categoria do discurso tudoque Aristóteles chamava imitação direta, e que consisteefetivamente, ao menos por sua parte verbal, em dis­curso emprestado pelo poeta ou narrador a um de seuspersonagens. Benveniste mostra que certas formas gra­maticais, como o pronome eu (e sua referência impli­cita tu), os «indicadores» pronominais (certos demons­trativos) ou adverbiais (como aqui, agora, hoje, ontem,amanhã, etc.), e, pelo menos em francês, certos temposdo verbo, como o presente, o passado composto ou ofuturo, se encontram reservados ao discurso, enquantoque a narrativa em sua forma estrita é marcada peloemprego exclusivo da terceira pessoa e de formas comoo aoristo (passado simples) e o mais-que-perfeito. Quais­quer que sejam os detalhes e as variações de um idiomaa outro, todas estas diferenças se reduzem claramentea uma oposição entre a objetividade da narrativa e asubjetividade do discurso; mas é preciso indiéar qucse trata no caso de uma objetividade e de uma sub­jetividade definida por critérios de ordem propriamcntelingüística: é «subjctivo» o discurso onde se marca, ex­plidtamente ou não, a presença de (ou a referênciaa) eu, mas cste eu não se define de nenhum modo

,. Como é a dicção que conta aqui, e não o que é dito, exclulr-se-ão destalista, como o fez Arlstóteles [1447 bJ. os diálogos socráticos de Platão, etodas as exposições em forma dramática, que se prendem à imitação em prosa.""les relations de temps dans le verbe françals", B.S.l. 1959; relmpressClnos Problemes de linguistique générale, pp. 237-250.

268

como a pessoa que mantém o discurso, do mesmo modoque o presente, que' é o tempo por excelência do mododiscursivo, não se define de nenhum modo como o mo­mento em que o discurso é enunciado, sem empregomarcando «a coincidência do acontecimento descrito coma instância do discurso que o descreve». U Inversamente,a objetividade da narrativa se define pela ausência detoda referência ao narrador: «Para dizer a verdade, ónarrador não existe mesmo mais. Os acontecimentos sãocolocados como se produzem à medida que aparecemno horizonte da história. Ninguém fala aqui; os acon­tecimentos parecem narrar-se a si mesmos»."

Temos aí, sem nenhuma' dúvida, uma descrição per­feita daquilo que é, em sua essência e em sua oposiçãoradical a toda forma de expressão' pessoal do locutor,a narrativa em estado puro, tal como se pode ideal­mente conceber e tal como se pode efetivamente loca­lizá-Ia em alguns exemplos privilegiados, como os queo próprio Benveniste toma emprestado ao historiadorGlotz e a Balzac. Reproduzimos aqui o extrato de Gam­bara, que analisaremos a seguir em detalhe:

«Após uma volta pela galeria, o rapaz olhou alter­nativamente o céu e seu relógio, fez um gesto de im­

paciência, entrou em uma tabacaria, onde ácendeu umcharuto, colocou-se diante de um' espelho, e lançou umolhar a seu costume, um pouco mais rico do que opermitem em França as leis do gosto. Reajustou seucolarinho e seu colete de veludo negro sobre o qualse cruzava diversas vezes uma dessas grossas corren­tes de ouro' fabricadas em Oênes; então, após haverlançado de um só movimento sobre o ombro esquerdoo casaco forrado de veludo e arrumando-o com elegân­

,da, retomou seu passeio sem se deixar .distrair pelasolhadelas burguesas que recebia. Quando as lojas co-meçaram a se iluminar e a noite lhe pareceu bastanteescura, ele se dirigiu para a praça do Palais-Royal comoum homem qu~ temia ser reconhecido, pois contornou

tO .De Ia subJecttvlté dans fé langage·, op. clt., p. 262.ta Ibid. p. 241. .

269

a praça até a fonte, para ganhar o abrigo dos fiacresà entrada da rua Froidmanteau ... »

Neste grau de pureza, a dicção própria da narra­tiva é de certa forma a transitividade absoluta do texto,a ausência perfeita (deixando de lado algumas infra­ções às quais voltaremos dentro em pouco), não so­mente do narrador, mas também da própria narração,{f'êia eliminação rigorosa de qualquer referência à ins­tância de discurso que o constitui. O texto está aí, sobnossos olhos, sem ser proferido por ninguém, e nenhu­ma (ou quase) das informações que contém exige, paraser compreendida ou apreciada, ·de ser relacionada comsua fonte; avaliada por sua distância ou sua relaçãoao locutor e ao ato de locução. Se compararmos um talenunciado com uma frase como esta: «Eu esperava paraescrever a você que tivesse morada fixa. Enfim estoudecidido: passarei o inverno aqui»", medir-se-á a queponto a autonomia da narrativa opõe-se à dependênciado discurso, cujas determinações essenciais (quem é eu,quem é você, que lugar designa aqui?) só podem serdecifradas em relação à situação na qual foi produzida.No discurso, alguém fala, e sua situação no ato mesmode falar é o foco das significações mais importantes;na narrativa, como ° diz Benveniste' com força, nin­guém fala, no sentido de que em nenhum momento temosde nos perguntar quem fala (onde e quando, etc.) parareceber integralmente a significação do texto.

Mas é preciso acrescentar logo que as essências danarrativa e do discurso assim definidas não se encon­tram quase nunca em estado puro em nenhum texto:há quase sempre uma certa proporção de narrativa nodiscurso, uma certa dose de discurso na narrativa. Paradizer a verdade, aqui se esgota a simetria, pois tudose passa como se os dois tipos de expressão se encon­trassem muito diferentemente afetados pela contamina­ção: a inserção de elementos narrativos no plano dodiscurso não basta para emancipar este último, poiseles permanecem com maior freqüência ligados à refe.:.

,. Senancour. Oberman. Carta V.

270

rência do locutor, que fica implicitamente presente noúltimo plano, e que pode intervir de novo a cada ins­tante sem que este retorno seja considerado como uma«intrusão». Assim, lemos nas Mémoires d' outre-tombeesta passagem aparentemente objetiva: «Quando o marestava alto e havia tempestade, as ondas, chicoteadasao pé do castela, do lado da grande praia, espirravamaté as grandes torres. A vinte pés de altura acima dabase de uma dessas torres, um parapeito de granitodominava, estreito e escorregadio, inclinado, pelo qualse atingia o revelim que defendia o fosso: tratava-sede pegar o instante entre duas vagas, atravessar o pe­rigoso sítio antes que a vaga se quebrasse e cobrissea torre ... »." Mas sabemos que o narrado r, cuja pes­soa foi momentaneamente eliminada durante esta pas­sagem, não foi muito longe, e não ficamos nem sur­presos nem embaraçados quando ele retoma a palavrapara acrescentar: «Nenhum de nós se recusava à aven­tura, mas eu vi crianças empalidecer antes detentá-Io».A narração não tinha verdadeiramente saído da ordemdo discurso na primeira pessoa, que a tinha absorvidosem esforço nem distorção, e sem cessar de ser elemesmo. Ao contrário, qualquer intervenção de elementosdiscursivos no interior de uma narrativa é sentida comouma infração ao rigor do partido narrativo. Aconteceisto com a breve reflexão inserida por Balzac no textotranscrito acima: «seu costume um pouco mais rico do

que o permitem em França as leis do bom gosto». Pode­se dizer o mesmo da expressão demonstrativa «umadessas correntes de ouro fabricadas em: Gênova», quecontém evidentemente o esboço de uma passagem no

presente (fabricadas corresponde não a que se fabrica­vam, mas sim a que se fabricam) e de umaalocuçãodireta ao leitor, implicitamente tomado como testemunha.Dir-se-ia ainda o mesmo do adjetivo «olhadelas bur­

guesas» e da locução adverbial «com elegância», queimplicam um julgamento cuja fonte é aqui visivelmenteo narrador; da expressão relativa «como um homem

1l livro primeiro. capo V.

271

Sabe-se com efeito que o romance nunca conseguiuresolver de maneira convincente e definitiva o problemacolocado por essas relações. Ora, como foi o caso daépoca clássica, em um Cervantes, um Scarron, um Fiel­ding, o autor-narrador, assumindo complacentemente seupróprio discurso, intervém na narrativa com uma indis­crição ironicamente marcada, interpelando seu leitor notom da conversação familiar; ora, ao contrário, comose vê ainda na mesma época, ele transfere todas asresponsabilidades do discurso a um personagem princi­pal que falará, isto é, narrará e comentará ao mesmotempo os acontecimentos, na primeira pessoa: é o casodos romances picarescos, de Lazarillo a Gil Blas, e deoutras obras ficticiamente autobiográficas como ManonLescaut ou a Vie de Marianne; ora ainda, não podendose resolver nem a falar em seu próprio nome nem aconfiar essa tarefa a um só personagem, ele reparte odiscurso entre os diversos atores, seja sob a forma decartas, como fez freqüentem ente o romance do séculoXVIII (La Nouvelle Héloise, Les Liaisons dangereuses),seja, à maneira mais ágil e sutil de um Joyce ou deum Faulkner, fazendo sucessivamente a narrativa serassumida pelo discurso interior de seus principais per­sonagens. O único momento em que o equilíbrio entrenarrativa e discurso parece ,ter sido assumido com umaboa consciência perfeita, sem escrúpulo ou ostentação,é evidentemente o século XIX, a idade clássica da nar­ração objetiva, de Balzac a Tolstoi; vê-se ao contrárioa que ponto a época moderna acentuou a consciênciada dificuldade, até tornar certos tipos de alocução comofisicamente impossíveis para os escritores mais lúcidose mais rigorosos.

Sabe-se bem, por exemplo, como o esforço paraconduzir a narrativa ao seu mais alto grau de purezalevou certos escritores americanos, como Hammett ouHemingway, a excluir dela a exposição dos motivospsicológicos, sempre difícil de apresentar sem recursoa considerações gerais de natureza discursiva, as qua­lificações implicando numa apreciação pessoal do nar-

fr

.#

'fl

que temia», que em latim seria expressa no subjuntivopela apreciação pessoal que comporta; e em fim daconjunção «pois contornou», que introduz uma explica­ção proposta pelo autor. E' evidente que a narrativanão integra esses enclaves discursivos, justamente cha­mados por Georges Blin «intrusões do autor», tão fa­cilmente quanto o discurso acolhe os enclaves, narrati­vos: a narrativa inserida no discurso se transforma emelemento do discurso, o discurso inserido na narrativapermanece discurso e forma uma espécie de quistomuito fácil de reconhecer e localizar. A pureza da nar­rativa, dir-se-ia, é mais fácil de preservar do que ado discurso.

A razão desta dissimetria é de resto muito simples,mas ,nos designa um caráter decisivo da narrativa: naverdade, o discurso não tem nenhuma pureza a pre­servar, pois é o modo «natural» da linguagem, o maisaberto e o mais universal, acolhendo por definição to­das as formas; a 1 narrativa, ao contrário, é um modoparticular, definido por um certo número de exclusõese de condições restritivas (recusa do presente, da pri­meira pessoa, etc.). O discurso pode «narrar» sem ces­sar de ser discurso, a narrativa não pode «discorrer»sem sair .de si mesma. Mas não pode também abster­se dele sem tombar na secura e na indigência: é por­que a narrativa não existe nunca por assim dizer nasua forma rigorosa. A menor observação geral, o menoradjetivo um pouco mais que descritivo, a mais discretacomparação, o mais modesto «talvez», a mais inofensivadas articulações lógicas introduzem em sua trama umtipo de fala que lhe é estranha, e como refratária. Se­ria', preciso, para estudar em detalhe esses acidentes àsve~es microscópicos, numerosas e minuciosas análisesde textos. Úm .dos objetivos deste estudo. poderia sero de repertoriar e classificar os meios pelos quais aliteratura narrativa (e particularmente romanesca) temtentado organizar de uma maneira aceitável, no interiorde sua própria lexis, as relações delicadas que aí entretêmas exigências da narrativa e as necessidades do discurso.

272 Análise Estrutural - 18 273

rádor, as ligações lógicas, ete., até reduzir a dicção ro­manesca a essa sucessão brusca de frases curtas, semarticulações, que Sartre reconhecia em 1943 em L'Etran­ger de Camus, e que se pôde reencontrar dez anos maistarde em Robbe-Grillet. O que se interpretou com fre­qüência como uma aplicação à literatura das teoriasbehavioristas era talvez somente o efeito de uma sensi­bilidade particularmente aguda a certas incompatibilida­des da linguagem. Todas as flutuações da escritura ro­manesca contemporânea ganhariam sem dúvida se ana­lisadas sob este ponto de vista, e particularmente atendência atual, talvez inversa da precedente, e comple­tamente manifestada em um SoIlers ou um Thibaudeau,

por exemplo, de fazer desaparecer a narrativa no dis­curso presente do escritor no ato de escrever, no queMichel Foucault chama «o discurso ligado ao ato deescrever, contemporâneo de seu desenvolvimento e en­cerrado nele». to Tudo se passa aqui como se a litera­tura tivesse esgotado ou ultrapassado os recursos de seumodo representativo, e quisesse refletir sobre o murmú­rio indefinido de seu próprio discurso. Talvez o romance, .após a poesia, vá sair definitivamente da idade da re­presentação. Talvez a narrativa, na singularidade ne­gativa que acabamos de lhe reconhecer, seja já para nós,como a arte para Hegel, uma coisa do passado, que épreciso considerar às pressas em sua retirada, antesque tenha desertado completamente nosso horizonte.

GÉRARD GENETTE

Faculdade de Letras e Ciências Humanas, Paris.

10 "L'arriere-fable", L'Arc, número especial sobre Jules Verne, p. 6.

274

Dossiê:

ESCOLHA BIBLIOGRÁFICA

A narrativa pertence, em princípio, a uma ciência já constituída,a história literária, que no essencial; entretanto, não foi aindatratada de um ponto de vista estrutural; por outro lado, abibliografia do estruturalismo é certamente abundante mas semrelação. direta com a narrativa. Disto resulta que uma bibliografiada análise estrutural da narrativa não pode ser senão muito re­duzida, limitada às obras e aos textos já bem conhecidos dePropp (Morphologie du conte), Dumézil (La Saga de Hadingus: dumythe au roman), Lévi-Strauss, Greimas (Sémantique StructuraDe Bremond ("Le message narrati!", in Communications n. 4), ouinfinita, alongada notadamente, perspectiva monstruosa, de tudoque se escreveu sobre o conto, a epopéia, o romance, o teatro, etc.Entre estes dois partidos, escolhemos, com arbitrariedade eviden­te mas ao que parece inevitável, apresentar um número modestode trabalhos, escolhidos durante nossas leituras; esses trabalhosencontram-se todos, às vezes de uma maneira implícita, em ra­zão de sua data, relacionados com o ponto de vista estrutura­lista. Não é, pois, uma bibliografia que propomos; é, caso sequeira, um primeiro dossiê de trabalho.

As obras que seguem foram escolhidas em comum pela equi­pe do Centre d'Etudes de Communications de Masse; foram apre­sentadas por Cl. Bremond, O. Burgelin, G. Genette e T. Todorov.São apresentadas aqui na ordem aproximada de seu aparecimen­to. R. B.

Lu d w i g (Otto), Studien (Gesammelte Schriften, VI), Leipzig,1891.~ Em seus estudos sobre o romance, Ludwig esboçou doisgrandes tipos de narrativa que chama "a narrativa propriamentedita" e "a narrativa cênica". Na narrativa propriamente dita, onarrador deve levar em conta sua própria representação na obra:ele narra a história segundo a ordem em que a conheceu e "será

275