analise lisbela e o prisioneiro

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1 UNIVERSIDADE PAULISTA – UNIP PROGRAMA DE MESTRADO EM COMUNICAÇÃO LISBELA E O PRISIONEIRO: DO TEXTO VERBAL À TRANSMUTAÇÃO AUDIOVISUAL IVAN DALIBERTO FRUGOLI São Paulo 2006

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UNIVERSIDADE PAULISTA – UNIP

PROGRAMA DE MESTRADO EM COMUNICAÇÃO

LISBELA E O PRISIONEIRO:

DO TEXTO VERBAL À TRANSMUTAÇÃO AUDIOVISUAL

IVAN DALIBERTO FRUGOLI

São Paulo

2006

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UNIVERSIDADE PAULISTA – UNIP

PROGRAMA DE MESTRADO EM COMUNICAÇÃO

LISBELA E O PRISIONEIRO:

DO TEXTO VERBAL À TRANSMUTAÇÃO AUDIOVISUAL

IVAN DALIBERTO FRUGOLI

Dissertação apresentada ao curso de Mestrado em Comunicação da Universidade Paulista – UNIP, para obtenção do título de mestre em Comunicação, sob orientação da Profa. Dra. Anna Maria Balogh.

São Paulo

2006

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Frugoli, Ivan Daliberto

Lisbela e o prisioneiro: do texto verbal à transmutação audiovisual. / Ivan Dalberto Frugoli. – São Paulo, 2006.

133 f. Dissertação ( Mestrado ) – Apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Paulista, São Paulo, 2006. Área de Concentração: Comunicação e Cultura Midiática.

“Orientação: Profª. Anna Maria Balogh” 1. Transmutação textual. 2. Intertextualidade. 3. Metalinguagem 4. Audiovisual. I. Título

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FOLHA DE APROVAÇÃO

______________________________________________

_______________________________________________

_______________________________________________

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DEDICATÓRIA

A Deus, aos meus pais, irmãos, esposa e corpo docente do programa de mestrado.

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AGRADECIMENTOS

Agradeço a todas as pessoas que entenderam meus erros e acertos ao

longo deste mestrado, em especial a minha orientadora Profa. Dra. Anna Maria

Balogh, pela dedicação, sabedoria e maestria com que conduziu e orientou este

trabalho. Obrigado pelo empenho, pela confiança e pela pessoa que demonstrou

ser durante meu percurso.

Ao Prof. Dr. Antonio Adami, pela disponibilidade, acesso, dedicação e

eficiência oferecidos em minha jornada acadêmica.

Ao Prof. Dr. João Massarolo, da UFSCar, que se mostrou extremamente

atencioso e colaborou enormemente com suas observações e direcionamentos

muito acertados para a resolução deste trabalho.

Agradeço aos meus pais Pedro Américo Frugoli e Anarlete Daliberto Frugoli

simplesmente por tudo (meus super-heróis); aos meus irmãos Alexandre e Marcio

Daliberto Frugoli por existirem em minha vida; à minha esposa Fabiana Stringher

por me acompanhar e me dar força nos momentos em que mais precisei; e aos

meus sobrinhos lindos.

Aos meus amigos Martin Eikmeier e Elvis Wanderley pelas conversas

inteligentes que ajudaram o desenvolvimento deste trabalho, e a todos os meus

amigos que contribuíram, cada um da sua forma, na construção do meu caráter.

Obrigado a Deus pela saúde e oportunidades de aprendizado que tem me

oferecido ao longo da vida.

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SUMÁRIO

RESUMO...............................................................................................................................8 INTRODUÇÃO......................................................................................................................10 1 - O FILME........................................................................................................................12 1.1 - O CINEMA EM BREVE RELATO ............................................................................12 1.2 - SOM: DO CINEMA MUDO PARA LISBELA E O PRISIONEIRO.................................18 1.3 - A MÚSICA NO FILME ............................................................................................26 1.4 - OS RECURSOS VISUAIS NA CONSTRUÇÃO DO SENTIDO ....................................39 1.5 - O CINEMA FALADO DE GUEL ARRAES ...............................................................59 2 - METALINGUAGEM .........................................................................................................62 2.1 - A FÔRMA DO FILME .............................................................................................62 2.2 - DECUPAGEM E METALINGUAGEM NA OBRA FÍLMICA ..........................................64 3 - TRANSMUTAÇÃO: DO VERBAL AO AUDIOVISUAL ...................................................75 3.1 - TRANSMUTAÇÃO TEXTUAL ..................................................................................75 3.2 - TRADUZIBILIDADE DAS OBRAS ............................................................................77 3.3 - OBRA DE SAÍDA X OBRA DE CHEGADA ...............................................................81 3.4 - TRANSMUTAÇÃO EM LISBELA E O PRISIONEIRO..................................................82 3.5 - ANÁLISE DAS ESTRUTURAS.................................................................................84 3.5.1 - O PERCURSO GERATIVO .............................................................................84 3.5.2 - NÍVEL FUNDAMENTAL...................................................................................86 3.5.3 - O NÍVEL NARRATIVO....................................................................................91 3.5.3.1 - MANIPULAÇÃO ....................................................................................94 3.5.3.2 - COMPETÊNCIA.......................................................................... 97 3.5.3.3 - PERFORMANCE................................................................................ 100 3.5.3.4 - SANÇÃO NA OBRA ........................................................................... 104 3.5.4 - O NÍVEL DISCURSIVO ............................................................................... 105 3.5.4.1 - TEMA................................................................................................ 106 3.5.4.2 - TEMPORALIZAÇÃO........................................................................... 108 3.5.4.3 - ESPACIALIZAÇÃO............................................................................. 110 3.5.4.4 - ACTORIALIZAÇÃO............................................................................. 112 4 - INTERTEXTUALIDADE E TRANSMUTAÇÃO .................................................................. 115 4.1 - LISBELA E O PRISIONEIRO: REVISITAÇÃO OU RAÍZES NORDESTINAS?........... 115 4.2 - GUEL ARRAES, INTERTEXTUALIDADE E PROD. CONTEMPORÂNEAS ............... 118 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................ 126 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS..................................................................................... 130

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RESUMO

A dissertação de mestrado que será apresentada nas páginas

subseqüentes deste trabalho visa colaborar com os estudos das adaptações e

transmutações do texto verbal para o audiovisual. Para isso, desenvolveremos

nosso trabalho enfocando os elementos constituintes da obra Lisbela e o

Prisioneiro em seu texto original, escrito por Osman Lins, e na obra fílmica dirigida

pelo cineasta Guel Arraes.

Serão abordados neste trabalho os elementos transformadores entre obra

de saída e obra de chegada, analisando-se respectivamente a forma como cada

suporte colabora ou interfere para a constituição da obra transmutada.

Direcionaremos consequentemente nossas análises para os elementos

discursivos e narrativos de ambos os formatos, identificando os possíveis pontos

conjuntivos e disjuntivos entre texto original e adaptado.

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ABSTRACT

The master's thesis that will be presented on the following pages aims at

collaborating with the studies of adaptation and transmutation of the verbal text into

the audiovisual format. Therefore, we'll develop our work by focusing on the

elements that constitute the original Lisbela e o Prisioneiro, by Osman Lins, and on

the feature film directed by movie - maker Guel Arraes.

This work will approach the transforming elements between original work

and adaptation, respectively analyzing the way each one interferes positively or

negatively with the construction of the adapted work. Consequently, we’ll direct our

analysis to the discursive and narrative elements in both formats, identifying any

possible conjunctive and disjunctive points between original work and adaptation.

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INTRODUÇÃO

Desde o início da humanidade, o homem sempre demonstrou interesse em

narrar histórias, reproduzir a vida através de desenhos, pinturas, imagens e

contos, histórias essas criadas por sua própria imaginação ou que lhe foram

transmitidas através de gerações e gerações com o ideal de manter as tradições

culturais, os mitos e as lendas de uma sociedade.

Não diferente fizeram os homens da Pré-História, na tentativa de

perpetuação dos fatos relacionados ao seu dia-a-dia. Conforme demonstrado nas

representações pictográficas deixadas no interior da Gruta de Chauvet, na França,

e datados de mais ou menos 32 mil anos. Os desenhos rupestres lá encontrados

retratam freqüentemente a presença de figuras em situações de movimento,

corridas, ataques individuais e coletivos, revelando a busca em retratar as

situações da vida pré-histórica com características que possibilitassem maior

veracidade dos fatos e, principalmente, que pudessem retratar o movimento das

situações ilustradas (Scientific American Brasil, dezembro de 2004).

A narrativa está presente em qualquer sociedade e em todos os períodos,

como sugere Barthes:

Inumeráveis são as narrativas do mundo. Há em primeiro lugar uma

variedade prodigiosa de gêneros distribuídos entre substâncias

diferentes como se toda matéria fosse boa para que o homem lhe

confiasse suas narrativas: a narrativa pode ser sustentada pela

linguagem articulada, oral ou escrita, pela imagem, fixa ou móvel,

pelo gesto ou pela mistura ordenada de todas estas substâncias;

está presente no mito, na lenda, na fábula, no conto, na novela, na

epopéia, na história, na tragédia, no drama, na comédia, na

pantomima, na pintura (recorde-se a Santa Ursula de Carpaccio), no

vitral, no cinema, nas histórias em quadrinhos, no fait divers, na

conversação. Além disso, sob estas formas quase infinitas, a

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narrativa está presente em todos os tempos, em todos os lugares,

em todas as sociedades; a narrativa começa com a própria história

da humanidade.1

Com isso, podemos observar que a necessidade de contar histórias está

presente ao longo da diacronia da espécie humana, na qual podemos relacionar

como principais formatos narrativos: o verbal, o teatro, o jornal, o livro, a revista, o

rádio, o cinema, a TV e , mais recentemente, a Internet.

Porém, cabe ressaltar, que à medida que as facilidades de acesso à

informação e difusão das mensagens aumentam em virtude das novas

tecnologias, proporcionalmente as formas de transmissão cultural também sofrem

alterações significativas, nas quais podemos citar como transformações desde

mudanças no conteúdo até mesmo o direcionamento das obras para públicos

diversos e que fogem do perfil a quem era destinada originalmente.

O interesse em desenvolver o trabalho que será apresentado nas páginas

subseqüentes desta dissertação, surgiu durante a apresentação de um seminário

para a disciplina Transformações da Linguagem Audiovisual, lecionada pela Profa.

Dra. Anna Maria Balogh na Universidade Paulista. A partir do contato com nosso

objeto de estudo - Lisbela e o Prisioneiro, iniciaram-se reflexões sobre as

maneiras e os procedimentos de transposição de conteúdos, capazes gerar e

transformar produções culturais pouco visitadas, em sucesso de bilheteria do

cinema nacional.

Sob essa ótica é que discorrerá nossa pesquisa, tendo como enfoque

principal, analisar como a narrativa literária transforma-se diante de sua adaptação

para os meios audiovisuais e, mais precisamente, a maneira como a adaptação da

obra literária e teatral de Osman Lins , é transposta para as telas de cinema com a

direção do cineasta Guel Arraes.

1 BARTHES, Roland. Introdução à Análise Estrutural da Narrativa, 1971, p. 18

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1 - O FILME

1.1 - O CINEMA EM BREVE RELATO

Muito já se escreveu sobre as origens, dificuldades e percursos perco rridos

pelo cinema até que ele se tornasse efetivo dentro das produções artísticas e

culturais do mundo contemporâneo. O estudo apresentado nesta dissertação de

mestrado não tem como foco de suas análises traçar, estudar ou se aprofundar

nas discussões que tangem ao evolucionismo das produções audiovisuais, porém

faz-se pertinente, neste primeiro momento, expormos de maneira breve e sucinta

um pouco da origem e discussão que circunda o nascimento de uma das formas

mais expressivas e democráticas de acesso à cultura das sociedades atuais.

Para muitos, e principalmente para pessoas que não têm conhecimento

técnico sobre a origem dos meios de comunicação de massa, o surgimento, e até

mesmo a invenção do cinema, ficou atribuída ao longo do tempo aos irmãos

Lumière no ano de 1895. Porém, cabe ressaltar que inúmeros são os conceitos de

surgimento do cinema. Não podemos esquecer que as sombras chinesas e as

lanternas mágicas prepararam, muito antes, o caminho para o cinema (ver sessão

de sombras chinesas em Sombras/Schaten, de Robison, e em A Marselha/La

Marseillaise, de Renoir). A descoberta fundamental dos Lumière consiste no

aperfeiçoamento do dispositivo de condução intermitente da película, que tornou

possível o cinematógrafo a partir das invenções dos pioneiros, particularmente

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Étienne Jules Marey (cronofotógrafo, 1888) e Thomas Edison (cinetoscópio,

1891).2

Também não podemos deixar de dizer que o surgimento do cinema está

relacionado a um processo de acumulação gradativa de realizações científicas em

diversos campos aparentemente desconexos, partindo dos estudos relacionados à

visão e percepção humana de ilusão de movimento contínuo. Podemos citar

desde um brinquedo construído em Londres por John Paris no início do século

XIX, chamado taumatrópio (que consistia em um pequeno disco montado com

hastes e figuras dos dois lados, que, quando girados por barbantes ou fios,

criavam a ilusão de movimento), até o cientista belga Joseph Plateau, que em sua

tese de doutorado estudou a visão humana e o retardo desta na captação e

processamento da imagem.3

Assim como esses estudos, outros também antecederam e contribuíram

para o surgimento e florescimento da tecnologia do cinema, e um dos grandes

passos na efetivação do processo foi sem dúvida nenhuma o surgimento da

fotografia por volta de 1839, através da invenção de Louis Daguerre na França.

Após a captação das imagens nos antigos daguerreótipos, a tecnologia da

fotografia continua a evoluir a largos passos, tornando-se cada vez mais

aprimorada e criando em torno de si todo um complexo industrial produzindo

suprimentos químicos, equipamentos e chapas fotográficas.

Processos de chapas úmidas, com produtos químicos sensíveis à

luz suspensos em uma delgada película de colódio no vidro, foram

largamente utilizados por muitos anos. Foi a chapa seca, contudo,

que permitiu a preparação antecipada de chapas fotográficas de

vidro. Isso levou à sua fabricação em bases comerciais, assim como

a distribuição e venda. A câmara miniaturizada e a câmara para

2 MARTIN, Marcel. A Linguagem Cinematográfica. 1985:13. 3 DeFleur, Melvin e Ball-Rokeach, Sandra. Teorias da Comunicação de Massa 1989, p.78.

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amadores foram popularizadas quando essa tecnologia se tornou

acessível.4

Da difusão das técnicas fotográficas e do domínio das novas tecnologias

surge o filme flexível; invenções e inovações vão surgindo e trazendo juntamente

uma variedade de experimentos capazes de favorecer a captação e projeção das

imagens. A fotografia alia-se ao cronofotógrafo de Jules Marey e ao cinetoscópio

de Thomas Edison, que, unidos à projeção intermitente originada pelos irmãos

Lumière, definem os primórdios do que viria a ser chamado posteriormente de

sétima arte.

O cinema surge como um elemento estranho, rodeado de dúvidas quanto a

sua potencialidade midiática, trazendo junto com ele nada mais nada menos que

um discurso inicial de ser uma invenção sem futuro, pois em suas primeiras

aparições são relatadas apenas demonstrações de pequenas películas retratando

situações da vida cotidiana em breves cenas, como trens chegando à estação,

operários saindo da fábrica, pedestres e ciclistas nas ruas, crianças brincando na

neve e no mar. O movimento e o tempo real eram os espetáculos; e os seres

humanos em suas vidas cotidianas, sua essência. Do ponto de vista técnico, as

primeiras projeções realizadas nos cinematógrafos europeus poderiam ser

definidas somente como registros de imagens, visto que representavam

praticamente fatos documentais e representacionais de alguns acontecimentos,

sem possuir nenhum tipo de apelo ou linguagem espec ífica.

Investimentos foram surgindo e, junto a eles, empresários visionários

também não podiam deixar de explorar esse filão de mercado. Melhorias no

desenvolvimento de equipamentos foram realizadas, patentes foram adquiridas e

todo um movimento foi gerado em torno dessa nova tecnologia.

4 DeFleur, Melvin e Ball-Rokeach, Sandra. Teorias da Comunicação de Massa. Op. Cit. p.89.

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Inauguram-se as primeiras salas exibidoras na Europa, com preços

acessíveis; o público se posicionava muitas vezes de pé para assistir a curtos

filmes, breves, mas capazes de criar intensa afinidade com seus receptores. A

repercussão e a aceitação pública das imagens em movimento se intensificam,

despertando e exigindo atenção especial na evolução das produções fílmicas do

início do século XX.

Portanto, cabe ressaltar nesse momento que toda essa evolução e

aceitação do cinema referem-se inicialmente ao filme-imagem, pois, devido às

limitações técnicas e até mesmo à resistência de cineastas da época, ainda não

havia surgido o cinema sonoro ou falado. O cinema acaba introduzindo o áudio um

pouco por acaso em 1926, segundo abordagem de Marcel Martin (1990:108).

Segundo o autor, a sonorização do cinema teria ocorrido no momento em que

uma produtora americana, a Warner, encontrando-se à beira da falência, tentou

como solução desesperada essa saída, diante da qual as outras empresas

recuavam por temerem um fracasso comercial.

O público logo acolheu com entusiasmo a novidade, apesar de muitas das

maiores personalidades do cinema (críticos e diretores) manifestarem ceticismo ou

hostilidade. “Os talkies?”, declarou Chaplin, “podem dizer que eu os detesto! Eles

vão acabar com a arte mais antiga do mundo, a arte da pantomima. Aniquilam a

grande beleza do silêncio”5.

Outros comentários de grandes cineastas da época também foram feitos

sobre a inovação e implantação dos recursos sonoros no cinema. Eisenstein,

Pudovkin e Alexandrov manifestaram suas expectativas em torno do assunto, no

famoso manifesto de 1928.

Os três cineastas soviéticos começaram por manifestar um temor

que foi o de todas as boas cabeças da época: “O filme sonoro”,

5 Apud. MARCEL, Martin. Op. Cit. p. 108.

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escrevem, “é uma faca de dois gumes, e é provável que seja

utilizado conforme a lei do menor esforço, isto é, simplesmente para

satisfazer a curiosidade do público”. Mas o maior perigo é talvez a

invasão do cinema “pelos dramas da literatura e outras tentativas de

teatralização na tela. Utilizado desse modo, o som destruirá a arte

da montagem, elemento fundamental do cinema. Pois toda adição

de som a frações de montagem intensificará ainda mais essas

frações, e isso inegavelmente em detrimento da montagem, que

produz seu efeito não por fragmentos, mas, acima de tudo, juntando

ponta com ponta esses fragmentos. (MARTIN, 1990:109).

Verificamos, com isso, que as evoluções tecnológicas dentro da área da

comunicação e seus procedimentos inovadores sempre foram recebidos com

certo receio entre os profissionais e críticos da área. Com o cinema não poderia

ter sido diferente, porém a aceitação do público é que ditará a permanência e

efetivação desses processos inovadores, pois não podemos esquecer que, acima

de tudo, os fatores comerciais prevalecem dentro das produções midiáticas com

finalidades de produção e consumo massificado.

A manifestação de Eisenstein, Pudovkin e Alexandrov, conforme

mencionamos anteriormente, retrata essa preocupação com o futuro das

produções cinematográficas diante desse novo paradigma, e demonstra de

maneira bem contundente a antecipação desses cineastas, no que se tornou uma

das formas mais praticadas no cinema, ou seja, as adaptações narrativas. No

manifesto de 1928, os cineastas expressam suas preocupações com a invasão do

cinema “pelos dramas da literatura e outras tentativas de teatralização na tela”,

exatamente como observamos hoje em dia, com grande parte das produções

audiovisuais revisitando os conteúdos literários, o que justamente acabou se

tornando o foco de nosso trabalho.

Ao longo da evolução das produções cinematográficas, a qual resultará

como geratriz de boa parte das produções audiovisuais contemporâneas,

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verificamos que inúmeros são os processos de inovação desse meio de

comunicação, que incluem desde estudos da fisiologia do olho humano e

retardamento da captação de imagens gerando ilusão de movimentos contínuos,

passando pelos procedimentos de captura de imagens (desde os daguerreótipos

até os processos mais simplificados de fotografia), desenvolvimento das

tecnologias de projeção em tela, inclusão de sonorização às películas (sem contar

com os cinemas orquestrados), chegando à fase das adaptações narrativas.

Cada elemento constituinte do filme possui variadas formas e

procedimentos de realização. Ao mencionarmos o som, embora sua origem tenha

sido questionada por grande parte dos críticos da época, devemos identificá-lo

como um elemento fundamental nas produções cinematográficas

contemporâneas, e com funções muito bem definidas dentro do discurso fílmico. A

imagem, iluminação e montagem dispensam quaisquer comentários, pois sem

eles não existiria qualquer tipo de produção nessa área.

Sendo assim, e diante da complexidade de elementos de análise de uma

obra fílmica e das manipulações necessárias para efetivação do conteúdo

audiovisual, faz-se pertinente a abordagem de Vanoye em seu livro Análise

Fílmica, conforme segue abaixo:

A análise vem relativizar as imagens “espontaneístas” demais da

criação e da recepção cinematográfica. Estamos cercados por um

dilúvio de imagens. Seu número é tão grande, estão presentes tão

“naturalmente”, são tão fáceis de consumir que nos esquecemos

que são o produto de múltiplas manipulações, complexas, às vezes

muito elaboradas. O desafio da análise talvez seja reforçar o

deslumbramento do espectador, quando merece ficar maravilhado,

mas tornando-o um deslumbramento participante.

Analisar um filme ou um fragmento é despedaçar, descosturar,

desunir, extrair, separar, destacar e denominar materiais que não

são percebidos isoladamente “a olho nu”, pois se é tomado pela

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totalidade. Parte-se, portanto, do texto fílmico para “desconstruí-lo” e

obter um conjunto de elementos distintos do próprio filme.6

Com isso, nossas análises partirão para os componentes geradores do

plano de expressão na obra fílmica de Lisbela e o Prisioneiro , que, seguindo as

preocupações de Eisenstein, Pudovkin e Alexandrov, representam exatamente

uma adaptação narrativa da literatura para o cinema, na qual daremos ênfase,

nesse primeiro momento, às análises enfocadas nos elementos sonoros,

imagéticos e verbais que constituem a obra.

1.2 - SOM: DO CINEMA MUDO PARA LISBELA E O PRISIONEIRO

Nas páginas anteriores, traçamos de maneira sucinta o que pode ser

chamado de um breve esboço sobre a origem e evolução do cinema, com a

finalidade de exemplificar as diversas fases e transformações que antecederam o

complexo exercício das produções cinematográficas.

A incorporação do som nas produções fílmicas, tão discutida e questionada

pelos críticos e cineastas mais conservadores da época, passa a receber atenção

especial a partir do momento em que é encarada como uma inovação, capaz de

suprir uma série de dificuldades encontradas nos materiais constituídos

anteriormente “só” por imagens. Citamos as preocupações de Eisenstein,

Pudovkin e Alexandrov, quando questionados sobre a introdução do áudio no

cinema; porém, ao mesmo tempo em que os cineastas viam com certo receio essa

nova realidade, eles demonstravam interesse e entusiasmo no potencial sonoro

introduzido às produções cinematográficas, conforme relata Marcel Martin:

Ao mesmo tempo, porém, os três autores viam com perspicácia a

riqueza da contribuição sonora e sua necessidade ante as

6 VANOYE, Francis. Ensaio sobre a análise fílmica. Editora Papyrus, 2002, p. 15.

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insuficiências do cinema mudo. “O som, tratado enquanto elemento

novo da montagem (e como elemento independente da imagem

visual), introduzirá inevitavelmente um recurso novo e

extremamente afetivo para exprimir e resolver os problemas

complexos que nos desafiam até o presente e que não temos

podido resolver em virtude da impossibilidade de achar uma solução

contando apenas com elementos visuais.7

A sonorização passa a não ser observada somente como uma peça

intrigante dentro das produções cinematográficas, mas começa a adquirir

aceitação e identidade própria diante da enorme gama de possibilidades que ela

pode gerar, desde que bem empregada e articulada dentro dos discursos

narrativos . A evolução técnica e tecnológica, proporcionando meios viáveis de

produzir filmes capazes de gerar som e imagem, inicia uma nova fase na

linguagem do cinema.

Segundo Martin, Eisenstein certa vez teria dito que “O som não foi

introduzido no cinema mudo, mas saiu dele. Surgiu da necessidade que levou

nosso cinema mudo a ultrapassar os limites da pura expressão plástica”.8

As dificuldades relacionadas nas tentativas de expressar o som através da

imagem podiam ser observadas na maior parte dos filmes que antecederam a

introdução sonora ao cinema. Em muitas cenas, podemos verificar as tentativas

de representar o áudio através da imagem: a introdução do primeiro plano

enfocando o indivíduo gesticulando ou prestando atenção em alguma sonoridade

ausente à cena (que por esse motivo tinha de ser transmitida e subentendida

através da expressão corporal ou de superposição de imagens), era amplamente

explorado.

7 MARTIN, Marcel. A Linguagem Cinematográfica. 1990, p.109 8 Id. Ibiden, p. 111.

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Outra característica do cinema mudo, em suas investidas na superação da

ausência sonora, retratava um trabalho árduo nas técnicas de montagem da

época, conforme relata Martin:

A montagem assumia então um papel considerável na linguagem

fílmica, pois era-se obrigado a intercalar constantemente no enredo

planos explicativos destinados a fornecer ao espectador o motivo

daquilo que seus olhos viam. Se, por exemplo, o diretor desejava

mostrar os operários deixando a fábrica no fim da jornada de

trabalho, via-se na obrigação de intercalar na cena um primeiro

plano da sirene da fábrica soltando vapor. Ou então, se quisesse

fazer “ouvir” um pianista tocando Debussy, devia introduzir o plano

de uma folhagem ou de águas tranqüilas. A imagem tinha então que

assumir sozinha uma pesada tarefa explicativa além de sua

significação própria: intercalação de planos ou montagem rápida

destinadas a sugerir uma impressão sonora.9

Essas características, dependendo do caso, retratavam quase uma origem

videoclíptica nas produções cinematográficas do cinema mudo, devido ao fato de

as imagens terem de incorporar funções muito além do que o mero significado de

imagem, expondo diversos fragmentos de cenas de maneira a suprir os sentidos

sonoros.

As tão complicadas cenas do cinema mudo, nas quais o narrador devia

exprimir seus sentimentos internos e narrar acontecimentos do ponto de vista

subjetivo, deixam de ser realizadas seguindo somente os princípios de

enquadramento em primeiríssimos planos, câmeras em primeira pessoa, ou

imagens aceleradas/lentas (esses recursos eram utilizados na intenção de

introduzir o público na memória do personagem), mas passam a ser

representadas por locuções em off, que acabam se consolidando nesse papel de

maneira muito eficaz.

9 Op. Cit. p. 113

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Já nos filmes de ficção científica, não podemos deixar de mencionar os

exageros sonoros realizados por esse gênero cinematográfico, nos quais a

utilização do som contraria todo e qualquer fundamento da Física e dos estudos

das ondas mecânicas longitudinais, e o abuso do som chega a tomar proporções

de sermos capazes de ouvir explosões, tiros e roncos de jatos propulsores em

ambientes onde é impossível reproduzir o som devido à ausência de um meio

material de propagação.

Porém, tentemos imaginar um filme como Star Wars , em que guerras

espaciais são travadas em pleno espaço sideral, sob uma alucinante troca de tiros

(se é assim que podemos chamar), e, em vez de escutarmos explosões e

estampidos provenientes das imagens que estão sendo exibidas, fôssemos

contemplados por um silêncio absoluto. Qual seria a repercussão disso?

Não cabe a nós tentarmos julgar ou avaliar as respostas da pergunta acima,

porém torna-se pertinente retratar de maneira clara e objetiva a importância do

som como característica e elemento fundamental da percepção humana, e que,

por esse motivo, acaba inevitavelmente sendo incorporado nas produções

audiovisuais. Barthes faz uma leitura sobre essas características da percepção do

som, conforme citaremos:

Proporemos três tipos de escuta.

Segundo um primeiro tipo de escuta, o ser vivo dirige sua audição (o

exercício de sua faculdade fisiológica de escutar) para índices;

neste nível, nada distingue o animal do homem: o lobo escuta um

ruído (eventual) de caça, a lebre um ruído (possível) de agressor, a

criança, o namorado escutam os passos que se aproximam e que

poderão ser os passos da mãe ou do ser amado. Esta primeira

escuta é, se assim podemos dizer, um alerta. A segunda é uma

decifração; o que se tenta captar pelo ouvido são signos; aqui, sem

dúvida, é a vez do homem; escuto da mesma maneira que leio, isto

é, mediante certos códigos. A terceira escuta, enfim, cuja

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abordagem é moderna (o que não quer dizer que seja superior às

duas outras), não visa – ou não espera – signos determinados,

classificados: não aquilo que é dito, ou emitido, mas aquele que

fala, aquele que emite: deve ser desenvolvida em um espaço

intersubjetivo, em que “escuto” na verdade quer dizer “escuta-me”; a

escuta apodera-se, pois, para transformá-la e lançá-la sem cessar

no jogo da transferência, de uma “significância” geral, que já não é

concebível sem a intervenção do inconsciente.10

Dessa maneira, podemos observar que Barthes define a de três diferentes

maneiras, estando todas elas totalmente relacionadas às características

fisiológicas e psicológicas do indivíduo.

Martin identifica que o som dentro das produções audiovisuais acaba

adquirindo muito mais que um simples recurso técnico, mas apodera-se de

características: descritivas no decorrer das cenas; contrastes em relação às

imagens; e, até mesmo, a propriedade de tornar os ambientes mais realistas ou

menos realistas dentro de cada produção.

Muitos autores já dedicaram suas pesquisas sob a óptica do som e da

introdução do áudio nas produções cinematográficas, dentre os quais podemos

destacar Marcel Martin em seu livro A Linguagem Cinematográfica (utilizado

amplamente em nossos estudos), que dedicou um capítulo exclusivamente ao

som, intitulado de “Os Fenômenos Sonoros”. Também podemos destacar, dentro

dessa linha de pesquisa, Cláudia Gorbman com seu livro Unheard Melodies,

Roger Manvel e John Huntley – The Technique of Film Music e Michel Chion – La

Musique au Cinema.

Em nossas abordagens, enfocando os elementos sonoros de Lisbela e o

Prisioneiro, utilizaremos como alicerce os conceitos específicos de som, conforme

10 BARTHES, Roland. O Óbvio e o Obtuso. 1990, p. 217

Page 23: analise lisbela e o prisioneiro

23

sugeridos pelos autores mencionados, por julgarmos contribuições significativas e

pertinentes dentro de nossa linha de análise.

Em seu livro A Linguagem Cinematográfica, Marcel Martin divide as funções

dos fenômenos sonoros inicialmente como elementos de realismo e continuidade

sonora, expandindo posteriormente suas análises para os argumentos e

características específicas do ruído e da música. Em sua primeira abordagem, o

autor define a utilização do som da seguinte forma:

- Realismo: o som com propriedades de tornar o universo fílmico

mais próximo da realidade; é a compenetração de todos os registros

perceptivos que nos impõe a presença indizível do mundo real;

- Continuidade: enquanto a imagem de um filme é uma seqüência

de fragmentos, a trilha sonora restabelece de certo modo a

continuidade. 11

Nessa primeira abordagem, o autor dedica-se a esmiuçar as características

do áudio na técnica cinematográfica, de maneira que podemos considerá-las

totalmente pertinentes em nosso estudo. Antes de pensarmos em nosso objeto

Lisbela e o Prisioneiro, devemos destacar que os conceitos de som definidos pelo

autor são pertinentes a todo tipo de produção audiovisual. Embora o som também

possa ser utilizado com características simbólicas e metafóricas na constituição de

cenas, podemos dizer que uma das principais características do áudio, com

certeza, é a de proporcionar realismo e continuidade no decorrer das obras.

Em Lisbela e o Prisioneiro, a utilização do som como elemento realístico é

amplamente explorado, indo desde os ruídos capazes de criar a atmosfera dos

ambientes retratados, até mesmo à sonorização com características exclusivas de

continuidade, gerando ganchos necessários para ligação entre uma cena e outra.

11 Op. Cit., p. 114.

Page 24: analise lisbela e o prisioneiro

24

Referente aos ruídos, Martin dedica atenção especial a esses elementos e

às formas de cooperação dos ruídos na construção dos sentidos, conforme segue

o trecho abaixo:

- Ruídos naturais: todos os fenômenos sonoros que percebemos na

natureza;

- Ruídos humanos: nos quais é preciso diferenciar ruídos mecânicos

(carros, máquinas, etc.) e palavras ruído (falas de personagens

secundários, figurantes, etc. sem que estas interfiram na cena);

- Músicas ruído: as dos filmes musicais, por exemplo, ou que é

produzida por uma estação de rádio (não passa de um fundo

sonoro, mas pode adquirir um valor simbólico).12

Os ruídos, conforme mencionado, podem surgir dentro da composição da

obra, fornecendo elementos capazes de projetar o espectador em um “mundo

mais próximo do real”.

No início do filme Lisbela e o Prisioneiro, a primeira cena ocorre no interior

de uma sala de cinema sediada em Vitória de Santo Antão – PE, na qual a

personagem Lisbela é apresentada ao espectador da obra. Toda a seqüência é

composta por ruídos humanos, através das falas e barulhos feitos pelos figurantes

(pessoas que já se encontram dentro da sala de cinema e aguardam sentadas

pelo início do filme). Todo ruído gerado na cena possui como característica única

a ambientação do indivíduo real na situação por que ele acabara de passar, ou

seja, a mesma sensação que o espectador acabara de experimentar ao chegar ao

cinema para assistir Lisbela e o Prisioneiro, procedimento esse que o introduz e o

projeta para dentro do universo fílmico através de elementos de verossimilhança.

12 Op. Cit., p. 116.

Page 25: analise lisbela e o prisioneiro

25

Segue trecho do roteiro da obra para simplificar a análise:

Cena 01 - Sala de cinema

(Uma sala de cinema de interior, poucos espectadores. Lisbela e Douglas entram)

DOUGLAS

Vamos sentar aqui?

LISBELA

Vamos puxar mais pra frente. A gente tem que sentar numa distância certa da

tela. Muito longe termina distraindo, perto demais a gente tem que ficar bulindo os

olhos pra ver a cena.

DOUGLAS

Aqui tá beleza?

LISBELA

Um tiquinho mais para o meio. Aqui.

Percebemos, com isso, que a introdução do ruído é o elemento essencial

para dar vida à cena, ou seja, o elemento é incorporado ao filme com a

característica exclusivamente realística. Caso esse recurso não tivesse sido

usado, todo o teor de semelhança com o momento que o espectador acabara de

vivenciar ao chegar à sala de projeção seria totalmente perdido e frigido com

relação ao estímulo pretendido.

A definição de música ruído de Marcel Martin também pode ser observada

no filme, em uma cena em que Lisbela sai do cinema com seu namorado Douglas:

eles entram no carro e ligam o rádio. Nesse momento, Douglas olha -se no espelho

retrovisor e ajeita os cabelos como se fosse um galã de novela; o rádio passa a

executar a música Oh! Carol, de Andrew Sixty. Douglas engata a marcha e parte

em velocidade. Lisbela vê -se entrelaçada entre o cinema e a vida, entre a vida real

e o mundo ficcional; a moça a acaba se sentindo uma verdadeira atriz do cinema

norte-americano.

Page 26: analise lisbela e o prisioneiro

26

Na cena descrita, a utilização da música ruído age com função simbólica e

narrativa, pois o som acaba se tornando o principal elemento constituinte da

seqüência, e conseguimos identificar que, sem esse ruído, o sentido pretendido

pelo diretor em projetar a personagem para um universo fictício não teria jamais

sido atingido.

Ao ampliarmos as características do ruído, podemos acrescentar a eles

outras modalidades de uso desse recurso, ou seja, da mesma forma que o ruído é

utilizado com grande freqüência como elemento realístico, a sua aplicação com

finalidade de proporcionar o não realismo também pode ser explorada.

Nas produções nacionais, temos como exemplo clássico de ruído não

realístico as cenas em que o caminhão de Mazzaropi, no filme Sai da Frente,

relincha, demonstrando e adjetivando o calhambeque como burro de carga; ou até

mesmo sons capazes de lhe atribuir força bruta, como as cenas em que os ruídos

do carro são tomados pelo som de uma poderosa locomotiva. Nessas formas de

utilização, o som deixa de ser simplesmente áudio e passa a trabalhar como

elemento de metáfora, adquirindo investimentos semânticos capazes de torná-lo

simbolicamente pertinente dentro da composição da cena.

Essa última forma de apresentação do ruído, ou seja, de ruído não

realístico conforme apresentado, não se encontra aplicada à obra cinematográfica

de Lisbela e o Prisioneiro, na qual as utilizações do som e dos ruídos possuem

como características exclusivas maior realismo, continuidade e ritmo do filme.

1.3 - A MÚSICA NO FILME

No que tange às relações da música na constituição da obra fílmica, Marcel

Martin define as características da música em três grandes grupos, sendo eles: o

papel rítmico, o papel dramático e o papel lírico. Já a autora Cláudia Gorbman, em

Page 27: analise lisbela e o prisioneiro

27

seu livro Unheard Melodies, define essas características seguindo os mesmos

padrões de Martin, mas acrescentando outros pontos de vista na forma de

estruturar suas idéias. Sendo assim, daremos seqüência em nossas análises

utili zando como referência os estudos desenvolvidos por Gorbman e que serão

relacionados a seguir.

Em seu livro Unheard Melodies, a autora empenha-se em estudar os

padrões clássicos das trilhas sonoras dos filmes hollywoodianos e nas evoluções

pelas quais passaram. Embora seus estudos sejam direcionados às produções

norte-americanas, seu modelo de análise acaba se expandindo e torna -se

pertinente dentro de nossas abordagens.

Segundo Gorbman, uma maneira de definir a utilização musical no cinema

pode ser representada seguindo os princípios:

- Invisibilidade: no qual o aparato técnico da música não diegética não deve ser

visível;

- Inaudibilidade: a música não é destinada a ser ouvida conscientemente. Ela

deve subordinar-se aos diálogos, às imagens, aos veículos primários da narrativa;

- Significador de emoção: a trilha musical pode estabelecer climas e enfatizar

emoções particulares sugeridas na narrativa, mas em primeiro lugar e acima de

tudo ela é um significador de emoção por si só;

- Sugestão narrativa: referencial/narrativa – a música proporciona sugestões

narrativas e referenciais, indicando pontos de vista, provendo demarcações

formais e estabelecendo ambientação e caráter; conotativa – a música interpreta e

ilustra eventos narrativos;

- Continuidade: a música provê continuidade rítmica e formal entre planos, em

transições, entre cenas, preenchendo lacunas.13

13 GORBMAN, Claudia. Unheard Melodies. 1987, p. 73. Tradução de Cíntia Onofre.

Page 28: analise lisbela e o prisioneiro

28

Observamos com isso que as definições de Martin acabam sendo

incorporadas nesse modelo, pois a função rítmica, dramática e lírica, conforme

sugere o autor, são sucessivamente abordadas por Gorbman dentro das funções

de continuidade, sugestão narrativa e significação de emoção. A partir dessa

definição de utilização da música nos conteúdos fílmicos, partiremos para nossas

análises, para verificar a pertinência desses conceitos em relação à obra

cinematográfica de Lisbela e o Prisioneiro.

Várias são as aplicabilidades da música nas obras cinematográficas,

porém, para não desgastarmos nossas análises e não tornarmos esse estudo

redundante, abordaremos as classificações conforme sugeridas por Gorbman nas

cenas em que os conceitos trabalhados sejam mais explícitos, facilitando dessa

maneira a abordagem e a exemplificação de nossos estudos.

O conceito de invisibilidade conforme sugerido por Gorbman, no qual o

aparato técnico da música não diegética não deve ser visível, é observado em

praticamente todas as obras fílmicas, não sendo aplicado em raras exceções. Não

só no filme Lisbela e o Prisioneiro, mas na grande maioria das produções

cinematográficas (com exceção aos musicais), a orquestração da música fora do

espaço diegético acaba sendo uma constante, podendo ser comparada com a não

visibilidade das câmeras dentro da captação das imagens.

A invisibilidade dos aparatos técnicos para incorporação da música em

Lisbela e o Prisioneiro é uma constante, conforme já mencionado anteriormente,

porém é pertinente que apresentemos uma cena na qual esse princípio seja bem

representado. Sendo assim, segue a decupagem da cena com suas respectivas

características.

Page 29: analise lisbela e o prisioneiro

29

Cena 1 – Sala de Cinema

Informações sobre a narrativa

Lisbela e Douglas chegam à sala de cinema e iniciam a procura por um bom lugar para assistir ao filme. Inicia-se a projeção do filme na tela e Lisbela começa a narrar o tipo de filme que eles verão.

Informações técnicas

Cenas internas. Ambientação: sala de cinema. Personagens: Lisbela, Douglas e figurantes. Seqüência composta por cinco planos: em travelling, o fundo da sala de cinema é percorrido pela câmera, até que chegam Lisbela e Douglas; nesse momento os dois personagens são enquadrados em plano médio. Mais um travelling é utilizado acompanhando os personagens andando entre as poltronas. Retomam-se em plano médio os dois personagens, e Lisbela começa a narrar a sensação de estar no cinema; nesse momento, Lisbela é enquadrada em primeiro plano.

Informações sobre a trilha musical

Inserção musical não diegética. A música surge em segundo plano, enquanto Lisbela é focalizada em primeiro plano , narrando a sensação de estar no cinema.

Nessa primeira cena, verificamos a utilização da música não diegética e

que corresponde ao conceito de invisibilidade, pois os aparatos técnicos para

execução da música não são visualizados em momento algum. Também podemos

definir nesse primeiro exemplo o princípio de continuidade, visto que, ao iniciar a

execução da música, ocorre um efeito de imagem fade out, que trará a cena

seguinte, na qual a personagem Lisbela narra as cenas que serão exibidas na tela

do cinema.

Embora o conceito de invisibilidade e de música não diegética possa

parecer um tanto quanto óbvio, pelo fato de praticamente todas as músicas

executadas no cinema se enquadrarem nessa definição, também pudemos

observar que a inserção da música diegética foi sutilmente utilizada em Lisbela e o

Prisioneiro, conforme analisaremos a seguir.

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30

Cena 36 – Rua

Informações sobre a narrativa

Frederico caminha pelas ruas da cidade. Leléu vem em sua direção. Num local mais alto da delegacia Citonho toca a corneta. De repente Frederico saca a arma: um boi brabo vem em sua direção. Citonho vê de longe o rebuliço. Corta para perto; o boi vai pegar Frederico, mas Leléu se coloca entre os dois, se agarra com o boi e o derruba no chão.14

Informações técnicas

Cenas externas. Ambientação: Rua de Vitória de Santo Antão. Personagens: Frederico, Leléu, Citonho e figurantes. Seqüência composta por vários planos exibidos em alta velocidade: em plano geral aparece Citonho tocando a corneta (toque militar), inicia-se uma série de cenas picadas até surgir em plano geral o boi correndo pela rua. Leléu surge em primeiro plano e domina a fera.

Informações sobre a trilha musical

Inserção musical diegética. O personagem Citonho toca a corneta em cena.

A cena conforme abordamos é uma das poucas dentro da obra fílmica que

se apropriam de sonorização diegética, na qual o aparato técnico de execução da

música é visível na composição da cena. Embora a execução do som não esteja

ocorrendo de fato na cena, pois ele é dublado e interpretado por um personagem.

Sobre essa característica de dublagem ou encenação de execução da

música, Gorbman define que a utilização do som é representada pela

verossimilhança e que, através da representação visual, o receptor pode afirmar

que o som é proveniente daquela fonte.

Dirigindo nossas análises para o conceito de inaudibilidade, conforme

sugerido pela autora, num primeiro momento essa definição nos causa certa

estranheza, já que existe a dificuldade em visualizarmos um elemento sonoro

dentro da configuração de inaudível, pois, se é revelado e definido dessa forma, 14 Roteiro do filme. Globo, 2002.

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31

acaba então enquadrado como um elemento não sonoro.

Sendo assim, utilizaremos a definição de inaudibilidade como um elemento

de som subordinando-se aos diálogos, às imagens, aos veículos primários da

narrativa; ou seja, dentro das características de elemento secundário na

composição das cenas, na qual o som poderia até mesmo ser extraído, sem que

gerasse grandes alterações na constituição do todo.

A característica do elemento sonoro dentro do conceito de inaudibilidade

pode ser observada na segunda cena do filme, na qual a música é apresentada

subordinada aos elementos de imagem e ruído, não interferindo e não sugerindo

nenhuma função à cena, a não ser o de estar presente como fundo musical em

terceiro plano, pois, em primeiro plano, estão as imagens e a fala de Leléu

anunciando a venda de seus produtos e, em segundo plano, observa-se a feira, as

pessoas e os ruídos.

Cena 2 - Feira de interior

Informações sobre a narrativa

Feira de interior, no Nordeste. Leléu está caracterizado como Mané Gostoso, um conquistador barato (óculos Ray Ban, topete e costeletas), e anuncia seu produto à maneira dos camelôs. Enquanto ele fala vemos o movimento da feira, as pessoas se aproximando e fazendo a roda em volta dele15.

Informações técnicas

Cenas externas. Ambientação: feira nordestina. Personagens: Leléu e figurantes. Seqüência realizada com um travelling pela feira acompanhando o carro de Leléu chegando à cidade.

Informações sobre a trilha musical

Inserção musical não diegética.

15

Roteiro do filme. Globo, 2002.

Page 32: analise lisbela e o prisioneiro

32

Partindo nossas análises a música como significadora de emoção,

observamos que dificilmente ela não possuirá essa característica; mesmo em

cenas em que a música é introduzida em segundo plano, ela é capaz de carregar

altos níveis de transmissão sentimental. Segundo Cíntia Onofre :

Para o espectador talvez o motivo mais óbvio da colocação da

música em filmes é que ela propicia emoção. Muitos compositores

não admitem essa forma simplista de denominar a música

concebida para os filmes. Entretanto, se refletirmos, esse

pensamento não é errôneo. A trilha musical composta para uma

seqüência do filme pode realmente estabelecer climas e enfatizar

emoções particulares sugeridas na narrativa. O que não podemos

desprezar é que a música, acima de tudo, é um significador de

emoção por si só; a emoção ocorre pelo envolvimento do

espectador.16

Em Lisbela e o Prisioneiro (até mesmo pela característica de a obra ser

uma comédia romântica), a utilização da música como recurso de significação da

emoção acaba se tornando uma constante no decorrer do filme; inúmeras são as

cenas que poderíamos relacionar a esse conceito. Ao mesmo tempo em que a

música age induzindo os sentimentos, ela também serve ao diretor Guel Arraes

como uma poderosa ferramenta narrativa, pois o entrelaçamento de música,

emoção e estruturação narrativa é nitidamente percebido durante as cenas.

Em uma das cenas do filme, na qual Lisbela encontra-se pela primeira vez

com Leléu e este acaba se apaixonando pela moça, a música é introduzida de

forma primorosa na seqüência. A sutileza com que música é executada e a

maneira como ela é extraída do conteúdo, retratam exatamente a sensibilidade e

expressão dos personagens.

16 ONOFRE, Cíntia Campolina. O Zoom nas Trilhas da Vera Cruz. Campinas, 2005, p. 51.

Page 33: analise lisbela e o prisioneiro

33

Para demonstrarmos de maneira mais incisiva a música como significação

da emoção e como estruturação da narrativa, recorreremos, em nossa próxima

análise, ao trecho extraído do roteiro cinematográfico.

Cena 31 – Interior da barraca

LELEU (OFF)

Senhoras e Senhores, eu peço aos que sofrem do coração que se retirem do

recinto. A cena que vamos assistir agora pode abalar o sistema nervoso das

pessoas mais sensíveis.

Música, ruídos de selva e transformação da mulher em gorila. Este urra, quebra as

grades e parte pra cima do povo que sai correndo. O gorila pega Lisbela, Douglas

tenta voltar mas ao dar de cara com a fera sai em disparada. Lisbela olha o gorila,

alisa seu rosto carinhosamente em planos semelhantes e montados em paralelos

com os do seriado “Metamorfoses da Alma” onde a Mocinha está frente ao Steve-

Monstro. Até que a mocinha dá o antídoto pra o Dr. Steve e corta para Lisbela

arrancando a máscara do gorila e vendo Leleu.

LISBELA

Eu sabia que era truque!

LELEU

E a melhor parte foi sumir com todo mundo.

LISBELA

E como é que faz a transformação?

LELEU (Vai demonstrando a transformação, fazendo Lisbela virar gorila, conforme

vai explicando)

Eu vou lhe mostrar. Fique desse lado que está iluminado que eu fico aqui no

escuro de forma que primeiro só se vê a senhora. Conforme eu vou apagando a

luz do seu lado eu vou aumentando a luz no macaco e um jogo de espelhos vai

Page 34: analise lisbela e o prisioneiro

34

projetando minha imagem por cima da sua de maneira que parece que a senhora

está se transformando em gorila.

LISBELA

É como uma máquina do tempo, fazendo a gente virar o que foi há milhares de

anos atrás.

LELEU

(Vai tirando a fantasia de macaco) Mas pode funcionar também como uma

máquina do amor.

LISBELA

E existe lá máquina pra isso?

LELEU

Quando a gente ama uma pessoa o que é que a gente mais quer nesse mundo?

LISBELA

Ficar bem juntinho dela.

LELEU

(Durante o poema ele vai invertendo as luzes de maneira que ele se transforma

nela) Tão juntinho, tão juntinho até que, como diz o poeta:

“Transforma-se o amador na coisa amada,

Por virtude do muito imaginar;

Não tenho, logo, mais que desejar,

Pois em mim tenho a parte desejada”.

LISBELA

Achei mais bonita ainda essa máquina do amor.

LELEU

Pois fique quieta e feche os olhos. (Ele vai dando a volta por trás em direção ao

lado dela) Eu vou lhe mostrar agora como é que funciona a máquina do desejo.

Ele chega no lado dela, vai abraçá-la por trás e vê que é só a imagem.

LELEU

Eita, cadê?

Vemos que ela está do outro lado.

LISBELA (Sai correndo)

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35

É que eu liguei a máquina da ilusão.17

(Inicia-se a música)

“...Ela é tão rica e eu tão pobre

Eu sou plebeu e ela é nobre

Não vale a pena sonhar...”

(A Deusa da Minha Rua, de Newton Teixeira e Jorge Faraj)

A utilização da música não diegética nessa cena, corresponde tanto a

induzir o espectador do ponto de vista emocional como a representar a paixão

repentina de Leléu, levando o som a ser o recurso explorado em primeiro plano,

no qual a música acaba por apropriar-se de toda a cena.

Embora a expressão corporal do personagem demonstre seu amor à

primeira vista, é a música quem se encarrega de toda a dramaticidade e

sensibilidade da cena, tomando para si a fala de Leléu e, principalmente, narrando

todo o enredo da obra fílmica, na qual um artista que possui uma vida sem

perspectiva ou rumo vê-se apaixonado por uma jovem de família rica e nobre,

exatamente como o narrado na letra da música.

Outra cena que não poderíamos deixar de analisar, e na qual também

verificamos a música agindo como significadora de emoção e narrativa, é a cena

em que Leléu se despede de Inaura, para entregar-se definitivamente ao amor de

Lisbela, e que discorre da seguinte forma:

Cena - Ruas

Leleu e Inaura estão fugindo.

INAURA

Agora a gente vai viver em paz.

LELEU

17 Roteiro do filme. Globo, 2002.

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36

Só viver, pra mim já está ótimo.

(Barulho de tiros. Leleu se joga no chão assustado)

LELEU

Danou-se! Botaram o exército todo pra me pegar.

INAURA

É não, homem. São os fogos.

LELEU

Fogos?

INAURA

(Indicando os fogos na direção da Igreja) Pro casamento! A noiva deve estar

entrando na igreja agora, só isso. Ave Maria, com você meu coração vive

disparando. Quando não é paixão é alvoroço.

LELEU (Olhando os fogos)

O meu é de paixão e de alvoroço.

INAURA

Você tem razão: querer bem e se aventurar. É assim que a vida merece ser vivida.

LELEU

É, mas mesmo pra um homem mulherengo assim que nem eu, tem uma hora que

o coração quer sossegar.

INAURA

É que a paixão está virando amor, meu bem. Eu sinto a mesma coisa por você.

LELEU

Mas eu estou falando é de outra coisa...

INAURA

(Com segundas intenções) Eu já sei que coisa é essa seu sem vergonha...

LELEU

Não é isso não, quer dizer... é isso também... mas é que o coração da gente só

sossega ao lado da metade que completa ele.

INAURA

E a sua metade se chama Lisbela.

LELEU

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37

Estava difícil dizer. Ainda bem que você disse.

INAURA

Preferi dizer eu mesma, pra não morrer ouvindo da sua boca.

LELEU

A Dona Lisbela é até menos carnuda, menos mulherão que você, mas é nela que

eu estou enganchado.

INAURA

O que você tem para oferecer a ela? A mim você já desgraçou. Mas a ela não.

Está casando agora. Vai ser mãe, dona de casa, tem um futuro inteiro pela frente.

Fique comigo por amor a ela.

LELEU

Ninguém ama por tabela. Eu tenho que ir. Essas coisas não têm explicação.

INAURA

Então deixe eu ir também. Ela não vai nem ficar sabendo.

LELEU

E você acha que isso presta?

INAURA

E você acha que está prestando desse outro jeito? Você não vive sem ela, eu

também não vivo sem você.

LELEU

Posso não, Inaura. E mesmo que eu pudesse você ia terminar com raiva de mim.

E dizem que para cada mulher que odeia um homem, é um ano a menos que ele

vive. (Sai)

INAURA

Pois então você está já se acabando.18

(Inicia-se a música)

“Sei que aí dentro ainda mora um pedacinho de mim

Um grande amor não se acaba assim

Feito espumas ao vento

18 Roteiro do filme. Globo, 2002.

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38

Não é coisa de momento

Raiva passageira

Mania que dá e passa feito brincadeira

O amor deixa marcas que não dá pra apagar

Sei que errei e estou aqui pra te pedir perdão

Cabeça doida, coração na mão

Desejo pegando fogo...”

(Espumas ao vento, de Acioly Neto)

O filme prossegue com Inaura se maquiando e a música toma conta de

toda a cena, narrando os sentimentos de uma mulher que acaba de ser deixada

pelo homem desejado. Nesse mesmo momento é mostrado Leléu partindo para o

encontro de Lisbela.

Nos dois exemplos apresentados, conseguimos visualizar praticamente

todos os conceitos de uso da música como significação de emoção e sugestão

narrativa, segundo o conceito de Gorbman.

O princípio de continuidade conforme sugerido pela autora, da música

provendo continuidade rítmica e formal entre planos, em transições, entre cenas,

preenchendo lacunas, é um conceito aplicado quase na integra das obras

cinematográficas. Podendo ser considerada até mesmo um tanto quanto óbvio

dentro de nossos estudos.

Sendo assim, trabalharemos um breve exemplo da utilização desse recurso

em Lisbela e o Prisioneiro, como sugere a decupagem a seguir.

Informações sobre a narrativa

Lisbela conversa com seu pai (Tenente Guedes), que lhe dá conselhos sobre a vida de casado e tenta falar sobre sexo com a filha.

Informações técnicas

Cena interna. Ambientação: casa de Lisbela. Personagens: Tenente Guedes e Lisbela.

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Tenente Guedes e sua filha tentam conversar sobre sexo (plano médio); quando Lisbela questiona o pai sobre obedecer ao marido ou não, o pai da moça fica encabulado e abraça sua filha, dizendo para ela obedecer, mas só um pouquinho. Inicia-se som de fanfarra e a cena é cortada e alterada para uma externa que mostra o carro de Leléu chegando à cidade.

Informações sobre a trilha musical

Inserção musical diegética.

Na cena analisada, a música diegética é utilizada com a função de

continuidade, pois se inicia o som de fanfarra enquanto a moça ainda conversa

com seu pai dentro de casa; corta-se a cena e parte a imagem para uma tomada

externa, na qual visualizamos a banda tocando na rua e o carro de Leléu

chegando à cidade. A música, nesse caso, é utilizada como elemento de fusão e

continuação entre uma cena e outra, podendo ser definida até mesmo como um

instrumento da montagem fílmica.

Com isso, demonstramos algumas formas de utilização dos ruídos e das

músicas no plano de expressão da obra fílmica de Lisbela e o Prisioneiro,

observando que os conceitos de sonorização nas produções audiovisuais são

nitidamente visíveis e aplicáveis dentro do nosso objeto de estudo. Porém, quando

falamos nos elementos do plano de expressão constituindo o discurso narrativo,

não podemos deixar de enfocar nossas atenções nos conteúdos da imagem,

sendo estes a base de toda obra cinematográfica, cujas análises iniciaremos a

seguir.

1.4 - OS RECURSOS VISUAIS NA CONSTRUÇÃO DO SENTIDO

Podemos dizer que a construção do sentido de uma obra cinematográfica

faz-se a partir de diversos elementos do plano de expressão e do discurso

Page 40: analise lisbela e o prisioneiro

40

narrativo, os quais se inter-relacionam em um ambiente propício e adequado para

sua efetivação.

Tais elementos conforme mencionados podem ser analisados por um

pesquisador isoladamente, assim como um fragmento, no qual o enfoque pode ser

direcionado nas músicas, no som, nos ruídos, na fotografia, na iluminação, e

assim por diante. Porém, cabe ressaltar que, para o público comum, esses

fragmentos não devem ser percebidos e absorvidos isoladamente, mas sim

tomados pela totalidade da cena.

Cada recurso audiovisual possui especificidade, identidade e

funcionalidades distintas, e essas características pertinentes a cada recurso

(quando utilizadas isoladamente) podem ser consideradas extremamente limitadas

se comparadas a sua utilização em conjunto com outros elementos, pois sua

beleza e riqueza na construção da expressão são potencializadas a partir do

momento em que ocorre a mescla entre imagem, som, palavra, iluminação, cor,

edição e montagem da peça.

A respeito disso, faz-se pertinente a colocação de Michel Chion em seu livro

Lê Son Au Ciéma, “É engano achar que o som é mais autônomo quando situado

fora do campo visual; pelo contrário, é a imagem que, a seu bel-prazer, lhe dá e

lhe retira todo o impacto”. (CHION, Michel. La Mus ique au Cinema. 1982, p. 56)

Com isso, verificamos que cada recurso possui interdependência, sem que

um se sobressaia ao outro, mas sim, conforme já abordamos, que cada um

desses elementos participe de maneira homogênea na construção dos sentidos.

Embora a obra fílmica seja constituída por uma série de recursos, cabe

dizer que a imagem é a essência do cinema, pois é através dos códigos visuais

que se constitui toda a obra cinematográfica, bem como toda sua força de

persuasão, identificação e fidelização com público. Na imagem, o espectador se

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41

projeta para um universo paralelo, encontrando o conforto, a emoção ou até

mesmo o estranhamento do que está sendo exibido, conforme relata Martin:

A imagem reproduz o real, para em seguida, em segundo grau e

eventualmente, afetar nossos sentimentos e, por fim, em terceiro

grau e sempre facultativamente, adquirir uma significação ideológica

e moral. Esse esquema corresponde ao papel da imagem tal como

definido por Eisenstein, para quem a imagem nos conduza ao

sentimento (ao movimento afetivo) e, deste, a idéia. 19

Da mesma forma que estudamos a utilização do som como elemento

discursivo nas produções audiovisuais, daremos enfoque aos diversos

procedimentos de manipulação da imagem, para que essa possa ser explorada e

corresponder com eficácia ao papel que lhe é atribuído.

Para isso, iniciaremos nossos estudos com foco nos recursos da imagem,

abordando inicialmente os conceitos da montagem cinematográfica, na qual

utilizaremos, como ponto de partida a proposta de Eisenstein:

O fragmento A, derivado dos elementos do tema em

desenvolvimento, e o fragmento B, derivado da mesma fonte, ao

serem justapostos fazem surgir a imagem na qual o conteúdo do

tema é personificado de forma mais clara.

Ou:

A representação A e a representação B devem ser selecionadas

entre os muitos possíveis aspectos do tema em desenvolvimento,

devem ser procuradas de modo que a justaposição – isto é, a

justaposição destes precisos elementos e não de elementos

alternativos – suscite na percepção e nos sentidos do espectador, a

mais completa imagem deste tema preciso.20

19 MARTIN, Marcel. A Linguagem Cinematográfica. 1990, p. 28 20 Eisenstein, Sergei. O Sentido do Filme. 1990, p. 51

Page 42: analise lisbela e o prisioneiro

42

Seguindo proposta do autor, verificamos a importância no domínio dos

códigos compositivos de uma obra para a construção da imagem e sentido

pretendido, sendo que a construção destes, não se faz única e exclusivamente

através dos próprios códigos da imagem, mas sim, através de vários elementos

extraídos de campos diversos, que favorecem e enobrecem a construção do todo.

Dessa forma, podemos afirmar que técnica da montagem cinematográfica

acaba se tornando um dos grandes elementos na construção da imagem fílmica, e

conseqüentemente do plano de expressão, pois é através desse recurso que a

obra ganhará forma em seu conteúdo.

Em seu livro A Estética do Filme, Jacques Aumont também presta sua

colaboração na definição da montagem cinematográfica, na qual o autor propõe

que a montagem é o princípio que rege a organização de elementos fílmicos

visuais e sonoros, ou de agrupamentos de tais elementos, justapondo-os,

encadeando-os e/ou organizando sua duração .21

Com isso, verificamos que Aumont revela sua preocupação em relacionar o

procedimento da montagem, relacionando-o dentro de uma organização lógica e

cronológica para desenvolvimento do conteúdo narrativo.

Diante dessas propostas, cabe abordarmos os estudos de Marcel Martin, o

qual nos revela que existem distinções entre uma montagem narrativa e uma

montagem expressiva.

Na montagem narrativa, o aspecto mais simples e imediato da

montagem consiste em reunir, numa seqüência lógica ou

cronológica e tendo em vista contar uma história, planos que

possuem individualmente um conteúdo fatual, e contribui assim para

que a ação progrida do ponto de vista dramático (o encadeamento

21 Op. Cit. 1995, p. 62

Page 43: analise lisbela e o prisioneiro

43

dos elementos da ação segundo uma relação de causalidade) e

psicológico (a compreensão do drama pelo espectador). Em

segundo lugar, temos a montagem expressiva, baseada em

justaposições de planos cujo objetivo é produzir um efeito direto e

preciso pelo choque de duas imagens; neste caso, a montagem

busca exprimir por si mesma um sentimento ou uma idéia; já não é

mais um meio, mas um fim: longe de ter como ideal apagar-se

diante da continuidade, facilitando ao máximo as ligações de um

plano a outro, procura, ao contrário, produzir constantemente efeitos

de ruptura no pensamento do espectador, fazê-lo saltar

intelectualmente para que seja mais viva nele a influência de uma

idéia expressa pelo diretor e traduzida pelo confronto dos planos.22

Segundo Martin, a montagem narrativa tem como objetivo relatar uma ação

e o desenrolar de uma seqüência de acontecimentos. Apóia-se às vezes em

relações de plano a plano, mas envolve sobretudo as relações de cena a cena ou

de seqüência a seqüência, levando-nos a considerar o filme uma totalidade

significativa.23

O autor define a montagem narrativa em quatro grupos, sendo eles: a

montagem linear, montagem invertida, montagem alterada e montagem paralela,

as quais são definidas da seguinte forma:

Montagem linear: é a organização do filme que comporta uma ação única,

exposta numa seqüência de cenas colocadas em ordem lógica e cronológica.

Montagem invertida: montagens que subvertem a ordem cronológica em proveito

de uma temporalidade subjetiva e eminentemente dramática, indo e voltando do

passado ao presente.

22 MARTIN, Marcel. A Linguagem Cinematográfica. 1990, p. 132 23 Op. Cit. p. 155.

Page 44: analise lisbela e o prisioneiro

44

Montagem alternada: montagem por paralelismo baseada na contemporaneidade

estrita de duas (ou várias) ações que se justapõem, as quais acabam na maioria

das vezes por se juntar no final do filme.

Montagem paralela: duas ou mais ações são abordadas ao mesmo tempo pela

intercalação de fragmentos pertencentes a cada uma delas, alternadamente, a fim

de fazer surgir uma significação de seu confronto. Aqui, a contemporaneidade das

ações não é mais absolutamente necessária, o que faz com que esse tipo de

montagem paralela seja o mais sutil e também o mais vigoroso.

De acordo com as definições de Martin, identificamos que a obra fílmica de

Lisbela e o Prisoneiro se enquadra mais adequadamente no conceito de

montagem paralela, pois toda a narrativa discorre em paralelismo com outra obra

cinematográfica, a qual se encontra inserida dentro do próprio filme. A inserção

dos fragmentos de um filme dentro de um outro filme (no qual ambos se

desenvolvem paralelamente nas principais cenas da obra) norteia praticamente

todas as realizações das ações, das funções dos personagens e,

respectivamente, dos programas narrativos existentes nesta produção.

Também observamos no filme que as ações de Leléu circulando pelos

rumos da vida e chegando a Vitória de Santo Antão, cidade que proporcionará o

encontro do personagem com seu objeto de desejo – Lisbela, ocorre em

paralelismo ao programa narrativo de Frederico Evandro, o qual permanece sua

caçada incessante atrás de Leléu, para retomar a honra e se vingar da traição que

Leléu cometeu ao se relacionar com Inaura (esposa de Frederico na obra fílmica,

e irmã de Frederico Evandro na obra original-literária/teatral).

Dentro dessa visão, também poderíamos enquadrar o filme no conceito de

montagem alternada, pois as ações dos personagens e de seus respectivos

programas narrati vos discorrem paralelamente e encontram-se ao final da história,

resultando assim o desfecho e resolução da obra. Porém, achamos melhor

Page 45: analise lisbela e o prisioneiro

45

empregar o conceito de montagem paralela, por notarmos que essa também

contempla as ações em simultaneidade, favorecendo ainda a inserção de

fragmentos sem a preocupação de contemporaneidade, nas quais entrariam tanto

os programas narrativos paralelos como a inserção de um filme dentro de outro

filme.

Ao darmos ênfase na montagem expressiva como sugerida pelo autor,

observamos que é nessa montagem que todo o sentido da obra se concretiza, no

qual os recursos de imagem utilizados constroem a relação de interação,

identificação, aproximação, distanciamento e as mais variadas sensações de

sentimentos capazes de serem produzidas através das imagens fílmicas. É nessa

definição de montagem que o espectador assimila os códigos, que passam a

representar estímulos específicos, condicionados à capacidade criadora das

câmeras e de seus diretores.

Outro ponto fundamental para abordamos em nossas análises é a utilização

dos planos, para construção dos sentidos, segundo Eisenstein:

O plano não é um elemento da montagem.

O plano é uma célula da montagem.

Exatamente como as células, em sua divisão, formam um fenômeno

de outra ordem, que é o organismo ou embrião, do mesmo modo no

outro lado da transição dialética de um plano há a montagem.24

Cabe ressaltarmos que, na obra fílmica de Lisbela e o Prisioneiro, a

alternância dos planos é efetuada em ritmos frenéticos, chegando a ser até

mesmo sufocante em algumas cenas, pois a variação de planos gerais para

primeiros planos e primeiríssimos planos é digna de causar fadiga em

espectadores com os sentidos um pouco mais apurados.

24 EISENSTEIN, Sergei. A Forma do Filme. 1990, p. 42

Page 46: analise lisbela e o prisioneiro

46

Essa característica é nitidamente identificada pela influência profissional de

Guel Arraes em produções anteriormente realizadas para a TV, entre as quais

podemos citar sua atuação em programas como Armação Ilimitada, TV Pirata,

Dóris para Maiores e, mais recentemente, nas séries Cena Aberta, Sexo Frágil,

Brasil Total e o quadro “Retrato Falado” (exibido durante as apresentações do

Fantástico) da Rede Globo de Televisão. Em todas essas produções, o ritmo

acelerado acabou por se tornar uma assinatura do diretor.

É fato que a obra original de Lisbela e o Prisioneiro, escrita por Osman Lins,

também oferece ritmo um tanto quanto acelerado, mas bem menos intenso, se

comparada com a obra fílmica que analisamos.

Nas próximas páginas, analisaremos imagens que exemplificarão o ritmo

acelerado da obra, em uma seqüência do filme.

Page 47: analise lisbela e o prisioneiro

47

Page 48: analise lisbela e o prisioneiro

48

Page 49: analise lisbela e o prisioneiro

49

Page 50: analise lisbela e o prisioneiro

50

Partindo para o estudo das imagens conforme apresentadas, verificamos,

em primeiro lugar, a presença da montagem paralela (como já havíamos definido

anteriormente), e também podemos identificar o ritmo extremamente acelerado na

composição da seqüência. Para analisarmos o ritmo imposto pelo filme, bem como

os planos que o constituem, utilizaremos legendas da seguinte forma: GPG –

Grande Plano Geral; PG – Plano Geral; PM – Plano Médio; PA – Plano

Americano; MPP – Meio Primeiro Plano; PP – Primeiro Plano ; PPP –

Primeiríssimo Plano.

Sendo assim, segue tabela com as respectivas informações:

Imagem Tempo do filme

(minutos)

Ambientação Som Plano Movimento

1 5:35 Ambiente externo: feira de rua

Fala do personagem e ruídos do ambiente

MPP Câmera estática

2 5:41 Ambiente externo: feira de rua

Fala do personagem e ruídos do ambiente

PG Câmera estática

3 5:42 Ambiente externo: feira de rua

Fala do personagem e ruídos do ambiente

MPP Câmera estática

4 5:44 Ambiente externo: feira de rua

Fala do personagem e ruídos do ambiente

MPP Câmera estática

5 5:45 Ambiente externo: feira de rua

Fala do personagem e ruídos do ambiente

PG Câmera estática

6 5:52 Ambiente externo: feira de rua

Fala do personagem e ruídos do ambiente

PP Câmera estática

7 5:54 Ambiente externo: feira de rua

Fala do personagem e ruídos do ambiente

MPP Câmera estática

8 5:56 Ambiente externo: feira de rua

Fala do personagem e

PPP Câmera estática

Page 51: analise lisbela e o prisioneiro

51

ruídos do ambiente

9 5:59 Ambiente interno: cena paralela –

laboratório do Dr. Steve

Efeito sonoro (continuidade) e início da fala do personagem –montagem paralela

PP Zoom out

10 6:06 Ambiente interno: cena paralela –

laboratório do Dr. Steve

Música significadora de emoção (suspense) e fala do personagem montagem paralela

PPP Câmera estática

11 6:10 Ambiente interno: laboratório do Dr.

Steve

Música significadora de emoção (suspense) e fala do personagem –montagem paralela

PPP Câmera estática

12 6:12 Ambiente interno: laboratório do Dr.

Steve

Música significadora de emoção (suspense) e fala do personagem –montagem paralela

PPP Câmera estática

13 6:13 Ambiente interno: laboratório do Dr.

Steve

Música significadora de emoção (suspense) e fala do personagem montagem paralela

MPP Zoom in

14 6:21 Ambiente interno: laboratório do Dr.

Steve

Música significadora de emoção (suspense) e fala do personagem

PP Câmera estática

15 6:28 Ambiente interno: laboratório do Dr.

Steve

Música significadora de emoção (suspense) e

PM Câmera estática

Page 52: analise lisbela e o prisioneiro

52

fala do personagem

16 6:29 Ambiente interno: laboratório do Dr.

Steve

Música significadora de emoção (suspense), ruído ambiente e fala do personagem

MPP Travelling horizontal

17 6:33 Ambiente interno: quarto

Música significadora de emoção (suspense), ruído ambiente e fala da personagem

PP Zoom out

18 6:34 Ambiente interno: laboratório do Dr.

Steve

Música significadora de emoção (suspense)

PP Câmera estática

19 6:35 Ambiente interno: quarto

Música significadora de emoção (suspense), e fala da personagem

PP Panorâmica horizontal

20 6:38 Ambiente interno: laboratório do Dr.

Steve

Música significadora de emoção (suspense), e ruídos

MPP Câmera estática

21 6:40 Ambiente interno: laboratório do Dr.

Steve

Música significadora de emoção (suspense)

PP Câmera estática

22 6:41 Ambiente interno: laboratório do Dr.

Steve

Música significadora de emoção (suspense)

PG Câmera estática

23 6:42 Ambiente interno: laboratório do Dr.

Steve

Música significadora de emoção (suspense)

PP Câmera estática

24 6:43 Ambiente interno: laboratório do Dr.

Steve

Música significadora de emoção (suspense)

PG Panorâmica horizontal

25 6:44 Ambiente interno: laboratório do Dr.

Steve

Música significadora de emoção

MPP Câmera estática

Page 53: analise lisbela e o prisioneiro

53

(suspense)

26 6:46 Ambiente interno: laboratório do Dr.

Steve

Música significadora de emoção (suspense) e grito da personagem

PP Câmera estática

27 6:47 Ambiente interno: sala de cinema

Música significadora de emoção (suspense) e grito da personagem

PP Câmera estática

28 6:48 Ambiente interno: laboratório do Dr.

Steve

Música significadora de emoção (suspense) e grito da personagem

MPP Câmera estática

29 6:49 Ambiente interno: laboratório do Dr.

Steve

Música significadora de emoção (suspense) e grito da personagem

MPP Câmera estática

30 6:50 Ambiente interno: laboratório do Dr.

Steve

Música significadora de emoção (suspense) e grito da personagem

MPP Travelling in

Verificamos que, no tempo de um minuto e vinte e cinco segundos, alterna-

se a cena em trinta planos, o que demonstra o ritmo extremamente rápido do

filme, se comparado à grande maioria das produções cinematográficas. É fato que

devemos levar em consideração que a seqüência escolhida trata-se de uma cena

de suspense, e constituída de intercalação entre narrativa principal e paralela, o

que pode requerer certa intensificação na aceleração do filme, mas que não

justifica tamanha alternância.

Em filmes de guerra como O Resgate do Soldado Ryan, dirigido por Steven

Spielberg , nas cenas que retratam o “Dia D”, quando os soldados desembarcam

Page 54: analise lisbela e o prisioneiro

54

na Normandia sob intenso fogo cruzado, a variação de planos fica por volta de um

plano a cada cinco segundos, ou seja, bem menos intensa que a proporção de um

plano para cada três segundos, se comparada com a cena analisada de Lisbela e

o Prisioneiro.

Ao enfocarmos nossos estudos nos enquadramentos que constituem a obra

fílmica, podemos mencionar que a prática do enquadramento com referencial

simbólico é sutilmente utilizada em Lisbela e o Prisioneiro. Identificamos que a

simbologia explorada através desse recurso fica por conta dos constantes

enquadramentos de grades e ambientes fechados nas cenas que possuem

Lisbela em foco: a utilização desse recurso possui o objetivo claro de mostrar as

limitações e barreiras impostas pelo pai e namorado da moça de família.

Outro recurso técnico e simbólico do enquadramento utilizado durante o

filme, fica por conta das cenas em que aparece o Tenente Guedes se impondo

sobre as pessoas através de seu poder de polícia, ou nas cenas em que o

matador Frederico Evandro é apresentado ao público. A utilização dos recursos de

plongée e contra-plongée, nesses momentos, são explorados conforme nos

sugerem as imagens extraídas do filme:

Imposição de Tenente Guedes Imposição de Frederico Evandro

Page 55: analise lisbela e o prisioneiro

55

Nas cenas da narrativa paralela à de Lisbela e o Prisioneiro, ou seja, do

filme dentro do filme, tais situações de enquadramento também são exploradas:

aparecem o mocinho e o bandido, alternando-se em enquadramento de plongée e

contra-plongée, dependendo da situação retratada.

Mocinho sofrendo imposição Imposição do vilão

Enfocando nossos estudos nos elementos considerados por Martin como

elementos não específicos do filme, sendo eles: iluminação, vestuário, cenário e

cor, observamos que as características de iluminação pertinentes de serem

analisadas dizem respeito mais diretamente ao personagem Frederico Evandro, o

qual é apresentado para os espectadores em ambiente geralmente escuro e

regado ao som de heavy metal (trilha sonora de acompanhamento das cenas

composta por Zé Ramalho e Sepultura), o que estimula a percepção do público

sobre às características do personagem.

Quanto ao figurino de Lisbela e o Prisioneiro, identificamos que ele é uma

unidade expressiva bem representada na obra, pois se configura como um dos

elementos não específicos mais bem definidos no filme, caracterizando e

representando os personagens de maneira eficiente. O vestuário empregado na

obra acaba reforçando o perfil dos personagens e figurativizando o estilo e gênero

do fílmico.

Page 56: analise lisbela e o prisioneiro

56

Segundo Martin, o figurino no cinema pode ser definido de três formas,

sendo elas:

1 – Realistas: ou seja, de acordo com a realidade histórica, pelo

menos nos filmes em que o figurinista se reporta a documentos de

época e demonstra a preocupação de exatidão ante as exigências

indumentárias dos artistas.

2 – Para-realistas: o figurinista inspira-se na moda da época, mas

procedendo a uma estilização. A preocupação com o estilo e a

beleza prevalece sobre a exatidão pura e simples.

3 – Simbólicos: a exatidão histórica não importa, e o vestuário tem

antes de tudo a missão de traduzir simbolicamente caracteres, tipos

sociais ou estados de alma.25

Verificamos, então, que o figurino explorado no filme se encaixa

perfeitamente na definição de figurino simbólico, pois toda a vestimenta é

idealizada com a preocupação de construir estereótipos, capazes de enfatizar

características psicológicas e artísticas dos personagem em questão, como

seguem nas imagens.

Leléu (mulherengo e canastrão) Lisbela (ingênua e sonhadora)

25 MARTIN, Marcel. A Linguagem Cinematográfica. 1990, p. 63

Page 57: analise lisbela e o prisioneiro

57

Frederico Evandro (temido matador) Ten. Guedes e Citonho (autoridade)

Douglas (playboy) Inaura (sensual e sedutora)

Outro ponto significativo em nosso objeto de estudo é o cenário constituinte

da obra, pois verificamos que neste elemento fílmico a caracterização do Nordeste

brasileiro é enaltecida através de um cenário produzido e sobrecarregada de cores

quentes, capazes de reforçar as características típicas das periferias nordestinas.

Se utilizarmos as definições de Martin em seu livro A Linguagem

Cinematográfica, veremos que o cenário pode ser representado das seguintes

formas:

1 – Realista: é a de Renoir e da maior parte dos diretores italianos,

soviéticos e americanos, por exemplo. Nessa perspectiva, o cenário

não tem outra implicação além de sua própria materialidade, não

significa senão aquilo que é.

Page 58: analise lisbela e o prisioneiro

58

2 – Impressionista: o cenário é escolhido em função da dominante

psicologia da ação, condiciona e reflete ao mesmo tempo o drama

dos personagens; é a paisagem estado de alma para os românticos.

3 – Expressionista: enquanto o cenário impressionista é em geral

natural, o expressionista é quase sempre criado artificialmente,

tendo em vista sugerir uma impressão plástica que coincida com a

dominante psicológica da ação.26

Verificaremos que, no cenário de Lisbela e o Prisioneiro, mesclam-se os

conceitos de impressionismo e expressionismo, pois, por mais que as cenas

discorram em ambientes naturais e que reflitam os dramas dos personagens com

suas respectivas funções psicológicas, observamos uma maciça preocupação na

produção do filme em construir e tornar o ambiente mais propício para o

desenvolvimento do discurso.

A acentuação das cores presentes nos figurinos, carros e cenários do filme

acaba forçando um universo simbólico extremamente manipulado do Nordeste

brasileiro, no qual podemos identificar que, em praticamente todas as cenas, a

saturação das cores, principalmente primárias, acaba se tornando uma constante

– é praticamente um super-estímulo cromático.

Outro ponto importante de relacionarmos quanto à utilização das cores é

que as cenas de Lisbela e o Prisioneiro e as do filme dentro do filme são bem

delimitadas pela relação de contraste existente entre as duas narrativas paralelas,

pois uma faz uso incessante das cores, e a outra trabalha na íntegra com imagens

em preto-e-branco, mostrando exatamente o distanciamento entre as duas

narrativas.

A utilização das cores, conforme mencionado, pode ser claramente

observada em todas as imagens anteriormente exploradas em nosso trabalho,

dispensando-se a inserção de novas fotografias com finalidades ilustrativas. 26 Op. Cit. p. 65

Page 59: analise lisbela e o prisioneiro

59

1.5 - O CINEMA FALADO DE GUEL ARRAES

Na obra fílmica, conforme já mencionamos em nossas abordagens

anteriores, principalmente referentes às montagens e aos planos que constituem o

filme, identificamos a característica do diretor Guel Arraes em se apropriar de

recursos televisivos na sua atuação.

Verificamos que os ritmos impostos nos planos e na montagem

cinematográfica retomam e muito os padrões da telenovela brasileira, e tais

características podem ser observadas nos diálogos presentes no filme, em que as

falas e os diálogos também seguem um ritmo extremamente acelerado.

Em entrevista concedida à revista Época, o diretor Guel Arraes fala sobre o

filme Lisbela e o Prisioneiro , e sua relação com a TV e o cinema:

Época: Lisbela é sua estréia em cinema ou uma continuação de

Auto da Compadecida e Caramuru?

Guel Arraes: Em produção, é sim, trabalhei com dois milhões e sete

meses a mais, com mais tempo para elaborar o material. Tive

profissionais trabalhando com mais tranqüilidade. A trilha sonora,

por exemplo. Algumas compostas para meu trabalho na televisão

foram feitas em cima da hora. Mas nas opções técnicas, na direção,

não vejo diferença. Faria igual se fosse para a televisão, a diferença

é mais de estrutura e menos de estética.

Época: Não acha que cinema e televisão, cada vez mais, estão

próximos em suas linguagens?

Guel Arraes: Na prática essa diferença não existe. Isso é teoria.27

Se utilizarmos o conceito de Martin:

27 Revista Época, 18 de agosto de 2003.

Page 60: analise lisbela e o prisioneiro

60

O maior perigo que correm os diretores no que diz respeito ao

diálogo é o de fazer prevalecer a explicação verbal sobre a

expressão visual: estou querendo dizer que todo enredo puramente

verbal deveria se reduzir ao mínimo em cinema, já que a imagem é

capaz de mostrar os acontecimentos, mas sobretudo que, através

dos meios à sua disposição (a metáfora e o símbolo em particular,

mas também os movimentos de câmera, os ângulos de filmagem, os

enquadramentos, os ruídos), o filme pode significar sem ter que

dizer, ou seja, pode transpor o sentido da linguagem verbal para o

da expressão plástica.28

Vemos com isso que a superficialidade dos elementos técnicos

empregados em Lisbela e o Prisioneiro resulta inevitavelmente nas características

descritas por Martin, pois a fala, que deveria ser um elemento complementar às

imagens, acaba se apropriando de discursos explicativos, suprindo uma ausência

do aproveitamento dos recursos imagéticos na produção, ou seja, o diálogo passa

a representar, em grande parte do filme, um elemento em primeiro plano.

Martin ainda nos fornece algumas especificações de diálogos, sendo elas:

Diálogos teatrais: aqueles escritos como se fossem para o teatro e

feitos para serem ditos diante da câmera como diante do poço da

orquestra.

Diálogos literários: a elipse, a alusão, o meio-tom e o silêncio fazem-

se aqui presentes.

Diálogos realistas: isto é, cotidianos, mais falados do que escritos, e

traduzindo uma preocupação de se exprimir da forma usual, com

naturalidade, simplicidade e clareza.29

Seguindo essa proposta, Lisbela e o Prisioneiro se enquadraria mais

adequadamente no conceito de diálogo teatral, não pelo motivo de o filme ser

28 MARTIN, Marcel. A Linguagem Cinematográfica. 1990, p. 177 29 Id. Ibidem p. 181

Page 61: analise lisbela e o prisioneiro

61

adaptado do roteiro literário/teatral de Osman Lins, mas pelo fato de

incessantemente priorizar a fala no decorrer da obra.

No caso da obra fílmica, trabalhar com as características do diálogo

conforme abordadas em nossa análise, seríamos obrigados a concordar com

Eisenstein, Pudovkin e Alexandrov, no manifesto de 1928, no qual os autores se

mostravam preocupados com a utilização do som seguindo a lei do menor esforço,

ou pela invasão do cinema pelos dramas da literatura e outras tentativas de

teatralização na tela, pois, antes de tudo, a obra cinematográfica deve preservar

suas características técnicas, linguagem e autonomia fílmica.

Page 62: analise lisbela e o prisioneiro

62

2 - METALINGUAGEM

2.1 - A FÔRMA DO FILME

Na obra fílmica de Lisbela e o Prisioneiro, podemos identificar uma maciça

existência de elementos metalingüísticos agindo na constituição do filme, ou seja,

de artifícios utilizados pelo diretor Guel Arraes e sua equipe, com a intenção de

mostrar ao espectador a própria teoria do cinema e a arte da produção

cinematográfica. Cabe, nesse momento, definirmos o que estamos chamando

neste estudo por recurso metalingüístico – e, para isso, utilizaremos a definição

sugerida por Joan Ferres:

Fala-se de função metalingüística quando, no ato comunicativo, o

interesse centra-se no próprio código. Quer dizer, quando se utiliza

um código para fazer um discurso sobre o próprio código. No caso

do vídeo, fala-se de função metalingüística quando se utiliza a

imagem em movimento para fazer um discurso a respeito da

linguagem audiovisual ou, simplesmente, para facilitar a

aprendizagem dessa forma de expressão.30

Enfocando nosso estudo em Lisbela e o Prisioneiro, identificamos que o

roteiro da obra cinematográfica foi escrito por Guel Arraes, Jorge Furtado e Pedro

Cardoso, os quais podemos classificar como produtores que utilizam 30 FERRÉS, Joan. Funções do Vídeo no Ensino. 1996, p. 59

Page 63: analise lisbela e o prisioneiro

63

incessantemente os elementos metalingüísticos em seus projetos. Ao citarmos

Jorge Furtado, podemos verificar que, em seus curtas Ilhas das Flores, 1989; O

Sanduíche, 2000; e no longa O Homem que Copiava (2002), os recursos

metalingüísticos apresentam-se de forma diversificada e amplamente explorados.

A mesma situação se repete com Pedro Cardoso, que, atuando em parceria

com Guel Arraes e Jorge Furtado, ajudou a produzir respectivamente Lisbela e o

Prisioneiro e O Homem que Copiava, ambos incorporando tais recursos.

Com Guel Arraes, a utilização de códigos capazes de explorar e explicar a

própria estrutura audiovisual origina-se por outros meios e influências,

principalmente quando relacionados ao percurso profissional do diretor. Guel

Arraes aprendeu sua profissão na Escola do Cinema-Verité, ou seja, um braço

documental da Nouvelle Vague francesa, e trabalhou por um curto período como

assistente de Jean-Luc Godard, o qual podemos considerar como um dos maiores

influenciadores da prática metalingüística no cinema.

O cinema da era Godard transformou-se no auge de uma

metalinguagem crítica, que questionava e, por vezes, celebrava, o

cinema clássico. Esse cinema consagrou o emprego de

procedimentos metalingüísticos e acabou por se unir a uma

considerável produção teórica sobre a linguagem cinematográfica

com vigorosos debates, revistas especializadas, etc. A reflexividade

dominou os cinemas novos.31

Em entrevista concedida à revista IstoÉ Gente no ano 2000, o diretor de

Lisbela e o Prisioneiro assume a influência de Godard em sua forma de atuar,

dizendo que essa influência se faz mais presente pela influência artística dos

filmes do que propriamente pelo fato de ter atuado com o diretor francês.32

31 SOUZA, Christiane Pereira. A Construção em Abismo como Construção Crítica em 8 ½ de Fellini. 2003, p. 41 32 Entrevista concedida à revista IstoÉ Gente no ano 2000, edição 59.

Page 64: analise lisbela e o prisioneiro

64

Sendo assim, e considerando as influências do diretor e dos roteiristas de

nosso objeto de estudo, podemos dizer que o resultado do filme não poderia ser

diferente, ou seja, a incorporação de elementos metalingüísticos na constituição

da obra.

2.2 - DECUPAGEM E METALINGUAGEM NA OBRA FÍLMICA

Para realizarmos nossas análises e organizá-las de maneira coerente,

faremos neste momento uma decupagem das cenas que possuam

representatividade para os estudos da metalinguagem, expondo de maneira clara

e objetiva as formas como tais elementos agem na construção da obra.

Logo nas primeiras cenas do filme, a protagonista Lisbela entra em uma

sala de cinema acompanhada de seu noivo Douglas. Toda a situação de estar

naquele ambiente passa a ser narrada pela personagem, que aborda desde a

melhor posição para assistir a um filme até mesmo a sensação de vivenciar as

projeções em tela.

Nesse momento, a personagem começa a descrever o gênero do filme a

que ela e seu acompanhante irão assistir. Iniciam-se os créditos na tela do cinema

em que Lisbela se encontra e, conseqüentemente, do filme em que ela mesma é

personagem. A moça narra as características dos personagens que serão

apresentados no decorrer da obra, dizendo até mesmo a ordem e seqüência em

que os capítulos acontecerão.

Todas as características da narrati va são destacadas pela personagem,

podendo ser identificadas até mesmo as funções dos personagens do filme,

conforme observaremos no trecho extraído do roteiro cinematográfico:

Page 65: analise lisbela e o prisioneiro

65

DOUGLAS

Que tipo de filme é esse?

LISBELA

Comédia romântica com aventura. Tem um mocinho namorador que nunca se

apaixonou por ninguém até conhecer a mocinha. Tem uma mocinha que sofre

bem muito porque o amor do mocinho é cheio de problemas. Tem um bandido que

só quer saber de matar o mocinho ou de ficar com a mocinha ou as duas coisas.

Tem também mais uma ruma de personagens, uma mulher que também quer o

mocinho mas ele não quer nada com ela, tem uns que ficam fazendo graça para

animar a história. O mocinho quer conquistar a mocinha mas também tem que

fazer o trabalho dele, que é salvar alguém e prender o bandido. As duas coisas se

misturam, o trabalho do mocinho e o amor da mocinha. No fim de tudo o mocinho

e a mocinha ficam juntos e o bandido se lasca.

DOUGLAS

Você já viu?

LISBELA

Não, mas todos são assim.

DOUGLAS

Qual é a graça?

LISBELA

A graça não é saber o que acontece. É saber como acontece. E quando acontece.

(As luzes diminuem)

LISBELA

Shh. Vai começar. Eu adoro esta parte. A luz vai apagando devagarzinho, o

mundo lá fora vai se apagando devagarzinho, os olhos da gente vão se abrindo.

Daqui a pouco a gente nem vai mais lembrar que está aqui. A gente vai conhecer

um monte de pessoas novas, um monte de problemas que a gente não pode

resolver, só eles podem. Vamos ver como. E quando. Vai começar.

A cena estudada é riquíssima no que tange à utilização da metalinguagem,

pois verificamos que os códigos audiovisuais são explorados com a função de

Page 66: analise lisbela e o prisioneiro

66

gerar reflexão sobre a teoria narrativa e sobre as próprias características do

cinema. Na apresentação dos personagens, já conseguimos identi ficar inclusive o

sujeito, anti-sujeito, ajudantes, oponentes e objeto valor da trama, os quais

estudaremos de maneira mais incisiva em nosso próximo capítulo.

Ao analisarmos a fala de Lisbela: “O mundo lá fora vai se apagando

devagarzinho, os olhos da gente vão se abrindo. Daqui a pouco a gente nem vai

mais lembrar que está aqui”, identificamos que a personagem está retratando

exatamente uma das principais características do cinema: a de introduzir o

indivíduo em um mundo ficcional através de elementos de verossimilhança, ou da

característica polimórfica conforme menciona Morin em seu livro O Cinema ou o

Homem Imaginário:

A participação polimórfica ultrapassa o quadro das personagens.

Todas as técnicas cinematográficas concorrem para mergulhar o

espectador, tanto na atmosfera, quanto na ação do filme. A

transformação do tempo e do espaço, os movimentos da câmera, as

incessantes mudanças de ângulo de visão tendem a arrastar os

próprios objetos para o circuito afetivo.33

Sendo assim, identificamos que a abordagem de Morin, na qual o cinema

gera uma situação de projeção / identificação com o espectador, introduzindo-o

em um universo fílmico, está totalmente relacionada com a sensação narrada por

Lisbela. O ato de ir ao cinema, sentar numa sala escura, estar cercado por um

silêncio muitas vezes interrompido por ruídos, músicas, sussurros, luzes e

projeções de imagens em movimento incidem sobre os espectadores introduzindo-

os em um mundo “real” que se abre diante de seus olhos.

Quando Lisbela diz que “a graça não é saber o que acontece. Mas é saber

como acontece. E quando acontece”, o diretor Guel Arraes está jogando com a

rigidez das narrativas constantemente exploradas na produção cinematográfica, 33 MORIN, Edgar. O Cinema ou o Homem Imaginário. 1982, p. 182

Page 67: analise lisbela e o prisioneiro

67

ou seja, os padrões existentes entre os diversos gêneros fílmicos. Segundo a

autora Ana Maria Balogh:

Por maiores que possam ser as objeções no tocante à classificação

por gêneros, ao caráter restritivo e estático dessas tipologias, não

resta dúvida de que constitui um instrumento útil para delimitar o

alcance de processos de recepção e agilizar o reconhecimento e a

leitura de marcas estruturais próprias de cada gênero.34

Vemos com isso que, embora os padrões existam, a maneira como se

desenvolve o conteúdo da obra é que torna a prática e recepção das produções

cinematográficas atraentes, ou seja, o interessante não é expor o que acontece,

mas sim como e quando acontece.

Ainda na primeira cena do filme, observamos que Lisbela nos apresenta

uma espécie de sinopse do que será exibido, mencionando inclusive que o

conteúdo se trata de uma comédia romântica com aventura. Ao dar continuidade à

sua fala, a personagem nos fornece o gênero da obra, ou seja, uma narrativa pela

conquista do amor, que é sobrecarregado de problemas e impedimentos,

configurando dessa maneira o padrão melodramático, conforme nos sugere

Balogh:

Segundo Thornburn, as características básicas do gênero

permanecem, muda o entendimento de atributos antes

menosprezados. Para ele, o melodrama implica uma fantasia

reconfortante manifesta nos finais felizes ou moralísticos, redutivos

e/ou arbitrários, mas que correspondem ao nosso desejo de fugir do

real. Essa estrutura pressupõe simplificações morais como a

inserção de crimes e criminosos dentro de paradigmas de conflito

moral, conforme alegorias do bem e do mal e nas quais o bem

quase sempre vence.

34 BALOGH, Anna Maria. O Discurso Ficcional na TV. 2001, p. 90

Page 68: analise lisbela e o prisioneiro

68

Na análise de Oróz, os quatro temas paradigmáticos do melodrama

viriam dos mitos da cultura judaico-cristã: o amor, a paixão, o

incesto e a mulher (1992:29). No tocante ao tema do amor, a autora

distingue o amor do homem pela mulher (1992:50), cujo objetivo

principal é o casamento, do amor-sacrifício, presente sobretudo no

laços filiais e fraternos e que visa propiciar a ascensão social do

ente querido. 35

A análise de Balogh retomando os autores citados no texto define de forma

extremamente pertinente o gênero narrativo de nosso objeto de estudo, no qual

observamos que a fala de Lisbela, na primeira cena do filme, refere-se quase na

íntegra à definição do melodrama, conforme sugerido pela autora.

Em outro exemplo representativo da utilização do conceito metalingüístico,

observamos a personagem Lisbela narrando a utilização da linguagem técnica do

enquadramento e dos planos que constituem a obra fílmica, conforme

apresentaremos abaixo:

Cena 19

Trechinho do seriado, bandido fazendo maldade. Comentário de Lisbela fazendo

ligação para a próxima cena.

LISBELA

Bandido eles sempre mostram de pertinho que é pra gente se assustar com

aquele carão espevitado na tela.

Viu só!

Bandido que é bandido mesmo, fala como se fosse o mocinho, bem educado,

calmo.

Já o mocinho, xinga o tempo todo.

35 BALOGH, Op. Cit. p. 168-169

Page 69: analise lisbela e o prisioneiro

69

Nesse exemplo, identificamos que as peculiaridades dos enquadramentos,

dos planos e até mesmo dos personagens estereotipados acabam sendo

exploradas nas descrições da personagem. A citação de que o bandido sempre é

mostrado de perto, segundo a fala de Lisbela, é uma leitura técnica da utilização

do primeiríssimo plano, cujas propriedades se tornam eficazes na demonstração

da expressão e dos sentimentos do personagem.

A técnica da trucagem cinematográfica (embora a nomenclatura “trucagem”

não seja bem aceita por alguns autores, por julgarem que o termo tenha caído em

desuso, principalmente pelas classificações atuais de efeitos especiais) também

ganhou destaque no filme, pois observamos, em uma das cenas, que o efeito de

fusão entre imagens, ou seja, a fusão da imagem de uma mulher que se

transforma em macaco é desmistificada com a apresentação dos aparatos

técnicos capazes de reproduzir o efeito.

Vejamos a cena descrita, de acordo com o roteiro do filme:

Cena 31 – Interior da barraca

Começa o número. Foco de luz na mulher.

LELEU (OFF)

Senhoras e Senhores, eu peço aos que sofrem do coração que se retirem do

recinto. A cena que vamos assistir agora pode abalar o sistema nervoso das

pessoas mais sensíveis.

(Música, ruídos de selva e transformação da mulher em gorila. Este urra, quebra

as grades e parte pra cima do povo que sai correndo. O gorila pega Lisbela,

Douglas tenta voltar mas ao dar de cara com a fera sai em disparada. Lisbela olha

o gorila, alisa seu rosto carinhosamente em planos semelhantes e montados em

paralelos com os do seriado “Metamorfoses da Alma” onde a Mocinha está frente

Page 70: analise lisbela e o prisioneiro

70

ao Steve-Monstro. Até que a mocinha dá o antídoto pra o Dr. Steve e corta para

Lisbela arrancando a máscara do gorila e vendo Leleu)

LISBELA

Eu sabia que era truque!

LELEU

E a melhor parte foi sumir com todo mundo.

LISBELA

E como é que faz a transformação?

LELEU (Vai demonstrando a transformação, fazendo Lisbela virar gorila, conforme

vai explicando)

Eu vou lhe mostrar. Fique desse lado que está iluminado que eu fico aqui no

escuro de forma que primeiro só se vê a senhora. Conforme eu vou apagando a

luz do seu lado eu vou aumentando a luz no macaco e um jogo de espelhos vai

projetando minha imagem por cima da sua de maneira que parece que a senhora

está se transformando em gorila.

O termo “trucagem” adquiriu no passado uma conotação negativa, pois o

emprego de tais recursos como utilização de manequins para substituição de

personagens, alçapões colocados no meio de um caminho para fazer com que um

personagem desaparecesse subitamente, ou cordas amarradas nas costas para

simulações de vôos ficaram caracterizadas, ao longo do tempo, como recursos

técnicos intencionalmente utilizados para “enganar” o público, enquanto os efeitos

especiais tornaram-se uma ferramenta capaz de proporcionar o “quase

impossível”.

Os efeitos especiais podem ser considerados atualmente, e sem sombra de

dúvida, como a vedete da indústria cinematográfica comercial, recebendo

enormes investimentos para o desenvolvimento de softwares e equipamentos

capazes de produzi-los. O cinema virou uma verdadeira vitrine tecnológica para o

mundo das produções audiovisuais.

Page 71: analise lisbela e o prisioneiro

71

Com essa abordagem, verificamos que a metalinguagem do recurso

aplicado em Lisbela e o Prisioneiro é, em sua mais pura essência, a da trucagem

cinematográfica, pois fica bem clara a intenção do diretor em reproduzir o truque

de forma bem rudimentar, e com o objetivo único e exclusivo de explicitar o

recurso utilizado para iludir o espectador, o que o diferencia da classificação de

efeitos especiais.

Outro ponto importante de analisarmos é a maneira um tanto quanto irônica

como Guel Arraes aborda o seu próprio filme, pois grande parte das seqüências

que compõem a obra é antecipada por Lisbela, fazendo com que o espectador

receba a informação do que acontecerá antes mesmo delas serem exibidas. Logo

na primeira cena, Lisbela nos fornece todo o percurso narrativo da obra, dizendo

até mesmo qual será a resolução do filme. Em uma outra seqüência, a

personagem nos revela previamente o encontro entre sujeito e objeto, conforme

nos mostra o roteiro do filme:

Cena 26 - Sala de cinema

Luz do cinema acende, Lisbela e Douglas vão saindo. Lisbela mais uma vez

imagina como o herói se sairá dessa.

LISBELA

Amanhã vai começar a melhor parte, quando o mocinho encontra a mocinha.

DOUGLAS (Sorrindo)

Como é que você sabe?

LISBELA

Por que já mostrou o mocinho, já mostrou a mocinha, chegou a hora de mostrar os

dois juntos.

Outro ponto importante de abordarmos é o fato de a personagem Lisbela

agir como se fosse a voz do diretor durante o filme, incorporando e explicitando as

Page 72: analise lisbela e o prisioneiro

72

formas de construção da obra, seguindo as intenções de Guel Arraes, ou seja, ela

funciona como uma espécie de narrador personagem (intradiegético) da obra. A

personagem narra os acontecimentos que acontecerão em um futuro próximo, e

participa deles ao mesmo tempo em que vão acontecendo.

Segundo Martin Eikmeier, citando As Categorias da Narrativa de Todorov, o

narrador e seus personagens podem assumir primordialmente os seguintes níveis:

Narrador > Personagem (a visão “por trás”) – O narrador sabe

sempre mais que seus personagens e não se preocupa em revelar

como adquiriu este conhecimento: vê através dos muros da casa

tanto quanto através do crânio de seu herói. Evidentemente, esta

forma apresenta diferentes graus. A superioridade do narrador

pode-se manifestar seja em um conhecimento dos desejos secretos

de alguém (que este alguém ele próprio ignora), seja no

conhecimento simultâneo dos pensamentos de muitos personagens

(do que nenhum deles é capaz), seja simplesmente na narração dos

acontecimentos que não são percebidos por um único personagem.

Narrador = Personagem (a visão “com”) – Neste caso o narrador

sabe tanto quanto os personagens, não pode fornecer uma

explicação dos acontecimentos antes de os personagens a terem

encontrado. Aqui também se podem estabelecer muitas distinções.

Narrador < Personagem (a visão “de fora”) – Neste caso o narrador

sabe menos que qualquer dos personagens. Pode-nos descrever

unicamente o que se vê, ouve, etc., mas não tem acesso a

nenhuma consciência”.36

Partindo dessa proposta, identificamos que Lisbela se enquadra

perfeitamente no modelo de Narrador > Personagem (a visão “por trás”) , pois a

personagem não narra somente os acontecimentos que estão por vir, mas

36 EIKMEIER, Martin. Trilha Sonora. A Música como Elemento de Sintaxe do Discurso Narrativo no Cinema – Estudo de Caso: “Amadeus”. Dissertação (Mestrado em Multimeios) - Universidade Estadual de Campinas, 2004, p. 59.

Page 73: analise lisbela e o prisioneiro

73

também ela possui a propriedade de antecipar as falas e penetrar na mente dos

personagens, como nos sugere o roteiro da obra fílmica:

Cena 57 – Sala de cinema

Leleu pára na contraluz da porta.

LISBELA

(Feliz) Dessa vez ainda dá pra pegar o filme.

LELEU

(Vem caminhando e entrando na luz) Lisbela, eu...

LISBELA

Já sei: você veio dizer que vai embora.

LELEU

Quem lhe disse?

LISBELA

É igualzinho no cinema: a mocinha está ansiosa esperando o mocinho e

finalmente eles se encontram. Ele vem se aproximando e ela acha que é para dar

um beijo, aí ela vê que o rosto dele está preocupado demais pra isso.

Ela é bestinha coitada, e ainda tenta dizer que o ama, mas o mocinho vai puxando

a conversa pro outro lado, que é sinal de que ele já ensaiou alguma coisa pra

dizer e que nem está ouvindo o que ela diz.

Mas nem precisa dizer mais nada, que todo mundo já entendeu que a mocinha vai

ser largada.

LELEU

Olha Lisbela...

LISBELA

Ah, é, tem também essa parte: ele vai dizendo que não é por querer, que ele é

obrigado a cuidar da mãe doente ou tem que partir pra guerra ou algum motivo de

força maior que eu prefiro nem saber. Porque ou é mentira ou eu vou ficar

gostando mais ainda de você.

Page 74: analise lisbela e o prisioneiro

74

Verificamos, com isso, que tanto o que tange à estrutura narrativa como às

características técnicas da produção cinematográfica receberam atenção especial

do diretor e de sua equipe com a finalidade de explicitar as diversas formas de

manipulação, e os diversos recursos técnicos que podem ser utilizados para

realização da obra. Através de elementos metalingüísticos, Guel Arraes torna

claras as suas intenções e fornece autonomia para a personagem Lisbela explorar

o universo audiovisual.

Devemos nos ater ao fato de que a obra em questão tra ta-se de uma

adaptação do título original de Osman Lins, porém os estudos realizados até o

presente momento desta dissertação (capítulo 1 e capítulo 2) são referentes ao

conteúdo da obra adaptada e direcionada ao cinema, pois os elementos sonoros,

imagéticos e metalingüísticos, conforme analisados, são pertinentes à obra fílmica,

não tendo qualquer aplicabilidade à obra original.

Page 75: analise lisbela e o prisioneiro

75

3 - TRANSMUTAÇÃO: DO

VERBAL AO AUDIOVISUAL

3.1 - TRANSMUTAÇÃO TEXTUAL

Neste momento, ingressaremos nossas análises voltadas à maneira como

cada suporte contribui para a efetivação do conteúdo cinematográfico e às

propriedades inerentes a cada formato, ou seja, enfocaremos nossos estudos no

processo de adaptação da obra literária/tetral, para a obra fílmica de Lisbela e o

Prisioneiro, enfatizando os pontos conjuntivos e disjuntivos existentes no processo

de transmutação da obra.

Ao analisarmos o processo de adaptação de obras que apresentem

diferentes métodos de realização e produção, devemos nos ater primeiramente à

peculiaridade de cada meio utilizado, bem como às características inerentes às

propriedades de cada suporte. Para estudarmos o processo de transposições dos

conteúdos, devemos definir, de maneira breve, o que será chamado nas páginas

subseqüentes de texto transmutado.

Seguindo a proposta teórica de Jakobson para uma tipologia básica das

traduções:

Page 76: analise lisbela e o prisioneiro

76

1 - A tradução intralingual ou reformulação (rewording) consiste na

interpretação dos signos verbais por meio de outros signos da

mesma língua.

2 - A tradução interlingual ou tradução propriamente dita consiste na

interpretação dos signos verbais por meio de alguma outra língua.

3 - A tradução intersemiótica ou transmutação consiste na

interpretação dos signos verbais por meio de sistemas de signos

não-verbais.37

A definição de texto transmutado, conforme proposta de Jakobson, será o

termo utilizado para definirmos em nossas análises a adaptação do texto

literário/teatral de Osman Lins para o filme dirigido por Guel Arraes, ou seja, a

reorganização dos signos verbais para os signos não-verbais.

A transposição dessas duas formas de textos já se tornou um dos métodos

mais consagrados nas produções midiáticas mundiais, entre as quais podemos

encontrar grandes títulos literários e suas respectivas versões cinematográficas,

demonstrando a potencialidade desse tipo de procedimento que vem recebendo

cada vez mais atenção e investimento por parte da indústria do cinema,

possibilitando o acesso das grandes massas, inclusive a títulos anteriormente

pouco visitados.

Podemos citar nas produções brasileiras e nos mais diversos períodos

algumas adaptações de sucesso, como: Vidas Secas, de Graciliano Ramos e

adaptado por Nelson Pereira dos Santos no ano de 1963; Macunaíma, escrito por

Mario de Andrade em 1928 e que recebeu adaptação para o cinema em 1969;

Olga, adaptado do livro-reportagem do jornalista Fernando Morais, de 1985, e que

teve sua versão voltada aos cinemas recentemente, no ano de 2004.

Direcionando o foco das adaptações agora para produções estrangeiras,

também podemos citar alguns títulos de sucesso e que seguem o mesmo 37 JAKOBSON, Roman. Lingüística e Comunicação. 1969, p. 64-65

Page 77: analise lisbela e o prisioneiro

77

procedimento, como The Androids Dream of Electric Sheep?, do americano Phillip

K. Dick, e que ficou mais conhecido em sua versão fílmica como Blade Runner,

lançado comercialmente em 1982 e relançado em 1991 numa versão chamada de

“versão do diretor”; Chocolate, de Joanne Harris, adaptado por Lasse Hallström; e

o grande sucesso dos últimos anos, a trilogia de O Senhor dos Anéis, adaptado

por Peter Jackson do livro escrito por J. R. R. Tolkien.38

Dessa maneira, podemos comprovar que, ao longo da diacronia da cultura,

realizam-se produções culturais que se beneficiam das transmutações das obras

literárias para obras fílmicas, demonstrando a pertinência em se realizar o estudo

aqui apresentado como forma de contribuição para essa área específica.

3.2 - TRADUZIBILIDADE DAS OBRAS

A dificuldade encontrada em se analisar a transposição e possíveis

traduções de conteúdos está associada à abordagem multidisciplinar envolvendo

áreas diversas, tais como: Letras, Lingüística, Comunicação, Semiótica, Teoria do

Cinema, Informática, Computação Gráfica e outras linhas de pesquisa associadas

às análises textuais.

Francis Henrik Aubert, em seu livro As (In)Fidelidades da Tradução:

Servidões e Autonomia do Tradutor (1994), diz:

A fidelidade na tradução caracteriza-se, pois, pela conjuminação de

um certo grau de diversidade com um certo grau de identidade; ela

será, não por deficiência intrínseca ou fortuita, mas por definição,

por essencialidade, um compromisso (instável) entre essas duas

38 As adaptações citadas, foram discutidas e analisadas durante o programa de mestrado na Universidade Paulista, junto a disciplina: Transformações da linguagem audiovisual, lecionas pela orientadora desta dissertação e Profa. Dra. Anna Maria Balogh.

Page 78: analise lisbela e o prisioneiro

78

tendências antagônicas, atingindo sua plenitude nesse

compromisso e nessa instabilidade.39

Quando falamos de tradução, devemos ter consciência de que não existe

uma tradução ideal, da mesma forma que não existe um receptor ideal para

absorção e leitura única de um conteúdo referido – o próprio texto artístico, pela

polissemia e ambigüidade intrínsecas, é passível de variadas interpretações. A

partir do momento em que se cria, ou recria, a produção realizada ganha vida

própria, e conseqüentemente liberdade para leituras e interpretações variadas de

seu conteúdo.

Nem mesmo o próprio autor de uma obra estaria isento de influenciar e

alterar sua própria produção ao transcrevê-la para um outro sistema de signos,

que podem ser: da mesma língua; de uma outra língua; ou de diferentes sistemas

de signos, que neste último caso o definiria como transmutação.

Sendo assim, faz-se pertinente a colocação de Octavio Paz:

Todo texto é único e é, ao mesmo tempo, a tradução de outro texto.

Nenhum texto é completamente original porque a própria língua, em

sua essência, já é uma tradução: em primeiro lugar, do mundo não-

verbal e, em segundo, porque toda frase é a tradução de outro signo

e de outra frase. Entretanto, esse argumento pode ser modificado

sem perder sua validade: todos os textos são originais porque toda

tradução é diferente. Toda tradução é, até certo ponto, uma criação

e, como tal, constitui um texto único.40

Um dos pontos que mais chamam a atenção no processo de transposição

de obras que carregam as legendas “baseado na obra de” e “adaptado da obra

de” diz respeito às críticas envolvendo a traduzibilidade dos textos. Como já

39 Op. Cit. p. 77 40 PAZ, Octávio. 1971

Page 79: analise lisbela e o prisioneiro

79

avaliado por Jakobson, a poesia é intraduzível. Se enfocarmos nossas análises

nos estudos desenvolvidos por Anna Maria Balogh, teremos a oportunidade de

verificar que:

O problema da tradução desemboca sempre no plano da expressão

como o elemento diferenciador mais óbvio do processo, tanto na

tradução interlingual quanto na intersemiótica. Naturalmente, o

plano da expressão está ligado ao do conteúdo e aos seus recortes

nos quais cada língua ou cada sistema de representação dividem ao

sentido.

Na transmutação, o mesmo conteúdo, ou parte dele, transita de um

texto a outro. Como, no entanto, se trata de dois textos estéticos, a

íntima coesão entre este conteúdo, que permite o trânsito

intertextual, e uma expressão diversa, que o atualiza, não pode

senão relativizar os diferentes textos de algum modo.41

Observamos, com isso, que parte dos textos originais utilizados nos

processos de transmutação serve como alicerce para o decorrer das tramas e a

estruturação das narrativas adaptadas, não se aplicando na íntegra, pois, antes de

qualquer influência, a obra cinematográfica deve preservar suas características e

autonomia fílmica. O conteúdo transposto deve ser visto em primeiro lugar como

uma unidade autônoma e única, devido à peculiaridade de cada suporte e às

propriedades inerentes a cada formato textual.

Em outras palavras, o conceituado roteirista americano Syd Field também já

teceu seus comentários a respeito das adaptações, um dos quais mencionaremos

a seguir:

Um romance é um romance, uma peça de teatro é uma peça de

teatro, um roteiro é um roteiro. Adaptar um livro para um roteiro

significa mudar um (o livro) para outro roteiro, e não superpor um ao 41 BALOGH, Anna Maria. Conjunções, Disjunções e Transmutações – Da Literatura ao Cinema e à TV. 2005, p. 51

Page 80: analise lisbela e o prisioneiro

80

outro. Não um romance filmado ou uma peça de teatro filmada. São

duas formas diferentes. Uma maçã e uma laranja.

Quando você adapta um romance, peça de teatro, artigo ou mesmo

uma canção para roteiro, você está trocando uma pela outra. Está

escrevendo um roteiro baseado em outro material.42

A dificuldade em manter elevados graus de fidelidade aos elementos da

obra de partida, principalmente no que tange aos conteúdos imagéticos e ao plano

de expressão, dá-se pelo fato de estarmos diante de diferentes “valores

significantes”, o que levou Jakobson a nomear o processo de adaptação como

“recriação”. Visto isso, torna-se pertinente a análise realizada por Anna Maria

Balogh em seu livro Conjunções, Disjunções e Transmutações – Da Literatura ao

Cinema e à TV:

Sobre o problema da “recriação”, implícita em qualquer tradução de

textos, sobretudo estéticos, muito já se escreveu. No ensaio “Da

transcrição: poética e semiótica da operação tradutora”, de Haroldo

de Campos, o autor fez uma síntese dos conhecimentos sobre o

tema e propôs uma série de termos instigantes para caracterizar a

tradução do texto regido pela função poética, tais como

“transcrição”, “reimaginação”, “transtextualização”, e o mais

surpreendente: “transluciferação”. 43

Com isso, verificamos que caso a obra adaptada não mantenha sua

autonomia fílmica, estamos diante de um produto extremamente fiel à obra de

partida, o que levou Balogh a classificar esse procedimento de literalização nas

adaptações como “tradução servil” ou “meramente ilustrativa”.

42 FIELD, Syd. Manual do Roteiro. 1982, p. 174 43 Op. Cit. p. 52

Page 81: analise lisbela e o prisioneiro

81

3.3 - OBRA DE SAÍDA X OBRA DE CHEGADA

Observa-se uma tendência inovadora nas produções midiáticas e nas

formas de consumir os produtos contemporâneos, em grande parte, devido aos

fatores comerciais e às novas tecnologias da comunicação.

No livro O Discurso Ficcional na TV, a autora Anna Maria Balogh dedica o

capítulo “O Pantagruel Eletrônico ou A Máquina Antropofágica” aos estudos

suscitados por essa nova realidade de acesso à cultura e a essa visão

diferenciadora de produção em série de obras anteriormente pouco conhecidas

por grande parte do público receptor.

Somos antropofágicos, sim, e nenhum veículo mostra isso de forma

mais contundente que a televisão, não apenas uma “máquina de

fazer doidos”, como diria Stanislaw Ponte Preta, mas uma

verdadeira “máquina antropofágica” que tudo devora e deglute.44

O consumo dos produtos culturais, bem como a produção de seus

conteúdos são vistos atualmente em ritmos extremamente acelerados, se

comparados às fases que antecederam a massificação dos meios audiovisuais, no

qual podemos destacar como duas tendências: a aceleração temporal e a

serialização dos conteúdos.

Podemos identificar como influenciador nesse processo de transformação a

ampla difusão dos equipamentos capazes de reproduzir as programações

televisivas, demonstrando, assim, a influência das tecnologias nas produções

ligadas à área da comunicação.

Se analisarmos por um outro ponto de vista, veremos que o cinema e a TV

revisitam produções clássicas, ou parte das grandes estruturas narrativas já

44 BALOGH, Anna Maria. O Discurso Ficcional na TV. 2002, p.25

Page 82: analise lisbela e o prisioneiro

82

consagradas da literatura e mitologia, para criar obras direcionadas às grandes

massas. Convém notar que a ampla difusão gerada pelo cinema e TV está

mesclando parte das produções culturais já desenvolvidas e causando fusão entre

cultura erudita (culta) e cultura popular, da mesma forma que é preciso constatar

que essa mesma indústria cultural tornou bem mais fluidas as fronteiras existentes

entre as artes, inaugurando o que pode ser chamado de trânsito de informações,

conforme observado por Lucia Santaella. Esse trânsito, na verdade, torna-se tão

fluido que não se interrompe dentro da esfera específica dos meios de massa,

mas avança pelas camadas culturais outrora chamadas de eruditas e populares.45

Diante de toda essa mescla, na qual grande parte do público receptor perde

o referencial de qual obra é a de partida e qual é a adaptada, seguiremos o

modelo de Mounin de obra de partida e obra de chegada, em que teremos

respectivamente como alvo de nossas análises o primeiro sendo o roteiro literário

e teatral de Osman Lins e o segundo, o filme dirigido por Guel Arraes.

3.4 - TRANSMUTAÇÃO EM LISBELA E O PRISIONEIRO

Segundo Balogh, na prática, se reconhece como adaptado o filme que

“conta a mesma história” do livro no qual se inspirou, ou seja, a existência de uma

mesma história é o que possibilita o “reconhecimento” da adaptação por parte do

destinatário.46

A partir da citação anterior, podemos observar que a passagem de um texto

literário para um texto fílmico ocorre em função da manutenção de alguns

elementos em ambos os textos transmitidos através de materialidades e de

seqüencialidades e ritmos diversos.

45 SANTAELLA, Lúcia. Mídia, Cultura e Comunicação. 2002, p.49 46 Op. Cit. p.55

Page 83: analise lisbela e o prisioneiro

83

A relação intertextual entre o roteiro original e a obra adaptada de Lisbela e

o Prisioneiro se define logo no início das primeiras cenas, nas quais se explicita tal

condição.

O vínculo entre o texto de partida e o de chegada é expresso nos

letreiros do filme, classificando-o como uma produção “baseada na peça de

Osman Lins”.

As estruturas narrativas fazem parte da forma do conteúdo do texto e

constituem o que Metz chamou de códigos não específicos ao falar de cinema.

Ora, é precisamente por constituírem o código comum, tanto do texto literário

quanto do texto fílmico e televisual, que propiciam a passagem de conteúdos do

literário ao fílmico e constituem o ponto incoativo ideal para um percurso

metalingüístico.47

Seguindo essa proposta e o consagrado modelo de análise das

estruturas sugerido por Greimas, verificaremos quais são as similaridades e

diferenças presentes nas obras, e conseqüentemente os pontos de conjunções e

disjunções entre os títulos que levam o nome de Lisbela e o Prisioneiro.

47 BALOGH, Anna Maria. Conjunções, Disjunções e Transmutações – Da Literatura ao Cinema e à TV. 2005, p. 54.

Page 84: analise lisbela e o prisioneiro

84

3.5 - ANÁLISE DAS ESTRUTURAS

Para realizarmos a análise das estruturas narrativas, utilizaremos a

proposta do percurso gerativo do sentido, tal como sugerido por Greimas:

1 - Gerativa, ou seja, deve estabelecer modelos que apreendam os

níveis de invariância crescente do sentido de tal forma que se

perceba que diferentes elementos do nível de superfície podem

significar a mesma coisa num nível mais profundo;

2 - Sintagmática, isto é, deve explicar não as unidades lexicais que

entram na feitura das frases, mas a produção e a interpretação do

discurso;

3 - Geral, ou seja, deve ter como postulado a unicidade do sentido,

que pode ser manifestado por diferentes planos de expressão.48

Cumprindo-se dessa maneira,o primeiro requisito da semiótica, que é a

análise do objeto em níveis de pertinência (BALOGH, Anna. 2005).

3.5.1 - O PERCURSO GERATIVO

Seguindo os modelos propostos pela semiótica de dividir em níveis de

pertinência, teremos como primeira unidade de análise o percurso gerativo dos

sentidos.

Podemos definir o percurso gerativo dos sentidos como uma sucessão de

patamares, na qual os diferentes formatos textuais (desde que referentes a uma

narrativa) vão se desenrolando e construindo os sentidos da obra. Os patamares,

conforme mencionado, podem seguir desde um processo mais simples até mesmo

um processo mais complexo, e conseqüentemente podem corresponder a

48 FIORIN, José Luiz. Elementos de Análise do Discurso. 2005, p. 15-16.

Page 85: analise lisbela e o prisioneiro

85

narrativas constituídas com menos elementos até mesmo outras com maior

número de manipulações e intensidade.

Outro ponto interessante de abordagem é a materialidade constituinte

desse percurso, no qual encontramos elementos dos mais abstratos até

elementos mais concretos para a construção do sentido, sendo o fluxo dessas

informações nos diferentes níveis do percurso que irá configurar o conteúdo e

desenvolvimento narrativo.

Ao mencionarmos os níveis ou patamares do percurso, estamos nos

referindo sucessivamente a três deles, sendo assim: o profundo ou fundamental, o

narrativo e o discursivo, conforme apresentado na figura a seguir.

Em cada um dos níveis apresentados, podemos observar a

existência de componentes sintáxicos e semânticos, e que, conforme abordado

por Fiorin, a sintaxe dos diferentes níveis do percurso gerativo é de ordem

relacional, ou seja, é um conjunto de regras que rege o encadeamento das formas

de conteúdo na sucessão do discurso.

Page 86: analise lisbela e o prisioneiro

86

A sintaxe dos diversos patamares do percurso tem também um caráter

conceptual, o que significa que cada combinatória de formas produz um

determinado sentido. A distinção entre sintaxe e semântica não decorre do fato de

que uma seja significativa e a outra não, mas de que a sintaxe é mais autônoma

do que a semântica, na medida em que uma mesma relação sintática pode

receber uma variedade imensa de investimentos semânticos.49

As distinções entre tais elementos, sendo eles sintáxicos e semânticos,

ficarão mais claras a partir do momento em que ingressarmos nossas análises nos

níveis: fundamental, narrativo e discursivo.

3.5.2 - NÍVEL FUNDAMENTAL EM LISBELA E O PRISIONEIRO

A semântica do nível fundamental abriga as categorias semânticas que

estão na base da construção de um texto. Uma categoria semântica fundamenta-

se numa diferença, numa oposição. No entanto, para que dois termos possam ser

apreendidos conjuntamente é preciso que tenha algo em comum – e é sobre esse

traço comum que se estabelece uma diferença.

Podemos verificar que, nesse patamar, o nível semântico será apresentado

em caráter de dualidade aos elementos que constituem o programa narrativo, ou

seja, será apresentado sempre em situação de diferença ou numa oposição. O

termo oposto de uma categoria semântica mantém entre si uma relação de

contrariedade; são contrários os termos que estão em relação de pressuposição

recíproca.50

Sendo assim, podemos constatar que em ambas as obras, tanto no texto de

Osman Lins quanto na obra fílmica de Guel Arraes, a semântica do nível

fundamental também é apresentada através de termos contraditórios, ou seja,

49 FIORIN, José Luiz. Elementos de Análise do Discurso. 2005, p. 21. 50 Id. Ibidem.

Page 87: analise lisbela e o prisioneiro

87

apresenta -se na forma de Leléu ganhar o amor de Lisbela versus Leléu perder o

amor de Lisbela. Também foram observadas oposições semânticas nas formas

de: liberdade x prisão e felicidade x infelicidade.

Seguindo a proposta de Fiorin para definição da qualificação semântica,

encontramos:

Cada um dos elementos da categoria semântica de base de um

texto recebe a qualificação semântica /euforia/ versus /disforia/.

O termo ao qual foi aplicada a marca /euforia/ é considerado um

valor positivo; aquele a que foi dada a qualificação /disforia/ é visto

como um valor negativo.51

Sendo assim, observamos que nos momentos em que Leléu está

vivenciando a ausência do amor de Lisbela, ou no processo em que caminha para

a concretização deste feito, ele encontra-se em situação disfórica.

Analisando o trecho extraído da obra literária/teatral, podemos verificar tal

situação.

LISBELA

Leléu, vou pedir para meu pai.

LELÉU

O quê?

LISBELA

Para falar com o juiz. O juiz pode mandar você para o Recife, para a detenção.

LELÉU

Não.

LISBELA

Lá você ficará seguro.

51 Op. Cit. p.23

Page 88: analise lisbela e o prisioneiro

88

LELÉU

Não quero.

LISBELA

Deixe eu falar com meu pai. Ele detesta-o, gostará de ver-se livre de você.

LELÉU

Quero ficar aqui, dê no que der.

LISBELA

Por que isso?

LELÉU

Não quero ficar longe da senhora. A senhora é minha paz, dona Lisbela. Tudo isso

que a senhora me diz não vale nada. O que vale é que a senhora está aqui.

LISBELA

Você sabe que eu estou para casar. Não deve falar desse modo.

LELÉU

A senhora não é noiva no seu coração. Só é noiva na mão e na palavra.

LISBELA

Pois é, eu dei minha palavra e minha mão.

A presença do estado de disforia também é observada no roteiro

cinematográfico de Guel Arraes, conforme apresentaremos a seguir:

LELÉU

E assim tem sido a minha vida, sempre me perdendo atrás do que é bonito.

LISBELA

E vai terminar trancado numa prisão.

LELÉU

Hoje eu tô vendo o sol quadrado. Mas a vida é minha mãe. Ainda vou viver junto

da senhora.

LISBELA

A gente nunca vai se encontrar. Você está preso na cadeia e eu no casamento.

LELÉU

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89

A senhora não é noiva no seu coração. Só é noiva na mão e na palavra.

LISBELA

Pois é, eu dei minha palavra e minha mão.

LELÉU

Eu vou arrumar um modo de fugir daqui e é daqui há pouco. A senhora vai saber

logo, que a coisa vai dar uma complicação doida.

LISBELA

Mas eu não posso fugir do meu casamento.

LELÉU

A senhora não é noiva no seu coração. Só é noiva na mão e na palavra.

LISBELA

Pois é, eu dei minha palavra e minha mão. Você vai ter que me esquecer Leléu.

Observados os problemas e impedimentos para conquistar o amor de

Lisbela, verificamos conseqüentemente o momento de disforia vivido por Leléu, o

qual terá essa situação revertida a partir do momento em que o personagem

estiver em posse de seu amor. A conquista do amor o leva para uma nova

qualificação semântica e, conseqüentemente, à alteração do estado de disforia

para uma situação de euforia.

Apresentados os elementos semânticos do nível fundamental, analisaremos

agora a sintática deste mesmo nível, utilizando o modelo sugerido por Fiorin:

A sintaxe do nível fundamental abrange duas operações: a negação

e a asserção. Na sucessividade de um texto, ocorrem essas duas

operações, o que significa que, dada uma categoria tal que “a”

versus “b”, podem aparecer as seguintes relações:

A) afirmação de “a”, negação de “a”, afirmação de “b”;

B) afirmação de “b”, negação de “b”, afirmação de “a”.52

52 Op. Cit. p.23

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90

Sendo assim, teremos em ambas as versões de Lisbela e o Prisioneiro o

seguinte esquema:

Semântica do Nível Fundamental

Euforia Disforia

Ganhar o amor de Lisbela

Versus

Perder o amor de Lisbela

Oposição Semântica

Ganho versus Perda

Sintática do Nível Fundamental

Termo A – Ganhar o amor de Lisbela

Termo B – Perder o amor de Lisbela

A

Afirmação de A Negação de A Afirmação de B

Ganhar o amor Não ganhar o amor Perder o amor

B

Afirmação de B Negação de B Afirmação de A

Perder o amor Não perder o amor Ganhar o amor

Nessa análise, tivemos que tomar o cuidado de não desviar o foco de nosso

estudo, em função das divergências na oposição semântica do termo “amor”, pois,

caso trabalhássemos a contrariedade de “amor versus ódio”, estaríamos

cometendo um grande equívoco em nossas análises. Definimos, dessa maneira,

que a forma mais apropriada de trabalharmos a contraditoriedade do nível

Page 91: analise lisbela e o prisioneiro

91

fundamental foi opor o “ganho do amor” e a “perda do amor de Lisbela”, mantendo

assim a fidelidade dos conteúdos.

3.5.3 - O NÍVEL NARRATIVO

Ao estudarmos o nível narrativo, devemos ter consciência de que nesse

patamar de análise podemos encontrar desde narrativas mínimas, até mesmo

outras extremamente complexas. Para estas serem consideradas como narrativas

mínimas, deverão corresponder sucessivamente a um estado inicial, uma

transformação e um estado final, conforme apontado por Fiorin.

Na sintaxe narrativa, há dois tipos de enunciados elementares:

A - Enunciados de estado: são os que estabelecem uma relação de

junção (disjunção ou conjunção) entre um sujeito e um objeto;

B- Enunciados de fazer: são os que mostram as transformações, os

que correspondem à passagem de um enunciado de estado a

outro.53

Visto isso, podemos observar que, na obra de Lisbela e o Prisioneiro

(literária/teatral e fílmica), estamos diante de uma narrativa complexa, na qual

diversas mudanças e transformações ocorrem no decorrer da trama, partindo de

um estado inicial a transformar e resultando, conseqüentemente, em um estado

final de conteúdo transformado.

Seguindo a sintaxe narrativa e a proposta de enunciado de estado,

verificamos que, em ambas as obras, o programa narrativo principal se

desenvolve entre as relações dos personagens Leléu e Lisbela, e, conforme já

mencionado em nossos estudos do nível fundamental, é norteado pela conquista

do amor, ou seja, ganhar o amor versus perder o amor.

53 Op. Cit. p. 28.

Page 92: analise lisbela e o prisioneiro

92

Sendo assim, observamos que o enunciado de estado inicial sugere uma

disjunção entre sujeito e objeto (Leléu e Lisbela), visto que os dois iniciam a

história separadamente. A partir do momento em que a narrativa vai se

desenvolvendo, surge o enunciado de fazer, no qual o personagem Leléu investe

na conquista do futuro amor, o que acaba por resultar em um novo enunciado de

estado, ou seja, a conjunção com o objeto de desejo – conquista do amor.

Conforme analisado por Anna Maria Balogh, o esquema de Everaert e

Desmedt, retomando o Group d’Entrevernes, proporciona um bom instrumental de

análise às estruturas e transformações do nível narrativo, servindo, assim, como

referência para os estudos que apresentaremos a seguir.

Esquema de Everaert e Desmedt:

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93

As quatro fases apontadas formam a seqüência narrativa canônica

que, unida a um sujeito e a um objeto, constitui o Programa

Narrativo (PN).

(BALOGH, 2005:58-59)

Seguindo este modelo, apresentamos o Programa Narrativo da obra

analisada, levando em consideração que um Programa Narrativo deve ser

constituído a partir da relação de um sujeito com um objeto, o qual

conseqüentemente acarretará um Programa Narrativo Contrário, ou seja, um

Antiprograma Narrativo, constituído este último por um sujeito também contrário

(Anti-sujeito), que luta pelo mesmo objeto valor, sendo o PN constituído das

etapas realizadas para a obtenção (ou não) desse objeto.

Obra Literária/Teatral

PN 1 PRINCIPAL (Amor) PN 2 (Vingança)

Sujeito – Leléu Sujeito – Leléu

Anti-sujeito – Douglas Anti-sujeito – Frederico

Objeto Valor – Lisbela Objeto Valor – Vingança

Obra Fílmica

PN 1 PRINCIPAL (Amor) PN 2 (Traição) PN 3 (Amor)

Sujeito – Leléu Sujeito – Leléu Sujeito – Lisbela

Anti-sujeito – Douglas Anti-sujeito – Frederico Anti-sujeito – Inaura

Objeto Valor – Lisbela Objeto Valor – Vingança Objeto Valor – Leléu

Para efetuarmos nossos estudos, consideraremos apenas o Programa

Narrativo Principal, pois é esse que determinará as transformações da obra e

também pelo motivo de ser o tema central dos textos analisados. Excluiremos de

nossas análises os Programas Narrativos 2 e 3, por considerarmos o PN 2 como

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94

uma narrativa paralela no decorrer da trama e o PN 3 por se tratar de um

acréscimo existente na obra fílmica.

Considerando que Lisbela e o Prisioneiro constitui uma narrativa complexa,

na qual utilizaremos como referência a seqüência narrativa canônica do modelo de

Entrevernes (Manipulação, Competência, Performance e Sanção), e levando em

conta que a estratégia narrativa do texto se faz a partir do PN, encontraremos a

seguinte configuração de ambos os textos:54

3.5.3.1 - MANIPULAÇÃO

Segundo Syd Field, em seu livro Manual do Roteiro55, sempre que um

personagem começar a ser construído é indispensável para a sua caracterização

pensá-lo da seguinte forma: “O que o seu personagem quer? Qual sua

necessidade? O que o impulsiona para a resolução de sua história?”.

É imperativo que o caminho percorrido por um personagem discorra em

função de uma necessidade ou de um querer, pois é através dessa necessidade

que ele será impulsionado a agir, determinando conseqüentemente o seu percurso

narrativo. Quanto mais complexo for o desejo, maiores serão as complicações em

atingir o objeto valor, mais difíceis serão os caminhos a serem percorridos, maior

será a riqueza do personagem.

Todo drama é conflito. Se você conhece a necessidade do seu

personagem, pode criar obstáculos que preencham essa

necessidade. Como ele vence esses obstáculos é a sua história.

Conflito, luta, vencer obstáculos é o ingrediente primário de todo

drama. Da comédia também. É responsabilidade do escritor gerar

54 BALOGH, Anna Maria. Conjunções, Disjunções e Transmutações – Da Literatura ao Cinema e à TV. 2005, p. 70. 55 Op. Cit. p. 16.

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95

conflito suficiente para manter o público, ou o leitor, interessado. A

história tem sempre que mover-se para adiante, na direção de sua

resolução.56

Dessa maneira, podemos identificar uma ponte extremamente estreita entre

a teoria narrativa e o exercício dos roteiristas na construção dos personagens,

pois diante da teoria narrativa, para que um personagem inicie uma trajetória e

seja levado à ação, é necessário que ele tenha um desejo (querer) ou o dever de

fazer ou obter alguma coisa. Esse desejo ou dever pode nascer dele mesmo

(automanipulação) ou pode ser levado a ele por outro personagem (destinador da

manipulação).57

Manipulação PN Principal

Nos textos analisados (obra literária e fílmica), vemos que a manipulação é

exercida através da automanipulação de Leléu, o qual é levado pelo desejo de

conquistar o amor de Lisbela, conforme observaremos nos trechos extraídos do

roteiro literário/teatral e cinematográfico:

Obra Literária/Teatral58

LISBELA

Então, lhe prenderam de novo.

LELÉU

Me prenderam, dona, mas eu acho que valeu a pena. Só poder ver a senhora

outra vez.

LELÉU

...fiquei triste quando não lhe vi naquele dia. A senhora, no circo.

Tinha me batido tantas palmas!

LISBELA

56 FIELD. Op. Cit. p 16 57 BALOGH, Anna Maria. O Discurso Ficcional na TV. 2002, p. 63. 58 O trecho da obra literária foi extraído do livro: LINS, Osman. Lisbela e o Prisioneiro, p. 19-20.

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96

Como é que você pode se lembrar de mim? Todo mundo bateu palmas.

LELÉU

Eu só via as da senhora, moça. Num domingo de tarde. A senhora estava na

segunda fila de cadeiras, de blusa branca e uma fita no cabelo. Eu vi.

Obra Fílmica59

LELÉU

O senhor conhece a filha do delegado?

CITONHO

Dona Lisbela?

LELÉU

Eu sabia que aquela tinha “bela” no nome.

CITONHO

Não se anime não que ali o senhor não apanha nada.

LELÉU

Eu queria que o senhor levasse um recado pra ela.

CITONHO

Isso eu não posso fazer. O delegado é uma fera. E a menina é de família, ainda

por cima noiva.

LELÉU

Com um noivo daquele é até castigo. Deus dá rapadura a banguelo...

CITONHO

E o sujeitinho é metido a carioca. O cabra nasceu em Cabrobró mas só porque

passou um mês no Rio de Janeiro só fala cantando. Mas é rico e o tenente faz

gosto. Não enfie seu carro ali não que você atola.

LELÉU

Tem mais jeito não, já estou enganchado. Desde a hora que olhei pra ela

brilhando mais que as luzes do parque.

59 O trecho citado da obra fílmica foi extraído do roteiro fornecido pela TV Globo.

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97

Em ambas as situações apresentadas, verificamos que na trajetória de

Leléu existe a automanipulação em função de um querer (querer o amor de

Lisbela), e o personagem é levado pelo desejo de conquistar seu objeto valor.

Também podemos identificar que, seguindo as técnicas de roteiro e teoria

narrativa, os ingredientes de dificuldade na obtenção do objeto valor (leia-se,

nesse momento, a dificuldade de Leléu em conquistar Lisbela) são amplamente

explorados, pois os obstáculos e impedimentos impostos no decorrer das obras

aparecem e desdobram-se à medida que a trama vai se desenvolvendo.

3.5.3.2 - COMPETÊNCIA

Não basta, no entanto, que o sujeito tenha um querer ou um dever de

executar, uma ação para levar a cabo, um objetivo, um programa narrativo; é

necessário também que ele tenha aptidões, a competência para levar adiante o

que quer.60

Em muitas obras, presenciamos o desenvolvimento da competência do

sujeito à medida que o personagem vai aprimorando seus conhecimentos e

técnicas para uma finalidade específica. Podemos verificar isso muito nitidamente

em filmes de ação, no qual o guerreiro ou lutador vai melhorando seu

desempenho em função das necessidades de lutar, até que em um determinado

momento do filme o personagem é apresentado com amplos conhecimentos e

habilidades, ou seja, já se encontra preparado para a grande batalha que terá de

enfrentar. Nas obras que apresentam esse modelo de aquisição de uma

modalidade de competência, que o sujeito ainda não tenha, e nas quais ele

desenvolva essa competência durante um período da narrativa, estamos diante de

um Programa Narrativo de Uso.

60 BALOGH, Anna Maria. O Discurso Ficcional na TV. 2002, p. 63.

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98

O Programa Narrativo de Uso caracteriza-se pela função da aquisição da

competência do personagem no decorrer da trama, ou seja, o espectador da obra

é envolvido e praticamente participa do processo de preparo do personagem, o

qual, quase sempre, lhe contempla ao final da narrativa com uma apresentação

digna da superação que resultou no nível da competência desejado e,

conseqüentemente, a obtenção de seu objeto valor.

Em Lisbela e o Prisioneiro, essa aquisição de conhecimento ou habilidade

já se mostra estabelecida previamente, ou seja, o personagem Leléu já inicia seu

percurso narrativo possuído de suas competências, que podemos classificar como

dignas de um conquistador e malandro nato. Para destacar essas características,

veremos a maneira como a competência do personagem é apresentada nas duas

obras:

Apresentação da Competência na Obra Literária/Teatral

(Apresentação de Leléu na obra)

CITONHO

Tenente! Leléu é um rapaz tão bom!

TEN. GUEDES

É bom mas por causa dele nós dois estamos sendo processados. Ah, juiz

miserável!

CITONHO

O senhor disse por causa dele? Menas a verdade. Por causa, com licença da

palavra, de V. Sª., que foi o responsável por toda a confusão.

TEN. GUEDES

Citonho, olhe essa falta de prudência. Parece que está desregulado! Além de me

faltar com respeito, querendo defender aquele cafajeste.

CITONHO

Nada disso, Tenente. Continuo dizendo que é um rapaz muito bom.

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99

TEN. GUEDES

Bom não sei. Mas com a folha de serviço que ele tem, um casamento no civil,

outro com padre, outro no anabatista, ou na igreja brasileira, outro não sei mais no

quê, fora os defloramentos, pelo menos deve ser gostoso. (Riem, menos Testa-

Seca)

TESTA-SECA

Oito. Oito donzelas ferradas, por esse Brasil velho de guerra. Ele não contou, mas

a gente soube. Oito, e eu nunca tive uma. Mundo mal dividido.

Apresentação da Competência na Obra Fílmica

Cena 7 do filme (segunda cena de Leléu na obra)

EDITH – uma das mulheres da feira, já vem pagando pra Leléu/Mané Gostoso que

está ali pelo seu ponto.

EDITH

Você tem diploma de salafrário, não é?

LELÉU

Tenho mas é falsificado.

EDITH

Gaiato. (Devolvendo o vidro do remédio) Sua garrafada não serviu pra nada, viu?

Dei o frasco todo e meu marido continua lá derrubado.

LELÉU/MANÉ GOSTOSO

É que pra marido tem que ser mais concentrado. E o seu remédio eu misturei com

água pra ter o gosto de lhe ver de novo.

EDITH

E como é que fica meu prejuízo?

LELÉU/MANÉ GOSTOSO (Ele joga o vidro numa caixa vazia)

A senhora quer o seu dinheiro de volta ou a satisfação garantida?

EDITH

Deixe de intimidade, e eu lhe conheço?

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100

LELÉU/MANÉ GOSTOSO

Manoel Felício, mais conhecido como Mané Gostoso. E eu não ganhei esse

apelido de graça...

EDITH

Por que é que todo propagandista é mentiroso?

LELÉU/MANÉ GOSTOSO

Eu não. Prometo lhe indenizar pelo dinheiro gasto, pelo tempo desperdiçado e

pelas esperanças perdidas.

Ela vai cedendo.

EDITH

Se depender do seu xarope...

LELÉU/MANÉ GOSTOSO

E eu lá preciso disso. O elixir melhor que tem é a senhora, dona...

Verificamos, com isso, que a apresentação da competência de Leléu é

descrita logo em sua apresentação em ambas as obras analisadas, ficando

subentendido que o personagem já inicia seu percurso dotado de suas habilidades

muito bem definidas, sem que o percurso de aquisição dessas habilidades precise

ser descrito durante a narrativa.

3.5.3.3 - PERFORMANCE

Podemos definir a performance como a fase em que será realizada a

transformação central da narrativa, ou seja, é a ação transformadora, na qual o

sujeito , já passado pela manipulação ou automanipulação e já com a competência

adquirida, parte para a execução da ação que o levará ao estado conjuntivo ou

disjuntivo com seu objeto valor.

Na fase da performance, a seqüência narrativa sofre uma “quebra” a partir

da ação transformadora, resultando em uma nova seqüência narrativa. Field, em

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101

seu livro Manual do Roteiro, nomeia a performance como ponto de virada ou plot

point, e define esse conceito como o ponto incoativo para a seqüência da trama,

na qual as ações transformadoras/plot points servirão para mover cuidadosamente

a história adiante.

Sendo assim, vemos que a performance existente nas duas obras de

Lisbela e o Prisioneiro é caracterizada nas cenas em que Leléu utiliza sua lábia de

conquistador sobre Lisbela, fazendo com que a garota se apaixone por ele.

Na obra literária, a performance fica subentendida nos encontros

subseqüentes dos personagens, nos quais as cenas vão demonstrando, de forma

gradativa, um aumento de afinidade entre esses personagens. Porém, na obra

fílmica, essa transformação é caracterizada por uma das cenas mais belas da

obra, conforme apresentaremos a seguir:

Cena 44 – Sala de cinema

Cena musical bem romântica na tela do cinema. Lisbela na platéia assiste

encantada. Sobre essas imagens.

LELÉU (OFF)

Ô coisa linda. E eu fico pensando que nasci pra isso: pra viver uma coisa bem

grande como essa. E eu sei que ela também sentiu: conheço aquele sangue,

aquele jeito de olhar. O negócio é eu conseguir falar com ela de novo e tudo vai

dar certo. Chego de mansinho e me apresento...

Agora Leléu senta ao lado de Lisbela e continua sua fala.

LELÉU

Leléu Antônio da Anunciação, seu criado.

LISBELA

Eu lembro de você lá do parque.

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102

LELÉU

E eu nunca que vou me esquecer da senhora de vestido azul e com essa fitinha

azul no cabelo.

Entrega a fita pra ela.

LISBELA

Obrigada. Muito prazer, Lisbela.

LELÉU

Agora a senhora já me conhece e eu já conheço a senhora. Mas a gente ainda

não se conhece junto. Quem sabe vamos dar uma volta pra ficar se conhecendo?

LISBELA

Não posso. Eu estou esperando meu noivo para ver o filme.

LELÉU

A senhora tem vontade de ser a rtista de cinema?

LISBELA

Eu não sou nem americana para ser artista.

LELÉU

Oxe! E a senhora nunca ouviu falar em artista nacional, não, é?

LISBELA

Ah, mas aqui no Brasil ninguém tem coragem de fazer as estripolias todas que

eles fazem.

LELÉU

No cinema é fácil. É cheio de truque. Quero ver é esses cabras terem coragem de

pegar uma briga de faca, enfrentar um boi brabo, topar com uma onça no mato ou

botar polícia pra correr.

LISBELA

Mas história de amor bonita mesmo é no cinema.

LELÉU

Pois aposto que a nossa pode ser bem melhor.

LISBELA

Deixa de ser besta. Eu sou noiva. Não lhe dei essa ousadia.

LELÉU

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A senhora é doce como as chuvas de caju que caem de repente no calor mais

duro de novembro. Linda como o vento num pasto bem grande. Dona Lisbela, a

senhora para mim é a bandeira brasileira. Uma bandeira bem grande. Leléu

Antônio da Anunciação é o mastro para senhora.

E eles se beijam.

Utilizando o conceito de performance/ação e a abordagem de Field com

pontos de virada/plot point, veremos que a seqüência narrativa é dividida em três

atos, conforme sugere a figura a seguir:

Sendo assim, identificamos que a performance que nos direcionará à

resolução da obra consiste na ação transformadora de Lisbela desistir de seu

casamento e entregar-se ao amor de Leléu, conforme nos mostra os seguintes

trechos:

Performance de direcionamento à resolução da obra:

Obra Literária/Teatral

DR. NOÊMIO

Não é nada disso, Lisbelinha. É minha é esposa e devia estar em casa. Por que

você foi?

LISBELA

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Por que eu tinha de ir. Não podia não ir. Fui com glória! Eu fui feito um andador,

na frente da procissão.

DR. NOÊMIO

Você está variando. Isso é uma profanação.

LISBELA

Fui com banda de música. Quando vi aquele passarinho na gaiola... Pensei que

minha vida, se eu ficasse, ia ser assim, vida de triste, de quem desejou, de quem

quis de corpo e alma e, mesmo assim, não fez. Aí, eu fui. Fui e vou toda vez que

ele me chame. Não precisa nem que ele me fale. Nem que me olhe. Basta estalar

os dedos. Vou feito cão. Mas coroada, vocês me compreendem? Feito uma

rainha.

Obra fílmica

TENENTE

Como é que você teve coragem de renegar seu casamento?

LISBELA

Eu fui por que tinha que ir. Não podia ficar. Pensei que minha vida inteira, se eu

ficasse, ia ser assim, vida de tristeza, de quem desejou, de quem quis de corpo e

alma, e mesmo assim não fez. Aí eu fui, vocês me entendem? Fui e vou toda vez

que ele me chame. Vou feito um cão. Mas coroada, como uma rainha! Vou feito

um andador na frente da procissão.

3.5.3.4 - SANÇÃO NA OBRA LISBELA E O PRISIONEIRO

Na última fase da narrativa, a sanção, é que compactuarão todos os

procedimentos anteriores do nível narrativo, em que verificamos as etapas

percorridas pelos personagens e sua respectiva resolução.

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105

A última fase é a sanção. Nela ocorre a constatação de que a

performance se realizou e, por conseguinte, o reconhecimento do

sujeito que operou a transformação.61

Sendo assim, verificamos que a partir do nível fundamental, o qual nos

proporcionou as oposições semânticas de Leléu ganhar o amor de Lisbela versus

perder o amor de Lisbela, e perante sua automanipulação, que o levou a investir

na conquista pela amada (performance), Leléu obtém êxito de acordo com seus

objetivos, atingindo conseqüentemente o seu nível glorificante.

Em ambas as obras, a sanção é apresentada com Leléu e Lisbela deixando

a cidade de Vitória de Santo Antão, ou seja, a conquista do amor, e

conseqüentemente a conjunção dos personagens. A resolução da narrativa nos

oferece um novo enunciado de estado, em que a situação disfórica apresentada

durante a obra é finalizada pelo estado de euforia entre sujeito e objeto valor.

3.5.4 - O NÍVEL DISCURSIVO

Se partirmos nossas análises levando em consideração que a estrutura

narrativa conforme apresentada norteia a base de uma história, ou seja, oferece-

nos instrumentos capazes de balizar as ações, transformações e funções dos

personagens (actantes) no decorrer de um tempo, gerando conseqüentemente

conjunções e disjunções entre sujeito e objeto, veremos que no nível discursivo é

o momento pelo qual as características dos elementos narrativos tomam corpo e

se materializam para a efetiva construção dos sentidos.

Segundo Balogh no livro O Discurso Ficcional na TV:

61 FIORIN, Luiz. Elementos de Análise do Discurso. 2005, p.31

Page 106: analise lisbela e o prisioneiro

106

O nível discursivo opera sobre os mesmos elementos que a análise

narrativa, porém, retoma aspectos que naquela foram deixados de

lado tais como a cobertura figurativa de conteúdos narrativos, os

temas, mecanismos de delegação do saber, modos de organização

dos atores, da espacialidade e da temporalidade etc.62

Embora muitos dos elementos da linguagem cinematográfica que agem na

construção do discurso fílmico já tenham sido abordados no primeiro e segundo

capítulos desta dissertação, enfocaremos, neste momento, análises relativas às

características discursivas referentes a cada suporte, ou seja, da obra original e da

obra transmutada, enfatizando os pontos conjuntivos e disjuntivos das obras em

questão.

Para isso, desenvolveremos nossos estudos com o foco direcionado ao

tema, temporalização, espacialização e actorialização referente a Lisbela e o

Prisioneiro.

3.5.4.1 - TEMA

As formas narrativas abstratas, como um sujeito em conjunção com

o objeto do seu desejo, são revestidos de temas que as tornam

concretas. Assim, a conjunção com o objeto poderá ser a riqueza

que poderá ser traduzida como roubo de jóias, recebimento de uma

herança, jogo bem-sucedido na bolsa de valores, acerto na quina da

loto etc.63

Conforme apresentado no estudo das estruturas narrativas, toda trama é

alicerçada em função de uma oposição, ou seja, através de termos antagônicos

que se relacionam, gerando conseqüentemente o desenvolvimento da obra. No 62 Op. Cit. p. 69 63 BALOGH, Anna Maria. O Discurso Ficcional na TV. 2002, p.80

Page 107: analise lisbela e o prisioneiro

107

nível narrativo, a situação de oposição dos termos que constituem Lisbela e o

Prisioneiro ganha um investimento semântico, sendo ele: ganho do amor versus

perda do amor, direcionando-nos conseqüentemente ao tema das obras

estudadas. Tanto a obra literária/teatral quanto a obra fílmica possuem a mesma

temática, preservando-se as características e o gênero melodramático do título em

questão.

Para Greimas, o autor considera as forças temáticas como:

- Amor (sexual, familiar, manifesto em amizade).

- Fanatismo (religioso ou político).

- Desejo de riquezas (luxo, prazer, beleza, honra, autoridade,

prazeres, orgulho).

- Inveja, ciúme.

- Ódio, desejo de vingança.

- Curiosidade (concreta, vital ou metafísica).

- Desejo de um trabalho ou vocação (religiosa, científica, artística,

de viajar, viver aventuras, de homem de negócios, da vida militar ou

política).

- Desejo de repouso, paz, asilo, liberdade. 64

As definições do autor, conforme mencionado, abarcam quase na íntegra

as possibilidades temáticas discursivas, pois, em praticamente todas as

produções, sejam elas literárias ou fílmicas, acabam sendo enquadradas dentro

dessa proposta.

Se utilizarmos como referência o PN Principal de Lisbela e o Prisioneiro,

veremos que a temática da obra define-se, de acordo com Greimas, pela busca do

amor, ou seja, na conquista de Leléu pelo amor de Lisbela. Porém, se tomarmos

como referência o outro programa narrativo existente nas obras, sendo ele o PN2,

no qual Frederico Evandro vai à caça de Leléu em busca da recuperação da honra

64 GREIMAS, A. Julien. Sémantique Structurale. 1966, p. 181

Page 108: analise lisbela e o prisioneiro

108

e da vingança, veremos que este segundo programa narrativo contextualiza-se no

padrão do ódio e desejo de vingança, conforme sugerido pelo autor.

3.5.4.2 - TEMPORALIZAÇÃO

A relação do tempo, espaço e actorialização das obras que possuem o

título de Lisbela e o Prisioneiro é o elemento que possui maior diferencial quando

comparadas às obras de saída e de chegada. Ao analisarmos a obra

literária/teatral de Osman Lins, identificamos que todo o decorrer da trama se

passa especificamente no intervalo de dois dias, sendo apenas mencionados fatos

isolados que fujam dessa escala temporal, o que nos revela um conteúdo bem

enxuto se comparado à produção audiovisual.

Ao analisarmos a obra transmutada, verificamos que os fatos isolados da

obra de saída ganham representatividade na construção do filme, sendo

incorporados como elementos constituintes da ordem cronológica do discurso

fílmico. As perambulações de Leléu pelas cidades nordestinas, em que o

personagem vagueia apresentando seus números de artista mambembe, ou de

vendedor de produtos enganosos, são amplamente exploradas no cinema,

enquanto no texto verbal são mencionados apenas como acontecimentos

passados, relatados pelos personagens.

Sobre essa característica, a autora Anna Maria Balogh destaca o seguinte:

No tocante a temporalidade, o discurso audiovisual tem recursos

muito mais restritos do que a literatura. A literatura, por servir-se da

língua, traz nos tempos verbais nuanças temporais muito precisas.

O cinema só dispõe das três temporalidades básicas: presente,

passado e futuro.65

65 BALOGH, Anna Maria. O Discurso Ficcional na TV. 2002, p.74

Page 109: analise lisbela e o prisioneiro

109

Outro ponto disjuntivo na temporalidade existente entre a obra de saída e a

obra de chegada diz respeito à seqüência que constitui a narrativa, pois

observamos uma ordem temporal mais concisa e linear no texto literário/teatral,

sendo essa seqüência quebrada e explorada de formas alternadas na produção

cinematográfica, o que demonstra que, embora a narrativa seja a mesma, no nível

discursivo as ordens e formas de expor tais conteúdos são relativizadas em

função das propriedades e especificidades pertinentes a cada suporte.

Na obra fílmica, há uma predominante fragmentação do conteúdo, que

retomará sua consistência a partir das técnicas de montagem capazes de unir os

pontos e de dar sentido às partes de maneira cronológica.

É difícil traçarmos precisamente o motivo dessa fragmentação de conteúdo,

porém podemos atribuir, de maneira hipotética, que parte dessa característica

fractal na produção audiovisual deve-se ao fato de a obra fílmica de Lisbela e o

Prisioneiro ser produzida em parceria com uma empresa televisual (Globo Filmes)

e dirigida por um diretor atuante nesse mesmo meio de comunicação, no qual a

fragmentação de conteúdo acaba se tornando uma constante. O filme possui uma

característica clara, de desmembramento do conteúdo em blocos, capítulos e

ganchos.

O conteúdo do filme pode ser exibido na íntegra, em capítulos ou como

microssérie dentro da grade de exibição televisual, sem que a sua interrupção

interfira na obra. Há uma espécie de fragmentação dos blocos e dos capítulos,

intencionalmente construídos para favorecer sua exploração comercial

independente do cinema.

Também pudemos observar, ao analisar o roteiro cinematográfico, que a

estrutura e ordem inicial sugerida pelo mesmo, foi alterada no processo de edição

e montagem do filme, sendo que as seqüências com características mais lineares

Page 110: analise lisbela e o prisioneiro

110

acabaram descartadas no produto finalizado, assim como algumas cenas

excluídas da obra.

3.5.4.3 - ESPACIALIZAÇÃO

Na espacialização ocorre uma das maiores disjunções entre as obras que

levam o título de Lisbela e o Prisioneiro. No texto literário/teatral de Osman Lins,

todo o discurso da trama se passa no interior da cadeia de Vitória de Santo Antão

– PE, sendo breve uma única passagem que ocorre na calçada da delegacia, ou

seja, os ambientes explorados na obra de saída correspondem totalmente a

espaços internos e ambientes fechados.

As ações que discorrem em outros cenários, que não sejam os

mencionados no parágrafo anterior, são subentendidos pelo receptor da obra,

através da narração dos personagens que se encontram dentro da cadeia,

podendo citar como fato representativo desse procedimento o momento em que

Frederico Evandro diz que viajará até Boa Vista para resolver assuntos de família,

ou pelo próprio personagem Leléu contando aos carcereiros e companheiros de

cela sobre suas viagens e aventuras pelo interior nordestino. Em ambas as

situações descritas, os acontecimentos são narrados brevemente pelos

personagens.

Na obra fílmica, a viagem de Frederico Evandro à Boa Vista e as

experiências e aventuras de Leléu recebem revestimentos imagéticos capazes de

suprir os diálogos explicativos da obra textual, resultando em longas cenas que

favorecerão a expressividade, sentido e cronologia da produção audiovisual.

Um ponto altamente contrastante entre a obra textual e a audiovisual diz

respeito à maneira como o espaço de Leléu é representado nas obras. No texto de

Osman Lins, o personagem aparece única e exclusivamente dentro da cadeia –

Page 111: analise lisbela e o prisioneiro

111

esse é o ambiente explorado na obra. Porém, na produção cinematográfica, Leléu

é retratado seguidamente em planos e cenários abertos, demonstrando, dessa

maneira, o estilo de vida livre e aventureiro do moço – é dada maior ênfase à

figura da liberdade do respectivo personagem.

Ao dividirmos a obra audiovisual em uma escala de tempo, verificamos que

em apenas 11% do tempo do filme o personagem passa trancafiado na cadeia de

Vitória de Santo Antão, o que acaba consolidando a maior divergência existente

entre a obra de saída e a obra de chegada, visto que o texto original se passa

integralmente nos ambientes fechados da delegacia.

Partindo para uma análise referente ao espaço da personagem Lisbela,

vemos que no decorrer da obra original é impossível disso ser avaliado, pois, na

obra de Osman Lins, a moça possui um papel secundário no decorrer da trama.

Embora Lisbela seja o objeto valor da narrativa, cedendo até mesmo seu nome ao

título da obra, suas aparições são extremamente limitadas, diferenciando mais

uma vez a obra transmutada da obra original, já que, no filme, a moça é retratada

com maior peso melodramático, tendo sua participação bem mais explorada, se

comparada à obra original.

Na obra cinematográfica, Lisbela é representada em espaços e cenários

fechados ou que remetam a ambientes familiares, tendo suas aparições em locais

públicos, como praças e cinema, sempre acompanhada de seu pai Tenente

Guedes ou do namorado Douglas, o que representa, assim, o universo limítrofe de

uma moça de família que vivencia suas experiências de vida no interior do

Nordeste brasileiro.

A situação de confinamento, conforme mencionado, é revertida a partir do

momento em que a moça conhece Leléu, o qual lhe proporciona liberdade e

conseqüentemente novas classificações no plano de expressão, ou seja, Lisbela

Page 112: analise lisbela e o prisioneiro

112

passa a ser apresentada sem a supervisão do pai ou namorado, iniciando suas

aparições com enquadramentos, planos e espaços abertos.

3.5.4.4 - ACTORIALIZAÇÃO

Durante o desenvolvimento desta dissertação, tratamos os personagens

que compõem as obras através de seus respectivos nomes para que o andamento

de nossas análises fosse facilitado. Porém, cabe ressaltar que, no nível narrativo,

os personagens são definidos como sujeito, anti-sujeito, oponentes, ajudantes e

objeto valor. É no nível discursivo da obra que esses personagens recebem

respectivamente investimentos semânticos, ou seja, seus nomes, figurinos, perfil e

características figurativas para composição dos personagens.

É muito comum lermos ou assistirmos a uma obra e termos a sensação de

déjà vu. Isso ocorre principalmente quando nos deparamos com conteúdos

exibidos dentro de um mesmo gênero literário ou fílmico. Conforme já abordamos

ao longo desta dissertação, o gênero delimita o percurso e estilo narrativo pelo

qual discorrerá a trama narrativa, e as ações, transformações e actorializações

das obras é que diferenciam um título antigo de uma produção inovadora.

Em muitos casos, até mesmo as ações e transformações no decorrer da

obra são as mesmas, o grande elemento diferenciador se dá justamente no nível

da actorialização. Esse exemplo pode ser identificado principalmente nos filmes de

guerra provenientes do cinema norte americano.

Nos filmes que retratam a guerra do Vietnã, a temática, as ações e as

transformações dos filmes, são praticamente as mesmas, o que as diferencia é a

actorialização dos personagens.

Page 113: analise lisbela e o prisioneiro

113

Visto isso, apresentaremos os personagens que constituem a obra Lisbela

e o Prisioneiro, apontando consecutivamente as conjunções e disjunções

existentes entre a obra original e a obra transmutada. Segue abaixo a

apresentação dos personagens dividida por obra.

Personagens Obra Literária/Teatral Personagens Obra Fílmica Lisbela Filha do Tenente Guedes Lisbela Moça dócil e

apaixonada, aficionada a cinema

Leléu Aramista e prisioneiro Leléu Malandro conquistador Citonho Velho carcereiro Citonho Velho carcereiro,

criador de passarinhos Tenente Guedes

Delegado Tenente Guedes

Delegado

Inaura Irmã de Frederico Evandro (é somente citada nessa obra)

Inaura Mulher de Frederico Evandro

Frederico Evandro

Assassino profissional Frederico Evandro

Assassino profissional

Dr. Noêmio Advogado, noivo de Lisbela

Douglas Playboy, noivo de Lisbela

Francisquinha Amante de Tãozinho (é somente citada nessa obra)

Francisquinha Amante de Citonho

Jaborandi Soldado e corneteiro, apaixonado por cinema

Heliodoro Cabo de destacamento Tãozinho Vendedor ambulante de

pássaros

Testa-Seca Preso Paraíba Preso Juvenal Soldado

Lapiau Amigo de circo

de Leléu

No quadro de personagens apresentado, podemos observar uma grande

variação de personagens quando relacionadas às obras de partida e de chegada:

a obra fílmica aparece com um número bem reduzido, se comparada à obra

original. Isso ocorre devido ao fato de algumas funções e características dos

Page 114: analise lisbela e o prisioneiro

114

personagens da obra literária acabarem incorporadas em um único personagem

da obra adaptada, demonstrando certa economia no que tange à constituição da

obra cinematográfica, como nos sugere o quadro abaixo.

Personagens Obra Literária/Teatral Personagens Obra Fílmica (incorporando outros personagens)

Lisbela Filha do Tenente Guedes Lisbela Moça dócil e apaixonada, aficionada a cinema

Jaborandi Soldado e corneteiro, apaixonado por cinema

Leléu Aramista e prisioneiro Leléu Malandro conquistador e prisioneiro

Testa-Seca Prisioneiro

Paraíba Prisioneiro

Citonho Velho carcereiro Citonho Velho carcereiro, criador de passarinhos

Juvenal Soldado Heliodoro Cabo de destacamento

Tãozinho Vendedor ambulante de pássaros

Tenente Guedes Delegado Tenente Guedes Delegado

Inaura Irmã de Frederico Evandro (é somente citada nessa obra)

Inaura Mulher de Frederico Evandro

Frederico Evandro Assassino profiss ional Frederico Evandro Assassino profissional

Dr. Noêmio Advogado, noivo de Lisbela Douglas Noivo de Lisbela

Francisquinha Amante de Citonho (é somente citada nessa obra)

Francisquinha Amante de Citonho

Lapiau Amigo de circo de Leléu NÃO CONSTA NA OBRA

Outro ponto importante de destacarmos é a forma como Lisbela é tratada

na obra original de Osman Lins, pois a personagem, embora seja o título do texto,

é praticamente retratada como elemento secundário da trama, pois suas aparições

são extremamente limitadas se comparadas ao produto audiovisual.

Na obra filmica dirigida por Guel Arraes, Lisbela ganha maior peso

dramático e praticamente uma vida nova, apresentando-se no decorrer da obra de

forma muito mais expressiva e, conseqüentemente, fazendo jus ao título de

Lisbela e o Prisioneiro , pois, no caso contrário, fica até mesmo questionável a

relação entre título e personagem.

Page 115: analise lisbela e o prisioneiro

115

4 - INTERTEXTUALIDADE E

TRANSMUTAÇÃO

4.1 - LISBELA E O PRISIONEIRO: REVISITAÇÃO OU RAÍZES NORDESTINAS?

Um dos motivos que nos levou a tecer estudos sobre a obra Lisbela e o

Prisioneiro foi justamente a questão de ser uma obra consolidada como sucesso

de crítica e bilheteria no ano de 2003, recebendo premiações diversas e críticas

das mais variadas formas possíveis. Porém, algumas críticas mencionando a falta

de criatividade do cinema nacional, que por esse motivo transpõe conteúdos

literários para as telonas, acabaram nos chamando a atenção de forma especial.

De acordo com o que foi visto ao longo desta dissertação de mestrado, a

transposição de conteúdo literário para o cinema, não é e nem vai deixar de ser

uma tendência do cinema mundial, e muito menos uma falta de criatividade,

conforme mencionado. A transmutação de obras tornou-se uma constante desde o

momento do florescimento e massificação das tecnologias do cinema.

Lisbela e o Prisioneiro também recebeu muitas críticas comparativas,

principalmente relacionando nosso objeto de estudo com outra obra do mesmo

diretor Guel Arraes : O Auto da Compadecida.

As críticas traçando paralelos em torno dessas duas obras comentam sobre

a proximidade dos dois títulos quanto ao conteúdo narrativo, cenários, cores e

Page 116: analise lisbela e o prisioneiro

116

principalmente ao elenco dos filmes, que nas duas apresentações é formado por

Selton Mello, Bruno Garcia, Marco Nanini e Aramis Trindade.

Não podemos deixar de enxergar que as obras possuem pontos similares

dentro de sua elaboração, porém também não podemos deixar de falar que as

proximidades dos dois conteúdos são inevitáveis diante das origens próprias de

cada uma delas. Em primeiro lugar, estamos analisando dois títulos e duas tramas

narrativas que decorrem no Sertão Nordestino, o qual vem sendo cenário e palco

de grandes produções brasileiras.

O Sertão Nordestino já foi explorado de diversas formas ao longo da

diacronia do cinema nacional, e podemos citar desde representações ideológicas

e de confrontação social até mesmo a abordagem desse ambiente de maneira

irônica, capaz de amenizar e encobrir os problemas existentes nessa região do

País.

As obras fílmicas que apresentam o Sertão Nordestino como cenário

tiveram suas forças declaradas desde a época do Cinema Novo, no qual podemos

destacar como grandes títulos da cinema nacional: Vidas Secas (1963), de Nelson

Pereira dos Santos, que foi amplamente estudado pela autora e doutora Anna

Maria Balogh em seu livro Conjunções, Disjunções e Transmutações – Da

Literatura ao Cinema e à TV; e Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964), de Glauber

Rocha.

Ao enfocarmos nossas análises em O Auto da Compadecida e Lisbela e o

Prisioneiro, observamos muitas influências determinantes das proximidades entre

ambas as obras. Como se não bastasse as duas produções serem dirigidas pelo

mesmo diretor – Guel Arraes –, podemos verificar que o título original de Lisbela e

o Prisioneiro foi escrito por Osman Lins, classificado como um dos grandes

autores nordestinos, mas infelizmente pouco difundido na literatura brasileira.

Page 117: analise lisbela e o prisioneiro

117

Osman Lins, pernambucano nascido na cidade de Vitória de Santo Antão,

iniciou sua carreira literária quando escre veu Os Gestos (1957) e O Fiel e a Pedra

(1961), Nove Novena (1966), Avalovara (1973) e Rainha dos Cárceres da Grécia

(1976), em que teve a possibilidade de demonstrar pleno domínio das palavras,

técnicas e estilo literário. Os personagens criados em suas produções literárias

sempre foram apresentados de forma riquíssima em suas características e

potencialidades narrativas, variando desde velhos, doentes, crianças, até

mulheres em situações prosaicas da vida.66

No teatro, Osman Lins também teve sua contribuição, dedicando-se aos

títulos: O Vale sem Sol (menção Honrosa no I Concurso Nacional da Companhia

Tônia, Celi, Autran – CTCA; 1958); O Cão do Segundo Livro (1958); Os Animais

Enjaulados (1959); Os Gestos (1960); Guerra do Cansa-Cavalo (prêmio Anchieta,

1965, encenada em 1971 na inauguração do Teatro Municipal de Santo André);

Capa Verde e o Natal (prêmio Narizinho da Comissão Estadual de Teatro, 1965);

Mistério das Figuras de Barro (1974); Santa, Automóvel e Soldado (1975); e

Romance dos Soldados de Herodes (1977).

Retomando as proximidades e similaridades entre Auto da Compadecida e

Lisbela e o Prisioneiro, verificamos que as semelhanças vão além dos cenários e

atores utilizados na constituição dos filmes. O primeiro título, originalmente

desenvolvido para o teatro, tem como autor e compositor Ariano Suassuna,

paraibano nascido na cidade de Nossa Senhora das Neves, hoje conhecida como

João Pessoa, que também teve sua vida influenciada pela cultura nordestina,

assim como Osman Lins e suas influências pernambucanas.

As similaridades e influências nas obras originais que serviram como ponto

de partida para o meio cinematográfico não param por aí, pois, conforme

abordado por Sandra Nitrini:

66

LINS, Osman. Lisbela e o Prisioneiro, Posfácio, p. 112.

Page 118: analise lisbela e o prisioneiro

118

Lisbela e o Prisioneiro é o fruto de um meticuloso trabalho

preparatório, pois Osman Lins já tinha obtido menção honrosa no I

Concurso Nacional da Companhia Tônia, Celi, Autran, com a peça

O vale do sol, em 1958. Insatisfeito com sua incursão como

dramaturgo, considerando-a deficiente, matricula-se neste mesmo

ano no curso de Dramaturgia da Escola de Belas Artes de Recife,

onde vem a ser aluno de Joel Pontes, de Hermilo Borba Filho e de

Ariano Suassuna. Numa entrevista, Osman Lins mencionara este

último como professor da disciplina de play-writer, que teria exercido

uma possível influência sobre ele no que diz respeito às normas de

composição de Lisbela e o Prisioneiro.67

Sendo assim, observamos que tanto a composição das obras de saídas,

conseqüentemente influenciadas pelas raízes nordestinas de ambos os autores,

como a influência de Ariano Suassuna sobre o exercício de roteirista de Osman

Lins compactuam para similaridades múltiplas entre suas respectivas obras. Os

textos literários e teatrais que serviram como base para as obras Fílmica dirigidas

por Guel Arraes (que, por sinal, também é pernambucano) estão impregnados de

elementos que entrelaçam as obras, tornando inevitáveis as semelhanças

existentes entre os textos originais e as obras transmutadas.

4.2 – GUEL ARRAES, INTERTEXTUALIDADE E PRODUÇÕES

CONTEMPORÂNEAS

Se utilizarmos à tradução do conceito de intertextualidade realizada por

Balogh, a partir dos textos de Kristeva, Rifaterre, Jenny e Genette (Poétique,

1976), veremos que:

O termo intertextualidade designa a transposição de um ou mais

sistemas de signos em um outro. A intertextualidade constitui o

67 NITRINI, Sandra. Lisbela e o Prisioneiro, 2003, p. 113

Page 119: analise lisbela e o prisioneiro

119

trabalho de transformações e de assimilação de vários textos

operando por um texto centralizador que detém a liderança do

sentido.68

O processo de transmutação de conteúdos, no qual verificamos o trânsito

de um texto verbal para o audiovisual, define-se por si próprio como

intertextualidade, visto que a adaptação e o fluxo de informação presente nesta

consagrada prática, representa um constante diálogo entre formatos culturais

pertencentes a diferentes suportes, ou seja, de vários textos operando sobre um

texto centralizador, e consequentemente de um meio audiovisual incorporando

vários textos dentro de si.

Ao enfocarmos nossas análises nos elementos intertextuais de Lisbela e o

Prisioneiro, observamos que a obra literária / teatral de Osman Lins, não

contempla este recurso em sua produção, pois caracteriza-se como uma obra

original e autônoma em sua feitoria, porém, ao direcionarmos nossa atenção para

a obra dirigida por Guel Arraes, veremos que a utilização deste recurso, acaba se

tornando uma constante durante o filme.

Se utilizarmos a proposta de Balogh, que nos sugere algumas tipologias e

definições para intertextualidade, veremos que o processo de fluxo textual,

conforme estudado nesta dissertação, define -se pela intertextualidade do texto

literário para o sincrético (cinema e TV) e também do sincrético para o sincrético,

ou seja, a citação e o reaproveitamento do cinema pelo próprio cinema69.

Identificamos a intertextualidade do sincrético para o sincrético em Lisbela e

o Prisioneiro, no que tange a proximidade do filme dirigido por Guel Arraes,

quando comparada à obra cinematográfica de Woody Allen, intitulada de A Rosa

Púrpura do Cairo . O filme dirigido por Woody Allen, retrata a vida de uma

68 Balogh. Mídia, Cultura e Comunicação. 2002, p. 79 69 BALOGH, Anna. A criação Intertextual nos processos mediáticos. Significação – Revista Brasileira de semiótica. São Paulo (18): 28 – 30.

Page 120: analise lisbela e o prisioneiro

120

garçonete chamada Cecília (Mia Farrow), que sustenta o marido violento e

alcoólatra durante a depressão do pós-guerra americano.

A moça foge da sua triste rotina de vida, assistindo filmes exibidos em uma

sala de cinema, até que em um determinado momento, o herói do filme que

Cecília presencia, rompe os limites da tela e se declara a ela, gerando tumulto nos

outros atores e na continuidade da trama.

A semelhança existente entre o filme de Woody Allen e o de Guel Arraes,

deve-se ao fato que as personagens Cecília e Lisbela, possuem praticamente as

mesmas características, ou seja, ambas vivem em um mundo privado de

liberdade, procuram refúgio nas obras cinematográficas, fantasiam com os atores

de cinema as suas próprias vidas, e entrelaçam-se entre a vida real e o mundo

ficcional.

Outro ponto importante de ser abordado quando analisada a

intertextualidade existente entre as duas obras, diz respeito às cenas em que os

personagens da montagem paralela interagem nos filmes. Como nos sugerem as

imagens abaixo:

Rosa Púrpura do Cairo Lisbela e o Prisioneiro

Page 121: analise lisbela e o prisioneiro

121

Nas imagens apresentadas, vemos praticamente a mesma composição e

significado das cenas, nas quais os personagens da montagem paralela

gesticulam, conversam e interagem com os personagens da narrativa principal, ou

seja, é um acréscimo existente na obra transmutada de Guel Arraes, que retoma

as mesmas características do filme dirigido por Woody Allen.

Seguindo nossas análises nas relações intertextuais do sincrético ao

sincrético, identificamos outro elemento de semelhança existente entre Lisbela e o

Prisioneiro e a obra escrita e dirigida por Cacá Diegues intitulada de Bye, Bye

Brasil. Em ambas as obras, a figura do artista mambembe é explorada

percorrendo o interior das periferias brasileiras, porém, as similaridades entre os

filmes não ficam somente por conta de retratar a arte mambembe, mas sim, pela

proximidade entre personagens (principalmente de Leléu e Lorde Cigano -

interpretado este último por José Wilker), figurinos, cenários, carros, e até mesmo

nos materiais de divulgação dos filmes, como podemos observar a seguir:

Bye Bye Brasil Lisbela e o Prisioneiro

Page 122: analise lisbela e o prisioneiro

122

Direcionando nossas análises por uma outra ótica, veremos que a própria

utilização da musica na obra transmutada, é definida como elemento intertextual

do filme, visto que praticamente todas as trilhas executadas durante o percurso

audiovisual, são adaptações de pérolas do cancioneiro popular das décadas de 60

e 70, as quais foram regravadas com novos e sofisticados arranjos.

A musica tema de Lisbela e o Prisioneiro - Você Não Me Ensinou A Te

Esquecer, composta e interpretada originalmente por Fernando Mendes, foi

adaptada e introduzida na obra cinematográfica sob interpretação de Caetano

Veloso, que atribui características dignas e capazes de reforçar o gênero

melodramático do filme, tornando a musica um dos grandes atrativos da obra em

questão.

O transito de informações que define o conceito de intertextualidade na

utilização da música, ocorre pelo motivo que as musicas introduzidas na obra

filmica, não foram criadas originalmente para essa finalidade, ou seja, tratam-se

de músicas compiladas e adaptadas para a prática cinematográfica..

Na constituição de Lisbela e o Prisioneiro, identificamos a marca do diretor

Guel Arraes e a nítida influencia da cinematografia de Jean Luc Godard em sua

forma de atuação. As mesclas entre a linguagem cinematográfica e a arte das

histórias em quadrinhos, estão presentes ao longo de toda a obra, principalmente

nas transições e ações do filme, nas quais introduzem-se textos e mensagens que

sugerem o vínculo entre um capítulo e outro, como nos mostram as imagens a

seguir:

Page 123: analise lisbela e o prisioneiro

123

A característica de Guel Arraes em mesclar o exercício da produção

audiovisual, a elementos pertinentes a outros suportes, já é conhecido desde o

inicio de seu percurso profissional na rede Globo de televisão, conforme já

analisado por Balogh:

A citação, a transposição de textos literários, musicais, fílmicos e

quadrinhos na TV é freqüente. Talvez o exemplo mais contundente

deste tipo de mutação intertextual seja a série Armação Ilimitada:

parodiava os vídeos clipes, o jornalismo, citava obras de Glauber

Rocha, utilizava onomatopéias e elementos visuais dos quadrinhos.

Curiosamente Armação Ilimitada fazia parte de uma estratégia de

criação de “Novos Formatos” na Globo e trazia nos anos 80, alguns

procedimentos intertextuais (sobretudo a remissão aos quadrinhos)

Page 124: analise lisbela e o prisioneiro

124

que caracterizaram o cinema de “Nouvelle Vague” francesa, nos

anos 60, sobretudo a cinematografia de Jean Luc Godard.70

O seriado Armação Ilimitada, conforme abordado pela autora, foi dirigida

inicialmente por Guel Arraes, o qual participou do seriado entre os anos de 1985 a

1987, período esse em que o diretor demonstrou seu pleno domínio e influências

da de “Nouvelle Vague” francesa, na utilização de elementos intertextuais

extraídos de outros suportes,.

Cabe abordar nesse momento que a rede Globo de televisão ao longo de

sua existência, sempre demonstrou certa tendência na antecipação dos “Novos

Formatos” audiovisuais, principalmente em função de seu elevado poderio

tecnológico. Em casos mais recentes, podemos citar a novela Sinhá Moça, dirigida

por Marcelo Travesso e Luiz Antônio Pilar, que utiliza pela primeira vez no Brasil

os padrões de alta definição (High Definition) voltados à produção da telenovela,

proporcionando experimentação e pioneirismo frente a essa nova tecnologia

digital.

A intertextualidade conforme abordada, está se tornando uma das

características mais recorrentes da contemporaneidade, pois não podemos

esquecer que os meios de comunicação provenientes das altas tecnologias, estão

mesclando vários suportes e formatos textuais.

O processo de convergência das mídias, nos quais podemos citar como

meios participantes deste processo, o cinema, a TV, Internet, e-books, rádios web,

e veículos de comunicações impressos que disponibilizam seus conteúdos

eletronicamente, já nos sugerem mudanças significativas e tendências de uma

intertextualidade cada vez mais abrangente de acesso à arte e cultura, na qual

obras e conteúdos acessados, transpostos, citados e revisitados, acabam

70 BALOGH. A criação Intertextual nos processos mediáticos . Significação – Revista Brasileira de semiótica. São Paulo (18): 33

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tornando difícil até mesmo o discernimento de quais são as fontes de saída e de

chegada frente a essa enorme gama de possibilidades.

Com isso, nos sentimos na obrigação de mencionar que o conceito de

interatividade nos meios de comunicação, no qual o receptor interage e manipula

o conteúdo que deseja acessar, este sim é inovador e na grande maioria

provenientes de conceitos modernos como hipertexto e hipermídia. Porém,

quando falamos nas características de intertextualidade (como a estudada nessa

dissertação), em que o fluxo de informação é transposto para suportes que não

sejam os seus originais, configurando consequentemente a transposição e

transmutação textual, estamos tratando de um conceito bem mais antigo, adotado

e praticado incessantemente ao longo da diacronia da arte e da cultura.

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126

5 - CONSIDERAÇÕES FINAIS

O estudo realizado nessa dissertação de mestrado, teve como objetivo

principal analisar o processo de transmutação do texto verbal para o audiovisual,

direcionando a atenção nos elementos pertinentes a cada suporte e a maneira

como ocorre o fluxo das informações de um meio para outro.

Em um primeiro momento, realizamos análises sobre o som e a música na

obra transmutada de Lisbela e o Prisioneiro, utilizando os conceitos de Marcel

Martin e Cláudia Gorbman. Embora os conceitos de Gorbman tenham sido

originalmente desenvolvidos para analisar os filmes de Hollywood, a aplicabilidade

dos estudos sugeridos pela autora, são facilmente empregados em nosso objeto.

A utilização do som na obra de Guel Arraes, denuncia a característica das

produções cinematográficas brasileiras, que pouco se preocupam com as trilhas

compostas originalmente para os filmes, porém, isso não se trata de um caso

isolado, e sim de um fato freqüente nas produções cinematográficas nacionais.

A maioria das músicas executadas durante o filme, são músicas adaptadas

e compiladas para o cinema, tendo o filme apenas duas faixas compostas

exclusivamente para a obra, porém, a participação desta no decorrer do conteúdo

audiovisual é praticamente nula. Também verificamos o uso da música durante o

percurso fílmico, seguindo os conceitos de Gorbman de continuidade, sugestão

narrativa e significadora de emoção.

A utilização do som como ruído é explorada durante o filme dentro de suas

características de base, ou seja, sob a característica de proporcionar maior

realismo nas cenas.

Pudemos observar que tanto o que tange os elementos sonoros como os

elementos de imagem da obra adaptada, se demonstram um tanto quanto

entrelaçada com a prática televisiva, pois em muitos momentos, a ausência de um

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melhor aproveitamento dos recursos imagéticos, resulta em enquadramentos,

movimentos de câmera, planos, velocidade dos cortes e fragmentação do

conteúdo, muito próximos aos praticados nas novelas e seriados da TV brasileira,

mais especificamente, da rede Globo de Televisão.

Outro ponto que nos chamou a atenção, é o fato do filme Lisbela e o

Prisioneiro, possuir blocos em seu formato compositivo, ou seja, identificamos que

a obra fílmica nos sugere nitidamente ganchos e links entre uma cena e outra,

possibilitando sua exploração comercial de diversas maneiras, sem que o

conteúdo seja prejudicado. A obra poderia ser exibida por si própria como filme, ou

até mesmo como uma micro-série.

Um ponto extremamente importante de ser abordado sobre a obra

adaptada, e que por esse motivo nos levou a desenvolver um capítulo específico

sobre o tema, diz respeito ao domínio que o diretor Guel Arraes possui em lidar

com os elementos metalingüísticos e intertextuais em sua produção, junto a Jorge

Furtado e Pedro Cardoso, o cineasta criou um roteiro capaz de incorporar tais

elementos de maneira sutil e eficaz, o que explicita a influência de Nouvelle Vague

francesa, e da cinematografia de Godard na forma de atuação do diretor,

conforme ele mesmo declarou em entrevista prévia concedida à Revista Época.

Enfocando nossas análises especificamente no processo de transmutação,

verificamos consequentemente pontos conjuntivos e disjuntivos no processo de

adaptação da obra literária / teatral de Osman Lins, para obra cinematográfica de

Guel Arraes.

O maior ponto conjuntivo existente no processo de adaptação de Lisbela e

o Prisioneiro, diz respeito à estrutura narrativa que compõem as obras. No

Programa Narrativo Principal, o qual foi alvo de nossas análises no terceiro

capítulo deste trabalho, identificamos certa preocupação do diretor Guel Arraes,

em manter a ordem, seqüência e até mesmo parte dos diálogos dos personagens,

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128

justificando dessa maneira não somente o título da adaptação, mas também

grande fidelidade na transposição do conteúdo.

Porém, se enfocarmos nossas análises no nível narrativo tomando como

referência o PN2 e PN3, identificaremos consequentemente divergências e

acréscimos existente entre as obras de saída e obra de chegada, configurando

sucessivamente em elementos disjuntivos entre os conteúdos estudados.

A maior diferença existente no PN2 quando comparada a obra original e a

adaptada, corresponde ao fato que na obra literária/teatral, Inaura é irmã de

Frederico Evandro, enquanto na obra audiovisua l, a mesma personagem surge

como esposa do temido matador. Se utilizarmos como referência o PN3, veremos

que este é uma criação de Guel Arraes, não possuindo qualquer menção na obra

original.

As maiores divergências observadas entre obra de saída e obra de

chegada, ficam por conta do nível discursivo, e consequentemente no plano de

expressão, como abordado por Balogh:

O problema da tradução desemboca sempre no plano da expressão

como o elemento diferenciador mais óbvio do processo, tanto na

tradução interlingual quanto na intersemiótica. Naturalmente, o

plano da expressão está ligado ao do conteúdo e aos seus recortes

nos quais cada língua ou cada sistema de representação dividem ao

sentido.71

Com isso, verificamos que no processo de adaptação do conteúdo verbal

para o audiovisual, o maior ponto disjuntivo entre a obra original e obra

transmutada, prevaleceu no plano de expressão, e nos elementos condizentes a

temporalização, espacialização e actorialização. Demonstrando dessa maneira

71 BALOGH, Anna Maria. Conjunções, Disjunções e Transmutações – Da Literatura ao Cinema e à TV. 2005, p. 51

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que embora a narrativa permaneça com boa parte de sua estrutura inalterada, é o

plano de expressão quem dita grande parte das disjunções em função das

propriedades inerentes a cada suporte.

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