Analise Memorias de Um Sargento e Memorias Postumas

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ANALISE DAS OBRAS: MEMÓRIAS DE UM SARGENTO DE MILICIASE MEMORIAS PÓSTUMAS DE BRÁS CUBASMEMÓRIAS DE UM SARGENTO DE MILICIASI - MANUEL A DE ALMEIDA: nascido no Rio de Janeiro em 1831, Manuel Antonio de Almeida estudou desenho, arte para a qual demonstrava talento e na qual também deixou obras. Formou-se em medicina, mas trabalhou no jornalismo tendo sido jornalista e funcionário público. Seu único romance, "Memórias de um Sargento de Milícias" fora publicado na forma de folhetins, nas páginas do jornal "Correio Mercantil", do qual fora redator, no suplemento "A Pacotilha". Morreu em um naufrágio na costa do Rio de Janeiro durante campanha para se eleger deputado. II - GÊNESE DO ROMANCE: o romance foi publicado na forma de folhetins entre 1852 e 1853, no Jornal Correio Mercantil, sob pseudônimo "Um Brasileiro". Essa condição de produção esclarece a estrutura do livro, composto por capítulos que contém episódios referentes às aventuras da dupla de malandros cariocas, Leonardo e seu pai, Leonardo Pataca, no Rio de Janeiro do período joanino. Em livro, a obra foi publicada em dois volumes em 1854 e 1855. III - CRÔNICA DE COSTUMES: "Memórias de um Sargento de Milícias" corresponde a um retrato pitoresco da vida cotidiana do Rio de Janeiro do período joanino (1808-1821). Procissões, festas populares (patuscadas), modinhas, profissões, hábitos da medicina popular (parteiras, sangrias), a vida do padroado, o abuso de poder, etc., compõem um verdadeiro documento social da época. Tal painel da vida popular faz da obra um romance agitado e festivo, traduzindo uma visão carnavalizadora da sociedade, em que se focaliza, com humor, o avesso das instituições do tempo como o clero, a justiça, a família, etc. IV - FUGA DO PADRÃO ROMÂNTICO: costuma-se notar as "Memórias" como um romance excêntrico que, embora escrito no período romântico, não se comporta conforme os paradigmas dos romances românticos. Nesse sentido, notamos a excentricidade em certos aspectos do romance, enumerados a seguir: a) o tom jocoso e satírico das "Memórias" substitui o sentimentalismo pelo humor e pela carnavalização; b) o retrato das camadas populares do Rio de Janeiro do período joanino; c) a ausência de idealização das cenas e dos personagens retratados, em geral, de maneira caricatural; d) a ausência de julgamentos morais da ações dos personagens; e) o tom coloquial da linguagem, influência da linguagem oral e da linguagem jornalística tempo. V - ESTRUTURA 1. Foco Narrativo: o foco narrativo é de terceira pessoa; chama a atenção as constantes referências do leitor; a inclusão do leitor na narrativa é um dos traços mais importantes do estilo de composição das "Memórias" e pode ser explicado como uma forma de aproximar o leitor do texto. 2. Tempo e Espaço: o romance se passa no Rio de Janeiro do período joanino (Era no tempo do rei...), retratando os espaços da cidade (ruas, casas, prédios públicos, etc) em que se movimentam as camadas populares. É importante ressaltar que o período joanino caracterizou-se por um sensível progresso urbano da cidade, resultante da acomodação da corte que acompanhou o rei. 3. Personagens: os personagens do romance correspondem a tipos sociais; assim, eles são caracterizados e agem segundo sua condição social ou função que exercem na sociedade, não possuindo traços individualizantes ou profundidade psicológica. Muitos personagens sequer possuem nome no livro, sendo designados pela sua profissão ou condição social: o barbeiro, a cigana, a parteira, o mestre-de-cerimônias, o mestre-de-rezas, o toma-largura, o sacristão, etc. São descritos de maneira caricatural e bem humorada. Leonardo: personagem central é um anti-herói romântico (nem herói, nem vilão); é um malandro vadio e oportunista, um herói marginal que vive ao sabor do acaso. No final, torna-se o sargento de milícias a que o título se refere. Note a semelhança entre Leonardo e Macunaíma, o "herói sem nenhum caráter" de Mario de Andrade, de quem Leonardo pode ser considerado ancestral. VI - SÍNTESE DO ENREDO 1 - ORIGEM E NASCIMENTO "Era no tempo do Rei", é com este mínimo parágrafo que o narrador inicia a obra. Assim, ficamos sabendo que a história a ser contada se inicia no tempo em que a corte portuguesa fora transferida para o Brasil, entre 1908, momento da chegada, e 1921, momento da volta de D. João VI a Portugal. Neste capítulo, o narrador tratará da

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ANALISE DAS OBRAS: “MEMÓRIAS DE UM SARGENTO DE MILICIAS” E “MEMORIAS PÓSTUMAS DE BRÁS CUBAS”

“MEMÓRIAS DE UM SARGENTO DE MILICIAS”

I - MANUEL A DE ALMEIDA: nascido no Rio de Janeiro em 1831, Manuel Antonio de Almeida estudou desenho,

arte para a qual demonstrava talento e na qual também deixou obras. Formou-se em medicina, mas trabalhou no

jornalismo tendo sido jornalista e funcionário público. Seu único romance, "Memórias de um Sargento de Milícias"

fora publicado na forma de folhetins, nas páginas do jornal "Correio Mercantil", do qual fora redator, no suplemento

"A Pacotilha". Morreu em um naufrágio na costa do Rio de Janeiro durante campanha para se eleger deputado.

II - GÊNESE DO ROMANCE: o romance foi publicado na forma de folhetins entre 1852 e 1853, no Jornal Correio

Mercantil, sob pseudônimo "Um Brasileiro". Essa condição de produção esclarece a estrutura do livro, composto por

capítulos que contém episódios referentes às aventuras da dupla de malandros cariocas, Leonardo e seu pai, Leonardo

Pataca, no Rio de Janeiro do período joanino. Em livro, a obra foi publicada em dois volumes em 1854 e 1855.

III - CRÔNICA DE COSTUMES: "Memórias de um Sargento de Milícias" corresponde a um retrato pitoresco da

vida cotidiana do Rio de Janeiro do período joanino (1808-1821). Procissões, festas populares (patuscadas), modinhas,

profissões, hábitos da medicina popular (parteiras, sangrias), a vida do padroado, o abuso de poder, etc., compõem um

verdadeiro documento social da época. Tal painel da vida popular faz da obra um romance agitado e festivo,

traduzindo uma visão carnavalizadora da sociedade, em que se focaliza, com humor, o avesso das instituições do

tempo como o clero, a justiça, a família, etc.

IV - FUGA DO PADRÃO ROMÂNTICO: costuma-se notar as "Memórias" como um romance excêntrico que,

embora escrito no período romântico, não se comporta conforme os paradigmas dos romances românticos. Nesse

sentido, notamos a excentricidade em certos aspectos do romance, enumerados a seguir: a) o tom jocoso e satírico das

"Memórias" substitui o sentimentalismo pelo humor e pela carnavalização; b) o retrato das camadas populares do Rio

de Janeiro do período joanino; c) a ausência de idealização das cenas e dos personagens retratados, em geral, de

maneira caricatural; d) a ausência de julgamentos morais da ações dos personagens; e) o tom coloquial da linguagem,

influência da linguagem oral e da linguagem jornalística tempo.

V - ESTRUTURA

1. Foco Narrativo: o foco narrativo é de terceira pessoa; chama a atenção as constantes referências do leitor; a

inclusão do leitor na narrativa é um dos traços mais importantes do estilo de composição das "Memórias" e pode ser

explicado como uma forma de aproximar o leitor do texto.

2. Tempo e Espaço: o romance se passa no Rio de Janeiro do período joanino (Era no tempo do rei...), retratando os

espaços da cidade (ruas, casas, prédios públicos, etc) em que se movimentam as camadas populares. É importante

ressaltar que o período joanino caracterizou-se por um sensível progresso urbano da cidade, resultante da acomodação

da corte que acompanhou o rei.

3. Personagens: os personagens do romance correspondem a tipos sociais; assim, eles são caracterizados e agem

segundo sua condição social ou função que exercem na sociedade, não possuindo traços individualizantes ou

profundidade psicológica. Muitos personagens sequer possuem nome no livro, sendo designados pela sua profissão ou

condição social: o barbeiro, a cigana, a parteira, o mestre-de-cerimônias, o mestre-de-rezas, o toma-largura, o

sacristão, etc. São descritos de maneira caricatural e bem humorada. Leonardo: personagem central é um anti-herói

romântico (nem herói, nem vilão); é um malandro vadio e oportunista, um herói marginal que vive ao sabor do acaso.

No final, torna-se o sargento de milícias a que o título se refere. Note a semelhança entre Leonardo e Macunaíma, o

"herói sem nenhum caráter" de Mario de Andrade, de quem Leonardo pode ser considerado ancestral.

VI - SÍNTESE DO ENREDO

1 - ORIGEM E NASCIMENTO

"Era no tempo do Rei", é com este mínimo parágrafo que o narrador inicia a obra. Assim, ficamos sabendo que

a história a ser contada se inicia no tempo em que a corte portuguesa fora transferida para o Brasil, entre 1908,

momento da chegada, e 1921, momento da volta de D. João VI a Portugal. Neste capítulo, o narrador tratará da

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"Origem, Nascimento e Batizado" de Leornado, o protagonista anti-herói da obra. A Origem: Leonardo é filho de

Leonardo Pataca, que fora algibebe (mascate) em Portugal, mas que, cansado e aborrecido do negócio, resolvera vir ao

Brasil, conseguindo aqui, por proteção não se sabe de quem, o emprego de meirinho, profissão que corresponderia ao

oficial de justiça de hoje. Nesse tempo, os meirinhos "eram gente temida, respeitável e respeitada". Devido à

reclamação diária que fazia a respeito do seu baixo salário, Leonardo, o mais velho dos meirinhos da época, ganhou o

apelido de Leonardo Pataca, referência ao nome do dinheiro da época. No navio em que viajara de Portugal até o

Brasil, Leonardo conheceu Maria das Hortaliças, quitandeira das praças de Lisboa. Da relação entre os dois será

concebido Leonardo, o Leonardinho, herói (ou anti-herói) da narrativa:

Mas viera com ele no mesmo navio, não sei fazer o que, uma certa Maria das Hortaliças, quitandeira das praças de Lisboa, saloia,

rechonchuda e bonitota. O Leonardo fazendo-lhe justiça, não era nesse tempo de sua mocidade mal apessoado, e sobretudo era maganão. Ao sair

do Tejo, estando a Maria encostada à borda do navio, o Leonardo fingiu que passava distraído por junto dela, e com o ferrado sapatão

assentou-lhe uma valente pisadela no pé direito. A Maria como se já esperasse por aquilo , sorriu-se como envergonhada do gracejo, e deu-lhe

também em ar de disfarce um tremendo beliscão nas costas da mão esquerda. Era isto uma declaração em forma, segundo os usos da terra:

levaram o resto do dia de namoro cerrado; ao anoitecer passou-se a mesma cena de pisadela e beliscão, com a diferença de serem desta vez um

pouco mais fortes; e no dia seguinte estavam os dois amantes tão extremosos e familiares , que pareciam sê-lo de muitos anos.

Quando saltaram em terra começou a Maria a sentir certos enjôos e foram os dois morar juntos.

(...) sete meses depois teve Maria um filho, formidável menino de quase três palmos de comprido, gordo e vermelho, cabeludo, esperneador e

chorão; o qual , logo depois que nasceu, mamou duas horas seguidas sem largar o peito(...) 0 menino de quem falamos é o herói dessa história.

NOTA: tanto no namoro do casal quanto na descrição do menino a fuga do padrão romântico da

idealização do amor e do herói. Leonardinho pode ser considerado, assim, um anti-herói romântico

Passado algum tempo, resolveram batizar o menino. A madrinha foi a parteira e o padrinho foi o barbeiro. Ao

batizado se seguiu uma verdadeira patuscada, nome que se dava às animadas festas do período.

Cumpre-nos agora dizer alguma coisa a respeito de uma personagem que representará no correr desta história um importante papel, e

que o leitor apenas conhece, porque nela tocamos de passagem no primeiro capitulo: é a comadre, a parteira que, como dissemos, servira de

madrinha ao nosso memorando.

Era a comadre uma mulher baixa, excessivamente gorda, bonachona, ingênua ou tola até um certo ponto, e finória até outro; vivia do

oficio de parteira, que adotara por curiosidade, e benzia de quebranto; todos a conheciam por muito beata e pela mais desabrida papa-missas da

cidade. Era a folhinha mais exata de todas as festas religiosas que aqui se faziam; sabia de cor os dias em que se dizia missa em tal ou tal igreja,

como a hora e até o nome do padre; era pontual à ladainha, ao terço, à novena, ao setenário; não lhe escapava via-sacra, procissão, nem

sermão; trazia o tempo habilmente distribuído e as horas combinadas, de maneira que nunca lhe aconteceu chegar à igreja e achar já a missa no

altar. De madrugada começava pela missa da Lapa; apenas acabava ia à das 8 na Sé, e daí saindo pilhava ainda a das 9 em Santo Antônio. O

seu traje habitual era, como o de todas as mulheres da sua condição e esfera, uma saia de lila preta, que se vestia sobre um vestido qualquer, um

lenço branco muito teso e engomado ao pescoço, outro na cabeça, um rosário pendurado no cós da saia, um raminho de arruda atrás da orelha,

tudo isto coberto por uma clássica mantilha, junto à renda da qual se pregava uma pequena figa de ouro ou de osso. Nos dias dúplices, em vez de

lenço à cabeça, o cabelo era penteado, e seguro por um enorme pente cravejado de crisólitas.

Este uso da mantilha era um arremedo do uso espanhol; porém a mantilha espanhola, temos ouvido dizer, é uma coisa poética que

reveste as mulheres de um certo mistério, e que lhes realça a beleza; a mantilha das nossas mulheres, não; era a coisa mais prosaica que se pode

imaginar, especialmente quando as que as traziam eram baixas e gordas como a comadre. A mais brilhante festa religiosa (que eram as mais

freqüentadas então) tomava um aspecto lúgubre logo que a igreja se enchia daqueles vultos negros, que se uniam uns aos outros, que se

inclinavam cochichando a cada momento.

Mas a mantilha era o traje mais conveniente aos costumes da época; sendo as ações dos outros o principal cuidado de quase todos, era

muito necessário ver sem ser visto. A mantilha para as mulheres estava na razão das rótulas para as casas; eram o observatório da vida alheia.

Muito agitada e cheia de acidentes era a vida que levava a comadre, de parteira, beata e curandeira de quebranto; não tinha por isso muito

tempo de fazer visitas e procurar os conhecidos e amigos.

NOTA: é importante notar, nesta descrição da comadre, a caracterização de uma personagem-tipo. Os

personagens das Memórias representam tipos sociais, e em conjunto, compõem um painel vivo e colorido dos

tipos da época. São caracterizados pela sua condição social ou pela profissão. No caso, temos a descrição de uma

típica beata. Nota-se, também em tais descrições os traços caricaturais, destinados a produzir humor.

A infância de Leonardo, até os sete anos, foi marcada pela traquinagem e peraltice, quebrando tudo que lhe

vinha à mão e varrendo o chão com o chapéu armado do pai. Tudo isso deixava a mãe quase louca que lhe não

perdoava, deixando-lhe "bem maltratada uma região do corpo". Nesse tempo, andava o Leonardo Pataca desconfiado

que Maria o traía. "Cego de ciúme", Leonardo Pataca aplicou em Maria uma surra. O menino Leonardo assistia a tudo,

sem se comover, enquanto ia rasgando em pedacinhos mais uma intimação que o pai deveria entregar.

Choramingando, Maria amaldiçoa o Pataca e foge. Depois de esmorecida a raiva, Leonardo Pataca percebeu a obra do

menino. Enfurecido novamente, deu no menino um chute nas nádegas, atirando-lhe a "quatro braças de distância ".

Percebendo a confusão que se armara, o padrinho barbeiro deixou um freguês na cadeira, e veio ter com Leonardo,

acalmando-o. Pataca sai, decidido a ir embora. Mais tarde, acaba mudando de idéia e volta. Na volta, tem uma notícia

desagradável: Maria havia ido embora, fugindo para Portugal com o capitão de um navio que partira na véspera.

Foram "saudades da terra", exclama o barbeiro.

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2 - INFÂNCIA

Desiludido, Leonardo Pataca desaparece, nunca mais passando nem perto da casa onde "tinha sofrido tamanha

infelicidade". Assim, ficou o Leonardo para ser criado pelo padrinho. No início, o menino se comportou com gravidade

e sisudez, mas logo que foi se acostumando colocou "as manguinhas de fora". O padrinho, no entanto, foi se apegando

ao menino, suportando - e elogiando até - suas travessuras. Talvez porque o menino lhe preenchesse o vazio da solidão

de solteirão, sem parentes. E já ia se preocupando com o futuro do garoto: sonhava mandar-lhe estudar em Coimbra.

Enquanto o padrinho sonhava com o futuro, Leonardo ia aproveitando o presente, fartando-se de travessuras nas

procissões religiosas da época.

Há bem pouco tempo que existiam ainda em certas ruas desta cidade cruzes negras pregadas pelas paredes de espaço em espaço.

Às quartas-feiras e em outros dias da semana saía do Bom Jesus e de outras igrejas uma espécie de procissão composta de alguns

padres conduzindo cruzes, irmãos de algumas irmandades com lanternas, e povo em grande quantidade; os padres rezavam e o povo

acompanhava a reza. Em cada cruz parava o acompanhamento, ajoelhavam-se todos, e oravam durante muito tempo. Este ato, que satisfazia a

devoção dos carolas, dava pasto e ocasião a quanta sorte de zombaria e de imoralidade lembrava aos rapazes daquela época, que são os velhos

de hoje, e que tanto clamam contra o desrespeito dos moços de agora. Caminhavam eles em charola atrás da procissão, interrompendo a

cantoria com ditérios em voz alta, ora simplesmente engraçados, ora pouco decentes; levavam longos fios de barbante, em cuja extremidade iam

penduradas grossas bolas de cera. Se ia por ali ao seu alcance algum infeliz, a quem os anos tivessem despido a cabeça dos cabelos, colocavam-se

em distancia conveniente, e escondidos por trás de um ou de outro, arremessavam o projétil que ia bater em cheio sobre a calva do devoto;

puxavam rapidamente o barbante, e ninguém podia saber donde tinha partido o golpe. Estas e outras cenas excitavam vozeria e gargalhadas na

multidão.

Era a isto que naqueles devotos tempos se chamava correr a via-sacra

NOTA: o narrador preocupa-se em tratar um painel dos costumes sociais da época joanina; entretanto, o faz

procurando ressaltar o lado jocoso das instituições sociais, resultando disso um romance bem humorado.

Do outro lado da cidade, "lá pelas bandas da Cidade Nova", o Leonardo Pataca se envolveu com uma cigana, que em

assunto de fidelidade era como a Maria da Hortaliças. E como a cigana já lhe havia traído com sargentos, colegas e

capitães, inclusive também, fugindo de casa, Pataca tratou de se valer de "meios sobrenaturais" para segurá-la: apela

para um feiticeiro, para, como se dizia na época "tomar fortuna". No momento em que está participava da cerimônia

de macumba no terreiro do caboclo, aparece o chefe da polícia, o Major Vidigal, famoso por ser autoritário e durão:

O Major Vidigal era o rei absoluto, o árbitro supremo de tudo que dizia respeito a esse ramo da administração: era o

juiz que julgava e distribuía a pena, e ao mesmo tempo o guarda que dava caça aos criminosos; nas causas da sua imensa alçada

não havia testemunhas, nem provas, nem razões, nem processo; ele resumia tudo em si.

(...) Era o Vidigal um homem alto, não muito gordo, com ares de moleirão(..) apesar deste aspecto de mansidão, não se

encontraria por certo homem mais apto para o seu cargo, exercido pelo modo que acabamos de indicar

Conhecendo bem o rigor do Vidigal, alguns macumbeiros fogem. O Major, detendo os macumbeiros que

ficaram, obrigou-os a dançar até não mais agüentarem. Depois lhes cobriu de chibatadas. Reconhecendo o Leonardo

Pataca dentre eles, o major aplica-lhe um bom sermão, dizendo que, sendo um meirinho, deveria dar exemplo e não

participar de tal coisa. Assim, o Pataca acaba preso. Na cadeia vira alvo de chacotas dos outros meirinhos. Enquanto

isso, o Leonardo continuava dando trabalho ao compadre. Depois de seguir uma procissão, conheceu dois meninos de

rua que o levaram a uma patuscada de ciganos. Entretido, esqueceu-se de voltar para casa, dormindo entre os ciganos.

Foi sua primeira noite fora de casa.

Na cadeia, o Leonardo Pataca lembrou-se de um antigo conhecido: um tenente-coronel, pai de um jovem rapaz

que, em Portugal, tinha seduzido a primeira esposa de Pataca, a Maria das Hortaliças, na época em que a saloia ainda

vivia em Lisboa. Tendo-a convencido a não se casar com o filho mesmo desvirginada, o tenente achou que lhe devia

compensar o prejuízo. Assim, sempre procurou compensá-la com favores. É, por esta razão, acabou conhecendo o

agora ex-marido da saloia, o Leonardo Pataca. Lembrando-se do tenente, o Pataca pede à comadre que vá falar com

ele, a fim de que ele interceda em favor de sua soltura. Por intercessão do tenente, Leonardo é solto.

Enquanto isso, o compadre passa a ensinar ao Leonardo o "beabá", mas o menino empaca no P. A vizinha

implica com ele devido a sua má educação. O padrinho fica ao lado do garoto e quando ele a ridiculariza, imitando-a, o

padrinho acha graça e se sente orgulhoso.

Leonardo entra para a escola. Mas já no primeiro dia de aula, leva quatro bolos com a palmatória por ter

entornado o tinteiro na calça de um colega... E todos os dias levava bolos... E assim foi seguindo a mal sucedida época

escolar do nosso Leonardo. E quando o compadre pela primeira vez anuiu que o menino fosse sozinho à escola, este

gazeteou, e tomando gosto pela coisa, acabou adquirindo tal hábito, o que lhe rendeu o apelido de gazeta-mor da

escola. Nestas gazetas, Leonardo se refugiava na Sé, à hora da missa. Por freqüentar então todo dia a missa, acabou

por fazer amizade com um outro menino, o Tomas, que era sacristão. Mas as gazetas eram tantas, que o padrinho

acabou por descobrir e voltou, assim, a acompanhá-lo à aula. Enfadado, Leonardo teve a idéia de convencer o

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padrinho a tirá-lo da escola, para ir servir como sacristão na Sé. O padrinho consente: já estava na hora do seu futuro

padre aprender o ofício... Mas na igreja, como sacristão, já na primeira missa, Leonardo junto ao outro menino

sacristão aprontou uma dupla vingança sobre a vizinha, que com ele implicava.

Começaram então os dois uma obra meritória: enquanto um, tendo enchido o turíbulo de incenso, e balançando-o

convenientemente, fazia que os rolos de fumaça que se desprendiam fossem bater de cheio na cara da pobre mulher, o outro com

a tocha despejava-lhe sobre as costas da mantilha a cada passo plastradas de cera derretida, olhando disfarçado para o altar. A

pobre mulher exasperou-se, e disse-lhes não sabemos o quê.

Denunciado pela beata, Leonardo é repreendido pelo padre e jura vingança. Acontece que o tal padre, mestre

de cerimônias nas festas religiosas, andava de caso com a cigana (a mesma que havia se amasiado com Leonardo

Pataca). Confiante na ingenuidade dos meninos sacristãos, mandava-os sempre levar bilhetinhos para a moça. Assim,

sabendo que o padre mantinha um caso com a tal cigana, os dois meninos resolveram pregar-lhe uma peça em

vingança da reprimenda que sofreram. Em um dia de cerimônia importante, o padre ordenou que os meninos fossem

chamá-lo na casa da cigana quando fosse dado o horário da missa. Aproveitando-se disso, Leonardo e o amigo

resolveram avisá-lo em um horário errado para ver o vexame, e assim foi feito. Na hora em que todo o público

esperava o padre para rezar a missa, cria-se um grande alvoroço devido à sua ausência. Um padre italiano, que estava

presente, resolve então iniciar a missa, substituindo o padre faltoso. Com uma hora de atraso, o padre, constrangido e

vexado, chegou e quis assumir a missa. Uma parte do público achou melhor e a outra preferiu a continuidade da missa

do italiano. Fez-se portanto uma grande confusão. E assim terminou a carreira religiosa de Leonardo, pois ele acabou

demitido pelo padre.

Quando o Leonardo Pataca ficou sabendo que a sua cigana o havia trocado por um padre, foi logo falar com

ela, dizendo-lhe que ela cometia pecado grave estando envolvida com um homem de Deus. Não obtendo sucesso, O

Pataca resolveu então se vingar da cigana e do padre. Sabendo que ia acontecer uma festa de aniversário na casa dela e

que o padre de alguma forma lá estaria, contratou um tal Chico-Juca, valentão e amante de uma boa confusão, para

armar, em tal dia, uma estralada. Ao mesmo tempo, tratou de prevenir o major Vidigal de que haveria pancadaria na

festa da cigana. Assim, quando o Major chegou, a briga acontecia solta na casa. Na algazarra, somente o Chico-Juca

conseguiu fugir avisado antecipadamente pelo Pataca da incursão do Vidigal; todo o restante foi preso, inclusive o

padre, flagrado seminu no quarto da cigana, vestindo somente ceroulas:

No mesmo instante viu aparecer o granadeiro trazendo pelo braço o reverendíssimo mestre de cerimônias em ceroulas

curtas e largas, de meias pretas, sapatos de fivela, e solideú à cabeça. Apesar dos apuros em que se achavam, todos desataram a

rir: só ele e a cigana choravam de envergonhados

NOTA: novamente o narrador opta aqui, por retratar o lado jocoso das instituições do tempo

E assim o padre perdeu o cargo na Sé e abandonou a cigana, que por sua vez acabou reatando o caso com

Leonardo Pataca.

3 - TEMPO DOS AMORES

Participando de uma procissão em companhia do padrinho, Leonardo conheceu uma senhora, velha e gorda,

amiga do compadre. Rica, a velha tinha mania de demanda judicial. Passam a freqüentar a casa da dita senhora.

Mais tarde, já adolescente, Leonardo conhece Luisinha, rica herdeira e sobrinha de D. Maria, de quem a velha havia se

tornado tutora. A primeira impressão de Lusinha provoca risos em Leonardo:

Leonardo lançou lhe os olhos, e a custo conteve o riso. Era a sobrinha de D. Maria já muito desenvolvida, porém que,

tendo perdido as graças de menina, ainda não tinha adquirido a beleza de moça: era alta, magra, pálida: andava com o queixo

enterrado no pescoço, trazia as pálpebras sempre baixas e olhava a furto: tinha os braços finos e compridos; o cabelo, cortado,

dava-lhe apenas até o pescoço, e como andava mal penteada e trazia a cabeça sempre baixa, uma grande porção de cabelo lhe

caía sobre a testa e olhos como uma viseira Trajava neste dia um vestido de chita roxa muito comprido, quase sem

roda(...)Vendo-a ir-se, Leonardo tornou a rir-se interiormente

NOTA: a caracterização da personagem Luisinha se distancia do padrão da heroína romântica. E um tipo caricatural e

fica evidente a intenção de despertar o humor em sua descrição.

Mas depois dessa primeira impressão, Leonardo começou a se apaixonar pela menina. Em uma ocasião, em que foram

os dois, com D. Maria e o padrinho, verem os foguetes que se soltavam na festa do Divino, a beleza do espetáculo

acabou por aproximar os dois jovens:

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Quando se atacou a lua, a sua admiração foi tão grande que, querendo firmar-se nos ombros de Leonardo, deu-lhe

quase um abraço pelas costas. O Leonardo estremeceu por dentro, e pediu ao céu que a lua fosse eterna: virando o rosto, viu

sobre os ombros aquela cabeça de menina iluminada pelo clarão pálido do misto que ardia, e ficou também extasiado; pareceu-

lhe então o rosto mais lindo que jamais vira, e admirou-se profundamente de que tivesse podido alguma vez rir-se dela e achá-la

feia.

Neste tempo, Leonardo Pataca, pilhando a cigana em mais uma infidelidade, deixa-a, e sossega os instintos,

talvez devido à idade. Apaixonado, Leonardo, no entanto, vai passar por uma contrariedade. É que nas visitas que

fazem diariamente a D. Maria, o rapaz conhece um rival. Trata-se de José Manuel, um português velhaco, malandro,

maledicente e mentiroso que, espertalhão, via na sobrinha de D. Maria uma oportunidade de abocanhar sua bela

herança. Também o compadre via na sobrinha de D. Maria um bom partido para o seu Leonardo. E percebendo a

ameaça que José Manuel representava, comunicou a história à comadre. Os dois fazem uma aliança para executar um

plano que prejudicasse José Manuel, estragando-lhe a boa reputação que gozava junto a D. Maria. Do outro lado,

Leonardo sem saber do plano, e ardendo em ciúmes, decidira se declarar a Luisinha, pois achava que estava dando

muito terreno ao inimigo. Mas a declaração de amor acaba se fazendo de modo bastante atrapalhado.

NOTA: novamente a situação amorosa jocosa em que o casal de protagonistas está envolvido é distante do padrão

romântico idealizado

Enquanto isso, Leonardo Pataca, mais sossegado dos instintos, casara-se com a filha da comadre, a Chiquinha

que lhe dá uma filha. A parteira foi, de novo, a comadre. Cumprindo o plano que fizera com o compadre, a comadre vai

até a casa de D. Maria e lhe inventa uma história sobre José Manuel: diz que ele roubou uma moça de família, levando

também uma boa porção de ouro. Decepcionada com o velhaco, D. Maria o põe para correr de sua casa. Vendo seus

planos em risco, José Manuel apela para para um mestre-de-rezas, professor de catecismo de D. Maria. Por um bom

dinheiro, o mestre-de-rezas defende o português diante da velha - revelando-lhe o autor da calúnia e a razão pela qual

se queria indispô-la com José Manuel. Para fazê-la acreditar em sua versão, o mestre-de-rezas t um homem que se

dizia o pai da moça raptada e convenceu a velha da inocência do José Manuel. D. Maria não só acreditou no mestre,

como também se indispôs com a comadre. Assim, José Manuel pôde retornar à casa de D. Maria e podendo também

falar alguma coisa a respeito de Luisinha, o que o colocou em vantagem em relação ao outro pretendente, Leonardo.

Além destes insucessos, mais alguns transtornos ocorrem na vida de Leonardo. Primeiramente, o compadre

"caiu gravemente enfermo". Foi chamado o médico, que prometia pôr o doente de pé em pouco dias com pílulas de

alecrim, mas o padrinho de Leonardo faleceu no fim de três dias. Morto, o padrinho deixou ao afilhado uma boa

quantia em dinheiro. Leonardo Pataca aparece, então, para tomar conta do filho e vão morar juntos.

Mas tal situação dura pouco pois o rapaz se desentende com Chiquinha, a nova mulher do Pataca: um certo

dia, contrariado por não ter conseguido ver Luisinha, Leonardo chegou em casa e não suportou as indiretas e

implicâncias de Chiquinha com o seu amor mal sucedido, travando com ela áspera discussão, que acabou em baixaria.

O pai tomou partido da mulher e, irado, expulsou o rapaz de casa. Leonardo, temendo receber novamente um pontapé

no traseiro, como na infância, fugiu correndo da ira do pai.

4 - NOVOS AMORES

Atordoado, após ser expulso de casa, Leonardo caminhava pela cidade, quando reconheceu, em um grupo de

pessoas que fazia uma patuscada, o antigo sacristão Tomás, companheiro seu na igreja da Sé. Agora rapaz, o ex-

sacristão convida Leonardo a se juntar ao grupo. E nessa ocasião ele conhece Vidinha, uma bonita mulata, que tocava

viola e cantava. Logo, Leonardo se apaixona por ela. Sob proteção de Vidinha, Leonardo vai viver com o grupo, que

incluía duas mulheres, uma com três filhos rapagões, e uma outra com três filhas, raparigas e bonitas. Uma delas era a

Vidinha. Agregado na casa das duas famílias, Leonardo só tinha olhos para "os olhos negros e brilhantes e os alvos

dentes de Vidinha", esquecendo-se logo de Luisinha e José Manuel. Assim. Vidinha foi, assim, o remédio aos males de

Leonardinho. Enquanto isso, José Manuel triunfava completamente, pois, acreditando-se abandonada por Leonardo,

Luisinha aceitara indiferentemente a proposta de casamento do velhaco. Já D. Maria estava muito satisfeita com José

Manuel, que a ajuda ganhar uma demanda. Assim, casam-se.

5 - O AGREGADO

Na casa de Tomás da Sé, Leonardo desperta ciúmes nos primos de Vidinha que, antes de sua chegada,

disputavam os carinhos da moça. A rivalidade acaba em pancadaria. Leonardo decide então ir embora, mas duas

velhas não deixam. A partir daí, Leonardo agrega-se na casa da moça, passando os dias inteiros em casa, sem

trabalhar, namorando Vidinha. Para se vingar de Leonardo os primos o denunciam ao Vidigal por vadiagem. Armam

então uma patuscada e avisam o Major. Aparecendo no meio da súcia, o Vidigal prende o rapaz em flagrante

vadiagem. Porém, ao ser transportado para a cadeia, o Leonardo, aproveitando-se de uma distração dos granadeiros

dos Major, consegue escapulir. Repentinamente uma circunstância veio favorecê-lo. Não sabemos por que causa

Page 6: Analise Memorias de Um Sargento e Memorias Postumas

ouviu-se um grande alarido na rua: gritos, assovios, e carreiras. O Leonardo teve uma espécie de vertigem; zuniram-

lhe os ouvidos, escureceram-se-lhe os olhos, e ... dando um encontrão no granadeiro que estava perto dele, desatou a

correr. O Vidigal deu salto, e estendeu o braço para o agarrar mas apenas roçou-lhe com a ponta dos dedos pelas

costas. Na Ucharia trabalhava também o Toma-Largura (nome dado a qualquer funcionário real), sujeito grande e

forte. Leonardo se envolve com a mulher do Toma Largura até ser flagrado por ele tomando um caldo - que deveria ser

levado ao rei - com tal mulher. Resultado: pancadaria geral e demissão do Leonardo.

Ao saber da confusão em que seu amante se envolveu, Vidinha, resolveu ir à casa do Toma-largura pedir

satisfação à mulher. Leonardo vai atrás tentando impedi-la mas, no caminho, acaba sendo capturado pelo Major

Vidigal. Vidinha bate boca com a mulher do Toma Largura e, como forma de vingança, insinua-se para ele que,

encantado pela morena, resolve também se vingar do Leonardo seduzindo-lhe a amante. O Toma-largura, entretanto,

apaixona-se por Vidinha. As velhas tias lhe dão apoio.

Numa ocasião em que o grupo, agora frequentado pelo Toma Largura, promovia uma patuscada, o Major

Vidigal os surpreende. Ordena, então, a um dos granadeiros que prendesse o tal Toma-largura. A surpresa foi geral

quando se viu que o granadeiro era justamente o Leonardo, feito granadeiro pelo Major, como castigo pela vadiagem e

também por ter porte físico avantajado. Assim, o rapaz se vinga do Toma Largura.

6- GRANADEIRO

Mesmo como granadeiro, Leonardo não deixa de se meter em patuscadas. Numa delas é pilhado pelo Major

justamente no momento que representava, com festa, a morte de Vidigal. Leonardo, enrolado em lençóis, fazia o papel

do morto. Talvez por ter já conquistado a simpatia do Major Vidigal, Leonardo não sofreu nenhum castigo dessa vez.

Mas sua carreira de granadeiro não durou muito: ao avisar um seu amigo, o desocupado Teotônio, de uma cilada

armada pelo Vidigal para prendê-lo e ajudá-lo a escapar do Major, Leonardo é descoberto e, desta vez, preso.

A comadre, então, se empenha em fazer o major Vidigal soltar o Leonardo. Mas em vão. Diante da negativa do Major

Vidigal, a comadre apela para a Maria Regalada, ex-amante do major, para que ela lhe ajudasse a convencê-lo a soltar

seu afilhado. Maria Regalada era muito amiga da comadre e aceita ajudá-la.

Enquanto isso, José Manuel se desentende com D. Maria devido a uma demanda. Além do mais, ele tinha se

tornado um péssimo marido, um verdadeiro "marido dragão" para Luisinha. maltratando-a freqüentemente. Desse

modo, não precisou muito para que D. Maria, com raiva de José Manuel, esquecesse a mentira da comadre e com ela

se reconciliasse. Por esse motivo, a velha também se empenha, a pedido da comadre, na soltura de Leonardo.

As três, a comadre, D. Maria e a Maria Regalada, vão, em comissão, à casa do Major pedir-lhe para soltar o Leonardo.

O Major, irredutível no início, concorda com as senhoras depois que, ao pé do ouvido, Maria Regalada promete ir

morar com ele caso soltasse o rapaz. O Vidigal não apenas soltou o rapaz, mas ainda lhe fez sargento da Companhia

dos Granadeiros.

7 - SARGENTO DE MILÍCIAS

Nesse ínterim, José Manuel morre de um ataque apoplético, após discussão com o advogado de D. Maria. No

enterro, Leonardo reencontra Luisinha e reatam o namoro. Mas o casamento de ambos estava ameaçado devido a um

obstáculo: é que na época, soldado não podia se casar. Mais uma vez Maria Regalada entra em ação e intercede pelo

rapaz. Poucos dias depois, Leonardo é promovido a sargento de milícia, a guarda civil da época. Neste posto, poderia

se casar. Superado o obstáculo, casa-se, então, com Luisinha. Pouco após, morrem D. Maria e Leonardo Pataca e

Leonardo e Luisinha recebem a herança do padrinho, que ficara com o pai, e de Luisinha, que ficara com D. Maria.

Daqui em diante aparece o reverso da medalha. Seguiu-se morte de D. Maria , a do Leonardo Pataca, e uma enfiada de

acontecimentos tristes que pouparemos aos leitores, fazendo aqui o ponto final.

VII – SOBRE A OBRA

Embora elementares como concepção de vida e caracterização dos personagens, as “Memórias” são um livro

agudo como percepção das relações humanas tomadas em conjunto. Se não teve consciência nítida, é fora de dúvida

que o autor teve maestria suficiente para organizar certo número de personagens segundo intuições adequadas da

realidade social. Tomemos como base o personagem central do livro, Leonardo Filho, imaginando que ocupa no

respectivo espaço uma posição também central: á direita está sua mãe, á esquerda seu pai, os três no mesmo plano.

Com um mínimo de arbítrio podemos dispor os demais personagens, mesmo com alguns vagos figurantes, acima e

abaixo desta linha equatorial por eles formada. Acima estão os que vivem segundo normas estabelecidas, tendo no

ápice o grande representante delas, Major Vidigal [Comadre, Compadre, Dona Maria, Luisinha, J Manuel, Tenente

Coronel, Vizinha etc]; abaixo estão os que vivem em oposição ou pelo menos em integração duvidosa em relação a elas

[Tomas, Vidinha, Toma Largura, Cigana, Chico Juca, Mestre de Cerimôminas, Primos, etc]. Poderíamos dizer que há,

deste modo, um hemisfério positivo da ordem e um hemisfério negativo da desordem, funcionando como dois imãs

que atraem Leonardo, depois de terem atraído seus pais. A dinâmica do livro pressupõe uma gangorra entre os dois

Page 7: Analise Memorias de Um Sargento e Memorias Postumas

pólos, enquanto Leonardo vai crescendo e participando ora de um, ora de outro, até ser finalmente absorvido pelo pólo

convencionalmente positivo

(...) a sociedade que formiga nas Memórias é sugestiva, não tanto por causa das descrições de festejos ou

indicações de usos e lugares; mas porque manifesta num plano mais fundo e eficiente o referido jogo dialético da

ordem e de desordem funcionando como correlativo ao que se manifestava na sociedade daquele tempo. Ordem

dificilmente imposta e mantida, cercada de todos os lados por uma desordem vivaz (...) Sociedade na qual uns poucos

livres trabalhavam e os outros flauteavam ao Deus dará, colhendo as sobras do parasitismo, dos expedientes, da

munificiência, da sorte ou do roubo miúdo. Suprimindo o escravo, Manuel Antônio suprimiu quase totalmente o

trabalho; suprimindo as classes dirigentes, suprimiu os controles do mando. Ficou o ar de jogo dessa organização

bruxuleante fissurada pela anomia, que se traduz na dança dos personagens entre lícito e ilícito, sem que possamos

afinal dizer o que é um e o que é o outro, porque todos acabam circulando de um para outro com uma naturalidade

que lembra o modo de formação das famílias, dos prestígios, das fortunas, das reputações, no Brasil urbano da

primeira metade do século 19. Romance profundamente social, pois, não por ser documentário, mas por ser

construído segundo o ritmo geral da sociedade, vista através de um dos seus setores. E sobretudo porque dissolve o

que há de sociologicamente essencial nos meandros da construção literária.

Antonio Cândido, Dialética da Malandragem

“MEMORIAS PÓSTUMAS DE BRÁS CUBAS”

I - MACHADO DE ASSIS (1839-1908): Joaquim Maria Machado de Assis nasceu no Rio de Janeiro e lá morreu.

Machado de Assis pertence esteticamente ao Realismo. Seus livros realistas, Memórias Póstumas de Brás Cubas,

Quincas Borba, Esaú e Jacó e Memorial de Aires, compõem o melhor conjunto de obras de um autor em toda a

literatura nacional. Apesar da filiação estética ao Realismo, a originalidade e a qualidade do que escreveu tornam a

obra de Machado de Assis superior a qualquer tentativa de enquadrá-lo rigidamente em um período literário. Sua

influência sobre toda a literatura brasileira posterior é muito grande. Aliás, nestas últimas décadas, Machado de Assis

tem sido cada vez mais estudado na Europa e nos Estados Unidos e sua obra tem sido justamente colocada entre as

dos maiores escritores do século XIX em toda a literatura ocidental.

II - ESTUDO DA OBRA

A) FOCO NARRATIVO: o foco narrativo é de primeira pessoa. A estória é narrada pelo narrador-personagem Brás

Cubas. Trata-se de um defunto-autor, ou seja o narrador conta sua estória depois da sua morte. Escreve-a do além-

túmulo. O que gera uma situação absurda, fantástica, totalmente inverrossímil, pois morto não fala, e nem escreve! Os

críticos costumam, por isso, filiar essa narrativa ao gênero cômico-fantástico ou literatura menipéia. Outra

conseqüência desta estratégia narrativa adotada pelo autor é que existem dois Brás Cubas: o do presente, o narrador

que é vivo, inteligente, irônico e sutil; e o do passado, que não raro é um patife, um palhaço.

B) PERSONAGENS PRINCIPAIS: BRÁS CUBAS, VIRGÍLIA, LOBO NEVES, Marcela, Eugênia, Nha-Loló, D. Plácida

Quincas Borba, Sabina e Cotrim

C) SÍNTESE DO ENREDO

O livro se inicia com uma memorável dedicatória. O autor dedica o livro ao verme que primeiro roeu as suas carnes

após o enterro de seu cadáver. Em seguida, escreve um breve prólogo ao leitor:

AO VERME

QUE

PRIMEIRO ROEU AS FRIAS CARNES

DO MEU CADÁVER

DEDICO

COM SAUDOSA LEMBRANÇA

ESTAS

MEMÓRIAS PÓSTUMAS

1) PRÓLOGO

AO LEITOR

(...) Obra de finado. Escrevi-a com a pena da galhofa e a tinta da melancolia, e não é difícil antever o que poderá sair desse conúbio. Acresce que a

gente grave achará no livro umas aparências de puro romance, ao passo que a gente frívola não achará nele o seu romance usual; ei-lo aí fica

privado da estima dos graves e do amor dos frívolos, que são as duas colunas máximas da opinião.

Page 8: Analise Memorias de Um Sargento e Memorias Postumas

Mas eu ainda espero angariar as simpatias da opinião, e o primeiro remédio é fugir a um prólogo explícito e longo. O melhor prólogo é

o que contém menos coisas, ou o que as diz de um jeito obscuro e truncado. Conseguintemente, evito contar o processo extraordinário que

empreguei na composição destas “Memórias”, trabalhadas cá no outro mundo. Seria curioso mas minimamente extenso, e aliás desnecessário ao

entendimento da obra. A obra em si mesma é tudo: se te agradar, fino leitor, pago-me da tarefa; se te não agradar, pago-te com um piparote, e

adeus.

2) DEFUNTO AUTOR

Depois da advertência do prólogo o narrador inicia explicando ao leitor que decidira iniciar as suas memórias pelo

final de sua vida, ou seja, relatando primeiro as circunstâncias de sua morte.

Algum tempo hesitei se deveria abrir estas memórias pelo principio ou pelo fim, isto é, se poria em primeiro lugar o meu

nascimento ou a minha morte. Suposto o uso vulgar seja começar pelo nascimento, duas consideração me levaram a adotar

diferente método: a primeira é que eu não sou propriamente um autor defunto, mas um defunto autor, para quem a campa foi

outro berço; a segunda é que o escrito fica assim mais galante e mais novo. Moisés, que também contou sua morte, não a pôs no

intróito, mas no cabo: diferença radical entre este livro e o “Pentateuco”.

Dito isto, expirei às duas horas da tarde de uma sexta-feira do mês de agosto de 1869, na minha bela chácara do Catumbi. Tinha

uns sessenta e quatro anos, rijos e prósperos, era solteiro, possuía cerca de trezentos contos e fui acompanhado ao cemitério por

onze amigos. Onze amigos! Verdade é que não houve cartas nem anúncios Acresce que chovia – peneirava – uma chuvinha

miúda, triste e constante, tão constante e tão triste, que levou um daqueles fiéis de última hora a intercalar esta engenhosa idéia

no discurso que proferiu à beira de minha cova: - “Vós, que o conhecestes, meus senhores, vós podeis dizer comigo que a natureza

parece estar chorando a perda irreparável de um dos mais belos caracteres que tem honrado a humanidade. Este ar sombrio,

estas gotas do céu, aquelas nuvens escuras que cobrem o azul como um crepe funéreo, tudo isso é a dor crua e má que lhe rói à

natureza as mais íntimas entranhas; tudo isso é um sublime louvor ao nosso ilustre finado.”

Bom e fiel amigo! Não, não me arrependo das vinte apólices que lhe deixei. E foi assim que cheguei à clausura dos meus

dias; foi assim que me encaminhei pra o undiscovered country de Hamlet, sem as ânsiasnem as dúvidas do moço príncipe, mas

pausado e trôpego, como quem se retira tarde do espetáculo.

Depois dessa explicação, o autor relata as circunstâncias de sua morte. Morre aos sessenta anos, numa sexta-

feira do mês de agosto de 1869 na sua chácara do Catumbi. Solteiro, possuía trezentos contos, e foi acompanhado ao

cemitério por onze amigos. Foi enterrado sob chuva e um dos amigos profere um discurso à beira da cova reclamando

“a perda irreparável de um dos mais belos caracteres que tem honrado a humanidade”. “Bom e fiel amigo”, diz o

defunto, e acrescenta – ironicamente – que não se arrependia de lhe ter deixado uma boa herança! Nos instantes que

lhe antecederam a morte, foi o autor assistido por algumas pessoas, dentre elas, sua irmã Sabina e o cunhado Cotrin,

além de uma senhora de quem o narrador não revela o nome. Morreu de pneumonia, contraída quando tentava

inventar um emplastro anti-hipocondríaco, um medicamento destinado a curar a hipocondria das pessoas. Esse

emplastro tornou-se idéia fixa e a sua invenção, uma obsessão para Brás Cubas.

3) O EMPLASTO

(...) Essa idéia era nada menos que a invenção de um medicamento sublime, um emplasto anti-hipocondríaco, destinado

a aliviar a nossa melancólica humanidade. Na petição de privilégios que então redigi, chamei a atenção do governo para esse

resultado, verdadeiramente cristão. Todavia, não neguei aos amigos as vantagens pecuniárias que devia resultar da distribuição

de um produto de tamanhos e tão profundos efeitos. Agora, porém, que estou cá do outro lado da vida, posso confessar tudo: o

que me influiu principalmente foi o gosto de ver impressas nos jornais, mostradores, folhetos, esquinas e enfim nas caixinhas do

remédio, estas três palavras: “Emplasto Brás Cubas”. Para que negá-lo? Eu tinha a paixão do arruído, do cartaz, do foguete de

lágrimas. Talvez os modestos me arguam esse defeito, fio, porém, que esse talento me há de reconhecer os hábeis. Assim a minha

idéia trazia duas faces, como as medalhas, uma virada para o público, outra para mim. De um lado, filantropia e lucro; de outro

lado, sede de nomeada. Digamos: - amor da glória!

(...) Senão quando, estando eu preocupado em preparar e apurar a minha invenção, recebi em cheio um golpe de ar;

adoeci logo e não me tratei. Tinha o emplasto na cabeça; trazia comigo a idéia fixa dos doidos e dos fortes.

Depois de confessar que queria inventar o emplastro para conseguir glória. Brás Cubas justifica a ambição

como sendo mal de família. Aproveita então para apresentar sua genealogia. Era trisneto de Damião Cubas, um

tanoeiro [que fazia tachos, tinas, cubas] que enriqueceu e deixou boa herança para o filho, Luís Cubas. Esse seu bisavô

estudou direito e teve influência política e, por isso, os Cubas costumavam dizer que a sua família começava a partir

daí. Depois dessa digressão, Brás Cubas volta a falar das circunstâncias da sua morte. Fora visitado pela senhora

misteriosa do enterro que agora ele nos revela ser Virgília, a mulher que ele havia amado durante a vida.

Virgília – chamava-se Virgília, entrou na alcova, firme, com a gravidade que lhe davam as roupas e os anos e veio até o

meu leito (...) deixou-se estar de pé; durante algum tempo ficamos a olhar um para o outro, sem articular palavra. Quem diria?

De dois grandes namorados, de duas paixões sem freio, nada mais havia ali, vinte anos depois; havia apenas dois corações

murchos, devastados pela vida e saciados dela, não sei se em igual dose, mas enfim saciados.

Page 9: Analise Memorias de Um Sargento e Memorias Postumas

4) O DELÍRIO

Ainda durante a presença de Virgília, o narrador entra no seu derradeiro momento, o delírio. Brás Cubas passa

a narrar esse delírio: o narrador é arrebatado por um hipopótamo. Monta-lhe nas costas e vão em direção à origem dos

séculos. Lá, encontram um vulto imenso, uma figura de mulher que se identifica como a Natureza. Diz a Brás que se

chama Pandora e que é sua mãe e inimiga. Ele se assusta pois julgava ser a natureza apenas mãe. Ela gargalha e

explica a Brás que é mãe pois dá a vida, a juventude, a felicidade, a saúde; mas também é inimiga pois cobra tudo o

que deu, sendo a morte, portanto, o pagamento da dívida do homem com ela. Brás pede mais tempo de vida. Ela

recusa, dizendo-lhe que não mais precisa dele. Em seguida, mostra-lhe os séculos e toda a história dos homens com os

seus acontecimentos, seus sofrimentos e felicidades. Veio os séculos presentes e os futuros, passando todos cada vem

mais rapidamente, até que, diante do último século, o moribundo sucumbe ao delírio.

(...)Que me conste, ninguém ainda relatou o seu próprio delírio; faço-o eu, e a ciência mo agradecerá.(...)

- Chamo-me Natureza ou Pandora; sou tua mãe e tua inimiga.

(...) – Natureza, tu? A Natureza que eu conheço é só mãe e não inimiga; não faz da vida um flagelo, nem, como tu, traz esse rosto

indiferente, como o sepulcro (...)

(...) – Creio, eu não sou somente a vida; sou também a morte e tu estás prestes a me devolver o que te emprestei. Grande lascivo,

espera-te a voluptuosidade do nada.

5) A INFÂNCIA: “O MENINO É O PAI DO HOMEM”

Terminado o delírio, Brás Cubas põe-se a narrar o seu nascimento. Nasceu no dia 20 de outubro de 1805

quando na “árvore dos Cubas brotou uma singela flor” . Desde menino, fora muito endiabrado. Judiava dos escravos e

especialmente do moleque Prudêncio que era o seu “cavalo”. Botava rabos de papel nas visitas, escondia chapéus, dava

beliscões... e o pai, no lugar de lhe repreender duramente, achava-lhe graça. Esse relato o narrador inclui no capítulo

intitulado: O MENINO É O PAI DO HOMEM, frase inspirada num poeta.

(...) afeiçoei-me à contemplação da injustiça humana, inclinei-me a atenuá-la, a explicá-la, a classificá-la por partes, a

entendê-la, não segundo um padrão rígido, mas ao sabor das circunstâncias e lugares. Minha mãe doutrinava-me ao seu modo,

fazia-me decorar alguns preceitos e orações; mas eu sentia que mais do que as orações, me governavam os nervos e o sangue, e a

boa regra perdia o espírito que a faz viver, para tornar uma vã fórmula.

(...)Sim, meu pai adorava-me. Minha mãe era uma senhora fraca, de pouco cérebro e muito coração, assaz crédula, sinceramente

piedosa – caseira, apesar de bonita, e modesta, apesar de abastada, temente às trovoadas e ao marido. O marido era na terra o

seu Deus. Da colaboração destas duas criaturas nasceu a minha educação, que, se tinha alguma coisa de boa, era, no geral

viciosa, incompleta, e, em partes, negativa.

(...)Outros parentes e alguns íntimos não merecem a pena ser citados(...) O que importa é a impressão geral do meio

doméstico, e essa fica aí indicada, - vulgaridade de caracteres, amor das aparências rutilantes, do arruído, da vontade, do

capricho, e o mais. Dessa terra e desse estrume é que nasceu essa flor.

Ainda da infância, Brás Cubas relata um episódio acontecido em 1814, quando ele tinha nove anos. Realizou-se

na sua casa um banquete para comemorar a queda de Napoleão. Como o discurso de um convidado, o Vilaça, estava

atrasando a sobremesa, repleta dos seus doces preferidos, Brás irritou-se, fez barulho e foi castigado. Para se vingar, o

menino seguiu o convidado e viu quando ele beijou, atrás de uma moita, outra convidada, Dona Eusébia. O menino

então correu para o público, gritando, a denunciar os amantes. Depois de narrar esse episódio o narrador salta o

período escolar. Apenas se refere aos poucos estudos e à muita vadiagem. Refere-se ao amigo Quincas Borba. Em

seguida vai direto aos dezessete anos, quando deu o primeiro beijo. Foi em Marcela, uma prostituta espanhola por

quem Brás se apaixonou.

6) MARCELA E A UNIVERSIDADE

Marcela era muito ambiciosa e exigia de Brás jóias e presentes caros. Ele, apaixonado, cedia a todos os caprichos da

moça. Gastou com ela todo o seu dinheiro. Sem dinheiro, endividou-se. O pai para dar um freio nas loucuras de Brás,

mandou-lhe a Coimbra para cursar a Universidade e se tornar bacharel em Direito. Em Coimbra, Brás Cubas ganhou

“nomeada de folião” por passar a maior parte do tempo em festas. Como aluno, era medíocre.

...Marcela amou-me durante quinze meses e onze contos de réis; nada menos.

(...) A Universidade me esperava com suas matérias árduas, estudei-as muito mediocremente, e nem por isso perdi o grau de

bacharel.

(...) Não digo que a Universidade não me tivesse ensinado alguma [filosofia] ; mas eu decorei-lhe só as fórmulas, o vocabulário, o

esqueleto. Tratei-a como tratei o latim: embolsei três versos de Virgílio, dois de Horácio, uma dúzia de locuções morais e

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políticas, para as despesas da conversação. Tratei-as como tratei a história e a Jurisprudência. Colhi de todas as coisas a

fraseologia, a casca, a ornamentação.

Talvez espante o leitor a franqueza com que realço a minha mediocridade; advirta que a franqueza é a primeira virtude de um

defunto. Na vida, o olhar da opinião, o contraste dos interesses, a luta das cobiças obrigam a gente a calas os trapos velhos, a

disfarçar os rasgões e remendos, a não estender ao mundo as revelações que faz à consciência; e o melhor da obrigação é

quando, à força de embaçar os outros, embaça-se um homem a si mesmo em tal caso poupa-se o vexame, que é uma sensação

perigosa, e a hipocrisia, que é um vício hediondo. Mas na morte, que diferença! Que desabafo! Que liberdade! Como a gente pode

(...) confessar lisamente o que foi e o que deixou de ser! Por que em suma já não há vizinho, nem amigos (...) O olhar da opinião,

esse olhar agudo e judicial perde a virtude, logo que pisamos o território da morte (...) Senhores vivos, não há nada tão

incomensurável como o desdém dos finados

7) VÍRGILIA E EUGÊNIA, EUGÊNIA E VIRGÍLIA...

Brás Cubas bacharelou-se e voltou ao Rio. Não muito por vontade própria mas por causa de sua mãe que

estava muito doente. Chegou ao Rio e assistiu a morte de sua mãe. Depois disso, Brás recusou o convite de sua irmã

Sabina e de seu cunhado Cotrim para morar com eles. Foi para a chácara da família na Tijuca. Passava ali os dias no

ócio. Caçava, dormia, lia ou não fazia nada. Lá reencontrou Dona Eusébia, vizinha da chácara e relembrou o episódio

de 1814. Visitou a vizinha e lhe conheceu Eugênia, filha de D. Eusébia e do Vilaça. Tendo ainda em mente o episódio de

1814, Brás Cubas apelidou-a de “a flor da moita”. Nesse ínterim apareceu-lhe o pai com duas propostas: a política e o

casamento. Traçara ele planos para que Brás Cubas se candidatasse a deputado e para isso, arranjar-lhe-ia um

casamento com a filha de um político importante, o Conselheiro Dutra. Brás colocou a condição de não ser obrigado a

aceitar as duas coisas ao mesmo tempo, ao que o pai lhe objetou, explicando tratar-se, as duas coisas, de uma só: a

noiva e o parlamento são a mesma coisa. A filha do Conselheiro chamava-se Virgília.

Naquele tempo contava apenas quinze ou dezesseis anos; era talvez a mais atrevida criatura da nossa raça, e com

certeza a mais voluntariosa. Não digo que já lhe coubesse a primazia da beleza entre as mocinhas do tempo, porque isso não é

romance em que o autor sobredoura a realidade e fecha os olhos às sardas e espinhas (...) Era bonita, fresca, saía das mãos da

natureza, cheia daquele feitiço precário e eterno(...) Era isto Virgília, e era clara, muito clara, faceira, ignorante, pueril, cheia de

uns ímpetos misteriosos; muita preguiça e alguma devoção, - devoção ou talvez medo; creio que medo.

(...) Tu que me lês, se ainda fores vivam, quando estas páginas vierem à luz, tu que me lês, Virgília amada, não repara na

diferença da linguagem de hoje e na que primeiro empreguei quando te vi ? Crê que era tão sincero então como agora; a morte

não me tornou rabugento, nem injusto.

Mas, dirás tu, como é que podes assim discernir a verdade daquele tempo, e exprimi-la depois de tantos anos?

Ah! Indiscreta! Ah! Ignorantona! Mas é isso mesmo que nos faz senhores da terra, é esse poder de restaurar o passado, para

tocar a instabilidade dos nossos afetos. Deixa lá dizer Pascal que o homem é um caniço pensante. Não, o homem é uma errata

pensante, isso sim. Cada estação da vida é uma edição que corrige a anterior, e que será corrigida também, até a edição

definitiva, que o editor dá de graça aos vermes.

Brás faz nova visita à D. Eusébia. Aproximou-se de Eugênia. Acha-a bonita, mas não lhe perdoa um defeito

físico, o fato de ser coxa. Brás Cubas compara-a a uma borboleta preta que lhe aparece no quarto. Na visita a D.

Eusébia ela lhe dissera que borboletas pretas eram mal sinal. Brás a mata com uma toalha. Mas não a mataria se fosse

azul... Ainda assim ele se excita com Eugênia. Travam um namorico que enfim não dá em nada.

O pior é que era coxa. Uns olhos tão lúcidos, uma boca tão fresca, uma compostura tão senhoril; e coxa. Esse contraste fazia

suspeitar que a natureza é às vezes um imenso escárnio. Por que bonita, se coxa? Por que coxa, se bonita?

8)LOBO NEVES

Brás Cubas se rende à imposição do pai e decide aceitar o casamento com Virgília e a candidatura a deputado. Visita-a

em companhia do pai e por ela se entusiasma. Iniciam um namoro. A caminho de um jantar na casa de Virgília, Brás

encontra Marcela, a espanhola por quem se apaixonara na adolescência. Estava ela agora doente, velha e horrenda,

com o rosto deformado pela bexigas. Atrasa-se, então para o jantar. Ao chegar a casa da noiva, ele tem uma alucinação.

Vê o rosto bexiguento de Marcela em Virgília...

Brás se acostumara a idéia do casamento com Virgília, quando aparece Lobo Neves. Mais jovem e mais ambicioso que

Brás, arrebata-lhe a candidatura e Virgília. Brás fica perdido. O pai, que se empenhara muito para ver a glória política

do filho, atônito, não resiste ao golpe; adoentado, o desgosto lhe agrava o mal e ele morre.

Virgília perguntou ao Lobo Neves, quando seria ele ministro.

- Pela minha vontade, já; pela dos outros, daqui a um ano.

Virgília replicou:

- Promete que algum dia me fará baronesa?

- Marquesa, por que eu serei marquês

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Desde então eu fiquei perdido. Virgília comparou a águia e o pavão, e elegeu a águia, deixando o pavão com seu

espanto, o seu despeito, e três ou quatro beijos que lhe dera; mas dez que fossem não queria dizer coisa nenhuma. O

lábio do homem não é como a pata do cavalo de Átila, que esterilizava o solo em que batia; é justamente o contrário.

9) TORNAM-SE AMANTES

Depois da morte do pai, Brás trava uma disputa com Sabina e Cotrim pela herança. Brás então afasta-se da

irmã. Um dia, Brás reencontra Virgília num baile. Valsam. Tornam-se amantes. Para terem maior tranquilidade, Brás

aluga uma casinha. Convida Dona Plácida, uma velha pobre, amiga da família Vírgília, para morar na casa a fim de

manter as aparências. Ela se torna assim, cúmplice do caso

Há umas plantas que nascem e crescem depressa; outras são tardias. O nosso amor era daquelas; brotou com tal ímpeto

e tanta seiva, que, dentro em pouco era a mais vasta, folhuda e exuberante criatura dos bosques.

(...) Custou-lhe muito [a Dona Plácida] a aceitar a casa; farejara a intenção, e doía-lhe o ofício; mas afinal cedeu (...) Não fui-lhe

ingrato; fiz-lhe um pecúlio de cinco contos (...) Foi assim que lhe acabou o nojo.

10) O VERGALHO

Um dia Brás Cubas encontra um escravo vergalhando outro. Reconhece Prudêncio seu antigo moleque. Ele

tinha sido alforriado pelo pai e comprara agora um escravo. O escravo, segundo ele era vadio e bêbado. Por isso estava

apanhando. Brás pede que Prudêncio pare. Ele obedece. Brás então reflete sobre a atitude do ex-escravo, chegando a

conclusão de que, mesmo tendo sido escravo, ele não aprendera a detestar a escravidão e reproduzia, agora o

comportamento daqueles que o escravizaram.

Saí do grupo, que me olhava espantado e cochichava as suas conjecturas. Segui caminho (...) Logo meti mais dentro a faca do

raciocínio e achei-lhe um miolo gaiato, fino e até profundo. Era um modo que o moleque Prudêncio tinha de se desfazer das

pancadas recebidas, - transmitindo-as a outro. Eu, em criança, montava-o punha-lhe freio na boca, e desancava-o sem

compaixão; ele gemia e sofria. Agora, porém, que era livre, dispunha de si mesmo, dos braços, das pernas, podia trabalhar,

folgar, dormir (...) agora é que ele se desbancava: comprou um escravo, e ia-lhe pagando, com alto juro, as quantias que de mim

recebera. Vejam as sutilezas do maroto!

11) “O SENÃO DO LIVRO”

Começo a arrepender-me deste livro. Não que ele me canse; eu não tenho o que fazer; e realmente expedir alguns

magros capítulos para esse mundo sempre é tarefa que distrai um pouco da eternidade. Mas o livro é enfadonho, cheira a

sepulcro, traz certa contração cadavérica; vício grave, e aliás, ínfimo, porque o maior defeito deste livro és tu, leitor. Tu tens

pressa de envelhecer, e o livro anda devagar, tua amas a narração direta e nutrida, o estilo regular e fluente, e este livro e o meu

estilo são como os ébrios, guinam à direita e à esquerda, andam e param, resmungam, urram, gargalham, ameaçam o céu,

escorregam e caem...

10) LOBO NEVES É NOMEADO PRESIDENTE

Brás Cubas reencontra um velho amigo de infância, o Quincas Borba. Estava maltrapilho, vestido em andrajos.

Brás Cubas dá-lhe algum dinheiro e ao se despedir-se, num abraço, Quincas surrupia-lhe o relógio. Brás propõe a

Virgília que fujam, ela recusa a idéia.

Vi que era impossível separar duas coisas que no espírito dela estava inteiramente ligadas: o nosso amor e a consideração

pública. Virgília era capaz de grandes sacrifícios para conservar ambas as vantagens...

Começam os boatos sobre o caso amoroso de Brás e Virgília. Nesse ínterim, Lobo Neves passa a pretender a

presidência de uma província no Norte do país. Convida Brás para secretário. Brás responde positivamente ao convite.

Aparece-lhe em casa sua irmão Sabina e Cotrim eles se reconciliam. Brás vai jantar com o casal e Cotrim lhe alerta

sobre os boatos aconselhando-o a não partir em companhia de Lobo Neves e Virgília. Lobo Neves é nomeado para

presidente da província. No entanto, como a nomeação saira no dia 13, por superstição ele acaba não aceitando.

[Virgília] contou-me que o marido ia recusar a nomeação, e por motivo que só lhe disse dando-lhe o maior segredo; não poderia

confessá-lo a ninguém mais. – É pueril, observou ele, é ridículo, ma, em suma, é um motivo poderoso para mim (...) o pai morreu

no dia 13, treze dias depois de um jantar em que havia treze pessoas. A casa em que morava a mãe tinha o número 13, et coetera.

Era um algarismo fatídico

Page 12: Analise Memorias de Um Sargento e Memorias Postumas

(...) Tolera-se uma superstição gratuita e barata; é insuportável a que leva uma parte da vida. Este era o caso de Lobo Neves com

o acréscimo da dúvida e do terror de haver sido ridículo.

Virgília fica grávida, mas acaba perdendo filho. Brás resolve os problemas da herança com a irmã e Cotrim. Vai

a casa deles jantar e lá conhece Dona Eulália, ou Nhá Loló, como era chamada. Sabina sugere que Brás se case com

ela. Lobo Neves recebe uma carta anônima denunciando o adultério de Virgília. Indagada, Virgília nega.

O marido respirou; mas, tornando a carta, cada palavra parece-lhe que fazia um sinal negativo (...) Esse homem, aliás

intrépido, era agora a mais frágil das criaturas. Talvez a imaginação lhe mostrou, ao longe, o famoso olhar da opinião...

Lobo Neves é novamente nomeado presidente de uma província. Desta vez a nomeação sai no dia 31. Agora ele

aceita. Virgília e o marido partem.

12) O FILÓSOFO QUINCAS BORBA

Com a partida de Virgília, Brás Cubas fica desolado, tem agora uma sensação de viuvez. Procura consolar-se

nos passeios ou em jantares. Aparece-lhe Quincas Borba. Quincas havia recebido uma herança de um parente de

Minas e agora estava bem vestido e rico e filósofo. Restitui a Brás o relógio Ele expõe a Brás Cubas o Humanitismo, o

seu sistema filosófico destinado a “arruinar todos os outros sistemas”. O Humanitismo (ou borbismo) é uma espécie

de pastiche, mistura de doutrinas do materialismo da época, principalmente o Positivismo, o Determinismo e o

Evolucionismo.

Humanitas, dizia ele, o princípio das coisas, não é outro senão o mesmo homem repartido por todos os homens (...)

- Para entender bem o meu sistema, concluiu ele, importa não esquecer nunca o princípio universal, repartido e resumido em

cada homem. Olha: a guerra, que parece uma calamidade, é uma operação conveniente, como se disséssemos o estalar dos dedos

de Humanitas; a fome (e ele chupava filosoficamente a asa do frango), a fome é uma prova a que Humanitas submete a própria

víscera. Mas eu não quero outro documento da sublimidade do meu sistema, senão este mesmo frango. Nutriu-se de milho, que

foi plantado por um africano, cresceu, foi vendido; um navio o trouxe, um navio construído por um africano, suponhamos,

importado de Angola. Nasceu esse africano, cresceu, foi vendido; um navio o trouxe, um navio construído de madeira cortada no

mato por dez ou doze homens, levado por velas que oito ou dez homens teceram, sem contar a cordoalha e outras partes do

aparelho náutico. Assim, este frango, que eu almocei agora mesmo, é o resultado de uma multidão de esforós e lutas, executados

com o único fim de dar mate ao meu apetite

13) NHA-LOLÓ

Solitário, Brás resolve aceitar a proposta da irmã Sabina e se casar com Nha Loló. Quincas, ao contrário quer que ele

se converta ao Humanitismo que, dizia ele, era superior às outras doutrinas. São dois tipos de conversão, uma ao

borbismo, outra ao casamento. Loló era simplória, retraída, boa moça e para orgulho do pai Damasceno, tinha dotes

de soprano. Brás Cubas era mais que quarentão. Estava na hora de se casar. Damasceno era chato, pegajoso, um poço

de aparências, de frustrações escondidas, maquiladas. Gente, enfim, envergonhada de ser pobre. O casamento da filha

iria colocá-lo em posição vantajosa. Mas, infelizmente Nhã Loló morre. Morre de febre amarela.

CXXV EPITÁFIO

_____

AQUI JAZ

D.EULÁLIA DAMASCENA DE BRITO

MORTA

AOS DEZENOVE ANOS DE IDADE

ORAI POR ELA!

15) O BALANÇO

A vida, a partir daí serão trivialidades e miudezas. Brás torna-se deputado. Perde a cadeira e funda um jornal. Pouco

depois, fecha o jornal. Virgília e Lobo Neves retornam ao Rio. Morre Dona Plácida. Ao visitar a defunta, Brás

reencontra Eugênia em um cortiço. Em seguida morre Lobo Neves. Morre Marcela. Quincas Borba aparece

semidemente e morre também. Um tempo depois, morreria o próprio Brás Cubas, e voltamos ao começo do livro

CXXXIX DE COMO NÃO FUI MINISTRO DE ESTADO

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CLX DAS NEGATIVAS

Entre a morte do Quincas Borba e a minha mediaram os sucessos narrados na primeira parte do livro (...) Este

último capítulo é todo de negativas. Não alcancei a celebridade do emplastro, não fui ministro, não fui califa, não

conheci o casamento. Verdade é que, ao lado dessas faltas, coube-me a boa fortuna de não comprar o pão com o suor

do meu rosto. Mais, não padeci a morte de D. Plácida, nem a semidemência do Quincas Borba. Somadas umas coisas e

outras, qualquer pessoa imaginará que não houve míngua nem sobra, e conseguintemente que saí quite com a vida. E

imaginará mal, porque ao chegar a este outro lado do mistério, achei-me com um pequeno saldo, que é a derradeira

negativa deste capítulo de negativas: - Não tive filhos, não transmiti a ninguém o legado da nossa miséria.

D) ASPECTOS IMPORTANTES

1) ASPECTOS TEMÁTICOS

- Crítica da Sociedade: o narrador traça uma análise crítica da vida, das relações humanas. Nas “Memórias”

existem dois tipos de relações: as fingidas e as verídicas. As fingidas, dissimuladas, são a busca da ascensão e do poder:

todos os personagens são movidos pela ambição do poder financeiro ou da celebração pública. As verídicas são a

fatalidade, o azar, a loucura, a doença, a indiferença, a velhice e, enfim, a morte. Mas Machado não julga as ações como

boas ou más. Mostra que elas existem no ser humano: as relações fingidas partem dos nossos desejos. As verídicas são

fatalidade e agem, inclusive, contra a nossa vontade.

- Contraste entre aparência e essência: a sociedade que Machado de Assis retrata é a das classes altas do Rio de

Janeiro do século passado. Do lado oposto a estas elites estavam os escravos urbanos e domiciliares. Em torno deles

girava uma classe média formada por funcionários e alguns pobres em busca de ascensão. Nota-se que a elite tinha um

comportamento que a levava a consumir as idéias e os hábitos das elites européias, notadamente as idéias liberais

como o abolicionismo, o republicanismo e o romantismo; ao mesmo tempo, a estrutura social e econômica do país

mostrava uma realidade baseada num sistema escravocrata primitivo. Um exemplo disso é Cotrim, que enriquece

traficando escravos. Nesse sistema, a ascensão social - a quem era permitida - dependia de favores dos mais ricos.

Essa sociedade era liberal nas idéias, mas não na prática. Machado desmascara essa realidade.

- Pessimismo: nas “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, o tempo não apenas envelhece as pessoas, mas destrói-lhes

as ilusões e os sonhos. A impossibilidade de alcançar a felicidade e a realização dos desejos viria, então, do fato do ser

humano ser dominado pelo egoísmo, pela ambição desmesurada, pela vaidade, pela hipocrisia individual e social.

- Universalismo : embora a estória se passe no Rio de Janeiro do final do século passado, os temas tratados por

Machado não são restritos àquela sociedade e àquele tempo. São, sim, problemas que afligem a todos em todos os

tempos e em todos os lugares.

2) ASPECTOS FORMAIS

- Quebra da linearidade da narrativa: a narrativa obedece ao fluxo da memória e a memória não é propriamente

linear. O narrador relata os acontecimentos na medida em que eles lhe surgem na memória. Como exemplo, o capítulo

LXXI.

- Metalinguagem: nota-se em toda a narrativa uma organização metalinguística. Por muitas vezes, o narrador

interrompe a narrativa para tecer comentários, geralmente de maneira bem humorada, sobre a construção do

romance, sobre as atitudes da personagem ou ainda sobre um determinado episódio. O narrador faz ainda digressões

sobre vários assuntos. É importante notar que essas digressões sempre têm alguma relação com o todo, com os

objetivos do autor na condução da narrativa.

- Ironia, humor amargo: a fina ironia do autor está presente em praticamente toda a obra. No início, ao se declarar

um defunto-autor, o narrador se coloca na posição de quem já passou pelo nosso mundo e, como um grande sátiro,

pode rir dos que ainda o habitam, pode rir de si mesmo.

Page 14: Analise Memorias de Um Sargento e Memorias Postumas

- O estilo conciso: o texto de Machado de Assis prima pelo equilíbrio, pela correção gramatical e pela concisão, ou

seja, pela economia vocabular. O gosto pela concisão leva o autor a maestria na construção de expressões de efeito

poderoso: “o menino é o pai do homem”, “Marcela amou-me durante quinze meses e onze contos de réis”. Aliás, o

capítulo CXIX, denominado “Parêntesis” é todo de máximas jocosas que o autor cunha: Suporta-se com paciência a

cólica do outro. Matamos o tempo; e o tempo nos enterra; Crê em ti; mas nem sempre duvide dos outros; Não te irrite

se te pagarem mal um benefício: antes cair das nuvens que de um terceiro andar

D) SOBRE A OBRA

(...) Brás Cubas é um fátuo, prisioneiro dos desejos, que aspira egoisticamente ao gozo, ao poder e à glória. Sua história

evolui num palco onde reina a decomposição dos seres e das experiências: a beleza de Marcela, o seu amor por Virgília,

a sua ternura pela própria irmã, tudo se esvai, tudo apodrece. Conforme avisa o narrador, o livro “cheira a sepulcro”. A

crueldade é a norma da vida. O herói mata com volúpia borboletas (Cap XXXI), moscas e formigas (Cap CII). E os

oprimidos não são melhores do que os opressores: assim que o libertam, o escravo Prudêncio, que o menino Brás

maltratava, chicoteia sem piedade o seu próprio servo; os criados de Virgília desforram espionando-lhe o adultério. As

causas mais nobres ocultam sempre interesses impuros (...) Para ele [Machado de Assis], os bons sentimentos são a

máscara do egoísmo. Quanto aos valores sociais, repousam na mentira e nas conveniências (...)

As bases sociais desse mundo não são difíceis de circunscrever. O ambiente de Brás Cubas é o das elites

escravocratas de Oitocentos; ambiente em que ócio e sadismo prevalecem (...) É um espaço comunitário fundado nas

relações de força, onde a separação das classes só é atenuada por poucos cimentos culturais e válvulas políticas; uma

estrutura social que reflete e estimula instintos agressivos.

Jose Guilherme Merquior, O romance Carnavalesco de Machado