Analzira Pereira Do Nascimento
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UNIVERSIDADE METODISTA DE SO PAULO FACULDADE DE HUMANIDADES E DIREITO
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM CINCIAS DA RELIGIO
MISSO E ALTERIDADE: DESCOLONIZAR O PARADIGMA MISSIOLGICO
ANALZIRA NASCIMENTO
SO BERNARDO DO CAMPO, 2013
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ANALZIRA NASCIMENTO
MISSO E ALTERIDADE: DESCOLONIZAR O PARADIGMA MISSIOLGICO
Tese apresentada Universidade Metodista de So Paulo, Faculdade de Humanidades e Direito, Programa de Ps-Graduao em Cincias da Religio para obteno do grau de Doutor. rea de Concentrao: Religio, Sociedade e Cultura Orientador: Jung Mo Sung
SO BERNARDO DO CAMPO, 2013
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FICHA CATALOGRFICA
N17m
Nascimento, Analzira Misso e alteridade : descolonizar o paradigma missiolgico /Analzira
Nascimento -- So Bernardo do Campo, 2013.
165fl. Tese (Doutorado em Cincias da Religio) -- Faculdade de Humanidades e Direito, Programa de Ps-Graduao Cincias da Religio da Universidade Metodista de So Paulo, So Bernardo do Campo Bibliografia Orientao de: Jung Mo Sung
1. Misso 2. Alteridade 3. Igreja (Paradigma) 4. Dilogo inter-religioso I. Ttulo
CDD 266
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FOLHA DE APROVAO
A tese de doutorado intitulada: MISSO E ALTERIDADE: DESCOLONIZAR O PARADIGMA MISSIOLGICO, elaborada por ANALZIRA NASCIMENTO, foi
apresentada e aprovada em 27 de setembro de 2013, perante banca examinadora
composta por Prof. Dr. Jung Mo Sung (Presidente/UMESP), Prof. Dr. Lauri Emilio
Wirth (Titular/UMESP), Prof. Dr. Claudio de Oliveira Ribeiro (Titular/UMESP), Prof.
Dr. Gedeon Freire de Alencar (Titular/ FTB-SP), Prof. Dr. Edin Sued Abumanssur
(Titular/ PUC-SP)
______________________________________ Prof. Dr. Jung Mo Sung
Orientador e Presidente da Banca Examinadora
______________________________________ Prof. Dr. Helmut Renders
Coordenador do Programa de Ps-Graduao
Programa: Ps-Graduao em Cincias da Religio
rea de Concentrao: Religio, Sociedade e Cultura
Linha de Pesquisa: Religio e Dinmicas Psicossociais e Pedaggicas
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AGRADECIMENTOS
Viver uma constante busca pelo sentido de estar neste planeta, e esta tese
uma das formas de deixar algum legado para o movimento missionrio brasileiro.
Minha orao diria tem sido baseada nas palavras do apstolo Paulo,
quando disse no livro de Atos 20.24: Todavia, no me importo, nem considero a
minha vida de valor algum para mim mesmo, se to-somente puder terminar a
corrida e completar o ministrio que o Senhor Jesus me confiou, de testemunhar do
evangelho da graa de Deus (NVI).
No foi possvel eu pesquisar como pretendia, pois muitas vezes fiquei refm
desta minha proposta pessoal de vida: o que realmente importa completar o
ministrio e terminar a corrida.
Agradeo a Deus por sua misericrdia comigo, aos meus lderes pela
compreenso de minha ausncia em alguns momentos, minha famlia pelo apoio de
sempre, e ao meu orientador pela pacincia com as minhas limitaes.
E CAPES e ao IEPG pelo apoio financeiro.
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NASCIMENTO, Analzira. Misso e Alteridade: descolonizar o paradigma
missiolgico. Tese (Doutorado em Cincias da Religio). Universidade Metodista de
So Paulo.
SINOPSE
A igreja, no decorrer da Histria, adotou prticas evangelizadoras que foram
sedimentando um paradigma de misso que veio a ser fortemente marcado pelos
empreendimentos de expanso colonialista. A partir do sculo XVI, uma bifurcao
feita com a Reforma, mas este projeto tambm no consegue fugir da lgica
colonial. Acompanhamos a trajetria deste modelo que, influenciado pelo
puritanismo e o pietismo, e com o retoque das ideias iluministas, vem a ser
formatado nos Estados Unidos da Amrica, dando origem ao paradigma missionrio
protestante dominante.
Sustentamos que a igreja, em seus encontros com o outro, zelosa por cumprir
programas de expanso, continua a reproduzir a mesma lgica colonialista de
dominao que refora a negao da identidade do outro.
O primeiro captulo retrata a crise paradigmtica sociocultural e epistemolgica que
tambm afetou o movimento missionrio contemporneo em virtude do
descompasso entre estratgias usadas pela igreja e as novas demandas e desafios
que o mundo apresenta. O captulo dois mostra a caminhada do movimento
missionrio atravs da Histria, destacando os eventos que viriam contribuir para a
configurao do paradigma de misso. O captulo trs acompanha a sua trajetria
protestante depois da Reforma e como ele se tornou o modelo dominante nos EUA.
Finalmente, o captulo quatro traz a reflexo a respeito de um novo jeito de pensar a
misso, propondo uma missiologia dialgica descolonizada.
Palavras-chave: misso; igreja; paradigma; colonialidade; alteridade; dialogicidade.
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NASCIMENTO, Analzira. Mission and Otherness: decolonizing missiological
paradigm. Thesis (Ph.D. in Religious Sciences). Methodist University of So Paulo.
ABSTRACT
Throughout history the Church has adopted evangelizing practices which
consolidated a mission paradigm that became tightly influenced by colonialist
expansion enterprises. As from sixteenth century took place an embranchment with
the Reformation, although this draft also failed to break away colonial logic. We have
gone along with this pattern trajectory as affected by puritanism and pietism, in
addition to illuminist ideas retouching, it comes to be formatted at United States of
America generating a missionary paradigm dominant protestant.
In meeting the other, we support that the Church, zealous with fulfilling expansion
programs, continues to play the same colonialist logic of domination that reinforces
the denial of "other" identity.
The first chapter depicts the socio-cultural and epistemological paradigmatic crisis
which also has affected contemporary missionary movement due to the mismatch
amidst strategies used by the church and the fresh requests and challenges
presented by the world. The second chapter demonstrates the missionary movement
journey throughout history highlighting the events that would contribute for
missionary paradigm setting; the third chapter follows its trajectory after the
Reformation and how it became the dominant model at USA. Lastly chapter four
introduces a reflection on a new way of thinking about mission proposing a dialogical
decolonized missiology.
Keywords: mission, church, paradigm, colonialism, otherness, dialogicity.
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LISTA DE SIGLAS
AMTB Associao de Misses Transculturais Brasileiras
BMS Sociedade Missionria Batista (Inglaterra)
CBB Conveno Batista Brasileira
IMB Junta de Misses Mundiais Batista da SBC
JMM Junta de Misses Mundiais da CBB
SBC Conveno Batista do Sul dos EUA
MPLA - Movimento para Libertao de Angola UNITA - Unio Nacional para Independncia Total de Angola
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SUMRIO
INTRODUO ................................................................................................................... 10
CAPTULO 1
CRISE PARADIGMTICA: exausto de modelos ocidentais ............................................. 18
1.1 A Crise Paradigmtica Sociocultural e Epistemolgica ................................................ 19
1.2 A Crise Paradigmtica na Misso ................................................................................ 32
CAPTULO 2
PARCERIA MISSO E EXPANSO IMPERIALISTA:
a sedimentao do paradigma missionrio dominante ....................................................... 55
2.1 Cristianismo e cristandade .......................................................................................... 56
2.2. Projeto eurocntrico e cristandade latina .................................................................... 65
2.3. Expansionismo e subalternizao: a negao da alteridade ....................................... 69
2.4. Colonizao e misso: a dominao que silencia ....................................................... 78
CAPTULO 3
A FORMATAO DO PARADIGMA MISSIONRIO PROTESTANTE DOMINANTE ........ 84
3.1. As razes: puritanismo e pietismo ............................................................................... 84
3.2. Implantao do protestantismo na Amrica do Norte ................................................. 89
3.3. A hegemonia norte-americana e a expanso missionria protestante ....................... 93
3.4. Misses protestantes na Amrica Latina e Brasil ........................................................ 98
3.5. A crise do paradigma hoje: um exemplo entre os batistas ....................................... 105
CAPTULO 4
REENCONTRANDO O CAMINHO DA PRTICA DIALGICA:
por uma missiologia descolonial ...................................................................................... 115
4.1. Escapando da lgica colonialista .............................................................................. 116
4.2. Vendo o mundo na perspectiva do outro ............................................................... 127
4.3. Aprendendo com a Histria ....................................................................................... 133
4.4 Buscando o ideal bblico ............................................................................................ 139
CONSIDERAES FINAIS ............................................................................................. 154
REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS ................................................................................. 161
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INTRODUO A ideia desta pesquisa surgiu de uma constatao da necessidade de novo
paradigma missionrio para o trabalho de misses, quando, em 1985, fui trabalhar
em Angola, na frica, e l permaneci 17 anos. Logo de incio pude verificar que o
modelo missionrio que reinava no Brasil e que me enviara no conseguia mais dar
respostas para os novos desafios que despontavam no mundo, muito menos para as
demandas locais que eu enfrentava nas rotinas dirias.
Repentinamente, encontrei-me em um universo bastante estranho: convivendo
com uma nova cultura bem diferente da ocidental e descaracterizada por duas
guerras,1 um governo centralizador de linha marxista-leninista, e residindo em uma
cidade que foi o epicentro do conflito armado, isolada em determinados perodos
pelos combates.
Depois de inmeras dificuldades de adaptao e alguns erros culturais,
somente no retornei por motivos alheios minha vontade. Entretanto, minha
formao em enfermagem possibilitou-me uma nova chance e veio nortear o meu
projeto missionrio para aquela nao, dando um novo direcionamento para a minha
vida. Foi assim que, sofrendo com a igreja angolana, decidimos no ficar refm da
situao para no sucumbir diante da misria que nos era imposta pela guerra e
seus desdobramentos. Juntos, organizamos o contra-ataque, resistimos e
descobrimos que a crise traz oportunidades imperdveis para a igreja exercer a sua
misso.
Neste empreendimento de reavaliar motivos, sentido, objetivos e metas,
precisei reinventar meu programa de trabalho, principalmente com o
recrudescimento da situao poltico-militar que assolou todo o pas. Novas
perguntas exigiam novas respostas, conduzindo-nos a focar as aes na formao
de agentes de transformao e, com as lideranas locais, trabalhar pela
transformao de realidades por meio de projetos de desenvolvimento, conforme
1 Guerras de Angola Desde 1961, movimentos de resistncia ao regime colonial portugus iniciaram uma luta armada, at que em 1975 conseguiram a independncia de Angola. A partir deste ano, dois dos movimentos no se entenderam quanto a um governo de transio e aos protocolos assinados, iniciando um novo conflito protagonizado pelo MPLA, no governo do pas com o apoio da URSS e a UNITA, movimento de oposio ao regime marxista-leninista, auxiliada pelos EUA. A guerra s terminou em 2002 com a morte de Jonas Savimbi, lder da guerrilha e a assinatura dos acordos de paz.
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escrevi na dissertao de mestrado: As necessidades e demandas que a
devastao da guerra gerava no cotidiano colocavam para a comunidade batista a
necessidade de reviso em sua eclesiologia para procurar responder s novas
perguntas que surgiam.2 Houve um frutfero intercmbio com organizaes
internacionais e foram implantados vrios projetos sociomissionrios, que geraram
empregos e renda, devolveram a dignidade e a autoestima para as pessoas e
contriburam para o desenvolvimento da cidade.
Essa vivncia forjou minha prtica exatamente no processo do fazer dirio,
do servio sacrificial, do negociar constantemente e do reconhecer a
interdependncia para, juntos, e na medida do possvel, trabalharmos pela
construo de uma sociedade melhor.
Em agosto de 2002, fui convidada pela Junta de Misses Mundiais da
Conveno Batista Brasileira a retornar ao Brasil para trabalhar com a formao de
missionrios e assumir a coordenao do projeto Voluntrios Sem Fronteiras, que
tem por objetivo preparar e enviar equipes de jovens para pases com baixo IDH,
principalmente na frica. O plano pedaggico inicial visava programas de misso
com engajamento em projetos de transformao social. O laboratrio em Angola j
demonstrara que era possvel a transformao de comunidades pelo evangelho
integral3 e, portanto, era fundamental rever nosso paradigma de misso que,
segundo o pensamento de David Bosch, deve constituir um ministrio
multifacetado.4 Para ele, a definio de misso est imbricada com a compreenso
sobre o que a igreja foi chamada a realizar no mundo de seu tempo. Entretanto, a
forte presso de algumas lideranas e as nfases da instituio para restringir o
trabalho a aes de proclamao no s ameaavam descaracterizar o projeto, mas
2 NASCIMENTO, Analzira. Crise e Esperana: A prxis pastoral da Igreja Batista na guerra de Angola, 2005.235 p Dissertao (Mestrado em Cincias da Religio) UMESP. So Paulo, p.154. 3 a evoluo de um conceito proveniente de um debate teolgico, pastoral e missional sobre a verdadeira significncia e prtica da mensagem de Jesus Cristo, que correu pela Amrica Latina (Congresso Latino-Americano de Evangelizao - CLADE I - em Bogot, 1969). Um dos desdobramentos foi o surgimento da Fraternidade de Telogos Latino-americanos (FTL -Cochabamba, 1970), e popularizou-se com o Congresso Internacional de Evangelizao Mundial realizado em Lausanne, Suia, em 1974. Tomava corpo, ento, a nascente teologia da misso integral cuja repercusso se faz presente at os dias de hoje pelo mote: O evangelho todo, para o homem todo. 4 David Bosch, missilogo sul-africano, em sua obra Misso Transformadora: mudanas de paradigma na teologia da misso faz uma anlise das Conferncias que influenciaram movimentos missionrios e sua compreenso de misso. Na Conferncia de Willingen (1952), foi adotada a frmula: MARTYRIA (conceito abrangente) = KERYGMA + DIACONIA + KOINONIA.
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tambm me impeliam a fazer uma pausa ttica e empreender uma busca por
caminhos alternativos.
Desenvolver um programa inovador, enfrentando embates de uma mentalidade
de manuteno, que se ope a dialogicidade com questes contemporneas, foi o
que me motivou/desafiou a comear a trabalhar nesta pesquisa. Fui percebendo que
a minha inquietao inicial, que aparentemente se resumia no mbito de estratgias
e metodologias, agora ao entrar em contato com diferentes tendncias e correntes
de pensamento no movimento missionrio atual, algumas evidncias comearam a
mostrar que o descompasso no era s uma questo operacional batista, mas o
Brasil protestante, de uma forma geral, reproduzia um modelo inspirado numa viso
de mundo que apresentava claros sinais de esgotamento.
No incio da pesquisa, o objetivo era passar alguns meses nos Estados Unidos
da Amrica, na regio de Richmond, visitando os escritrios centrais da SBC,5
especialmente as dependncias da IMB6 para coletar informaes que me
fornececem subsdios para melhor compreenso do pensamento desta to famosa e
considerada a maior agncia denominacional enviadora de missionrios em todo o
mundo. Minha ideia era tambm estabelecer uma transversalidade com algumas
escolas de formao missionria no Brasil, para analisar o quanto reproduzamos,
ou no, o paradigma norte-americano em nossa missiologia brasileira e para ser
mais especfica, a missiologia batista.
Como docente em algumas escolas em diferentes regies do Brasil, percebi
que os processos no eram como eu previa, e a confirmao veio com o silncio das
escolas consultadas. S uma concedeu autorizao para a pesquisa, mas era
insuficiente para a comprovao da tese. Sem acesso aos arquivos e documentos,
desisti das duas possibilidades porque com esta metodologia eu estaria dependendo
de informaes autorizadas e foi ento que optei pela pesquisa bibliogrfica.
Com a caminhada na universidade, a investigao me conduziu para novas
possibilidades e minha compreenso foi tomando outros rumos, ajudando-me a
entender que o problema no se restringia simplesmente a uma necessidade de
rever os jeitos de fazer. A convivncia com grupos de vanguarda, especialmente os
que trabalhavam com uma abordagem holstica, trouxe uma contribuio para a 5 SBC Conveno Batista do Sul dos Estados Unidos (SBC), sediada em Richmond, na Virgnia. 6 IMB International Mission Board (Junta de Misses Mundiais), organizao denominacional pertencente SBC.
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delimitao desta tese. Eu ainda ficava intrigada com uma questo: por que alguns
cristos sinceros e bem-intencionados, preocupados com a situao espiritual ou
mesmo com todos os aspectos da vida do ser humano, continuam reproduzindo uma
prtica missionria caracterizada como os superiores que sabem e podem resolver
os problemas do outro e decidir o que bom para ele? Por que at mesmo alguns
defensores de um discurso que conclama a igreja contempornea a se inserir
melhor na sociedade e educar o seu olhar para uma interpretao diferenciada
quanto aos desafios alm dos seus portes, no conseguem construir uma relao dialgica-diaconal e escapar da lgica colonial em seus encontros com o outro?
Minha hiptese que nos encontros com o outro, na nsia de cumprir uma
agenda eclesistica, muitas vezes o missionrio no consegue reconhec-lo como
sujeito, ou seja, o paradigma de misso que predomina, principalmente no mundo
evanglico, continua a reproduzir a mesma lgica colonialista eurocntrica de
dominao que refora a negao da identidade do outro e o reduz a objeto.
Nesta pesquisa, trazemos propostas sobre como atuar numa nova lgica
descolonizada que venha contrapor ao continusmo de um modelo que d sinais to
claros de exausto e trabalhar por uma cultura de liminaridade7 que respeite outras
cosmovises com seus saberes e as suas diferenas. A proposta vai discutir o
paradigma dominante na prtica missionria, provocando uma reflexo em torno da
temtica da alteridade que pressupe nos relacionamentos sociais a distino do que
o outro, ou seja, os seres humanos interagem, so interdependentes, no entanto, o
outro um ser distinto e a sua subjetividade deve ser preservada, em contraposio
abordagem bancria8 que prioriza o depsito de contedos nas pessoas,
especialmente as que vivem fora do arraial cristo.
Esta tese no um estudo sobre teologia da misso e muito menos uma
pesquisa histrica sobre modelos de misso, mas quer demonstrar como foi sendo
configurado ao longo dos sculos este paradigma dominante que ainda hoje
percebemos em quase todos os movimentos missionrios. Ela vai discorrer
especificamente sobre a sedimentao do modelo missionrio dominante na
7 Interao cultural entre diferentes indivduos onde no h supresso ou movimento de subalternidade da expresso cultural alheia, mas h interao dialgica e de troca de suas matrizes culturais. 8 Educao Bancria - Paulo Freire se refere a educao bancria como sendo uma metodologia em que o aluno simplesmente um recipiente onde os contedos so despejados. A postura apassivada, basta memorizar ou repetir. No existe relao de dialogicidade.
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atuao da igreja nos encontros com o outro, especialmente a partir do projeto
eurocntrico colonialista de dominao no sculo XVI. A temtica ser abordada
numa transversalidade com os estudos Ps-Coloniais, porque acreditamos que, em
se falando de alteridade, hoje o nosso estranhamento no encontro com o outro
tambm tem suas razes na formatao de uma cosmoviso ocidental hegemnica,
que foi fortemente influenciada pelos empreendimentos de expanso colonialista a
partir de 1492. Exatamente aqui, Enrique Dussel vai trazer uma contribuio
essencial para o texto sobre relaes de poder, dominao e subalternidade,
quando a Europa pode se confrontar com o seu outro, se afirmar como centro do
mundo e assim control-lo e venc-lo. Para ele, no houve descobrimento, mas um
encobrimento do outro.
Este um ponto chave nesta pesquisa, pois sua relevncia est em abrir uma
discusso sobre o grau de cumplicidade dos programas missionrios com
movimentos imperialistas hegemnicos, em alguns momentos da Histria, utilizando
as mesmas estratgias de abordagem colonialista, inclusive at a atualidade, em
pleno sculo XXI. Sua importncia tambm reside no s em estabelecer um dilogo
com alguns tericos dos estudos Ps-Coloniais, mas tambm com o socilogo
Boaventura de Sousa Santos para que, buscando uma compreenso melhor do
homem e do mundo ao seu redor, seja possvel propor um paradigma missiolgico
descolonizado9 que facilite reencontrar o caminho de uma prtica missionria
dialgica.
A maioria desses autores vincula o trabalho missionrio com os movimentos de
expanso colonialista, assegurando serem interdependentes. Para eles, as
misses foram parceiras nestes projetos etnocntricos que conduziram
aniquilao de culturas locais.
Outro referencial terico utilizado so as teses de David Bosch sobre o projeto
missionrio ao longo da Histria e como a igreja de cada perodo compreendia seu
papel na sociedade. Esse missilogo tambm sustenta que o paradigma de misso
foi fortemente contaminado por sua origem no colonialismo ocidental e que ele
precisa deixar de ser um smbolo da universalidade do imperialismo ocidental entre
as novas geraes do mundo emergente, do contrrio a presente estrutura da
9 Descolonizado extrair resqucios de colonialidade do paradigma missiolgico, ou seja, a partir dos conceitos dos tericos dos Estudos Ps-coloniais, seria eliminar vestgios de uma lgica estrutural de dominao colonialista do pensamento e prtica missionria.
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misso moderna est morta.10 E por isto o projeto de misso precisa buscar novas
possibilidades para conseguir reconquistar seu espao e ser relevante no presente
sculo.
Esclareo que no desenvolvimento da tese utilizo duas perspectivas como
observadora do objeto: a da terceira pessoa, que analisa de fora o paradigma
dominante; mas tambm da perspectiva da primeira pessoa, a partir da minha
experincia de missionria, assumindo uma posio na discusso, particularmente
no captulo 4, pois a motivao principal para a pesquisa surgiu a partir da vivncia
pessoal de misso. Ali a fronteira entre pesquisador, objeto e sujeito ativo fica um
pouco tnue, porque a confirmao e argumentao esto muito prximas da prtica
e das evidncias. Foi preciso sair do camarote e tirar a luva como se refere Paulo
Freire ao argumentar sobre a complexidade da neutralidade cientfica quando disse
que: no me parece possvel nem aceitvel a posio ingnua ou, pior, astutamente
neutra de quem estuda, seja o fsico, o bilogo, o socilogo, o matemtico, ou o
pensador da educao. Ningum pode estar no mundo, com o mundo e com os
outros de forma neutra,11 e principalmente no estudo desta temtica, no posso
colocar-me de fora, quando me dedico a esta pesquisa, estou diante do espelho.
Sem cair num empirismo alienante e ao mesmo tempo dando o devido valor
experincia, fazemos um contraponto ao ceticismo epistemolgico ocidental que
muitas vezes despreza a prtica e aproveitamos para lembrar a possibilidade do
conhecimento objetivo, cuja efetivao se d na conjugao e no dilogo entre teoria
e prtica.12 Procuramos objetividade possvel, mas sem negar que somos sujeitos
inseridos no mundo e na Histria. A pretensa neutralidade do conhecimento cientfico, um dos mitos da cincia moderna ocidental, criticada por Boaventura de
Sousa Santos, que a inclui na categoria de monocultura do saber e do rigor. Ele nos
incentiva a discutir como podemos, no que diz respeito cincia, ser objetivos, mas
no neutros; como devemos distinguir entre objetividade e neutralidade.13
10 BOSCH, David. Misso Transformadora: mudanas de paradigma na teologia da misso, p. 617. 11 FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: saberes necessrios pratica educativa, p. 86. 12 MARCONDES DE MORAES, Maria Clia; MLLER, Ricardo Gaspar. Histria e Experincia: contribuies de E.P. Thompson pesquisa em educao, p. 344.. 13 SANTOS, Boaventura de Sousa. Renovar a Teoria Crtica e Reinventar a Emancipao Social, p. 23.
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Essa racionalidade, que ele batizou de razo indolente, se considera nica e
recusa a aceitar a existncia de conhecimentos alternativos ao conhecimento
cientfico, por isto h um desperdcio de experincias porque no so legitimadas ou
credibilizadas pelas cincias hegemnicas. Entretanto, elas podem se tornar
sementes e embries de novas formas de produzir conhecimento.
O texto est organizado em quatro captulos, sendo que o captulo um
apresenta a crise paradigmtica sociocultural e epistemolgica que vivemos neste
incio de milnio e que afetou tambm o projeto missionrio cristo. Segundo
Boaventura de Sousa Santos, estamos em um perodo de transio paradigmtica
que se caracteriza por vivermos um tempo de busca, no por um novo
conhecimento, mas por um novo modo de produo de conhecimento. Ele nos incentiva a ter uma atitude crtica com esta razo ocidental que reina desde o
Iluminismo, uma racionalidade que domina no Norte e que tem tido uma influncia
enorme em todas as nossas maneiras de pensar, em nossas cincias, em nossas
concepes da vida e do mundo.14 Ela uma razo indolente, porque se
considera nica e no quer ver a diversidade epistemolgica e a riqueza de outras
culturas. Ela produz monoculturas que encobrem o outro e o tornam invisvel,
porque ele diferente e no se enquadra em sua concepo hegemnica de
realidade.
Neste captulo primeiro, mostramos o quanto o perodo das luzes influenciou o
pensamento e prtica missionria, contribuindo para configurar o sentimento de
superioridade ocidental que j vinha de uma caminhada histrica e foi fortalecido
com os projetos colonialistas. E hoje, este modelo de ao missionria entrou em
crise e precisa buscar uma adequao para superar o descompasso com um novo
mundo que valoriza e respeita a diversidade cultural.
O captulo dois faz uma retrospectiva na histria do cristianismo com foco no
em relatos de acontecimentos importantes, mas trabalhando o conceito de
cristandade desde o sculo IV, para expor como o paradigma de misso foi sendo
sedimentado a partir da compreenso que a igreja tinha acerca do seu papel no
mundo em cada poca. Fechando essa etapa, mostramos como o projeto ibrico
atravs dos empreendimentos colonialistas na conquista da Amrica foi
determinante para delinear o modelo atual da prtica missionria. 14 Ibid., p. 25.
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Retomando o sculo XVI, o captulo trs vai percorrer o outro lado da
bifurcao na histria do cristianismo, comeando com a Reforma Protestante, que
vai dar origem a um novo paradigma, mas com um projeto tambm imperialista e
monocultural. Com marcas do puritanismo e do pietismo, este modelo vai ser
formatado nos Estados Unidos tornando-se uma matriz para o paradigma
missionrio dominante. Encerramos esta seo comentando a crise que se instalou
na maior agncia norte-americana enviadora de missionrios, por conta de sua
intransigncia em no querer rever suas estratgias missionrias colonialistas, que
j no conseguem mais se impor nos pases emergentes.
A tese conclui com o captulo quatro propondo um reencontro com a
dialogicidade na ao missionria para atuar numa nova lgica descolonizada, pois
a prtica de misso que predomina j vem dando claros sinais de esgotamento h
muito tempo. E para escapar da colonialidade que est impregnada no paradigma
que impera na atualidade, defendemos a recuperao do modelo ideal bblico, o
aprendizado com a Histria e a educao do olhar para ver o mundo na perspectiva
do outro. Sustentamos a importncia de fugir de todo resqucio de colonialismo nas
abordagens crists, como diz Boaventura de Sousa Santos, que nada mais nada
menos do que a incapacidade de estabelecer relao com o outro a no ser
transformando-o em objeto.15 preciso parar de invadir a casa do outro, entender
que ele tambm tem o que dizer e que, ouvindo, alcanaremos condies de
dilogo.
15 SANTOS, Boaventura de Sousa. A Crtica da Razo Indolente: contra o desperdcio da experincia, p. 83.
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Captulo 1 CRISE PARADIGMTICA:
exausto de modelos ocidentais
Vivemos tempos de sociedades intervalares,16 uma poca de transio
caracterizada por grandes mudanas sociopolticas e culturais, tanto na esfera
global como localizada. Estamos observando o esgotamento de modelos que foram
referncia e determinavam as formas de pensar e fazer. Presenciamos o fim de um
tipo de sociedade, um paradigma que se enfraquece e que foi construdo sobre a
ideia de que a sociedade no tem outro fundamento seno o social (...) uma
representao da sociedade na qual o mundo ocidental viveu durante vrios
sculos.17
No limiar entre um novo mundo que desponta e vai sufocando o anterior, que
est ficando ultrapassado, surgem crises decorrentes no s da inadequao frente
a novas realidades, mas como constatamos no decorrer da histria da humanidade,
tambm pela presena de diferentes cosmovises que convivem simultaneamente
em diferentes momentos de cada sociedade, gerando descompassos entre o
conservadorismo e o emergente. Alguns crticos j identificam os nossos dias como
um perodo de crise paradigmtica.
Esses fenmenos que vm alterando os nossos quadros de referncia e
conduzindo a novas maneiras de compreender a realidade tm desdobramentos nos
mais variados segmentos da sociedade, atingindo de modo certeiro o mundo cristo
e, em especial, o paradigma missionrio.
Nossa sociedade mudou consideravelmente e a igreja continuou com o mesmo
discurso dirigido a uma populao de dcadas passadas. Sua prtica segue uma
metodologia que, no mbito da educao, Paulo Freire chama de educao
bancria,18 em que o aluno simplesmente um recipiente onde os contedos so
despejados. A postura apassivada, basta memorizar ou repetir. No existe relao
16 O termo usado por Boaventura de Sousa Santos para se referir a perodos de transio. Momentos de mudanas de paradigmas. 17 TOURAINE, Alain. Um Novo Paradigma: para compreender o mundo de hoje, p. 55. 18 FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido, 2007, p. 66.
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de dialogicidade, a ao educativa se torna um ato de depositar, em que os
educandos so os depositrios e o educador o depositante.
A atividade missionria da igreja, que possibilita o dilogo com o mundo fora da
realidade eclesistica, tambm ficou em um descompasso sem precedentes. Se
transportarmos/adaptarmos a educao bancria para a prtica missionria, o
educando seria o outro, o objeto da prtica missionria, o depositrio, enquanto
que o educador o missionrio, o depositante, o ltimo aquele que detm o saber
e, por isso, ignora ou no considera o que as pessoas do local j sabem.
Essa prtica j no consegue impor-se. Ela est dando respostas para
perguntas que no so mais feitas.
1.1 A Crise Paradigmtica Sociocultural e Epistemolgica Ao defender sua tese sobre a transio paradigmtica, Boaventura de Sousa
Santos argumenta que o paradigma epistemolgico ocidental, que dominou por
muitos anos, foi cada vez mais dando sinais de esgotamento e refletindo cada vez
menos a prtica cientfica. J possvel concluir que a cincia em geral e no
apenas as cincias sociais se pautavam por um paradigma epistemolgico e um
modelo de racionalidade que davam sinais de exausto, sinais to evidentes que
podamos falar de uma crise paradigmtica.19 Ele afirma que a condio da nossa
condio estarmos em um perodo de transio, ou seja, temos problemas
modernos para os quais no temos solues modernas. E isso d ao nosso tempo o
carter de transio.20 uma crise do pensamento hegemnico que foi alicerado em uma razo
eurocntrica. indolente, porque se recusa a ver outros saberes, buscar novas
solues, e incapaz de produzir novas ideias.21
Essa falncia, cada vez mais visvel, tambm expe de forma gritante o grande
desafio de trabalhar para a construo/configurao de um modelo emergente,
ainda de difcil identificao que esse socilogo tambm denomina de paradigma de
um conhecimento prudente para uma vida decente. 22
19 SANTOS, Boaventura de Sousa. A Gramtica do Tempo: para uma nova cultura poltica, p. 25. 20 SANTOS, Boaventura de Sousa. Renovar a Teoria Crtica e reinventar a emancipao social, p. 19. 21 SANTOS, Boaventura de Sousa. A Crtica da Razo Indolente: contra o desperdcio da experincia, p. 42. 22 IDEM. A Crtica da Razo Indolente: contra o desperdcio da experincia, p. 74.
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Em outro texto, Boaventura trabalha com mais especificidade esse tema da
crise paradigmtica, nem sempre relacionada com perodos de macro, mas tambm
micromudanas. Segundo ele, h basicamente dois tipos de crise paradigmtica:
crise de crescimento, quando h insatisfao com mtodos ou conceitos, e
acontecem com maior frequncia, e crise de degenerescncia, que envolve todo o
paradigma e tem a configurao mais lenta, comprometendo a prpria forma de
inteligibilidade do real que um dado paradigma proporciona e no apenas os
instrumentos metodolgicos e conceituais que lhe do acesso.23
Thomas Kuhn, um fsico terico, que no transcorrer de suas pesquisas passou
a se interessar muito pela Histria da Cincia e Filosofia, desenvolveu uma tese
sobre crises e mudanas de paradigmas. Num primeiro momento, ele afirma que
considera paradigma como as realizaes cientficas universalmente reconhecidas
que, durante algum tempo, fornecem problemas e solues modelares para uma
comunidade de praticantes de uma cincia.24 Posteriormente, ele emprega o
conceito no sentido sociolgico, que pode indicar toda a constelao de crenas,
valores, tcnicas etc... partilhadas pelos membros de uma comunidade
determinada.25
Embora sua teoria seja restringida s cincias naturais, podemos considerar
vlido aproveitar sua pesquisa e alguns conceitos como uma hiptese de trabalho,
pois especialmente as suas ideias sobre o processo de substituio de modelos
e assimilao de novos podem ser adaptadas para as cincias sociais. Segundo ele, o
novo paradigma pode emergir ao menos embrionariamente antes que uma crise
esteja bem instalada ou tenha sido amplamente reconhecida e decorre um tempo
considervel entre a primeira conscincia do fracasso do paradigma e a emergncia
de um novo.26
Geralmente, s alguns indivduos de um grupo conseguem perceber a
realidade de modo qualitativamente diferente de seus contemporneos e
antecessores, e desta forma eles constatam que os modelos utilizados j no
conseguem responder aos novos problemas que despontam. O autor comenta que
no perodo em que a crise vai se configurando, h um sentimento de funcionamento
defeituoso, que pode ser aplicado tanto no desenvolvimento cientfico como no 23 IDEM. Introduo a uma Cincia Ps-Moderna, p. 18. 24 KUHN, Thomas. A Estrutura das Revolues Cientficas, p. 13. 25 Ibid., p. 218. 26 KUHN, Thomas. A Estrutura das Revolues Cientficas, p. 118.
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poltico. No livro, ele traa um paralelo entre revolues polticas e revolues
cientficas, destacando que nos dois casos prevalece um sentimento comum de
inadequao, descompasso e anseio por respostas, pois
as revolues polticas iniciam-se com um sentimento crescente, com frequncia restrito a um segmento da comunidade poltica, de que as instituies existentes deixaram de responder adequadamente aos problemas postos por um meio que ajudaram em parte a criar. De forma muito semelhante, as revolues cientficas iniciam-se com um sentimento crescente, tambm seguidamente restrito a uma pequena subdiviso da comunidade cientfica, de que o paradigma existente deixou de funcionar adequadamente.27
Ao escrever sobre a origem das mudanas, Thomas Kuhn destaca que uma
conscincia de anomalia precisa acontecer, e esta sensibilizao inaugura um
perodo no qual as categorias conceituais so adaptadas at que, o que inicialmente
era considerado anmalo se converta no previsto.28 H uma constatao de que os
modelos vigentes no conseguem mais responder aos problemas que despontam.
Entretanto, a transio para um novo paradigma ser um perodo de crise,
caracterizada como um processo de desconstruo de tradies e construo de
outros modelos.
Portanto, a novidade no desponta com facilidade, pois mais cmodo e
seguro trabalhar em cima do habitual e previsto, ignorando os novos problemas que
se acumulam, do que admitir fracassos. justamente aqui que reside o aspecto
positivo da crise: o efeito acumulativo que pode nos surpreender a cada momento,
tambm nos impele a admitir que estamos ultrapassados e nos impulsiona a estar
abertos para o novo que, segundo ele, reconhecer que chegou a ocasio para
renovar os instrumentos. As crises oferecem comunidade possibilidades de
confrontao, viabilizam novas escolhas e se tornam necessrias para que o novo
possa emergir.
O autor comenta que as crises podem terminar de diferentes maneiras, e
enumera trs possveis questes pertinentes que merecem ser analisadas por ns
que julgamos ser embaixadores do Reino de Deus29 neste mundo: 1. O problema
pode resistir at novas abordagens, aparentemente radicais; 2. O fim da crise pode
se dar quando a cincia normal pode se revelar capaz de tratar o problema; 3. Pode 27 Ibid, p. 126. 28 Ibid., p. 91. 29 Deve ser entendido como aqueles que se autointitulam representantes da vontade soberana do Sagrado e so portadores de Sua verdade.
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terminar com a emergncia de um novo candidato a paradigma e uma subsequente
batalha por sua aceitao.
David Bosch, missilogo sul-africano, baseando-se nas ideias de Kuhn, aproveitou alguns conceitos para defender sua tese sobre a crise e a transio
paradigmtica na misso. Comentando sobre a substituio de modelos, ele
sustenta que, nas cincias naturais, o novo paradigma substitui o velho de uma
maneira definitiva e irreversvel, entretanto, nas cincias humanas, os dois podem
caminhar juntos por muito tempo e, no caso da teologia, possvel encontrar
diferentes linhas e tendncias convivendo simultaneamente em perodos distintos da
Histria. Nos dias atuais, por exemplo, em vrios grupos cristos possvel observar
seguidores de Jesus Cristo pertencentes mesma denominao religiosa e, no
entanto, com as mais diferentes inclinaes, como crentes fundamentalistas,
conservadores, liberais e outros. Sua investigao sobre mudanas de paradigmas
na Histria traz uma concluso que no campo da religio, uma mudana de
paradigma sempre significa continuidade e cmbio, fidelidade ao passado e
coragem para enfrentar o futuro, constncia e contingncia, tradio e
transformao.
Para o autor, os diferentes perodos da Histria, com seus contextos
peculiares, afetou consideravelmente a compreenso dos cristos sobre a f bblica
e, por consequncia, da misso crist. Bosch defende o conceito de paradigma
tambm no sentido de modelos de interpretao, pois, segundo ele, os nossos
pontos de vista constituem sempre meras interpretaes do que consideramos ser a
revelao divina,30 e essa compreenso individual da revelao tambm pode ser
condicionada por diversos fatores, entre eles a tradio eclesistica da pessoa, o
contexto pessoal, a posio social, a personalidade e a cultura. Atualmente, vivemos
dias que se caracterizam por um perodo de crise de paradigmas e no apenas uma
crise no tocante misso. Ela afeta a igreja inteira, na verdade o mundo inteiro.31
No s o paradigma missiolgico no d mais conta e no consegue responder a
inmeras questes contemporneas, mas a crise atinge vrias Cincias. Sobre a
crise na misso vamos desenvolver mais no prximo tpico.
A reflexo inicial com base nos autores at aqui citados nos permite afirmar
que tanto na Teologia como nas Cincias em geral, h uma estreita relao entre
30 BOSCH, David. Misso Transformadora: mudanas de paradigma na teologia da misso, p. 228. 31 BOSCH, David. Misso Transformadora: mudanas de paradigma na teologia da misso, p. 19.
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mudana de paradigma e diferentes percepes de mundo. Thomas Kuhn fala desta
ligao imbricada ao comentar que, o que um homem v depende tanto daquilo que
ele olha como daquilo que sua experincia visual-conceitual prvia o ensinou a
ver.32
assim que novos padres de interpretao despontam, como j comentamos,
quando um grupo pequeno de determinado segmento ou sociedade/comunidade
percebe que os modelos existentes se mostram incapazes de resolver problemas
emergentes. Comea, ento, uma procura por um novo paradigma ou estrutura
terica que responda mais adequadamente aos novos desafios do momento.
Essas novas referncias no so decididas ou inventadas por algum grupo ou
proposta individual. medida que o paradigma dominante vai se tornando
incompatvel com novas realidades, o novo vai se infiltrando e se impondo, at
que finalmente conquista o seu espao. Boaventura de Sousa Santos sustenta que
vivemos na contemporaneidade uma crise epistemolgica do paradigma dominante,
mas que tambm a sua caracterizao pode definir o perfil do paradigma
emergente.33
Defensores de modelos dominantes tendem a resistir s propostas do novo
porque geralmente o cmbio compromete o seu projeto de vida. Com o novo h uma
redefinio dos problemas e das incongruncias at ento insolveis e d-lhes uma
soluo convincente; nessa base que se vai impondo comunidade cientfica. Mas
a substituio do paradigma no rpida.34
As pessoas que defendem o velho paradigma, muitas vezes, simplesmente
no conseguem compreender os argumentos dos que propem o novo. Falando
metaforicamente, um est jogando xadrez e o outro, damas, sobre um mesmo
tabuleiro.35
Embora seja difcil determinar qual tipo de crise domina determinado perodo
histrico, trabalharemos com a hiptese de que atualmente estamos em uma crise
de degenerescncia, conforme referncia de Boaventura de Souza Santos, e esse
posicionamento pode determinar o tipo de reflexo epistemolgica que vamos
32 KUHN, Thomas. A Estrutura das Revolues Cientficas, p. 148. 33 SANTOS, Boaventura de Sousa. A Crtica da Razo Indolente: contra o desperdcio da experincia, p. 74. 34 KUHN, Thomas. A Estrutura das Revolues Cientficas, p. 134. 35 BOSCH, David. Misso Transformadora: mudanas de paradigma na teologia da misso, p. 231.
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privilegiar, porque esse mesmo autor afirma que a crise da cincia , assim,
tambm a crise da epistemologia.36
O esgotamento de paradigmas, e seu efeito domin que afeta a sociedade e
cultura, pode tambm provocar mutaes em nossas estruturas tericas, e bem
trabalhado por Michel de Certeau em seu livro Cultura no Plural. Para ele, essa crise
que atinge os nossos modelos s vem atestar um desmoronamento das ideologias,
e a recusa em aceitar que estamos ultrapassados na forma de produzir
conhecimento, e que os nossos mapas oficiais esto ruindo, ilustrada pelo autor
como duas formas de inconscincia: uma que se recusa a ver os destroos e,
portanto, nega o problema; e a outra que se exime de reconstruir, ou seja, sua
deciso desistir de buscar uma soluo.37
Ao comentar sobre esta eroso nas instituies, Certeau aponta a inverso
de objetivos que vem ocorrendo em muitas organizaes, onde lutar pela
sobrevivncia se tornou uma meta acima da sua misso. uma estranha inverso!
Apegamo-nos s expresses, e no mais ao que elas exprimem; aos benefcios de
uma adeso, mais do que sua realidade.38 Para o nosso pensador, j no se
aceita o fato de se declarar uma legitimidade porque ela preserva um poder, pois o
desvanecimento das convices e o descrdito das autoridades, que se revelam nos
questionamentos dos dogmas e dos paradigmas, so inevitveis.
Como exemplo para estar atento aos sinais dos tempos, ele cita a viso de
Ezequiel, no Antigo Testamento, livro de Ezequiel, captulos 10 e 11. O Esprito
emigrara com o povo exilado para a Babilnia, abandonando a cidade. Agora
restaram somente as lembranas de um passado glorioso, situao descrita por ele
como liturgias da ausncia, pois Ele est em outro lugar. Ele no falta. Ele lhes
falta... esvaziou-se o sentido do edifcio das instituies... s restavam apenas
pedras.39 O passado tem a sua importncia e o seu valor, mas preciso reconhecer
quando o modelo esgotou e no permitir a estagnao, resultado da necessidade de
reassegurar posies e reverenciar relquias.
Certeau no poupa crticas ao continusmo, uniformizao, ao mtodo linear
de interpretar a Histria uma epistemologia que, segundo ele, governa em silncio
36 SANTOS, Boaventura de Sousa. Introduo a uma Cincia Ps-Moderna, p. 19. 37 CERTEAU, Michel de. A Cultura no Plural, p. 25. 38 Ibid., p. 27. 39 CERTEAU, Michel de. A Cultura no Plural, p. 29.
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a profisso do historiador. Esse seu inconformismo revela a sensibilidade e busca
por uma compreenso do homem no mundo em que est situado.
O continusmo, alm de tolher a criatividade e inovao, sofre a tentao da
uniformizao. A possibilidade de mudana traz muita insegurana, pois melhor o
conforto da manuteno do que o risco do desconhecido e da novidade.
A atitude/reao diante de mudanas pode se constituir em perigo: a ruptura
total com o passado e negao de qualquer continuidade, ou a resistncia com
posies blindadas e falta de humildade para a reflexo/discusso diante do novo.
Para Certeau a verdadeira modernidade traz reconhecimento da diversidade,
possibilidades de pluralismos e multiculturalismos, enquanto que a intransigncia, a
inflexibilidade, a uniformizao e o dogmatismo so manifestaes do paradigma
medieval que herdamos e ainda influencia o nosso modo de pensar.
A temtica do conservadorismo e da rigidez epistemolgica tambm uma
preocupao de Edgar Morin, quando descreve que ao determinismo de
paradigmas e modelos explicativos associa-se o determinismo de convices e
crenas, que, quando reinam em uma sociedade, impem a todos e a cada um a
fora imperativa do sagrado, a fora normalizadora do dogma, a fora proibitiva do
tabu.40
Discorrendo sobre mudanas na sociedade e processos de transio, Zygmunt
Bauman desenvolve os conceitos de liquidez, slido e fluidez como metforas
adequadas quando queremos captar a natureza da presente fase, nova de muitas
maneiras, na histria da modernidade.41
A expresso derreter os slidos em seu texto empregada para descrever os
fenmenos que atacam os congelamentos dos padres estabelecidos e
convencionados pelo presente sistema como normativos, desencadeando novas
mudanas e gerando alteraes nos quadros de referncia.
Optar pela tradio e resistir liquefao promove o continusmo que conduz
inflexibilidade para aceitar novas formas de pensar-fazer, no entanto, o autor nos
adverte para os perigos dessa empreitada na construo de uma nova ordem.
preciso cautela nas demolies e remoo dos entulhos! O medo de mudanas
40 MORIN, Edgar. Os Sete Saberes Necessrios Educao do Futuro, p. 27. 41 BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Lquida, p. 9.
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causa estagnao, pois a preocupao com manter posies supera a abertura
para refletir sobre motivaes e mtodos corretos.
A mudana traz riscos porque at alcanar o status de normalidade, ela trava
verdadeiras batalhas com o conservadorismo que luta pela preservao dos valores
tradicionais. Entretanto, o embate entre diferentes cosmovises torna-se previsvel
em fase de transio, e a caminhada para uma cristalizao do novo jeito de
compreender ou fazer pode se tornar longa.
Em sua obra, Impensar a Cincia Social: os limites dos paradigmas do sculo
XIX, Immanuel Wallerstein traz uma interessante reflexo ao comentar os
desdobramentos da Revoluo Francesa como evento histrico, perodo de
transio dramtica, definitiva e, segundo ele, inevitvel, pois se tornou um marco da
passagem do feudalismo para o capitalismo, de um Estado dominado por uma
aristocracia a um Estado dominado por uma burguesia. Foram acontecimentos que
se tornaram sementes para uma mudana qualitativa.
Entretanto, o autor nos relembra que em todas as pocas e lugares houve
uma ou vrias Weltanschauungen que determinaram o modo como as pessoas
interpretavam seu mundo. Obviamente, as pessoas sempre construram a realidade
mediante as lentes comuns historicamente manufaturadas.42
Sua proposta no somente repensar, mas impensar a cincia social, porque
sua esperana ao longo do texto mostrar que a constatao do descompasso
entre vises de mundo (weltanschauungen) serve para estimular a busca de um
novo paradigma, algo cuja construo vai requerer um tempo e um esforo
considerveis de muitas pessoas.43
A exausto de modelos e tentativas de compreenso das mudanas da
sociedade para definies de novas lentes de interpretao so um assunto
amplamente debatido por Touraine em seu livro Um Novo Paradigma: para
compreender o mundo de hoje. O autor descreve como o final da Idade Mdia
acelerou o desaparecimento da ordem religiosa no mundo e como a ordem poltica
foi ocupando o seu lugar. Sculos depois, a Revoluo Industrial e o Capitalismo
surgem como um marco para um novo momento na Histria, sinalizando assim um
triunfo do paradigma econmico e social sobre o paradigma poltico. Entretanto, no
sculo XXI podemos constatar que essas categorias sociais se tornam insuficientes
42 WALLERSTEIN, Immanuel. Impensar a Cincia Social, p. 25. 43 Ibid., p. 9.
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para explicar os fenmenos culturais que assistimos ou presenciamos no mundo
atual e no conseguem dar as respostas almejadas. Sentimos a ruptura cada vez
mais. Contemplamos as categorias culturais rapidamente substituindo as categorias
sociais, pois estamos mudando de paradigma em nossa representao da vida
coletiva e pessoal. Estamos saindo da poca em que tudo era expresso e explicado
em termos sociais e devemos definir em que termos se constri esse novo
paradigma....44
O autor deixa claro seu objetivo de mostrar o final de um mundo e a passagem
para outro diferente. Passamos dos movimentos sociais para os movimentos
culturais, aquilo que ele tambm chama de decomposio do paradigma social.
Essa crise do social est gerando um universo individualista capaz de produzir um
novo sentido e esperana de vida que as instituies sociais e polticas j no
conseguem atender.
Outra contribuio para o agravamento da situao atual foi o capitalismo
selvagem que incentivou a corrida pelo consumo e acmulo de bens, gerando uma
cultura de mercado que rotula o ser humano pelo que ele tem e no pelo que ele ,
o que somente reforou e provocou cada vez mais a definio dos contornos de uma
crise.
Essa busca por sentido e o desencantamento com instituies e valores da
cultura ocidental, por sua vez, esto trazendo uma nova sensibilidade em relao
ao mundo como um todo que est gerando novos valores, sonhos e
comportamentos.45
Boaventura de Sousa Santos indica que para escaparmos da crise em que
nossa sociedade se encontra, devemos combater o que ele chama de globalizao
neoliberal dominante e hegemnica e trabalhar por uma globalizao alternativa,
que ele chama de contra-hegemnica,
constituda pelo conjunto de iniciativas, movimentos e organizaes que, atravs de vnculos, redes e alianas locais/globais, lutam contra a globalizao neoliberal, mobilizados pela aspirao de um mundo melhor, mais justo e pacfico que julgam possvel e a que sentem ter direito.46
44TOURAINE, Alain. Um Novo Paradigma: para compreender o mundo de hoje, p. 12. 45 SUNG, Jung Mo. Educar para Reencantar a Vida, p. 112. 46 SANTOS, Boaventura de Sousa. Semear outras Solues: os caminhos da biodiversidade e dos conhecimentos rivais, p. 13.
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Para o autor, essa globalizao hegemnica pode engolir iniciativas locais
impondo ideologias, ditando modismos, lanando movimentos e reforando um modo
de desenvolvimento predatrio. um mundo em constantes e rpidas mudanas, a
informao flui e se propaga com uma velocidade muito grande, o que tambm
possibilita transportar conhecimentos e gerar desenvolvimento em rinces outrora
isolados. Entretanto, temos observado que a globalizao hegemnica tem
canibalizado saberes locais, reforando a invisibilidade do outro e impondo sedutora
e verticalmente novos conceitos ou expresses culturais.
Escrevendo sobre perodos da Histria, Alain Touraine esclarece que a globalizao no uma etapa, mas um fenmeno dentro do atual momento, pois ela
intervm no nvel dos modos de gesto da mudana histrica. Ela corresponde a
um modo capitalista extremo de modernizao, categoria que no deve ser
confundida com um tipo de sociedade, como a sociedade feudal ou a sociedade
industrial.47 Por isso, ele tambm opta por outra nomenclatura, o
altermundialismo, que um movimento antiglobal que luta em prol de uma outra
mundializao, que no esmague os fracos, os interesses locais, as minorias e o
meio ambiente em proveito unicamente dos que j detm a riqueza, o poder e a
influncia.48
Para se entender alguns fenmenos contemporneos como neoliberalismo,
globalizao e outros da chamada sociedade ps-moderna, Walter Mignolo, um dos
principais articuladores dos estudos descoloniais, defende que imprescindvel uma
retrospectiva na Histria, especialmente at o sculo XVI, que ele apresenta como a
preparao para o cenrio que vai contribuir para a construo do nosso atual sistema
mundial,49 que ele denomina de Sistema Mundial Colonial/Moderno. O autor afirma que
o ocidentalismo como imaginrio dominante do sistema mundial moderno foi uma mquina poderosa para subalternizar o conhecimento (dos primeiros missionrios da Renascena aos filsofos do Iluminismo) estabelecendo, ao mesmo tempo, um padro epistemolgico planetrio.50
47 TOURAINE, Alain. Um Novo Paradigma: para compreender o mundo de hoje, p. 36. 48 Ibid, p. 36. 49 MIGNOLO, Walter. Histrias Locais/Projetos Globais: colonialidade, saberes subalternos e pen-samento liminar, p. 43. 50 Ibid., p. 92.
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Enrique Dussel trabalha o conceito de transmodernidade para se referir a um
projeto mundial de libertao, que inclui o mundo perifrico e onde a alteridade se
realize igualmente (solidariedade do centro com a periferia), ou seja, por um
paradigma mundial descolonial. Podemos ver no grfico a seguir sua proposta que
so dois paradigmas contraditrios: o da mera modernidade eurocntrica e o da
modernidade subsumida (incluso da alteridade negada) que um processo de
transmodernidade.
Grfico 1 DOIS PARADIGMAS DE MODERNIDADE Enrique Dussel51
(Simplificao esquemtica de alguns momentos que codeterminam a compreenso
dos dois paradigmas.)
I. Determinaes mais importantes:
A: a Europa no momento do descobrimento (1492);
B: o presente europeu moderno;
C: projeto de realizao (habermasiana) da Modernidade;
P: projeto do niilismo ps-moderno;
D: a invaso do continente (da frica e sia mais tarde);
E: o presente perifrico;
51 DUSSEL, Enrique. 1492, O Encobrimento do Outro: a origem do mito da modernidade, p. 188-189.
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F: projeto dentro da nova ordem mundial dependente;
G: projeto mundial de libertao Transmodernidade;
R: Renascimento e Reforma;
K: A Aufklrung (o capitalismo industrial).
II. Relaes com certa direo ou flechas:
a. histria europeia medieval (o pr-moderno europeu);
b. histria moderno europeia;
c. prxis de realizao de C;
d. histria amerndia antes da conquista europeia (tambm da frica e da
sia);
e. histria colonial e dependente mercantilista;
f. histria do Mundo perifrico ao capitalismo industrial;
g. prxis de realizao de F (desenvolvimentismo);
h. prxis de libertao ou de realizao de G;
i. prxis de solidariedade do Centro com a Periferia;
j. 1, 2 e 3 tipos histricos de dominao (de A sobre D, etc...)
III. Os dois paradigmas de Modernidade:
[ ] paradigma eurocntrico de Modernidade: [ R,K,B,C]
{ } paradigma mundial de Modernidade/Alteridade (para uma
Transmodernidade): {A/D B/E G}
Esses estudiosos da Teoria Ps-Colonial, tambm chamada de Estudos
Descoloniais, sustentam que nas relaes desiguais entre o Norte e o Sul est a
compreenso ou a explicao do mundo contemporneo e para eles, essas
relaes foram constitudas historicamente pelo colonialismo e o fim do colonialismo
enquanto relao poltica no acarretou o fim do colonialismo enquanto relao
social, enquanto mentalidade e forma de sociabilidade autoritria e
discriminatria.52
As modernidades, a partir do final do sculo XVI, construram uma concepo
do conhecimento, subalternizando outras epistemologias, outras formas de 52 SANTOS, Boaventura de Sousa. A Gramtica do Tempo: para uma nova cultura poltica, p. 28.
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conhecimento. A noo de superioridade ocidental (colonialidade do poder)
pressupe a diferena colonial, transformando diferenas em valores. Segundo
Mignolo, o iderio do expansionismo europeu teria a percepo do mundo como se
fossem os herdeiros de No, portadores da promessa para Jaf, o que implicaria na
necessidade de civilizar os que no foram abrangidos pela promessa. Para romper
com esse formato/viso de mundo, Mignolo prope o pensamento liminar ou gnose
liminar, uma espcie de pensamento de fronteira, como uma possibilidade para fugir
dessa lgica, que pode
transcender a diferena colonial da perspectiva da subalternidade, da colonizao e, portanto, de um novo terreno epistemolgico que o pensamento liminar est descortinando (...). O pensamento liminar, na perspectiva da subalternidade, uma mquina para a descolonizao intelectual, e, portanto, para a descolonizao poltica e econmica.53
um conhecimento concebido a partir das margens externas do sistema
mundial colonial/moderno. Esse pensamento liminar a razo subalterna que luta
para colocar em primeiro plano a fora e a criatividade de saberes subalternizados
durante um longo processo de colonizao do planeta que foi, simultaneamente, o
processo atravs do qual se construram a modernidade e a razo moderna.54
Em se falando de reconhecimento da diversidade e dilogo de culturas,
Boaventura nos adverte sobre os perigos de cair na armadilha da uniformizao, e
que tambm no devemos esquecer que a hegemonia uma tentativa de criar
consenso baseada na ideia de que o que ela produz bom para todos.55 O
reconhecimento da diversidade/pluralidade fundamental no dilogo intercultural.
Esse socilogo defende que a sada para a humanidade no a renncia a
projetos coletivos, mas a pluralidade de projetos coletivos articulados de modo no
hierrquico por procedimentos de traduo que se substituem formulao de uma
teoria geral de transformao social.56 assim que, para ele, o Frum Social Mundial
tem sido uma possibilidade de intercmbio/cooperao entre pases em
desenvolvimento/perifricos, numa busca de modelos alternativos de desenvolvimento
uma Conversa da Humanidade. Ele efetivamente incita a unio dos fracos,
53 MIGNOLO, Walter. Histrias Locais/Projetos Globais: colonialidade, saberes subalternos e pensamento liminar, p. 76. 54 Ibid., p. 36. 55 SANTOS, Boaventura de Sousa. Renovar a Teoria Crtica e reinventar a emancipao social, p. 55. 56 IDEM. A Gramtica do Tempo: para uma nova cultura poltica, p. 29.
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estimulando adotar estratgias que aprofundem alianas e incentivando a centrar a
diferena entre opressores e oprimidos e no na diferena entre os que, de vrias
perspectivas e lugares, lutam contra a opresso.57
Paulo Suess, ao escrever sobre os encontros entre diferentes culturas no
decorrer da Histria, mostra como os nossos conceitos e tambm as nossas
prticas, inclusive a missionria, podem sofrer mutaes nesses contatos, pois
teoria e prxis as verdades da f tanto como as prticas pastorais sofrem
sempre a interferncia de mediaes culturais e histricas.58
Para a Missiologia,59 resta o alerta de aprender com a Histria, no s
valorizando boas experincias, mas tambm ter a humildade de reconhecer no
presente que o surgimento dos emergentes muitas vezes est atrelado falta de
respostas e falta de confiana no estabelecido. Comparando o paradigma
missionrio dominante com as novas possibilidades que esto despontando,
percebemos que possvel trabalhar de forma contra-hegemnica, aceitando o
desafio de pensar uma epistemologia do Sul que consiga superar a matriz
colonizadora.
1.2 A Crise Paradigmtica na Misso A crise paradigmtica que tomou conta da nossa poca afetou tambm a
igreja e o seu empreendimento missionrio. O paradigma iluminista, que a partir do
sculo XVII instalou-se nas cincias e deixando as suas marcas, contaminou
tambm, com a sua influncia, a teologia, contribuindo assim para consolidar uma
concepo crist do outro que j estava impregnada anteriormente com a lgica
dos movimentos de expanso colonialista e agora viria a definir o tipo de
abordagem empregada nesse encontro com o desconhecido e diferente na ao
missionria.
57 SANTOS, Boaventura de Sousa. Renovar a Teoria Crtica e reinventar a emancipao social, p. 35. 58 SUESS, Paulo. Culturas e Evangelizao a unidade da razo evanglica na multiplicidade de suas vozes: pressupostos, desafios e compromissos, p. 112. 59 MISSIOLOGIA: Samuel Escobar define missiologia como uma abordagem interdisciplinar para entender a ao missionria. Ela olha para os fatos missionrios das perspectivas das cincias bblicas, teologia, histria e das Cincias Sociais (...). Uma abordagem missiolgica d ao observador uma estrutura compreensiva de referncia a fim de olhar para a realidade de uma forma crtica. Missiologia uma reflexo crtica da prxis, luz da Palavra de Deus. Pode-se dizer que, a partir desta considerao, uma poro significante dos escritos do apstolo Paulo missiolgica em sua natureza (Missiologia Global para o Sculo XXI p. 145).
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David Bosch, em seu livro Misso Transformadora: mudanas de paradigma na
teologia da misso, empreendeu uma interessante pesquisa analisando os
diferentes paradigmas da misso ao longo da histria da igreja e termina a sua obra
dando os contornos de um novo paradigma missionrio. Mas a concluso da sua
empreitada se limita a revelar alguns elementos deste suposto paradigma
emergente. Ele faz um diagnstico do atual quadro da misso, que tambm uma
sntese da sua tese principal, afirmando categoricamente que o empreendimento
missionrio moderno em sua ntegra est to contaminado por sua origem no
colonialismo ocidental e sua estreita associao com ele, que irremedivel; temos
que encontrar uma imagem completamente nova hoje.60
Nesse trabalho, o autor tambm se empenhou para demonstrar como as
mudanas sociopolticas podem conduzir a uma reflexo e necessidade de rever
mtodos de ao em vrios setores da sociedade, afirmando que vivemos em um
perodo de transio, na zona limtrofe entre um paradigma que no mais satisfaz e
um outro que ainda , em grande parte, amorfo e opaco. Uma poca de mudana de
paradigma constitui, por sua prpria natureza, um tempo de crise.61 Ao analisar os
paradigmas que marcaram os diferentes perodos da Histria, ele sustenta que cada
um constitui o fim de um mundo e o nascimento de outro. Vivemos no limiar entre o
velho e o novo paradigma, identificado como um perodo de incertezas e crises.
Bosch dividiu a histria do cristianismo em seis grandes paradigmas, e no
captulo 2 esses critrios so amplamente comentados. Ele fez uma retrospectiva
histrica da caminhada missionria, mapeando o panorama sociocultural de cada
perodo, delineando assim as tendncias e como a igreja interpretava o mundo da
sua poca. Ele usa os ltimos captulos do seu trabalho para apontar alguns
elementos de um paradigma emergente, mas finaliza seus argumentos declarando
que essa busca remete a uma anlise cuidadosa das estratgias missionrias
empregadas pela igreja na histria do cristianismo, que deve conduzir a uma atitude
de reconhecimento e arrependimento, para ento surgir uma possibilidade de
recuperao dos objetivos originais de Jesus Cristo na ao missionria.
A primeira parte da sua pesquisa apresenta um estudo nos modelos
neotestamentrios de misso desde Jesus e aos apstolos, em geral, e concluindo
60 BOSCH, David. Misso Transformadora: mudanas de paradigma na teologia da misso, p. 617. 61 Ibid., p. 439.
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com uma caracterizao do paradigma missionrio paulino. A parte dois vai abordar
os paradigmas histricos da misso e conclui com a terceira parte que esboa
alguns elementos de um paradigma emergente. A segunda parte comea com o
paradigma missionrio da Igreja Oriental e o Imprio Bizantino e, a seguir, o
paradigma missionrio catlico romano medieval com um destaque para as guerras
missionrias e os movimentos de expanso colonialista. Ele separa os
empreendimentos colonizadores em dois momentos, sendo que os do sculo XVI e
XVII prioritariamente eram de subjugao e evangelizao, capitaneados pelos
catlicos romanos. Os movimentos do sculo XVII em diante, inicialmente eram de
interesses mercantis, coordenados por companhias de comrcio e no governos.
Posteriormente, no sculo XIX, essa expanso colonial volta a adquirir matizes
religiosos e se vincula estreitamente misso.
Ele prepara o cenrio para a construo do paradigma missionrio da Reforma
protestante, mapeando todo o contexto histrico que marca o fim da Idade Mdia e
os acontecimentos que vo introduzindo a Renascena e a Modernidade. Alm de
descrever o movimento da Reforma, sua natureza e como os reformadores
entendiam a misso, Bosch esclarece a importncia do avano pietista, a Segunda
Reforma e o Puritanismo para a compreenso de misso naquela poca.
Esse missilogo analisa o Iluminismo, dando um contorno de toda a sua
cosmoviso, e comprovando a profunda influncia que ele exerceu sobre o paradigma
missionrio do protestantismo, particularmente a crena na vitria do progresso. Essa
concepo alavancou a expanso missionria, porque de fato havia uma ampla e
quase inconteste confiana na capacidade dos cristos ocidentais de oferecer uma
panaceia aos males do mundo e de assegurar progresso a todas as pessoas
atravs da difuso ou do conhecimento do evangelho.62
A premissa da superioridade da razo reinou por sculos. Em um mundo
marcado por um antropocentrismo radical, predominava a ideia do indivduo
emancipado e autnomo e no havia lugar para Deus. Com a eliminao do
propsito, o planejamento humano substituiu a confiana em Deus, o mundo passou
a ser crescentemente governado no pelo propsito, mas pelo crculo fechado de
causa e efeito. Todos os problemas eram, em princpio, solucionveis. A rigorosa
separao iluminista entre sujeito e objeto nas cincias naturais tambm se aplicou 62 BOSCH, David. Misso Transformadora: mudanas de paradigma na teologia da misso, p. 413.
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teologia. O domnio sobre a natureza e sua objetivao e a sujeio do mundo
fsico mente e vontade humana tiveram consequncias desastrosas, entre elas o
agravamento do desequilbrio ecolgico que assola o mundo dos nossos dias.
A posio de Bosch que o iluminismo tambm reduziu, de forma contnua,
mas implacvel, a outrora to abrangente gama de interesses da igreja pela vida e
sociedade como um todo.63 Ele sustenta a ideia de que, somente anos mais tarde,
as pessoas tocadas nos Despertares, ou seja, nos movimentos de
reavivamentos,64 voltaram a se compadecer dos pobres e excludos e um dos
exemplos concretos o de William Carey, que protestou contra a importao de
acar procedente das plantaes nas ndias Ocidentais cultivadas por escravos.
Elas mudavam sua concepo de misso quando tinham uma experincia especial
de converso na f evanglica.
As ideias de progresso e superioridade nutridas pelo Iluminismo incentivaram
os conquistadores a se aventurarem em busca de ampliar os domnios, pois foi, em
grande parte, o pensamento iluminista orientado pelo progresso que engendrara o
projeto de expanso colonial.65
Uma crena norte-americana sedimentada e enriquecida pela cosmoviso
iluminista foi a do Destino Manifesto, fruto tambm de um forte nacionalismo,
enraizada na superioridade ocidental e com forte tendncia a tratar os povos de
outras culturas como inferiores. Alcanou sua expresso mxima na expanso
colonial do Ocidente, e foi uma poca considerada o apogeu do colonialismo. Os
norte-americanos acreditavam que Deus os escolheu, por causa de suas
qualidades, para serem seus representantes perante outros povos. Os civilizados,
no apenas se sentiam superiores aos no civilizados, mas tambm responsveis
por eles. Embora tenhamos conhecimento de vrios trabalhos missionrios com
motivaes sinceras, precisamos tambm reconhecer que nessa mesma esteira
seguia o empreendimento missionrio ocidental, que nesse perodo
63 BOSCH, David. Misso Transformadora: mudanas de paradigma na teologia da misso, p. 342. 64 Bosch defende que o compromisso com a Reforma Social era decorrncia do entusiasmo herdado pelos reavivamentos... a unidade evangelical moldada pelos Despertares estava prestes a se desintegrar; o vasto rio do evangelicalismo clssico se dividiu em um delta, com correntes mais rasas enfatizando o ecumenismo e a renovao social, esquerda, e a ortodoxia confessional e o evangelismo, direita. No incio do sculo 20, o primeiro segmento evolura para o evangelho social e o segundo, para o fundamentalismo (p. 344). 65 BOSCH, David. Misso Transformadora: mudanas de paradigma na teologia da misso, p. 427.
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partia no apenas da premissa da superioridade da cultura ocidental sobre as demais, mas tambm da convico de que Deus, em sua providncia, escolhera as naes do Ocidente, com base em suas qualidades nicas, para serem os porta-bandeiras de sua causa, inclusive nos confins da terra.66
No captulo trs, aprofundaremos esse assunto, mas por enquanto temos que
admitir que os movimentos missionrios foram parceiros e cmplices nesses
programas imperialistas etnocntricos que conduziram aniquilao de culturas
autctones. A misso e a colonizao eram projetos interdependentes.
A cultura iluminista, grande responsvel pela concepo ocidental de
conhecimento e racionalidade, imprimiu assim a sua matriz na cincia, filosofia,
educao, sociologia, literatura, tecnologia, mas interpretou mal tanto a humanidade
quanto a natureza, e no apenas em alguns aspectos, mas de uma forma radical e
completa.67 Essas ideias tambm fortaleceram um sentimento de superioridade tal
que os ocidentais sentiam-se com mais racionalidade que os outros povos.
A igreja no conseguiu romper com essa lgica e modelo iluminista, e as
palavras do autor s vm confirmar que todo movimento missionrio dos ltimos trs
sculos emergiu desta matriz:
Era inevitvel que o Iluminismo influenciasse profundamente o pensamento e a prtica missionrios, sobretudo se considerarmos que todo o empreendimento missionrio moderno , em grau muito significativo, produto do Iluminismo. Afinal, foi a nova cosmoviso expansionista que ampliou os horizontes da Europa para alm do Mediterrneo e do Atlntico e preparou, assim, o caminho para a expanso mundial da misso crist. No captulo anterior, mostrei que o prprio termo usado para designar essa expanso eclesistica e cultural, isto , a palavra misso, surgiu junto com o incio da expanso imperialista do Ocidente.68
Bosch, alm de responsabilizar o Iluminismo pela construo da hegemonia
epistemolgica ocidental, onde outras formas de produzir conhecimento no foram
respeitadas, mas subalternizadas, tambm fortalece a nossa constatao de que
todo o movimento missionrio ocidental dos ltimos trs sculos emergiu da matriz
do Iluminismo.69
Dentro desse quadro, e a partir dele, surgem as foras de renovao com os
reavivamentos espirituais, como tentativas de resistncia s ideias iluministas. Elas
vieram dar um novo impulso ao movimento missionrio moderno, embora
66 BOSCH, David. Misso Transformadora: mudanas de paradigma na teologia da misso, p. 362. 67 Ibid., p. 426. 68 Ibid., p. 334. 69 BOSCH, David. Misso Transformadora: mudanas de paradigma na teologia da misso, p. 414.
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predominantemente as misses modernas tiveram a sua origem no ambiente do
colonialismo ocidental moderno, numa cumplicidade com as potncias coloniais,
pois a ideia colonial em sua acepo moderna est intimamente vinculada
expanso global das naes crists do Ocidente.70
Ao escrever sobre os movimentos de expanso colonialista no sculo XVI, esse
missilogo sul-africano sustenta que as razes dos conquistadores e de todo o
fenmeno da colonizao europeia do resto do mundo em princpio foram geradas a
partir dos ensinamentos medievais sobre a guerra justa (...) a colonizao era a
continuao moderna das Cruzadas.71 Os povos conquistados eram assimilados pela cultura dominante, trazendo como uma das consequncias a escravizao de
povos no ocidentais, e que posteriormente levou ao trfico de povos africanos. Os
ocidentais vencedores consideravam os outros inferiores.
Tzvetan Todorov em seu livro, A Conquista da Amrica: a questo do outro,
tambm aprofunda essas questes de dominao e poder, quando aborda a temtica
da alteridade e monoculturalidade se empenhando em demonstrar as reais intenes
dos descobridores, especialmente os ideais cruzados de Colombo. Ele denuncia a
cumplicidade da igreja, tanto do lado catlico como protestante, nesses movimentos
hegemnicos de colonizao, apontando sua participao em verdadeiros estupros
culturais. Sem dvida, foram atos que comprometeram a prtica missionria, pois
em ambos os casos nega-se a identidade do outro; quer seja no plano da
existncia, como no caso dos catlicos; ou no plano dos valores, como os
protestantes; um tanto derrisrio procurar saber qual dos times o recordista na via
da destruio do outro.72
Os relatos de exploradores e mercadores como Marco Polo e Colombo, ainda
que protagonistas de pocas diferentes mostram que os empreendimentos
martimos para alm do desejo de encontrar riquezas expressavam motivaes do
movimento das Cruzadas. Todorov e Dussel apontam, por exemplo, os intentos
hegemnicos dos mandatrios reis da Espanha, que s investiram nas viagens
esperando grandes lucros e os objetivos do navegador Colombo: chegar s ndias e
possibilitar a expanso do cristianismo. Isto se tornou uma obsesso, pois ele
70 Ibid., p. 366. 71 Ibid., p. 279. 72 TODOROV, Tzvetan. A Conquista da Amrica: a questo do outro, p. 278.
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morreu em 1506 com a clara conscincia de ter descoberto o caminho pelo
Ocidente para a sia.73
Sua busca incansvel por ouro em pelo menos trs viagens se explica, porque
representaria o reconhecimento do seu pioneirismo. Retornar com riquezas iria
referendar seu empreendimento, justificar os gastos e alimentar a ambio dos reis,
para quem prometia as condies para reconquistar a Terra Santa para a igreja,
conforme afirma Todorov, aps ter estudado vrias cartas organizadas por
Bartolomeu de Las Casas.74 Na correspondncia, h trechos em que Colombo
escreve: Depois de ali ter estado e visto a terra, escrevi ao Rei e Rainha, meus
Senhores, dizendo-lhes que dentro de sete anos disporia de cinqenta mil homens a
p e cinco mil cavaleiros, para a conquista da Terra Santa.75
O empreendimento imperialista das Cruzadas tinha ficado no passado, mas a
mentalidade persistiu. A lgica do movimento sobreviveu na Modernidade e at hoje
ainda est presente em algumas formas de expanso crist. O projeto religioso, que
vai principalmente do sculo XI ao XIII, e s termina realmente no sculo XV,
apontado por alguns historiadores como um movimento que legitimou a violncia em
nome de Deus, embora no haja unanimidade na indicao da motivao religiosa
para fundamentar a belicosidade presente no empreendimento.
A ambio por terras e riquezas certamente foi tambm uma forte razo para a
mobilizao de tantos voluntrios para essa causa. Era, acima de tudo, um
sentimento de desconfiana com relao ao desconhecido, ao que se apresentava
diferente, ou seja, aquele que possua outros quadros de referncia, o que veio
gerar a insegurana que culminou na organizao dessas expedies ao Oriente,
para lutar e demarcar as fronteiras do cristianismo. Nayan Chanda escreve que a
motivao aparente foi a libertao da Terra Santa do domnio rabe, mas tambm
no era segredo que a ganncia foi o fator que impulsionou as expedies. O autor
comenta que talvez o exemplo mais chocante dessa cobia tenha sido o saque de
Constantinopla por soldados da quarta cruzada em 1204,76 que roubaram tanto
73 DUSSEL, Enrique. 1492 O Encobrimento do Outro: a origem do mito da modernidade, p. 31. 74 Frei catlico, que no decorrer de sua militncia se tornou dominicano. Foi uma voz proftica de denncia, e o primeiro europeu a advertir contra os abusos cometidos pelos conquistadores nas ndias Ocidentais. Considerado um vanguardista na defesa dos direitos humanos do ndio na Amrica Latina, gastou quase toda a sua vida nesta causa. 75 TODOROV, Tzvetan. A Conquista da Amrica: a questo do outro, p. 14. 76 CHANDA, Nayan. Sem Fronteira: os comerciantes, missionrios, aventureiros e soldados que moldaram a globalizao, p. 173.
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ouro e outras preciosidades e provocaram tantos vandalismos, que era quase
impossvel contar.
Karen Armstrong, ao discutir as diferentes formas de fundamentalismos,
argumenta que a raiz desses posicionamentos geralmente se encontra no
estranhamento com o diferente ou o novo, trazendo insegurana que pode gerar
isolamento ou necessidade de uniformizao, entretanto,
importante reconhecer que essas teologias e ideologias se baseiam no medo. O desejo de definir doutrinas, erguer barreiras, fixar limites e segregar os fiis num enclave sagrado, onde haja rigorosa observncia da lei, deve-se ao pavor da extino...77
Na lgica das Cruzadas, o uso da fora era justificado, porque o inimigo
comum era o outro que no se enquadrava nos moldes, no professava a mesma
f e prejudicava o equilbrio da sociedade europeia.78 Essa ideia tem uma de suas
origens no pensamento de Santo Agostinho, mais conhecida como Guerra Justa
(bellum justum). Ele afirmava que a guerra sempre m, todavia existia a
possibilidade quando envolvia autodefesa. O confronto passa a ser legitimado se
tiver o objetivo de manter a justia e restabelecer a paz e nunca com objetivo de
conquista. O ensinamento de Agostinho tornou-se a pedra angular da teoria
europeia da guerra79 e os idealizadores e organizadores das Cruzadas se
apropriaram desse pensamento e, na lgica daqueles homens, eles representavam
o exrcito do Senhor trabalhando pela harmonia dentro do Reino de Deus na luta
contra os infiis os inimigos de Deus. O uso da fora justificado contra os
inimigos de Cristo, os pagos selvagens que no pertencem ao Seu Reino.
A Espanha, grande potncia imperial colonial, com Portugal desempenharam
um papel fundamental no movimento de colonizao e de destruio do outro.
Todorov transcreve um dos ltimos textos de Las Casas, famoso pelo seu contedo
imprecatrio, uma mescla de maldio e profecia, como ilustrao do sentimento
despertado e que at hoje no foi bem resolvido:
77 ARMSTRONG, Karen. Em nome de Deus: o fundamentalismo no judasmo, no cristianismo e no islamismo, p. 406. 78 Veja BINGEMER, Maria Clara, em Violncia e Religio, que discute tambm como esse medo do outro, porque um elemento estranho, culturalmente diferente e fisicamente desconhecido, pode se tornar um produtor de ameaa enquanto no compreendido (p. 159). 79 BOSCH, David. Misso Transformadora: mudanas de paradigma na teologia da misso, p. 276.
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Creio que por causa dessas obras mpias, criminosas e ignominiosas, perpetradas de modo to injusto, tirnico e brbaro, Deus derramar sobre a Espanha sua fria e sua ira, porque toda a Espanha, bem ou mal, teve o seu quinho das sangrentas riquezas, usurpadas custa de tanta runa e extermnio.80
Todorov, no entanto, e de modo semelhante Enrique Dussel, apresenta
Colombo como o homem que inaugura a era moderna, ao sair do continente
como um enviado oficial, apesar de toda contradio e disparates que envolvem a
sua misso. Torna-se paradoxal constatar que, ao mesmo tempo em que Colombo
o primeiro homem moderno, ainda preserva a mentalidade medieval que quer dar
continuidade a um projeto conversionista e expansionista ultrapassado e que estava
sendo abandonado com o fim da Idade Mdia.
No transcorrer do seu trabalho, o autor vai incluindo toda a Europa e
abrangendo outros colonizadores nessa responsabilidade coletiva. Diante de tantas
atrocidades cometidas, com a conivncia ou no da igreja, infelizmente s nos resta
incluir as prticas missionrias do cristianismo nesse esquadro de ocupao e
dominao no perodo colonial.
O prprio Las Casas, em princpio foi um encomendero,81 espcie de
fazendeiro com ndios em regime de servido, quando chegou ao Caribe, por volta
de 1508. Posteriormente, e paulatinamente, a sua cosmoviso foi sendo
transformada ao contemplar os abusos cometidos no tratamento desumano
dispensado aos ndios e, provavelmente, os sermes de Frei Antonio Montesinos
tambm contriburam para essa nova perspectiva. Em 1514, teve uma experincia
de converso ao ser confrontado com a Bblia Sagrada, quando preparava um
sermo para a Festa de Pentecoste, especialmente nos temas direito do
trabalhador, salrio justo, dever de restituio e outros. Nesse perodo, ele renuncia
aos ndios que estavam em sua posse e inicia uma caminhada como um apstolo
incansvel na luta contra todas as formas de escravido e opresso contra os
indgenas.
Constantemente incomodando as autoridades ao alertar sobre os desmandos
que aconteciam na colnia, seguiu o exemplo dos dominicanos, que corajosamente
j denunciavam esses procedimentos. Esse inconformismo trouxe muitas oposies 80 TODOROV, Tzvetan. A Conquista da Amrica, p. 357 81 Encomienda foi um sistema de distribuio de terra na Amrica espanhola que consistia na doao de terra pela autoridade competente aos colonizadores, com