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André BarataUniversidade da Beira Interior

O conhecimento é crença qualificada...E é este tipo de qualificação que falta no vasto e importante

campo do conhecimento conjectural.

Popper, CO, 80

Sumário:

Este seminário visa abordar o efeito da crença no trabalhocientífico. Justifica-se a meu ver, e desde logo, pelo factode todo o conhecimento se recortar de crenças, não fazendodiferença, para o caso, se o conhecimento é especificadocomo científico ou não. De uma forma ou de outra, o co-nhecimento é uma crença qualificada. Depois, é esperável,em virtude da sua natureza interdisciplinar, que este semi-nário possa dar conta de algumas formas particulares pelasquais o efeito da crença sobre o trabalho científico se faz

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sentir. Por exemplo, efeito da crença sobre os métodos ci-entíficos, efeito da crença sobre o esforço de justificação,efeito da crença na corroboração obtida sobre o próprio ob-jecto de estudo, etc. Pela minha parte, procurarei cumprirtrês objectivos que passo a enunciar:

1. Relatar uma caracterização do conhecimento, queé sempre conhecimento de verdades, científicas ou não,como crença qualificada, designadamente como crença ver-dadeira e justificada. Procurarei ainda, adentro das condi-ções a satisfazer para que haja conhecimento, explicitar asrelações entre verdade e justificação a partir das teses queDonald Davidson defende em “Uma Teoria Coerencial daVerdade e do Conhecimento”.

2. Exprimir algumas particularidades a respeito das nos-sas crenças em regularidades, sua formação e corroboração,e isto sob a preocupação de divisar o significado da dife-rença entre o que se faz em ciências naturais e o que sefaz em ciências sociais. Para este tópico, farei referência àsepistemologias de Karl Popper e de Friedrich Hayek.

3. Discutir qual o lugar da crença nos momentos dotrabalho científico em função de diferentes posicionamen-tos marcantes na epistemologia contemporânea (designada-mente, os de Karl Popper, Michael Polanyi, Thomas Kuhn,Imre Lakatos)

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1. O conhecimento como crença qualificada

É habitual considerar-se o conhecimento, e por maioriade razão o conhecimento científico, como uma espécie par-ticular de crença. Não parece concebível, com efeito, quese pudesse não crer no que se conhece.

Evidentemente, a conversa não é verdadeira - nem todasas crenças são conhecimento, menos ainda conhecimentocientífico. Podemos sustentar crenças falsas, as quais, emvirtude da sua falsidade, não são realmente conhecimento,pois o conhecimento é, por definição, conhecimento de ver-dades. Mas já por outro lado, mesmo entre as crenças ver-dadeiras nem todas valem como conhecimento. Julgar sa-ber sem saber porquê não é realmente saber - donde, nãobastar a uma crença ser verdadeira para que constitua co-nhecimento; necessário é que seja também uma crença jus-tificada, uma crença provida de razões. Escusado será di-zer que se uma crença é provida de razões, essas serão,necessariamente, boas razões. Ou temos razões ou não te-mos razões; más razões não são razões. Analogamente, outemos conhecimento de verdades ou não temos, de todo,conhecimento; não conhecemos falsidades, apenas pode-mos julgar que as conhecemos e precisamente por as po-dermos julgarverdadeiras. Nisto, surpreende-se uma ilusãocorrente, ainda que facilmente corrigível, para a qual umacerta tendência eufemística da nossa linguagem natural nos

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faz protender.Naturalmente, também não basta a uma crença ser jus-

tificada para que constitua conhecimento; não sendo umacrença verdadeira não constituirá conhecimento. Já o disse.Assim, a falar de conhecimento, são pelo menos três ascondições a satisfazer : tratar-se de uma crença, verdadeirae justificada.

A clareza desta resposta à pergunta o que é conheci-mento - que se encontra por exemplo em Chisholm, Ayer,mas também, logo nos alvores da tradição filosófica, re-montando ao Teetetode Platão1 - não evita dois tipos de di-ficuldades. Por um lado, saber se estas três condições são,no seu conjunto, realmente suficientes para que tenhamosconhecimento. Por outro lado, saber sob que condições po-demos dizer que temos, respectivamente, uma crença, umacrença verdadeira e uma crença justificada.

Relativamente à primeira dificuldade, é célebre um bre-víssimo artigo de Edmund Gettier - Is Justified True BeliefKnowledge?(1963)2 - onde são expostas circunstâncias quecontra-exemplificariam a suficiência das três condições queenunciei acima quando tomadas em conjunto. Numa pala-vra, pode haver crenças que, apesar de verdadeiras e justi-ficadas, não constituam genuinamente conhecimentos. Istoporque as razões pelas quais uma crença é verdadeira po-dem não ser as razões contidas na justificação. A questão

1 Cf. Teeteto, 201.2 Cf. http://www.ditext.com/gettier/gettier.html.

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que se coloca, e que tem merecido amplo debate em sedeepistemológica, é a de saber se falta, então, uma quartacondição, e se sim qual, ou se, em vez disso, o que estáem causa é uma melhor caracterização de quais sejam ascondições a satisfazer para que uma crença se diga real-mente justificada. Noutros termos, deve ela ser infalível ouapenas bastante credível. Decidir entre estas duas alternati-vas obriga, pois, a enfrentar parte da segunda dificuldade -sob que condições uma crença se diz justificada? Justifica-ções infalíveis dispensariam uma quarta condição; porém,se fossem apenas admitidas como boas justificações justi-ficações infalíveis estar-se-ia a dispensar boa parte do quetomamos por bons e sólidos conhecimentos. Por exemplo,dificilmente se encontrará epistemólogo ou teórico das/nasciências que assuma como infalível a justificação racionalda teoria da relatividade generalizada e, no entanto, es-tamos longe de, por essa razão, assumirmos que a teoriade Einstein seja apenas uma crença, epistemicamente aomesmo nível que as nossas crenças a respeito da astro-logia, do bom governo de uma equipa de futebol, etc. Aquestão continua a ser a da qualificação exigível às nossascrenças para que possam valer como conhecimentos. Nestesentido, parece manifestamente que é a credibilidade quedeve estar sob escrutínio.

Esta questão particular acerca das condições sob as quaisuma crença se diz justificada ganha ainda um maior al-cance quando pode, segundo alguns autores, coincidir com

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a questão de saber sob que condições uma crença é verda-deira. Por exemplo, de acordo com Richard Rorty «nadaconta como justificação, a não ser por referência ao que jáaceitámos, e não há maneira de sair das nossas crenças eda nossa linguagem para encontrar outro teste que não acoerência»3 . Esta é a posição conhecida como teoria coe-rentista da verdade, geralmente apresentada como propostapara ultrapassar dificuldades bem conhecidas da teoria daverdade como correspondência. Contudo, neste ponto, édecisiva a atenção do filósofo Donald Davidson e, para ocaso, por duas razões. Em primeiro lugar, por não permitira confusão entre teorias da verdade e teorias da justifica-ção da verdade. Em segundo lugar, por resgatar a corres-pondência a partir da sua tese de que a coerência engendracorrespondência.

Prestemos alguma atenção a estas duas razões que, ameu ver, ajudam a esclarecer boa parte do que está emquestão nos actuais dabates sobre o relativismo de fei-ção pós-moderna. A primeira dessas razões clarifica queuma teoria coerentista da justificação da verdade, de acordocom a qual «a maior parte das crenças de um conjunto to-tal coerente de crenças é verdadeira»4 , não é uma teoriaque nos diga realmente o que é a verdade. Aliás, segundoDavidson, qualquer esforço de alcançar uma teoria da ver-

3 Rorty, 1979: 178.4 Davidson, 1986. “Uma Teoria Coerencial da Verdade e do Conhecimento”, 332.

In Carrilho, 1991. Epistemologia: Posições e Críticas. Lisboa: FCG.

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dade está irremediavelmente condenado ao vício da circu-laridade - com efeito, se uma teoria da verdade tem de serverdadeira,como definir a verdade sem a pressupor? Istosignifica, por um lado, que a verdade é uma noção primi-tiva, e portanto indefinível, mas significa sobretudo que averdade não deve ser confundida com a sua justificação,como se não pudesse haver uma verdade externa às nossasjustificações.

A segunda das razões de Davidson tem a importância denos não deixar apenas com a possibilidade de um externa-lismo, mas de o tornar razoável e, a par disso, de dar umaresposta negativa ao cepticismo e ao relativismo. Aqui, oponto de Davidson consiste em argumentar a favor da ideiade que a coerência interna - que é o único lugar da justifica-ção - engendra correspondência externa. «O que distingueuma teoria coerencial é simplesmente a reivindicação deque nada pode contar como uma razão para sustentar umacrença, excepto outra crença.» Neste sentido, não é possí-vel dar um fundamento empírico ao conhecimento. Se aexperiência empírica é intermediária entre a realidade e asnossas crenças, é-o apenas enquanto “intermediária causal”e não como “intermediária epistémica”5 . As sensações,os dados dos sentidos, não são crenças, nem as justificam,apenas causam-nas. Mas, atente-se, desta premissa não sesegue que não possamos, diz Davidson, «ter conhecimentode, e falar sobre um mundo público objectivo que não é da

5 Cf. Davidson, 1986: 342.

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nossa própria construção»6 .Concluindo este ponto, o facto de se defender uma teoria

coerentista da justificação da verdade não contradiz neces-sariamente o desígnio da correspondência. Esta é possíveldesde que pensada não como uma confrontação directa coma realidade, mas, justamente, através do teste da coerência.7

Vimos que o conhecimento não admite o falso - o verboconhecer, aliás à semelhança de verbos como saber ou ver,é um verbo factivo -; vimos também que a verdade, pelomenos segundo alguns autores, pode ser justificada a par-tir de uma teoria coerencial. Agora, se nos reportamos aoconhecimento científico e à verdade científica, o facto deempregarmos o adjectivo científico supõe algum tipo de es-pecificação. De que forma poderemos dar conta dessa espe-cificação? Em que é que se distinguem o conhecimento ci-entífico e a verdade científica de conhecimentos e verdadesnão científicos?

Num sentido, a distinção prende-se simplesmente com aorigem - é científico o conhecimento obtido em sede cientí-fica, é científica a verdade conhecida em sede científica. Écerto que a origem não qualifica especialmente o conheci-mento e a verdade científicos a não ser em virtude da pró-pria credibilidade da instituição científica - digo isto por-

6 Davidson, 1986: 337.7 «Se a coerência é um teste da verdade, então a coerência é um teste para

admitir que as condições objectivas de verdade estão satisfeitas, e já não pre-cisamos de explicar o sentido com base numa possível confrontação. O meu lemaé: correspondência sem confrontação.» (Davidson, 1986: 330)

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que não constitui uma afirmação injustificada afirmar que aadmissibilidade científica é, já de si, um indicador de cre-dibilidade. Aliás, explica-se assim o uso retórico dos qua-lificativos científico, testado laboratorialmente, etc., comocertificados de qualidade garantida. Contudo, não há ne-nhuma razão, entenda-se particularmente boa, para que co-nhecimentos cuja origem não passe pelas práticas cientí-ficas sejam, ou devam ser, considerados menos credíveisdo que o conhecimento científico. Se todo o conhecimentodeve satisfazer uma justificação que seja pelo menos cre-dível, então o célebre problema da demarcação da ciênciaface à pseudo-ciência não estará, substantivamente, tão in-teressado em distinguir o conhecimento científico de ou-tras formas de conhecimento quanto em distinguir o conhe-cimento (seja ou não científico) do pseudo-conhecimento.Exemplarmente, poder-se-á considerar que a astrologia nãoé uma ciência porque, pura e simplesmente, não constituiconhecimento.

2. A crença em regularidades

Até agora falei de como devem ser qualificadas as cren-ças para que constituam conhecimento, a saber, como cren-ças verdadeiras e justificadas; aflorei a relação entre ver-dade e justificação e entre correspondência e coerência; ar-gumentei que a demarcação realmente decisiva é a do co-

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nhecimento, justamente como crença qualificada, face àmera crença.

Mas sobre as próprias crenças, há um aspecto em par-ticular cuja elucidação me parece decisiva para o enten-dimento do trabalho científico, a saber, a formação de umcerto tipo de crenças: as crenças em regularidades. Comose formam estas crenças? Desta feita, a questão não incidesobre a origem lógica - não se trata de saber como pode-mos justificar as crenças em regularidades, se é que sãojustificáveis - mas simplesmente saber como se formam. Apergunta é, pois, psicológica (e não lógica), prende-se como processo cognitivo e pode ser reformulada assim: comose chega a crer em regularidadesa partir da constatação decorrelações?

Uma resposta clássica a esta pergunta consiste na in-duçãodas regularidades a partir da constatação repetidadecorrelações. Esta é, contudo, uma resposta que pode e deveser discutida. Por exemplo, é conhecida a posição de KarlPopper segundo a qual a indução, ou seja, a crença obtidapor meio da repetição, não é mais do que um mito - lógicae psicologicamente falando. Aparte a discussão lógica, queevitarei, de um ponto de vista psicológico o que Popper de-fende é que existem expectativas inatas, em particular a daregularidade, que resultam a priori(ainda que não sejamválidas a priori). Por outras palavras, a observação - ad-mitindo o ponto de vista de Popper - não contribui para aformação das nossas crenças em regularidades, mas tão-só

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para a sua infirmação ou corroboração. A este propósito ,escreve Popper em Conjecturas e Refutações8 :

Nós nascemos com expectativas, com um "conhecimento"que, apesar de não válidoa priori, é psicologicamenteou ge-neticamentea priori, i.e, anterior a toda a experiência de ob-servação. Uma das mais importantes destas expectativas éa expectativa de encontrar um padrão de regularidade. Estáligada a uma propensão inata para procurar regularidades,ou uma necessidade de encontrar regularidades, como po-demos verificar pelo prazer de uma criança que satisfaz essanecessidade.9

É certo que Popper exprime pouco mais do que umaconvicção carente de razões explícitas. O que não significaque não se trate de uma convicção bem fundada, faltou-lhe,diria, razões mais explícitas, designadamente mais explí-citas do que o prazer de uma criança em encontrar regu-laridades, o qual, aliás, não representa realmente nada deincompatível com a indução .

Julgo que uma boa razão que pode militar, pelo me-nos parcialmente, a favor do ponto de vista de Popper estáno modelo conexionista para a cognição humana, pois comeste verifica-se ser «possível dotar as redes neurais de re-gras de aprendizagem que as leva a generalizar esponta-neamente quando se detecta uma certa correlação... »10

8 Popper, K., 1965. Conjectures and Refutations. Conjecturas e Refutações.Trad.: Benedita Bettencourt. Coimbra: Almedina, 2003.

9 Popper, 1965: 74.10 J. Corbí eJ. Prades, 1995. “El conexionismo y su impacto en la filosofía de la

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. De certo modo, esta generalização espontânea a partirdafixação de uma correlação, generalização que é prévia aoreforço da correlação em virtude de uma sua constataçãorepetida, vem atender a, e pôr em melhores bases, a in-versão defendida por Popper relativamente a uma supostaformação indutiva das crenças em regularidades: a cons-tatação repetida de uma correlação reforça, ou seja, cor-roborapsicologicamente a crença numa regularidade, masnão é o caso que a forme. Sublinhe-se que a constata-ção repetida não é, pelo que se disse, desprovida de valorepistémico - é indiscutível que contribui para a corrobo-ração de uma regularidade, corroboração que dificilmentepode ser definida noutros termos que não os de uma crençareforçada.

Esta discussão de cariz psicológico é, na minha opi-nião, epistemicamente bastante relevante, pois, se todo oconhecimento, como vimos, é crença qualificada, já poroutro lado o tema de uma generalização espontânea, bemcomo os argumentos de Popper, revelam que pode bem serda própria natureza da cognição humana crermos em regu-laridades. E se assim for, apesar da especificidade de cadadomínio científico, designadamente o recorte entre ciênciasnaturais e ciências sociais, haverá um mínimo denominadorcomum na base das nossas capacidades de obter conhe-cimento - não só o conhecimento constituir-se como umamente”, 161. In Broncano (Ed.), 1995. La Mente humana. Madrid: Editorial Trotta.

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qualificação de crenças, mas envolver nestas, de formaconstitutiva e geneticamentea priori, crenças em regula-ridades.

Isto conduz-me à sugestão de que, metodologicamente,é mais o que une do que o que divide as ciências naturaise as ciências sociais, e isto desde que nos situemos numplano de considerações bastante abstracto, onde o que es-teja em discussão seja apenas opções basilares como indu-ção versushipótese, explicação com recurso a regularida-des ou não, etc. A este propósito, é particularmente inte-ressante considerar as posições epistemológicas de Hayekacerca das ciências sociais.

No que diz respeito à questão do método científico,Hayek, em Scientism and the Study of Society, concluía quenão seria possível aplicar às ciências sociais o método dasciências naturais. Esta conclusão tinha por base o facto deHayek ter suposto, em conformidade com o pensamentoepistemológico dominante à época, que o método das ci-ências naturais seria um método indutivo-dedutivo, o queele não reconhecia nas ciências sociais, as quais, a seu ver,procedem de modo hipotético-dedutivo, através da criaçãode modelos abstractos de análise das interacções sociais deque se inferem dedutivamente consequências particulares,consequências que podem pôr à prova a eficácia explica-tiva do modelo. Nisto, o curioso é Hayek, ao descobrir aepistemologia popperiana, se ter dado conta de que quandoas ciências sociais procuravam, por uma espécie de mime-

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tismo, seguir uma metodologia indutiva mais não faziam doque seguir uma representação enganadora do que seriam asciências naturais. Ao modelo exaltado do positivismo ci-entífico – aquilo a que Hayek chamava depreciativamente“cientismo” – afinal, nada correspondia, nem nas ciênciassociais nem nas naturais.11

Com isto, pareceria que Hayek assume para as ciênciassociais tudo o que Popper assume para as ciências naturais.Mas não é tanto assim e isto por duas razões. Em primeirolugar, a complexidadenas ciências sociais implica que a in-formação nunca seja completa, pelo que as predições sópodem dispor de um alcance limitado e genérico. Por estarazão , de acordo com Hayek as ciências sociais apenasobtêm padrões de predição, incapazes de explicar eventossingulares. Em segundo lugar, ainda em Scientism and theStudy of Society, Hayek clarifica que os factos tratados pe-las ciências sociais não são da mesma natureza que os fac-tos tratados pelas ciências naturais: naqueles não importamas propriedades físicas dos objectos, mas as crenças, ex-pectativas e intenções que as pessoas detêm acerca dessesobjectos e isto num contexto de interacção entre agentes.Sobre este ponto, Hayek dá a seguinte ilustração:

11 As relações entre Hayek e Popper são bem conhecidas, sendo discutido o al-cance da influência do pensamento de cada um deles no do outro (Cf. CALDWELL,B., 2002. “Popper and Hayek: Who Influenced Whom?”). Só como nota de curiosi-dade, Popper dedicou o seu Conjectures and Refutations (de 1965) a Hayek, que, porseu turno, dedicou o seu Studies in Philosophy, Politics and Economics (de 1967) aPopper.

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«Um fármaco ou um produto de beleza, por exemplo, não são considerados, à luz da investigação sociológica,como coisas capazes destes mesmos efeitos ... O que im-porta para as ciências sociais não é que estas leis da na-tureza sejam verdadeiras ou falsas em sentido objectivo,mas que os homens assim as considerem e que, portanto,se comportem de acordo com esta convicção .»12

Quer isto dizer que, pelo menos para Hayek, o objectoda investigação científica nas ciências sociais integra ne-cessariamente crenças, expectativas, intenções. E se, meto-dologicamente, o que se obtém são explicações científicasatravés de modelos de análise, então nas ciências sociaisestarão em jogo crenças em regularidades acerca de cren-ças. Indo um pouco mais longe, se não importa se as leisda natureza são, ou não, verdadeiras, mas antes se as pes-soas assim as consideram, e não havendo nenhuma razãode princípio para que se não diga o mesmo relativamentea supostas leis ou regularidades nas ciências sociais, en-tão estas serem verdadeiras não será tão importante quantoas pessoas assim as considerarem. O que não significa quenão tenham importância nenhuma; têm-na mas, como vi-mos com Davidson, sob a mediação das crenças de que sãocausa.13 Ora, sob este pressuposto, não é difícil prosseguir

12 HAYEK, F. A. von, 1952. The Counter-Revolution of Science. Studies on theAbuse of Reason, 415.

13 Não obstante poder, naturalmente, haver desconformidade entre a realidade na-tural, por exemplo, e as nossas crenças acerca dela, relembro, porém, no seguimentodas teses de Davidson a que fiz referência atrás, que não é razoável admitir que

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o raciocínio até novos resultados. Desde logo, podendo ha-ver diferentes sistemas de crenças acerca das leis da natu-reza, também poderão ser diferentes os padrões de prediçãopara cada um desses sistemas de crenças. E podendo, porseu turno, as crenças acerca dos padrões de predição serdiferentes, então é suscitado um fenómeno que formulariaassim: a crença ou descrença numa regularidade ter efeitocausal sobre a própria regularidade. Ou seja: a crençanuma regularidade é, ou pelo menos pode ser, uma va-riável a ter em conta na corroboração de, e concomitantecrença em, essa mesma regularidade.

Este fenómeno levanta variadíssimas questões.14 Porexemplo, importaria determinar i) qual é a extensão do fe-nómeno e se é variável consoante a área disciplinar emcausa, ii) se a circularidade entre a posição da crença comocausa da corroboração e a da crença como efeito concomi-tante à corroboração constitui, de algum modo, um vícioe, em caso afirmativo, se existem procedimentos de "con-trolo" que permitam, de algum modo, inibir o efeito causalda crença na regularidade sobre a própria regularidade; e

as nossas crenças acerca da realidade natural possam sistematicamente estar erradasquanto ao que é a realidade natural. Já por outro lado, se admitirmos que faz sentidofalar de sistemas como objecto das ciências sociais, sistemas sociais, económicose outros, e se admitirmos que a sua descrição envolve regularidades, então haveráconstrangimentos, por assim dizer, à eficácia causal das nossas crenças impostos pelaprópria organização sistémica do objecto de estudo.

14 Note-se que também poderão estar em jogo, na corroboração do trabalho cien-tífico, outras crenças que não a crença numa regularidade expressa (julgo que a ideiade "mão invisível", no caso da Economia, constitui um bom exemplo).

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ainda iii) se, diversamente, tal circularidade permite ex-trair conclusões acerca do estatuto do objecto do trabalhocientífico em certas áreas disciplinares.

Se fosse possível equacionar o efeito causal da crençanuma regularidade sobre a própria regularidade, o que pelomenos por ora não é o caso, tal passaria possivelmentepor uma função não linear. E isto permitiria analogar esteefeito da crença na regularidade com fenómenos naturaiscuja ocorrência é apenas descritível em termos de funçõesnão lineares15 . Esta analogia pode estender-se a muitos fe-nómenos naturais que envolvem iterações e grande sensibi-lidade às condições iniciais. Basicamente, o que está envol-vido nestes fenómenos é os efeitos não serem proporcionaisàs causas; daí a grande sensibilidade às condições iniciaise a incapacidade, mesmo no mais estrito determinismo, emobter predições a longo termo.

Quer isto pelo menos dizer que a complexidade e a im-previsibilidade a longo termo não são apanágio das ciênciassociais. Quer ainda dizer que as metodologias baseadas namatemática do caos podem sugerir um bom princípio meto-dológico para enquadrar teórica e abstractamente, digamosassim, o efeito causal da crença em regularidades. Mas di-ficilmente mais do que isso. Com efeito, de um bom prin-

15 Esta analogia diz respeito apenas à formado fenómeno; não pretendo, de formaalguma, passar a ideia de que a repercussão das crenças acerca da realidade sociale económica sobre a própria realidade social e económica tenha um analogonnasciências naturais.

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cípio metodológico a um método capaz de obter resultadosvai uma grande diferença - com efeito, a muitos autores nãoparece realista esperar que se possa identificar e equacionartodas as variáveis envolvidas nos fenómenos investigadospelas ciências sociais e humanas. De certo modo, tratar-se-ão apenas, e para empregar uma expressão de Hayek, de“explicações de princípio”.

3. O efeito da crença nos contextos de descoberta ede justificação

Quando se assume que o conhecimento é, por defini-ção, crença, ainda que qualificada, trata-se obviamente decrenças expressas. Por exemplo, conhecer as leis que re-gem a queda dos graves implica as crenças expressas deque massa e peso não são o mesmo, de que a aceleraçãocom que se dá a queda de um grave é independente da suamassa, etc. Já as crenças que vimos Popper assumir comopsicologicamente a priorienquadram-se num horizonte deexpectativas pré-temático, longe pois do carácter expressoda crença qualificada que vale como conhecimento.

A ideia de uma dependência do conhecimento expressorelativamente a um nível não expresso, apenas tácito foiparticularmente notada por M. Polanyi que, a este propó-sito, introduziu o conceito teórico de conhecimento tácitocujo significado ficou condensado na ideia bem populari-

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zada de que «poderíamos conhecer mais do que podemosdizer» (we could know more than we can tell). Um conhe-cimento que fosse inteiramente explícito é, para Polanyi,um conhecimento inconcebível.

We have seen tacit knowledge to comprise two kinds ofawareness, subsidiary awareness and focal awareness. Nowwe see tacit knowledge opposed to explicit knowledge; butthese two are not sharply divided. While tacit knowledgecan be possessed by itself, explicit knowledge must relyon being tacitly understood and applied. Hence, all knowl-edge is either tacit or tacit knowledge. A wholly explicitknowledge in unthinkable.16

Esta dimensão tácita de conhecimento remete para umtipo de conhecimento que já não é proposicional, ou sejacom a forma Sei que p, mas para um tipo de conhecimentoque é, em parte, conhecimento de práticas científicas, prá-ticas mantidas por uma comunidade científica, e é tam-bém, noutra parte, composto pelo conjunto de compromis-sos pessoais, crenças e expectativas, que denotam o empe-nhamento pessoal do sujeito no conhecimento. Daí, a tesede Polanyi de que o conhecimento é sempre conhecimentopessoal.17

16 Polanyi, 1969. Knowing and Being. Essays by Michael Polanyi. Chicago:University of Chicago Press, 144.

17 A principal dificuldade que se tem reconhecido no pensamento de Polanyi estáem não ser clara a forma como pode Polanyi garantir que o conhecimento pessoalnão seja meramente conhecimento subjectivo. É certo que, com a assunção destadimensão tácita e pessoal, Polanyi não visa limitar a objectividade; pelo contrário,visa mostrar que as condições para a objectividade não dependem exclusivamente da

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Numa palavra, o juízo científico, por exemplo sobre abondade de uma teoria ou uma sua possível refutação, épara Polanyi um juízo pessoal, no qual estão envolvidosaspectos irredutíveis a uma racionalidade estritamente for-mal. Ora, se Popper subscreveria com facilidade a ideia deuma insuficiência no esforço de caracterizar formalmente omomento relativo à formação criativa de conjecturas, porémjá não acompanharia, por certo, a ideia de Polanyi de esten-der essa insuficiência ao próprio momento da justificaçãoracional.

Aproveitando a clássica distinção, da autoria de Rei-chenbach, entre contexto de descobertae contexto de justi-ficação, a intransigência de Popper relativamente à posiçãode Polanyi não poderia deixar de se fazer sentir quanto aosegundo contexto - o lugar da crença no trabalho científiconão pode inibir, influenciar ou ter de algum modo efeitosobre a justificação científica, a qual é, para Popper, exclu-sivamente baseada em critérios de discussão crítica, testesde falsificação, níveis de corroboração e verosimilhança.Assim, o lugar das crenças e expectativas, enquanto facto-

dimensão explícita do conhecimento. Contudo, não é claro como pode distinguirna natureza pessoal do conhecimento uma dimensão objectiva a não ser através dorecurso à própria dimensão subjectiva. É, a meu ver, bom exemplo disso o tipo deresposta que Polanyi dá a esta dificuldade: «It is personal, in the sense of involvingthe personality of him who holds it, and also in the sense of being, as a rule, solitary;but there is no trace in it of self-indulgence. The discoverer is filled with a compellingsense of responsibility for the pursuit of a hidden truth, which demands his servicesfor revealing it. His act of knowing exercises a personal judgement in relating evi-dence to an external reality, an aspect of which he is seeking to apprehend.» (Polanyi.M., 1967. The Tacit Dimension.London: Routledge, 24-5)

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res causais, deveria limitar-se ao contexto da descoberta.Simplesmente, não parece que Popper tenha atendido real-mente à ciência tal qual se faz, para retomar uma expres-são feliz que serviu de título a um volume coordenado porFernando Gil. Não é de todo claro que o que interessaa um cientista, a saber, distinguir uma boa teoria de umamá teoria, passe pelo critério popperiano de demarcação daciência face à metafísica - bem entendido, uma teoria cien-tífica prever as condições segundo as quais seria refutávelnão é um factor dispiciendo na sua discussão crítica e esta,por seu turno, é, sem dúvida, um momento indispensávelna racionalidade científica.18 Mas, a suposição de que aocorrência de um, ou mais, testes negativos seja condiçãosuficiente, sequer necessária, para a refutação de uma te-oria científica é uma suposição que, algo ironicamente, sedeixa refutar. Fossem assim avaliadas as teorias científi-cas e, provavelmente, a teoria de Copérnico, por exemplo,teria sido preterida a favor do geocentrismo. De acordocom M. Polanyi, Copérnico não optou pelo heliocentrismopor nenhuma razão baseada na observação, quer a seu fa-vor quer em desfavor do geocentrismo, mas fundamental-mente por razões ligadas ao seu conhecimento tácito. La-katos, que também toma em atenção o exemplo históricoda teoria copernicana, embora em termos distintos dos de

18 Hoje em dia, se pretendermos encontrar uma característica comum às ciências“tal qual se fazem”, o mais provável é indicarmos como uma dessas características,se não mesmo a principal, ou aquela que regula todas as outras, a discussão atravésdo método (na verdade meta-método) de peer-review.

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Polanyi, sustenta que, além de predizer novos factos, o he-liocentrismo satisfazia, melhor do que a teoria ptolomaica,ideais como o da perfeição e da simplicidade, os quais nãosão reconduzíveis aos critérios popperianos.

Se, assim, não parece razoável sustentar a ineficácia decrenças e expectativas tácitas, bem como de compromis-sos comunitários, no contexto de justificação do trabalhocientífico, o que impede, então, a conclusão de que seriamapenas critérios sociológicos e psicológicos a justificar a re-futação ou salvaguarda de uma teoria científica? O que im-pede a admissibilidade de quaisquer metodologias ao jeitodo “anarquismo metodológico” de Feyerabend? Se nadaimpedir esta conclusão, então, como Kuhn afirmou, podesuceder que um novo paradigma se imponha não por persu-adir racionalmente os investigadores, mas tão-só por estesse retirarem, dando lugar a outros, mais novos; mesmo sealgum investigador se deixasse convencer não seria exac-tamente porque haja uma argumentação que o persuada ra-cionalmente, mas porque sucede uma mudança global depercepção comparável a uma conversão religiosa. Esta é,em síntese, a posição do Kuhn mais radical. Mas a con-versão do olhar teórico, digamos assim, ser comparada auma conversão religiosa suscita razoáveis apreensões - porprincípio, a segunda dispensa o que a primeira deveria exi-gir, a saber, ser racionalmente justificada, portanto, acom-panhada por razões explícitas, em todo o caso, razões sus-ceptíveis de discussão. A haver semelhança deveria, pois,

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ser meramente psicológica - aí sim, a psicologia da percep-ção, e em particular a gestalttheorie,pode dar um fecundocontributo para a compreensão da mudança teórica, sobre-tudo sob a aceitação do suposto de que, por princípio, o co-nhecimento está necessariamente fundado numa dimensãotácita. Mas esta semelhança psicológica não impede nemdeve impedir a ressalva do trabalho racional da justificação.

A este propósito, parece bem mais equilibrada a posi-ção de Lakatos: conhecimento pessoal, crenças e expecta-tivas tácitas, conversão psicológica do olhar teórico, em-bora ocorram - contrariamente à posição de Popper - nocontexto de justificação, não representam uma suspensãoda racionalidade científica19 , mas o reconhecimento deque esta mesma racionalidade não é imediata, mas pro-cessual. De certo modo, o que é distintivo nos progra-mas de investigação científica20 é a sua própria racionali-dade ser um projecto a longo prazo. O que salvaguarda o“núcleo firme” de um programa de investigação científicae mantém-no relativamente imune à falsificação, via argu-mentos do tipo Modus Tollens, não é assim um critério so-

19 «Os "sociólogos do conhecimento" em voga - ou "psicólogos do conhecimento"- tendem a explicar as posições em termos puramente sociais ou psicológicos quando,na realidade, elas são determinadas por princípios de racionalidade.» (Lakatos, I.,1970. Falsificação e Metodologia dos Programas de InvestigaçãoCientífica. Lisboa:Edições 70, 1999, 100-101)

20 “O meu conceito de um ’programa de investigação’ pode ser interpretado comouma reconstrução objectiva...do conceito sócio-psicológico de Kuhn de ’paradigma’:assim a alteração de padrões cognitivos ("Gestalt-Switch") kuhniana pode ser reali-zada sem que se tire os óculos popperianos.” (Lakatos, 1970, 144n)

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ciológico, mas uma racionalidade metodológica que evitaque a alternativa a uma utópica racionalidade imediata sejauma liminar sujeição da decisão científica a razões alheiasà racionalidade científica.

O ponto não está, pois, em recusar o efeito causal dascrenças em nenhum momento do trabalho científico, masem compreender que esse efeito não anula, em princípio,a reivindicação de uma racionalidade científica como úl-tima palavra no processo de constituição do conhecimentocientífico.

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