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7/23/2019 ANDRADE, Oswald - Obras Completas Vol 2 - Memórias Sentimentais de João Miramar & Serafim Ponte Grande http://slidepdf.com/reader/full/andrade-oswald-obras-completas-vol-2-memorias-sentimentais-de-joao-miramar 1/318 OSWALD DE ANDRADE OBRAS COMPLETAS-2 MI RAM AR-SERAFIM DUAS INVENÇÕES  Memórias Sentimentais de  João  Miramar e Serafim  Ponte Grande  são obras caracte- rísticas de Oswald de Andrade, e represen- tam, ambas, marcos de sua ruptura com a forma e a estrutura tradicionais da ficção romanesca. O próprio autor sentia essas experiências como invenções, e de Mira- mar  dizia constituir "o primeiro cadinho de nossa prosa nova". Alguns dos seus companheiros de gera- ção logo destacaram esse aspecto inovador do livro. Menotti dei Picchia viu-o como "um furacão cubista, que desintegra o idio- ma, faz uma salada de galicismos, idio- tismos e barbarismos" e revela "menospre- zo pelo formalismo consuetudinário" ao revolver os materiais lingüísticos. Para Cândido Motta Filho, a principal virtude das  Memórias Sentimentais  é chamar a atenção para o problema do estilo, em geral tão pouco ou quase nada conside- rado entre nós. Provindo das Memórias Sentimentais, como processo e como forma,  Serafim Ponte Grande,  um estouro rabelaisiano, exacerba a crítica e a sátira social já pro- posta naquela outra obra. Essa sátira, nos dois casos dotada de "alto poder de des- truição", como diz Prudente de Moraes Netto, alcança a "burguesia endinheirada, ociosa e cosmopolita, e, em particular, certa faixa de letrados provincianos e pom- posos que gira em seu redor", conforme observa Ilaroldo de Campos.

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OSWALDDE ANDRADE

OBRAS COMPLETAS-2

MI RAM AR-SER AFIM-  DUAS INVENÇÕES

 Memórias Sentimentais de  João  Miramare Serafim   Ponte Grande   são obras caracte-rísticas de Oswald de Andrade, e represen-tam, ambas, marcos de sua ruptura com aforma e a estrutura tradicionais da ficçãoromanesca. O próprio autor sentia essasexperiências como invenções, e de  Mira-mar   dizia constituir "o primeiro cadinho

de nossa prosa nova".Alguns dos seus companheiros de gera-

ção logo destacaram esse aspecto inovadordo livro. Menotti dei Picchia viu-o como"um furacão cubis ta, que desintegra o idio-ma, faz uma salada de galicismos, idio-tismos e barbarismos" e revela "menospre-zo pelo formalismo consuetudinário" aorevolver os materiais lingüísticos. ParaCândido Motta Filho, a principal virtude

das  Memórias Sentimentais   é chamar aatenção para o problema do estilo, emgeral tão pouco ou quase nada conside-rado entre nós.

Provindo das  Memórias Sentimentais,como processo e como forma,   SerafimPonte Grande,   um estouro rabelaisiano,exacerba a crítica e a sátira social já pro-posta naquela outra obra. Essa sátira, nosdois casos dotada de "alto poder de des-

truição", como diz Prudente de MoraesNetto, alcança a "burguesia endinheirada,ociosa e cosmopolita, e, em particular,certa faixa de letrados provincianos e pom-posos que gira em seu redor", conformeobserva Ilaroldo de Campos.

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Memórias Sentimentais de João Miramar

Serafim Ponte Grande

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Coleção

VERA CRUZ

(Literatura Brasileira)

Volume 147-A

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Obras Completas de Oswald de Andrade

1. Os  CONDENADOS  (Alma/ A Estréia de Absinto/ A Es- cada)   — Romances.

2 . MEMÓRIAS SENTIMENTAIS DE JOÃO MIRAMAR / SERAFIM

PONTE GRANDE  — Romances.3. MARCO ZERO: I —  A Revolução Melancólica   — Ro-

mance.

4.  MARCO ZERO:  II —  Chão   — Romance.

5 . PONTA DE LANÇA  — Polêmica.

6 . D o PAU-BRASIL À ANTROPOFAGIA E ÀS UTOPIAS ( Mani- festo   da Poesia Pau-Brasil/   Manifesto   Antropófago/ Meu

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Sumário

MEMÓRIAS SENTIMENTAIS DE JOÃO MIRAMAR

Miramar na mira —  Haroldo de Campos   xiNota sobre o texto xlviiMemórias sentimentais de João Miramar 1

SERAFIM PONTE GRANDE

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Miramar na Mira

HAROLDO DE CAMPOS

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O primeiro cadinho

E M 1922 — ano que se assinalaria entre nós pela eclosãoda  Semana de Arte Moderna   — era publicada em Paris, pelaShakespeare and Co.   (a hoje lendária Casa Editora da ame-i S l i B h) i i di ã d li d ti d

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Eugène Jolas. Em 1923, Mário de Andrade escrevia a ManuelBandeira: "Osvaldo e Sérgio chegam em dezembro.' Sérgio traz

 já impresso o seu  Oeil de Boeuf  . Osvaldo traz um romance Memórias de João Miramar  — segundo me contam interessan-tíssimo, moderníssimo, exagerada mente de facção. Morro decuriosidade"-.  Memórias Sentimentais de João Miramar  •—>  da-

tado de "Sestri Levante / Hotel Miramare, 1923" — sai em1924, ded:cado a Paulo Prado e Tarsila do Amaral, com capadesta última (Livraria Editora Independência, São Paulo). £steo romance que Oswald de Andrade, com inteira razão, chamou"o primeiro cadinho de nossa prosa nova", num artigo de 1943("Antes do  Marco Zero"), republicado em  Ponta de Lança 3 .

èste o livro fundamental, convertido em raridade bibliográficae pràticamente desconhecido das gerações mais jovens, que hoje— finalmente! — se reedita e se repõe em circulação, passadosquarenta anos de seu lançamento e dez anos de morte do autor.Realmente, nem sempre se tem lembrado de referir esta obradivisora-de-águas quando se traça a evolução de nossa prosa

moderna. Houve mesmo, durante muito tempo — e com re-flexos até nossos dias — uma campanha sistemática de silênciocontra Oswald, que resultou na minimização, senão na volun-tária obl iteração, da importância da bagagem literária oswal-diana. O criador do  Miramar,   na sua combatividade caracte-rística, já a denunciava no mesmo  Ponta de Lança  ("Fraterni-dade de Jorge Amado"): "Criou-se então a fábula de que eusó fazia piada e irreverência, e uma cortina de silêncio tentouencobrir a ação pioneira que dera o  Pau-Brasil,   donde, no de-

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O débito de Mário de Andrade

Este retrospecto histórico tem um sentido: prepara umapossível aproximação — que mais adiante será desenvolvida —

entre o  João Miramar   de Oswald e o  Ulysses   de Joyce; marcao débito da prosa de Mário de Andrade — em especial do Má-rio de  Macunaima,   romance-rapsódia escrito em 1926 e editadocm 1928 "', — para com a prosa oswaldiana. Mário da SilvaBrito, cuja  História do Modernismo Brasileiro 6  contribuiu deci-sivamente para a reavaliação do papel fundamental de Oswald

nesse movimento, focalizou explicitamente êsse débito, em arti-go publicado na  Revista Brasiliense:   "João   Miramar   é o germedo  Serafim,   e ambos os livros interessam, profundamente, aohistoriador social e ao historiador literário. Representam ambosn condensação dos caminhos seguidos pelo modernismo, e oponto de parada de onde se poderá partir a inusitados rumos.

 Miramar,   como experiência estilística, não antecipou os rumosseguidos por Mário de Andrade em  Macunaima,   por Jorge deLima em  O Anjo,  por Clarice Lispector em  Perto do CoraçãoSelvagem,   por Geraldo Ferraz, com Pagu, em  A Famosa Re-vista,   e sozinho, em  Doramundo,   por Guimarães Rosa emGrande Sertão: Veredas?'' 7  ,   E Antônio Cândido num estudo

de 1943  8

, que — não obstante o tempo decorrido; não obstantea reação que suscitou de parte do próprio Oswald9; sem em-bargo das discussões que ainda poderia comportar (sobretudo

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segue sendo a mais penetrante análise da ficção oswaldiana deque dispomos, feriu também êste ponto, indiretamente, ao cha-mar com toda a propriedade o  Serafim   um "Macunaima ur-bano". Ora, o  Serafim   Ponte Grande,   escrito em 1929 e pu-blicado em 1933, outra coisa não fêz senão levar às conse-qüências necessárias o experimento do  João Miramar. No in-terregno de ambos os livros, surgiu a rapsódia marioandradina,que — com tudo de extremamente pessoal e de específico queapresenta (o seu esboço de uma língua brasílica pluri-regionale de uma saga panfolclórica, por exemplo) — não deixa de terpontos de contato com aquêles dois livros e acabou bafejadapor uma fortuna junto à crítica que a prosa experimental de

Oswald jamais conheceu. Não temos para os dois romances deOswald, algo como o  Roteiro de Macunaima,   de Cavalcanti

 Proença,   que está para o de Mário como o  Skeleton Key (Cha-ve Mestra) de Campbell e Robinson para os  Finnegans Wakede Joyce. É verdade que, pela sua própria natureza compósita,o  Macunaima  demandaria mais uma obra topográfica e exegé-

tica dêsse gênero. Mas não se pode deixar de dar razão aMário da Silva Brito na advertência que faz ao referir-se àquelesdois romances: "Quando os filólogos nacionais despertarem deseu pesado e demorado sono, descobrirão, sem dúvida, que êsseslivros são riquíssimos filão para a pesquisa, o estudo e a aná-lise da sintaxe e da estilística renovadas"10.

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em dois pontos: parece imitação do Osvaldo e decerto os pre-ceitos usados por êle atuaram subconscientemente na criação dacarta e acho comprida por demais. O primeiro ponto não achoremédio. O segundo, vou encurtar a carta. Mas não tiro ela

não porque gosto muito dela"

11

. Não será difícil precisar oalcance dessa revelação no plano compositivo. O propósito deMário de Andrade, na "Carta pras Icamiabas", foi, como sa-lienta Cavalcanti Proença12, "mostrar o artificialismo de umalinguagem anacrônica". O próprio Mário, na carta a Bandeira

 já referida, esclarece bastante seus desígnios: "Macunaima comotodo brasileiro que sabe um poucadinho vira pedantíssimo. Omaior pedantismo do brasileiro atual é escrever português delei: Academia, Revista de Língua Portguêsa e outras revistas;Rui Barbosa, etc., desde Gonçalves Dias".. . "Agora a ocasiãoera boa pra eu satirizar os cronistas nossos (contadores demonstros nas plagas nossas e mentirosos a valer) e o estadoatual de São Paulo, urbano, intelectual, político, sociológico.

Fiz tudo isso, meu caro. Fiz tudo isso em estilo pretensioso,satirizando o português nosso e, pleiteando sub-repticialmentepela linguagem lépida, natural (literatura) simples,  dépourvuedos outros capítulos". Neste episódio — onde o Macunaimadeclaradamente vira  urbano  e entra, assim, na área do Mira-

 mar  e do  Serafim   — o recurso literário usado foi a  paródia,

o arremêdo parodístico de um linguajar rebuscado e falso e,através dêle, a caracterização satírica do  status   de uma deter-minada faixa social urbana de letrados bacharelescos a que

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prio autor, João Miram ar-Oswald. Êste pseudo-prefácio, noentanto, camufla uma série de considerações programáticas so-bre a experiência oswaldiana, sendo assim um antimanifesto naparódia lingüística e um manifesto verdadeiro nas definições detécnica de composição que nêle estão insertas. "Torna-se ló-

gico que o estilo dos escritores acompanhe a evolução emocio-nal dos surtos humanos. Se no meu fôro interior, um velhosentimentalismo racial vibra ainda nas doces cordas alexandri-nas de Bilac e Vicente de Carvalho, não posso deixar de re-conhecer o direito sagrado das inovações, mesmo quando elasameaçam espedaçar nas suas mãos hercúleas o ouro argamas-

sado pela idade parnasiana, VAE VICTIS!" — pérora MachadoPenumbra ao gôsto dos paraninfos de província. E logo adianteacrescenta: "Esperamos com calma os frutos dessa nova re-volução que nos apresenta pela primeira vez  o estilo   telegráficoe a metáfora lancinante".   A paródia prossegue, incorporandoagora um tropo surradíssimo sobre as côres da bandeira na-

cional ("Nossa natureza como nossa bandeira, feita de glaucoverde e de amarelo jalde, é propícia às violências maravilhosasda cor. Justo pois que nossa arte também o queira ser"), apar de uma indicação pertinente sôbre o caráter imagístico-vi-sual da prosa oswaldiana. Oswald faz Machado Penumbraconciliar os sobressaltos de purista em pânico com uma aco-

modatícia receptividade, dobradamente cômica: "Quanto à gló-tica de João Miramar, à parte alguns lamentáveis abusos, eu aaprovo sem contudo adotá-la nem aconselhá-la Será êsse o

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A contribuição milionária de todos os erros. Como falamos.Como somos"13.

 A paródia   estilística

Já se viu como a "Carta pras Icamiabas", do  Macunaíma,

pode ser aproximada das  Memória Sentimentais de João Mira-

 mar,  através do recurso da  paródia   lingüística e estilística. Aparódia marioandradina é mais arcaizante, mais voltada parao linguajar quinhentista, colhido nas fontes escritas de clássicosportuguêses e dos primeiros cronistas que deram relato de nossaterra ("Por estas paragens mui civis, os guerreiros chamam-sepolícias, grilos, guardas-cívicas, boxistas, legalistas, mazorquei-

ros, etc.; sendo que alguns dêsses têrmos são neologismos ab-surdos — bagaço nefando com que os desleixados e petimetresconspurcam o bom falar lusitano. Mas não nos sobra já vagarpara discretearmos  sub tegmine   fagi   sobre a língua portuguêsa,também chamada lusitana"); de envolta, é ridicularizada a gra-matiquice dos puristas: note-se, por exemplo, como, num textoonde são ferreteados os forjadores de neologismos, é incrus-tado, propositadamente, um galicismo fora de circulação —

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e a espontaneidade, restituídos à sensibilidade moderna em flashes,   em tomadas isoladas, não imitativas, mas criativas14.

 Personagens

Machado Penumbra, o pseudo-autor do prefácio ao  Mi- ramar,  extrapola do seu texto para se converter, êle próprio,em personagem do livro. Comparece, sempre em atitude em-

pertigada e oratória ("orador ilustre escritor"), em vários epi-sódios (o  Miramar   não é dividido em capítulos, mas em episó-dios-fragmentos, numerados): 69-Etnologia   — como oradornuma sessão de Instituto Histórico;  10-Rodinha   — como parti-cipante das tertúlias domésticas de Miramar; 81 -Noite   Institutal— com um trecho belicista de seus "Discursos Sul-Americanos";

89-Literatura   — como conferencista em "excursão histórica",a convite do "Grêmio Bandeirantes" de "Aradópolis", para umareverência póstuma "à malograda morte do Conselheiro Zé Al-ves"; 137-Baile   — com uma frase suspirosa para o álbum deMlle. Rolah, a amante de Miramar ("A sua loira e estranhadivindade dominou a sala fantástica até extinguir-se a últimanota da mágica orquestra"); 155-Ordem e Progresso   — comodiscursante homenageado num jantar redatorial de Ano Novo(aí Miramar-Oswald fotografa-o em ato: "Machado Penumbra

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"pince^nez  arqueólogo" (86-Campos de Batalha), autor da"biografia do patriarca Basílio 8 que foi torrado numa igrejapor causa de Orígencs"  (&&-Jabuticabas)\   o Dr. Mandarim Pe-drcso, Presidente do "Recreio Pingue-Pongue", "chiquíssima so-ciedade de môças que a sua personalidade centrava como umcoreto" e que êle próprio definia como "uma forja de tempera-mentos e um ninho de pombas gárrulas" ( i55-Ordem e Pro-

 gresso;  no episódio 160-Discurso análogo ao apagamento daluz durante o fox-trot pelo Dr. Mandarim Pedroso,   vemo-loproferir uma hilariante homília congratulatória aos jovens asso-ciados do seu clube); o "fino poeta Sr. Fíleas de muita cultura"(10-Rodinha),   que pensava na Grécia e falava a Miramar "da

imortalidade da poesia e da mortalidade dos poetas inclusiveêle mesmo" (uma frase-caricatura o define no episódio 72--Sossegadas carambolas : "Fíleas era um cosmético de sone-tos"). O livro fecha com uma opinião crítica do Pôncio Pilatos(referida por Miramar a um jornalista), vazada no mesmo jar-gão amaneirado e postiço com que Machado Penumbra o abre

("O meu livro lembrou-lhe Virgílio, apenas um pouco maisnervoso no estilo"). Aliás, êsses personagens são mais ou menosreversíveis, e configuram, todos êles, uma mentalidade-tipo, queconfere sentido à paródia e lhe dá unidade. e continuidade.Todas essas figuras são bàsicamente extraídas do ambiente emque circulava Oswald na São Paulo anterior e contemporânea

à Primeira Grande Guerra. Isto se verifica fàcilmente atravésda leitura do 1? volume da autobiografia do autor  (Um Homemsem Profissão, Livraria José Olympio Editora, 1954), único

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abrira para a minha sêde de vida e de ação". E conta como jogara fora o seu primeiro "poema livre" ("O último passeiode um tuberculoso, pela cidade, de bonde"), sob a assuada dospoetastros de sua roda, empedernidamente parnasianos e atra-sados. Em outro trecho (p. 206), êle se descreve ao tempode estudante de direito, em caravana cívica, participando de

sessões oratórias em grêmios interioranos, e então a cena auto-biográfica parece colhida diretamente nas  Memórias Sentimen- tais16. "Miramar de rabona, fala. Está quase comovido. Quasetreme. Precipita, engole, joga períodos. Estaca. Terminou.Tijucópolis hesita. Aristides hesita. Mas Miramar sentou-se.Então despenca sôbre êle a mais bem entoada das salvas de

palmas. Acabou-se a festa. Tijucópolis dispersa, tristemente,aos bandos, amassando o barro grosso das chuvas".

Sátira dentro   da sátira

Mas a sátira lingüística miramarina tem ainda outros ní-veis. Há uma sátira dentro da sátira, na figura de Minão daSilva, agregado da "Fazenda Nova Lombardia" e "jovem or-

gulho mulatal do grêmio Bandeirantes", personagem que, "to-mando a palavra pela ordem", responde* ao discurso de MachadoPenumbra no episódio 89-Literatura-.   "— Não preocupei as

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dado à crítica social e lingüística levada a efeito por Oswald.No mesmo passo, Mário de Andrade caricatura em Macunaima(X-Pauí-Pódoie,   p. 114; XI-A  Velha   Ceiuci,  pp. 125/126) umorador de praça pública, "mulato da maior mulataria", quedeita prolixa falação sôbre "o dia do Cruzeiro" ( " . . . Meussenhores, . . . aquelas quatro estréias rutilantes como lágrimasardente, no dizer do sublime poeta, são o sacrossanto e tradi-cional Cruzeiro que . . .") e um estudante, que profere umaarenga desconexa da capota de um auto ("— Meus senhores,a vida dum grande centro urbano como São Paulo já obrigaa uma intensidade tal de trabalho que não permite-se mais den-tro da magnífica entrosagem do seu progresso sequer a pas-sagem momentânea de sêres inócuos. Ergamo-nos todos  una

voce  contra os míasmas deletérios que conspurcam o nosso or-ganismo social e já que o Govêrno cerra os olhos e dilapida oscofres da Nação sejamos nós mesmos os justiçadores.. .") 1 7 .

 Revolução   e  autocrítica

A paródia programática à linguagem pretensiosa e falsae à ôca verbosidade18  permitiu-nos cotejar a prosa de Mário

com a de Oswald e mostrar pontos de contato entre ambas.Isto, se em nada desmerece a primeira, pois os elementos os-waldianos foram nela aproveitados num sentido pessoal e per-

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As  Memórias Sentimentais de João Miramar  foram, realmente,

o verdadeiro "marco zero" da prosa brasileira contemporânea,no que . pia  tem de inventivo e criativo (e um marco da poesianova também, naquela "situação limite" em que a preocupaçãocom a linguagem na prosa aproxima a atitude do romancistada que caracteriza o poeta). Romperam escandalosamente comtodos os padrões então vigentes, fazendo a autocrítica inclusive

(voluntária ou involuntária) da própria tentativa romanescaanterior e paralela de Oswald ( A Trilogia do Exílio,   1922/1934, fundida num volume único,  Os Condenados,   1941 ) 1 9 .Aliás, o próprio Oswald confessa que fizera a revolução moder-nista em parte contra si mesmo, pois "temia escrever bonito de-mais" se não "destroçasse todo o material lingüístico que utiliza-

va, amassando-o de novo nas formas agrestes do modernismo"

20

.Fica, por outro lado, evidenciada a importância dêsse recursoestilístico e compositivo — a  paródia   — na obra tanto de Os-wald como de Mário. Através, mais uma vez, da idéia de

 paródia   — que interessou igualmente a um James Joyce e aum Thomas Mann — estaremos já nó ponto de passar a outrapreocupação anunciada no início dêste estudo: o paralelo entreas  Memórias Sentimentais e o Ulysses   do mestre irlandês. Comoelucida Harry Levin, Joyce, no episódio da maternidade doUlysses  ("The Oxen of the Sun" / "Os Bois do Sol"), parodia

1 9

  Segundo refere Oswald em nota final à edição de 1941 (Livrariado Globo, Pôrto Alegre), a  Trilogia   teria sido escrita entre 1917 e 1921.Pelo menos as duas primeiras partes estariam prontas em 1920, conforme

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lingüisticamente, numa parada de virtuosismo, "todos os prin-cipais estilistas da história da literatura inglesa"  2 1 .

Um marco antinormativo

É muito provável que Oswald de Andrade, apesar de seencontrar em Paris no ano de 1923 (sua segunda viagem à Eu-ropa), não tivesse tomado contato àquela data com o Ulyssesde James Joyce, que fôra editado um ano antes, numa tiragemlimitada a 1 000 exemplares, destinada, quanto possível, à vendapor subscrição antecipada. A esta primeira edição (Shakespeareand Co., Paris), esgotada no verão de 1922, seguiu-se imediata-mente uma outra, também impressa na França (para The EgoistPress, Londres), limitada a 2 000 exemplares, a quarta parte daqual, inclusive um suplemento de 500 exemplares tirado em

 janeiro de 1923, foi confiscada e destruída pelas autoridadesalfandegárias norte-americanas e inglêsas, sob a acusação deobscenidade22. Mário de Andrade, que supria com o gôsto pelainformação metódica a impossibilidade de viajar, refere seuaprêço pelo escritor irlandês já numa carta de 1925 ("Porque,quando alguém me fala que admira que nem eu o James Joyceeu digo: "êsse sujeito é inteligente")23. Oswald, por sua vez,em artigos coligidos em  Ponta de Lança  — volume que cobre

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demo? — Joyce. Guarde a data da publicação do  Ulysses".

Mais adiante, no mesmo trabalho, chama o  Ulysses   de "umgrande marco antinormativo". Noutro artigo, anota: "Justa-mente oJ  Ulysses   é um marco onde termina o romance da bur-guesia, pois aí, num dia coletivista e mural, seus heróis destro-çados não são mais de modo algum os "mandatários da própriadebilidade no país da força". Como não o são na Montanha

 Mágica,   onde o episódio pessoal desaparece sob o inventáriocultural de todo um século"24.

 Joyce e Thomas Mann

Nesse depoimento de Oswald é especialmente significativaa conjugação de Joyce e Thomas Mann, inclusive do ponto devista ideológico, como romancistas da crise da burguesia. Por

mais que um crítico como Georg Lukács — tão cheio de ilu-minações como de idiossincrasias — se esforce por desvinculara obra manniana da joyciana, não é possível deixar de ver oquanto elas têm em comum25. O próprio Thomas Mann, no

 Romance de um Romance26  — obra em que descreve a gênesedo  Doktor Faustus   (1947) — admite expressamente que, na

24 Ob cit na nota 3 pp 41 44 e 70

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 paródia,   está seu ponto de contato com Joyce: "Em matériade estilo eu hoje não conheço, pode-se dizer, outra coisa senãoa paródia. Vizinho, nisto, de Joyce". Noutra passagem, escreve:"Alimentava o preconceito de que, ao lado do vanguardismoexcêntrico de Joyce, a minha obra faria o efeito de um fraco

tradicionalismo. É verdade que o vínculo tradicional, ainda quetinto de paródia, permite uma acessibilidade mais fácil e com-porta a possibilidade de ser mais popular. Todavia, é antes umaquestão de postura que de essência". E prossegue, reconhecendoque o juízo do crítico Harry Levin sôbre a obra joyciana ("Aopasso que seu tema revela a decomposição da classe média, a

técnica de Joyce vai além dos limites da ficção realista. Nemo  Portrait  of    the Artist,   nem o  Finnegans Wake  são romances,em sentido estrito, e o  Ulysses   é um romance para acabar comtodos os romances") se aplicava perfeitamente à  Montanha Má-

 gica,   ao  José  e ao  Doutor Fausto   e correspondia a uma suaproposição (semelhante a outra de T. S. Eliot sôbre o  Ulysses )

no sentido de que, em matéria de romance, "somente tem valorhoje, ao que tudo indica, aquilo que não é mais romance". Estasconsiderações de Thomas Mann não ficaram apenas no planoteórico. Bastaria lembrar, em matéria de  paródia,   o uso de umalemão arcaizante para caracterizar a possessão demoníaca naalocução final do compositor Adrian Leverkühn, no  Doktor

 Faustus.   Êste senso parodístico levado à textura lingüística en-contra seu ponto máximo na obra manniana em  Der Erwãhlteu é

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fonte do livro é uma lenda colhida num poema medieval)27 .Nessa novela, sôbre a qual Lukács parece guardar silêncio, masonde, não por coincidência, o narrador é um monge irlandês,Mann chega a se avizinhar, em certas passagens, do Joyce de

 Finnegans Wake,   pela trama babélica do texto.

O Ulysses e o Miramar

No  Ulysses  joyciano, a paródia   é um recurso fundamental.Não seria necessário sequer recorrer ao já mencionado episódioXIV da obra — "The Oxen of the Sun", êste capítulo parodísticopor execelência, onde o desenvolvimento embrionário até o partoé apresentado por intermédio de uma elaborada paráfrase daevolução da língua e da literatura inglêsa, desde o anglo-saxãoprimitivo, monossilábico e aliterativo, até o  cockney  e o  slangdas ruas, passando pela imitação dos principais estilistas doidioma. A própria paródia da epopéia homérica no périploquotidiano de um obscuro cidadão de Dublin já envolve, àmaneira de um programa geral, esta sua extensão técnica28.Como já vimos ao comparar as  Memórias Sentimentais de João Miramar   com o  Macunaima, em ambos os livros está presente

esse recurso estilístico e estrutural tão relevante para a compre-ensão de algumas  das maiores criações da literatura moderna,

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ficando apenas em Oswald, não é ùnicamente sob êsse ânguloque se poderia aproximar o  Miramar  do  Ulysses,   embora o pa-ralelo deva fazer-se sempre com a maior cautela e dentro dasdevidas ressalvas. Realmente, as  Memórias Sentimentais  estãomuito longe de ter a intrincada e complexa estrutura, o caráteimonumental do  Ulysses   joyciano, verdadeira enciclopédia das

técnicas do romance moderno. Bastaria considerar o meticulosoroteiro do labirinto, preparado pelo próprio autor e divulgadopela primeira vez por Stuart Gilbert29, para têrmos uma medidada distância que separa o macro-microcosmo joyciano, cuida-dosamente planejado nos mínimos detalhes, do romance oswal-diano, feito todo êle no fio de uma improvisação genial, pe-

quena obra-prima de 163 episódios-fragmentos condensados empouco mais de 100 páginas. O  Miramar,   como todo, poderáantes ser pôsto em cotejo com um capítulo isolado do Ulysses(VII-Êolo),   passado numa redação de jornal, e onde são apro-veitadas as técnicas de manchete, titulagem e tópico da imprensadiária.  O Miramar,   com seu estilo telegráfico, é bem um misto

de diário sentimental e de jornal dos  faits   divers  duma sociedadeprovinciana e ociosa, cujo barômetro era a alta do café ou asua crise80. Antônio Cândido dá-nos esta expressiva síntesedo livro:  "Memórias Sentimentais de João Miramar,   sôbre serum dos maiores livros da nossa literatura, é uma tentativa se-ríssima de estilo e narrativa, ao mesmo tempo que um primeiroesboço de sátira social. A burguesia endinheirada roda pelomundo o seu vazio, as suas convenções, numa esterilidade apa-vorante. Miramar é um humorista  pince sans rire,   que procura

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diatidade associativa com que se processa a  collage   dos frag-mentos miramarinos: mas no caráter tópico e reduzido das to-madas êles se assemelham. Não falta também ao Miramar —*

 já está no título, a investir o personagem, onomàsticamente, du-ma perpétua vocação marítima — a idéia de périplo, idéia queno  Ulysses   joyciano é transposta para uma jornada terrestre e

pedestre no enclave urbano de Dublim. Ë aquêle "caráter deOdisséia que o romance conscientemente tomou com Joyce", aque alude Oswald com tanta convicção  S 2 . Só que o périplo,no  Miramar, é   aparentemente sem conseqüências: um périplopara o consumo boêmio da liberdade e ao cabo do qual oherói se reintegra no seu contexto burguês (matrimônio —

amante — desquite — vidinha literária — peripécias financei-ras.) Um tanto defasado, é verdade, já que as  Memórias   sãotambém o seu diário de pós-viagem, e as  Memórias   são a ne-gação dêsse contexto pelo ridículo. Miramar é um Ulissesingênuo, sem as manhas do rusé personnage  homérico, mas parao qual a viagem representa uma primeira perspectiva, se bem

que ainda imprecisa e indefinida, de abertura para o mundo ede "situação" crítica. "E voltava inocente como fora, pela la-deira de um intérmino mar. Apenas tinha uma nova dimensãona alma — conhecera a liberdade" (Oswald,  Um Homem sem

 Profissão,   pág. 125). Mas o destino ulissíaco do personagem setransporta para o romance detonado pelo  Miramar,   e que o

supera como projeto ideológico e formal, — o  Serafim   PonteGrande   (1929/1933) —, onde "a crosta da formação burguesae conformista é varrida pela utopia da viagem permanente e

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iebrada assim: "Cais de minha vida / partida sete vêzes / Caisde minha vida quebrada / Nas prisões / Suada nas ruas / Mo-delada / Na aurora imprecisa dos hospitais"34.

 Raízes   futuristas

Se não parece cabível presumir — antes é de rejeitar — a

hipótese de uma influência direta do  Ulysses   sobre o Miramar,é   perfeitamente compreensível que se possam vislumbrar certasafinidades técnicas entre ambos. Por trás de um e de outro atua-ram os manifestos, a poesia e a prosa de combate dos futu-ristas. Oswald relata ( Um  Homem sem  Profissão) :  "Dos doismanifestos que anunciavam as transformações do mundo, eu

conheci em Paris o menos importante, o do futurista Marinetti.Carlos Marx me escapara completamente" (p. 124). "Umaaragem de modernismo vinda através da divulgação na Europado "Manifesto Futurista", de Marinetti, chegara até mim" (pág.134). Mário da Silva Brito completa a informação: "Regres-sando da Europa, em 1912, Oswald de Andrade fazia-se o pri-meiro importador do "futurismo", de que tivera apenas notíciano Velho Mundo. O Manifesto Futurista, de Marinetti, anun-

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 Joyce e o  futurismo

James Johnson Sweeney, num interessante estudo sôbre aobra joyciana, menciona o pintor inglês Frank Budgen, compa-

nheiro chegado de James Joyce nos dias de Zurique, lembrandoque o romancista perguntara a Budgen, certa vez, se não con-siderava o episódio dos "Ciclopes", no  Ulysses,   cheio de mo-vimento e violência, "como futurista" 36. Recorda, também,que Joyce emprestara ao amigo, interessado em aprender o ita-liano, o livro de Boccioni sôbre o futurismo, como texto de

leitura37

. Para Sweeney, a evolução da prosa de Joyce, de  Ste- phen Hero   ao  Finnegans Wake,   culmina na conquista de uma"simultaneidade de expressão similar àquela visada pelos futu-ristas italianos, mas muito mais completa do que a que êles po-deriam realizar com um meio pietório". Comparando excertosdo  Portrait of the Artist as a Young Man,   do  Ulysses   e do

 Finnegans Wake,  Sweeney conclui: " . . .Na obra inicial, as ima-gens eram construídas por sentenças e por cláusulas. No Ulys- ses,  vemos que os elementos funcionais se reduzem a palavrasou no máximo frases, evocativas, associadas. Finalmente, no Finnegans Wake,   vemos várias imagens condensadas numa sópalavra, onde os elementos em associação não são frases ouvocábulos mas sílabas. . .". Sweeney, conhecido crítico de artesvisuais, limita seu traçado de influências ao futurismo plástico,evocando o manifesto lançado por Boccioni, Carrà, Russolo,

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existe mais; uma rua banhada pela chuva e iluminada por globoselétricos se abisma até o centro da terra". Nêle se proclama:"1. Que o complementarismo congênito é uma necessidadeabsoluta na pintura, como o verso livre na poesia e como apolifonia na música; 2. Que o dinamismo universal deve serreproduzido como sensação dinâmica; 3. Que na interpreta-ção de Natureza precisa-se de sinceridade e pureza; 4. Queo movimento e a luz destroem a materialidade dos corpos". Ese conclui, afinal: "Pensais que somos loucos. Ao contrário,somos os Primitivos de uma nova sensibilidade, completamentetransformada" 39.

 Poesia e prosa  futuristas

O que Sweeney deixa de referir, porém, é que êsses mes-mos preceitos do futurismo plástico encontravam seu correlatonos experimentos em poesia e prosa do movimento, nos quaisse pode notar — como na pintura ou na escultura futuristas —aquêle processo que o crítico define como uma "interpretação

simultânea de superfícies". A senha é  simultaneísmo.   Palavrasem liberdade. Imaginação sem fios. No  Manifesto-Fondazionedei Futurismo de Marinetti publicado no Figaro de Paris em

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sônia febril, a corrida, o salto mortal, a bofetada e o soco". Aêste manifesto de fundação, seguiu-se um Manifesto   técnico delialetteratura  futurista,   lançado em maio de 1912, ano em queOswald andava por Paris. Ali está: "1. É preciso destruira sintaxe, dispondo os substantivos ao acaso de seu nascimento".

"2. É preciso empregar o verbo no infinito, para que se adapteelàsticamente ao substantivo e não fique submetido ao  eu  do es-critor que observa ou imagina..." "3. £ preciso abolir oadjetivo, para que o substantivo nu mantenha sua cor essen-cial . . . " "4. É preciso abolir o advérbio, fivela velha quemantém unidas as palavras num conjunto... ".  "5. Cada

substantivo deve ter seu par, isto é, o substantivo deve seracompanhado, sem locução conjuntiva, pelo substantivo ao qualestá ligado por analogia. Exemplo: homem-torpedeiro, mu-lher-enseada, etc.". "6. Nada de pontuação. . . ".  "9. Paraenvolver e captar tudo o que há de mais fugidio e incaptável namatéria, é preciso formar filêtes cerrados de imagens ou ana-logias...". "10. Sendo tôda ordem fatalmente um produtoda inteligência cautelosa, é preciso orquestrar as imagens, dis-pondo-as a partir de um máximo de desordem". "11.Depois do verso livre, eis, enfim, as palavras em liberdade"40.E Marinetti, com seu estro bilingüe (francês/italiano), produzsem cessar.  Mafarka   le   futuriste   ("Mafarka il futurista"), ro-mance africano, sai em Paris, em 1910, e vale ao autor umprocesso por ultraje ao pudor,  La bataille de Tripoli vécue et chantée par F. T. Marinetti   ("La bataglia di Tripoli vissuta e

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"De repente, o trovão, vestido de brasa, arfante ecom seus cabelos de chuva hirtos d» pavor, precipitan-do-se do alto do zênite e rolando de uma escada de ferroa outra, esmigalhou-se nos subterrâneos do horizonte"(Mafarka).

"Lá embaixo, cintilaram lâminas e machados bran-cos, afiados por mãos invisíveis na pedra negra e dura dasnuvens. . . Depois bruscamente, a cabeça do trovão foidecepada, de um golpe, por um relâmpago" (Mafarka).

"Estiadas amáveis iluminavam instantes de céus sôbreruas molhadas de pipilos nos arbustos dos squares. Masa abóbada de garoa desabava os quarteirões"  (Miramar).

"O vento batia a madrugada como um marido. Masela perscrutava o escuro teimoso"  (Miramar).

"O céu jogava tinas de água sôbre o noturno que medevolvia a São Paulo"  (Miramar).

No  Ulysses   também se encontram exemplos dessa acele-rada imagística sonoro-visual. Eis, vertido para o português, umtrecho do "Eolo":

"Carroceiros embotamancados rolavam barris surdi-bundos para fora dos armazéns Prince e chocavam-nos

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que, a propósito do jornalismo contemporâneo, parodia as clás-sicas formas da arte retórica.

Contribuição de Marinetti

Mas o Marinetti do  Mafarka,   romance de estrutura aindatradicional, que participa da literatura galante e do exotismo depacotilha, e onde as imagens mais ousadas apenas aflojam numa

linguagem de andadura pomposa e para-simbolista, não é omais apropriado paralelo. O Marinetti adequado é aquêle jácomensurado aos seus próprios manifestos, liberto da placentadannunziana, o Marinetti dos  paroliberi,   dos  aeropoemi,  das  si-

 multané iíà.   Veja-se êste trecho de  Battaglia Peso + Odore,de 1911  4 3 :

"Meiodia 3/4 flautas gemidos soleão  tumbtumbalarme Gargaresch esfacelar-se crepitação marcha Tilin-tar mochilas fuzis cascos pregos canhões crinas rodas

caixões judeus empadas pão-de-óleo cantilenas lojinhasbafos cintilação remela fedor canela".

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Ou, finalmente, estes fragmentos de  aeropoema 44  :

"Redondas rendas doidas e baques e lampejos pelofasto do grande baile alegratroz dos explosivos".

"Cabriolando ferralhando no céu entre tetos de tem-pestuosos lampadários nos quais urge dardeja um fragorde matadouro".

"Chamo-me Vicenzo Ciaràvolo marinheiro de Torredei Greco disse ao comandante do contratorpedeiro Nullotornando-me o ordenança cheio de zêlo sal pimenta ver-melho em sopa-de-peixe quando esperávamos no anco-radouro".

 Estilo   telegráfico

Se Marinetti falava numa "immaginazione senza fili", Har-ry Levin, a propósito do  Ulysses,  fala na "sintaxe telegráfica domonólogo interior"45. Oswald, de sua parte, insinua no prefácio

 joco-sério de Machado Penumbra a caracterização do estilo mi-

ramarino como "estilo telegráfico". Evidentemente que êssesprocedimentos não levaram aos mesmos resultados, temperados

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sieroso"), uma evocação do mundo infantil— a criança, noquarto materno, preparando-se para dormir e misturando aspalavras de uma prece habitual com as impressões ingênuo-ma-Iiciosas provocadas pela contemplação de um manequim de cos-tura:

"Vacilava o morrão do azeite bojudo em cima docopo. Um manequim esquecido vermelhava.

— Senhor convosco, bendita sois entre as mulheres,as mulheres que têm pernas, são como o manequim demamãe até em baixo. Para que pernas nas mulheres,amém"47.

Outro momento análogo, embora sem caráter monologalexplícito, está no  episódio-fragmento   82  ("Tática"). Miramarfica sabendo da chegada ao Brasil, a bordo do navio Darro,

"acossada pela conflagração mundial", da "jovem estréia cine-matográfica Mille. Rolah" (com a qual, na seqüência do livro,terá um caso amoroso). A nova, colhida no jornal, se emba-ralha no seu espírito com o noticiário de guerra, e fica regis-trado nas  Memórias   o seguinte  flash   mental:

Até ontem  a ala  esquerda dos aliados fazia recuarem

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J offre visite le front en auto" (1919). Mudara o ponto toca!

estético. Na base do monólogo interior está o simultaneísmo,que o poeta e pintor Ardengo Soffici, na sua  Estética Futu-

 rista 48 ,  assim define: "Posto o artista como centro móvel douniverso vivente, todas as sensações e emoções, sem perspectivade espaço ou de tempo, atraídas e fundidas num ato criativopoético. Simultaneidade de estados de espírito polarizados por

vias analógicas de recordações, de pensamentos remotos, de im-pressões de outros lugares e de outros tempos, como luzes deastros errantes concentrados num espelho"... "A caixa de fós-foros que tenho diante de mim se liga, como imagem, a ummeu pensamento sôbre o mundo, a uma lembrança amorosa, eesta ao campo vespertino que vejo através da janela, estreita-

mente complementar ao título negro do  Corriere delia Sera".

O espírito moderno

Apollinaire, o poeta dos  Calligrammes , cujas atividadesformavam uma espécie de traço de união natural entre futurismoe cubismo, pois de ambos os movimentos participava, pronun-ciou em 1917, no Vieux-Colombier, uma conferência memo-

rável sob o título "Os poetas e o espírito moderno". Procla-mava então: " . . . Podemos prever o dia em que o fonógrafo eo cinema sendo as únicas formas de impressão os poetas terão

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mundo. Querem ser os primeiros a fornecer um lirismo inédito

a estes meios de expressão que trazem à arte o movimento eque são o fonógrafo e o cinema"'19. Oswald de Andrade sereclamava de uma análoga visão do mundo, quando escreviano dealbar da "Semana de Arte Moderna": "O êrro dos nossoscensores é o êrro de todos os envelhecidos: estão fora da psi-cologia do telégrafo sem fios, do aeroplano, da estrada empe-drada de automóveis e o seu armário de musas move fantasmaslongínquos e torvos num João Minhoca decaído em velhos plá-gios façanhudos" 50.

 Prosa   cinematográfica

O tempo requeria uma nova poesia e uma nova prosa,comensuradas ao cinema. Com razão observou Antônio Cân-dido, escrevendo sôbre  Os Condenados,  que Oswald fôra o lan-

çador da técnica cinematográfica em nosso romance, caracte-rizada pela "descontinuidade cênica", pela "tentativa de simulta-neidade, que obcecou o modernismo e que, entre nós, teve nosr. Mário de Andrade o seu teórico  (A Escrava que não é Isaura) e um dos seus poetas"1"'1. Esta técnica é uma constantena obra de Oswald. Do  Marco Zero   diria Roger Bastide quesua construção obedeceu a uma "ordem simultaneísta", sorte de"romance espacial"52. No  Um Homem sem  Profissão,   livro de

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memórias reais publicado em 1954, ela invade a narrativa e, a

partir das últimas páginas, inspiradas num diário de garçonnière,lhe devolve o ritmo acelerado e a expressão por abreviaturasmordazes do Oswald da década de 20, das  Memórias de Mira- mar  e da  Folhinha Conjugal  de Serafim. O par Miramar/Se- rafim,   longe de ser um hiato nessa técnica, é, a nosso ver, suaextensão mais conseqüente e estèticamente realizada, mesmo

porque desembaraçada dos percalços da miragem de monumen-tal idade, da teima da obra cíclica, à qual nunca se acomodoumuito bem o espírito sintético de Oswald. Uma vez que aidéia de uma técnica cinematc gráfica   envolve necessàriamentca de montagem de fragmentos, a prosa experimental do Oswalddos anos 20, com a sua sistemática ruptura do discursivo, com

a sua estrutura fraseológica sincopada e facetada em planosdíspares, que se cortam e se confrontam, se interpenetram e sedesdobram, não numa seqüência linear, mas como partes móveisde um grande ideograma crítico-satírico do estado social e men-tal de São Paulo nas primeiras décadas do século, esta prosaparticipa intimamente da sintaxe analógica do cinema, pelomenos de um cinema entendido à maneira eisensteiniana. Ei-senstein, como se sabe, depois de um encontro com Joyce em1930, quis filmar o  Ulysses,  que lhe parecia feito sob medidapara a aplicação de sua teoria da montagem, concebida comouma sucessão de imagens fragmentárias ordenadas, de cuja se-qüência ou colisão emergiria uma nova imagem maior do queas imagens separadas ou diferente delas53. Harry Levin chega

a escrever: "Na sua estrutura interna e na sua continuidade, oUlysses   tem mais em comum com o cinema do que com outros

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 Estética do   fragmentário

Se quisermos remontar às raízes, veremos que o fragmen-tarismo da prosa oswaldiana (sobretudo do  Miramar  e do  Se-

 rafim   e culminando nêles), assinalado por mais de um crítico,não é outra coisa senão a introdução e a projeção em nosso

romance da  estética do   fragmentário,   que Hugo Friedrich vaiidentificar já na poesia e na prosa do último Mallarmé68. Àprosa das  Divagations   (1897), Triedrich chama de "eine Koti-trapunktische Prosa" e, em geral, do instrumento estilístico doMallarmé dessa última fase diz que se caracteriza pela "des-truição da frase em fragmentos", pela "descontinuidade em lu-

gar da ligação", pela "justaposição em lugar da sintaxe de cons-trução habitual", sinais todos êsses  4de uma descontinuidade in-terior, de uma linguagem nas fronteiras do impossível". A frasede Mallarmé sôbre a página branca na qual se dispersam aspalavras do poema e que, quando confrontada pelo  vtranspa-rência do olhar adequado", se divide, assim como também essamirada perscrutadora, em "fragmentos de candor, provas nup-

ciais da Idéia", é, para Hugo Friedrich, "um postulado funda-mental da Estética moderna". A  crise de vers  de Mallarméacusava, no fundo, uma crise da linguagem lógico-discursiva paraa poesia (e para aquela prosa cuja problemática dela se avi-zinha), num mundo sacudido pela Primeira Revolução Indus-trial e pelas novas realidades que ela engendra. Se lembrarmos,

agora, que Marinetti foi o primeiro tradutor italiano de Mal-larmé, editando-lhe em 1916 um volume de  Ver si e Prose,d difi ld d i t d i

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 Influência  das artes   plásticas

As "subdivisões prismáticas da Idéia", de Mallarmé, cor-responderão talvez, no espírito do tempo, ao "impressionismocientífico", pontilhista, de um Seurat, cujas teorias pictóricas se

inspiraram, em grande medida, num tratado coevo, de Michel-Eugène Chevreul, significativamente intitulado  De la loi du contraste simultané des couleurs   (Paris, 1839). Depois vieramo futurismo com seus planos dinâmicos, o cubismo com seusplanos estáticos, o orfismo com seus círculos contrastantes.Tôdas essas tendências e impulsos acabam desenhando um con-

texto de convergências e divergências no qual também a lite-ratura de vanguarda das primeiras décadas dêste século se abe-berou e muito. £ bem possível que a influência primordial naprosa de Oswald — um visual por excelência — seja ainda,para além da assimilação da teoria e da prática literária futu-rista, a transposição imediata de suas descobertas pictóricasnas exposições de Paris. Como explicar, de outra forma, o cubo-futurismo plástico-estilístico de tantos trechos do  Miramar   (porexemplo) :

"Um cão ladrou à porta barbuda era mangas de ca-misa e uma lanterna bicor mostrou os iluminados na en-

trada da parede";"O cachorro deitado tinha duas caras com uma de

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perfície semântica a outra, as imagens se seccionam como pro-vidas de arestas? Não é à toa que, na introdução do Miramar,o verboso Dr. Penumbra nos surpreende com uma atualizadainformação de crítico de artes plásticas: "Há além disso, nesselivro nôvo, um sério trabalho em tôrno da "volta ao material"— tendência muito de nossa época como se pode ver no Salãode Outono em Paris". Sintomático também que, no  Manifesto da Poesia Pau-Brasil   (1924), Oswald nos trace uma evoluçãoda estética moderna em têrmos sobretudo de artes visuais:"Duas fases: a deformação através do impressionismo, afragmentação, o caos voluntário. De Cézanne e Mallarmé, Ro-din e Debussy até agora; 2^, o lirismo, a apresentação no templo,os materiais, a inocência construtiva" . . . "O trabalho contrao detalhe naturalista — pela  síntese;   contra a morbidez român-tica — pelo  equilíbrio  geômetra e pelo  acabamento  técnico;contra a cópia, pela  invenção  e pela  surpresa".. . "Substituira perspectiva visual e naturalista por uma perspectiva de outraordem: sentimental, intelectual, irônica, ingênua".. . "Nossaépoca anuncia a volta ao  sentido puro.  Um quadro são linhase côres. A estatuária são volumes sob a luz". . . "Nenhumafórmula para a contemporânea expressão do mundo.  Ver com olhos livres" 61 ,

 Atualidade do "Miramar"

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sob critérios próprios, para a devida aferição de um contextosocial de transição, uma realidade urbana em processo inicialde industrialização, mas ainda pesadamente vinculada, no planocultural, aos cânones do passado, aos "mitos do bem dizer", nafrase de Mário da Silva Brito58. Aqui caberia aludir, também,à tese da "congenialidade do modernismo brasileiro", levantada

por Antônio Cândido num trabalho de 19535

®, e que explicaria,por uma afinidade de impulsos e solicitações, a natural recep-tividade do nosso meio às vanguardas literárias européias, numsentido muito diferente das antigas imitações. O que, por issomesmo, — seria lícito acrescentar —, permitiu a criação deprodutos acabados e dotados de autonomia estética e origina-

lidade. Sobretudo, porém, importa dizer que esta prosa (comoa do  Serafim   Ponte Grande,   que é um  Miramar  reescrito comainda mais inconformismo e irreverência), passados 40 anos,está viva e aberta, supera os possíveis "cacoetes" de escola,aponta rumos talvez insuspeitados para nossa literatura de ima-ginação. Imune ao psicologismo dos introspectivos abissais,afeta ao trato saudável e sólido das palavras, colada ao seuinstrumento, ela, com raras outras entre nós, faz perimir oconceito de romance, de novela ou de conto, diante de uma novaidéia de  texto.

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Nota Sobre o Texto

N  A atualização ortográfica do texto, adotamos o critériode manter a grafia das palavras estrangeiras tal qual ocorre na

primeira edição, mesmo quando se trate de palavras que, nocurso dos últimos 40 anos, tenham sido assimiladas por nossalí ( " h t" " h ff " "b l " l

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se deveriam 1er "poker", "trolly", "tutu", "baedeker", etc.).Quando o autor parece manifestar a intenção de integrar a pa-lavra no português corrente, seguimos o seu desejo (Oswaldescreve "derrapage" em lugar de "dérapage"; assim, grafamos,atualizadamente, "derrapagem"). Estrangeirismos semi-aclima-

tados pelo autor, como "foot-bolares", "pullmavam", "affaris-tas", foram transcritos literalmente. No mais, exceto a correçãode alguns poucos erros tipográficos evidentes, respeitou-se fiel-mente o texto da edição de 1924, com todas as suas peculiari-dades.

HAROLDO DE CAMPOS

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Memórias Sentimentaisde João Miramar

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À Guisa do Prefácio

JoÃo Miramar abandona momentaneamente o periodismopara fazer a sua entrada de homem moderno na espinhosa car-reira das letras. £ apresenta-se como o produto improvisadoe portanto imprevisto e quiçá chocante para muitos, de uma

época insofismável de transição. Como os tanks, os aviões debombardeio sôbre as cidades encolhidas de pavor os gases as

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Artur Bernardes, Lênin, Mussolini e Kemal Paxá ensaiam dire-

tivas inéditas no código portentoso dos povos, perante a falên-cia idealista de Wilson e o último estertor rubro do sindicalismo.Quem poderia prever a Ruhr? Quem poderia prever o "pro-nunciamento" espanhol? E a queda de Lloyd George? E otelefone sem fio?

Torna-se lógico que o estilo dos escritores acompanhe aevolução emocional dos surtos humanos. Se no meu fôro inte-rior, um velho sentimentalismo racial vibra ainda nas docescordas alexandrinas de Bilac e Vicente de Carvalho, não possodeixar de reconhecer o direito sagrado das inovações, mesmoquando elas ameaçam espedaçar nas suas mãos hercúleas o ouroargamassado pela idade parnasiana. VAE VICTIS!

Esperemos com calma os frutos dessa nova revolução quenos apresenta pela primeira vez o estilo telegráfico e a metáforalancinante. O Brasil, desde a idade trevosa das capitanias, viveem estado de sítio. Somos feudais, somos fascistas, somos jus-tiçadores. Época nenhuma da história foi mais propícia à nossaentrada no concêrto das nações, pois que estamos na épocado desconcêrto. O Brasil, país situado na América, con-tinente donde partiram as sugestões mecânicas e coletivistas damodernidade literária e artística, é um país privilegiado e mo-derno. Nossa natureza como nossa bandeira, feita de glaucoverde e de amarelo jalde, é propícia às violências maravilhosasda côr. Justo é pois que nossa arte também o queira ser.

Quanto à glótica de João Miramar, à parte alguns lamen-tá i b t d d tá l

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escalpelar com a arrojada segurança dum profissional do sub-consciente das camadas humanas.

Há, além disso, nesse livro nôvo, um sério trabalho emtôrno da "volta ao material" — tendência muito de nossa épocacomo se pode ver no Salão d'Outono, em Paris.

Pena é que os espíritos curtos e provincianos se vejam em-baraçados no decifrar do estilo em que está escrito tão atiladoquão mordaz ensaio satírico.

MACHADO PENUMBRA.

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1. O PENSIEROSO

Jardim desencanto

O dever e procissões com pátiosE cônegos

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2. ËDEN

A cidade de São Paulo na América do Sul não era umlivro que tinha cara de bichos esquisitos e animais de história.

Apenas nas noites dos verões dos serões de grilos arma-vam campo aviatório com os berros do invencível São Bento

as baratas tôrvas da sala de jantar.

3. GARE DO INFINITO

Papai estava doente na cama e vinha um carro e um homeme o carro ficava esperando no jardim.

Levaram-me para uma casa velha que fazia doces e nos

mudamos para a sala do quintal onde tinha uma figueira na janela.

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Gostei muito da terra da Goiabada e tive inveja da vóh-tade de ter sido roubado pelos ciganos.

5. PERIGO DAS ARMAS

Entrei para a escola mista de D. Matilde.Ela me deu um livro com cem figuras para contar a ma-

mãe a história do rei Carlos Magno.Roldão num combate espetou com um pau a gengiva aflita

do Maneco que era filho da venda da esquina e mamãe botouno fogo a minha Durindana.

6. MARIA DA GLÓRIA

Preta pequenina do pêso das cadeias. Cabelos brancos e

um guarda-chuva.O mecanismo das pernas sob a saia centenária desenro-à

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8. FRAQUE DO ATEU

Saí de D. Matilde porque marmanjo não podia continuarna classe com meninas.

Matricularam-me na escola modêlo das tiras de quadrosnas paredes alvas escadarias e um cheiro de limpeza.

Professora magrinha e recreio alegre começou a aula datarde um bigode de arame espetado no grande professor SeuCarvalho.

No silêncio tique taque da sala de jantar informei mamãeque não havia Deus porque Deus era a natureza.

Nunca mais vi o Seu Carvalho que foi para o Inferno.

9. BOLACHA MARIA

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Iam-se numa procissão de passos. Longe a máquina vol-tava à plataforma quieta da costura.

10. DERRAPAGEM

Não disse nada do que queria dizer a Madô.Um dia surprêso entrei num ajuntamento junto à casa

porque o professor tinha ficado defunto carteiro e havia umpobre caixão na sala de velas.A viúva envelhecida era um peito de tábuas. E num canto

Madô chorava o destino das Madalenas.

11. COLÉGIO

Malta escabriavam salas brancas e corredores perfeitoscom barulhento fumoir na aula de desenho de Seu Peixotinho.

O diretor ermelho saía do solo atrás da barriga e da

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A campainha era um badalo de sonoridades.A grita meridiana estourava bola de sabão na queda entre

os goals dum último kick de altura.

E recolhiam-se os retardatários às filas formadas para eudeixar de escutar a cidade última atrás da carranca em andor

dos vigilantes.

13. MUDANÇA

Na casa de tia Gabriela havia o espaço de meus livros numsofá fronteiro para mamãe me olhar.

A família parenta chegou de noite da Fazenda Nova-Lom-

bardia com a governante implicante e o sistema Kneipp nospés das primas jambos. Criados e criadas negrinhas e umamanteiga diferente.

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15. CONSELHOS

No quarto de dormir ralhos queridos não queriam que euandasse com meu primo. Pantico não tivera educação desdecriança e por isso amava vagamundear. Que diriam as famílias

de nossas relações que me vissem em molecagens gritantes oucom servos? Só elas é que devíamos freqüentar.

Eu achava abomináveis as famílias das nossas relações.

16. BUTANTÃ

Prima Nair que estava interna com as irmãs bochechudasCélia e Cotita noutro colégio mandou uma carta ao Panticodizendo assim:

"Já sabes que estou na classe amarante? As meninas aquinão são tão maliciosas como no internato de Miss Piss. Mas. . .nunca vi que espírito civilizado elas têm. Pois como elas não

têm moços para namorar elas namoram-se entre si. Todastêm um namorado como elas dizem e é uma outra menina:

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17. POR EXEMPLO

José Chelinini punha rabos-levas em minhas teorias ma-ternais.Era um perdido, mas comprava aos quilos a apologética

dos colegas. Filho de cereais varejos, tilintava moedas no toneidos bolsos e minguados brotos de aristocracias tinham-lhe se-ráficos silêncios para cacholetas aporreantes.

O Pita, primeiro da classe, fonava-lhe as lições de latime de inglês.E à saída, juntavam-se narizes pernaltas com livros, face

à carrocinha metálica esperando-o no beco de sorvetes.

18. INFORMAÇÕES

Gustavo Dalbert numa noite de cabelo e cigarro disse-meque a arte era tudo mas a vida nada. Êle era músico e ia

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"Já mandei duas cartas para mamãe pensando que elaschegaram quanto antes mas até hoje não chegaram.

Estou aqui sem nenhum divertimento. O rio é muito pe-rigoso e pequeno. E também não tem meninos. Passo osdias que nem na fazenda que não tinha nada para fazer senão

vícios. Vou fazer como lá se mamãe não quiser mandar abicicleta que já estou pedindo".

20. RUMO SENSACIONAL

Fomos devolvidos aos maços de dois e três pelo portãocolegial onde vínhamos de ter a última aula de tantos anos.

Poeta e misantropo Seu Madureira fizera-nos um adeusde discurso. Partíamos na direção da vida — estrada ondehavíamos de encontrar muitas vêzes abismos recobertos deflores.

Calados num ângulo do Triângulo separamo-nos com umabraço de José Chelinini que ia para o comércio.

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H quando camarotes palmas e frisas puxavam a casacado maestro, num silêncio a partitura lançava a batuta bulhen-tamente.

22. MAÇONARIA

Avessos aos favores da cidade íamos perna aqui perna ali

eu e Dalbert de sorte excepcional.Ruas quartos a chave bar desertos vibrações revoltas adul-

térios ênfases.A estacada foi num casarão azul em vol-plané sôbre o

val-de-lírios inculto do Anhangabaú.A coroa do Teatro Municipal punha patetismos pretos no

vermelho das auroras noturnas.O João Jordão que não era artista nem nada aparecia ma-

gro e uma tarde arranjou o subsídio governamental para estu-dar pintura em Paris.

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Abria guignol de sonho realejo rítmico rebentador de val-sas ao ar estrelado.Depois, de cima, pensão de artistas, caíam pingos pro-

fundos de Chopin na comida.

24. GUILHOTINA

Comboiado pelos nervos críticos do Dr. Limão Bravo fuiimpelido na carretilha de cenários perante o coração de Gisella.

As barbas alemãs de um médico beijavam cerimoniosasmãos de atrizes. Mangas de camisas e bombeiros com pedaçosde floresta impressionista rolavam ordens do céu como de praias

verticais.Ela jogou seu enderêço como um níquel à minha gravata

declaração de amor.

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26 . ALEXANDRE O GRANDE

Dalbert dc subsídio e trombone ia partir para a conquistada Europa.

Descemos de cigarro vagaroso pelos círculos da cidade pe-las cruzes dos bars em tête-à-tête com o futuro.

Vi-o entre um italiano e uma casquette loura no intervalodos guindastes negros do cais que agitavam braços de despe-dida.

27. FÉRIAS

Dezembro deu à luz das saias enceradas de tia Gabrielaas três moças primas de óculos bem falados.

Pantico norte-americava.

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A tarde mergulhava de altura na palidez canalizada poi

trampolins de colinas e um forte v^lho. E brutos carregavam onavio sob sacos em fila.Marinhéiros~3Õs porões fecharam os mastros guindastes e

calmos oficiais lembrando ombros retardatários.A barriga têsa da escada exteriorizou os lentos visitantes

para ficar suspensa ao longo dos marujos louros.

Grupos apinharam o cais parado.

29. MANHA NO RIO

O furo do ambiente calmo da cabina cosmoramava pedaçosde distância no litoral.

O Pão de Açúcar era um teorema geométrico.

Passageiros tombadilhavam o êxtase oficial da cidade |en-|cravada de crateras.O Marta ia cortar a Ilha Fiscal porque era um cromo

branco mas piratas aírfecaram-no para carga e descarga.

As senhoras grávidas engordavam em exíguas gaiolas no

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As senhoras grávidas engordavam em exíguas gaiolas no

tombadilho. E antes pelo contrário, Mademoiselle saran eramagra e virginal ecacarejgga à noite no salão acompanhada aopiano por um espãfôcm^uímirativo.

31. PRIMEIRAS LATITUDES

A costa brasileira depois de um pulo de farol sumiu comoum peixe. O mar era um oleado azul. O sol afogado queimavaarranha-céus de nuvens.

Dois pontos sujaram o horizonte faiscando longínquos bonsdias sem fio.

Os olhos hipócritas dos viajantes andavam longe dos livros— agora polichinelos sentados nas cadeiras vazias.

As antenas ruivas do capitão do Marta sondavam naufrá-gios nos rochedos de Madame de Sevri.À noite no jardim d'inverno havia festas do Pocinho em

tôrno do dedicado e gordo médico de bordo.Um cônsul do Kaiser em Buenos Aires viajava com^ uma

congregação.

E até horas compridas quando os grumetes traziam o marb ld i d d jô d i lê t

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Entravam às oito infalíveis horas fazer na sala do pequenoalmoço proveitosa degustação. E Rolah trazia ao meu céu decinema um destino invencível de letra de câmbio, ^fcy^v*.»

33. VELEIRO

A tarde tardava, estendia-se nas cadeiras, ocultava-se no

tombadilho quieto, cucava té uma escala de piano acordar onavio.

Madama ̂ gcamb^a^ mulatava um maxixe no dancing do(mar)

Esquecia-me olhando o céu e a(estrefe diurna que vinha

me contaKSSIgada do banfif t como estuclara num colégio interno.Recordava-me dos noivados dormitórios das primas.

Uma tarde beijei-a na língua.

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A ilha saía inteira da manhã saída do mar.

E sôbre a cidade dado montes montaram.

35. TERRA FIRME

A vida de bordo pôs rouge para proximidades de Barce-lona.

Adivinhado na neblina o rochedo de Gibraltar deu paraos binóculos mediterrâneos as primeiras costas da Europa.

E a sombra de Montjuich com luzes marcou a noite emque Madame de Sevri teve rasgões no jardim de batiste.

Levei nossa despedida para uma ceia de calamares porpequenas ruas com grandes casas estreitas e tortas dando dorsoà rambla rindo de casquette e xales.

36. HOTEL DE RUSSIE

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37. A MADÔ DO COMÊÇO

Era filha puberdada do dono do restaurante de olhos azuis.

As pátrias longínquas cresciam no inverno da sala comolegumes tardios. E o escuro da escada subia quedas ao sétimoandar.

Sonhamos um livro de viagens.

38. PARALELAMENTE

Dalbert sabia pedir goudron-citron nos bars com aventu-ras midinettes. Passara leito para casa diversa e fugas de ex-pansões pianais e cachimbos sozinhos. Carlosgomava cincoatos sucos d'0  rapto das Sabinas.

E tinha rendez-vous com Sarah Bernhardt nas horas be-

Paredes enormes davam comida a portais góticos. Um

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p g

príncipe de Baviera chegou para as calçadas perfiladas e gordashurrarem a carruagem que entrou no povo por mitrados cavalossólidos.

E um bardo garganteou entre bocks na fumaça sonora devalquírias.

40. COSTELETA MILANESA

Mas na limpidez da manhã mendiga cornamusas vieramsob janelas de grandes sobrados.

Milão estendia os Alpes imóveis no orvalho.

41. VATICANO

Raffaello Sanzio d'Urbino

VentaniaMuitos lençóis

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Mas São Francisco não acreditaria nas transfigurações bemdesenhadas.

42. SORRENTO

Velhas velas cigarrasBrumais no mar vesuvianoCom jardins lagartixos e douradas mullieresEntre muros de uvas aléiasDe fartos pomaresInsetos piedigrottasRoendo caixas de fósforoTrigonometrias brancas

No crepe azul de água napolitana

Longe cidade sesta quietaEntre écharpes tiradas de costasPonteando cinzas indigos de montes

Um inglês velho dormia de bôca aberta como uma bôcaenegrecida de túnel sob óculos civilizados

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Descidos da janela do hotel o estrangulamento de paláciosminava sob relógio de vidro negro com horas áureas na direçãoda praça bizantina.

O campanile cercado de pombas era um fuso brônzeobá-om!

Pequenas ruas ostentavam durante o dia um comércio com-pleto de cidade visitada com serenatas noturnas.

Cristais jóias couros lavrados marfins caíam com xales ita-lianos de cores vivas nos canais de água suja.

Gondolamos graciosamente na Ponte de Rialto e suspi-ramos na outra.

Mas São Marcos era uma luz elétrica noturna de banhoturco num disparate de mundiais elegâncias aviadoras rodeandoconcertos servidos com sorvetes.

44. MONT-CENIS

O alpinistade alpenstockdesceunos Alpes

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Casas punham pierrots na estrada quando de repente agare chata dos banhos manifestou catálogos coloridos de Ri-viera no cimento de campainhas.

46. ANGLOMANIA

Tomamos board-house francesa em Albany Street não lon-ge do Hyde Park.Durante o dia almoçávamos a cidade visitando entre jar-

dins múmias do British Muséum.Chegava a noite pontual e policemen corriam pesados es-

tores do céu para alexandrinais poetas compatriotas percorre-

rem de tube o famoso astro da metrópole côr-de-cinza.Fechávamos-lhe a porta à cara branca e alugávamos com

Musset e Murger aconchego de rendas em cortinas insones.

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48. CHUVA DE PEDRA

Estiadas amáveis iluminavam instantes de céus sôbre ruasmolhadas de pipilos nos arbustos dos squares. Mas a abóbadade garoa desabava os quarteirões.

E um dia o dinheiro chegou demais dentro dum telegramacom resposta paga de minha rápida volta.

49. PAS-DE-CALAIS

- Pequeno vapor que nos empurrou de Dover sôbre rodascontínuas no meio da noite.

O tombadilho encapotava-se de sombras mas como per-dêssemos as luzes inglêsas achamos as luzes de França no mar

O h d it d ti h d d fi

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O cachorro deitado tinha duas caras com uma de esfingee cabelos bebês.

Mas a calçada rodante de Pigalle levou-me sozinho portapêtes de luzes e de vozes ao mata-bicho decotado de um dan-cing com grogs cetinadas pernas na mistura de corpos e deglobos e de gaitas com tambores.

51. 14 DE JULHO

E na extensão armada barracas boulevardearam com brin-cos populares na festa dos quatro cantos semanais da cidadecelebrante e noturna da feira de música mecânica. Matemá-ticos garupas midinettes de pernas ao léu sôbre peixes circulares

num oceano aéreo de gaitas.Bárbaros engenhos roucos punham e repunham filhas deatelier em derrapagens tour de France com mantegueiras cho-calhando famílias.

Rodas verticalavam algazarras de chapéus.Gritos desnatados, mergulhos no mar do céu, índios adian-

te. Paradas casavam Picasso, Satie e João Cocteau. Ciclistasdecolavam como bonecos eternos.

Meus olhos vão buscando lembranças

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Meus olhos vão buscando lembranças

Como gravatas achadas

Nostalgias brasileirasSão moscas na sopa de meus itineráriosSão Paulo de bondes amarelosE romantismos sob árvores noctâmbulas

Os portos de meu país são bananas negrasSob palmeirasOs poetas de meu país são negrosSob bananeirasAs bananeiras de meu paísSão palmas calmasBraços de abraços desterrados que assobiamE saias engomadasO ring das riquezas

Brutalidade jardimAclimatação

Rue de La PaixMeus olhos vão buscando gravatasComo lembranças achadas.

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54. LADEIRA DO MUNDO

Em Las Palmas ficaram entre barbas alpestres e kodaksmôças projetos ascensionais.

Nuvens encastelaram-se sôbre aventureiros que demanda-vam São Paulo.

Dacar negrejou na pura perda de uns olhos verdes queeram meu diário de bordo.Padres polacos cantaram para as ondas ferrêtes enquanto

partidas de xadrez explicavam a eternidade.E a terra natal espiou por um farol na noite enfarada.

55. FIO DE LUZES

O t b ti d d id M l

O comboio brecou lento para as ruas molhadas, furou a

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O pa a a a a a , a

gare suntuosa e me jogou nos óculos menineiros de um gruponegro.

Sentaram-me num automóvel de pêsames.

Longo soluço empurrou o corredor conhecido contra opeito magro de tia Gabriela no ritmo de luto que vestia a casa.

57. HINTERLAND

A Estação da Luz estacou na quinta manhã com embar-ques esportivos para disputas foot-bolares de côres vivas nosestádios rurais.

Matutos matutinos pullmavam civilizações.

E meus olhos morenos procuraram almoçar os olhos deprima Célia. A laparotomia da adolescência cortara-lhe rentesbochechas com próteses minúsculas de seios e maneiras de caçaprêsa com cachos.

O mato despencava hangars viários e aleguais na linha.

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59. FAR-WEST

Chapelões e revolvers de último modêlo saíam mecânica-mente das telas bulhentas e passeavam calmos nas ruas irri-gadas do pó vermelho.

Tabeliães transmissões de papel tostado e selo do impériocom grilos milionários a saibam quantos.

Pontas contadas em porteiras frigorificavam a alta por neo-companhias transatlânticas.Pernas decepavam botas baitas.Caboclos bailes retretas filas pokers com assassinatos de

calça cáqui para records de pontaria humana na estrada.E o sertão para lá eldoradava sempres e liberdades.

60. NAMÔRO

61. CASA DA PATARROXA

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A noiteO sapo o cachorro o galo e o griloTriste tris-tris-tris-teUberaba aba-abaAtaque e o relógio taque-taque

Saias gordas e cigarros

62. COMPROMETIMENTO

O Forde levou-nos para igreja e notário entre matos der-rubados e a vasta promessa das primeiras culturas.

Jogaram-nos flôres como bênçãos e sinos tilintintaram.

A lua substituiu o sol na guarita do mundo mas o diacontinuou tendo havido entre nós apenas uma separação pre-cavida de bens.

tedrais da Média Idade. E prosseguiríamos por hotéis e hotéis,

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olhos nos olhos, etc.Na rentrée, falar-nos-ia à noite a voz telepática da radiolado foyer. Ou penetraríamos nos dancings a fim de fox-trotarcom sanfona e Champagne.

64. MELOSOS LUNÁTICOS

Noitava o terraço de vista vasta para carreadores dos ca-fèzais em esquadrão e pastos cercados com estréias. Porteirasbatiam pás! longínquos por todo o Brasil. E havia descon-

 juntamentos de troUys nacionais chegando de crminhos ver-melhos por mato perfumado.

Lágrimas anacrônicas de minha sogra evocavam o maridòou o Pantico agora tardiamente transferido a europeus internatoscomerciaturos.

Eu e Célia fugíamos corpos voluptuosos com catadupa re-tida de sentimento para a sala de jantar fazendeira. Mas Cotitae Nair nos vinham dizer banalidades.

Barricadávamo-nos então no quarto paiol intransponívelda pólvora de nossos corações.

E preferimos até ficar sós na casa de São Paulo reaberto

Esborracha c primos longínquos do Instituto Histórico entre osPilatos da Glória.

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Em Santos zarpamos o Almanzorra da Royal Mail ondedeixaríamos em primeira escala prosseguir rota por cabina deluxo fazendeiral a troupe doméstica amputada de mim e Céliaesperançosos no Rio de novas luas melarem para sempre nossosdestinos entrelaçados como cipós.

66. BOTAFOGO ETC.

Beiramarávamos em auto pelo espelho de aluguel arbori-zado das ave-'das marinhas sem sol.

Losangos tênues de ouro bandeiranacionalizavam o verdedos montes interiores.

No outro lado azul da baía a Serra dos Órgãos serrava.

Barcos. E o passado voltava na brisa de baforadas gos-tosas. Rolah ia vinha derrapava entrava em túneis.Copacabana era um veludo arrepiado na luminosa noite

varada pelas frestas da cidade.

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A barbicha investigadora do Dr. Pilatos veio trazer-nosa visita esquecida de São Paulo com ohs e ahs e caspa no fraquede gola. E propôs que deixássemos o Rio aborrecido e paisajal.

Célia fartou-se com anúncios de empresas a cabo levadaspelos seus colegas de team perspicaz no Instituto Histórico eGeográfico.

—- Pena que seu marido, tão talentoso e jovem, não sejados nossos, oh! ah!

68. RESSURREIÇÃO DO PANTICO

"Querido primoHá tempo que não te vejo e tu nem me escreves!

Aqui êste ano não entrou muitos bichos comigo. Só dãocaxuleta nos pequenos. Mamãe e as manas chegou boas. Vouna corrida de cavalos. Aqui neste colégio não tenho nenhumamigos, é só crilas. Já sei.escrever a língua francesa como aportuguêsa e a inglês a. Os Estados Unidos é cotuba. Ali right.Knock Out! I and my sisters speak french. Moi et ma soer

nos savons paletre bien le Français. Eu e minha erman sabe-mos falai o francês

Mas aquela noite fui introduzido no enceramento abobadal

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e branco do Instituto de cadeiras ouvindo mesa oblonga ondemeridianos comemoravam fastos fictícios.

Eloqüentes citações diziam sábios lábios trêmulos de môçoem nervos.

— Mil outros trechos de mil outros escritores convencer-vos-ão, senhores, que o mundo de hoje anda não só pior que

o mundo debochado de Péricles e Aspásia, mas pior que omundo ignaro do Medioevo trevoso. e pior até que o mundodas utopias científicas e revolucionárias da Revolução France-sa! Nessas intermitências de progresso e regresso, círculos deprincípios que formam a base de novas babéis, novas confusõesde línguas e novos rebanhos voltando a velhos apriscos, só

uma lição nos assoberba, a lição severa da História!

70. RODINHA

Além do orador ilustre escritor Machado Penumbra quefoi muitíssimo cumprimentado, conheci nessa noite o fino poetaSr. Fíleas de muita cultura e convidei-os para casa porque ti-nham talento.

Nas noites iguais em que Célia expressionava a Prière d'une

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Agradeço a confirmação da boa notícia sôbre a alta. SeuToniquinho do Trancoso Carvalho já tinha escrito de Santos.Os restaurantes de Paris não prestam e têm galinha com

pena, Fomos ouvir o célebre tenor Bonsi na ópera do Fausto.Que beleza!

O Sr. Chelinini que disse que conhece meu genro do co-légio tem nos visitado no hotel. Aqui a vida não está baratae o câmbio está horrível!

A Nair e a Cotita estão estudando piano na aula do SeuPhilippe não sei de quê, que é uma celebridade. Já tocam atéos clássicos! Brevemente serão apresentadas ao público.

Vamos tirar o retrato num retratista chamado Retelangerque nome esquisito! Foi o Sr. José Chelinini quem nos apre-sentou.

Passamos uma semana em Fontanablêao. £ um segundoBrasil em beleza de natureza. O Sr. José Chelinini tirou-nosinstantâneos com o sol baixando atrás de nós. Tem uma es-trada muito boa para passeios todas as tardes.

N. B. Vi a Vênus de Milo. Tirei o Pantico do colégio

porque um padre deu um tapa nêle."

72. SOSSEGADAS CARAMBOLAS

E estando o tipo 7 a 22 fechamos com o Panças gordo

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da Rua da Quitanda a compra de desejada William Six 40 H.P.com motor negro e chauffeur de aviação.

73. GARAGE E ESCRITÓRIO

A casa de Higienópolis sossegava preguiças tropicais porentre a basta erva do jardim aquintalado até outra rua com

árvores e sol lembrando a longe Fontainebleau de minha sogra.Célia era um circo.Os amigos respeitabundos transferiam-se para o escritório

de caricaturas paredais e poker na bolsenta Rua Quinze emsacada de cimento armado avistadora de Brases fabricantes.

As cotações de Santos chegavam pela campainha regulardo fone assegurando a gasolina que por desfastio de cinco ho-ras até o jantar eu asfaltava em primeira segunda terceira mar-cha-ré no aprendimento ajardinado de bungalows Rua Augustaabaixo.

O Dr. Pepe Esborracha e o sábio Pilatos vinham fiéis egulosos como estorvos para o jantar dos dias santificados deconvite de Célia imprudentíssima.

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AutomóveisE o pisca-pisca inteligente das estradasUm soldado só para policiar minha pátria inteira

E o gru-gru dos grilos grelam gaitasE os sapos sapeiam sapas sopasNo alfabeto escuro dos brejosVogaisLampiões lamparinasE tu surges através de um fox-trot errado e da lenda

Delenda linda Salomé

ó dançarina cafajesteCheia de môscas ignorantes e de boas intenções

A javá é uma polca porca com poeira azulMas o roxo arroxa a procissão de cortinas côr-de-rosa

— Eu não ligo— Eu quero saber que negócio é esse de esperar com o

revólver na estrada— Aquêle capanga prêto mandou o braço e a mulher

levou um pontapé— Na barrigaO saxofone obstina uma dor de dentes delirantes

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75. NATAL

Minha sogra ficou avó.

76. CARTA ADMINISTRADORA

"limo. Sr. Dr.Cordeais saudaçõesJunto com esta um jacá de 15 frango que é para a crian-

cinha se não morrê.Confirmo a minha de 11 próximo passado que aqui vai

tudo em ordem e a lavoura vai bem já estou dando a segundacarpa.Fiz contrato com os colonos espanhol que saiu da Fazenda

Canadá assim mesmo perciso de algumas familhas a porca pin-tada deu cria sendo por tudo 9 leitão e o Migué Turco pediudemissão àrrecolhí na ceva mais três capadete que já estão

no ponto a turbina não está foncionando bem esta semana ama-nhã o Salim vem concertai

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Célia monotocava shimmys e Mozart no piano bandolimda sala de jantar entre as paisagens iguais das janelas.E os dias ronronavam a máquina surda de café com o sus-

te n ido nostálgico da serraria araponga.Colônia bodes botados hóspedes rústicos na manhã.Meios porcos invadindo telhas vãs de cozinha com jabu-

ticabas e gatos esfomeados.Siás donas e lentidões de negros.Italianos de pé no chon e santuários empetecados e mila-

grosos.E homens e mulheres a pé e a cavalo nas estradas enfer-

rujadas pelo sol lavrador.

78. A SABIDA

"Querida CéliaEstou com muitas saudades de vocês e da pátria.Aqui foi um frege outro dia por causa do 'tal' Sr. José

Chelinini. A sapeca da Cotita, depois que nós tiramos cada

uma uma fotografia com a mão apoiada numa coluna e a pernacruzada mandou uma fotografia ao 'tal' Sr José Chelinini es

Com o coração naufragado num lago Lemano de sauda-

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des um abraço muito apertado da irmã que muito lhe estimaNair"

79. TERREMOTO

O Pantico estava na Bélgica em pleno perigo de ser fuzi-lado ou morrer de fome.

Mas depois de copos espumantes de leite eu acreditavade geografia aberta sôbre a mesa que a situação dos alemãesnão era brilhante. Em vinte dias eles apenas tinham entradoem Bruxelas e tomado Liège, a cidade, conservando-se nas mãosdos heróis belgas a linha de fortes quase completa. E na fron-teira intata da França deviam reunir-se com certeza nessa hora

dois milhões de soldados.Molestados pelo flanco em Antuérpia, sem poder esquecer

o exército francês vitorioso na Alsácia e Lorena e a avalancherussa que ameaçava Thorn e Dantzig, era de prever-se o esma-gamento dêsses bárbaros em algumas semanas. E se a Itáliaentrasse contra a Áustria nos primeiros dias de Setembro, como

era certo a guerra podia terminar por nocaute científico nesseê

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81. NOITE INSTITUTAL

"Esta guerra com o incêndio de Louvain e os que se lhehão de acompanhar como clarões votivos e com a derrocadados falsos valôres — democracia, semitismo, antimilitarismo —veio reivindicar afinal a grandeza trágica da terra!

 L'univers c'est une immense poésie, la poésie de Dieu,  disse

o grande Lamennais!" Discursos Sul-Americanos. MachadoPenumbra.

82. TÁTICA

Os jornais noticiaram de repente que acossada pelà con-flagração achava-se em Pernambuco a bordo do Darro a jovemestréia cinematográfica Mlle. Rolah.

Até ontem a ala esquerda dos aliados fazia recuarem qua-

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84. A BALANÇA

Mas o Dr. Pilatos confiara-me secretamente na travessinhaalcoviteira dos corretores que estávamos à beira de um abismoeconômico nacional.

— E desta vez é a bancarrota, meu amigo!

Mas o esganiçado Mendes Mindela sócio águia de Tran-coso Carvalho retrucara-me adiante que qual o quê — SãoPaulo era como um gato, caía de um quinto andar e saíamiando.

Mas minha radiográfica sogra exigia repentinos mandadosredobrados de dinheiro e chorava a sorte incerta do Pantico,

envolvido como uma tainha nas malhas da segurança alemã in-vasora: "Me disseram que decerto vão segurar êle até os alia-dos pedirem a paz".

Eu vou logo para o Brasil quando os alemães deixarem.Já f i d D i t A Al m h i

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Já fui preso duas vezes. Depois eu conto. A Alemanha vaiganhar nesta guerra.

N. B. Creio que matarei o bandido."

86. CAMPOS DE BATALHA

D. Teresinha, velha roliça baixa e sossegada, sorria muitocom uma grande boneca ao lado, feia loura de 14 anos que sechamava Bilu. O Dr. Pepe Esborracha quietava esquecido declientelas e o Dr. Pilatos endireitava o pince-nez arqueólogo.

Fora e longe do terraço noturno dos Bambus ia o recortenegro no horizonte na luz amarela do fim do céu.

E concordávamos todos em ser o Kaiser uma cavalgadura.

87 NEUTRALIDADE

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88. JABUTICABAS

O Dr. Pilatos ficou fulo porque o Dr. Mandarim Pedroso,tesoureiro pé-pé do Banco Nordeste de Engole-Marmanjos epresidente do Recreio Pingue-Pongue, dissera em palestra refe-ridora de um genro seu a frase: — êsses incógnitos...

— Chamar de incógnitos! É um rapaz direito, tem o seu

cobrezinho.E continuou para mim com argumentos de paletó puxado

durante a pesquisa de pomar:— Eu já passei com um almôço por semana e cheguei à

posição que cheguei. Sou um autodidata! E já fui citado pelopadre Berlangete da Universidade Católica de Beirute. Escrevia biografia do patriarca Basílio 8 que foi torrado numa igrejapor causa de Orígenes. Irei à Ravena estudar de perto o 59século. As academias orientalistas abrir-me-ão as portas, oh! ah!

E de lambuja grandiloquôu o conferente destinos territo-

riais de São Paulo na expectativa do trem com colegiada desdid i t

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riais de São Paulo na expectativa do trem com colegiada des-pedidora e vivante.— A plenitude cafeeira e pastoril de nosso Estado se dis-

tende nos assaltos ao hinterland que foge num último galopar deíndios e de feras! A cada investida vitoriosa, os novos bandei-rantes são a reencarnação estupenda da luta, a magnífica, a

eterna ressurreição simbólica da Fôrça!De chapéu no braço e gestos, Minão da Silva, meu agre-gado lombardo e jovem orgulho mulatal do grêmio, retrucoutomando a palavra pela ordem.

— Não preocupei as bancadas das escolas, meus senhorese ilustríssimas senhoras e crianças! Mas o conselheiro Zé Alvesque o ilustre colega comemoramos, não morreu! Apenas desa-pareceu de nossa competência! O Grêmio Bandeirantes com500 membros que mandou saudá-lo. Êle tem doutores quenão quiseram vim. Mas a norma do regulamento dos estatutosme mandou saudar. Desculpe os erros!

E o trem taratinchou saudades.

90. PARTICIPAÇÃO

o único culpado, responsável e cúmplice. Êsse tal Chelinini,muito conhecido, era um piratão.

No achaparrado do corpo curvo êle expôs o que meu

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No achaparrado do corpo curvo, êle expôs o que meucunhado e primo devera fazer se solerte.

— Era acobertar a mãe pois sabemos quanto a mulher éfrágil! Êle devia chegar e dizer: estou aqui, minha progenitoraadorada, sou eu! E com o revólver na outra mão afastar omiserável!

Mas Célia na rêde frim-from não queria rompermos por-que mãe era mãe na geral aprovação perdoadora dos hóspedes.

92. ESTELÁRIO

Coração esperançava esperançosoComêço claro da noite cidadina

Retalhos grandes de nuvensE duas estréias vivasTrem rolava com minha estréiaBordando a vida fabricadoraDo Brás à LuzRolah estrelava o Hotel Suíço

Ora um gesto mais, um olhar quem sabe, fizera reatar-se

o fio partido confidenciava euC f i?

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o fio partido, confidenciava eu.— Como foi?— Disse-lhe que a amava, no salão do hotel. E ela re-

tirou-se de perto de mim, foi ao piano tocar o Momento Mu-sical de Schubert. Depois, como voltasse, insisti. Ela conser-vou-se calada e linda, um braço esquecido sôbre a mesa, olhando

o grosso tapête central da sala.

94. SEASON

Rosas vermelhas buscaram Madama Rocambola na garecautelosa do Brás. Tapetei bungalow longínquo e pianal paraas duas emboscadas em Perdizes.

95 . PROMESSA PELADA

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9 6 . B A R

Dez horas da noite, o relógio farto batia dão! dão! dão!dão! dão! dão! dão! dão! dão! dão!

Cangalhas com sono arrastavam-se para nós finalizando oserão de amor que Rolah por lições inglêsas e futuras vogasem Los Angeles me ofertava depois do jantar.

Eu batia o portão caminhando direto à cidade borrada,no chupa-chupa de um beijo que ela me deixara no fundo dabôca ou medindo a compasso a tortura de mais uma revelaçãoda sua estranha natureza feminina.

Encontrava infalháveis a uma mesa promíscua do Pinoninum açúcar de óperas Machado Penumbra e o Dr. Pilatos. E

maledizíamos com musical wishky e soda.

97 NOVA ESFINGE

98. HISTÓRIA DE FILM HISTÓRICO

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Porque a Emprêsa Cinematográfica Cubatense propusera-lhe cenário contratual, transferi mãe e filha para Santos.

Trabalhavam em pavilhão de papelão no estirão de areia

suja e sulcada, onde carroças interpenetravam horizontes ma-rinhos com vigilantes corridas mecânicas de minha William Six.Ante o grande mar cabeludo como Herodes, ela compunha

e dançava.

99. LABORATÓRIO

Secadores cilindravam primeiras provas em desenvoltas fi-tas quilometrais.

Escuros salões conduziam por mata-burros unidos e sor-rateiros faróis reveladores.

Tanques fixavam secretas maravilhas de luz para matinéese soirées de écrans.

Não se esqueça de me trazer novos romances. Já acabei

de 1er o Primo Basílio que muito me fêz chorar. O Dr. PepeEsborracha emprestou-me Les civilisés e prometeu trazer outros

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q pEsborracha emprestou me Les civilisés e prometeu trazer outroslivros quando êle vier. Veja se achas na livraria Garraux aArte de Bem Escrever do Padre Albalat e La garçonne quedizem que é muito bonito e são as últimas novidades de Paris.

Não se esqueça de tôdas as minhas outras encomendas etraga também um par de sapatos de lona branca para Cèlia-zinha. Vai a medida do pé. Temos tido muito calor nestesdias. Por que é que não me escreves? Veja se vem logo.Abraça-te e beija-te.

tua Célia

101. O GRANDE INDUSTRIAL

Célia era rica, eu pobre. Agora, com o duzentos por centoque seguramente renderiam os films em que me pus sócio, euficaria mais rico que Célia.

Entrava comigo no desenvolvimento da Grande Emprêsa,além de taciturno sírio inventor da idéia, o luzente bandorientalBanguirre y Menudo, aparecido do solo miraculoso com planos

de açambarcamento e luta no mercado brasileiro com tôdas as

ao Corcovado do dinheiro pela funicular da atividade ameri-cano-paulista.

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pEu notara-o num abulismo amável, silencioso festeiro das

coisas pequenas dos dias.Sua influência de comissário retirado em lucros e fazendas

 junto a Carvalho Trancoso far-nos-ia sacar a gôsto para o en-grandecimento da companhia e do projeto.

Batido à máquina, assinamos depois de lido pela profeciade Banguirre y Menudo, o contrato transmutador da EmprêsaCubatense na Piaçagüera Lightning and Famous Company Pic-tures of São Paulo and Around.

Fora, no escuro fôfo de minha William Six, esperava novolante o braço branco de Rolah.

103. FINANÇAS MATRIMONIAIS

— Não sei por que mamãe manda pedir tanto dinheirodepois de casada. Parece até que o tal conde seu amigo émesmo um pronto.

— Isso é certo, mas o café está começando a subir depois

das providências do govêrno

que sabendo, se não sabe, que duas fazendas estavam hipote-

cadas antes do nosso casamento. E sua mãe é que já sacoucentenas de contos de réis nessa viagem de núpcias. Eu tenho

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q jcentenas de contos de réis nessa viagem de núpcias. Eu tenhohábitos modestos, graças a Deus!

— Eu não estou te acusando. Só acho que é uma as-neira esse negócio de cinema, em que você se meteu sem mefalar.

— Asneira! E o Seu Britinho que é um dos diretores?— Êle é ainda uma garantia.— O asno sou eu, muito obrigado!— Eu não disse isso, Joãozinho! Só acho que devemos

ser cautelosos.— Mande dizer isso à sua mãe.

— Você ficou zangado, Joãozinho?— Zangado não, mas dá raiva.— Então dê um beijo.

104. CARTÃO POSTAL

"De passeio em Pôrto-Fino na Itália, de barca a gasolina,

saúdo vos Nair "

giam  5%  somente ao mês mais a comissão de 3 para letrasgarantidas

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garantidas.Milionários risonhos e modestos atravessavam sob carícias

de olhares as ruas bolsentas emitindo cheques visados contrainquebráveis bancos.

Empresas inquietas de nervosos gerentes levavam tábuas de

reformas por impassíveis cães de fila que não viam a comercia-1 idade necessária das propostas.

Novéis arrivantes metralhavam maratonas máquinas de es-crever em pequenas salas promissoras de vastos armazéns.

E no boulevard cinza face à Hípica, onde bancas meninaspreviam o poker noturno e grosso dos condes e dos águias noAutomóvel, as baratas e os torpedos esperavam vôo transportodos viadutos centrais, debraiar as subidas da cidade para osbairros ajardinados e discretos.

106. VELHOS PAULISTAS

Apagavam-se como se uma vergonha dos antigos fios de

barba os amarrasse no confronto sírio itálico com a ricada vito

Quebras rabichos capivaras foras milhões de sacas comperdizes amarradas e decidia-se entre fumaças que a situaçãoda bolsa cafeeira dependia da ofensiva primavera no Somme

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da bolsa cafeeira dependia da ofensiva primavera no Somme.

108. JOGO DO BICHO

MunicipalBar Teatro e CâmaraE o revezar dos pares e dos solosSalas de espera de cinemaCom valsas e palpitesE delírios metálicos nos bairros

Para noturnos bifesÉteresBolinasCaças e delírios metálicosE bruma e amores

Na centena do cafard

uns fundos mambembes. Foi a criada do hotel que nos ensinouque tem ruas por detrás.

P i b h d d l i

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Passeamos muito nas barcas chamadas gondolas e vimoshomens andando sem chapéu até de casaca. A Cotita achouque era um escândalo, mamãe também. Meu padrasto disseque ia andar em São Paulo para pegar a moda.

Cotita vive dando escorregão no encerado. Outro dia es-tendeu no quarto. Ela agora aprendeu um fox-trot ranzinzachamado  We   Have no Bananas.  Fisicamente ela vai muito bem,mas moralmente, faça-me o favor! O meu fim vai ser entrarpara um convento!

Nós não vamos embora para o Brasil porque mamãe temmêdo dos sobremarinos.

P. S. Vimos a Ponte dos Suspiros onde morreu Romeue Julieta e tiramos um retrato pegando nas pombas. Nair".

100. FITA EM SÉRIES

Santos era inexpugnável com Rolah e o sírio dos filmesque tomara por secadora de chapas uma italiana trintanária etrunfuda que por alçapões cobiçava a audácia miúda de Ban

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m . ANHANGÜERA BOXING

Instigações das vocações fotogênicas de Banguirre y Me-nudo relacionaram súcia com mucudos dum terreiro sombrosoda Avenida Ana Costa.

Eu telefonava a Célia ocupadíssimo em negócios de gar-çonnière gramofônica no José Menino improvisado com Rolah.

Suores roupas brancas limonadas cocktails e um cheirourbano de tulha.

Mas as tardes estavam no estádio que comecei a medircom mãos de oito onças e transpirações enfrentadas frente avirulentos profissionais cosmopolitas.

Caras espatifavam swings e upper-cuts bombardeavam quei-xadas ósseas.

— Ahora vamos a filmar un encuentro de ustedes para El Intimorato Marinero.

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113. CRUZEIRO SEISCENTISTA

A Serra do Mar foi um mergulhado mar de verdura compassarinhos importantes.

Depois casas baixas desanimaram a planície cansada.E o arraial arranha-céu buzinou de peixes fritos.

114. EXTENSÃO DA FAMÍLIA

Higienópolis fervilhou iluminações passos no jardim idasà rua de crianças com jogos.

O irmão de José Chelinini interveo esgalgo almofadinhaimpávido com sobriquete de Periquito e furtados cigarros. Backbatuta de campeonatos sapecava shoots no muro longe do quin-tal, tratando de canjas a mim e ao conde, interventores esta-b d

concordando ambos em que mancava o Pantico para a alegriaser universal.

Periquito esganiçava maliciosos pra riba de moá de mis-tura com pés de anjo apelidais em Cotita que o chamava de

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tura com pés de anjo apelidais em Cotita que o chamava deshocking e garganta.

E minha achacada sogra lastimava tão-sòmente não tercomprado aquele fotóe do hotel de Paris-plage.

Lá fora, o Serapião etíope restituído a funções de unifor-me branco, declarava ser perciso cavar uma baita limosina Ros-róis para ser família cotuba.

116. AS FAZENDAS DA CONDÊSSA

No terceiro forde excursionista que me levou, a CandocaBrito amava os bigodes chaves de ouro do Sr. Júlio Dantas e

numa candura figueiredal acreditava na gramática, guturandoopiniões lastimantes que a sem modeza das môças de hojesubstituísse leituras de arte e sonhos de amor pelo fox-trot epelo tennis.

Cafèzais passavam em parada verde montante.Nair preferia Dorothy Dalton e a javá.

E l itó i d H áfi fij 9 61 i i í i

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118. CONFERÊNCIA

O conde chamou-me uma manhã para o escritório doTico-Tico Bezerra com um retrato da Gioconda na parede.Tinha decidido empregar grossa soma na Emprêsa Carioca deCaibros e Sementeiras — uma mina! Entendera-se já comTrancoso Carvalho & Comp, Precisava de um endôsso quenão fôsse da família, tendo sido esgotado em descontos meu

imprevidente nome ofertado. Propus-lhe Britinho calmíssimono uso de colaterais situações sacadoras. Êle. ajustou os óculosde enxôfre na cara sardenta de jogador e telefonamos chama-dos inúteis do terceiro precioso. Britinho abúlico desapareceranum mistério sem sinal de fumaça.

119. TRANSAÇÕES

rato gordo o bandoriental luzido Banguirre y Menudo em es-

trepulia sentimental com a trunfa itálica.A liquidação propôs-se com o réu acobertado do estrilo

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mascate pelas bengalais garantias dum secreta urgente.Perdêramos na financial aventura eu e o Britinho inexpli-

cáveis 25 contos de réisreais.

121. PROLE DE ADÃO

O Britinho era o coronel da irresistível hetaira CatarinaPinga-Fogo.

122. VANITY-FAIR

D. Tira-Vira de sabida suspeita esganiçava segredos in-glêses para o filho usura calvo antigo organizador de cotillons

d l õ é i d d t i d i

E vôos insexuados de velhotas cultas inventavam primeiras

ofensivas de cruzes coloradas.Mas crendices na cruz única inda titulares e mães antigasi i S é

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mantinham com pedidos ardentes a São José pela salvação da jangada desgarrada e espevitada de tão feios dias.

Quando para o Guarujá driblavam 100 à hora PackardsHudsons Cadillacs desabando os barulhos das balsas.

123. BUNGALOW DAS ROSAS E DOS PONTAPÉS

Bondes goalsAleguaisNoctâmbulos de matchs campeõesE poeira

Com vesperaisDesenvoltas tennis girlsNo PaulistanoPaso doble

E hinterlandas batalhas municipais canalizavam o tiroteiodas ruas vermelhas para o pó guloso das secções livres dos

 jornais.O povo forte contentava.

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125. VÍRGULA

Mas o carteiro veio me dizer que Rolah ficara só e minhaporque o biombo materno se tinha fechado em pressa marí-

tima na direção afarista do Rio.

126. QUITAÇÃO

Pulsações ligeiras alucinandoLábios e pálpebrasO coração esperou

Ci i i d h l t d b h

roubada em vinte e dois contos e anunciava andar o mundo

cheio de infames salteadores.A William Six escapada ao controle dos que fazendavamencheu bagagens na direção montanhosa de Santos.

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encheu bagagens na direção montanhosa de Santos.Volta às praias precedia o hotel jantado onde a velha ti-

rava da sacola velha um velho baralho de sabujos vaticínios.— Estas três princesas são uma mulher morena, uma mu-

lher clara e um homem de bigodes.Rolah era uma lâmpada loura.

128. CHIFRES

Foi quando instantâneo lembrete do destino chamou-metelefônico para Bambus fazendeiro. A chifrada do boi prêtona perna branca de minha mulher estava entregue aos cuidadossolicitosos e solicitados do invencível Dr. Pepe Esborracha ocor-rido numa corrida de Pindobaville.

Quarto escuro no quarto dia e êle na sombra.

apaixonado por essa atriz, Joãozinho! Conte tudo. Acho vocêenvelhecido, preocupado, com cara de viciado, Joãozinho!

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130. RESERVA

"21 de Abril

Seu Dr.

Peguei hoje na pena para vos Felicitar os nossos antes

Passado sendo um diá de grande gala, para nós no nosso GrandeBrasil sendo o dia do nobre Brasileiro Tiradentes que foi eze-cutado na fôrca, mais tudo passa vamos tratar do nosso futuroque é melhor os passado eram bobos, por aqui todos Bom gras-sas a Deus o mesmo a todos que aí estão. Candoca, Rufina,Delina, Maria José, Bermira e a filha estão todos na mesma.

Só eu saí sorteado para o Regemento Suprimentar de Paracatuno Goiás e queria que V. S. desse as providências para mimficar em Caçapava no Regemento de Infantaria. Montada ficamais perto aqui eu estudarei para ser a Luz de minha família.Representar talento com meu falecido avô Capitão Benedito daForça Pública, não estudando agora, quando mais o tempo

V lhi h d T i t ê t dé t ó t é V d d ! Só t

131. MAIS QUE PERFEITO

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Eu tinha saído do laboratório da Itacolomi Film ondeRolah tinha dada uma hora preguiçosa de pose para observa-ções contratuais.

Ela me tinha confessado pela manhã que seus amores an-teriores com pastores não tinham passado de pequenos flirts decriança.

Agora quando tínhamos descido a escada longa eu metinha baixado até os orquestrais cabelos louros.

E tínhamo-nos juntado no grande doce e carnoso grudedum grande beijo mudo como um surdo.

132. OBJETO DIRETO

Ao longo do longo Viaduto bandos de bondes iam paraas bandas da Avenida.

O t é l l d

vida e esperava de cabeça vermelha nos bancos noturnos do

Automóvel Club a volta vingadora do Pantico.Célia e Cèliazinha cresciam ao sol dos pomares brasílicos.

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134. CORSO

O Carnaval acendeu o charuto roliço do Britinho, vaqueirode automóvel que recusei alegador de pudicícias em Rolah e amãe.

Minha prudente evitação da William Six, apoderada pelaabsorvência de Chelinini com Periquito empoleirado no vo-lante, contratou táxi que pôs à porta de Perdizes achadas guir-landas de papel e florões com chauffeur de nanzouk.

Alvissaramos ágeis sob a máscara inteiriça e Rolah deloup, enfaixada num tutu negro que lhe punha mais loura acarne dos ombros nas coxas. Baixo do tôldo de veludo verde,a bola de Madama Rocambola era um saco de confetti na di-reção da Avenida.

No enroscamento dos bonecos rodantes em roda dos ma-

ços fofos com guirlandas elétricas de papel, os carros tinhamlentidões de rabos.

R l h i i l d f í

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Rolah ria como um animal espancado e fazíamos regressaras serpentinas vindo voando.

136. LUTERANOS

Como eu o Britinho o Conde o Pilatos o pai suspeito doCarlos Capua o dr. Silveirão o Melo o Bernão o Dr. Pata-Tretao Zé o João o Miguelinho — todos gaios encarapitados em táxiscom girls ciganas chinesas das Arábias e tirolianas do Egito— tínhamos tido a precavida precaução de nos precedentes diasfreqüentar com sorrisos de reforma o filho cinco por cento do

Paletòzão e mais dignos representantes da usura cidadina.E belos cursivos e feios autógrafos haviam rabiscado cal-

mos papéis impressos de sêlo duplo pelas bancas bancárias emação.

138. MEMENTO HOMO

"Joãozinho

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Ontem fui com Cèliazinha passar o último dia do Car-naval na cidade e nos hospedamos em casa de D. Teresinha.O Dr. Pepe Esborracha nos influiu muito para ir, visto ser êle

o organizador das festas do Clube.Fiz uma fantasia para Cèliazinha de Fada do Bem queficou muito graciosa e ela divertiu-se muito com a Bilu e asoutras meninas. Passaram a tarde tôda na calçada jogandoconfetti e lança-perfume.

O maior sucesso do dia foi um grupo de cinco estudantes

que passou pelas ruas bebendo cerveja em ourinóis e comendolingüiça que molhavam na cerveja. Quase morremos de rir esó depois é que soubemos que foi o Dr. Pepe Esborracha queteve essa idéia tão engraçada!

As fUhas de D. Balbina foram as môças mais bem fanta-siadas da cidade. O largo da Matriz estava repleto de môças e

moços em luta acesa com confeti e lança-perfume. O baile doClube começou às nove e meia e durou até 5 da manhã e estêvemuito animado. Espero que você venha no fim do mês, comoprometeu.

Um abraço da tua

Céli

O trem a manhã e a chuva eram um corador de roupabranca. E parti na direção do trolly da serra fazendeira numcheiro de curral e de selva.

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140. MLLE. DE SÉVIGNÉ

"RioMeus queridinhosSouvenirs. Estou com uma brutas saudades de vocês e

das matinées do Paulistano. O Rio o que tem de agradávelé o cinema de dia. Mas os foot-ballers cariocas são uns gar-gantas.

Devido ao verão, dormimos com a janela do hotel abertapara a paisagem. Amanhece muito cedo. Eu durmo outra veze depois chamo o garçon para trazer meu chá com toasts.

Ontem, um estranho som chamou-me a atenção. Umapessoa grotesca passava pela avenida divertindo-se com umtambor que decerto era improvisado. Era uma mulata fanta-siada de baiana.

i f

não quer se fantasiar porque o Dr. Pirinhos deu o fora nela.

É uma infeliz! Eu cavei uma fantasia ba-ta-clan!Adeus e beijinhos

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da Nair."

141. O GRANDE DIVORCIADOR

No escritório arranha-céu um rapapé rapado afirmava paraguedelhudos óculos de cigarros que a debênture era um 420.

Moços de luto nôvo ensinavam que o passo do blues eramais sintético que o do shimmy.

Calados herdeiros viúvas orfandades entre ambições robus-tas de Jucás e Totós.

Um pai industrial queixoso das latronagens viciadas dofilho almofada longo que lhe batera a amante com olhos de co-caína. E ambos discutiam o caso moral.

Sírios itálicos japonizados no Far-West urbano.

Condes de fala fina apostadora de roupa com cigarro deá

142. LENGA-LENGA

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— Sou consultor de sua tia, fui amigo de seu falecidopai, conheci seus avós. Fiz o casamento de seus tios. Soumais um conselheiro íntimo que um advogado banal.

Porém, a situação é insustentável. Sua senhora, coitada,reuniu provas esmagadoras contra o seu leviano proceder. OSr. tem sido avistado em excessos com cômicas. À margemdisso o caso financeiro negreja no horizonte. O Sr. adquiriuràpidamente uma reputação de dilapidador. O seu nome jáfigura no Boletim das Falências e Protestos, no pasquim se-

creto e implacável, a destilar condenação, a destingir desonra!— Ao lado do Conde Chelinini.— Perfeitamente. Mas o conde acusa-o de se ter locuple-

tado. Perfeitamente, o conde acusa-o.

143. MOBILIZAÇÃO

A sala antiga de papel antigo e piano parara uma cantiga

antiga.O falseie empapuçado de Madama Rocambola remexeu

uma bôlsa suja e apresentou me um trecho de papel Era o

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uma bôlsa suja e apresentou-me um trecho de papel. Era oamarrotado fora definitivo de Rolah, a cheia de gigolôs.

— Ela bem dizia que o Sr. nunca que acabava de dar os

cinqüenta contos.

145. CRIAÇÃO DE PAPAGAIOS

Eu e o conde e o Britinho éramos de semanas os autoresmais citados na pendenga madura da sala de verdes audiênciasdo Forum Cível Paulista. Capinhas pretas enrouqueciam com

pinga derredor das oblongas mesas zunzum com a lonjura denossos privilegiados nomes protestados.Primeiras praças anunciaram-se dos bens legados por in-

ventário de minha mãe únicos válidos havidos para credoresante a Verdun contratual do separado casamento com Célia.

Dias de cão com noites abraçais a Cèliazinha consentida

Andar de cima, decretavam-se vidas com rabiscos mar-

geantes do desenvolvido selório papelado de cartório.

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146. VERBO CRACKAR

Eu empobreço de repenteTu enriqueces por minha causaÊle azula para o sertão

Nós entramos em concordataVós protestais por preferênciaEles escafedem a massa

Sê pirataSêde trouxas

Abrindo o pala

Pessoal sarado.Oxalá que eu tivesse sabido que êsse verbo era irregular.

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148. CORRIDA DE GANSO

O banqueiro cervejeiro interpelara-me na sala rubra me-tralhada de dáctilos e gráficos. E eu lhe fizera ver o CondeChelinini ter rebentado como qualquer mortal que exagera aspróprias forças no Automóvel Club. Mas honestos o Britinhopelo telefone do Far-West propunha comigo um acôrdo ho-nesto.

— Aqui nong teng agordo. Teng pagamento!Saí para o encontrado encontro do Dr. Pilatos impene-

trável recém-vindo do Guarujá com cocktails do conde em fuga.Bocks duplos dialogaram no Pinoni até que movimento

negativo de cabeça me disse que Trancoso Carvalho & Comp.não cediam, não reformavam, não esperavam.

— E o Conde?— Um tarado o Sr. Conde! Fiz o quadro do amor de

prima Gabrielinha, um amor de romance! Sabe? Chamou-a develha gaite ira! Ousou grosserias, ignomínias, despropósitos. Umtarado! Minha prima, velha gaiteira? Oh! Ah! Veremos!

— Mas o Sr. não fêz ver que êle pode ir para a cadeia

Com cartas das filhas e contas em que embrulhara de em-

brulho minhas dívidas de Rolah, um retrato nu de CatarinaPinga-Fogo foi tirado na sangrenta carteira ao lado do cavalodeserto.

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150. TESTAMENTO LITERÁRIO

"A mulher é uma coisa misteriosa que chora sem razão,

muda a tôda hora de desejos e de voz e nunca aceita os meuscarinhos e fica impassível diante de minhas desventuras pes-soais." Teodomiro Pelágio de Brito.

151. INQUÉRITO

Porque a Candoca filha tossindo descabelada viera a NovaLombardia partindo o racontar da eterna história num chôro

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152. LOOPINGS

Mas o Conde desapareceu definitivo guardador das sobrase saudades dos bambúrrios e blefes na estrada de ferro auto-mobilística do poker-club.

E Nair apareceu fulminante esposa do filho matadoural dogigante Bretas do Rio, com renovados amáveis direitos hipo-tecários sôbre as fazendas salvas e Trancoso Carvalho esfre-

gados num choque de cheque.E meu divórcio recrudesceu por sentença regular com Cè-

liazinha homologada à mãe em sete anos e mais rombos no meupátrio poder por maravilhosa graça do imenso jurisconsulte dosJucás e Totós.

153. NEGROLOGIA

154 TESTAMENTEIROS

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154. TESTAMENTEIROS

Por cuidado cabogramado do grande divorciador, o matri-monial contrato de Nice fôra de precavidos efeitos, impondo aChelinini não mais que três contos mensais de aluguel mari-deiro com cem de jóia t jóias. E o dono esperto da espertaNair cerrara testamento tapado a máquina pela mão manhosa domédico de Célia e Pindobaville dr. Pepe Esborracha. Num cho-roso conluio, ambos se tinham descoberto como Brasis e con-cordado junto à cama desfalecida da enfêrma de aquecedorelétrico nos pés de cêra. E assinaram a rôgo que o longe Pan-tico ingrato empregado em Antuérpia e a Cotita de óculos con-trariantes, bestenamorada dum mineiro de Minas, podiam dis-pensar vantagens que a devotação das duas outras merecia ha-ver na sobrenadante fortuna fazendeiral em alta.

155. ORDEM E PROGRESSO

— Uma forja de temperamentos e um ninho de pombasgárrulas. O Sr. precisa entrar para lá, pricipalmente depoisque o seu nome de poeta e jornalista começa a raiar nos ga-larins da fama. Quer saber, digo-lhe confidencialmente, o Pre-sidente da República saiu de nossas fileiras, o Prefeito de SãoPaulo também, o Vice-Prefeito idem idem. Já fornecemos à

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,alta administração doze estréias de primeira grandeza. SantosDumont é dos nossos.

E súbito, reservado como as senhoras que a gente encontrana sala secreta do museu de Nápoles:

— O Sr. possui filhas?—• Sim. Tenho uma de seis anos.— Ponha-a lá, ponha-a lá, se quiser salvá-la dos perigos

contemporâneos. Ah! Lá não se dança o paso doble, meu carosenhor! O paso doble! Devia chamar-se a cópula de salão!

Olhe, nós vivemos numa civilização de dancings. ..Facas bateram copos semafóricos. Face a nós, Machado

Penumbra elevara-se, neto de Lord Byron na Itália.— É um discuirso para amigos, meus senhores! E como

esta florida mesa reúne sòmente rapazes, eu beberei a Cupido!A cada presente a esta reunião de saúde e fraternidade, eu

 junto uma ausente cara, numa argonave de esperanças eternas.Porque nós, meus colegas, meus amigos, neste vale de emo-ções, de apogeus e de quedas de ícaro, vivemos apenas o roman-ce da eterna pesquisa, da eterna procura, da eterna recherche, daeterna mágoa da miragem! Mas não fiquemos apenas na visãodêsse desejo do impossível que a todos nos inquieta e comove.

À

A extinta que era filha do saudoso paulista Coronel Be~larmino Elesbão Arruda da Cunha e da falecida Sra. Condêssa

Gabriela Chelinini, foi sempre figura de relevo na nossa socie-dade e primava por seus dotes de espírito c coração, sendomuito estimada no largo círculo de suas relações.

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Era cunhada do distinto capitalista carioca Sr. Carlos Bre-tas, irmã do Sr. José Elesbão da Cunha, comerciante em An-tuérpia, das Sras. D. Nair da Cunha Bretas e D. Maria dosAnjos da Cunha Meireles e prima do nosso eloqüente confradee ilustre geógrafo, Dr. Pôncio Pilatos da Glória.

Foram baldados todos os recursos da ciência médica parasalvá-la.

Pêsames à distinta família enlutada."

157. ERRATA

Eu pudera quem sabe prever o armístico com músicas jazzbandando pelas ruas aliadas e o esmigalhamento alemão porFoch e Poincaré, mas nunca auscultara minha precoce viuveze a chegada de Antuérpia num cargoboat, do meu cunhado José

158. RECREIO PINGUE-PONGUE

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Miramar a vida é relativaO acontecido não teria sidoSe nascesses sóSem a mãe que te deixou virtudes caladasO acontecido te ofertouA filhinha de olhos clarosAbertos para os dias a virÉs o elo duma cadeia infinitaAbraça o Dr. MandarimE soma êle ao azul desta manhãLouçã

159. SERÃO DOS CONFORMADOS

íamos ao Jardim da Infância de D. Mademoiselle Ivone e

à novena organista do Sagrado Coração.

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160. DISCURSO ANÁLOGO AO APAGAMENTODA LUZ DURANTE O FOX-TROT PELODR. MANDARTM PEDROSO

"Minhas meninas, meus rapazes!

Êste clube é um lar!

Nele, o espírito hospitaleiro é uma prerrogativa ao lado docatecismo moral da juventude! e é devido a isso que o RecreioPingue-Pongue se tornou célere a mais progressista artéria denossa vida social, com floridas ramificações pela política e pela

literatura! Nêle esplendei vós, ó inefáveis portadoras das graçasvenusinas, ao lado dos jovens pegureiros da Pátria!Sob esta blusa de modesto obreiro, não me posso deslem-

brar que acontecimentos diários acumulam deslumbradoras cer-tezas para vós.

Quero referir-me particularmente a um fato acontecido on-

ouropéis. Morreu nos lábios de todos o sorriso da bem-aventu-rança! As môças nessa idade côr-de-rosa dos sonhos e dos an-seios, ficaram melancólicas e assustadas, procurando como se asperseguisse uma miopia indizível um braço sólido que as arri-masse. Em vão! Nenhum!

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Perfilados como heróis, os seus pares permaneceram comoque fulminados por raios da cólera divina! (Risos contidos demôças e moços.)

Quando se restabeleceu a corrente pérfida da Light, esta-vam todos a sessenta centímetros mais ou menos de distância,em atitude calma e respeitabuníia. Vê-los era como ver via-

 jores extáticos que se dessedentam na esperança e na fé doscastos beijos da brisa.

Isto é digno de Plutarco! O feminismo contemporâneo es-barrondar-se-ia na sua verbosidade grácil ante o rochedo dêstefato.   Re s non verbal

Visto isso, só tenho a inserir na ata do Recreio Pingue-Pongue, um verdadeiro e auspicioso hino congratulatório aos mo-ços que, como verdadeiros São Luises, se mantiveram em hora

tão perigosa na postura que os levará mais tarde como maridosaos fulgurantes páramos da ventura conjugai!Bendita terra que possui tais efebos! Pátria, latejo em ti!

(Sorrisos e palmas.)

Á

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162. NOTICIÁRIO

"Gênova Hotel.Meu querido amigo e confradeSaudações.Só hoje, escrevo-lhe desta bela Itália, país da arte, cheio

de templos de mármore de Carrara, onde a Fé se escuda naégide da tradição.Vedere Napoli e depoi morrire!Estive em Lisboa alguns dias e visitei a célebre Torre de

Belém, donde partiram as gloriosas caravelas de Cabral, singran-do o Oceano. Não pude deixar de concentrar-me e transportar

o meu espírito àqueles tempos gloriosos. E senti a mais pro-funda gratidão por êsses intimoratos descobridores, reconhecendoque se não houvesse tamanha epopéia histórica, eu hoje não es-tava aqui e talvez fôsse um português que com o lastimávelestado do câmbio nem pudesse andar viajando.

Irei brevemente contemplar as maravilhas da arte de Rafael,

163. ENTREVISTA ENTREVISTA

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163. ENTREVISTA ENTREVISTA

— Com que então o ilustre homem pátrio de letras nãoprossegue suas interessantíssimas memórias?

— Não.— Seria permitido ao grosso público ledor não ignorar

as razões ocultas da grave decisão que prejudica assim a nossanascente literatura?

— Razões de estado. Sou viúvo de D. Célia.— Daí?— Disse-me o Dr. Mandarim que os viúvos devem ser

circunspectos. Mais, que depois dos trinta e cinco anos,  mezzo dei camin di nosíra vita,   nossa atividade sentimental nãopode ser escandalosa, no risco de vir a servir de exemplo per-

nicioso às pessoas idosas.— O Dr. Mandarim, com perdão da palavra, é uma bêsta!— Engano seu. O Dr. Mandarim é baedeker de virtudes.

Adoto-o.— A crítica vai acusá-lo e a posteridade clamar porque

não continuou tão rico monumento da língua e da vida brasí-

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Serafim   Ponte  Grande

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Na página de ante-rosto dêste livro, em sua primeira edição,Oswald de Andrade relacionou suas obras sob a rubrica de

OBRAS RENEGADAS:

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OBRAS RENEGADAS:

Os CondenadosA Estréia de AbsintoA Escada (inédito)

Pau-BrasilPrimeiro Caderno de Poesia

Serafim Ponte Grande

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Serafim: Um Grande Não-Livro

HAROLDO DE CAMPOS

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I

"O mais impressionante sintoma da literatura modernaestará talvez em vermos surgir cada vez mais, sob nossos olhos,um modo de escritura nôvo, unitário, global, onde as distinções

O romance-invenção2  Serafim Ponte Grande,   de Oswaldde Andrade, "escrito de 1929 para trás" (ou "terminado em

1928", como se lê no prefácio) e publicado em 1933, é umadessas obras que põem em xeque a idéia tradicional de genêroe obra literária, para nos propor um nôvo conceito de livroe de leitura. Nas  Memórias Sentimentais de João Miramar( l íd 1923 bli d 1924) O ld já fi

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(concluídas em 1923, publicadas em 1924), Oswald já fizeraesta experiência de limites, abolindo as fronteiras entre poesia

e prosa. Agora êle a radicaliza numa outra dimensão, utilizan-do-se das conquistas estilísticas anteriores, mas entrando aindamais fundo — se assim é possível dizer — na desarticulaçãoda forma romanesca tradicional.

A contestação do livro, como objeto bem caracterizadodentro de um passado literário codificado e de seus ritos cul-

turais, começa aqui, desde logo, pela materialidade, pela fisi-calidade dêsse objeto. No lugar onde costumeiramente se in-dicam as "Obras do Autor", a relação destas vem sob a rubrica"Obras Renegadas", e o próprio livro que se está para 1er, oSerafim   Ponte Grande,   é incluído entre os títulos "repudiados".A indicação de  copyright   — chancela dos direitos do autor eda propriedade literária — é parafraseada em tom escarninho("Direito de ser traduzido, reproduzido e deformado em todasas línguas"). Há uma "Errata", deslocada de sua posiçãohabitual, que funciona autônomamente, como se fora um capí-tulo. Finalmente, o que corresponderia a um  cólofon   (indicaçãoda data da elaboração do livro) é também submetido a um trata-mento inusitado: a cronologia é posta ao reVés, como se vista

setas para a realidade de um objeto que conhecemos com estasmarcas localizadoras e características — assim como tabuletas

de tráfego nos indicam um caminho ou nos alertam da presençade uma escola ou de um hospital —, porém, simultâneamente,o "tornam estranho", o "desautomatizam" para nossa percep-ção, no ato mesmo em que o sinalizam, o emblematizam até.

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"Ostraniénie", — eis como a crítica formalista russa, dasprimeiras décadas deste século, procurava definir êste processo

de quebra da "automatização", da inércia a que somos subme-tidos pela rotina. O familiar nos aparece como algo nôvo, des-conhecido, se nós alterarmos as relações normais de sua apre-sentação por um "efeito de estranhamento". Victor Chklóvski,que empregou êsse conceito em seu estudo "Iskusstvo kakprióm" (A arte como procedimento), de 1917, considerado

como um verdadeiro manifesto do formalismo russo4

, desen-volveu também a idéia do "desnudamento do processo" (ou"procedimento" — "obnajénie prioma"), como um aferidor daespecificidade da obra de arte. Para êle,  Tristam Shandy   deLaurence Sterne era a obra romanesca mais típica da literaturauniversal (ao invés de um caso de exceção e de extravagância

como geralmente se sustentava), justamente porque punha anu a estrutura mesma do romance, na medida em que a per-turbava, a "desautomatizava" para a recepção do leitor. "Ster-ne foi um extremado revolucionário da forma" — opina Chklóvs-ki —, "o desnudamento do processo para êle é típico"6. OTrisíram Shandy,   esta obra aparentemente bizarra e idiossin-

é realmente um marco pioneiro da revolução do objeto livroque se projeta de maneira avassaladora e irreversível em nosso

século, agora tendo por aliadas (ou, ao menos, por instigado-ras) as novas técnicas de reprodução e transmissão da infor-mação, os novos "media" e "intermedia" da comunicação demassas.

O Serafim de Oswald de Andrade como o Tristram de

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O  Serafim   de Oswald de Andrade, como o  Tristram  deSterne, é um livro que, desde logo, põe em discussão a sua

estrutura. Já no  Miramar  Oswald desenvolvera o projeto de umlivro estilhaçado, fragmentário, feito de elementos que se de-veriam articular no espírito do leitor, um livro que era comoque a antologia de si mesmo®. Mas no  Miramar, embora apulverização dos capítulos habituais produza um efeito desa-gregador sôbre a norma da leitura linear, não deixa de existirum rarefeito fio condutor cronológico, calcado no molde resi-dual de um "Bildungs-roman", que nos oferece — em têrmosparódicos, é verdade — a infância, a adolescência, a viagem deformação, os amores conjugais e extraconjugais, o desquite, aviuvez e o desencanto meditativo do herói, o "literato"-memo-rialista cujo nome lhe dá o título.

Agora, no  Serafim,   a preocupação de Oswald com o arca-bouço de seu livro o leva a uma espécie de  continuuni   da in-venção, a uma estrutura protéica, lábil, de caixa-de-surprêsas.Se no  Miramar   a grande inovação se punha sobretudo no nívelda sintaxe da escritura, no nível microestético do encadeamentoestilístico das unidades do texto (palavras e frases), aqui é a

 grande sintagmática   da narrativa que merece a atenção especial

re articular, por uma ótica nova, os objetos fragmentados emsua tela. Agora, no  Serafim,   essa técnica cubista, êsse trata-

mento metonímico, parece ocorrer no nível da própria arqui-tetura geral da obra, na macroestrutura portanto7. O  Serafimé um livro compósito, híbrido, feito de pedaços ou "amostras"de vários livros possíveis, todos eles propondo e contestandouma certa modalidade do gênero narrativo ou da assim dita

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uma certa modalidade do gênero narrativo ou da assim ditaarte da prosa (ou mesmo do escrever  tout court).   Cada um

dêsses excertos ou  trailers  de livros virtuais funciona, no planomacro-sintagmático, no plano do arcabouço da obra, como umaalusão metonímica a um determinado tipo catalogado de prosa,convencional ou pragmática (de uso cursivo), que nunca chegaa se impor totalmente ao esquema do livro oswaldiano para lhedar uma diretriz uniforme, mas antes acena — num processo

alusivo e elusivo — com um modo literário  que poderia sere que não é.   A operação metonímica — ou mais exatamentea sinédoque, na fórmula  pars pro toto   da retórica tradicional(os pedaços de livros que, tomados pelo todo, indicam um certogênero ou uma certa espécie no acervo literário inventariado),— adquire então função   metalingüística,   pois é por meio delaque o livro faz a crítica do livro (do romance em particular e,por extensão, da prosa e da escrita "artística" ou não). Nesteexercício manifestamente paródico não deixa de ser passada emrevista, de maneira caótica mas nem por isto menos significa-tiva, a própria história do gênero romance, a sua diacronia.Wellek e Warren, expondo a teoria de André Jolies segundo aqual as formas literárias complexas representam o desenvolvi-

"Witz"), observam que a maturidade do romance se nutriutambém de "einfache Formen" como a carta, o diário, o livrode viagens, a memória, o ensaio, etc.8.

Ainda na projeção da metonímia sôbre a  grande sintag- mática   da narrativa, tal como ocorre no  Serafim, é   possívelidentificar um processo característico do cubismo: a colagem,a justaposição crítica de materiais diversos, o que em técnicai t áfi üi l d t d à t

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cinematográfica parece eqüivaler de certo modo à montagem.A colagem — e mesmo a montagem — sempre que trabalhem

sôbre um conjunto já constituído de utensílios e materiais, in-ventariando-os e remanipulando-lhes as funções primitivas, po-dem se enquadrar naquele tipo de atividade que Lévi-Straussdefine como " bricolage "  (elaboração de conjuntos estruturados,não diretamente por meio de outros conjuntos estruturados,mas pela utilização de resíduos e fragmentos), a qual, se é

característica da "pensée sauvage", não deixa de ter muito emcomum com a lógica de tipo concreto, combinatória, do pensa-mento poético®.

Oswald, " bricoleur fêz um livro de resíduos de livros,um livro de pedaços metonimicamente significantes que nêle seengavetam e se imbricam, de maneira aparentemente desconexa,

mas expondo, através dêsse hibridismo crítico, disso que sepoderia chamar uma "técnica de citações" estrutural, a vocaçãomais profunda da emprêsa oswaldiana: fazer um não-livro, umantilivro, da acumulação paródica de modos consuetudináriosde fazer livro ou, por extensão, de fazer prosa (ou ainda, e atémesmo, de expressão por escrito). Antônio Cândido, num es-tudo fundamental sôbre a prosa de Oswald, referiu-se ao  Sera-

par do que revela de apreço de parte do crítico pelo experimento

oswaldiano ("tem muito de grande livro", insiste Cândido emoutra passagem), envolve uma restrição quanto a certo "como-dismo estético" da técnica empregada, que não permitiria apro-fundar os problemas de composição. Hoje, com a perspectivaadquirida nestes últimos vinte anos, a questão poderá talvez

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ser reformulada: justamente através da síncope técnica e doin acabamento dela resultante é que a construção ficava mani-festa, é que a carpintaria do romance tradicional, como "prióm",como procedimento, era posta a descoberto. Retomando a de-finição de Antônio Cândido, gostaríamos de repropô-la assim:o  Serafim   é um grande não-livro de fragmentos de livro11 .

Para o reconhecimento das  grandes unidades sintagmáticasque estruturam a mensagem narrativa num livro dado — ou,em outras palavras, que armam essa mensagem como corpo delinguagem sôbre o eixo de contigüidade — há, desde logo, umelemento intencional de cesura, de pausa, que impõe limites

estéticos aos ictos da ação ou da narração. Êste elemento auto-riza fazer coincidir, "grosso modo", num primeiro nível arqui-tetônico, tais  grandes unidades   com as divisões tradicionais em

episódios ou capítulos13. Evidentemente que esta partição éartificial, responde a um certo ritmo exterior de construção e

não à lógica íntima do encadeamento narrativo. Uma análisemais refinada vai reconhecer sob essas  grandes unidades   desuperfície as verdadeiras funções constitutivas dos grandes sin-tagmas narrativos, as quais — sob a forma codificada de "blo-

" " d i " d i d i "h ói d i

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cos" ou "cadeias" de sintagmas do tipo "herói deixa a casa ese encontra com um adversário"13  — podem englobar mais deum episódio, mais de uma  grande unidade   naquela primeiraacepção que demos ao conceito. Pois se é verdade que umcapítulo pode ser constituído tanto por uma só frase como pormuitas páginas" — e temos exemplos de  grandes unidadesbrevíssimas neste  Serafim   —, não é menos exato que uma única

função ("fuga à perseguição", por exemplo) pode recobrir —como também veremos no caso do  Serafim   — várias dessas uni-dade s-episódios.

Feitas estas considerações, passemos à parte mais pròpria-mente analítica.

No sintagma de grau máximo (ou  sobressintagma)   que éo  Serafim   visto como todo — por outras palavras, na sua ar-quitetônica —, podemos distinguir, '.diferenciadas até pela ca-racterização gráfica, em lugar dos usuais capítulos de romance,e em lugar ainda das peças sôltas, dos fragmentos de "antologia",do  Miramar,   as seguintes  grandes unidades   (de superfície), do-

I — RECITATIVO

II — ALPENDREIII — FOLHINHA CONJUGALIV — TESTAMENTO DE UM LEGALISTA DE FRAQUEV — N o ELEMENTO SEDATIVO

V I — CÉREBRO CORAÇÃO E PAVIO

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V I CÉREBRO, CORAÇÃO E PAVIOVII — O MERIDIANO DE GREENWICH

VIII — O s ESPLENDORES DO ORIENTEI X — FIM DE SERAFIMX — ERRATA

X I — O s ANTROPÓFAGOS

Estas unidades, por sua extensão e ingredientes, são mais sim-ples ou mais complexas, podendo se resumir a uma rápida no-tação cenográfica (I — RECITATIVO) ou conter enclavesde material diverso, como é o caso de IV — TESTAMENTO.

Evidentemente, tudo é conduzido em pauta paródica, —e a paródia aqui, como no caso de Sterne ou de Joyce, é omeio natural para o "desnudamento do processo".

I — RECITATIVO apresenta o protagonista à maneirade uma rubrica teatral. Em II — ALPENDRE encontramosum excerto gaiato de cartilha ("Primeiro Contato de Serafime a Malícia"); um quase retalho de composição infantil ("Re-cordação do País Infantil") um estilo ingênuo-poético-malicioso

("Vacina Obrigatória"). III — FOLHINHA CONJUGAL éuma contrafação de diário íntimo, com freqüentes alusões "li-terárias" que funcionam como paródia dentro da paródia. Ve- jam-se por exemplo estas anotações, das quais ressaltam aspreocupações e veleidades "beletristas" de Serafim (o barba-rismo "pecedônimo" é um ingrediente óbvio da sátira):

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"Ando com vontade de escrever um romance naturalista*que está muito em moda. Começaria assim: "Por todoo largo meio disco da praia de J urujuba, havia uma vidasensual com ares gregos e pagãos. O mar parecia umsátiro contente após o coito.""A questão da impersonalidade em arte. O conhecimentocom detalhes do escabroso caso Victor-Hugo-Sainte-Beu-ve. . ."."Volto de novo a preocupar-me com o romance que ima-ginei escrever e que acho que sairá com pecedônimo.Tenho alguns apontamentos tomados sôbre o tipo prin-cipal, a jovem Marquesa de M . . , ".

"É verdade, minha esposa dá ganas de escrever um dramasocial em três atos tétricos.""Saio à noite e procuro o Pires de Melo que lê-me pelaterceira vez a sua encantadora novela "Recordação de umÓsculo."

flcxão loira, bôca onde mora a poesia"). Dorotéia evoca Rolah

do  Miramar,  e a epígrafe e a frase do "literato Pires de Melo"("Tão loira que parece volatizar-se na manhã loira") recordamoutra personagem daquele primeiro romance, Machado Penum-bra, escrevendo impressões no "álbum de Mlle. Rolah" ("A sualoira e estranha divindade dominou a sala fantástica até extin-

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guir-se a última nota da mágica orquestra"). Assim Oswald

punha em ridículo a literatura "sorriso-da-sociedade", a fútil lite-ratice de salão vigente em seu tempo (e sobrevivente ainda hoje!).Para que se possa avaliar a eficácia da paródia, leia-se êsteexcerto de um magazine da época,  A Cigarra   de 7.XII. 1916(n<?56):

"Carme m  Lídia

Flor d'arte, de graça e de beleza, essa loira criança jáintensamente palpita no sentimento estético do brasileiro.Ouem é ela? — Uma pequenina grega tropical, que vestea  robe  ligeira de passeio e faz, como ninguém, a esquiva

 boulevardière;   que cinge o  maillot   negro e, ágil, precipi-tar-se, como um turbilhão de vida moça, nas vagas doFlamengo: que se enroupa nas fantasias doidas de Salo-mé e faz renascer, no palco, o encanto bíblico da filhaestranha de Herodíades.. .

TESTAMENTO DE UM LEGALISTA DE FRAQUE

(IV), além do retrospecto das peripécias de Serafim na cidadcconflagrada 17, contém uma paráfrase de notícia político-jorna-lística ("Noticiário"); uma espécie de "objet trouvé" (um"Abaixo-assinado por alma de Benedito Carlindoga"); um "en-saio nirvanista" ("O Largo da Sé"), caricaturando os discursos

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sôbre o óbvio de certa subliteratura meditativo-filosofante; um

"Cômputo" (que funciona como registro cenográfico, e cujasimplicações veremos mais adiante); um "Intermezzo", combi-nando teatro bufo e romance de folhetim (este anunciado pelapluralidade disjuntiva dos subtítulos: "Dinorá a todo cérebroou seja A estranha mulher do Copacabana Palace ou seja Aex-peitudinha do Hotel Fracaroli ou seja O mais belo amor de

Cascanova"). Aqui é oportuno observar que não apenas a lite-ratura "cultivada", mas também as manifestações menos "no-bres" do exercício da escrita — da imprensa popular à literaturafolhetinesca, do romance de aventuras ao epistolário de circuns-tância — são convocadas por Oswald de Andrade, que assim,enquanto provoca o "estranhamento" do gênero  romance,  dis-solvendo-Ihe a categoricidade, o dessacraliza, utilizando o mate-rial "nobre" ou "artístico" — vejam-se certas passagens ondea intencionalidade da escritura estética é evidente, sobretudo nasdescrições de lugares e ambientes que pontilham este  Serafim   —ao lado do mais banal, da cartilha ao livro de cordel, do abaixo-assinado à carta, à intimnção judicial, ao diário de "boudoir".Esta dessacralização, num outro nível, é desempenhada pelas

estejamos diante de uma "relação de viagem" em transatlântico

("steam ship") cosmopolita, a nota cômica é dada desde logopela desfiguração "caipirizante" do nome do navio,  Rompe-

 Nuve,   como se se tratasse de um cavalo roceiro; o mesmo sediga da epígrafe ("Mundo não tem portera"), também em "dia-leto caipira" Entra aqui entre outros ingredientes um "dicio-

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leto caipira . Entra aqui, entre outros ingredientes, um dicio-nário de bôlso", glossário de personagens, que tem algo a vercom o "Sottisier" e o "Dictionnaire des Idées Reçues" do  Bou-vard et Pécuchet  de Flaubert. A história da Mariquinhas Na-vegadeira e das proezas do Pinto Calçudo a bordo é tratada àmaneira das crônicas medievais e dos romances picarescos, comtitulagem apropriada ("Onde se constata a existência de Mari-

quinhas Navegadeira..."; "De como Pinto Calçudo, querendofazer esporte...", etc.). Por êste veio Oswald remonta à lite-ratura portuguêsa de viagens dos séculos XV e XVI, que nosdeu uma obra-prima, a  Peregrinação   de Fernão Mendes Pinto,cuja estrutura autobiográfica é picaresca e cujo tom crítico ede cinismo ingênuo é também pícaro, como reparam agudamente

Antônio José Saraiva e Oscar Lopes18

., O relato converge parauma "Poesia de Bordo", onde se misturam arcaísmos: "gran","assi"; estrangeirismos: "crêpe-santé", "manto"; palavras ditas"poéticas": "zéfiro", "lúrida"; recursos voluntàriamente histriô-nicos (rimas fáceis; a inversão sintática "Do navio as usinas";a apócope "co" em lugar de "com"), tudo num clima de "pas-

"— Diga-me uma coisa. Quem é neste livro o perso-nagem principal? Eu ou você?"

De fato, o primeiro via ameaçada sua condição de "herói" danarrativa pela atuação cada vez mais destacada do segundo,

lh b à i hi fi d i ã

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que lhe rouba pràticamente, por hipertrofia de intervenção, o

episódio da Mariquinhas Navegadeira. . . Êste efeito de quebrada ilusão e de autonomização das personagens, que rompem amoldura ficcional e parecem se projetar para fora do espaçoromanesco, é repetido de certa forma no fragmento "Propa-ganda", na seqüência do livro:

"Se Dona Lalá viesse agora de saias pelo joelho fazer ascenas indignas do começo do volume, nosso herói a ful-minaria repetindo a frase de seu nôvo amigo, o Gover-nador da Cochinchina:— Não! Mas que educação  é  esta? Estaremos por acaso

na Rússia?".

CÉREBRO, CORAÇÃO E PAVIO é a sexta unidade es-trutural a ser considerada. Abre com uma epígrafe da  His- tória   Trágica-Marítima,   compilação setecentista de folhetos re-

muito da poalha pontilhista de episódios do  Miramar,  dos frag-

mentos descritivos que fixam a estada parisiense e as peregri-nações européias do primeiro herói oswaldiano. Não faltamainda paródias em todos os níveis: poemas; cartas; lances ora-tórios; diálogos facetos em estilo de dramalhão; psitacismo deescola de idiomas ("A Aula" é uma retomada escatológica dopoema "Escola Berlites" de Pau Brasil) ; inquisitório de tribunal

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poema Escola Berlites , de Pau Brasil)  ;  inquisitório de tribunalpcrxado a literatura de cordel ("Serafim no Pretório — O bordelde Têmis ou Do pedigree de Pompeque"); um registro psica-nalítico de sonho ("Confessionário"), etc. Nas vinhetas des-critivas acima referidas, comparece o característico estilo cubista

 já por nós identificado no  Miramar,   e da contração metonímicadeflagra muitas vêzes a "metáfora lancinante":

"Um gramofone sentimentaliza o planêta e a alemãzinhaatira os seios como pedradas no lago."

O que, em linguagem não perturbada pelos cortes metonímicos,

pode ser "traduzido" da seguinte maneira: a) um gramofoneemite música que produz efeito sentimental (em "um gramo-fone sentimentaliza" a causa eficiente é tomada pelo efeito);"pJanêta", objeto direto de "sentimentaliza", funciona comosinédoque ("totum pro parte") em relação ao ambiente con-creto em que se passa a cena (um lago suíço) ; b) a alemãzinha

para o qual sua ação transita (o detalhe anatômico dos seioselásticos, como pedras que alguém "atirasse" no lago, repre-

senta o corpo inteiro da jovem que se inclina para a água ounela se "atira").

O MERIDIANO DE GREENWICH é a sétima unidadecompositiva, apresentada expressamente sob a forma de "Ro-mance de Capa e Pistola" (notar a substituição maliciosa de

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mance de Capa e Pistola" (notar a substituição maliciosa de

"Espada" por "Pistola". . . ) . Êste suposto romance entra nolivro como um encarte de "Biblioteca da Juventude". Trata-se,outra vez, das peripécias de uma viagem marítima, como umaepígrafe atribuída a "Cristóvão Colombo e outros comissáriosde bordo". O relato assume uma empostação "fidalga", aogôsto dos romances de aventuras, com Serafim transformado emBarão Papalino e resquestando uma evasiva Dona Solanja. Alinguagem acompanha o tom geral, com tratamentos cerimo-niosos e afetados ("Explicai-me, senhor Barão! / É-me fácil,minha senhora"), nos quais sempre intervém a contranota bur-lesca ("Permito tudo, senhor Barão, menos uma coisa, mur-murou ela ruborizada"). Os capítulos desta noveleta têm tí-tulos no mesmo espírito enfático-sentimental: "I — A VivaMorta! II — A mascarada flutuante. III — A sombra retros-pectiva. IV — Vendetta!! e V — Epílogo Final" (aqui opleonasmo acentua a burleta). Como nos romances de "capa-e-espada", nos romances "românticos", a efusão amorosa acabaem tragédia (no caso, porém, em tragicomédia, com uma fuzi-laria "fálica" e um linchamento humorístico). Ainda como

IX — FIM DE SERAFIM abre com um poema de torna-viagem e fecha com um discurso de Serafim aos pósteros, cujotítulo é reminiscente da parenética barroca ("Pregação eDisputa do Natural das Américas aos Sobrenaturais de Todosos Orientes"). Como não podia deixar de ser, neste livro de"false starts" e "false ends", há ainda uma "Chave de Ouro"pós-conclusiva: uma panorâmica da evolução urbana de São

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p p çPaulo, em traço sintético de pintura "pau brasil".

A décima unidade é uma ERRATA que faz as vêzes decapítulo, tratando, em modo grave-cômico, ao gôsto das home-nagens póstumas, da construção do "Asilo Serafim" pelos fa-miliares e amigos do falecido herói. O primeiro hóspede dêssemanicômio memorial, "destinado ao tratamento da loucura sobsuas formas lógicas", é justamente o pintor incumbido de retratar

o defunto.XI — OS ANTROPÓFAGOS é, porém, o verdadeiro fim

do  Serafim.   Ou o recomêço de tudo (e do livro inclusive).Pinto Calçudo reentra em cena como capitão-pirata da nave"El Durasno" (antes disto houvera apenas uma breve alusãoao destino do co-hcrói expulso do romance, no fragmento finalda parte VI: "Pinto Calçudo atolou numa francesa"). A lin-guagem é invadida por espanholismo estropiados (que grifamas fanfarronices do sobressalente herói-segundo), trocadilhos( (tombad/lho/tombandalho) e citações "preparadas" ou de-formadas (um longo excerto de  A Conquista Espiritual   do je-suíta e caiequista Montoya, solertemcnte arrancado de seu con-

Por esta sumarização descritiva das  grandes unidades  queencadeiam o  sobressintagma   (ou sintagma de grau máximo)

que é o livro, já podemos ver algo da função fabuladora quedentro e ao longo delas se delineia e perfaz. O  Serafim   é umportafólio de micro-enredos que, deslindados (e desprezada amiúda parafernália de eventos subsidiários), deixam articular-seum enrêdo de base, perturbado pela ambigüidade da seqüênciatemporal: há um hiato cronológico uma intercalação paren

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temporal: há um hiato cronológico, uma intercalação paren-

tética, que fratura o tempo narrativo.Em I — RECITATIVO tem-se um esboço de "situaçãoinicial"22  — apresentação do herói, desenvolvida a seguir emII — ALPENDRE (infância, adolescência, emprego público,casamento). As peripécias conjugais e extraconjugais prosse-guem em III — FOLHINHA. O miolo da ação ocorre em

IV — TESTAMENTO, quando o herói transgride as normasda sociedade e do sistema e comete um "malfeito" segundoessas mesmas normas. Aproveitando-se do ambiente de con-flagração que reina na cidade, Serafim rouba o dinheiro con-fiado ao filho, Pombinho, por tropas rebeldes, e mata BeneditoCarlindoga, seu chefe na Repartição, o "tirano palpável", quevivia a lhe repetir: "O país só pode prosperar dentro da Ordem,seu Serafim!". Aparentemente, fuzila o próprio filho, o efeboPombinho (que, porém, ressurgirá em X, masculinizado, dechapelão e cavalo):

"Vejo o fantasma do Carlindoga e do filho que matei.

norá no Copacabana Palace). A "fuga" toma uma dimensãotransatlântica em V (o mar é o "elemento sedativo" do título

dêsse episódio). Serafim embarca no "Rompe-Nuve" em de-manda de terras européias, acompanhado de seu secretário eex-colega de Repartição, Pinto Calçudo, o qual é pôsto parafora do romance na conclusão de V. As andanças do foragidoherói (ou anti-herói) continuam em VI (Serafim na França,em Madrid, nos lagos suíços), VII (viagem no "Conte Pilhan-

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, g ç ), ( gculo" e aventuras napolitanas) e VIII (viagem ao Oriente, noencalço das "girls"). Em IX dá-se a "fase de reparação", coma função de perseguição e justiçamento do herói-vilão. AquiOswald relativiza a seqüência temporal, fazendo intervir umatransição abrupta, que desnorteia o leitor ao primeiro ingressono livro. Há em IV — TESTAMENTO, depois do "Abaixo-assinado por alma de Benedito Carlindoga", um "ensaio de

apreciação nirvanista", atribuído ao "Sr. Serafim Ponte-Grande-nôvo-rico", com o título "O Largo da Sé". Nesta digressãopseudo-filosófica em estilo de composição escolar, Serafim, odeclarado autor do "ensaio", surge já na condição de "novorico", locupletado no dinheiro roubado. Mas há um elementode ambigüidade nesta dissertação ingênuo-caricata: trata-se,

aparentemente, de uma reflexão de pós-viagem, com o heróiperegrinante reentrado em seus lares, a descrever uma SãoPaulo revisitada e revista por olhos de expatriado:

"Quando um estrangeiro saudoso regressa à pátria e pro-

que fica em suspenso. Só em IX — FIM DE SERAFIM acena é retomada, em dois lances: a) com um poema de retôrno("Fatigado de minhas viagens... te procuro, caminho de ca-

sa") que faz par com a descrição do "Largo da Sé" revisitado;b) com a reintrodução de Serafim encarapitado no arranha-céue manobrando o canhão. Já agora os bombeiros e a polidao perseguem, incitados pelo povo. E é então que um raio jus-tiçador o fulmina, apesar do pára-raios que o precavido herói

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enfiara na cabeça... Entre o "Cômputo" (em IV) — título

que carreia a idéia de cálculo final, de balanço — e o FIMDE SERAFIM (IX) abriu-se um enorme parêntese, operou-seum corte tmético como aqueles, famosos, do  Tristram Shandy,que correm por páginas e páginas, permitindo a "expansão domaterial" intercalado23. Assim, somos impelidos a considerar osucedido em V a VIII (inclusive) como acontecimentos ("efe-

mérides") desenrolados em "flash back" para o ponto-de-vistado protagonista na situação apresentada em "Cômputo" (IV)e só retomada em IX24 . Não é à toa que em "Cômputo" séfala também em "metempsicose ou transmigração das almas".Essa "transanimação" — reencarnação da alma de um ser hu-mano morto em outro que lhe continua a vida  (meta   -f-  en

 psykhe)  — faz pensar numa superação do espaço e do tempo.A "pregação" póstuma do Serafim finado (ou a finar-se) emIX — e não devemos esquecer que IV é apresentado tambémsob a forma de uma disposição testamentária, de um relato-testamento, embora se inscreva numa fase inicial do livro —orienta-se no mesmo sentido:

antropofágica. Com outras formas do tempo: môscas,eletro-éticas, catacíismos, polícias e marimbondos!"

Esta ambigüidade no desenrolar cronológico dos eventos dá aoherói uma dimensão de perpetuidade temporal e de ubiqüidade.É êle que na falsa ERRATA "governa os vivos", ensandecendoo pintor de seu retrato memorial e inspirando depois o cru-

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o pintor de seu retrato memorial e inspirando depois o cru-

zeiro antropofágico de seu ex-secretário, Pinto Calçudo, ressur-reto do limbo extra-livro para onde fora jogado em V. E nãoimporta dizer que a cena final de Serafim no arranha-céu pode-ria também ser interpretada como um simples "retôrno ao localdo crime". A extrema síntese de "Cômputo" implica, por sisó, uma suspensão do tempo narrativo, um "signo dilatório"que só encontra perfazimento na mente do leitor com a repro-posição da mesma situação em IX. Tudo se passa, como dizRoland Barthes, num "tempo semiológico", que reduz o temporeal a uma "üusão referencial" 25.

Outras passagens há, ainda, a considerar, neste jôgo deelementos progressivo-regressivos, de antecipações e recuos, quese instala em certos pontos do  Serafim,   como alçapões abertosonde se despenha a convenção da continuidade cronológica daação e mesmo a lei da probabilidade ficcional.

Em I — RECITATIVO, na brevíssima primeira apariçãodo herói ao leitor, Serafim já comparece numa fase de seu"curriculum vitae" que só poderíamos situar apropriadamenteem IV, no momento em que êle transgride a "ordem" constituí-

esta via entre  discours  e  récit)  29 .  O eu-locutor comparece outravez no prefácio do livro, onde a "persona" de Serafim é assu-mida criticamente pelo autor. Há ainda neste apelo pessoal doautor, que se apresenta de maneira direta, "performativa", aoleitor, como "personagem através de uma vidraça", um efeitopreambular de "quebra de ilusão". O leitor é jogado entre a"ficção" (o comparecimento ficcional de uma personagem) e a"confissão" (a presença autobiográfica do autor-narrador), para

l d f li á i d A tô i Câ did

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nos valermos de uma feliz paronomásia de Antônio Cândido.

Também em VI — CÉREBRO, CORAÇÃO E PAVIO,no fragmento "Patinagem", a irrupção de Dona Lalá no "Palaisde Glace" em Paris:

"Grudam-lhe lâminas nas sólidas patas e soltam-no como

um palhaço para gôzo de Dona Lalá",

contra todo o verossímel e o possível (já que a ex-consorte deSerafim ficara no Brasil, fugida com o Manso da Repartição,— ver IV — TESTAMENTO), é uma chamada mnemônica,uma interferência do tempo psicológico sôbre o tempo suposta-

mente real. Há uma cláusula condicional virtual, implícita nes-ta alusão desnorteante. Serafim faz uma triste figura como pa-tinador bisonho, e logo imagina o prazer que sua Xantipa de"voz amarela" haveria de tirar de seu desastrado desempenho,

 se o estivesse presenciando.   Na resolução sintática, porém, aação efetiva e a evocação da memória se fundem num mesmo

o pôrto grego do Pirea, e sucessivamente em Pera, o bairro eu-ropeu de Istambul, e no Egito, à vista do Nilo. Caridad-Cla-

ridad, uma nova personagem feminina, é introduzida  ex abrup- to  por meio de uma das características "metáforas lancinantes"oswaldianas:

"Ora Caridad Claridad era um tomate na cachoeira dos

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Ora, Caridad-Claridad era um tomate na cachoeira dos

lençóis."

Só a seguir, numa súbita transição de cena, vem a "motivação"27

do artifício, motivação que, na ordem da cronologia romanes-ca, se pode comparar à  prolepse   da retórica tradicional (figura

pela qual se altera na exposição a ordem dos eventos, de modoa antecipar o que será uma conseqüência do que segue). Defato, a tomada seguinte nos apresenta Serafim em seu quartode hotel parisiense, sendo visitado pela "girl-d'hoj'em dia", Pa-funcheta, que lhe anuncia uma viagem para o Oriente, em com-panhia de outra "girl", Caridad. O herói vai-lhes ao encalço.

E  só muitas cenas adiante, depois de várias peripécias excursio-nistas e de um persistente assédio amoroso de Serafim, temoso deslinde da metáfora inicial, agora repetida e explicitada:

"Amanhecia sôbre o Cataract-Hotel. Caridad acordou

e repostos em ordem de sucessão normal os seus "fabule m as"(ou funções agenciadoras da fábula), é, esquemàticamente, re-

dutível a um nôvo diagrama, êste porém de natureza "funcio-nal". De fato, se considerarmos as personagens como "unida-des paradigmáticas" do sistema literário (T. Todorov)28, tere-mos que a análise das funções agenciadoras da mensagem nar-rativa, em sua estrutura profunda, nada mais é do* que umaforma de projeção do paradigma, sôbre o sintagma (o que soa,d t d i t d i l i d ti lá i

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do ponto de vista da semiologia da narrativa, como um coroláriodo axioma fundamental da poética jakobsoniana). De fato,para Propp, pai dêsse tipo de análise, "a função representa oato de uma personagem, definido do ponto de vista de suaimportância para o desenvolvimento da ação". Esta persona-gem funcional (e não psicológica) é o "actante" de Greimas,"personagem definida pelo que ela faz, não pelo que ela c"

(Barthes)29

. Assim, a uma análise funcional, a  grande sintag- mática   de superfície do livro (episódios) encobre as seguintes"esferas de ação" fabular, constituídas pelas "funções" desem-penhadas pelos "actantes" (funções no sentido de "fabulemas",como antes as designamos):

1? MOVIMENTO:

a) situação inicial (I 4- II 4 . III);b) transgressão da ordem (IV);c) fuga (IV, desde "Intermezzo" V 4 . VI 4 .

No 2<? MOVIMENTO, que abrange duas  grandes unidades

superficiais, ERRATA (X) e OS ANTROPÓFAGOS (XI),há uma reproposiçâo em modo amplificado de "b" e "c". Sobo influxo do herói " justiçado "  — cuja simples evocação me-morial tem o poder eversivo de enlouquecer o pintor incumbidode retratá-lo "post mortem" —, Pinto Calçudo, secretário-ava-tar do defunto, contesta novamente a ordem estabelecida, agora

t b l t i t d d d (bi)

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em termos absolutos, instaurando uma desordem perene (bi).Conseqüentemente, a fuga à punição é autonomizada sob a for-ma de viagem permanente, insuscetível agora e por isso mesmode sanção  (Cj ). O livro desemboca num devir utópico — asociedade antropofágica, livre e redenta, perpètuamente "aber-ta" em razão de sua própria mobilidade. Isto exclui tôda apossibilidade de uma eventual função dj. Como sintetiza An-

tônio Cândido: "Sob a forma bocagiana de uma rebelião bur-lesca dos instintos, Oswald consegue na verdade encarnar omito da liberdade integral pelo movimento incessante, a rejeiçãode qualquer permanência"30.

A sanção (di) extrapola então da ordem fabular para aideológica. É no prefácio do  Serafim   — um dos mais impres-sionantes documentos de nosso Modernismo, desabusada páginade crítica e autocrítica, balanço contundente de um contextohistórico-social e de um conflito pessoal nêle inscrito — que autopia do  Serafim   é   "justiçada" retrospectivamente por seu au-tor, agora falando na primeira pessoa biográfica. Manifestandoa sua vontade de "ser, pelo menos, casaca de ferro na Revo-

resto)31, oferece uma rara instância textual — crítica, dialógica— de permanente e vívificador inconformismo. É assim, por

exemplo, que Giuseppe Ungaretti, numa página comovida pu-blicada pouco antes de sua morte (o prefácio à tradução italianado  Miramar), vê a antropofagia oswaldiana: "um modo antelitteram do que hoje se costuma chamar — sem que contenha,senão raramente, a arte do argumento paradoxal e a poesiamordente e alegre de Oswald — contestação"32.

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g ç

Aqui se põe uma reflexão de Theodor W. Adorno, quandoeste autor, passando em revista a evolução do romance moder-no, mostra que aquilo que se chama  formalismo   em terminolo-gia pejorativa é, afinal, o verdadeiro  realismo.   Êsse  formalismonão falseia o real, procurando uma inexistente conciliação darealidade e do sujeito através de uma forma romanesca ilusò-

riamente ordenada e pacificada, mas replica  à  sua concretaproblematicidade, problematizando em igual medida a estruturada obra. Isto se dá, por exemplo, com a destruição do "conti-nuum" temporal empírico em Joyce e Proust. "Destrói-se o"continuum"   temporal empírico em Joyce, e também em-Proust,porque a unidade biográfica dos currículos vitais se mostra ina-dequada à lei formal, exteriormente, e à experiência subjetivaà luz da qual essa lei se configura ( . . . ) Assim um tal proce-dimento literário entra em convergência com a dilaceração do"continuum" temporal na realidade, com o perecimento de umaexperiência, perecimento que, por seu turno, remonta afinalao processo tecnizado de produção de bens materiais, alheio aot empo" 3 3 .

crítica e de uma definida investidura ideológica, prccisava dc

um brusco choque desalionador para converter essa negatividadcem positividade. Mas a obra, como objeto, transcende ascircunstâncias dc seu sujeito transitório, e ganha um conteúdoprospectivo que pode compensar, mais adiante, as crises dessamesma profissão de certeza e fé militante. Pois, como já obser-vou Mário da Silva Brito, "por espantoso que pareça, Oswaldera um moralista e nessa condição lutou pela mudança dos

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era um moralista e, nessa condição, lutou pela mudança doscostumes sociais e políticos, literários e artísticos, numa ânsiade contribuir para a libertação do homem c do seu pensamentoético e estético"Jt. A recuperação, em novos termos, do con-teúdo antropofágico do  Serafim   c o que Oswald tentará fazerem sua tese  A Crise da   Filosofia   Messiânica,   no começo dadécada de 50, no clima de desencanto e de frustração do stali-

nismo. Afinal, a obra de arte é um "sistema conotativo"; sua"mensagem segunda" deixa-se enriquecer continuamente pelahistória, e a possibilidade de sua releitura em modo semprenovo e um dado fascinante da relação dialética entre a sérieliterária, de um lado, e a série social, de outro.

Ajunte-se, para concluir, que, nessa tese oswaldiana, a "visanthropophagica" do "Manifesto" de 1928, da  Revista de An- tropofagia   e do capítulo terminal do  Serafim,   é reencontrada,tingida agora de existencialismo, e passa a ser um instrumentopara a revisão dc todos os "messianismos", entre os quais Os-wald inclui o marxismo "institucionalizado" e burocrático. Aperspectiva utópica, depois desenvolvida por Oswald numa série

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Serafim Ponte Grande

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O MAL foi ter eu medido o meu avanço sôbre o ca-bresto metrificado e nacionalista de duas remotas alimárias —Bilac e Coelho Neto. O erro ter corrido na mesma pista ine-xistente.

Inaugurara o Rio aí por 16 ou 15. O que me fazia tomaro trem da Central e escrever em francês, era uma enroscada

quando davam tiros entre rimas. O único sujeito que conheciaa questão social vinha a ser meu primo-torto Domingos Ribeiro

Filho, prestigiado no Café Papagaio. Com pouco dinheiro, masfora do eixo revolucionário do mundo, ignorando o ManifestoComunista e não querendo ser burguês, passei naturalmente aser boêmio.

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Tinha feito uma viagem. Conhecera a Europa "pacífica"de 1912. Uma sincera amizade pela ralé noctivaga da  butteMontmartre, me confirmava na tendência carraspanal com queaqui, nos bars, a minha atrapalhada situação econômica protes-tava contra a sociedade feudal que pressentia. Enfim, eu tinhapassado por Londres, de barba, sem perceber Karl Marx.

Dois palhaços da burguesia, um paranaense, outro inter-nacional  "le pirate du lac Léman"   me fizeram perder tempo:Emílio de Menezes e Biaise Cendrars. Fui com êles um palhaçode classe. Acoroçoado por espectativas, aplausos e quirerascapitalistas, o meu ser literário atolou diversas vêzes na trin-cheira social reacionária. Lògicamente tinha que ficar católico.

A graça ilumina sempre os espólios fartos. Mas quando jáestava ajoelhado (com Jean Cocteau!) ante a Virgem Maria eprestando atenção na Idade Média de São Tomás, um padree um arcebispo me bateram a carteira herdada, num meio-diapoliciado da São Paulo afarista. Segurei-os a tempo pela batina.Mas humanamente descri. Dom Leme logo chamara para seusecretário particular a pivete principal da bandalheira

Eis porém que o parque industrial de São Paulo era umparque de transformação. Com matéria-prima importada. Às

vêzes originária do próprio solo nosso. Macunaima.

A valorização do café foi uma operação imperialista. Apoesia Pau-Brasil também. Isso tinha que ruir com as cometasda crise. Como ruiu quase tôda a literatura brasileira "de

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vanguarda", provinciana e suspeita, quando não estremamenteesgotada e reacionária. Ficou da minha êste livro. Um docu-mento. Um gráfico. O brasileiro à-toa na maré alta da últimaetapa do capitalismo. Fanchono. Oportunista e revoltoso.Conservador e sexual. Casado na polícia. Passando de peque-no-burguês e funcionário climático a dançarino e turista. Comosolução, o nudismo transatlântico. No apogeu histórico dafortuna burguesa. Da fortuna mal-adquirida.

Publico-o no seu texto integral, terminado em 1928. Ne-crológio da burguesia. Epitáfio do que fui.

Enquanto os padres, de parceria sacrílega, em São Paulocom o professor Mário de Andrade e no Rio com o robustoSchmidt, cantam e entoam, nas últimas novenas repletas doBrasil:

No céu, no céucom "sua" mãe estarei!

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Recitativo

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A paisagem desta capital apodrece. Apareço ao leitor.Pelotari. Personagem através de uma vidraça. De capa de

borracha e galochas. Foram alguns militares que transforma-ram a minha vida. Glória dos batizados! Lá fora, quandosecar a chuva, haverá o sol.

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Alpendre

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Passarinho avuôFoi s'imbora

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PRIMEIRO CONTATO DE SERAFIM E A MALÍCIA

A — e — i — o — u

Ba — Be — Bi — Bo — Bu

RECORDAÇÃO DO PAÍS INFANTIL

A estação da estrela d'alva. Uma lanterna de hotel- Omar cheiinho de siris.

Um camisolão. Conchas.

A menina mostra o siri.

V à i d T t !

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Vamos à praia das Tartarugas!O menino foi pegado dando, atrás do monte de areia.

O carro plecpleca nas ruas.

O trem vai vendo o Brasil.

O Brasil é uma República Federativa cheia de árvores ede gente dizendo adeus.

Depois todos morrem.

PARÁFRASE DE ROSTAND

Tomei de tal maneira

A tua cabeleira

Da Adolescência

O S j

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Ou SejaA IDADE EM QUE A GENTE CARREGA EMBRULHOS

A loira. A morena. O pai da morena. Os irmãos mus-culosos da loira. Êle toma capilé na venda de Seu Pascoal.

A loira deixa-se apalpar como uma janela. No escuro.Numa noite de adultério êle penetra na Pensão da Lili. Mas eladiz-lhe que não precisa de tirar as botinas.

PROPICIAÇÂO

Vacina Obrigatória

D l i d id d d

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 Delegacia   da  autoridade   que tem a cara arguta   das 23  horas e procura um esparadrapo  para o pudor da Lalá. Entre uma maioridade   de  soldados   — nosso herói.  Bra- sileiro.  Professor  de  geografia   e ginástica. Nas horas  va- gas, 79  escriturário. Serafim   Ponte   Grande.

 Lalá  atirou-se   do   viaduto   do  escândalo   ao primeiro sofá. A autoridade   — Estais no hall do templo da justiça! Peço

compostura ou pôr-vos-ei no xilindró n<? 7! de cócoras! Benevides   — Doutor! Minha senhora sabe que terá de con-

ter sua dor de progenitora diante de V. Exa! Benevides   é   estréia.

 A autoridade   — Eu compreendo que vós todos desejais o sa-cramento do matrimônio. Mas, modéstia à parte, no meufraco parecer, o  conjugo vobis...

 Lalá  — Ih! Ih! Pi! Fi! Fi! Ih! A autoridade  — Que falta de noção do pundonor!Mme Benevides Foi êsse sem vergonha seu doutor! Ela

Serafim   — Perdão! Eu não costumo mentir nem falte r com averdade!

 Mme . Benevides   — Olhe que eu conto! Bom! Lalá   — Eu acho que foi o Tonico... Mme, Benevides (no primeiro plano) — Um dia, eu tinha che-

gado da feira e espiei pelo buraco da fechadura, a tallição de geografia!

 Lalá   — Era ginástica.

Benevides Respeitem êste recinto!

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 Benevides   — Respeitem êste recinto! Lalá   — Com êste frege, ainda não jantei. Mme. Benevides (ao   futuro   genro) — Lata de lixo!

Sai pela direita Lalá — (soluçando) — Serafim, escolha. . . ou você casa co-

migo ou eu vou para um alcouce!

Serafim   — Isso nunca!Vozes   — Então casa! Casa! Casa!Uma voz  — Faz o casamento fiado!Serafim   — Mas andaste duas vezes de forde com o Batatinha! Lalá  — Por isso que eu estava ficando louca lá em casa!

O soldado abre as grades das maxilas. ConduzemSerafim   gado e séquito para debaixo do altar da Imacu-lada Conceição.

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Folhinha Conjugal

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Ou Seja

Serafim no Front

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Quinta-feira

Partida de bilhar com o Manso da Repartição. Jogueimal. Pequena emoção guerreira.

Lalá quer passar o inverno em Santos. Já fiz os cálculose i q e o ordenado não dá mesmo com os biscates

Nota: Não sei ainda se escreverei a palavra "coito" comtôdas as letras. O arcebispo e as famílias podem ficar revol-tados. Talvez ponha só a sílaba "coi" seguida de três pontinhosdiscretos. Como Camões fazia com "bunda".

Quarta-feira

Inesperada enfermidade de Lalá. Cheguei a converter-mede nôvo ao catolicismo. As três crianças berravam em tôrno

do leito materno. Quadro digno do pincel de Benedito Calixto.

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do leito materno. Quadro digno do pincel de Benedito Calixto.Sexta-feira

Chove. Verdadeira neurastenia da natureza.

Sábado

Eu preciso é largar de besteira, me aperfeiçoar e seguir alei de Deus!

 Domingo

Benedito Carlindoga, meu chefe na Escarradeira (vulgo

Repartição Federal de Saneamento) partiu para a Europa, abordo do vapor  Magellan.   Vai se babar ante o saracoteio dersengonçado e lúbrico das personagens de Guy de Maupassant.

Terça-feira

Dieta de cachorro por causa do vinho Barbera que bebi

Resposta de Lalá à minha queixa:— Você precisa pagar a prestação do mês passado, Se

não o homem vem buscar o Stradivarius.

Mais Stradivarius.— Que valsa é essa? — Le  lendemain   du   mariage.

f

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Quarta-feira

Salvas de canhão anunciam o feriado nacional. Não vouà parada. Estou ficando anti-militarista.

Quinta-feira

O bataclan doméstico despenca para a cidade de bonde.Comemos empadas e doces no Fazoli. Depois, cinema. Aolado das ironias vestidas de pano de almofada que constituema minha família, vejo desfilar no écran luminoso os ambientesaltamente five-o-clock da Paramount Pictures.

Quarta-feira

Parece que Deus quer ver no primeiro dia dêste ano intei-ramente evoluída a minha transformação psíquica, tantas vêzesameaçada pelos acontecimentos.

P i i t M Ab il A i d C l ti

Têrça-feira

Vou tomar chá, hoje, às oito horas, em casa do Comen-

dador Sales. É o Manso quem me reboca. Um dia, hei decomprar um Ford a prestações.

 Domingo

Miserável despertar de sensualismo. Releio as apimen-tadas memórins de Jacques Casanova.

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Têrça-feira

Dia dos anos do Pinto Calçudo. Vou dar-lhe de presenteum suspensório azul-pavão.

Volto de nôvo a preocupar-me com o romance que ima-ginei escrever e que acho que sairá com pecedônimo. Tenhoalguns apontamentos tomados sôbre o tipo principal, a jovemMarquesa de M. . . Quando o sedutor, o invencível galã Ál-

varo Velasco, inicia a sua ofensiva por debaixo da mesa de jantar, ela retira bruscamente o pèzinho. Nota humorística: aMarquesa tem um calo.

C ti i id lh d Só j

Segunda-feiraOntem, boa conversa com o Manso sôbre o tipo requin-

tado de Fradique Mendes. Êle mora com uma tia. Almocei lá.Bebemos cerveja.

Sexta-feira

Desenvolvimento imprevisto da tragédia fntima que as DozeTábuas da Lei me obrigaram a fazer. Lalá, depois de uma

vasta fita, propôs o divórcio. Eu aceitei sem pestanejar. Eberrei trepado numa cadeira: A vinculo minha senhora!

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berrei trepado numa cadeira: A vinculo, minha senhora!

 DomingoNada mais incômodo do que esse negócio de ter filhos

sem querer.Para evitarmos os abortos levados a tênno e os outros

que Lalá vive provocando com risco da própria vida, o PintoCalçudo me ensinou um remédio muito bom.

Ontem à noite, depois de têrmos feito as pazes, estáva-mos conversando sôbre Freud, eu e ela e ficamos excitadíssimos.Mesmo vestida, tirei-lhe as calças. Mas quando desembrulhei o

remédio (que já tinha comprado na Farmácia) e ela percebeuque precisava enfiar uma seringa de vidro, enfezou, protestoue fechou as coxas, dizendo que assim perdia a poesia. Foiinútil explicar-lhe que bastava meia seringada, etc. etc.

Quando acabei de convencê-la já tinha perdido tôda afôrça!

Quarta-feira

O Comendador Sales abre-se conosco na Confeitaria Fa-

zoli. Acha que sem recursos não se pode gozar a vida. Con-tou-nos diversas aventuras de amor, pedindo-nos reserva.Ontem, o Manso almoçou aqui. Conversamos a respeito

de moelas.

Quinta-feiraà é

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Vem-me à cabeça a tôda hora, uma idéia idiota e absurda.Enrabar o Pinto Calçudo. Cheguei a ficar com o pau duro.Preciso consultar um médico!

Sexta-feira

O Manso relata-me que um tal Matatias, cunhado de umprimo dêle, nunca teve nenhuma manifestação de sífilis, nemhereditária nem pegada — mas eis que agora está com a vistae a espinha invadidas. Aconselha-me a fazer exame de sangue

em todos da casa.

 Domingo

Decidi traçar um sério programa de estudos e reabilitar

Sexta-feira

Mudamos de residência. Esta tem um quintalzinho deonde se avista o Brás e com binóculos de alcance se distingueperfeitamente a casa do Carlindoga.

Quinta-feira

Fomos visitar ontem, o Dr. Costa Brito. Um grupo deadmiradores. Está hospedado na finíssima Rôtisserie. Pareceum ator. Usa chapéu verde e monóculo. Mostrou-se muitofá l C ôb f lt d idéi t i

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afável. Conversamos sôbre a falta de idéias que caracterizao nosso país.

Segunda-feira

A César o que é de César. Beijei a criada nova.A outra, Lalá pôs pra fora. Andava desconfiada.

É verdade, minha esposa dá ganas de escrever um dramasocial em três atos tétricos. Brigas loucas porque eu gasto

luz demais com minhas leituras! Quer que eu seja inculto!

Decidimos pôr as crias no Externato Barros. Foi o Mansoquem lembrou.

Agradável palestra no Bar Barão com o Comendador Sa-les, o Pinto Calçudo e o Manso, à saida da Repartição.

O Comendador acha que aqui não existe opinião pública.Falou-nos das intrigas e difamações de que tem sido vítima.Não podendo os crápulas igualar-se aos homens honestos, tra-tam de rebaixá-los por meios inconfessáveis.

 Domingo

Lalá fêz a surprêsa de me preparar um quentão com gen-gibre e amendoim. Será que não estou cora a escrita em dia?

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Sábado

Levei o Pery Astiages à Repartição par^ ir com êle depoiscomprar um terno de roupa numa liquidação da Rua 25 de

Março. Acharam-no muito crescido,

Quarta-feira

Ontem, último dia de Carnaval, fizemos o Corso na Ave-nida Paulista. Vaca com o Manso para pagar o táxi. Alémdisso, êle, gentilmente, ofereceu uma bisnaga das grandes à

Lalá.

Mudou-se aí para a frente um meninão que é um Apoio.Se não fosse a jararaca. ..

SábadoVi um sujeito morrer na rua.

Vou convidar o menino aí da frente para fundar um clubede futebol com o Pombinho. Aperfeiçoamento da raça!...

O meu drama conjugai estronda como os rios nas enchen-

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j gtes. Nego-me de pés juntos a acompanhar o bando precatórioao Cine-América. Não vou!

Quarta-feira

Visita de pêsames ao vizinho, Seu Manduca, que perdeua esposa, atropelada por um automóvel imprudente. Está in-consolável.

 DomingoO Manso deu de presente à Lalá um colar roncolho. Eu

não disse nada, mais creio que a pedra maior é falsificada.

Têrça-feiraAniversário da senhora do Senhor Benvindo, Dona Ves-

pucinha.

Terça-feira

Idéias de Pinto Calçudo.

— Para defender a liberdade de pensamento, eu iria àsbarricadas!

Eu também.

 Domingo

O Manso apresenta-me ao literato Pires de Melo. Vamospela garoa até um bar pitoresco do Anhangabaú. Aí, ele ex-

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põe-nos a sua vida que é um verdadeiro chef-d'œuvre. Preci-sava de um mulher para inspirá-lo. Achou-a. Mostrou-nosuma carta e uma fotografia. A carta terminava assim: "Agora,a nossa encantada aventura jaz embelezada pela distância".

Têrça-feira

Diante das razões filosóficas do Pinto Calçudo, fiquei de-terminista. Mas creio ainda um pouco em Santo Anastácio.

O Terremoto Doroteu

S l D téi ! D i d t í ti fi

da mocidade literária. Mesmo os que não na conhecem, aadmiram!

Tomei uma definitiva e irregovável resolução. Mando àsfavas os ciúmes horríveis de Lalá e as eternas tosses compridasdas crianças.

Dorotéia recita: anjos abrem alas em torno dela!

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O homem é um microcosmos! Por assim dizer, um resumoda terra e como tal é guiado por leis imutáveis e eternas. Estoude acôrdo com essas idéias provadas pela ciência. Porém, háas erupções, há os cataclismas!

Ontem, berrei para Lalá:— Defendo o direito das convulsões sísmicas!

Dorotéia é o meu Etna em flor!

Fiz confidências ao Pinto Calçudo. Estou arrependidís-simo. Contei-lhe que ela me mostrou os peitos.

— Lá se gasta menos, e eu posso escrever em sossêgo omeu livro sôbre  Datas Célebres.

Nada disso me preocupa.

O Pinto Calçudo irrita-me com absurdos a propósito deDorotéia. Diz que os aplausos universais matar-lhe-ão a fonte

dos sentimentos puros.

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Passei o dia de fraque.

O Manso rosna por aí que eu fiquei louco. Tenho parame defender a opinião do Pires de Melo que tàcitamente meaprova, êle, o grande literato que passou a vida debruçadosôbre a alma feminina.

Quanta emoção pode ocultar-se sob um guarda-chuva!Acompanhei Dorotéia ao cinema, debaixo de enorme aguaceiro.

é ú

Êste meu lar é um verdadeiro  chemin des dames!x

Ah! Se eu pudesse ir com Dorotéia para Paris! Vê-la pas-sar aclamada entre charutos e casacas de corte impecável! Mascontra mim, ergue-se a muralha chinesa da família e da so-ciedade.

Saio à noite e procuro o Pires de Melo que lê-me pela

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Saio à noite e procuro o Pires de Melo que lê-me pelaterceira vez a sua encantadora novela  Recordação   de um ôs- culo. Ao lado dessa expontânea solidariedade, o Manso acu-sa-me de inconseqüência moral.

Lalá descobre no meu topete um chumaço de cabelosbrancos. Tudo pela posse real da vida!

Dorotéia declamando  Os Elefantes   com mímica apropriadaé um verdadeiro gênio! Fico aniquilado.

Posso dizer que hoje, segunda-feira, penetrei de repente no

— Deus que salvastes Fausto e perdoastes São Pedro,tende consideração!

Pires de Melo, a quem narro detalhadamente o meu caso,resolve-o pelo pan-senxualismo de Freud. Acha que Dorotéianão me largará por causa de certas vantagens...

O fato é que minha vida está ficando um romance de

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Dostoiévski.

Por causa de Dorotéia, vejo tudo possível para mim.: Tri-bunas, Cadeias, Manicômios, Cadeiras Elétricas, etc. etc.

E vejo tudo lùcidamente. Sou o crítico teatral de minhaprópria tragédia!

De nôvo, beijos ardentes na saleta da Pensão Jaú. E ocorpo que desfalece como o de Cleópatra nos braços de CésarBórgia.

D ô h d i l

Sonhei que tinha mudado de sexo e era noiva do PintoCalçudo. Sinal de calamidade!

De fato, o Birimba sumiu da Repartição e Dorotéia fugiuda Pensão, sem pagar a conta.O Pinto Calçudo me informa que estão no Rio, onde vão

trabalhar numa fita intitulada  Amor e Patriotismo.Eu hurlo de dor, pensando que uma objetiva vai enlameá-

la definitivamente ao lado de um cáften!

A d i i t d i ídi

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Ando sinistro, magro e pensando em suicídio.Abstenção sexual absoluta. Continuo fiel à minha perjura.Bem me disse aquela vaca do Pinto Calçudo que ela era

capaz de surprêsas morais!

Confirmou-se totalmente o péssimo pressentimento que eutinha a propósito desse negócio de Dorotéia trabalhar no ci-nema. Os jornais suspeitos e pornográficos do Rio vêm cheiosde alusões equívocas a propósito da cena final do tal filme

 Amor e Patriotismo   em que ela tomou parte. Ela era obri-gada a se deixar beijar como no fim de tôdas as fitas. E oindigno e malandríssimo galã, que não é outro senão o já fa-moso burocrata raté Ernesto Pires Birimba, teve, no momentodo beijo, uma inconvenientíssima ereção que infelizmente foifilmada A Maçã Descascada jornaleco imundo que vive de

de opinião, esqueceu os mais sagrados juramentos, sei lá por-que!

Os sentimentos eternos com que eu contava não se inclinammais para o meu lado. Minha atitude, porém, é absolutamenteestóica e superior.

Acabou-se em fumaça a grande mulher que entrevi nos diasem que me fiz amar.  Souvent femme varie,  já dizia VictorHugo, autoridade na matéria!

Apenas ontem, tive um momento de fraqueza. Foi ante

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p , quma apóstrofe imunda de Lalá contra ela. Chamou-a de es-trepe e marafona! Isso me pôs revoltas no sangue e na cabeçae me deu a imediata vontade de assinar um papagaio, ir deaeroplano ao Rio e justar contas com o miserável que a raptou.

Enterrei a palheta e saí para a rua debaixo do chuvisqueiro.Mas só, andando refletindo sob os lampiões, depois de

um grave tumulto psicológico, senti que meu espírito tomarauma direção mais calma. Fiz um pensamento: "O amor é aamizade reforçada pelo apoio físio-sexual".

E quasi dormi num banco da Praça da República. Com

o frio da noite, acordei tomado de um desânimo enorme. Pro-curei em redor um aconchego e senti-me só.

Entro em casa. Lalá foi com o Manso ao Circo Piolin,l ã N já d Ch l

Testamento de um

L li d F

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Legalista de Fraque

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POR cem becos de ruas falam as metralhadoras na minha

cidade natal.As onze badaladas da torre de São Bento furam a cinza

assombrada do dia, onde as chaminés entortadas pelo bombar-deio não apitam.

É à hora em que eu, Serafim Ponte Grande, empregado

Nem um cão policial nas ruas encarvoadas. Apenas umgôzo voluptuoso de pólvora penetra das ruas que escutam comonarinas fechadas por essas janelas afora!

Num incêndio sem explicações, há um silêncio do tamanhodo céu. Um homem passa debaixo de um saco no cosmoramadesconforme.

Aqui, nesta mesa de jantar, hoje deserta como um campode batalha, minha voz foi sempre abafada pela voz amarela deDona Lalá. E pela do Carlidonga no tardo país que faz contas.

Mas eu sou o único cidadão livre desta famosa cidade, por-que tenho um canhão no meu quintal.

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Minha espôsa, tomada por engano de sensualismo num sofáda adolescência, foi o mataoorrão de meus tumultos interiores.

De noite, às quintas e sábados, fadamos filhos com a cara

enquadrada nas claridades cinematográficas da janela. Pensavano grelo de Pola Negri, ou nas coxas volumosas de Bebê Da-niels. Minha espôsa pensava em Rodolfo Valentino. Os filhossaíram em fila — o Pombinho atrás, com o lindo nome dePery Astiages!

Só o Pombinho é hoje senhor dêste segrêdo de eu possuir

um canhão que os rebeldes abandonaram em meu quintal.Comprei um Código Civil, visto que os jornais anunciamque o povo ordeiro e trabalhador, volta provisòriamente à forjadas ocupações, os mendigos às pontes, os bondes aos trilhos.

Na madrugada branca e brusca, o Pombinho parte de nôvopara a guerra, com uma carabina às costas.

Oficiais parecem estrangeiros que conquistaram a população deolhos medrosos.

Os paulistas vão e voltam, bonecos cheios de sangue.Mas a revolução é uma porrada mestra nesta cidade do

dinheiro a prêmio. São Paulo ficou nobre, com tôdas as virtu-des das cidades bombardeadas.

Assoviam ninhos nas telhas. Na distância, metralhadorasmetralham pesadamente.

O Pombinho regressa de carabina virginal, equilibrando anoite na cabeça de cow-boy.

Uma grinalda de fogo sobe da cidade apagada. Uma re-d ê i d i

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crudescência de tiros.Invadem o meu sacro quintal. Um sargento sem dentes,

um anspeçada negro, um dentista, dois recolutas. Atiram semmira!

Negros martelam metralhadoras. Uma trincheira real ondese digere pinga-com-pólvora! Famílias dinastas d'Africa, queperderam tudo no eito das fazendas — fausto, dignidade car-navalesca e humana, liberdade e fome — uma noite acordandocom as garras no sonho de uma bateria. Viva a negrada! Sa-peca fogo!

E os índios onde os missionários inocularam a monogamia,e o pecado original! E os filhos dos desgraçados co'as índiasnuas! Vinde! Vinde destroçar as tropas do Governador-Geral!Fogo, indaiada de minha terra tem palmeiras!

Coloco o meu canhão sôbre a lata vazia de um arranha-céu.V l lh h f áfi d Sã P l

O Carlindoga, no entanto, era otimista. Achava apenasque não temos cultura bastante. O país só pode prosperar den-tro da Ordem, Seu Serafim!

Vai tudo raso. Parece um curso pirotécnico!Refugio-me num mosteiro e interpelo o abade sôbre a vida

de São Bartolomeu, cuja estátua cheia de sangue tem uma ca-beça decepada nas mãos e um facão de carniceiro. O abaderesponde-me que durante o flagelo da guerra, não se discutempormenores do passado mesmo guerreiros.

Quinhentos refugiados de todos os sexos. Um tumulto naentrada hospitalar. Chegam crianças de camisolas mortas. Vêmgélidas nos automóveis baleados da Cruz Vermelha Um ho

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gélidas nos automóveis baleados da Cruz Vermelha. Um ho-mem. Tem a cabeça desfolhada como uma rosa.

As famílias são átomos. Cheios de corpúsculos polariza-dos. A minha família é um metal que se degrada. Para renas-cer. O Pombinho será o sol de um universo nôvo de bebês.

Sonambulismo. Domingo parecido com um dia qualquer.Gente vadia. Automóveis com lenços brancos na busca derings imprevistos. Nocaute no Govêrno!

O Carlindoga é o reflexo dos altos podêres. O tirano pal-

pável. Contra êle preparo um imenso atentado.Um campo verde, onde há canhões ocultos, uma enfermeira

grande como a caridade. Um automóvel largado numa estrada.Um cavaleiro do exército, lento, subindo por detrás de um ce-mitério, como em  tôdas  as  guerras.  Estalidos de  floresta   e o

i d fl l

Amei acima de tudo a infiel Dorotéia e a minha cidadenatal.

Nunca me vem à memória, senão para odiar, a minha fa-mília, desaparecida com o Manso da Repartição, numa for-dinha preta, na direção da Serra dos Cristais.

Transformei em carta de crédito e pus a juros altos o di-nheiro todo deixado pelos revolucionários no quarto do Pom-binho.

Matei com um certeiro tiro de canhão no rabo o meudiretor Benedito Pereira Carlindoga.

A castidade é contra a natureza e vice-versa.Minto por disciplina social e para não casar novamente na

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Minto por disciplina social e para não casar novamente napolícia.

A noite aterra de aeroplano. Vou pregar um tiro de ca-nhão no ouvido.

Ordem do dia do povo brasileiro: GASTAR MUNIÇÃO.

Noticiário

Serafim Ponte Grande conseguira movimentar o seu canhão.A direção das granadas que tinham vasado como um olho aresidência repleta do Carlindoga, indicava como ponto de eclo-ã d ti l d d d d id d O hã

Abaixo-assinadopor alma de Benedito Carlindoga

Destinado à elevação de uma herma a êsse senhor;traiçoeiramente falecido, como Marat. no banheiro de suaresidência, pelo estouro de uma pérfida granada.

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Serafim P. G 5$000José Ramos Góis Pinto Calçudo 2J400Um anônimo 1$000

O Largo da Sé

Ensaio de apreciação nirvanista pelo Sr. SerafimPonte-Grande-nôvo-rico.

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Ponte Grande nôvo rico.

O Largo da Sé agora está se modificando muito. Nemparece o Largo da Sé de dantes. Dantes era menor. Tinhacasas com tetos para fora e a igreja com uma porção de carros.

Naqueles bons tempos a gente ia à missa mas como derru-baram a igreja e nasceu outra geração que só cuida dos jogosde futebol, e do bicho, ninguém mais vai à missa.

O Largo da Sé começou a ficar diferente por causa dasCompanhias Mútuas e das casas de Bombons que são umas ver-dadeiras roubalheiras mas que em compensação aí construíramos primeiros arranha-céus que nem chegam à metade dos últi-mos arranha-céus que não chegarão decerto à metade dos futu-ros arranha-céus.

Cômputo

Efemérides, metempsicose ou

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transmigração de almas

Serafim como um diamante no dedo da cidade trepa nocanhão que colocou graças aos acontecimentos sôbre a oscilantebanana do arranha-céu onde inùtilmente se apresenta candidatoa edil,

Intermezzo

Ora, a  fornicação   é deleitável,..

Sã T á d A i D M i

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São Tomás de Aquino — De Maio

— art. 9 — ad 7 — q III.

 Dinorá a todo cérebro

ou seja

 A estranha mulher do Copacabana Palace

ou seja

A it di h d H t l F li

— Como são finas as tuas meias!— Malha 2360— São duráveis?— Duram três, quatro horas...

O mar lá  fora  urra querendo entrar em Guanabara.

— Não. Lindas são as minhas calças. Olha, ninguémtem êste recortezinho... Mas como estás mudo. . . sem es-

pírito . . .— Comovido porque te conquistei...— Não Não é uma conquista

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— Não. Não é uma conquista...— Que é então?— Uma revanche...

— De quê?— Da vida.

O  telefone   estraçalha o silêncio.

— Alô! Quem é? O tintureiro? Faça subi-lo! Espere!

Não faça não! Recebo-o amanhã às três e meia. . . Lá  fora   o mar.O mar sem par.  Serafim   amanhece. Ela o envolve,

 o laça. Ê uma mãozinha que tem cara, cabelos de recém-as id à la ga

— Sentir que o coração se comprometeu nesta vasta -aven-tura de três dias! Perguntaste-me se te quero um pouco. Amo-

te! Porque és a resposta no vasto diálogo telefônico da vida!Falaste-me em embelezar os dias que passam. Com outra, euteria rido às bandeiras despregadas! Mas a tua simpleza. . . atua naturalidade...

— Bárbaro!— Não! Oh! Porque te prendo na atmosfera que tu mes-

ma criaste. Porque te reduzo à menina permanente, curiosa,sentimental que existe em tôda mulher!

Lá fora o mar. De par em par. Ela baixou a ca-

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 Lá  fora   o mar. De par em par. Ela baixou a ca beça. Perdeu a sintaxe do coração e as calças.

— Nunca julguei que fosses tão forte!

Serafim   vai à janela e qual Narciso vê, no espelho das águas, o  forte   de Copacabana.

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No Elemento Sedativo

d

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onde

se narra a viagem do Steam-Ship

ROMPE-NUVE por diversos oceanos.

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 Burrada e paquebot

Na véspera da Pascoela, se tendo abalado em fuga comum fígaro de damas Dona Dinorá — o nosso herói por sua veztoma bordo e barco a querosene e vela no Steam Ship RompeNuve, luxuoso e rápido paquête que seu fiel secretário JoséRamos Góis Pinto Calçudo pasmara em ver com a fumaça deseus três apitos nas folhas e cartazes do Rio de Janeiro

de bôlso de sua lavra para não confundir nem esquecer as pes-soas que conhece ou conheceu.

A

 Adeiina Cinira   — Atriz que amei em silêncio. Amélia  — Minha ama de leite.

 Amelinha  — Filha da precedente. Arnaldo Bicudo   — Célebre pintor de letreiros. Aguiar Nogueira  (Dr.) — Médico gordo que me curou

de recaída de gonorréia

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de recaída de gonorréia. Adauta Bernardelli Schubert   — Professora sistema Ber-

litz. Ia sempre passar os domingos e dias santos nua no mato,

segundo os civilizados costumes da Europa. Arari  (Dr.) — Padrasto de meu amigo de infância Ju-quinha.

B

 Belmiro   — Sujeito que conheço pouco. Birimba   — Pirata da Repartição e vendedor de cocaína.Acaba na cadeia. A sua fama entre as moças é porque é ba-liza do Esport Clube Sírio e nos dias de parada sai na frenteseminu, mexendo aquele negócio.

C l Fl ê i G d t i édit f l id fl

D

 Dorotéia Gomes  — Sapo e nuvem.

 Diva Ismênia   — Sonho que embeleza a adolescência trá-gica do poeta Carlos Florêncio. Se tivesse coração, se sui-cidava.

 Domiciano Bombeiro  — Herói das chamas!

E

Seu Efigênio   — Marido da Gija.

F

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 Filoména  — Sujeita amalucada.

 Mme. Firmina  — Estréia de primeira grandeza da Com-panhia de Óperas e Operetas Salvaterra. Pernas dignas demuseu!

G

 Dona Guiomar  — Senhora importante da sociedade. Co-nheço-a de ouvido.

H

Helena — Filha de Seu Hipólito.

 Justiniano  — Criado da Pensão do Galo, onde passei aresidir.

K Klober   — Sábio alemão e massagista. Meu vizinho de

quarto. Kathe   — Baleia que amei uns tempos.Seu Kuk   —• Alemão que fazia criação de gatos de raça.

Faziam troça com o seu homônimo corporal.

L

Lino Garganta

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 Lino  — Garganta. Lulu Jangada — Arbitus elegansiorum!   Seu campo de

ação é o Triângulo.

 Dona Lalá   — Jovem e carinhosa espôsa de meu prezadocolega e particular amigo Serafim Ponte Grande.

O que lendo o nosso herói fecha fragorosamcntc nessa pá-gina o índice e o atira às águas revoltas do oceano exclamando:

— Pintérrimo, tu erraste!

Onde se constata a existência de Mariquinhas Navegadeira, pesando 41 quilogramas e precavida de 25 tickets corresponden-tes a outras tantas bóias na Cidade-Luz para onde vai de mu-

E se queixa de que a foram indecorosamente espiar pelosóculos da Casinha de bordo, quando em acrobáticas posturas.

O Comandante sorri como Noé e Capitão Leão comenta, julgando estranho o caso:

— Nunca isso me aconteceu na vida! Até esta idade,ninguém me espiou nesse lugar!

Mariquinhas navega. Navega Mariquinhas Navegadeira..

 De como Pinto Calçudo querendo jazer esporte,   enfia   no óculo da cabina um pau comprido e rema, produzindo um grave desvio na rota do transatlântico que aporta inesperadamente ao Congo Belga.

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O reverendo de bordo sentado na sua cadeira de vime elona, relê outra vez o sermão de São Pacômio, de que tinhaperdido a página.

Capitão Leão insiste junto a inconquistada Mariquinhaspara que veja a linha do Equador, oferecendo-lhe óculos degrande alcance.

Alhures, discute-se sôbre a Guerra de Tróia que duroudez anos por causa das descomposturas antes dos combates.Quando do mais alto mastaréu, o vigilante vigia descobre

uma trave de enxofre no mar das descobertas. A nova seespalha comovidamente.

Terra! É Jerusalém!

A fim de trazer uma recordação do povoado chamadoCongo Belga, negociam Pinto Calçudo e seu amo um saborosoe gran cuscuz, antes do embarque.

E vendo de novo do lado estibordo a desolação verdolenga

do mar que parece o Pássaro Sem Fim, o nosso herói recosta acabeça, morde o salva-vidas e chora de saudades de Dorotéia,seguindo o exemplo do Último Hamlet que, de botas e esporas,também soluça na Cabina P. 2.721 Deck D J — V P., porcausa de outra marafona, recolhida pelos pais a um conventode freiras em Buenos-Aires.

 Em que se acabam as bolachas do Rompe-Nuve e do re- médio que a isso se dá.

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q

A criada de bordo verifica na dispensa que Pinto Calçudoe o Ültimo Hamlet avançaram nos derradeiros quilos de finasbolachas inglêsas tão geralmente apreciadas nos five-o'-clockdançantes de bordo.

Serafim Ponte Grande, arguído e vexado, oferece em pali-nódia o seu apetecido cuscuz que é logo aceito, dividido era

fatias e servido na mesa do Comandante, na mesa do Guardião,na mesa do Ültimo Hamlet, na mesa da Quiromante de Marse-lha, e por engano em outras mesas que ficam muito agradecidas.

E Pi t C l d t d d â i l d

Eis senão quando na atenciosa madrugada, José RamosGóis Pinto Calçudo que se conservara insone de camisola, vaibater resolutas pancadas no confessionário do padre que acor-

dado se diverte ouvindo as matinas de um gramofone.— Meu pai! esconjura o recém-aparecido. Pare essa ca-

ranguejola! Como vejo que esta encrenca não desamarra, omelhor mesmo é confessar e comungar! Mas a deficiência dasinstalações desportivas deste transatlântico é que me fêz ter ahorrível lembrança do que planejei e consumei. Fui eu, fui eu

meu Pai, que virei o Rompe-Nuve para as fornalhas do áridocontinente. Minhas clavículas e biceps careciam de remar.Passei um pau comprido pelo óculo do camarote.,.

Padre Narciso surge em ceroulas de cadarço!

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Padre Narciso surge em ceroulas de cadarço!— Cadê o pau, meu filho? Onde está o pau?O infeliz soluça de joelhos.— Atirei o pau no Atlântico!A primeira providência tomada em conselho pelos maiores,

Guardião, Mestre, Contramestre e Jota-Pilôto é campear o pauperdido nas ondas.

Mas como Pinto Calçudo posto a ferros quentes, descreve

o fatídico remo como sendo apenas um corrimão de escada,furtado na calada da noite, ordem se dá para que tudo queseja pau, varejão, porrete, mastro, mastaréu, taquara, verga,chuço ou manguara seja urgentemente arrancado e enfiado atítulo de remo nos óculos das cabinas.

E os turistas a postos mergulham esperançosamente as hé

a massa branca do almôço mal digerido e apressadamente osstewards e stewardesses o conduzem de maca para a cabina.

À noite, a pedido de diversas famílias, o Rompe-Nuvepára da volada em que vai, a fim de se promover uma exibi-ção de filmes que é levada no alto da chaminé do navio paratodos enxergarem e rirem, seguindo-se depois um disputado lei-lão de prendas, em que o secretário de nosso herói revela emostra as suas capacidades de leiloeiro.

 De como um papiloma chamado berruga vegeta inopinada- mente na cabeça de Pinto Calçudo e dos transes que êlç vem a passar

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Tôdas as manhãs, na ânsia de descobrir portos, ilhas econtinentes, o ativo secretário resgatado pelo ouro de Serafimtrepa no pau-de-sebo-da proa e espia improficuamente os hori-zontes uniformes.

O Grumete que dá a mão na escada delicadamente o inter-roga sôbre a natureza e origem da protuberância que se espe-

vita dentre seus ralos cabelos.Pinto Calçudo coloca rapidamente a mão no crânio e senteum calombo duro, Procura inùtilmente torcê-lo e arrancá-lo.Horrorizado busca um espelho com a Quiromante de Marselha,depois outro maior com Mariquinhas Navegadeiras.

É uma berruga dizem todos unissonamente

 De como o impávido Capitão Leão após ter produzido um soneto se atira ao pélago verde mar pela vigia do bergantim.

Eis senão quando o mocinho serviçal do salão de barbeirotendo ensaboado as bochechas périclitantes do ínclito militar emquestão, entabola com êle o seguinte diálogo:

— Então Séu Capitão, tem gozado muito as pequenas de

bordo? Vieram me dizer que o senhor não casa com DonaMariquinhas Navegadeira porque ela corta o cabelo  à la caniche!

— Mas ela parece ser uma môça séria!Q é i ! A i i t i t

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— Que séria! A primeira vez que entrar aqui com partede pentear as pestanas, eu dependuro nos beiços!

— Mas ela é virgem. ..— Virgem? Só se fôr no sovaco! Pois eu conheço um al-faiate que passou um mês e meio com ela, em Santos, fazendotodos os números.

O Capitão visivelmente traumatizado, deixa-se inundar depé-de-arroz Azurea, de loção Anticaspa e de extrato de Me-lancia orgânica.

Chegado ao beliche, toma de uma máquina de escrever eassim começa os quatorze versos de um sonêto:

 Nunca pensei que tu não fosses virgem!

Findo o qual, bebe de um trago o vidro de tinta e afunda

Em nova conferência, os esculápios comentam e aprofun-dam o estranho caso.

— Para mim trata-se de um simples tumor inchado...

— E se fôsse uma mordida da môsca Tsé-tsé?— Ora, caro colega, o paciente continua acordado e trê-fego.

— Que idade terá êle?— Mistério tão grave como o da virgindade de Dona Ma-

riquinhas!

— E se empregássemos a electrocução parcial?Todos concordam num gesto unanime e ordens são dadaspara que chovam raios de T.S.F. sobre a pontiaguda excres-cência.

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Logo para as grandes festanças de bordo, comemorativasda passagem da linha do Equador, improvisa-se uma enorme

piscina sem peixes nem carangueijos, nem siris.Aí, Pinto Calçudo passa nu horas e horas, impedindo queas damas se utilizem de tão agradável refrescantc, aliás infec-cionando pela sua asquerosa berruga.

Chegada a hora da Festa de Netuno, o nosso secretáriocom umas barbas postiças faz de Deus dos Mares e a graciosa

Mariquinhas de Deusa dos Ventos, jogando nágua Serafim eoutros inexpertos viajantes, sob o jocoso pretexto de batizá-los.No banquete o resto do champanhe do Rompe-Nuve es-

poca e baba nas taças. Mariquinhas e Pinto Calçudo entoam demãos dadas o célebre dueto do Rigolleto, no que são interrom-pidos de furiosos aplausos e bises

E tratando-se de desenhar o "ôlho do Porco" da cara ven-dada, Pinto Calçudo não tarda em produzir no soalho do tom-

badilho uma piroquinha, razão por que o Capitão apita, oRompe-Nuve estaca e quatro robustos marinheiros o agarrame trancafiam nas marmorras do porão.

Onde a berruga intercepta um radiogramma em que se  fala

 de piratas e do doce alvoroço que isso causa a bordo das cabinas femininas.

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A providencial e horrenda berruga do malogrado secretá-rio faz com que não muito se prolongue o seu segundo cati-veiro.

Mais que ninguém, após o sucesso do dueto do Rigoletto,a jovem e apreciada Mariquinhas Navegadeira inquieta-se pelaevolução clínica do papiloma que todas as manhãs é estrale-

 jado de raios na cabina telegráfica sem fios. E consegue umvale do Comandante para acompanhá-lo como fiel enfermeirade avental e bidê, piedosamente seguida pelo Ültimo Hamlet.

Num lindo ocaso, estão todos locupletados de gim, can-tando ao ar livre, em redor do piano onde gaiatamente se sentaPadre Narciso.

Ei d álid t ê l t M i i h N

Enquanto Pinto Calçudo assim se expande para um par-ceiro de poker chamado Paulino Guedes, o argentino reúneum luzido grupo de senhoras e senhoritas no bar e oferta-lhèscocktails, mandando convidar o zangado brasileiro a fim de ter-minar a briga em risonha tertúlia. Mas Pinto Calçudo dobra-lhe duras e indignadas bananas.

Muito diversamente, o nosso herói entregue a nobre cogi-tações, produz os seguintes versos que passam de mãos em mãos

com justos louvores.

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POESIA DE BORDO

A noite desce qual um pássaro inclemente.Sôbre a gran vasta amplidão.Nem uma canoa no grave horizonte marinho.

Só zéfiro acaricia.O crepe-santé da água quando tudo invade.O mantô da Nostalgia.Numa lúrida e doentiaMas agridoce saudade.

Tudo são cantosTudo são gritos

Tudo são mantosDe luz e apitosÀs vezes. . . do Capitão

 Movietone

ou

 Interpelação de   Serafim   e  definitiva   quebra de relaçõescom Pinto Calçudo

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 com Pinto Calçudo

Aparecido que foi o frio anunciando o pôrto de Marse-lha, os passageiros do Rompe-Nuve num só gesto põem luvas,echarpes, sobretudos e agasalhos que fazem a sua aparição comas dobras e os fedores das malas.

Na noite estrepitosa Serafim passeia para cá e para lá.

Chçgando-lhe os ruídos da farra de despedida em que a voz nasalde Pinto Calçudo tudo domina, produzindo balbúrdia e riso.Vendo-o levantar-se tragando um cigarrinho e se dirigir

ao W. C. o nosso herói intercepta-lhe a marcha e passa-se entreambos o seguinte diálogo:

Venha cá

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Cérebro, Coração

e Pavio

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M mês após, um homem trajando violentas polainasdcmi-saison subia calmamente a Avenue des Champs Elyseésem Paris.

Os leitores já terão adivinhado que era Serafim PonteGrande.

Sob o elefante pedrês da Étoile descobriu se ante a flama

PERN' INO

Saia brancaEngomada

Das avós brasileirasRepolho de pecadosFábrica de suoresNinho de bebês

Onde estás?E ?

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Em que arca?

Saia de dançarinaDas senhoras honestas

De meu séculoRala

Pétala

Vais subindoE deixando verNas ruas, nos bars, nos automóveis

Os troncos florestaisOnde eu mergulho

diatamente as senhoritas Tzatzá, Chipett e Dedê c com elaspasseia e faz confidencias.

Tzatzá e o chinês das fourrures. Chipett e o prêto dos

tapas. Dedê e Serafim dos bons modos.Estamos em Montparnasse.

PATINAGEM

Grudam-lhe lâminas nas sólidas patas e soltam-no comoum palhaço para gôzo de Dona Lalá

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um palhaço para gôzo de Dona Lalá.

O Palais de Glace funciona na música.

NOITE DE ESTOPA

Serafim entre as pernas de uma radiola. 3 horas e 21minutos nos relógios deitados. Silêncio de nozes.

 Ela   — Como você ronca!

DECEPÇÃO D'AMOR

Nas 24 horas seguintes, êle tropica numa italiana cinema-tizada do Hotel Lutetia e combina de jantar e suarem juntos.Mas quando êle foi buscá-la num elegante táxi, ela fugira nosabraços de um gigante para o Alcatrão da Noruega.

ÉPOCA MAQUINISTA

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ÉPOCA MAQUINISTA

— Major Duna Sabre, ex-ferido da Conflagração! Apa-reço-lhe no meu papel. O de vir ao seu luxuoso hotel, ofere-cer-lhe, já que está na Cidade-Luz, a última invenção dos in-cendiados bulevares! A Mariquinha do Livre Arbítrio! Nemmais nem menos. Funciona como fonola, também como radio-la! E como Paris-viril. No segundo centenário de Kant, fui euque instalei a primeira em Koenigsberg! O professor Freud, deViena, encomendou-me sete dúzias! Trabalha com pilhas sêcas.No automóvel, no autobus, no avião, no watercloset! Decideas indecisões! Mata na cabeça as abulias! Diverte remoça

Tôdas as noites veste o pijaminho que lhe compraste nas Ga-leries Lafayette e soca uma bronha em tua honra!

Serafim entre pundonoroso e encantado pára a imoral.

OS DRAMAS DA ÓPERA

Carta para ser lida daqui a oito dias, quando eu estiver completa-

 mente morta e podre!

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Minha querida mamãe natural.Esta noite, mais do que nunca, sinto-me só, brava e re-

gànhada!Só verto sorvetes de sangue pelos olhos, pelos lábios e

pela bôca.Nem tenho mais coragem, nem fé, nem níquel!

Depois que me encontrei Chez Hippolyte, com o infamebrasileiro Dom Serafim que diz que é nobre! sou uma bacia,uma taramela!

Joaninha

Reflete antes de te matares! Reflete Joaninha. Principal-mente se ainda é tempo! És uma tarada.

Quando te conheci, Chez Hippolyte querias falecer dia enoite. Enfim, adeus.

Nunca te esquecerei. Never more! como dizem os corvos.João da Slavonia.

CÜCEGAS

Na mesa perniciosa do Barão Tapavento, Dona BrancaClara, rainha da beleza, belisca-o. Por que? Por que Dona

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C a a, a a da be e a, be sca o. o que? o que o aBranca Clara o beliscaste-o?

Mas ei-la que sorri como um isqueiro:— Escuche Dom Serafim. Eu lhe falo com todo o desca-ramento de que uma católica fogosa é capaz. Um homem sóbolina e diz que ama para fazer da protagonista duas coisas —ou sua espôsa ou sua sobrancelha. ..

Serafim some pelo escapamento

O AMOR — poesia futurista

MISSIVA A UM CORNO

Coronel

Enganei-lhe com um cavalheiro ignorado. Foi devido aum coup-de-foudre! Subi ao quarto dêle, na Rua dos Már-tires. Fiz o amor e tive uma grande desilusão.

Joana a louca

P S C i t á id ! O i d S E

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P. S. Creio que estou grávida! O pai deve ser S. Exa.

o fura-camisas!

NUIT DE CHINE

— Branca, oh Branca Clara! Que posso esperar enfim,depois de tanta sala de espera?

— Mas que deseja?

D I E T A

No céu quente da Lorena, há um cheiro de pinheirais dosVosges, outro de fromage à la crème e outros cheiros.

É quando uma francesa pintada de inglêsa briga com oPavilhão de Ceres, donde tira carinhosamente um animalzinhoachado nas ruas internacionais de Deauville, o ano passado.E dá-lo ao nosso herói como recompensa de ter-lhe apalpadoas pernas num autobus.

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O cachorrinho é branco malhado de marrom como convém

a um legítimo papa-ôvo.Comovidamente e orgulhoso, o neo-proprietário batiza-ode Serafim Ponte Pequena. E leva-o laçado nas areias dasaléias, projetando sorrateiramente com êle afrontar num táxi doMarne, a Avenida des Acacias,

O IMPÉRIO DE BABILÔNIA

— Vamos tomar o trocinho, meu bem?— Vamos.. .Abrem o frasco hospitalar. Mergulham na atração im-

ponderável, como baratas.— Fala-me de tua imensa chance...— Que chance?— A tua fortuna!— Ahn! Umas terras que herdei no Rio do Peixe.

Vácuo de pedra pomes. Mais trocinho.Uma atração sexual nas lâminas sem pêso. A ronda dasfechaduras atrás dos trincos. Um frio estupefato, de narizduro. Os corações maratonam como sexos.

Pompeque assusta e ainda lambuzada ela lhe pergunta o

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p q p gque pensa da atitude de Benjamin Constant para com o impe-

rador.— Não foi um ingrato?!

BAR AUTOMÁTICO

—• Fivom! Roo! Êste negócio de cocktail e cachorrinhoacaba é na cadeia! Perdeste meio milhão de francos papel na

A AULA

Serafim   — Gosta você de cabeça de Medusa!

 A aluna   — Pará comer nos sentamos diante da mesá nos

pomos uma guardanapô nos petôs.Serafim   — Gosta você, cenorita, do cheiro do gás?

 A aluna   — Náo! Eu náo gostô do cherodogaz porque édeságra-vadel!

S fi T ê lêt á ?

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Serafim   — Toma você o lête com azucár?

 A aluna  — Sim. Eu tomo o lête com azucár. O relójotem duas ponteiros, uma grande e uma curto.

Serafim   — Gosta você do professor?

 A aluna  — A-pi-za-do-pro-fe-zor-é-de-lei-ta-vél!

O relógio intervém. Confusão de línguas.

F L O R I D A

peludos segredos. Serafim quebra como um arco, como umestilingue, como uma frecha, como um banco.

Em cima, Deus Nosso Senhor tendo ouvido os gritos damúsica, abençoa os pares de Floridá e remete anjos vestidosde garçons jogarem sôbre Paris bolas azuis, bonecas e tetéias.

NOTURNO

— Ih! Ih! Como eu sou uma grande desinfeliz!Por que madama? Conte me o seu romance!

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— Por que madama? Conte-me o seu romance!

— Nós tínhamos uma fabrica de sapatos mas meu maridopôs tudo fora. . . na belote!— O que êle fazia?— Era aviador de loopings. Mas não me apalpe!Magine se Madame Cléo de Mérode me visse!

SERAFIM MENESTREL

E. R. M.De Da Ponte Grande

Depois de devidamente selada no envelope com uma es-tampilha federal de 21500, e reconhecida a firma, a missiva é .entregue ao groom do hotel.

RÉPLICA

SenhorNã ti ! P é! P l d ã ! Nã

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Não continue! Por quem é! Por alma de sua mãe! Não

me faça mandinga!Vossa gentil missiva, pôs-me em grave "peligro". Decejopartir, fugir, fazer o golf, jogar peteca, me distrair, levar abreca!

Branca Clara

MADRI

Quando os foquestrotes mudam da languidez balanceadapara pernas de passos longos com uma tabua na cabeça de

hemisférios engastados.Serafim segura o hálito de Branca Clara, os cabelos detodo o corpo depilado, o ventre que indica o gêlo central daterra.

INTERNATIONAL-SUMMER

Nove horas de verão A tarde provinciana demora a ver

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Nove horas de verão, A tarde provinciana demora a ver

se vê os efeitos luminosos. Caçadores de vermelho povoam defornos a tarde metálica sôbre o cabo da torre em luva de Cham-pagne.

Do outro lado, sôbre a Tôrre vertical de Paris, uma radiolafoquestrota para outros planêtas.

Enquanto isso, a Tôrre Eiffel descobre para que foi feita

e pisca o b-a-bá de Citroen.A lua medalha em prata a Exposição das Artes Decora-

tivas. Ano 25. Século de Serafim ou da Fortuna Mal Adqui-rida.

GIGOLOTAGEM

No Perroquet vendo-o dançar o visceral charlestão com asporcelanas renovadas por um dentista épatant, já se chucho-

tava interrogativamente de grupo à mesa:— Quem será êsse nôvo e estranho professor?

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MUSICÓL

A floresta brasílica e outras florestas.Mulheres fertilizantes conduzem colunas, arquiteturas e

hortaliças. Música, maestro! Matéria orgânica!

Corbeilles monumentais atiram do sétimo céu dos coposbrancos ananases de negras nuas.Periquitos, ursos, onças, avestruzes, a animal animalada.

Rosáceas sôbre aspargos da platéia. Condimentos.  As  partespudendas  nos refletores. Síncopes  sapateiam cubismos, des-

Paris está horrível. Cheio de amas de leite e sem leite,desembarcadas do canal.

Do teu

Pequenérrimo

SERAFIM NO PRETÓRIO

O BORDEL DE TÊMIS

OU

DO PEDIGREE DE POMPEQUE

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DO PEDIGREE DE POMPEQUE

Salomão   — Vocês aqui em França têm o hábito de subs-tituírem os meninos e meninas pelos cachorros e cachorras.

Serafim   — Eu não sou de França, Excelência! Venho,através de algumas caldeações, procurando refinar o.tronco

deixado numa praia brasileira por uma caravela da descoberta.Tronco que se emaranhou de lianas morenas...Salomão   — Ná! Ná! Ná! Está a gracejar? Mas a mim

que vivo de conhecimento e argüição do bicho homem não meilude. Quer por ventura afirmar que o príncipe da Gran-Ven-

 juiz, porém, não discute. Aceita a versão queixosa e con- dena os imprudentes  automobilistas  a cem  talentos  de multa ouro.

O  réu-lider   — Isto é que se chama uma verdadeira arbi-trariedade! Um cachorro sem raça nem jaça! Papa-ôvo legí-timo! Um cachorro que vivia no meio da rua, cheirando —com perdão da palavra — dejeções cavalares!

Serafim   — Não é fato. Eu tive muita e muita vez o

cuidado de atravessar os bolevares nas horas de movimento comêle ao colo. A co-ré   — Senhor juiz. Foi então uma fatalidade. V.

Exa. não ignora que os automóveis são feitos para deslizarno asfalto embriagado das vias públicas.. .

S fi M ã b t b d

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Serafim   — Mas não para esmagar pobres e vertebrados

animaluscos!Salomão   (berrando) — A argumentação do queixoso é

invencível! Confirmo a condenação conforme o art. 439 g. P.?E do Código do Meio da Rua.

Os réus, de cabeça baixa, retiram-se do banco dos réus e vão ao Banco dos réis. Pagam a multa ao huissier com um cheque de   fundo   falso.

Serafim   — Afirma-se no meu espírito a noção que eu sem-

Salomão   — Era um cachorro de grandes virtudes!Serafim   — Algumas. . . Sabia muito bem fingir que tinha

falecido. E latia muito nas fortificações. Infeliz Pompeque!

 Levanta-se a audiência, inserindo-se na ata um voto de  profundo   aborrecimento pela  desmaterialização  de Pom- peque.

POEMA OVAL

Eu gosto de ovos

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Eu gosto de ovos

E de balas de ovosE de ovos durosCom lingüiça alemã

E boa cervejaEu gosto de ovos mexidos

Poached & scrambled

Com bacon & toastEm LondresE chá da ChinaMas gosto mais— Lá isso gosto!

— O uranismo entrou em franca decadência...— Sim, a promiscuidade...— Perfeitamente, a promiscuidade, como nos povos an-

teriores ao alfabeto...Estréias verticais passam na noite de cantos negros.— E sôbre o eterno feminino?— Adoro as mulheres de Dumas Filho...— E os homens?— Os de Dumas Pai!

— Garçon! um gin sêco, um side-car e especiarias!Nosso herói oferece ao jovem môço recondução, hotel evias urinárias.

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POR ROSAIS E PAVILHÕES

Branca Clara faz a bôca em canudo e chupa êle até amoleira numa quentura mole, dente no dente.

E como se perdem na longinqüidade de Fontainebleau,estando a noite repleta de fantasmas no Hotel Gravurado deFrança e de Inglaterra, jantam em Cornebiche e conseguem umúnico quarto d'hotel duvidoso como o Éden.

Despiu-se brandamente como uma fada que vai dar um

TARAS

Apesar do sabonete inglês de verbena que aprendeu acheirar em Deauville, apesar mesmo das cavalgatas sincrônicasno Bois, como side-car — não admite que os garçons ergamos guardanapos caídos durante as risadas empernadas dos jan-tares.

VITA NUOVA

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VITA NUOVA

Mas eis que Branca Clara é um frio sortido no jantar pára-sol da Pomme d'Api. Caem na noite e no deserto da noitea mulher aparece no deserto da vida. Como uma víbora mo-rena no contato bem tratado da carne.

Que serviu de tê-la tida?A despreocupada allure azul de campo de golf em quintochá, toca para o Claridge, toca para o Ritz, toca para o Rumfp-pelmeyer.

Serafim resolve posar para o busto da humanidade sofre-

— Oh! Vós me fazeis corar!A berlinda passa no quilômetro 69.— Morde minha estegomia!

SAUDADES

Entre montanhas quadrilongas, caminhos saem menstrua-

dos à procura do Brasil mas logo parapeitos da minha cidadeatropelam torres antiguas que são hotéis modernos e as palmei-ras são brinquedos da Rua das Palmeiras.

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DE PAPAGAIO

Nosso herói para esquecer busca a Suíça como um relógiopor via aérea. Na primeira classe do aerobus encontra o Gover-nador de cavanhaque da Cochinchina que torna-se seu amigo

comentando ambos com ardor o caso duma americana bêbadade uísque que quebra a vidraça e quer jogar-se lá embaixocomo ícaro no que é impedida pelos seus criados.

— Não! Caro Senhor da Ponte Grande, mas que educa-ção é essa, a dessas mulheres de hoje? A culpa é da Rússia!

repetindo a frase do seu nôvo amigo, o Governador da Cochin-china.

— Não! Mas que educação é esta? Estaremos por acasona Rússia!

SERAFIM NOS LAGOS

Pedregulhos vadios de Ouchy que nasceis entre montes demontanhas, diríeis as férias quando o trem passa para a Itália.

Sob o chalé da floresta funicular recenseada, florindo emflores, mitifones e livros.

Um gramofone sentimentaliza o planêta e a alemãzinha

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g p

atira os seios como pedradas no lago.Serafim trança o braço na cintura remexente e parte pelaaléia pedregosa que pesponta os jardins.

Por ela deixaria a agitação, o furor, o bacará. Teria suapaz em pijamas, sua loira em chinelas. Mas passa o passadocom Dona Lalá da Delegacia.

Seus olhos afrouxam sem corda com uma bola de tênis nosapato. Voltam competentes para as felicidades assustadas.A Suíça é um sanatório.

Visitam depois o Louvre, a Tôrre de São Jacques e o Arcoda Étoile que, segundo o chauffeur, já foi derrubado váriasvêzes pelos comunistas e reconstruído pelos capitalistas.

Ambos concordam que a França é eterna.

CONFESSIONÁRIO

Prezado e grandisíssimo Sr. Sigismundo.De regresso a Paris encontrei minha ex-amante, Dona Bran-

ca Clara inteiramente nervosa.Vive sonhando que tem relações sexuais com Jesus-Cristo

e outros deuses. Isto é demais! Peço-lhe o socorro da psica-

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nálise. Junto lhe envio o pesadelo de um dos seus espécimensou um espécimen dos seus pesadelos.

Grato pela solução.

P. G.

O aviador zangou-se. Começou falando baixo e pouco apouco levantou a voz e tirou para fora o pênis. Eu fingi quenão vi e por isso fui condenada à morte. Jesus-Cristo tam-bém. Estávamos numa sala muito comprida e cheia de recados.M i i il i d Tí h ã d

Compreendi que tinha sido vítima de uma cilada enquanto caíadesfeita em faíscas. Que dor!

RECEITA

Ilustre balaústreSó um acôrdo com o subconsciente de Dona Branca Clarapoderá esclarecer o magnífico negativo que tenho em mãos erevelá-lo. Parabéns pelo monstro que tem em casa. Mande-o.

SigismundoDiagnóstico: Dona Branca Clara é uma vítima da cristia

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Diagnóstico: Dona Branca Clara é uma vítima da cristia-nização do Direito Romano também conhecida pelo mote deCivilização Ocidental

Seu José, assistente

A Cabaçuda

chega da Côte d'Ivoire trazendo um dente de elefante que tema aparência de um côrno.

Vão todos ao baile de Magic-City.

LA BANANE

DANCING MÉTAPHYSIQUE

Apesar de ter achado o Bal Nègre, última invenção, piordo que qualquer baile de quarta-feira de cinzas na Favela, nosso

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herói resolve dinamitar o cérebro e a memória em companhiado célebre Raymo banqueiro marital com a própria senhorasua mãe. No corredor sonoro onde reservava mesa, tem logoem frente, atrás, do lado, em cima, Carlito, Gloria Swanson,Georges Carpentier, Raquel Meller, Einstein, o Dr. Epitácio ePicassô.

O serrote das florestas atávicas o irmana sem barulho àsorquestras mulatas e coloniais. Nem êle inùtilmente disfarça.Sôbre as peles despidas por Poiret, Patou, Vionet, Lanvin, ca-lombos crescem de perlas, e verrugas verdes de safiras, guin-

SURUMBA

Parede um cigarro caipira numa tabacaria de Old Bond.Nos halls milionários sentam mulheres de pernas ginastas

vestidas de defloramento, em mauve, em azul, em cardeal, emcocktail, em fumigação. Largando as cascas de papagaio e ja-guatirica, para o esfregamento dos tangos matemáticos. Dosblack-bottom massagistas.

Conduzidas por uma geração invertida desembarcando docinema com óculos, cabelos engomados de índio, músculos de

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, g ,

ring.— Tm sorry sir!

No bôlso do seu colête chamalotado por Sulka inventariar-se-ia uma palha tresmalhada de milho e um canivete Roge com-prado no mercado de Mogi.

Raymo, o banqueiro, introduz nosso herói nos escritóriosda Interastral Quanta & Radio Railway. No cheiro automáticoa bundinha de cada stenô senta-se cientificamente ante a letradum alfabeto cego e a borracha dos papéis perfurados pneu-

Êle é apenas o que os jesuítas estragaram — magro, des-confiado e inocente no Concêrto das Nações enriquecidas pelaReforma.

Mas é o paladar mesmo da aventura.

ESTADOS UNIDOS DO BRASIL

Rios, caudais, pontes, advogados, fordes pretos, caminhosvermelhos, porteiras, sequilhos, músicas, mangas.

E no fundo os juncos milenários, as caravelas e os ma-malucos.

Como foi! Como foi! Pinto Calçudo atolou numa fran-

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Como foi! Como foi! Pinto Calçudo atolou numa francesa. No país animal foram as senzalas que mandaram as pri-meiras embaixatrizes aos leitos brancos.

BIBLIOTECA DA JUVENTUDE

O Merediano de

Greenwich

ROMANCE DE CAPA E PISTOLA

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EM 4 PARTES E  X  DESENLACE

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1 — A VIVA MORTA!

Como no bojo de cada transatlântico existe uma mulheiextraordinária, na saída do pôrto. Serafim Ponte Grande deud t d C t Pilh l

Ela esfregou o giz no taco e sussurrou:— Eu sou a solitária!Horas depois, conversavam interessadamente. E a con-

versa rodando e parando, enveredou sem tardança para as apre-ciações do justo valor de viver. Sendo uma entediada de altobordo ela tentou provar-lhe que a existência de nada valia.

— A vida é uma besteira, senhor Barão!Houve um silêncio filosófico.— Ao lado de Vossência! redarguiu Serafim galantemente.

Nas horas em que nosso herói se achava só, o seu coração guin-chava aterrado por numerosos espectros. Sobretudo o Carlin-doga e Dorotéia Gomes!

Ora, uma mulher nova e bela, mais que bela, duma severabeleza, se apresentava agora à sua pornográfica imaginação.

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Ela existia, estava ali — viva e morta! Viva porque suas pulsa-ções latiam como cães de fila sob a moldura da cútis num ritmoadolescente, tudo, tudo prometendo mas nada dando... Emorta porque não vivia a vida estouvinhada daquela coletivi-dade cheia de inglêses caídos em infância, às primeiras milhasde distância das leis e dos costumes da terra firme.

Os inglêses quando estão juntos sejam talvez o único povoque sabem viajar a bordo de um navio. São duas, três, quatroaté meia dúzia ou mesmo dúzia e meia de semanas de um es-porte infernal que invade os corredores, as salas, as pontes, ostombadilhos, os decks, os bars, os fumoirs, os ocasos. Como

b d d l i i t ti t d t

Chamava-se Dona Solanja e revelara-se de uma finíssimaintelectualidade. Não fôra difícil para êle, hábil manejadoida psicologia feminina, diagnosticá-la. Um dia, sorvendo uma

gemada no bar, disse-lhe às de queima-roupa:— Quer saber o que de si penso, madama? A senhoraé uma vítima de sigo mesma! Uma vítima impassível!

— Explicai-me, senhor Barão!— É-me fácil, minha senhora. Permiti-me porém uma cer-

ta desenvoltura da psicanálise que talvez no entanto não pre-

cise ir até o cinismo de certos escalpelamentos!— Permito tudo, senhor Barão, menos tuna coisa, mur-murou ela ruborizada.

Serafim tossiu, escarrou ligeiramente, passou o pé por cima,enxugou os bigodes e prosseguiu:

— Um caráter independente, caprichoso, que não encon-

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trando nunca a felicidade-lei tranqüilamente se dispôs a gozar,encerrando a existência no prazer-ânfora!Ela sorriu como uma fechadura e disse:— Que grande pissiquélogo o senhor me sai! Puxa!Serafim modestamente observou em francês:— Je suis une triste cire!

A verdade porém é que êle tomara vento diante daquelatácita aprovação. Continuou pois como um astrólogo fixandoo horizonte repleto de astros invisíveis.

— A senhora já sofreu pra burro! Mas agora não vê quef i A h d t d it

É que nem a corrida de batatas. Nada não me interessa. Pronto!

Dirigiu-se num passo de garça para o beliche.

E o nosso pobre e distinto barão ficou olhando num vago

desespero o mar malvacéo, a quem já fizera versos. Vieram-lhe ao cérebro as côres negativas do Passado. E êle se pôs araciocinar desta maneira:

— Por que, oh! por que tanta beleza junta! Por que abrancura sibilante do navio, fôrça geométrica armada e busso-lada para a visita de tôdas as nações? Por que7 Para eu viver

dentro sofrendo e penando? Penando e sofrendo?Serafim de noite envolveu-se no smoking e foi para o bar

tomar outra gemada. Mas logo achou pau estar consigo mesmo.Tornou à cabina e ficou de ceroulas. Mas só cochilou quandoa homérica manhã rompeu no hublot com os pés descalços.

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III — A MASCARADA FLUTUANTE

Dona Solanja não compareceu à festa que se prepararaaquela noite a bordo do  Conte   Pilkanculo.   Enquanto no tom-badilho mamado de lanternas a burguêsia exibia o seu fulgu-rante carnaval para a risada do Oceano, ela só, rainha do seu

t b h i d i fi E tã

calvas das últimas detentoras do Convento da Chartreused'Avant-Guerre.

Quando ela se viu livre das tais freiras, o seu horror pelas

novenas, missas, procissões e badale» era definitivo. Esperavaentão a hora de pôr nocaute o chamado sexo forte. Mas essahora não soou e ela então deu o fora em tudo! Desde d sóduas coisas a emocionavam: os galgos e o schuvim-gum.

Êle, ao contrário, desde os mais tenros anos, tinha sofridoo embate dos jacarés e das minhocas de sua terra natal e provà-

velmente adquirira o bicho carpinteiro que levara outrora osseus gloriosos antepassados — os bandeirantes — aos compên-dios geográficos do Brasil.

Ela só tinha uma preocupação: procurar a beleza por fora.Êle, ao contrário, gostava da beleza por dentro.

Mergulhado nessas e noutras cogitações, nosso herói pro-

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curou o bar a fim de buscar o reconfôrto de mais outra gemada.Ela só gostava de frescos. Êle adorava a máscula luta

e nas horas de lazer costumava se exercitar no difícil jôgo darasteira. Mas o amor agora o tinha fisgado!

Naquela noite, vendo desenvolver-se na ponte galharda dotransatlântico, a humilhante têrça-fèira gorda de todos êsses aba-caxis que navegavam — ao seu espírito, onde permanecia pre-destinada e fiel a imagem dela, subiu uma vaporosa forma fe-minina. E êle comparou o desprêzo solar de sua nova amiga,deitada a essas horas no silêncio ortopédico da cabina, com o

t

de fera de Dona Lalá. E o cabaço, aliás complacente, de Do-rotéia!

Na noite afundada no mar, deu uma espiada inútil no ho-rizonte sem faróis.

IV — VENDETTA! !

Mas enfim, no dia seguinte, Dona Solanja cedera ao seudiscreto convite. Desceria pelo seu braço em Nápoles, a antigaPartenopéia.

De fato, roçando a mão enluvada no seu musculoso moco-tó, ei-la que junto dêle, pisou o cais com os seus pés de anjo.

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Tomaram um guia a fim de não se perderem e disseram-lhe por gestos que desejavam saborear uma finíssima macarro-nada com tomates.

E como durante a caminhada êle insistisse em amá-la, elao interrompeu rindo e debicando:

— Amar! Que vulgaridade senhor Barão!— Honra lhe seja feita. A senhora não sabe como eu

sopito...Tinham-se abancado no famoso Gambrinus. Os dentes

pontiagudos de ambos e do guia trincavam voluptuosamente osbarbantes da macarronada.

misso, era a felicidade de paletó. E sentia subir em todos osseus ventrículos a vida que sacaroteava no meio da rua. Paraela existia também uma festa interna. Entretanto, que se tinhapassado? Nada de extraordinário, daquele extraordinário que

ela esperava na beleza desfolhada dos seus parques de Juvisy-Tonerre ou na moleza vertiginosa de seus inúmeros fordes.Ela esperaria em vão o bandido mascarado para o assalto desuas pérolas ou o estraçalhamento de sua anti-higiênica vir-gindade.

Tinham regressado ao cais. Mas eis que Serafim Ponte

Grande estacara com a bôca desmesuradamente aberta. O pa-lito que êle mascava rolou por terra. Solanja olhou em tornoe viu que, depois de ter dado um safanão no guia, avançavapara arphos uma mulher mal vestida e cheirando a alho, comuma garrucha no polegar. O barão do Papa berrou:

— Dorotéia! Dorotéia Gomes! Perdão!

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Um camorrista bigodudo e baixo, com uma enorme cabe-leira desgrenhada, acompanhava a nova personagem. Era oBirimba.

Houve três estampidos na direção do feliz casal. Masêles não tinham sido atingidos. Então, sem que ninguém avisse, a nobre dama passou rapidamente a mão nas calças doatarantado Serafim e tirando-lhe a pistola, sem hesitar, sapecouseis vêzes azeitonas no coração da desgraçada Dorotéia que ou-tra não era senão a pandorga que o Barão fodera em môça nasalmofadas femífloras da Pensão Jaú.

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Os Esplendores do Oriente

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PÓRTICO

Na madrugada pé-de-ninfa, o binóculo desenhou a testado céu amarelo no esquadro fumegante da esquadra abando-nada pelos persas nas usinas do Pireu.

De volta das noites bogaris, o porteiro de Ali-Babá fixouo cadeado do orquestrão gordo que costuma eletrocutar os si-

lê i d P

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lêncios de Pera.O Bar Bristol entre cindros e cadeiras sírias era um para-lítico inocente atravessado de um cão policial onde o príncipenegro preparava o crenel nômade dos cruzados globe-trotterse poliglotas. Por isso os soldados curdos negavam a essência

dos copos litúrgicos dos armênios candelabros.As alfândegas do turismo atingiam desertos pederastas on-de se massacravam condutores milionários e inglêses com cha-péus de Vitória Régia. Populações envolviam-se de vermelho

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Estava aporrinhado de jantar tôda a noite no Café deParis, em ouro e branco, entre garçons italianos, leopardasfaiscantes, americanos de smocking comendo à noite filés com

ovos e dançando shymmis de pé torcido.Quando abotoava a braguilha para sair, bateram à porta

do seu quarto do Ritz da Rue Cambon.A Girl d'boj'em dia entrou e disse:

colégio, Pafuncheta na vida. Eu e Caridad somos muito que-ridas. Temos três amantes em comum.

— Ë um colégio misto?-— Não vê! Não admitimos marmanjos em amor!Sentara-se, deixando ver até os intestinos.— Nós somos sul-americanas, suas compatriotas? As fran-

cesas nos adoram por isso. Um dia, uma enfiou a língua naminha garganta...

Nosso herói ergueu-se como um jaguar. Mas ela fugira.Berrou da escada.

— Mande-nos retratos para Jerusalém... Convento deSão José, padroeiro dos trouxas...

Serafim atrás das girls penetrou nos mares da Históriapelas mãos convulsas dos sopros clássicos acorridos à sua apa

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Serafim atrás das girls penetrou nos mares da Históriapelas mãos convulsas dos sopros clássicos, acorridos à sua apa-rição, de dentro dos Luzíadas.

O Mediterrâneo balanceado pelas mitologias poseidônicaspôs nosso herói de cama. Êle vomitou de Marselha a Nápoles,viu a Itália num catre de chuva, passou sem saber Messina e ofarol do Stromboli.

De repente sentiu-se no caramujo do mundo antigo. Tinhadobrado cabos desabitados.

Nada agitava no cristal as beiradas do mar de Mattapan.A Grécia era rugosa e amarela como uma ruína sem um grito.Ilh ô d li ã d fl d í d li b tid d

a testa ao sol da Ãtica, treinando. O seu nu doirava na dançado ataque entre upper-cuts e mergulhos de swings na defesasuada, entroncada, de punhos.

Serafim commingman nas espaçosas calças de Oxford viu

do outro lado um avião esticar o aço sôbre a Acrópole. Sorriu.Sacudiu os braços e as pernas fazendo gestos para a Gréciaressuscitada no negro e no avião.

As ruas de Pera apresentaram-se ao nosso herói. Masqûalquer coisa fugia sob a aparência modernizante em que aTurquia falava francês, inglês, italiano sem nenhum mistério.

Serafim de volta do bazar de Istambul penetrou para ochá no edifício europeu do Pera-Palace. O porteiro de operetacurvou-se até o sub-solo.

Um jazz balofo guinchava no interior Serafim pisou o

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Um jazz balofo guinchava no interior. Serafim pisou odeserto encerado. Garçons de casaca cresceram enquanto aorquestra era negróide e gorda. E sorria para o inesperadoauditor. Serafim inùtilmente pediu um cocktail nativo e leuno bombo Rose-Select-Orchestra.

Uma voz de oficial francês gritou entre reposteiros:

— Il me restera toujours le souvenir d'avoir fait la tra-versée avec des jeunes-filles modernes!

Pafuncheta e Caridad defendiam-se dos galões de um ma-gricela, iguais no mesmo completo côr-de-camelo, sob fôrmas

t d t li P f h t i t

Lá fora a neve silenciosa. Deitou-se numa luz frouxa, vindade outro quarto. Estava em Constantinopla. Visitaria as mes-quitas, as fortificações dos imperadores, ouviria a voz minguada

do muezin. Num caos colegial, Teodora, Solimão, os osmãse os turcos atuais de Kemal Paxá, visitaram a fadiga de seusolhos. Acordou e sonhou. As princesas russas que lhe tinhamservido p jantar no Karpish entre diplomatas do Reich e nucasnacionalistas rapadas... os olhos envidraçados dos fumadoresde narguilé nos cafés... duas prostitutas italianas que o en-

costaram, uma enorme, a outra rotunda e baixa, as meias curtashibernais, mergulhando chinelos na lama de um beco.Madrugada. Uma carreta ia conduzindo degolados nas

ruas de Pera. Silêncio absoluto. Madrugada de mercadoresdas mil e uma noites desenrolava tapêtes. Serviam-lhe caféturco junto a um braseiro brasileiro, E o seu harém tinha já

quatro fêmeas as duas italianas Pafuncheta e CaridadUma voz estridulou em clarineta no escuro: Não senhor!

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quatro fêmeas, as duas italianas, Pafuncheta e Caridad.Uma voz estridulou em clarineta no escuro: — Não senhor!A Turquia não podia continuar a ser a risada da Europa!

Virou para a parede. Nesses quinze dias daria uma gre-lada na Terra Santa.

A Buick da  Desert Mail   deixara o caminho de transpor-tes iraco-persa para conduzir Serafim Ponte Grande de óculos

Nosso herói procurou depressa o passaporte, o baedeker,a kodak e a Bíblia.

A paisagem rajava-se em verde amendoim. Seus olhos fil-mavam árvores côr-de-fumaça entre uma e outra sombra de casacúbica, com as primeiras figurinhas saídas da História Sagrada.

Poços, cisternas, curvas na boa estrada entre filas de came-los beduínos,

São João d'Acre crenelou sôbre o mar saudades de Cleó-patra. Do outro lado, Haifa fedeu laranjais no escuro semlampiões.

Serafim andou de Camel Bus, experimentou Ãgua de Me-lissa autêntica no Convento espanhol sôbre o promontório,comprou um bentinho e às dez horas da manhã partiu pelaSamaria afora!

Um trem de presepe afogava-se longe na planície. Duasmontanhas iguais e baixas quebravam-se de encontro para dei-

xar perceber o recôncavo de Tiberíades no fundo de teatro dod

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xar perceber o recôncavo de Tiberíades no fundo de teatro domundo.A agitação de uma regata de catraieiros e turistas no lago

de mármore, onde nada prende à terra e lembra a vida. Nin-guém mais morava em Magdala senão árvores, em Betsaidasenão urzes, em Cafarnaúm senão destroços. No deserto almo-

fadado de um convento um franciscano e uma caseira procria-vam a solidão.O mais tinha tudo emigrado como a casa de Nazaré, pelos

ares, para os livros do Ocidente. Nem Tibérias tinha maisromanos de Tibério

O quarto lembrava um hotel de São João dei Rei. O padremestre que era um sábio das Arábias trazia na vassoura negrada  barba meio quilo de brilhantina.

Serafim pagou a hospedagem com fortes esmolas, mandoudizer uma missa pela sua próprià alma e na manhã pó-de-limapesquisou inùtilmente a binóculo, Jericó num cupim de mura-lhas eremitas.

Por declives agonizantes, desceu no calor até o poço salsodo Mar Morto. Era o lugar mais fundo da terra, com trezentos

níveis abaixo dos longes metros do mar. Daquele lado, fica-vam Sodoma e Gomorra. Serafim olhou e viu uma pederastiade azul. A Standard Oil comprara Sodoma e negociava Go-morra para explorar o querosene das punições.

O deserto da Judéia esticou-se entre panoramas de papelão

amarrotado, e arborizações de desastre, Josafás como autó-dromos, cidades côr-de-tenda e ferrugem. Tudo torrado, es-

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a a otado, e a bo ações de desast e, Josa ás co o autód o os, c dades cô de te da e e uge . udo to ado, escorvado, quilometrado de anátema.

Entre o Jordão magro e sujo e a sombra de salgueiros, opadre dos turistas dissera que só tomaria um banho para salvara humanidade em Água de Colônia.

Ascensão da serra direta. Betânia, a Casa de Lázaro, afunicular de Josafá. E as torres novas de Jerusalém na lamaconsternada e no frio. Por cima o céu da Ascensão.

Serafim saiu só pela noite de Jerusalém. Era a rua princi-pal em descida. Penetrou nas luzes do Café Bristol. A salaabafada coloria-se de papel no jazz idiota. Um pianista sara-coteava nulamente entre garçons e cadeiras vazias. Havia síriosgordos, homens vagos do Sul, caixeiros, viajantes bêbados e duasalemãzinhas globe-trotters. Um ar de inocência iluminava aque-

la blasfêmia que um cachorro enorme vigiava. No interiordo bar um rei mago tingia um cocktail.Nosso herói saiu pelo vento. Em cima fazia uma lua

paulista. Passou os armazéns, o Hotel Allemby, um café turco.De repente a noite crenelada dos cruzados gritou quem vens lá!A Tôrre Antônia velava sôbre a lama dos quarteirões. Haviasombras de guardas ao lado dos degraus de um portão. Serafimaproximou-se. Eram dois soldados curdos. Perguntou-lhes

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p gpelo Santo Sepulcro.

— Não há nenhum Santo Sepulcro...— Como?— Nunca houve.— E Cristo?

— Quem?O outro esclareceu:— Cristo nasceu na Bahia.

tãos não se entendem sôbre a posse das verdades e das cape-las . . . Às seis e meia fecha-se tudo e êles ficam aí brigandode candelabro e reconciliando-se depois pelas narinas da vo-lúpia nos divas de pedra, com grande gaúdio do tinhoso.,.

Serafim viu na sombra, sentado sob a defesa secular deuma parede, os olhos em brasa dum pederasta de barbas ebatina.

Os desfiladeiros onde Sansão andou treinando filisteus ea linha de trilhos por cidades ferroviárias até o deserto inicialdo Sinai. Saaras aqueceram moles ondulando infinitos amarelosno sol de trem. Onde Moisés andou a pé.

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Alcântara, o canal milionário, as alfândegas sob o domi-cílio das estréias. Os olhos de Serafim aflitamente procuraramo Cruzeiro no fôrro do céu africano.

O Cairo às onze horas. Nas luzes colossais do hangar

costumes de opereta, fezes, gente da Europa. Lá fora, autocarscom nomes excitantes. Semíramis, Heliopólis Palace, ShepherdsHotel.

Procurou um detetive que imediatamente lhe deu o en-

— É um manual de paixões. Está fechado, como nósduas!

Folheava-o. Berrou :— Dos deboches! Depressa, um corta-papel!

Serafim trouxe um alfange, mas ela tinha perdido a página.— Cultura física. É no capítulo dos deboches? Resig-nação à morte... para mais tarde.

Tinha-se levantado. Caridad-Claridad limpou a vacina,espevitou-se nua como um sol num lavabo.

Inglesas velhas sob chapéus da Rainha Vitória na grena-

dina quente dos ocasos. Fezes com luvas. Atravessaram o jardim de Mena House. Laranjadas e criados bérberes, com orosto irrepreensivelmente estigmatizado.

Sentaram-se para o chá. Peregrinagens subiam os degrausmaciços da pirâmide de Queops no azul.

Rodeando turistas alarmados, policiais espancavam came-los e condutores numa gritaria de massacre.

Tinham dansado charlestões macacais nas construções mi-li á i d H lió li P l Ti h f t f d ôb

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çlionárias do Heliópolis Palace. Tinham-se fotografado sôbreberros de camelos junto à Esfinge compassiva. E visitado osdestroços de Mênfis e o túmulo arado dos Bois na manhã quepeneirava o deserto. Combinaram partir para Luxor, Assuã,as barragens superiores do Nilo, a Núbia, o inferno.

No trem branco de Luxor, no trem louco de Luxor. Pa-

Não fiz escândalo por causa de Pafuncheta. Me fêz pegarno seu lança-perfume! Isso me deu um incômodo horrívelde espírito. Era a primeira vez. Não será a última. Sofricomo em casa, quando tomava uísque escondido. Felizmenteêle teve um acesso de remorso e saiu".

O guia missal, sujo como um templo, de abaia azul e tur-

bante, explicara-lhes nos túneis vazios de Tut-Antkh-Amon quea Deusa Verdade protegia o defunto e que a fila das testemu-nhas ritmadas na parede, retrucava aos inquéritos acusadores.

Fora, o deserto era o sarcófago do sol.No vale catacumbal dos Reis.Três burrinhos gordos, Serafim e as duas girls tinham tro-

tado até atravessar o Nilo. Populações seguiam atrás pedindobachiche por terem nascido tão longe

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bachiche por terem nascido tão longe.

Na tarde sôbre o Egito vermelho envolvido de amarelo,Serafim deu o braço a cada uma e enfiou o casco da índia nacabeça repleta de maus pensamentos.

Nas pelusas do hotel, um coqueiro esplendia como umespanador

Caridad escreveu no seu diário:— "Que beijo! Desceu até lá embaixo. Não sei mais o

que fazer. Que falta me faz Miss Bankhurst para pedir conselho.Êle procura é lá. Entrego-lhe tudo pela primeira vez.

Os seios esféricos e pequeninos, o ventre... Não. Êle temas mãos teimosas, êle quer chegar é lá. Ao centro. À di-visão do meu ser".

Partiram para a poeira de Assuã. Entre óculos enfuma-çados de janelas, o trem se cobrira dum capacete branco eafundou equipado no deserto.

Fornos e crenéis de casas negras, lado a lado do Nilo con-t t d f tili t

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tratado como fertilizante.Cidades perdidas no pó ou brancas sufocadas de palmeiras

nos oásis.Caridad deitara a cabeça no colo dêle e cheirava-lhe vo-

luptuosamente as virilhas. Paisagens abriam lagos indecisos,

suspendiam zepelins de pedras no horizonte tranqüilo das mi-ragens.

— O teu beijo é quente como o sol do Rio de Janeiro.

— Quando os teus lábios reviram nos meus me envolvemdo calor das águas de minha terra.

— O teu corpo é frio como o sepulcro do meu!— Quando sais no foquestrote aí por esses hotéis, na po-dridão das orquestras, sinto as tuas duas pontas espetarem omeu coração enquanto a minha lança se revolta contra a tuavirgindade.

— Minha mão em concha apanha a tua bunda quente,

viva, musculosa e buliçosa.— Encosto a cabeça na tua, aí por êsses íoquestrotes, por

êsses  chailestões. Encosto a língua na tua, mole, babosa, sa-livosa.

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E ela escreveu;

"Os efeitos do amor. Hoje fiquei em pêlo no quarto enotei que minhas coxas se arredondaram, ficaram gordinhas e

macias trabalhadas pelas suas mãos, minhas curvas se afirma-ram, meus peitinhos ficaram duros e rebitados. Mas que co-ce ira no bibico!"

O silêncio vermelho. O rascar das noras no rio. Amanhe-cia sôbre o Cataract-Hotel. Caridad acordou como um tomatenos lençóis. Estava na cama de nosso herói. Escreveu "Gemi!"

Voltaram ao país atarracado de templos, espetado de fálus.Mulheres e felás punhas roupagens nos bois sacros, si-

lhuetas brancas repunham em burricos a fuga para o Egito.Filigranas altas de camelos ritmavam as caravanas.

Do diário de Caridad:

"Hoje de manhã dei de cara com Miss Bakhurst, no halldo Shepherds. Perguntou-me se a baía de Constantinopla é

mais bela que a baía de Hudson."

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Em Alexandrina, um navio passava como um bonde. Sera-fim tomou-o.

O Oriente fechou-se. Tudo desapareceu como a cidade nomar, seus brilhos, seus brancos, suas pontas de terra, esfinges,caftãs, fezes, camelos, dragomãs, pirâmides, haréns, minare-tes, abaias, pilafs, desertos, mesquitas, templos, tapêtes, acrópo-

Fim de Serafim

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FatígadoDas minhas viagens pela terraDe camelo e táxi

Te procuroCaminho de casaNas estréiasCostas atmosféricas do Brasil

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N osso herói tende ao anarquismo enrugado.O Brasil dos morros da infância que lhe ofertava a insis-

tência dos mais feijões, dos mais biscoitos — dá-lhe o amor noregresso.Pernas duras, bambas, peles de setineta de mascate e de

lixa de venda, seios de borracha e de tijolo, bundas, pêlos, lín-guas, sentimentos.

Ambas dizem:— Raios que te partam!Faz então um escuro de Mártir do Calvário.

PREGAÇAO E DISPUTA DO NATURAL DASAMÉRICAS AOS SOBRENATURAIS DE TODOS

OS ORIENTES.

— Tudo é tempo e contra-tempo! E o tempo é eterno.Eu sou uma forma vitoriosa do tempo. Em luta seletiva, antro-pofágica. Com outras formas do tempo: môscas, eletro-éticas,cataclismas, polícias e marimbondos!

O criadores das elevações artificiais do destino eu vos mal-digo! A felicidade do homem é uma felicidade guerreira. Te-nho dito Viva a rapaziada! O gênio é uma longa besteira!

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nho dito. Viva a rapaziada! O gênio é uma longa besteira!

CHAVE DE OURO

A cidade das casas contra-fortes e a igreja com uma porção

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Errata

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A . SOMBRA  macha de Celestino Manso, Don&Lalá pros-perara e parira anualmente, na confluência ubérrimyae dois riosbandeirantes que dividiam em Canaãs e capitanias o estado de

Mato Grasso. O Pombinho crescera de chapelão e cavalo.Senhores e possuidores de fundos e de largos latifúndios,quiseram perpetuar no bronze filantrópico das comemorações, oex-marido, ex-pai e ex-amigo. Fizeram construir num arra-balde de Juqueri um Asilo para tratamento da loucura sob suas

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Os Antropófagos

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O d i t l i tã d

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Os padres viram que o tal cristão quandovoltava para umas vêzes não trazia mais cha-péu, outras o capote, outras os calções e ou-tras o gibão. Então o que é isto? Disseramos padres com admiração e não compreen-dendo o proceder do cristão perguntaram-lheque sumiço tinha dado do que era seu. Ohomem replicou assim: Vós padres bem-aven-

que se privava das coisas de que necessitava.Depois de se terem passado alguns dias, eu já vou-me disse o homem aos padres e depoisque êle se foi patenteou-se o seu mau proce-dimento enfim. Com as coisas que êle pos-suía, seduziu algumas meninas e algumas ra-parigas que deviam ficar a seu serviço e comelas abalou.

MONTOYA.  A Conquista Espiritual.

Entanto o canhão na proa lambeu o mar em pancada oitohoras da manhã e José Ramos Góis Pinto Calçudo, com umgalão na bunda, tomou conta do bar e do leme. Estavam empleno oceano mas tratava-se de uma revolução puramente moral.

Nosso dissimulado herói em Londres havia consertado aexperiência de um mundo sem calças sôbre a solidão chispada

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p ç pque agora salgavam milhas fora da projeção econômica das al-fândegas.

Após seca e meca, o encanecido secretário já falava ar-

gentino no Simpsons, de bombachas, com uma messalina e umcomandante de transatlântico aposentados.

— Uma vez puso dôs inglêses nocaute en la calhe! Pas-savam e mi dabam encontrones todavia! Yo me fué arrabiando

Mas reunida agora a marinhagem em pelotão freudianono balão largado das auroras americanas, foi afixada no Pur-ser's Office a seguinte "Ordine di tutti i gjorni".

"Qui non c'e minga morale, E  un'isola!"

Seguiu-se um pega em que todos, mancebos e mulheres,coxudas, greludas, cheirosas, suadas, foram despojadas de qual-quer calça, saia, tapacu ou fralda.

Na ponte de comando, incitando a ereção da grumetada,um bardo deformava Camões:

 E notarás no  fim   dèste sucessoTra la pica e il cul qual muro ê messol

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p q

Um princípio de infecção moralista, nascido na copa, foi

resolvido à passagem da zona equatorial. £ instituiu-se em El Durasno,  base do humano futuro, uma sociedade anônimade base priápica.

O poderoso Jack da piscina pederastou em série, iniciando

— Que os vossos sonhos se precisem, oh Iadies and gen-tlemen! No jardim de inverno e alhures!

Passaram a fugir o contágio policiado dos portos, pois queeram a humanidade liberada. Mas como radiogramas recla-massem,  El Durasno  proclamou pelas antenas, peste a bordo.

E vestiu avêssas ceroulas e esquecidos pijamas para figurarnuma simulada quarentena em Southampton. Todos os passa-geiros se recusaram a desembarcar. Sem dinheiro, tomaramcarregamentos a crédito. E largaram de repente ante os semá-foros atônitos. Encostaram nos mangueirais da Bahia. Sem-pre com peste. Depois em Sidnei, Málaca, nas ilhas Fidji, em

Bacanor, Juan Fernandez e Malabar. Diante de Malta, PintoCalçudo arvorou a Cruz de Malthus.Nos longes, nas nostalgias dos salões, nos tombadilhos, à

passagem do capitão, gritinhos cínicos lembravam fingidos pu-dores:

— Que c'est mal ce que vous faites, Maître!

 El Durasno  só pára para comprar abacates nos caistropicais.

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Os Caminhantes

e

Destino de Labaosão duas'novelas que decorrem nasruas do porto do Recife, e narram

uma a história do velho Naé e seu cãomal-cheiroso, e outra o drama de um

homem feio e sem amor.

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Histórias de solidão e de almas humilhadas,estas narrativas de

José Conde

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Nesses dois livros, Oswald faz do idio-ma o próprio estofo da sátira e da fanta-sia, para aplicar nèle a sua visão deRabelais. São, antes de mais nada, umprocesso novo de composição: o escritoramassa o idioma como plástica argila edá-lhe inédito sabor, e por intermédiodêssc nôvo e ductil instrumento, lixa umterrível instante de crise. E, à esta altura,por espantoso que pareça, descobre-se que

Oswald é um moralista. Por isso, retrataum mundo ôco, revela suas imposturas,mostra-se empenhado na transformaçãodos costumes sociais e políticos, literáriose artísticos. É um Oswald movido pelaânsia de contribuir para a libertação dohomem e do sen pensamento ético e esté-tico.

Esta edição dos dois livros mais típicose representativos da prosa de vanguarda

de Oswald, é enriquecida de substanciaisestudos introdutórios de Haroldo de Cam-pos. Neles o ensaísta examina sob novaótica os experimentos do escritor paulis-ta, realçando sua contribuição pioneirapara a abertura estilística. Particularmentenova e fascinante é a colocação crítica efe-tuada por Haroldo de Campos em rela-ção a  Serafim Ponte Grande.   Trata-se deadmirável e original estudo que se vale

das sugestões do estruturalismo e da novalingüística para valorizar êsse insólito eagressivo texto oswaldiano — texto que éuma saudável e ruidosa gargalhada renas-centista na cara triste dos preconceituo-sos e rotineiros de qualquer tempo

Memórias Sentimentaisde João Miramar

e Serafim Ponte Grande

são duas obras típicas da literaturade vanguarda (pie pioneiramente

Oswald de Andrade

praticou entre nós. São també m duassátiras contundentes a um mundo ôco,fútil, ocioso e repleto de imposturas.

IIAROLDO DE CAMPOS,

em estudos introdutórios que se valemdas melhores sugestões dos mais modernos

métodos críticos — inclusive os doestruturalismo e da nova lingüística —,

abre inesperadas perspectivas de entendimentopara esses dois textos insólitos

e instigantes de

Oswald de Andrade

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sos e rotineiros de qualquer tempo.

MÁRIO DA SILVA BRITO

MAI S U M LA NÇAM ENTO DE CATEGORIA DA

C I V I L I Z A Ç Ã O B R A S I L E I R A