André Gondim Do Rego - Questões de Legitimidade Envolvendo a GRIN

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34º ENCONTRO ANUAL DA ANPOCS ST32- Sociologia e Antropologia da Moral Coordenadores: Luis Roberto Cardoso de Oliveira (UnB), Alexandre Vieira Werneck (UFRJ) Questões de legitimidade envolvendo a Guarda Indígena Pataxó da aldeia Coroa Vermelha André Gondim do Rego (Doutorando em Antropologia, UnB) Outubro, 2010.

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Descrição da atuação da Guarda Rural Indígena

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  • 34 ENCONTRO ANUAL DA ANPOCS

    ST32- Sociologia e Antropologia da Moral

    Coordenadores:

    Luis Roberto Cardoso de Oliveira (UnB), Alexandre Vieira Werneck (UFRJ)

    Questes de legitimidade envolvendo a Guarda Indgena Patax

    da aldeia Coroa Vermelha Andr Gondim do Rego

    (Doutorando em Antropologia, UnB)

    Outubro, 2010.

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    34 ENCONTRO ANUAL DA ANPOCS Caxambu, Outubro de 2010.

    Introduo

    O objetivo geral deste paper discutir as significaes que os membros

    da aldeia patax Coroa Vermelha, Terra Indgena situada no extremo sul da

    Bahia, conferem experincia de uma Guarda Indgena a constituda com o

    fim de combater o que percebido pelo grupo como um aumento da

    criminalidade local, particularmente, na ltima dcada. A idia compreender

    os sentidos da legitimidade conferidos instituio tendo em vista s

    controvrsias geradas em torno de seu propsito, das conseqncias de sua

    atuao, mas tambm de seu carter indgena.

    Para tanto, inicio com um breve relato sobre o histrico e o quadro atual

    da aldeia. Num segundo momento, descrevo resumidamente o processo de

    formao de sua Guarda Indgena. Em seguida, discuto questes relacionadas

    ao policiamento indgena no Brasil, complementando-as com a invocao de

    autores que lidaram com experincias semelhantes fora do pas, alm de outros

    relacionados temtica da antropologia do direito. Com base nisso, retorno meu

    olhar sobre as dinmicas que envolvem as avaliaes nativas referentes

    prpria Guarda para, enfim, tecer alguns comentrios sobre o tema.

    O trabalho tem como base pesquisa de doutorado que vem sendo

    desenvolvida por mim, desde 2007, como aluno do Programa de Ps-

    Graduao em Antropologia Social da Universidade de Braslia. A tese, que se

    encontra em fase de produo, reflete sobre a administrao de conflitos na

    referida aldeia e tem na Guarda Indgena um de seus principais eixos de

    discusso. O texto que segue apresenta alguns aspectos deste eixo.

    Coroa Vermelha, uma aldeia urbana

    Atualmente, existem dois grupos tnicos que se reconhecem como

    Patax: um s vezes qualificado de meridional por alguns pesquisadores; e

    outro de cognome H-h-he1. Esta distino, marcada, sobretudo, por histrias

    1 Segundo dados da Rede Nacional de Estudos e Pesquisas em Sade dos Povos Indgenas, os Patax somam atualmente uma populao de 11.347 indivduos, e os H-h-he, de 2.367, o que representa metade da populao indgena da Bahia, que hoje conta com 26.768 indivduos.

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    particulares de contato, reflete ainda uma distribuio espacial diferenciada pelo

    estado da Bahia2. Coroa Vermelha integra o primeiro destes grupos3. A

    qualificao de meridional est ligada ao fato dos povoadores das comunidades

    pertencentes a tal segmento, ou seus ascendentes, provirem de um antigo

    aldeamento situado no extremo sul do estado. Refiro-me a Barra Velha, smbolo

    maior da unidade tnica e persistncia histrica de tal povo4.

    Dentre todas as aldeias pataxs, apenas Coroa Vermelha arriscaria

    dizer tem importncia equivalente a atribuda a Barra Velha, embora isto

    ocorra por razes bastante diversas. Enquanto esta substancial memria do

    grupo e est diretamente associada a um ideal de aldeia; Coroa Vermelha,

    especialmente na ltima dcada, vem sendo percebida como uma verdadeira

    cidade. So os dilemas resultantes desta sobreposio entre terra indgena e

    cidade que lhe conferem a qualificao emblemtica de aldeia urbana.

    A histria desta comunidade tem a marca de sua relao com o turismo

    regional5. Seu povoamento se deu na dcada de 1970 por famlias pataxs que

    buscavam novas reas para habitao e venda de artesanato. A comunidade

    em formao logo receberia o apoio da prefeitura de Santa Cruz Cabrlia,

    2 Os Patax H-h-he esto presentes nos municpios baianos de Camaari, Itaju do Colnia, Pau Brasil e Camamu. O etnnimo envolve hoje no apenas os descendentes dos ltimos bandos pataxs e baens atrados, em 1934, pelo antigo Servio de Proteo aos ndios (SPI), mas tambm os de outras etnias anteriormente aldeadas na regio sul da Bahia, e que, ainda nessa dcada, foram reunidos queles no ento Posto Indgena Caramuru-Paraguau. A populao meridional, por sua vez, est concentrada no extremo sul da Bahia, havendo, no entanto, algumas aldeias tambm no estado de Minas Gerais. 3 Na Bahia, alm de Coroa Vermelha e Barra Velha, tambm pertencem a este grupo as comunidades de Mata Medonha, Aldeia Velha, Imbiriba, Meio da Mata, Boca da Mata, Trevo do Parque, Corumbauzinho, guas Belas (todas estas j reconhecidas como terra indgena), P do Monte, Cassiana, Alegria Nova, Guaxuma, Jita, Craveiro, Tib, Monte Dourado, Pequi, Cahy, Tau e Aldeia Nova (estas, consideradas reas de retomada, isto , ocupadas e reivindicadas pelos Patax como territrios outrora ocupados por indgenas). Em Minas Gerais, alm da Fazenda Guarani (j regularizada), que se divide em sede, Retirinho e Imbiru; existem as comunidades de Araua e Divinpolis (as quais desconheo a situao). 4 Fontes histricas indicam que o aldeamento que dera origem a Barra Velha fora criado em 1861, reunindo bandos patax hostis e pacificados, e parcelas de outras etnias que, no perodo, vagavam pela regio da antiga vila do Prado. Deixado a sorte dos prprios ndios, ele s se tornaria conhecido em 1951, quando do evento que ficou conhecido pelos Patax como Fogo de 51, uma ao policial que teve como saldo mortes, prises, humilhaes e a disperso do grupo por todo o extremo sul baiano (Carvalho, 1977). Anos depois, no retorno de algumas famlias a rea, as coeres ficariam por conta do recm instalado Parque Nacional do Monte Pascoal, situao esta que incentivara a migrao para a Coroa Vermelha (Sampaio, 2000a). 5 A importncia do turismo na formao de Coroa Vermelha indicada tanto por Sampaio (1996), como por Grnewald (2001). O relato que se segue sobre a histria da aldeia est baseado principalmente nestas fontes, mas tambm em meus prprios dados de campo.

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    interessada que estava em promover a regio a partir da presena de ndios

    no lugar da Primeira Missa do Brasil 6. Com este objetivo, j em 1974, ao

    tempo da inaugurao da BR-367, foi erguida no pontal da praia uma grande

    cruz simbolizando o referido evento histrico e construdo, em seu entorno,

    esteretipos de casas indgenas destinadas moradia e comrcio pataxs.

    Alm dessas habitaes, o domnio sobre a rea foi sendo estabelecido

    atravs de criaes e cultivos variados, bem como pela instalao de espaos e

    equipamentos comunitrios. Por outro lado, o turismo e a possibilidade de obter

    matria-prima na mata prxima tornavam a venda de artesanato cada vez mais

    lucrativa, atraindo um crescente nmero de famlias de outras aldeias,

    especialmente no vero, promovendo um intenso intercmbio de pessoas,

    coisas e informaes. Foi atravs deste processo que Coroa Vermelha veio a se

    tornar outro grande centro de referncia patax.

    O arranjo das novas famlias em torno dos que controlavam o comrcio

    local organizou a comunidade em dois grupos polticos, diviso esta amenizada

    em meados da dcada de 1980, quando um representante formal foi finalmente

    constitudo. A intensa valorizao do lugar, porm, fez com que a prefeitura

    aforasse as reas ocupadas pelas famlias que, ameaadas, passaram a lutar

    por seu reconhecimento como terra indgena. Mas, at que a demarcao fosse

    aprovada uma dcada depois, a comunidade teve que lidar com a rejeio dos

    estudos demarcatrios; a participao de lideranas em acordos contrrios ao

    reconhecimento; o afloramento das divergncias internas; mais a intruso,

    degradao e ocupao desordenada do territrio por no-indgenas.

    J nos anos 1990, a eleio de um novo cacique e a criao de uma

    associao comunitria suspenderam as novas divergncias e encaminharam

    os estudos que possibilitaram a demarcao7. O interesse do governo federal e

    6 Em 1898, um estudo solicitado pelo governo do estado da Bahia para averiguar fatos relativos chegada dos portugueses no pas, apontou, entre outras coisas, ser Coroa Vermelha o local de realizao da Primeira Missa no Brasil. Tal concluso seria posteriormente confirmada por uma Comisso de Estudo e Pesquisa, criada em 1939 pelo Presidente Getlio Vargas, com o mesmo objetivo (Grnewald, 2001). 7 Dois Grupos de trabalho j haviam sido constitudos para tanto. O primeiro, em 1985, teve as concluses rechaadas pelo Grupo Interministerial do governo federal, ento responsvel pela homologao das terras indgenas. O segundo, em 1992, no teve continuidade devido s divergncias internas sobre o reconhecimento da rea. O derradeiro estudo de demarcao foi iniciado em 1995 e concludo no ano seguinte (Sampaio, 1996).

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    estadual em realizar a obras destinadas s comemoraes do quinto centenrio

    do pas, porm, adiaram em dois anos sua homologao8. O impasse teria sido

    resolvido atravs de negociatas entre lideranas indgenas de ento e os

    prepostos do governo. O resultado foi a remoo dos no-indgenas da terra

    demarcada para reas adjacentes; a garantia de usufruto dos equipamentos a

    serem instalados aos indgenas; mas tambm o adiamento indefinido de obras

    relativas infra-estrutura e de projetos alternativos de subsistncia local que,

    naquele momento, j se faziam urgentes.

    Em abril de 2000, as comemoraes oficiais do quinto centenrio levaram

    a novos conflitos entre os integrantes da aldeia, divididos agora entre os que se

    juntaram aos movimentos sociais que protestavam contra o carter festivo do

    evento, e aqueles que ficaram a servio das aes policiais de represso ao

    protesto9. Passado os 500 anos, os problemas de saneamento, moradia e

    emprego, sempre associado ao crescimento populacional, continuavam a

    assolar a comunidade. Falsos documentos de identidade indgena eram

    produzidos sob o aval de lideranas, que tambm garantiam o usufruto de

    terrenos na rea demarcada a brancos da regio. Por sua vez, a formao ao

    redor da aldeia de um distrito municipal inviabilizara totalmente o controle da

    circulao de no-indgenas dentro de seus limites.

    Da forma como foi homologada em 1998, Coroa Vermelha possui um

    territrio total de 1.493 ha divididos em duas glebas. A primeira, localizada entre

    a BR-367 e a praia, destinada habitao e ao comrcio, e contm seus

    principais equipamentos comunitrios, como a Escola Indgena, o Posto de

    Sade, o Parque Indgena e seu Centro Cultural. A seguinte, referente s reas

    de mata e agricultura, est posicionada seis quilmetros a oeste da anterior,

    servindo, respectivamente, realizao de algumas cerimnias do grupo parte

    delas privada, outras voltadas ao turismo; e como espao de coleta, cultivo e

    criao. Em seu conjunto, entretanto, tambm so encontradas moradias.

    8 O projeto do Museu Aberto do Descobrimento (MADE) previa vrias intervenes na regio costeira do extremo sul baiano e, de forma especial, na rea exata da aldeia (Sampaio, 2000b). 9 O evento ficou mais conhecido como a Festa dos 500 anos. J as aes de protesto se reuniram em torno do movimento Outros 500. Ofensas ao direito de reunio e locomoo, prises ilegais, crcere privado, improbidade administrativa e crimes de responsabilidade foram algumas das denncias expostas contra a Polcia Militar baiana em audincia pblica conduzida pela Comisso de Direitos Humanos da Cmara dos Deputados, naquele abril, em Braslia.

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    Hoje, porm, existem mais quatro reas de retomada nas vizinhanas

    do territrio oficial. Aroeira e Juerana fazem divisa com a gleba da mata e

    agricultura, enquanto Tapororoca e Nova Coroa esto separadas da primeira

    gleba pela BR. A populao total gira em torno de cinco mil indivduos, a grande

    maioria concentrada nos 70 ha que encerram a parte do territrio localizada

    entre a praia e a pista10. Quando os Patax falam de uma aldeia urbana eles

    esto se referindo precisamente a esta parte da terra indgena. ela que se

    encontra num contnuo com o distrito municipal tornando-as indistinguveis a

    um olhar desavisado e basicamente sobre a mesma que recaem os

    problemas atribudos convivncia imediata com o branco.

    Quando o atual cacique assumiu a liderana da aldeia, em agosto de

    2004, aos problemas de infra-estrutura, subsistncia e procedimentos ilegais de

    lideranas anteriores, se somava ainda o que sua gesto diagnosticou como um

    alto ndice de criminalidade. Para enfrentar tais questes, o cacique cuidou de

    firmar uma srie de parcerias estatais, a comear pela Prefeitura de Santa Cruz

    Cabrlia, o que promoveu a criao da Secretaria de Assuntos Indgenas. Ao

    mesmo tempo, organizou junto a outras lideranas um grande Conselho

    formado por ele, por representantes das instituies, setores e famlias da

    aldeia, alm de vereadores pataxs no municpio; encarregado de discutir e

    elaborar normas de convivncia local que eram submetidas comunidade em

    assemblia, podendo ser por ela aprovadas ou rejeitadas.

    No que se refere aos problemas na rea de segurana no fora diferente.

    Novos processos internos de administrao de conflitos foram apoiados pela

    Prefeitura, alm de articulados s aes do Frum municipal, do Conselho

    Tutelar, e das Polcias Civil, Militar e Federal. Tais processos consistiram na

    criao de um Escritrio destinado recepo e registro de denncias, mas

    tambm s sees de mediao de disputas; na formao de comissrios de

    menores atuando como conselheiros tutelares nos assuntos da aldeia; na

    regulamentao destas aes e das formas de reparao das disputas por elas

    assistidas; bem como na formao da Guarda Indgena

    10 Os clculos so da atual administrao da aldeia que em um censo prprio contabilizou 950 famlias vivendo na rea adjacente praia, e 92 na de mata/agricultura, considerando haver uma mdia de cinco indivduos por famlia.

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    Mais tarde, as parcerias estatais foram estendidas ao governo estadual e

    federal e muitos recursos foram angariados para a comunidade. Centenas de

    casas foram reformadas ou construdas. Ruas foram saneadas e pavimentadas

    e projetos de cunho produtivo comearam a ser implantados com ajuda estatal e

    a de organizaes no-governamentais. Entretanto, novas disputas internas

    surgiram, boa parte delas, almejando o controle sobre o acesso e a distribuio

    de todos estes recursos. Como resultado, muitas das composies formadas no

    incio da atual gesto, consideradas pelo cacique a principal razo dessas

    conquistas, se encontram atualmente fendidas.

    De seu lado, a Guarda Indgena, ao obter vrios xitos no combate

    quela criminalidade, tornou-se inevitavelmente uns dos principais smbolos

    dessa administrao. Mas, diante desse ltimo quadro, e por ela ter, desde o

    incio, suscitado desconfianas mais tarde, confirmadas segundo certas

    avaliaes a mesma se transformou no alvo por excelncia das invectivas

    lanadas ao cacique e aos que se mantiveram do seu lado. A estratgia de

    aliana com agentes estatais agora seria usada tanto pelos que procuravam

    consagrar sua ao, como pelos que pretendiam conden-la. Como resultado,

    as atividades da Guarda encontram-se hoje suspensas.

    A Guarda Indgena Patax

    A Guarda Indgena foi criada pelo Conselho de Lideranas e Instituies

    da aldeia e sancionada pela comunidade em assemblia no incio de 2005. Suas

    atribuies foram definidas no Decreto Interno que a criou e, posteriormente,

    regidas por Estatuto prprio11. A mesma era composta por seis guardas, mais

    um chefe. Oficialmente no andavam armados, mas era de conhecimento geral

    que, para o combate ao trfico, mantinham armas de fogo no veculo em que

    realizavam suas rondas. Seu fardamento era composto por calados e cala

    preta, alm de uma camisa branca com o braso do Ministrio da Justia.

    11 O Decreto Interno N. 005/05 foi assinado em 15 de Janeiro de 2005. J o Estatuto da Guarda Indgena, em 10 de dezembro de 2007. Neste, constam os seguintes captulos: I) Da Constitucionalidade; II) Da Finalidade; III) Das Sanses Penais; IV) Dos Cargos da Guarda Indgena; V) Das Atribuies do Pessoal da Guarda Indgena; VI) Das Contrataes; VII) Da Remunerao; VIII) Das Demisses e Suspenses; e IX) Disposies Finais e Transitrias.

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    Sua necessidade apontada pela administrao como decorrente da

    confluncia entre o aumento da criminalidade e a omisso do policiamento

    estatal na aldeia12. Dentre os crimes elencados pela comunidade, os principais

    seriam o trfico de drogas, e os roubos, furtos e formao de gangues a ele

    associados. Outros ilcitos seriam a agresso domstica, o aliciamento de

    menores, estupros, brigas e insultos13. Apesar de divergirem sobre a existncia

    de alguns destes problemas, as demais pessoas ouvidas compartilham da

    percepo de seu aumento e tambm da ausncia policial14.

    Tal aumento, por sua vez, atribudo por administrao e demais

    moradores a um conjunto de fatores. De um lado, a saturao comercial do

    artesanato somada escassez de alternativas ocupacionais manteria muitos

    moradores na ociosidade. Cuidaria de pressionar tal situao o progressivo

    aumento populacional. O consumo de lcool, primeiro e de forma geral, e de

    drogas ilcitas, na seqncia e de modo mais restrito, seria oportunizado diante

    desta desocupao e falta de perspectivas. De outro, a total contigidade da

    aldeia com o distrito municipal que a circunda, somado ao intenso fluxo de

    estranhos que recebe por causa do turismo, tornaria de difcil controle tais

    problemas remetidos, notadamente, influncia do branco.

    O ingresso das drogas atribudo s restries legais que as polcias

    estaduais tm para atuar em terra indgena e ao carter turstico da regio15.

    Isto teria incentivado traficantes da regio a criarem bocas de fumo na rea da

    aldeia, envolvendo indgenas neste comrcio ilegal e utilizando o espao como

    refgio em relao polcia. Seus consumidores locais, a fim de sustentar o

    vcio, teriam comeado a furtar ou roubar parentes e turistas. A disputa por tal

    comrcio, por outro lado, fomentara a criao das gangues. As demais formas

    12 A Polcia Civil e Militar se eximiam de atender chamados na aldeia alegando restries legais para atuarem em territrio indgena. J a Polcia Federal, sua falta de efetivo para tanto. 13 No levantamento que fiz a partir do Livro de Ocorrncias da Guarda relativo ao ano de 2008, dos 155 casos registrados, 32% foram referentes a furtos/roubos; 24% a insultos, ameaas e brigas; 10 % a agresso domstica; 8% a quebras de acordo/contrato; e 6% a crimes contra menores. Os demais casos se referiam decrescentemente a badernas e escndalos; arrombamentos e vandalismo; abuso de lcool ou drogas; estupro e assdio; crime ambiental; queixas contra a administrao; tentativa de assassinato; e porte de arma de fogo. 14 Quando interpelados pelo pesquisador, nem sempre os moradores assumiam a existncia de problemas na aldeia. Relatos sobre roubos, brigas e bebedeiras eram os mais comuns. Casos envolvendo drogas eram pouco mencionados. Menos ainda os de violncia sexual. 15 Dentre as drogas consumidas, relata-se o uso de maconha (mais comum), craque e cocana.

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    de violncia teriam acompanhado ou, ao menos, tornado-se mais visveis com o

    crescimento destes problemas.

    A soluo pelo formato policial assumida pelo prprio cacique. Segundo

    ele, ela nasceu a partir da idia de institucionalizar as aes que, j no incio de

    sua administrao, vinham sendo tomadas para combater o trfico de drogas:

    rondas noturnas responsveis por fiscalizar a circulao de pessoas e veculos

    estranhos. Tais rondas teriam desmantelado as bocas de fumo conduzidas por

    indgenas dentro da aldeia, e com isto inibido esse comrcio. A proposta,

    efetivada com a Guarda, era a de que, com a institucionalizao, tais rondas

    pudessem ser regulamentadas, diversificadas e remuneradas atravs da

    Secretaria de Assuntos Indgenas16.

    Conforme seu Estatuto, o objetivo da Guarda seria o de manter a paz,

    harmonia e tranqilidade dentro da aldeia; vigiar e fiscalizar seu patrimnio

    cultural e natural; garantir a segurana de seus moradores e visitantes; e

    fazer cumprir suas regras de convvio social. Para isso, procuraria coibir

    aes ilcitas, conscientizar moradores, especialmente os envolvidos nestes

    atos e, de forma eventual, encaminh-los s lideranas e/ou s autoridades

    policiais. Tal coibio ficaria a cargo das rondas. J a conscientizao

    aconteceria a partir dos conselhos dados pelas lideranas e os prprios guardas

    no convvio dirio na comunidade, mas tambm atravs de projetos educativos

    promovidos na aldeia com a ajuda de ONGs.

    Na ocorrncia de um conflito, a Guarda se encarregaria de convidar ou

    conduzir as partes a seu Escritrio. A as denncias eram registradas e as

    disputas discutidas atravs da mediao de seu chefe e/ou do cacique. No fim,

    acordos, conselhos, advertncias e/ou punies eram pronunciadas. Casos de

    furto/roubo sem testemunhas conduziam a investigaes informais e, sendo

    identificado o autor, a reparao era providenciada. Reincidncia envolveria

    ainda pena alternativa. Reincidncias secundrias ou situaes mais graves

    poderiam exigir o apoio das polcias estatais, sendo o infrator encaminhado

    delegacia. A este poderia ficar detido para se acalmar ou, dependendo da

    gravidade do delito, para ser submetido a processo judicial. 16 Os guardas indgenas, como outros membros da administrao da aldeia, eram contratados pela Secretaria de Assuntos Indgenas da Prefeitura.

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    Em campo, pude vrias vezes presenciar tal processo. Os casos

    observados diziam respeito a situaes de conflitos familiares, no pagamento

    de penso, aliciamento de menores, furtos, brigas, ameaas e descumprimento

    de acordos. Como resultado da mediao, observei aconselhamentos, acordos

    de reparao, avisos de no-mais-tolerncia a situaes de reincidncia, e

    casos encaminhados justia estatal. Numas das estadias, presenciei o

    desenrolar de uma situao bastante tensa envolvendo ameaa de morte que

    colocou em evidncia a recorrncia Guarda, num momento em que ela j se

    encontrava suspensa. Nela, ficaram revelados os transtornos envolvidos na

    dependncia exclusiva do policiamento estatal: demora, desamparo e descaso.

    Com estas aes, nos trs primeiros anos de atuao a Guarda

    conseguira diminuir de forma significativa os problemas que vinham assolando a

    aldeia17. Isto no quer dizer, no entanto, que existia total acordo quanto a sua

    criao, a seus procedimentos, e/ou postura de alguns de seus membros. Em

    parte, os acontecimentos que levaram a sua suspenso estiveram ligados a

    estas divergncias, que no deixaram de ser utilizadas pelos opositores dessa

    administrao para enfraquec-la.

    A partir do ano de 2007, diante de denncias sobre a falta de segurana

    nas terras indgenas do sul da Bahia promovidas pelo prprio cacique, a

    Procuradoria da Repblica no estado impetrou Ao Civil Pblica (ACP)

    exigindo da Unio providncias a respeito18. Na mesma Ao, entretanto,

    tambm pedira a suspenso da assistncia salarial que a Prefeitura concedia

    Guarda, por consider-la uma instituio ilegal, com base numa outra srie de

    denncias que se fazia contra ela, organizadas pelo grupo de oposio, mas

    que reuniam abaixo-assinados e relatos gerais acusando-a de perseguio e

    atos violentos. Por esta poca, tanto a Polcia Federal, que no incio a apoiara,

    como a FUNAI, tambm j a consideravam uma milcia 19.

    17 Os relatos comunitrios so praticamente unnimes a este respeito, e ofcios da Polcias Civil e Militar, bem como de empresrios da regio o corroboram. Queixas so reportadas ao ltimo ano, quando a mesma j estava em vias de ser suspensa. 18 A ACP em questo foi ajuizada pela Procuradoria da Repblica no Municpio de Eunpolis/BA, em 14 de maio de 2007, atravs do procurador Paulo Augusto Guaresqui. 19 Para o cacique, a mudana de atitude da PF e a viso da FUNAI, ento chefiada na regio por outro de seus opositores, se devia ao fato de, em suas denncias ao Ministrio Pblico, ele fazer constantes referncias a omisso destes dois rgos no que se refere segurana da aldeia.

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    Tais acusaes, no entanto, no chegaram a interferir no trabalho da

    Guarda. Ajudava neste sentido parecer emitido pela Procuradoria da FUNAI na

    Bahia favorvel a instituio20. Em maro de 2008, porm, trs de seus

    integrantes foram presos em uma diligncia federal por porte ilegal de arma. O

    episdio mobilizou toda a comunidade em torno de sua soltura, conseguida uma

    semana mais tarde. Apesar da liberao, o trio manter-se-ia afastado das

    atividades durante trs meses consecutivos, por dvidas quanto a sua condio

    processual. Aqui, rumores conjeturavam que a priso fora uma armao para

    prejudicar o cacique, apesar de no haver provas que o confirmassem.

    Desde ento, a incerteza sobre a legalidade da Guarda, alm do abalo

    causado pela priso, passaram a afetar tanto a rotina, como a confiana de seus

    membros que, como relatam, passaram a ser desrespeitados por aqueles que,

    geralmente, eram as vtimas de sua abordagem. A situao tornou-se

    insustentvel quando, com a derrota nas eleies municipais de outubro, o

    ento prefeito cancelou a maior parte dos contratos da Secretaria de Assuntos

    Indgenas, afetando diretamente a remunerao dos guardas e fazendo com

    que dois teros de seu efetivo se afastassem das funes. A promessa do

    prefeito eleito de resolver a situao, por sua vez, foi sendo adiada pela

    alegao de que a antiga gesto deixara vrias dvidas, obstando a realizao

    de novos contratos, e depois tornada impraticvel, dado o acatamento judicial

    das aes requeridas pelo Ministrio Pblico.

    Tal suspenso, portanto, vigora desde o final de 200821. Sua ausncia

    tem incentivado, aos olhos de seus moradores, o retorno de certa tenso

    aldeia, motivado especialmente pelo revigoramento de algumas bocas de

    fumo. A presena destas tm estabelecido uma espcie de toque de recolher

    tcito em certas ruas da comunidade, alm de re-intensificado atos de furto,

    roubo e violncias diversas. Apesar de acordos terem sido realizados com as

    20 No Parecer JUR/PGF/FUNAI/ERA/BPS/ N. 06/07, de 20/03/2007, que foi conseguido margem da chefia do rgo local, o Procurador Federal Christian Reis de S Oliveira, avaliando a possibilidade de instituio da Guarda Indgena conclui que a instituio indgena pode, sim, exercer funes de polcia militar, guarda municipal ou segurana privada, com o fim de efetuar prises em flagrante, mas sem que seus membros portem arma de fogo, bem como aplicar as punies previstas em sua regulamentao, desde que no se afigurem desumanas. 21 O cacique taxativo em dizer que a Guarda Indgena no acabou, pois a deciso judicial em questo apenas proibiu a Prefeitura de subsidiar suas atividades, mas no se pronunciou sobre a ilegalidade da instituio.

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    Polcias estaduais a partir da mediao dos Ministrio Pblico, os Patax

    continuam a reclamar, seja das abordagens indevidas destes policiais, seja do

    seu descaso para com os problemas gerados dentro da aldeia. Tudo isto no

    deixa de despertar certo lamento pela suspenso da Guarda, mesmo entre

    aqueles que apontavam para seus problemas, alegando que se tratava acima de

    tudo de corrigi-los, e no de sacrificar toda a iniciativa pelos seus erros.

    Policiamento Indgena: da marginalidade geral a suas moralidades especficas

    O policiamento indgena no Brasil um tema marginal. Com isto estou

    me referindo no s significativa escassez de discusses a seu respeito, mas

    tambm forma efmera como a questo costuma ser exposta, e ainda ao

    carter denunciativo e condenatrio destas exposies. Qual a razo desta

    marginalidade? De sada, a relativa referncia a experincias de policiamento

    indgena em notas, artigos e monografias da rea, em documentos oficiais, ou

    mesmo nos meios de comunicao, indica que ela no poderia estar ligada

    ausncia de experincias deste tipo no pas, nem mesmo ao desconhecimento

    delas por parte de nossos pesquisadores.

    Sem entrar no mrito geral dessa escassez e efemeridade, gostaria de

    indicar algumas razes para os juzos negativos que so destinados ao tema.

    Suponho que, de partida, isto envolva certas idias quanto organizao das

    sociedades indgenas. Para Pierre Clastres (2003), por exemplo, a sociedade

    primitiva seria contra o Estado, uma vez que ela contra a separao do

    poder, contra a diviso entre os que mandam e os que obedecem e, logo, contra

    os aparatos institucionais que serviriam ao suporte de tal comando. E, no

    sendo o desejo desta sociedade dividir um poder que, nela, pertenceria ao

    coletivo, apenas uma violncia externa poderia promover tal coisa22.

    A antroploga Alcida Ramos, por sua vez, tratando das sociedades

    indgenas das terras baixas sul-americanas, afirma que as mesmas so

    22 Clastres (2003), porm, no deixa de indicar limites para a promoo desta sociedade indivisa, como nas situaes de guerra, em que o chefe, de fato, manda; ou quando o crescimento demogrfico pe em risco tais caractersticas organizacionais.

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    34 ENCONTRO ANUAL DA ANPOCS Caxambu, Outubro de 2010.

    sociedades onde no h poder centralizado, onde no h polcia nem

    constituio escrita, nem tribunais, nem cdigo civil ou penal, nem cadeia,

    exceto nos casos em que teria sido introduzida pelos brancos (Ramos,

    1986:60) o que, de fato, corroborado por uma mirade de exemplos

    histricos. O que no texto no fica to claro se a percepo de tal falta

    apenas uma constatao emprica ou constitui uma atribuio categrica23.

    Seja como for, em ambos, a polcia, sendo uma funo prpria da

    sociedade de tipo estatal, apareceria como algo anormal, seno antagnico, s

    organizaes sociais indgenas. Como corolrio, sua ocorrncia nelas s

    poderia ser explicada pela imposio. Esta imposio, em conjunto com seus

    efeitos, conformaria o juzo condenatrio lanado ao policiamento indgena,

    como o atesta a maioria dos comentrios existentes sobre a questo. Estes

    comentrios se referem, basicamente, a casos de polcia indgena existentes

    h poca do SPI; aos que remanesceram aps o ocaso do rgo; mas tambm

    Guarda Rural Indgena (GRIN), criada j na gesto da FUNAI24.

    Todas estas experincias de policiamento geraram uma srie de

    problemas para os grupos indgenas onde ocorreram. Sustentado por tais

    polcias, os encarregados dos postos do SPI, depois passados ao controle da

    FUNAI, os administravam de forma autoritria prendendo ndios, lhes exigindo e

    fiscalizando servios, e enfraquecendo as lideranas tradicionais atravs de sua

    ingerncia (Cardoso de Oliveira, 1968; Pires & Ramos, 1980). Outra no era a

    funo da GRIN. Com a diferena de que estava subordinada diretamente

    Polcia Militar, este aparato policial tinha o objetivo de manter a ordem, efetuar

    prises, impor trabalhos, denunciar infratores e controlar os deslocamentos nas

    reas indgenas (Paraso, 1998; 1999).

    23 Neste sentido, parece-me mais prudente argumentar, como Melatti (2007:155), que de modo geral, falta s sociedades indgenas do Brasil uma autoridade centralizada, uma mquina administrativa, instituies judiciais [grifo meu], do que caracteriz-las por esta falta, como parece indicar a referida autora. 24 Corra (2000) destaca a existncia de polcias indgenas h poca do SPI nos Postos Indgenas Pancararu (PE), Bananal, guas Belas, Taunay (MS), Ipegue (MS), Francisco Horta (MS), Nalique (MS), Cacique Doble, Cacique Capanema, entre povos indgenas do Maranho e entre os Kaiap (PA). Indicaes de policiamento indgena ps-SPI foram encontrados em Pires & Ramos (1980) para Kaingang e Guarani (PR); em Oliveira (1988) para os Tikuna (AM); e em Santos (1992) para os Xokleng. A GRIN foi criada 1969 e absorveu ndios das etnias Karaj, Krah, Xerente, Gavio e Maxacali (Freitas, 1999; Corra, 2000).

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    34 ENCONTRO ANUAL DA ANPOCS Caxambu, Outubro de 2010.

    As nicas monografias encontradas que discutem de forma mais

    sistemtica a questo se debruam principalmente sobre a GRIN25. Nestes

    trabalhos, os autores ratificam o conjunto de problemas acima referido, mas

    tambm procuram explicar tal experincia de policiamento luz da poltica

    indigenista. Para Heck (1996) e Freitas (1999), por exemplo, a GRIN o

    resultado, apurado no perodo da ditadura, do militarismo presente na poltica

    indigenista realizada no pas desde a poca da colnia. Corra (2000), por sua

    vez, criticando esta explicao militarista de longa durao, bem como a da

    excepcionalidade do tratamento dado ao ndio no regime militar, v a

    experincia da GRIN como uma continuidade, sim, mas da ao tutelar que

    marcara a poltica indigenista nacional a partir do SPI.

    Articulando-se como proteo, educao e punio esta ao tutelar

    estatal visava civilizar o ndio pelo trabalho. Alm disso, para manter a ordem

    no posto era preciso vigiar e, comumente, prender e punir os ndios

    desajustados. Para isto, os chefes de posto recorreriam s delegacias, mas o

    prefervel era manter a soluo sob o domnio do rgo indigenista. Da a

    criao de um policiamento indgena responsvel por controlar as atividades,

    promover a coero fsica e mediar a relao tutor/tutelados. Para Corra

    (2000), mesmo a mudana de subordinao, a regulamentao, o treinamento e

    assalariamento, bem como a ampliao de atribuies ocorridas com a GRIN,

    no teriam representado uma significativa alterao em relao s idias

    tutelares que orientavam as experincias anteriores26.

    25 Trata-se da dissertao de mestrado em Cincia Poltica (UNICAMP) de Egon Heck (1996); da tese de doutorado em Histria Social (USP) de Edinaldo Freitas (1999); e da dissertao de mestrado em Antropologia Social (UFRJ) de Jos Gabriel Corra (2000). 26 A GRIN compartilhava com as polcias do SPI todas as atribuies de controle, mas acrescia uma ateno questo ambiental e turstica. O assalariamento pela FUNAI tambm no chegou a representar grande mudana, uma vez que, aos policiais do SPI, tambm eram concedidos favorecimentos. A regulamentao tambm no chegava a ser uma novidade completa, pois esse policiamento, alm de institucionalizado em 1960, j seguia rotinas bastante difundidas pelo rgo desde a dcada de 1930. O treinamento recebido pela GRIN, por sua vez, serviu principalmente para inculcar uma grande obedincia dos guardas para com seu comandante militar. Tanto Heck (1996), como Freitas (1999), destacam esta subordinao Polcia Militar como um indicativo da militarizao sofrida pela questo indgena no regime militar. Mas, para Corra (2000), a semelhana entre a rotina indigenista nacional e a militar no estado de Minas Gerais no permite identificar nenhuma grande ruptura neste sentido. O que esta subordinao teria provocado, de fato, fora a disputa entre esta Polcia e o rgo indigenista pela autoridade nas reas de atuao da GRIN, dada a grande obedincia desta ao primeiro.

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    34 ENCONTRO ANUAL DA ANPOCS Caxambu, Outubro de 2010.

    O que quero reter de todos estes trabalhos a obstinao em tomar o

    policiamento indgena sob o ponto de vista da imposio estatal. Isto, claro,

    tem que ver com os objetivos de cada obra. Mas, salta aos olhos a passividade

    dos povos indgenas afetados por esta imposio a no ser quando para

    reproduzi-la. Corra (2000), no limiar de sua concluso, toma a punio pela

    amarrao e surra em uma aldeia no sul do pas, como um exemplo de que as

    prticas outrora vivenciadas e ensinadas foram inseridas e naturalizadas.

    Mesmo Freitas (1999), ao tentar promover uma etno-histria krah sobre a

    GRIN, mostra-se hesitante sobre a insistncia krah em dizer que possvel ser

    um soldado-ndio ao invs de, apenas, virar soldado. como se s restasse aos

    povos indgenas copiar uma ao estatal, mas nunca apropriar-se dela.

    O nico dos autores aqui citados que, sem desconhecer o controle

    repressivo que a polcia indgena exercia para os Postos, abre espao para se

    perguntar sobre o papel que ela desempenha no seio da comunidade,

    Cardoso de Oliveira (1968). Ainda que breve, o autor destaca no s o receio

    dos recrutados nestas polcias de se verem antipatizados pela comunidade e

    nela ganhar inimigos inevitveis; mas tambm as conseqncias da ao

    policial de obrigar agressores a ressarcimentos, substituindo, com isso, o mero

    corretivo disciplinar por um instrumento relativamente eficiente para a

    manuteno da famlia da vtima, uma vez que transferia queles a

    responsabilidade por esta manuteno (Cardoso de Oliveira, 1968:113).

    Este caso demonstra que h mais nessa prtica policial indgena do que

    to somente represso. Seja como for, todos os exemplos at aqui citados tm

    em comum o fato de terem sido promovidos pelo Estado. Esta condio, apesar

    de no encerrar o sentido das apropriaes indgenas, indica as intenes

    estatais de controle sobre essas sociedades, bem como a imposio de

    procedimentos especficos para este fim, procedimentos estes que terminaram

    sendo adotados pelos prprios grupos indgenas. Mas o que dizer de casos,

    como o patax, onde a soluo policial no se deve a constrangimentos

    estatais, e sim a um encaminhamento dado pelo prprio grupo?

    Na Terra Indgena Dourados, estado de Mato Grosso do Sul, a polcia

    indgena remonta poca do SPI. Nesta terra, entretanto, convivem trs grupos

    indgenas: guaranis kawo e andeva, alm de terenas. Os ltimos, apesar de

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    34 ENCONTRO ANUAL DA ANPOCS Caxambu, Outubro de 2010.

    estarem em menor nmero, sempre controlaram tais aparatos policiais,

    promovendo, inclusive, a perseguio dos demais. O ponto a destacar que, no

    final da dcada de 1990, diante de um aumento substantivo destas

    perseguies intergrupais e aps a notcia de mortes a elas associadas, o

    Ministrio Pblico Federal pediu a priso dos lderes destas polcias, bem como

    seu fim. Entretanto, o que foi motivo de comemorao inicial, tornou-se a razo

    de novas formas de violncia na terra indgena, agora causadas pela falta de

    mecanismos internos de manuteno da ordem diante da ausncia policial

    estatal e da constncia de problemas ligadas ao uso de drogas e a vendetas

    entre os membros destes grupos27.

    J na regio do Alto Solimes, Amazonas, vrios meios de comunicao

    veicularam, durante todo o ano de 2009, notcias a respeito de polcias

    indgenas criadas em vrias comunidades ticunas. Segundo seus criadores, elas

    se fizeram necessrias dada a alta incidncia de crimes nas aldeias, derivados

    do uso de bebidas e drogas, mas tambm motivadas pela ausncia completa

    das autoridades estatais nestes territrios. As aes dessas polcias, algumas

    chamadas de Servio de Proteo ao ndio (SPI em aluso direta ao antigo

    rgo indigenista), outras de Polcia Indgena do Alto Solimes (Piasol), tm sido

    consideradas ilegais pela Polcia Federal e pela FUNAI, que as consideram

    como milcias, associando-as , inclusive, com as Farcs.

    Tantos nestes dois exemplos, como no dos Patax, o que se percebe

    que, longe de responder a alguma exigncia estatal, tais grupos esto se

    apropriando do trabalho policial para responder a necessidades que so suas.

    Alm disso, o fazem por uma total ausncia do Estado em seus territrios no

    que diz respeito a questo da segurana. Tais solues, entretanto, ainda que

    orquestradas pelos prprios grupos, no deixam de criar situaes bastante

    problemticas, como o indica a situao em Dourados. Tais solues, portanto,

    nem sempre se configuram pacficas, envolvendo vrias disputas. Mas, diante

    de tantas dinmicas, como abordar a apropriao indgena deste policiamento?

    27 Agradeo ao analista pericial em antropologia Marcos Homero Ferreira Lima, da Procuradoria da Repblica em Dourados, pelas informaes relativas ao policiamento indgena nesta terra indgena. Tais interpretaes sobre esta situao, porm, so de minha responsabilidade.

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    34 ENCONTRO ANUAL DA ANPOCS Caxambu, Outubro de 2010.

    Alguns estudos sobre experincias estrangeiras de policiamento indgena

    indicam como se daria os caminhos dessa apropriao. Griffiths (1988), falando

    do Canad, Langton (1992), da Austrlia, e Wakeling et al (2001), em relao

    aos EUA, ao discutirem a sobre-representao dos povos indgenas no sistema

    de justia criminal destes pases, so unnimes em reconhecer uma maior

    eficincia deste tipo de policiamento para diminuir crimes, evitar prises e

    aperfeioar a relao destes povos com os aparatos policiais e jurdicos do

    Estado. Tal eficincia atribuda ao coordenada entre agncias estatais e

    grupos indgenas, garantindo-se a estes sua autonomia, mas, sobretudo,

    capacidade destes grupos de criarem prticas policiais e de resoluo de

    disputas alinhadas a preocupaes, compromissos e expectativas cultivados em

    suas comunidades.

    Ou seja, o policiamento indgena, alm de ser associado a mecanismos

    de resoluo de disputas, seria informado por critrios locais. A importncia de

    um saber local para a compreenso das formas de vida jurdica promovidas

    pelas diferentes culturas, discutida por Geertz (1998). Para este autor, toda

    deciso jurdica seria informada por um senso de justia atrelado a uma viso

    de mundo. Este senso de justia poderia ser percebido atravs do modo

    especfico como cada grupo organiza os smbolos que emprega, as estrias

    que conta e as distines que estabelece para justificar tais decises. E,

    mesmo que as prticas adotadas para estas decises sejam impostas, o

    relevante seria a maneira como esto sendo postos pelos grupos, segundo os

    saberes locais que lhes do sentido (Geertz, 1998).

    A preocupao deste autor em afirmar a prioridade da viso de mundo

    que informa as prticas jurdicas sobre os regulamentos, os procedimentos ou

    as relaes de poder que as expressam, envolve uma crtica trajetria da

    discusso antropolgica do fenmeno jurdico. Os dois paradigmas que

    marcaram esta trajetria, o centrado nas regras e o processual, s teriam

    sido superados quando se assumiu que a ateno s regras e aos interesses

    pessoais que os caracterizavam, no poderiam ser compreendidos de forma

    excludente e fora da ordem sociocultural que informava a ambos (Camaroff &

    Roberts, 1981). Posteriormente, no entanto, a compreenso desta ordem

    sociocultural como limitada ao universo local, deu lugar a perspectivas que a

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    34 ENCONTRO ANUAL DA ANPOCS Caxambu, Outubro de 2010.

    inseriram num tempo histrico nacional e mundial, onde as relaes de poder

    so essenciais para a explicao da persistncia e mudana do direito, bem

    como da sua funo ideolgica e dominadora (Starr & Collier, 1989).

    Porm, assumir o carter interativo, dinmico e histrico dos grupos

    indgenas, bem como sua posio assimtrica em relao ao Estado, no

    deveria implicar no sacrifcio de sua perspectiva, ou mais claramente, de sua

    cultura. Entendida como uma maneira especfica de organizao da

    experincia e da ao humanas por meios simblicos (Sahlins, 1997:41), e no

    como o conjunto de smbolos que eventualmente ela aciona (como o cr a

    vulgata anticulturalista), a idia de cultura de modo algum exclui a

    constitutividade interativa das coletividades sociais, sendo, ao contrrio, aquilo

    que demarca a diferena entre elas, no pelo que expressa, mas pela forma

    como organiza o que expressa.

    Isto no quer dizer, como prope Geertz (1998), que o que imposto

    dentro ou sobre uma cultura, seja irrelevante. As disputas e relaes de poder

    que se do a nvel local, alm de suas articulaes extralocais, so de extrema

    importncia para a constituio das ordens legais surgidas a este nvel.

    Entretanto, a compreenso das razes que promovem tanto as disputas, como

    as articulaes, deve ser feita a partir do sentido que os nativos lhes do e no

    atravs de concepes pr-estabelecidas do que elas possam significar (Merry,

    1992), como indicado na avaliao do policiamento indgena no Brasil.

    Para Lus Cardoso de Oliveira (1992:38), por exemplo, a descrio de

    uma disputa no pode levar em considerao apenas o contexto cultural em que

    a mesma ocorre (como Geertz se limita a dizer). Para ser densa, tal descrio

    tambm precisa levar em considerao o contexto situacional da disputa (sua

    tipificao normativa), bem como o do caso particular em questo. Sem isto, no

    seria possvel compreender as razes que tornam legtima, de forma geral, mas

    tambm adequada, de maneiras especficas, a adoo, por exemplo, da soluo

    policial por um grupo indgena. Longe de excluir a relao de poder que possa

    estar envolvida em processos assim, tal perspectiva aponta que as distintas

    razes dentro do grupo precisam fazer sentido entre si, e as do antroplogo com

    elas, para valerem como crtica.

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    34 ENCONTRO ANUAL DA ANPOCS Caxambu, Outubro de 2010.

    A Legitimidade envolvendo a Guarda Indgena Patax

    Dadas as variaes presentes no que diz respeito s avaliaes sobre o

    trabalho da Guarda Indgena, estas poderiam ser tipificadas em positivas,

    regulares e negativas28. O mais significativo nestas avaliaes, porm, so os

    argumentos utilizados para fundament-las.

    Do ponto de vista do cacique, de algumas lideranas e dos guardas, a

    diminuio dos crimes um dado inconteste. Segundo eles, apesar de, em sua

    fase inicial, a Guarda ser recebida com desconfiana por muitos moradores, na

    medida em que a fiscalizao e conscientizao iam se afigurando como o

    cerne de seu trabalho, esta ia sendo mitigada. Tal mudana de percepo,

    entretanto, tambm se deveu a conformaes da prpria instituio em relao

    comunidade. Sua primeira chefia, por exemplo, foi assumida por um dos atuais

    e jovens guardas, devido a sua formao educacional. Logo se percebeu que tal

    requisito no correspondia s expectativas dos moradores em relao a um

    rgo destinado a dar conselhos. A assuno do cargo por um ex-cacique, por

    sua vez, trouxe-lhe o respeito esperado.

    A prpria administrao, no entanto, admitia haver limitaes no trabalho.

    Estas eram atribudas falta de recursos materiais e tcnicos, carncia de um

    veculo prprio, de fardamento e equipamento, bem como de cursos de

    formao. Tambm era admitida a existncia de insatisfaes entre membros da

    comunidade quanto ao trabalho realizado. As famlias insatisfeitas, neste caso,

    eram identificadas como aquelas que no aceitam ter integrantes seus

    abordados pela Guarda e/ou encaminhados polcia, mesmo quando em erro.

    Alm disso, tal desagrado, tido como minoritrio na aldeia, seria potencializado

    pela oposio poltica atual administrao a fim de desmerec-la.

    Para as demais pessoas da comunidade, entretanto, as avaliaes sobre

    a Guarda eram variadas, isto tanto em relao a qualidades, quanto a defeitos.

    Entre os que a tomavam positivamente, as razes para isso envolviam um

    28 Das trinta e quatro pessoas ouvidas, vinte avaliaram a Guarda Indgena de forma positiva, sete como sendo regular, e outras sete de forma negativa (foram consideradas avaliaes positivas: bom, timo, melhor do que antes; as regulares: mais ou menos, positiva e negativa, bom em parte, tem uns que trabalham certinho, outros no; e as negativas: no bom, no serve, no faz nada, no est de acordo).

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    34 ENCONTRO ANUAL DA ANPOCS Caxambu, Outubro de 2010.

    conjunto de virtudes: alm do combate ao crime, a Guarda promoveria no s a

    segurana local, como auxiliaria as famlias na tarefa de alertar crianas e

    jovens quanto aos efeitos das drogas e os problemas da prostituio (nisto, junto

    aos comissrios); ajudaria a organizar a atividade turstica na aldeia,

    especialmente na praia, que outrora era promovida sem controle; e, diante dos

    problemas ocupacionais da comunidade, se apresentaria tambm como uma

    forma de renda alternativa.

    Tais virtudes eram corroboradas ainda por sua diferena com o

    policiamento estatal. A Guarda, ao contrrio da polcia, que seria distante e

    procuraria mesmo evitar problemas com ndios, estaria sempre presente na

    aldeia. Por outro lado, sendo composta por parentes, ela no abordaria seus

    iguais de forma agressiva e/ou opressora, como o fazia a polcia, mas,

    (re)conhecendo-os, procuraria antes entender a causa do problema,

    encaminhando-os para as lideranas a fim de receberem conselhos, reparaes

    ou punies, e, se fosse o caso, envi-los delegacia. Alm disso, porque

    alguns ndios acreditavam que a tutela os protegia de punies ou prises, s

    uma forma de policiamento indgena poderia lhes impor respeito.

    Outra diferena refere-se aos processos de resoluo de conflitos.

    Anteriormente, problemas menores eram sempre solucionados diretamente

    pelas famlias envolvidas ou atravs de um aconselhamento do cacique. J

    casos mais graves eram encaminhados delegacia, o que nem sempre resolvia,

    dado que, sem a autorizao da liderana, a polcia no poderia entrar na

    aldeia. Mesmo quando a polcia conseguia efetuar a priso, dependendo do

    caso, os caciques solicitavam sua soltura alegando a proteo da tutela. Tal

    situao fazia com que, muitas vezes, no houvesse a quem recorrer. Com o

    Estatuto da Guarda, no entanto, as regras quanto punio seriam mais claras

    e passveis de reclamao.

    Por tudo isso, a criao da Guarda apareceria a este grupo como algo

    positivo, muitas vezes expresso como envolvendo a volta do respeito na e pela

    comunidade. O interessante nisso que, ao justificarem assim sua avaliao,

    estas pessoas no esto fazendo referncia apenas a sua funo policial em

    sentido estrito. As virtudes que lhe so atribudas, as diferenas que a

    distinguem da polcia estatal, bem como as mudanas na forma de resolver as

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    34 ENCONTRO ANUAL DA ANPOCS Caxambu, Outubro de 2010.

    disputas que com ela foram implantadas, se articulam num processo maior de

    administrao de conflitos. E, ao que parece, sem esta articulao, a Guarda

    dificilmente obteria xito.

    Em meio a essas virtudes, no entanto, tal grupo no deixava de constatar

    certas faltas. Haveria a necessidade de uma melhor preparao no que diz

    respeito ao tratamento dado aos moradores da aldeia, bem como aos turistas

    o que remetido baixa escolaridade, e/ou a pouca idade/maturidade de alguns

    dos componentes da Guarda. Alm disso, eram reclamados cursos tcnicos na

    rea de segurana que ajudassem a aprimorar tal trabalho, bem como

    fardamentos, equipamentos, armamento para o combate ao trfico e veculo

    prprio. Por fim, apontava-se a necessidade, at para o atendimento destes

    requisitos, de um maior apoio estatal.

    Mas, enquanto aqui tais faltas remetem apenas a carncias da Guarda,

    para os Patax que a avaliam de forma regular, essas faltas tambm

    compreenderiam infraes. Alm de destacar a formao educacional e tcnica

    e a maturao como importantes para a instituio, a acusao de que alguns

    de seus membros agiriam com ignorncia, truculncia e sem respeito, fazendo

    a instituio promover aquilo que deveria combater, por vezes atraia

    desconfiana em relao mesma. Tal grupo, no entanto, concordava com as

    virtudes e diferenas apontadas anteriormente, mas apontavam a necessidade

    de se criar mecanismos de fiscalizao e punio destes excessos

    institucionais.

    Este no era o caso dos que a avaliavam negativamente. Aqui, tambm

    por causa dessas infraes, mas no apenas, a Guarda Indgena apareceria

    como uma disfuno. Mas, as razes para isso divergiam. Para uns, a efetiva

    diminuio da incidncia de crimes na aldeia por ela proporcionada acontecera

    ao custo de criar outros problemas. O primeiro deles seria o j referido

    encaminhamento de infratores ao Escritrio ou delegacia. Sua exposio

    pblica traria um grande constrangimento s famlias envolvidas. Outro seria a

    prpria liberao dada polcia para atuar na aldeia, devido a seu tratamento

    repressivo e detenes equivocadas, trazendo ainda mais desrespeito. Alm

    disso, alguns moradores da aldeia j estariam marcados de antemo pela

    Guarda, tornando-os suspeitos prvios de qualquer problema.

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    Para outros, no entanto, ela no diminura em nada os problemas da

    aldeia. Aqui, ou ela seria apenas um cabide de empregos; ou se apresentaria

    como uma polcia de mentira (dada sua impossibilidade de fazer uso de armas

    de fogo e, portanto, de impor autoridade); ou ainda configuraria uma afronta

    (dada a inadmissibilidade da represso por outro parente). A diminuio de

    crimes seria devida to somente liberao concedida polcia estatal para

    atuar na aldeia, passando a inibir a ao de ndios criminosos. Deste ponto de

    vista, a diferena da Guarda com esta polcia, feita a partir dos parmetros que

    definiriam a ltima, expressaria to somente sua deficincia e impostura.

    O que tudo isso tem indicado que a segurana e administrao de

    conflitos em Coroa Vermelha esto informadas por valores compartilhados por

    todo o grupo. Percebo tais valores principalmente no uso generalizado da idia

    de respeito tanto do branco pelo ndio, como entre os parentes, e de

    todos para com a comunidade. Segundo esta idia, um policiamento aos

    moldes estatais dificilmente substituiria o compromisso tico que ela implica, e

    algum que se queira indgena, no deveria jamais prescindi-lo.

    Ao mesmo tempo, a Guarda indgena Patax no parece se resolver

    plenamente nem numa, nem noutra dessas figuraes. Sendo assim, no seria

    possvel compreend-la sem adensar uma descrio das consideraes,

    desconsideraes e reconsideraes que cada uma das posies acionam para

    (re)organizar as idias localmente cultivadas/confrontadas sobre essas relaes

    de respeito.

    Trata-se, assim, de encarar o fenmeno do policiamento indgena no a

    partir do primeiro destes termos, mas daquele que o qualifica, permanecendo

    aberto as alternativas que se abrem. Repressivas ou no, o importante seria

    pensar estas alternativas como expressando algo de prprio s coletividades

    que as engendram o que no o mesmo que pensar este algo como

    exclusivo, para no dizer extico. acessando as razes indgenas que

    orientam estas prticas policiais, e observando sua adequao moralidade

    coletiva a que esto referidas, que se torna possvel avali-las criticamente.

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