Andrea Cesco - Borges e a Traducao

download Andrea Cesco - Borges e a Traducao

of 17

Transcript of Andrea Cesco - Borges e a Traducao

  • Borges e a traduo 81

    BORGES E A TRADUO

    Andra CescoUniversidade Federal de Santa Catarina

    [email protected]

    ResumoNeste artigo procurarei mostrar um pouco do pensamento borgiano, no quese refere traduo. E para isso utilizarei cronologicamente os seguintestextos do autor: Las dos maneras de traducir (1926), Las versioneshomricas (1932), Los traductores de las mil y una noches (1934),Pierre Menard, autor Del Quijote (1939) e El enigma de EdwardFitzgerald (1951). Paralelamente, farei aproximaes entre o pensamentode Borges e de alguns tericos da traduo: Schleiermacher, Benjamin,Leopardi.Palavras-chave: Borges, traduo, teoria.

    AbstractIn this paper I will show a little of the borgian thought on/concerningtranslation. In order to do that I will use, in chronological order, the follow-ing texts of the author: Las dos maneras de traducer (1926), Las ver-sions homricas (1932), Los traductores de las mil y una noches (1934),Pierre Menard, autor Del Quijote (1939) and El enigma de EdwardFitzgerald (1951). Along with that I will make approximations betweenthe way of thinking or Borges and the way of thinking of some translationtheorists: Schleiermacher, Benjamin, Leopardi.Keywords: Borges, translation, theory.

    Borges sempre deixou claro, em sua autobiografia ou entrevis-tas, que sua cultura esteve repleta de tradues isso inclui o fre-qentar escritores de outros idiomas e sempre acreditou que

  • 82 Andra Cesco

    traduzir era uma forma de criar uma cultura e de engrandeceruma lngua, introduzindo nela os ecos de outras lnguas.

    Podemos dizer que no existe uma teoria, propriamente dita,borgiana da traduo, mas lendo os seus ensaios, resenhas, prlogos,entrevistas e fices crticas, podemos encontrar observaes brilhantessobre a traduo, mas que no so absolutamente metdicas.

    Neste artigo procurarei mostrar um pouco do pensamentoborgiano, no que se refere traduo. E para isso utilizarei crono-logicamente os seguintes textos do autor: Las dos maneras detraducir (1926), Las versiones homricas (1932), Lostraductores de las mil y una noches (1934), Pierre Menard, au-tor Del Quijote (1939) e El enigma de Edward Fitzgerald (1951).Paralelamente, farei aproximaes entre o pensamento de Borgese de alguns tericos da traduo.

    Para Borges no necessria uma teoria da traduo; no hnenhum problema quanto maneira como os homens traduzem, esim em como traduzir esta ou aquela linha, este ou aquele pargra-fo. Os problemas prticos da traduo s devem ser tratados, se-gundo ele, frente a textos concretos: um pargrafo, uma frase, umverso. O resto, diria ele, carece de sentido. Bruni, assim comooutros tericos, j havia exposto essa idia. Ele dir: [...] o senti-do das palavras avulsas diferente das mesmas formando conjun-tos frasais1.

    Borges no s reprovava a traduo literal como no acreditavanela. Vejamos o seu comentrio em uma conversa com ErnestoSbato2: eu conheci uma pessoa que traduzia palavra por palavra,e interrompia seu trabalho cada vez que tocava a campainha daporta. Imagine os disparates que saam.... E Sbato lhe respondeque para traduzir no basta conhecer a fundo o idioma. precisoler o livro profundamente, e alm disso, conhecer a concepogeral do mundo que o autor tem. Borges concorda e acrescenta:Claro. No um trabalho tcnico ou mecnico....

    Sergio Pastormerlo3 diz que Borges opta precisamente pela di-reo contrria a que um terico da traduo escolheria: em vezde usar certas reflexes sobre a literatura para construir uma teo-

  • Borges e a traduo 83

    ria da traduo, toma como ponto de partida as tradues paraelaborar certas reflexes sobre a literatura: a figura do autor, aleitura, as crenas e as valorizaes literrias.

    Las dos maneras de traducir4 o primeiro texto crticoborgiano dedicado traduo. Nele o autor comenta a sentenaitaliana traduttore traditore dizendo que, ao contrrio, acredita emboas tradues de obras literrias, e acrescenta que at os versosso traduzveis. Mais adiante vamos ver o que Borges dir dessasentena italiana, numa entrevista de 1981, ou seja, 55 anos depoisde escrever este artigo.

    Borges, desde os seus primeiros textos, compreende que o g-nero das tradues no ocupa um lugar lateral na histria literria,e compreende tambm que muitos aspectos da literatura se deixampensar melhor no espao das tradues que em outras zonas liter-rias.

    Como o prprio ttulo revela, neste artigo Borges retoma a dis-tino habitual entre duas maneiras de traduzir: a clssica e a ro-mntica. A primeira pratica a perfrase, enquanto a segunda aliteralidade. ideologia clssica importam menos os escritoresque os textos, o tradutor no obrigado a reter todas as irregulari-dades do texto original, j que estas pouco ou nada importam apartir da perspectiva impessoal. Segundo o autor, para esta ideolo-gia a literatura annima e de todos; os textos so rascunhos queadmitem sempre uma correo, e os tradutores so aqueles quetm a oportunidade de realiz-la sem render homenagens s mani-as ou s distraes do escritor anterior. Quanto ideologia romn-tica, a individualidade dos autores importa mais que os textos, otradutor um mal necessrio, que se interpe entre o texto originale o leitor.

    Segundo Pastormerlo5, no faltam argumentos para sustentarque Borges aderiu a esta utpica ideologia clssica da literatura.Em vrias de suas fices aparecem personagens escritores querepetem textos alheios (Pierre Menard). No ensaio de 1922, Lanadera de la personalidad6, Borges tentou dissolver a noo de

  • 84 Andra Cesco

    identidade pessoal com argumentos extrados do idealismo, paralogo aplicar literatura as conseqncias dessa refutao filosfi-ca. Nele se l essa contundente certeza: la personalidad de losseres humanos est, esencialmente, hecha de momentos, y, comoellos, es algo cambiante, contradictorio, puntual. No existe, segun-do Borges, nada capaz de definir a um indivduo para sempre, por-que cada um quem , porque o dia-a-dia o tornou assim, apenassomos uma construo parcial, reflexo das circunstncias vividas.

    No segundo texto, Las versiones homricas7, Borges comen-ta que as escrituras diretas, ou seja, os originais, so velados pelotemor de se confessar processos mentais, e pelo esforo em man-ter intacta uma reserva incalculvel de sombra. J, a traduo,parece destinada a ilustrar a discusso esttica. O modelo proposto sua imitao um texto visvel, e no um labirinto. Vale lembrarque Dryden foi o que introduziu a imitao. E Schleiermacher8

    ressaltar tambm que a imitao mais utilizada nas belas artes;com a diversidade das lnguas, com a qual tantas outras diversida-des esto ligadas, no restaria outra coisa a no ser esboar umaimitao (2001, p. 41).

    Borges indaga ainda sobre o que so as vrias verses da Ilada,seno diversas perspectivas de um fato mvel, seno um longo lan-ce experimental de omisses e de nfases? Presuponer que todarecombinacin de elementos es obligatoriamente inferior a su ori-ginal, es presuponer que el borrador 9 es obligatoriamente inferioral borrador H ya que no puede haber sino borradores (BORGES,1996, p. 239). Essa frase sintetiza justamente a ideologia clssicada literatura. O autor, como vimos em Las dos maneras detraducir, voltar a afirmar que os textos so rascunhos. Mas,entendemos como rascunho quele texto que sempre vai admitiruma correo, ou seja, uma nova traduo, uma nova maneira deinterpretar, e no um conjunto de anotaes que vo servir de basepara dar feio definitiva ao texto, porque para Borges o con-ceito de texto definitivo no corresponde seno religio ou aocansao.

  • Borges e a traduo 85

    Ainda neste texto, Las versiones homricas, Borges dir quea superstio da inferioridade das tradues procede de uma dis-trada experincia. No h um bom texto que no parea invarivele definitivo se o praticamos um nmero suficiente de vezes. Comos livros famosos, a primeira vez j a segunda, posto que j osabordamos sabendo-os. A precavida e corriqueira frase reler osclssicos se reveste de inocente veracidade. E assim diria ele:

    O Quixote, graas a meu exerccio congnito do espanhol, ummonumento uniforme, sem outras variaes que as deparadaspelo editor, encadernador e o tipgrafo; a Odissia, graas ameu oportuno desconhecimento do grego, uma bibliotecainternacional de obras em prosa e verso (Borges, p. 240).

    Borges termina este texto afirmando que as tantas verses daOdissia so todas sinceras, genunas e divergentes. Ento qualdas tradues fiel? Todas, e nenhuma.

    Agora, vejamos o que Borges tem a dizer a respeito das tradu-es dos seus textos para outras lnguas. Em uma entrevista con-cedida a Olga Pinasco9 ele faz um comentrio bastante interessan-te, que mostra o seu total desprendimento como dono-autor dotexto.

    [] no creo que lo que escribo merezca especial atencin. !Yhe sido traducido a tantos idiomas! Las traducciones hechasen idiomas que puedo examinar son excelentes. Como me dijoNorman Thomas de Giovanni, Mi versin es superior al textocastellano. Me lo dijo el mismo traductor. Claro que s,le respond.

    E Olga Pinasco lhe pergunta: No es mucho?; e neste mo-mento que podemos confirmar que o seu discurso em Las versioneshomricas, seu pensamento em relao ao texto traduzido, valetambm para os seus textos.

  • 86 Andra Cesco

    Es que l conoce el texto mejor que yo, que slo lo escrib unavez. l lo ha ledo y ha tenido que traducirlo: puede hablarcon mucho ms propiedad. Porque lo que yo escribo trato deolvidarlo. Y no hay que atenerse a ese juego de palabras:traduttore-traditore.

    Quanto ao terceiro texto, Los traductores de las mil y unanoches10, Borges tece alguns comentrios crticos a algumas tra-dues feitas de uma das mais famosas obras da literatura rabe, oQuitab Alif Laila Ua Laila, ou tambm conhecida como Mil e umanoites 11. Ele descreve a forma como foi lido e traduzido este re-pertrio de relatos destinado a modificar de maneira profunda oimaginrio coletivo do Ocidente. Segundo Gargatagli12, em termossemelhantes aos que Benjamin utilizou em La tarea del traductor(1919), trabalho que prologa suas tradues dos Tableaux parisiensde Baudelaire, Borges que nesse momento tambm est tradu-zindo sugere aqui a teoria de que traduzir um modo de ler. E ler interpretar e reconstruir um texto. Ou seja, uma operao se-melhante realizada pela crtica literria, mas entendida comomltiplas hermenuticas, como formas diversas de entender e fi-xar o significado. Giacomo Leopardi13, em Fragmentos sobre tra-duo tem opinio semelhante ao Borges quando afirma que otradutor um leitor privilegiado.

    De acordo com Borges, cada tradutor de Las mil y una nochesd conta da particular concepo da literatura que domina na sualngua. A de Antoine Galland estava direcionada aos franceses dosculo XVIII, isto , aos racionais leitores de Racine e Corneille.A de Eduard Lane, primeira verso inglesa, puritana, centrode la lectura sin alarmas y de la recatada conversacin. A deRichard Francis Burton no esconde nenhum detalhe ertico. Ade J. C. Mardrus no tem dvida em aumentar, at inventar, elcolor oriental indispensvel ao pblico do novo sculo, especta-dor extasiado dos ballets rusos de Diguilev. As melhores tra-dues, opina Borges, no so as que restabelecem o significado

  • Borges e a traduo 87

    ou as palavras do original, mas as que esto melhor escritas. Asmais agradveis de ler.

    De acordo com Monegal14, Borges, neste texto, continua com oseu habitual mtodo de comentar textos selecionados, incluindo, aomesmo tempo, outros que aclaram ou ilustram um determinadoponto. um mtodo de crtica que se aproxima mais da tradioinglesa do que da francesa. Segundo este, s uma vez Borges tentaceder a um fragmento de teoria: ao discutir a traduo de RichardBurton e a sua relao com a de Galland e Lane, se refere rapida-mente disputa produzida entre o cardeal Newman e MatthewArnold, durante 1861-1862. Enquanto Newman defendia o enfoqueliteral, Arnold propunha a eliminao de todos os detalhes que dis-traam ou detinham a leitura. Vale lembrar que essa polmica jhavia sido descrita por Borges, exatamente com as mesmas pala-vras, em Las versiones homricas.

    Ainda neste texto, ele vai comentar sobre a opo de Burton emtraduzir usando versos ingleses: procedimiento de antemano infe-liz, ya que contravena a su propia norma de total literalidad. Elodo, por lo dems, qued casi tan agraviado como la lgica(BORGES, 1996, p. 403). tienne Dolet, quando exps a quintaregra para se traduzir bem de uma lngua para outra, comenta queessa quinta regra to importante, que, sem ela, qualquer compo-sio fica pesada e pouco agradvel.

    La armona del discurso, o cadencia oratoria, consiste en unenlace y una unin de las palabras con tal consonancia que noslo sea placentera al alma, sino que tambin los odos se sientancompletamente fascinados y no se irriten jams por tal armonadel lenguaje (DOLET in FURLAN, 2002, p. 299-230).

    Retomando Pastormerlo15, este, em seu artigo, vai dizer que huns dez ou quinze anos a crtica sobre Borges costumava repetirque em sua literatura se apagava a categoria de autor. Mas, se osexemplos anteriores, apresentados em Las versiones homricas

  • 88 Andra Cesco

    e em Los traductores de las 1001 noches, parecem confirmaresta opinio porque foram selecionados. Na realidade, de acor-do com Pastormerlo, Borges afirma a figura do autor onde estafigura firme, e a apaga onde confusa. As idias sobre tradu-o que Borges prope nestes dois textos devem ser lidas comalgumas precaues. O fato de que ele tenha escrito seus doismelhores ensaios acerca da traduo, sobre textos cujo idiomaignorava plenamente, um exemplo da familiaridade irreverentecom que Borges se movia pela literatura, mas explica tambmpor que nesses dois casos a fidelidade ao texto original no o pre-ocupava em absoluto. Por outro lado, se nestes dois ensaios con-cebe os textos originais como rascunhos perdidos e annimos porque tanto a Odissia como As mil e uma noites efetivamente oso. Borges estabelece ali a possibilidade de uma ideologia cls-sica da literatura porque essas obras foram de fato produzidassob o regime dessa ideologia. Quando os textos a traduzir socontemporneos e pertencem, na sua verso original, bibliote-ca borgiana, Borges menos amvel. Em sua resenha traduode Whitman, realizada por Leon Felipe, j no denuncia lasupersticin de la normal inferioridad de las traducciones, maso inverso: Otra vez enumerar las supersticiones de la literatu-ra; bsteme, ahora, enunciar sta: De todas las versiones de unlibro la ms reciente es la mejor.

    Nesse momento vou fazer um pequeno adendo para acrescentaruma observao que acredito ser importante: quanto ao adjetivoliteral encontrado em alguns contos de Ficciones16. Vejamos comoele empregado por Borges nestes exemplos:

    Treviranus repuso con mal humor:No me interesan las explicaciones rabnicas; me interesa lacaptura del hombre que apual a este desconocido.

    No tan desconocido corrigi Lnnrot. Aqu estn sus obrascompletas. Indic en el placard una fila de altos volmenes:

  • Borges e a traduo 89

    una Vindicacin de la cbala; un Examen de la filosofa deRobert Flood; una traduccin literal del Sepher Yezirah [](La muerte y la brjula, p. 500)

    Debo a la conjuncin de un espejo y de una enciclopedia eldescubrimiento de Uqbar. El espejo inquietaba el fondo de uncorredor en una quinta de la calle Gaona, en Ramos Meja; laenciclopedia falazmente se llama The Anglo-AmericanCyclopaedia (New York, 1917) y es una reimpresin literal,pero tambin morosa, de la Encyclopaedia Britnica de 1902(Tln, Uqbar, Orbis Tertius, p. 431).

    (Nota de rodap) 1. Madame Henri Bachelier enumera unaversin literal de la versin literal que hizo Quevedo de laIntroduction la vie dvote de San Francisco de Sales. En labiblioteca de Pierre Menard no hay rastros de tal obra. Debetratarse de una broma de nuestro amigo, mal escuchada (PierreMenard, autor del Quijote, p. 446).

    No primeiro exemplo, aparece para compor o texto uma tradu-o literal do Sepher Yezirah, que significa Livro da Criao, olivro sagrado dos judeus atribudo Abraham; no segundo, j nasprimeiras linhas do conto, aparece a reimpresso literal da famosaEncyclopaedia Britnica; e no terceiro, o comentrio sobre umaverso literal da verso literal de Quevedo. Neste ltimo exemplo,trata-se de uma traduo de Quevedo para o espanhol, publicadaem 1634.

    Assim, conclui Ana Gargatagli & Juan Gabriel Lpez Guix17,se o literal serve para dar trama e peso a uma fico, til tam-bm, por outro lado, para desmont-la. Porque, se reflexionamosum pouco, no h maior fico que acreditar no que o literal evo-ca: a correspondncia exata entre as lnguas; entre um objeto e apalavra e o que a palavra representa; entre o que a linguagem diz eo que quer dizer. A traduo (tal como tambm observaram WalterBenjamin, George Steiner ou Paul de Man), sob sua aparncia ino-

  • 90 Andra Cesco

    fensiva, revela que nada sabemos sobre o que a linguagem diz,ainda que seja sua funo dissimula-la. E este carter de simula-cro, de escenificao de uma perptua farsa, a converteu em umdos procedimentos prediletos de Borges para tecer suas fices,que so enigmticos espelhos de outras fices.

    E nesse sentido, dando seguimento ao texto, a relao do escri-tor argentino com a traduo vai muito mais alm. Ela ocupar umlugar de destaque inclusive no seu processo criativo, como vimosacima, pois em Borges ela pode ser convertida em matria liter-ria, como o caso de Pierre Menard, autor Del Quijote19, oterceiro texto aqui abordado. Neste, o autor desenvolve sob a for-ma de fico a idia insinuada nos textos anteriores analisados,Las dos maneras de traducir e Las versiones homricas.

    O conto apresentado como uma resenha pstuma das obras dePierre Menard (personagem fictcio criado por Borges), um ho-mem de letras francs que viveu na primeira metade do sculoXX. O narrador um crtico literrio que tenta apresentar o ver-dadeiro catlogo das obras de Menard, de quem se diz amigo, como objetivo de retificar um catlogo recm-publicado, que considerafalso e incompleto. Segundo o narrador, fcil enumerar o quechama a obra visvel de Menard; e ele nos apresenta dezenoveobras (monografias, tradues, anlises e alguns poemas) publicadase no-publicadas, que sugerem, como escreveu Borges no prlogode Ficciones, o diagrama da histria mental de Menard: suaideologia, suas concepes tericas, seus desejos e at suas con-tradies.19

    Neste conto Pierre Menard aparece como autor de uma tradu-o com prlogo e notas do Libro de la invencin liberal y arte deljuego del axedrez de Ruy Lpez de Segura, de uma traduo ma-nuscrita de La aguja de navegar cultos de Quevedo da Introduction la vie devote de So Francisco de Sales. Pierre Menard, cujaverso do Quixote coincide palavra por palavra e linha por linhacom a de Cervantes, uma representao irnica do tradutor ide-al. De acordo com Rosemary Arrojo (1986), Menard concebe o

  • Borges e a traduo 91

    texto como um objeto de contornos perfeitamente determinveis,acreditando, portanto, que seja possvel, como sugerem os trsprincpios bsicos de Tytler, reproduzir completamente as idias,o estilo e a naturalidade de um texto original (p. 14).

    De acordo com Pastormerlo, para Borges, comparar os textosidnticos e diferentes de Cervantes e Menard comprovar a im-perfeio inevitvel de uma traduo perfeita, a irredutvel mar-gem de infidelidade que deve se resignar a mais fiel das tradu-es do Quixote.

    Alm das citaes de trechos de obras que ele leu e de autoresos mais variados que acaba incluindo nos seus escritos, a traduo usada tambm como recurso para dar verossimilhana a um tex-to. O narrador de Tln, Uqbar, Urbis Tertius20 se refere, no fimdo relato que est revisando, a una indecisa traduccin quevediana(que no pienso dar a la imprenta) del Urn Burial de Browne. Ou-tras personagens que realizam esta tarefa so James AlexanderNolan, tradutor ao galico dos principais dramas de Shakespeare;Marcelo Yarmolinsky, entre cujas obras completas encontra-seuma traduo literal del Sepher Yesirah; Jaromir Hladk, tambmtradutor do Sepher Yesirah, e Emil Schering, autor da verso ale-m de Den hemlige Frlsaren de Nils Runeberg. Como podemosperceber tambm, segundo Gargatagli (2000):21

    [...] os personagens de Borges no desempenham ofcios ouprofisses fincadas na realidade, mas so escritores, tradutores.E os problemas destes personagens tampouco tm a ver com omundo real: lhes preocupam as palavras, o tempo, a eternidade,a cabala, questes filosficas ou teolgicas (p. 160-1).

    Quanto ao ltimo texto que aqui ser tratado, El enigma deEdward Fitzgerald22, tambm podemos perceber nele traos dautopia clssica. Borges buscou lugares da literatura em que a figu-ra do autor se desfazia, como na traduo de Edward Fitzgeralddas Rubaiyat de Omar Khayam. Nesse breve ensaio Borges anali-

  • 92 Andra Cesco

    sa a criticada verso inglesa e traa um paralelo entre o poetapersa e seu tradutor europeu que conta com frases como a seguin-te: la total hermosura de su obra las esconde con levedad.23

    Borges metaforiza sobre este dilogo: Omar Khayam, o persa, traduzido, sete sculos depois de ter escrito sua obra, por EdwardFitzgerald, o ingls, e essa traduo, diz Borges, estabeleceu umaperfeita e simtrica reunio de duas almas ao redor de um conjuntode textos. Era o esprito da palavra literria ou da eternidade doesprito que reunia a dois seres humanos: diferentes e, entretanto,profundamente semelhantes. A biografia do literato ingls lhe ser-ve mais que nada para estabelecer um vnculo. Borges tenta provarque Omar Khayam ocupou a alma do seu tradutor para deixar-nosum poema magnfico.

    Entretanto, ao mesmo tempo em que Borges procura valorizartodas as tradues, e acreditar que todas so verdadeiras, concor-da que o tradutor deve saber quais so os seus limites naquela obra.Voltando a entrevista que teve com Sbato24, em certo momento osdois comentam sobre as tradues de alguns ttulos de livros. Sbatodiscorre sobre a m traduo do ttulo do livro de Saint-xupry,Terre des Homes, que aparece traduzido como Tierra de Hombres,como se fosse Terra de Machos, quando na verdade quer signi-ficar e diz isso claramente Terra dos Homens, a terra dessespobres-diabos que vivem neste planeta. No s o tradutor no sabiafrancs, como no entendeu nada de Saint-xupry e de sua obrainteira.... Borges concorda com Sbato e acrescenta: Claro,altera exatamente o ttulo, que onde mais trabalhou o autor. Quandoescolheu um, porque pensou muito nele. Ningum, nem o tradu-tor, deve sentir-se no direito de mud-lo.

    Borges, alm de teorizar sobre a traduo em vrios dos seustextos, tambm foi um notvel tradutor. Ao longo da sua vida tra-duziu, modificando sutilmente, o trabalho de muitos escritores, entreeles Edgar Allan Poe, Franz Kafka, Hermann Hesse, RudyardKipling, Herman Melville, Andr Gide, William Kaulkner, WaltWhitman, Virginia Woof e G. K. Chesterton. Ele acreditava que a

  • Borges e a traduo 93

    traduo podia superar o original, e que a alternativa e contradit-ria reviso do original podia ser igualmente vlida. Mais ainda, eleacreditava que o original ou a traduo literal no tinha porque serfiel traduo.

    Segundo Gargatagli, o Borges tradutor pratica uma teoria quepoderamos chamar de infidelidade criadora. Ainda que no ig-nore a literalidade, as suas verses, bastante autnomas, pre-tendem reproduzir uma emoo esttica que seja to verossmilcomo a do original.

    Notas

    1. ARETINO BRUNI, Leonardo. Sobre a traduo correta, de 1420. Traduode Rafael Carmolinga, in A teoria da traduo na histria: breve panorama.Andria Guerini e Mauri Furlan (orgs.), 2004.

    2. SERRA, Alfredo. Jorge Luis Borges e Ernesto Sbato: Guerra e Paz inRevista Status, Rio de Janeiro, junho de 1975. p. 11. in Vogel, Daisi Irmgard.Jorge Luis Borges e a reinveno potica da entrevista. Florianpolis, 2002. 2o V.Tese (Doutorado) - Universidade Federal Santa Catarina.

    3. PASTORMERLO, Sergio. Borges y la traduccin Borges Studies on Line.On line. J. L. Borges Center for St. & Documentation. Internet: 02/06/2004.(http://www.hum.au.dk/romansk/borges/bsol/pastorm1.htm)

    4. (Ensaio) Dirio La Prensa, Buenos Aires, 1o de agosto de 1926.

    5. PASTORMERLO, Sergio. Borges y la traduccin Borges Studies on Line.On line. J. L. Borges Center for St. & Documentation. Internet: 02/06/2004.(http://www.hum.au.dk/romansk/borges/bsol/pastorm1.htm)

  • 94 Andra Cesco

    6. Revista Proa N1, ano 1, Buenos Aires, agosto de 1922 Publicado posteriormenteem Inquisisciones. Fonte: La Maga: Obras y artculos de e sobre J. L. Borges.Asociacin Borgeseana de Buenos Aires. Internet: 18/06/2004. (http://www.lamaga.com.ar/php/borges.php?accion=Ver&archivo=1bi_1922_nadera.htm)

    7. La prensa, Buenos Aires, 8 de maio de 1932. Publicado posteriormente emDiscusin, 1932, in Obras Completas. V. I, Barcelona, Emec, 1996.

    8. SCHLEIERMACHER, Friedrich. Sobre os diferentes mtodos de traduo,traduo de Margarete von Mhlen Poll, in Clssicos da Teoria da Traduo Antologia bilnge / Alemo-Portugus. Werner Heidermann, org. Florianpolis,UFSC, Ncleo de Traduo, 2001.

    9. PINASCO, Olga. Los escandinavos aman a Borges, in Claudia, no 292,Buenos Aires, outubro de 1981, p. 117-9. in Vogel, Dalsi Irmgard. Jorge LuisBorges e a reinveno potica da entrevista. Florianpolis, 2002. 2 v. Tese(Doutorado) - Universidade Federal Santa Catarina.

    10. BORGES, Jorge Luis. Historia de la Eternidad (1936) in Obras Completas.V. I. Barcelona, Emec, 1996. P. 397-413.

    11. Conjunto de relatos annimos cujo ncleo central, de origem hindu, foi modificadoao Persa, onde acabou tendo uma ambientao de cunho arbico antes de passar aEgpcio por volta do sculo XV. Foram, at 1704, parcialmente conhecidos noOcidente pela transmisso oral, quando o arabista Antoine Galland publicou emfrancs o primeiro dos seis volumes de sua traduo de um manuscrito encontradona Sria. Com o passar do tempo foram descobertos novos manuscritos, redatadosem rabe vulgar, que completaram os textos j conhecidos, ou foram oferecidasvariantes. Como no se conseguiu estabelecer um texto cannico, desenvolvidoaproximadamente entre os sculos VIII e XVI, circulou em diferentes verses,algumas das quais foram analisadas por Borges neste ensaio, Los traductores delas 1001 Noches (Historia de la eternidad, 1936). Coleccin J. L. Borges Fundacin San Telmo. Internet: 23/06/2004. http://fst.com.ar/f.htm

    12. GARGATAGLI, Ana & LPEZ Guix, Juan Gabriel. Ficciones y teoras enla traduccin: Jorge Luis Borges. Hostal, janeiro de 2004. Internet, 21/06/2004.

  • Borges e a traduo 95

    13. LEOPARDI, Giacomo. Fragmentos sobre traduo, Traduo de AndriaGuerini, in A teoria da traduo na histria: breve panorama. Andria Guerini eMauri Furlan (orgs.), 2004.

    14. MONEGAL, Emir Rodrguez. Borges, una biografa literaria. Mxico, Fondode cultura econmica, 1987. P. 243.

    15. PASTORMERLO, Sergio. Borges y la traduccin Borges Studies on Line.On line. J. L. Borges Center for St.& Documentation. Internet: 02/06/2004. (http://www.hum.au.dk/romansk/borges/bsol/pastorm1.htm)

    16. BORGES, Jorge Luis. Obras Completas. V. I. Barcelona, Emec, 1996.

    17. GARGATAGLI, Ana & LPEZ Guix, Juan Gabriel. Ficciones y teoras enla traduccin: Jorge Luis Borges. Hostal, janeiro de 2004. Internet, 21/06/2004.h t t p : / / w w w . h i s t a l . u m o n t r e a l . c a / e s p a n o l / d o c u m e n t o s /ficciones_y_teorias_en_la_traduccion.htm

    18. BORGES, Jorge Luis. Ficciones (El jardn de Senderos que se bifurcan -1941) in Obras Completas. V. I. Barcelona, Emec, 1996. P. 444-450.

    19. ARROJO, Rosemary. Oficina de Traduo: a teoria na prtica. So Paulo,tica,1986. P. 14.

    20. BORGES, Jorge Luis. Obras Completas. V. I. Barcelona, Emec, 1996. P.431-443.

    21. GARGATAGLI, Ana Maria. Borges fue un escritor precoz y tambin intenso(entrevista), in El lector de Jorge Luis Borges, de Arturo Marcelo Pascual. Barcelona,Ocano, 2000. P. 160-1.

    22. La Nacin, Buenos Aires, 7 de outubro de 1951. Publicado posteriormente em Otrasinquisiciones, 1952, in Obras Completas. V. II. Barcelona, Emec, 1996. P. 66-8

    23. Coleccin Jorge Luis Borges Fundacin San Telmo. Internet: 21/06/2004.http://fst.com.ar/f.htm

  • 96 Andra Cesco

    24. SERRA, Alfredo. Jorge Luis Borges e Ernesto Sbato: Guerra e Paz inRevista Status, Rio de Janeiro, junho de 1975. p. 11. in Vogel, Daisi Irmgard.Jorge Luis Borges e a reinveno potica da entrevista. Florianpolis, 2002. 2 v.Tese (Doutorado) - Universidade Federal Santa Catarina.

    Bibliografia

    ARETINO BRUNI, Leonardo. Sobre a traduo correta, 1420. Traduo deRafael Carmolinga, in A teoria da traduo na histria: breve panorama. AndriaGuerini e Mauri Furlan (orgs.), 2004.

    ARROJO, Rosemary. Oficina de Traduo: a teoria na prtica. So Paulo,tica,1986.

    BORGES, Jorge Luis. Obras Completas. V. I, II e III. Barcelona, Emec, 1996.

    _____. Textos Recobrados: 1919-1929. Argentina, Emec, 1997.

    _____. Textos Recobrados: 1931-1955. Argentina, Emec, 2001.

    FURLAN, Mauri. La retrica de la traduccin en el renacimiento: elementos parala construcin de una teora de la traduccin renacentista. Barcelona, 2002. Tese(Doutorado) - Universitat de Barcelona.

    GARGATAGLI, Ana Maria. Borges fue un escritor precoz y tambin intenso(entrevista), in El lector de Jorge Luis Borges, de Arturo Marcelo Pascual. Barcelona,Ocano, 2000.

    LEOPARDI, Giacomo. Fragmentos sobre traduo, Traduo de Andria Guerini,in A teoria da traduo na histria: breve panorama. Andria Guerini e MauriFurlan (orgs.), 2004.

  • Borges e a traduo 97

    MONEGAL, Emir Rodrguez. Borges, una biografa literaria. Mxico, Fondo decultura econmica, 1987.

    PINASCO, Olga. Los escandinavos aman a Borges, in Claudia, no 292, BuenosAires, outubro de 1981. in Vogel, Daisi Irmgard. Jorge Luis Borges e a reinvenopotica da entrevista. Florianpolis, 2002. 2 v. Tese (Doutorado) - UniversidadeFederal Santa Catarina.

    SCHLEIERMACHER, Friedrich. Sobre os diferentes mtodos de traduo,traduo de Margarete von Mhlen Poll, in Clssicos da Teoria da Traduo Antologia bilnge / Alemo-Portugus. Werner Heidermann, org. Florianpolis,UFSC, Ncleo de Traduo, 2001.

    SERRA, Alfredo. Jorge Luis Borges e Ernesto Sbato: Guerra e Paz in RevistaStatus, Rio de Janeiro, junho de 1975. in Vogel, Daisi Irmgard. Jorge Luis Borgese a reinveno potica da entrevista. Florianpolis, 2002. 2 v. Tese (Doutorado) -Universidade Federal Santa Catarina.