Andréa Rodrigues Amim
-
Upload
felipe-almeida -
Category
Documents
-
view
144 -
download
1
Transcript of Andréa Rodrigues Amim
Andréa Rodrigues Amim
Promotora de Justiça Titular da 1ª Promotoria de Infância e Juventude da Comarca de
Duque de Caxias — Estado do Rio de Janeiro A União Estável, gênero de família
social das mais importantes dentro de nossa sociedade, ganhou status formal
juridicidade com a Constituição da República de 1988, ao tute-
lar, em seu artigo 226, três espécies de entidades familiares: a
matrimonial, a monoparental e a decorrente de união estável.
O Novo Código Civil inova em relação ao atual Código ao
consolidar esta nova forma constitucional de família não pre-
vista na norma geral, ainda que já regulada por leis especiais.
Será, porém, que tal inovação se revelou realmente benéfica
diante das disposições legais e reconhecimento jurisprudencial
de que já dispúnhamos? Este o objeto de análise deste capítulo.
Antes, oportuno se fazer breve retrospecto por que passa-
ram os já consagrados princípios que conferiram juridicidade à
família estável até os nossos dias, para que se possa melhor
compreendê-la.
Ainda que recentemente normatizada, a união estável os-
tenta tempo de existência igual ou mesmo maior que a família
matrimonial. Sem nos determos na História Antiga mais remo-
ta, partiremos da evolução histórica da união estável a contar
da Proclamação da República no Brasil, momento em que o Es-
tado se dissociou da Igreja, acabando esta por ser uma das gran-
des incentivadoras da união estável.
Em época na qual cabia à Igreja Católica cuidar das rela-
ções de status, sendo de sua atribuição celebrar os casamentos,
registrá-los nos livros paroquiais, assim como o fazia em rela-
ção aos nascimentos e óbitos, constituiu grande ruptura a de-
terminação de nova ordem jurídica onde não mais haveria reli-
gião oficial, cabendo ao Estado regular e celebrar os casamen-
tos. Estes só passariam a produzir efeitos jurídicos se fossem
430 O Novo Código Civil — Do Direito de Família
a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a
civis, não bastando o casamento religioso. Isto se deu através do
Decreto 181, de 24 de janeiro de 1861.
A Igreja, medindo forças com o Estado, cuidou de boicotar
a nova ordem, pregando entre os fiéis que o casamento civil era
insignificante perante DEUS, razão pela qual só seria conside-
rado casado aquele que o fizesse sob as normas religiosas. Em
assim sendo, as mais nobres famílias da época se negavam a
casar-se segundo a norma civil, mantendo a tradição religiosa,
o que acabou dando origem a alguma das .mais nobres. famíli-
as de nossa história, fruto, evidentemente, de .uniões estáveis..
Não só entre os mais abastados, porém, a união estável se
popularizou. Nas classes dos menos favorecidos, o alto custo de
se casar no civil fê-los preferir o casamento religioso, ou mesmo
a simples união entre os casais. Oportuno ainda acrescer um
dado complicador: o princípio da indissolubilidade do vínculo con-
jugal, de caráter eminentemente religioso, mas consolidado em
sede constitucional, através do qual separados de fato ou mes-
mo desquitados não poderiam pôr fim ao primeiro casamento,
restando como solução, para garantia de uma relação afetiva
entre os casais, a união estável.
O número de famílias de fato cresceu assim como os con-
flitos oriundos dessa família social. A jurisprudência não se
mostrou insensível e, aos poucos, foram sendo concedidos efei-
tos à união estável sem, contudo, reconhecê-la como entidade
familiar, já que contrária à ordem constitucional da época.
De início, negou-se às relações concubinárias onde um dos
concubinos ainda era casado reconhecimento de quaisquer di-
reitos delas emergentes, mesmo que separado de fato tal
concubino, pois um ato ilícito não poderia ser gerador de direi-
tos e prerrogativas.
Ultrapassada esta primeira fase de negação de efeitos à
união estável, reconheceu-se a existência de sociedade de fato
para a entrega de parte dos bens à companheira do falecido, se
solteiro, viúvo ou desquitado, não sendo indispensável a prova
da contribuição (Súm. 380 STF). Algumas poucas decisões
(TJDF) admitiram pensão à concubina quando injustamente
abandonada, enquanto outros arestos se limitaram a compensar
os serviços prestados. Também admitida a legitimidade para o
ajuizamento de ação de responsabilidade civil por morte de con-
vivente (Súm. 35 STF). O STF cuidou ainda de distinguir a
concubina da companheira, não exigindo para prova da união
estável convivência sobre o mesmo teto (Súm. 382).
Título III — Da União Estável 431
a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a
Em resumo, a companheira tinha o ônus da prova da socie-
dade de fato em duas circunstâncias: provando esforço comum,
obtinha a partilha dos bens adquiridos durante a união ou, não
exercendo atividade produtiva, teria de fazer prova dos serviços
prestados, obtendo por eles uma indenização (contrato civil, art.
1.216 e seguintes).
Por fim, às vésperas da Constituição da República, promul-
gada em 1988, o esforço comum já não se caracterizava tão-so-
mente pelo trabalho remunerado, mas também pelo esforço mo-
ral, cabendo ao Julgador determinar o quantum a ser comparti-
lhado entre os companheiros.
Com a nova Carta Constitucional a união estável encon-
trou tutela no artigo 226, § 3º. Não sendo norma auto-aplicável,
foi regulada, inicialmente, pela Lei 8.971/94 e, após, pela Lei
9.278/96. A despeito dos fortes debates à época da vigência des-
ta última acerca da revogação da lei anterior, atualmente, às
vésperas da entrada em vigor do NCC, é majoritário o entendi-
mento de que ambas as leis vigoram, naquilo que a Lei nº 8.971/
94 não se mostra incompatível com a Lei nº 9.278/96.
Art. 1.723. É reconhecida como entidade familiar
a união estável entre homem e mulher, configurada
na convivência pública, contínua e duradoura
e estabelecida com o objetivo de constituição
de família.
Direito anterior: Art. 1º da Lei 9.278/96.
O artigo consolidou o conceito de união estável anterior-
mente previsto na Lei 9.278/96, consagrando critérios
jurisprudenciais utilizados para definição da família estável.
Da diversidade de sexo . Analisando separadamente cada
requisito exigido para perfeita caracterização da união estável,
defrontamo-nos, desde logo, em questão nova, polêmica, e que
vem ganhando a cada dia maior importância dentro do cotidia-
no forense. É indispensável a diversidade de sexo para configu-
rarmos união estável? Em outras palavras: Pode casal homosse-
xual pleitear o reconhecimento de união estável, seja para fins
sucessórios, patrimoniais ou garantir direito a alimentos?
A questão é de extrema complexidade e suficiente até para
toda uma monografia específica sobre o tema. Não é esta a pro-
posta do presente trabalho. Cinge-se este a apontar o problema,
ofertando um norte para o aplicador, mas, sem a pretensão de
oferecer conclusão peremptória.
432 O Novo Código Civil — Do Direito de Família
a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a
Uma das primeiras a discorrer sobre o tema foi Maria
Berenice Dias,408 que assinala: .se duas pessoas passam a ter
vida em comum, cumprindo os deveres de assistência mútua, em
um verdadeiro convívio estável caracterizado pelo amor e pelo
respeito mútuo, com o objetivo de construir um lar, tal vínculo,
independentemente do sexo de seus participantes, gera direitos
e obrigações que não podem ficar à margem da lei..
Identifica a autora lacuna em nossa Lei, a qual deve ser
integrada através de processo analógico. .Na ausência de nor-
ma para solução de conflitos, principalmente com referência a
temas que requerem uma avaliação valorativa, a solução não
pode apoiar-se exclusivamente na opinião preconcebida do
julgador, calcada em posturas individuais de aceitação ou
rechaço. O magistrado precisa buscar resposta em outras rela-
ções jurídicas cujas circunstâncias de fato guardem identidade
com a situação posta em julgamento.. 409 E conclui: .as leis regu-
ladoras do relacionamento entre um homem e uma mulher po-
dem e devem ser aplicadas às relações homossexuais. Constitu-
em elas uma unidade familiar que em nada se diferencia da
nominada união estável.. 410
Na concepção da jurista há, em resumo, uma lacuna na
ordem constitucional a ser suprida pelo processo analógico.
Quanto a este, não haveria que questionar-se sobre o indispen-
sável caráter heterossexual dos componentes da união estável,
pois fere princípios basilares de nossa Constituição, como os de
igualdade e de dignidade da pessoa humana. Em verdade, aponta
uma inconstitucionalidade entre normas constitucionais e, via
de conseqüência, da legislação infraconstitucional, qual seja:
Leis 8.971/94, 9.278/96 e o NCC.
Ainda que avançada, a tese aqui exposta é minoritária. A
doutrina aborda a hipótese, mas não a alça à categoria de união
estável, mesmo reconhecendo nas uniões homossexuais a ocor-
rência da afetividade comum nas relações familiares.
A relação estável homossexual deverá seguir os caminhos
já traçados pela entidade familiar estável, passando inicialmente
pelo reconhecimento como sociedade de fato e, só após, median-
te reiterado posicionamento jurisprudencial em seu prol, a oxi-
408 Maria Berenice Dias. União Homossexual . O Preconceito & a Justiça
. Ed. Livraria do Advogado. Porto Alegre, 2000, p. 77.
409 Idem, p. 87.
410 Idem, p. 84
Título III — Da União Estável 433
a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a
genar nosso sistema legislativo, passará a ter reconhecimento
jurídico. 411412
Tratar as relações estáveis homossexuais no campo
obrigacional atende, porém, à nova ordem constitucional fun-
dada em um Estado Democrático de Direito, a proteger a pes-
soa com garantia de sua individualidade? Atenderia esta forma
de conceber a relação jurídica, nitidamente patrimonial, ao prin-
cípio da socialidade com respeito ao pluralismo típico deste Es-
tado de Direito? Parece-nos que não.
Não mais se podem fechar os olhos para o conflito social
cuja solução urge obter. Cada vez mais são distribuídas aos
Juízos de Família ações pretendendo reconhecer ou dissolver
uniões estáveis homossexuais, e, diante da ausência de norma
reguladora, os pedidos são normalmente considerados juridica-
mente impossíveis, restando aos autores o juízo cível para dis-
solução de algo que estes casais não formam: pura e simples-
mente sociedades de fato.
Segundo Orlando Gomes,413 .pessoas que reúnem esforços
ou capitais para empreendimento comum de finalidade econô-
mica formam uma sociedade, mediante contrato.. Analisando
as relações estáveis homossexuais à luz deste conceito, tem-se
que o que leva os parceiros a se unirem é, antes de mais nada,
laços de afetividade e sexualidade, que impõem uma convivên-
cia em comum. O advento de interesses econômicos a partir desta
união ocorrerá num segundo momento, constituindo apenas efei-
to secundário, não essencial para a caracterização desta rela-
ção de afeto.
Em se tratando de relação de afeto, podemos dizer que se
aproxima mais do Direito Familiar do que do Obrigacional. Po-
demos ir além e afirmar tratar-se de uma entidade familiar. Se-
gundo Guilherme Calmon,414 .a família, antes de mais nada, é
uma realidade, um fato natural, uma criação da Natureza, não
sendo resultante de uma ficção criada pelo homem.. Se por ele
411 Luiz Edson Fachin, Elementos Críticos do Direito de Família, Rio de
Janeiro: Ed. Renovar.
412 Guilherme Calmon Nogueira da Gama, O Companheirismo, uma es-
pécie de família, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1998.
413 Orlando Gomes, Contratos, Rio de Janeiro: Ed. Forense, 1999, p. 391
. 18ª edição.
414 Guilherme Calmon Nogueira da Gama, Direito de Família Brasileiro,
São Paulo: Editora Juarez de Oliveira, 2001, p. 23.
434 O Novo Código Civil — Do Direito de Família
a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a
for reconhecida, passa a modelo típico de família, como o é a
família matrimonializada. Se não houver reconhecimento, con-
tinuará sendo família, mas apenas no mundo dos fatos.
Em sendo família, qualquer conflito originário desta rela-
ção de fato tem por Juízo competente o Familiar. Não há que se
limitar a competência do Juiz de Família apenas para as enti-
dades familiares constitucionais, pois não é pacífica a interpre-
tação do artigo 226 da Carta Constitucional de 1988: o rol é
taxativo ou enunciativo?
Atualmente, o que deve estabelecer a competência das
Varas de Família não são apenas os modelos legais de família,
pois isto seria muito simplista. Ao revés, além destes, toda re-
lação onde se vislumbre .comunidade afetiva, resultante da vida
em comum e da conjugação de mútuos esforços, constituída a
partir do entrelaçar de sexo e afeto, presentes na construção co-
tidiana da vida de cada um dos partícipes da relação.415 é obje-
to da atividade jurisdicional do Juiz de Família.416
Superada esta questão, permaneceria o óbice da impossi-
bilidade jurídica do pedido, já que não reconhecida como união
estável a união homossexual. A solução, talvez, esteja em se ad-
mitir que a família homossexual é família autônoma e distinta
da união estável, ainda que possuam pertinências.
Segundo ROGER RAUPP RIOS,417 .a união estável distin-
gue-se das uniões homossexuais precisamente em virtude do re-
quisito da diversidade sexual entre os companheiros, expressa-
mente consignado no texto do artigo 226, § 3º, bem como na de-
terminação constitucional de se facilitar sua conversão em ca-
samento, aspecto que também afasta as uniões homossexuais da
união estável..
Esta exigência da diversidade de sexo, entretanto, não
impede o reconhecimento da união homossexual como família,
visto que a própria norma constitucional nos dá os instrumen-
tos necessários à solução do problema. Se não há regulamenta-
ção, estas uniões estão formalmente à margem do ordenamento,
que é a lei escrita. Entretanto, a tutelá-las encontramos o princí-
pio da dignidade da pessoa humana e da igualdade, garantes de
uma individualidade típica do Estado Democrático de Direito.
415 Roger Raupp Rios, A Homossexualidade no Direito. Porto Alegre: Li-
vraria do Advogado, 2001, p. 108.
416 Neste sentido AI nº 599075496 . TJRS.
417 Ob.cit, nota 8, p. 123.
Título III — Da União Estável 435
a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a
Enquanto não regulada, enquanto família social, família
de fato, pode o aplicador socorrer-se dos princípios constitucio-
nais para garantir a estas comunidades afetivas o direito a se-
rem o que são: famílias homossexuais, com identidade e indivi-
dualidade próprias.
Oportuna a lição de ROGER RAUPP RIOS:418 .ao invés de
se procurar no respectivo capítulo da Ordem Social, que trata
da família, um rol exemplificativo ou taxativo de espécies de
comunidades familiares, importa perguntar-se quais os princípios
diretivos ali presentes, cuja concretização poderá fornecer uma
resposta para o problema ora estudado..
Sempre oportuno recordar, em resumo, que o Direito exis-
te para a sociedade, moldando-se às suas necessidades e não o
inverso. Cabe à jurisprudência o reconhecimento formal, embo-
ra casuístico, desta espécie de família, que, longe de ser nova,
tem o direito de sair da marginalidade, exigindo não só decisões
que a reconheçam, como ainda legislação que a incorpore ao sis-
tema jurídico.
Países como Dinamarca, Suécia e Noruega dispõem de leis
prevendo e regulando estas uniões. Em nosso país, temos o Pro-
jeto de Lei nº 1.151/95, de autoria da ex-Deputada Federal Mar-
ta Suplicy, ainda não apreciado pelo Congresso Nacional, o qual
pretende instituir a parceria civil, primeira iniciativa no senti-
do de sensibilizar nossos legisladores para problema que aflige
não só os que o vivenciam, como ainda aqueles que militam no
dia-a-dia das Varas de Família.
Convivência pública, contínua e duradoura . Manteve o
legislador do novo Código requisitos já presentes no artigo 1º
da Lei 9.278/96, no que andou bem, pois consolidou um longo
trabalho jurisprudencial de formação conceitual da união está-
vel.
Ao exigir tão-somente convivência pública, contínua e du-
radoura, não afastou o reconhecimento de outras característi-
cas importantes, também levadas em conta, principalmente no
momento da prova da união estável. Pode-se citar a convivência
more uxorio e a existência de filhos que, por si só, não induzem
o reconhecimento da união estável, mas somados aos demais ele-
mentos são fatores ponderáveis na caracterização desta.
418 Ob. cit., nota 8, p. 119.
436 O Novo Código Civil — Do Direito de Família
a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a
Quanto ao aspecto temporal, não se exige prazo mínimo de
convivência para união estável, ao contrário do previsto no arti-
go 1º da Lei 8.971/94, já revogado. Importante que este prazo
seja livre, pois cada união tem sua própria história. Limitar seu
reconhecimento a um certo número de anos seria como diminuir
a efetividade da tutela constitucional.
Ainda assim, apenas como parâmetro, tem sido utilizado o
prazo de cinco anos de união para caracterizá-la como estável, o
que, por certo, não inviabiliza o reconhecimento de uniões com
prazos menores, mas nem por isso menos estáveis.
Objetivo de constituir família . Aqui reside o elemento
anímico, sem o qual, ainda que presentes os requisitos objeti-
vos, não se poderia reconhecer a união estável.
GUILHERME CALMON NOGUEIRA DA GAMA elenca dois
requisitos subjetivos, quais sejam: convivência more uxorio e a
affectio maritalis, ou seja, o animus de constituir família.419
Nosso legislador, contudo, só exigiu este último, ainda que a
convivência more uxorio também deva ser levada em conta como
auxiliar na prova da affectio maritalis.
Esta, na definição do prefalado autor, representaria .o ele-
mento volitivo, a intenção dos companheiros de se unirem, cer-
cados de sentimentos nobres, desinteressados, com pureza
d.alma, congregando amor, afeição, solidariedade, carinho, res-
peito, compreensão, enfim, o germe e o alimento indispensáveis,
respectivamente, à constituição e mantença da família..420
Como todo componente ligado ao psiquismo, sua verifica-
ção depende da prova de elementos externos, objetivos, concre-
tos, sem a qual, dificilmente conseguiremos alcançar o verda-
deiro querer dos agentes.
§ 1º. A união estável não se constituirá se ocorrerem
os impedimentos do art. 1.521; não se aplicando
a incidência do inciso VI no caso de a
pessoa casada se achar separada de fato ou judicialmente.
Direito anterior: Não há previsão.
419 Ob.cit., nota 5, p. 171.
420 Idem, p. 174.
Título III — Da União Estável 437
a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a
O presente parágrafo é inovação que já encontrava res-
paldo na doutrina especializada no tema. Podemos dividir sua
análise em duas partes: a primeira, referente aos impedimentos
para constituição da união estável e a segunda alusiva à famí-
lia estável formada por convivente(s) separado de fato ou por
decisão judicial.
Dos impedimentos . A lei anterior era omissa acerca de
eventuais impedimentos para constituição da união estável.
Analisava-se a possibilidade da aplicação analógica dos impe-
dimentos matrimoniais também para esta nova família. Caso
admitida, aplicar-se-iam todos os impedimentos (dirimentes
públicos, privados e impedientes) ou cada qual deveria ser ana-
lisado de per si, verificando sua adequação à realidade própria
da união estável?
A nova lei pacifica a divergência doutrinária e juris-
prudencial. Ainda que tenhamos espécies distintas de família
. matrimonial e estável ., com regras próprias e autônomas,
percebe-se que, em alguns pontos, o legislador do novo Código
as aproximou, impondo o mesmo tratamento. É o que verifica-
mos em matéria de impedimentos matrimoniais.
Não poderia ser diferente, já que o próprio texto constitu-
cional elegeu a família matrimonializada como a ideal . o que
é objeto de algumas críticas . a ponto de determinar a facilita-
ção da conversão da união estável em casamento. Ou seja, se a
união estável poderá ser convertida em casamento, só poderão
ser consideradas estáveis as uniões onde não exista impedimento
para o enlace matrimonial. A ressalva é feita pelo próprio texto,
ao excluir a incidência do inciso VI em relação às uniões está-
veis, o que permite aos separados . de fato e judicialmente .
serem incluídos nesta classe familiar.
Em suma, a exigência de se respeitar em sede de união
estável os impedimentos para o casamento cumpre a função de
preparar esta última para um futuro matrimônio. Seria, na fe-
liz expressão de LUIZ EDSON FACHIN, a véspera do acesso ao
casamento.421
Dos separados . de fato ou judicialmente . Tiveram dife-
rentes tratamentos os separados de fato dos judicialmente sepa-
421 Luiz Edson Fachin. Elementos Críticos do Direito de Família. Rio de
Janeiro: Renovar, 1999, p. 63.
438 O Novo Código Civil — Do Direito de Família
a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a
rados. Estes, desde o início, receberam a tutela constitucional
conferida à nova entidade familiar. Aqueles, foram rechaçados
do sistema protetivo da união estável, conforme redação
excludente do já revogado art. 1º da Lei 8.971/94.
Penitenciando-se da retrógrada posição, o legislador de
1996 recuperou o conceito de união estável há muito defendido
pela doutrina e jurisprudência, não mais exigindo requisitos ob-
jetivos para configuração desta espécie de família.422
O NCC manteve este posicionamento ao não aplicar o inciso
VI do art. 1.521 à união estável.
§2º As causas suspensivas do art. 1.523 não impedirão
a caracterização da união estável.
Direito anterior: Não há previsão.
Ainda que em alguns pontos a união estável receba o mes-
mo tratamento que a família matrimonial, como, por exemplo,
na aplicação dos impedimentos para o casamento, o mesmo não
ocorre com as causas suspensivas, indiferentes na caracteriza-
ção da família estável.
Art. 1.724. As relações pessoais entre os companheiros
obedecerão aos deveres de lealdade,
respeito e assistência e de guarda, sustento e
educação dos filhos.
Direito anterior: Art. 2º da Lei 9.278/96.
O .estado de companheirismo. não se limita a criar os de-
veres buscados pelos companheiros, mas também os impostos
pelo regramento legislativo. Aproximam-se as famílias matri-
monial e estável, no que diz respeito aos efeitos pessoais das
duas entidades.
422 Lei 8.971/94 . Art. 1º A companheira comprovada de um homem sol-
teiro, separado judicialmente, divorciado ou viúvo, que com ele viva
há mais de 5 (cinco) anos, ou dele tenha prole, poderá valer-se do
disposto na Lei nº 5.478, de 25 de julho de 1968, enquanto não consti-
tuir nova união e desde que prove a necessidade.
Lei 9.278/96 . Art. 1º É reconhecida como entidade familiar a convi-
vência duradoura, pública e contínua, de um homem e uma mulher,
estabelecida com objetivo de constituição de família.
Título III — Da União Estável 439
a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a
O direito anterior já estabelecia deveres recíprocos, numa
similitude com o artigo 231 do Código Civil, excepcionada a coa-
bitação. Mutatis mutandis, os deveres foram mantidos, ressal-
tando-se a lealdade e o respeito como substitutos da fidelidade
conjugal.
Ainda que análogos os deveres, se violados estes, o trata-
mento que se lhes dá é diverso.
Em sede matrimonial, a violação dos deveres conjugais
enseja pedido de separação judicial litigiosa, conforme artigo
1.572 do NCC, servindo, em alguns casos, para caracterizar a
impossibilidade da comunhão de vida onde algumas hipóteses
são enunciadas pelo artigo 1.573 do novo diploma.
No que toca à união estável, a quebra dos deveres não im-
porta em qualquer sanção. Poderá levar à dissolução ou à ma-
nutenção da família estável, a depender exclusivamente do que-
rer dos companheiros.
Oportuna a lição de MARCO AURÉLIO S. VIANNA: .o ca-
samento pode ser atacado, mediante ação de separação judicial,
mas a união estável não se altera pelo não cumprimento de qual-
quer daqueles direitos / deveres. É permitido dissolver a união
estável sem noção de culpa, pela simples vontade dos conviven-
tes, ou de um deles, com efeitos patrimoniais definidos. Não é
preciso sequer declinar a causa que leva um dos conviventes a
pedir judicialmente a dissolução.. 423
Talvez se tenha, aqui, um dos motivos pelos quais se opta
pelo não-casamento. Segundo RODRIGO DA CUNHA PEREI-
RA, .objetivamente, podemos apontar como principal conseqüên-
cia, ou efeito jurídico desse tipo de casamento, a liberdade de
rompimento da relação. A união estável pode ser dissolvida li-
vremente, sem qualquer justificação e independentemente de
processo judicial.. 424
423 Marco Aurélio S. Vianna . Da união estável . São Paulo: Saraiva,
1999, p. 32.
424 Rodrigo da Cunha Pereira . Concubinato e União Estável . Belo
Horizonte: Del-Rey, 2001, p. 48.
440 O Novo Código Civil — Do Direito de Família
a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a
Art. 1.725. Na união estável, salvo contrato escrito
entre os companheiros, aplica-se às relações
patrimoniais, no que couber, o regime da
comunhão parcial de bens.
Direito anterior: Art. 5º da Lei 9.278/96.
A previsão de regime de bens para os companheiros coroa
a trajetória da conjugação de esforços dentro do núcleo de afeto
iniciada com o reconhecimento jurisprudencial da família está-
vel como sociedade de fato, cujo ponto alto foi a Súmula 380 do
STF.
À Constituição da República coube retirar o instituto do
campo obrigacional, transferindo-o para o campo familiar. Ao
legislador especial coube presumir o esforço comum dos compa-
nheiros na formação patrimonial durante a união estável.
Por fim, chega-se ao NCC que afastou a presunção do arti-
go 5º da Lei 9.278, para conceder aos companheiros um regime
legal de bens, assemelhando a união estável ao casamento.
O que, portanto, mudará? A partir da entrada em vigor da
nova lei, não mais se admitirá a prova de que não houve contri-
buição da companheira(o) na formação do patrimônio constituí-
do durante a constância da união estável. O único ônus será a
comprovação da existência desta união, seu termo inicial e o
patrimônio efetivamente adquirido durante este período. Feita
tal prova e dissolvida a união cada companheiro terá direito à
sua meação.
Esta regra é excepcionada em caso de celebração de con-
trato escrito entre os companheiros, no qual terão estes plena
liberdade para disporem acerca dos efeitos patrimoniais da união.
Seria este contrato similar ao pacto antenupcial? Em sua
finalidade, sim. De resto, possui características próprias.
Não sendo estabelecida forma para o contrato, este segui-
rá a regra da liberdade de forma, podendo ser celebrado por es-
critura pública ou documento particular.
Também não se impõe a unicidade do pacto, não havendo,
ao que parece, restrição a uma pluralidade de contratos. Podem
os companheiros, por exemplo, estabelecer no pacto um regime
da comunhão de bens para os imóveis que vierem a ser adquiri-
dos durante a união, nada impedindo que o pactuado venha a
ser excepcionado por outro contrato de mesma natureza quanto
Título III — Da União Estável 441
a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a
a um imóvel determinado que tenha sido adquirido apenas por
um dos companheiros.
Nem se argumente que se estaria garantindo mais direitos
aos companheiros que aos casados, pois estes estariam sob a égide
do princípio da imutabilidade do regime. Se hoje esta situação
admite discussão, com a entrada em vigor do NCC não mais o
será, pois a nova lei cuidou de excepcioná-lo no § 2º do artigo
1.639. Acresça-se que se trata de um contrato e, portanto, apli-
cável o princípio da autonomia da vontade das partes, gozando
a família estável de maior liberdade na formação das regras
patrimoniais. Esta seria mais uma .vantagem. da .família in-
formal. em contraste com a .família solene..
Alguma perplexidade poderá surgir em razão de uniões es-
táveis sucessivas, com formação patrimonial. Cada qual gerará
seus próprios efeitos, sejam pessoais ou patrimoniais, e a solu-
ção para que não haja confusão da massa patrimonial oriunda
de cada união será encontrada no campo probatório.
Para a hipótese, imprescindível será o estabelecimento dos
termos a quo e ad quem do estado de companheirismo, o que, na
prática, nem sempre é fácil.
Art. 1.726. A união estável poderá converter-se
em casamento, mediante pedido dos companheiros
ao juiz e assento no Registro Civil.
Direito anterior: Art. 8º da Lei 9.278/96.
A norma visa a cumprir a determinação final do art. 226, §
3º, da Carta Constitucional. O legislador do NCC alterou o siste-
ma de conversão administrativa adotado na Lei 9.278/96, cujo
requerimento era dirigido ao oficial do Cartório do Registro Ci-
vil e a cada Estado cabia regular este proceder.425
Com a nova redação passa-se a adotar o modelo judicial de
conversão, que, em comparação com a norma anterior, parece
tê-la dificultado, fato que levou RODRIGO DA CUNHA PEREI-
RA a defender a inconstitucionalidade do art. 1.726. 426
425 Provimento 20/00 da Corregedoria de Justiça do Tribunal de Justiça
do Estado do Rio de Janeiro.
426 Rodrigo da Cunha Pereira . Direito de família e o novo código civil
. Belo Horizonte: Del-Rey, 2001, p. 217.
442 O Novo Código Civil — Do Direito de Família
a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a
Não parece clara a alegada inconstitucionalidade. Seja pelo
modelo antigo de conversão, onde o requerimento era feito ao
oficial, seja pelo novo modelo, onde os companheiros recorrerão
à jurisdição voluntária para obterem a conversão, suprime-se a
celebração do casamento, o que, de certa forma, é considerado
um acanhado .facilitador. da transformação familiar.
Considerando nossa realidade forense . poucos magistra-
dos, procedimentos lentos e inchaços das serventias . a reda-
ção da nova lei representou retrocesso, com aumento da deman-
da judicial. Como explicação tenhamos talvez o fato de a habili-
tação de casamento também ser judicial, com a homologação do
pedido pelo Juiz. Exigir o mesmo proceder para a conversão da
união estável seria manter uma coerência com a primeira fase
do ato jurídico solene casamento.
A nova lei não soluciona algumas questões que continua-
rão em aberto: os efeitos da conversão serão retroativos ao iní-
cio da união estável, ou serão ex nunc? Se retroativos, o regime
de bens escolhido pelos companheiros para reger os efeitos
patrimoniais do casamento revogaria eventual pacto de convi-
vência contrário firmado durante a união estável? Caso admiti-
da a retroatividade do regime, como ficariam as relações jurídi-
cas patrimoniais firmadas com terceiros?
Caberá mais uma vez à jurisprudência interpretar a nor-
ma pro forma, a qual nada acrescentou ao direito em vigor, cum-
prindo apenas o papel de trazer para o NCC a determinação
constitucional contida no parágrafo 3º, fine, do art. 226.
Art. 1.727. As relações não eventuais entre o homem
e a mulher, impedidos de casar, constituem
concubinato.
Direito anterior: Não há previsão.
É norma excludente de relações que não podem ser quali-
ficadas como estáveis, seja porque esvaziariam a tutela já
conferida a outras entidades familiares, seja porque não seriam
verdadeiras famílias.
A finalidade foi distinguir companheiros de concubinos:
aqueles, solteiros, viúvos, divorciados, separados de fato ou ju-
dicialmente, que estabelecem relação pública, contínua e dura-
doura com intenção de formar família; concubinos, os que
vivenciam situação marginal ao casamento ou mesmo à união
estável, desprovidos de proteção.
Título III — Da União Estável 443
a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a
J. FRANKLIN ALVES FELIPE acentua que .o concubinato
mantido com uma família dupla, de conhecimento de ambos a
existência de outra legítima ou mesmo concubinária, não pode
receber as benesses legais (RT 649/52), seja no campo da parti-
lha de bens (exceto se, concretamente, a parte que se diz prejudi-
cada, demonstrar desconhecimento da outra família) seja no
campo da indenização por serviços prestados. É que afronta a
moral média da população este tipo de comportamento, que vio-
lenta a própria entidade familiar, não podendo ser beneficiado
quem faz de sua vida uma forma de colecionar conquistas e dela
tirar proveito: um Casanova (...) não se pode atribuir efeito jurí-
dico a uma relação concubinária estabelecida ante impedimen-
to incontornável para o matrimônio entre companheiros. Se a
autora, conhecendo o impedimento, não obstante manteve liga-
ção amorosa com o falecido, incorreu no risco de ficar à margem
da mínima tutela jurídica, não se aplicando ao caso o princípio
que veda enriquecimento ilícito à custa da pobreza alheia. A
manutenção, ao lado da família, de outra, espúria, configura
forma de ligação concubinária não sancionável juridicamente,
pois aí se trata de verdadeira concubinagem..427
Em síntese, só se faz objeto da tutela constitucional a união
pura, .em que presentes os atributos necessários à produção de
efeitos conforme os estabelecidos para fins do art. 226, § 3º, da
CF.. 428 A união impura, denominada concubinato, é desprovida
de proteção, assumindo aqueles que decidem viver esta espécie
de relação a responsabilidade por seus atos, sem possibilidade
de invocar proteção legal.
A análise do capítulo relativo à união estável nos leva a
refletir sobre qual seria a fisionomia desta família.
Em alguns pontos, aproxima-se da família matrimonial,
durante séculos base única de nossa sociedade, e que goza de
injustificável, mas compreensível preferência constitucional
como reminiscência de uma sociedade preconceituosa que acei-
ta a família estável desde que tenha oportunidade de se .redimir
do pecado. com a possibilidade de conversão em casamento.
Noutros pontos vislumbra-se uma distância proposital
entre as duas entidades familiares, mantendo-se, de certa for-
ma, um dos atrativos da família estável: sua informalidade, traço
427 J. Franklin Alves Felipe. Adoção, guarda, investigação de paternidade
e concubinato. 7. ed., Rio de Janeiro: Forense, 1995, p. 100.
428 Ob. cit, nota 12 , p. 41.
444 O Novo Código Civil — Do Direito de Família
a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a a
de liberdade almejada por muitos dos que optam por esta forma
de relação afetiva.
A família estável, porém, foi esquecida nos demais livros
que formam o NCC. Em institutos como emancipação e prescri-
ção, a família estável foi ignorada, mantendo-se à margem da
sistematização jurídica. No Direito Sucessório foi completamente
discriminada, o que já tem dado margem a severas e robustas
críticas. Em suma, sua trajetória sempre foi amoldada pela ju-
risprudência, com o sempre presente e indispensável auxílio da
doutrina. Seu caminhar é lento, mas seguro. É caminho sem
volta.