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    4 A DERROTABILIDADE DAS NORMAS JURDICAS

    4.1 QUAIS NORMAS JURDICAS SO DERROTVEIS?

    Explicou-se a origem da derrotabilidade, foram trazidos alguns exemplos

    doutrinrios do fenmeno, assim como foram expostos os seus pressupostos

    metodolgicos. Agora, a seguinte pergunta deve ser respondida: afinal, quais so

    as norma jurdicas derrotveis? A essncia da derrotabilidade encontra-se no

    reconhecimento de que existem normas jurdicas, condicionais-hipotticas, que

    tutelam e resguardam as condutas intersubjetivas, assegurando previsibilidade e

    segurana jurdica aos cidados. Estas previses possuem, entretanto, um carter

    prima facie que pode ser derrotado, no momento em que o texto deixa de ser

    apenas texto e passa a ser produto da interpretao.

    Como se viu, a idia intuitiva de derrotabilidade reside no reconhecimento

    de que a norma jurdica pode possuir excees (explcitas ou implcitas) no

    identificveis de antemo. Nesse contexto, uma importante tarefa dentro do

    estudo da derrotabilidade consiste em averiguar: (i) se todas as normas jurdicas

    so derrotveis; (ii) se existe um rol taxativo de normas derrotveis; (iii) se

    possvel desenvolver um critrio para distinguir uma norma jurdica derrotvel deuma inderrotvel.

    4.1.1 Todas as normas jurdicas so derrotveis?

    A definio de quais normas jurdicas so derrotveis a primeira

    exigncia feita por todos aqueles que so apresentados ao conceito de

    derrotabilidade. As normas jurdicas obtidas a partir de regras de competncia,

    clusulas ptreas, direitos fundamentais, ou mesmo da previso constitucional que

    prev o voto obrigatrio para os maiores de dezoito anos so, todas elas,

    derrotveis?

    Sem medo do equvoco, possvel afirmar que, quanto maior o grau de

    abstrao da mensagem legislada, maior so as chances de que a sua previso

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    possa ser derrotada, no-aplicada. A dificuldade aumenta no momento em que

    princpios jurdicos so cotejados, isolada ou concomitantemente interpretao

    de outras regras, pois a carga axiolgica que eles possuem dificulta a definio de

    seus contedos.

    Sem embargo, certo que toda e qualquer mensagem do direito positivo

    pode ser reconduzida formulao hipottico-condicional p q (Se A, ento deve

    ser B). HUMBRTO VILA lembra que a existncia de uma hiptese de

    incidncia uma questo de formulao lingstica e, portanto, at mesmo um

    princpio pode ser reformulado para se enquadrar nesse modelo dentico, por

    exemplo, seo poder estatal for exercido, entodeve ser garantida a participao

    democrtica (princpio democrtico), ou ainda, se se desobedecer exigncia de

    determinao da hiptese de incidncia de normas que instituem obrigaes,

    entoo ato estatal ser considerado invlido (princpio da tipicidade).138

    Parte-se, portanto, do pressuposto de que toda e qualquer previso textual

    pode ser reconduzida formulao hipottico-condicional. A derrotabilidade,

    nesse contexto, poderia ser representada no modelo lgico clssico quando p

    q e p so verdadeiros, mas no necessariamente q verdadeiro (vlido), ou

    ainda, quando p q e p so verdadeiros (vlidos), mas q no pode ser

    derivado validamente.139

    A interpretao sistemtica do direito pode fazer com que uma previso

    textual, prima facie, imune a qualquer tipo de ressalva, como a que prev o voto

    obrigatrio para os maiores de dezoito anos, gere dvidas e questionamentos no

    caso concreto. Esta previso constitucional pode ser convertida para o modelo

    hipottico-condicional (p q): Se for maior de dezoito anos, ento o voto

    obrigatrio. Essa norma jurdica prima facie clara, objetiva e deve ser seguida

    por todos os seus destinatrios.

    138Cfr. VILA, Humberto. Teoria..., op. cit., p. 40. Veja-se, tambm: VILANOVA, Lourival.Causalidade..., op. cit., p. 92 e ss; VILANOVA, Lourival. Estruturas lgicas e o sistema dodireito positivo. So Paulo: Max Limonad, 1997. p. 71 e ss.

    139Cfr. HAGE, Jaap. Law..., op. cit., p. 222 e ss.

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    Ocorre, entretanto, que o cidado maior de dezoito anos pode possuir

    incapacidade civil absoluta, razo pela qual a ele o voto no ser obrigatrio,

    justamente em razo da interpretao sistemtica/infraconstitucional do Cdigo

    Civil acerca da capacidade. Seria o caso de p /\ r -q, sendo, portanto, a norma

    constitucional derrotada em virtude da peculiaridade do caso concreto. Com essas

    palavras se quer significar que as normas jurdicas no sero sempre derrotadas,

    mas podem ser, ao menos em tese, consideradas derrotveis. Em outros termos,

    a norma jurdica necessariamentederrotvel, porm, contigentementederrotada.

    Este ponto de vista afigura-se mais realista e razovel, porque reconhece

    a falibilidade de todas as normas jurdicas, fugindo da utpia que seria propor a

    inderrotabilidade de todas as normas, alm de escapar do subjetivismo que seria

    apontar somente um conjunto de normas derrotveis.

    Situao muito discutida no estudo da derrotabilidade consiste naquilo que

    se pode chamar de paradoxo da exceo principiolgica implcita. Segundo esse

    paradoxo, se no possvel definir a priorios casos gerais em que um princpio se

    sobrepe a outro, e considerando que os princpios podem excepcionar as normas

    jurdicas, logo, no se pode antecipar quais as excees implcitas

    (principiolgicas) podem afetar o campo de aplicao de qualquer norma.

    JUAN CARLOS BAYN, exatamente nesse sentido, comenta que um

    princpio pode requerer que certo caso, compreendido inequivocamente na zona

    de clara aplicabilidade de uma regra, seja resolvido de um modo diferente ao

    disposto por aquela. Logo, se no possvel determinar de antemo o conjunto

    preciso de casos governados por um princpio porque este pode concorrer com

    outros princpios e no existe uma hierarquizao ou ordenao estrita que defina

    ex ante o peso de cada qual -, BAYN cogita a possibilidade de ser invivel a

    determinao do conjunto preciso de excees impostas regra.140

    140Cfr. BAYN, Juan Carlos. Proposiciones normativas e indeterminacin del derecho. In: BAYN,Juan Carlos; RODRGUEZ, Jorge. Relevancia..., op. cit.,p. 62-63. Para Juan Carlos Bayon ateoria de Dworkin sobre a distino entre regras e princpios consagra a derrotabilidade detodas as normas jurdicas: (...) no parece aventurado afirmar que en la presentacin original desus argumentos Dworkin vena a sostener que los princpios son normas derrotables o abiertasy las reglas normas inderrotables o cerradas. Pero, si ello es as, y se acepta al mismo tiempo

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    Esta perspectiva leva inexorvel derrotabilidade de todas as regras

    (normas jurdicas). Existem vozes inclusive do prprio BAYN - no sentido de

    que esse apego ao principiolgico no significaria a automtica aceitao da

    derrotabilidade de todas as regras jurdicas, ao argumento de que as regras ainda

    preservariam a sua aplicabilidade em nvel geral e abstrato. No entanto, pensar

    nas regras jurdicas somente em suas existncias individuais, sem a considerao

    do sistema, das peculiaridades do caso concreto e tampouco do papel do

    intrprete, parece ser simplista e de uma forma que desconsidera (ou no mnimo

    relativiza) os problemas reais do fenmeno jurdico.

    Dessarte, a proposta de inderrotabilidade normativa consiste na defesa de

    uma presuno iure et de iurisde aplicao literal da previso do direito positivo,

    passando-se ao largo da incontestvel realidade jurdica, marcada pela necessria

    interpretao sistemtica e pelo reconhecimento da existncia de vaguezas e

    ambigidades no texto legal. Noutro lado, a derrotabilidade pode ser vista como

    uma presuno iuris tantum, assim considerada como aquela que somente

    provvel, para a qual existe um juzo de probabilidade, que pode ser mais forte ou

    mais fraco. O conceito de norma jurdica prima facie nitidamente envolvido pela

    idia de presuno iuris tantum, pois ela (a norma) reconhecida como aplicvel e

    dotada de fora normativa, entretanto, pode ser questionada e eventualmentedesconstituda.

    4.1.2 Casos de Derrotabilidade

    Cumpridas as diligncias preliminares, havemos de caminhar no sentido

    de definir os casos de derrotabilidade e o momento em que ela operada. Para

    tanto, ser seguido o modelo proposto por NEIL MACCORMICK, e narrado por

    MANUEL ATIENZA141, dentro do qual so elencadas quatro espcies deproblemas jurdicos, definidores dos casos difceis, mas que aqui so tomados

    que los princpios pueden justificar excepciones a las reglas, entonces parecera plausible laconclusin de que todas las normas jurdicas se vuelven derrotables.... (BAYN, Juan Carlos.Derrotabilidad..., op. cit.,p. 93).

    141ATIENZA, Manuel.As razes..., op. cit.,p. 324-325.

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    como parmetros para a caracterizao da derrotabilidade. Esta correlao

    possvel porque os hard cases so configurados quando o itinerrio de justificao

    interna falha, ou se mostra insuficiente, o que ocorre exatamente no momento em

    o discurso da derrotabilidade comea a poder ser ventilado.

    4.1.2.1 Problemas de pertinncia

    Os problemas de pertinncia so aqueles que ocorrem quando pairam

    dvidas sobre qual seja a norma aplicvel ao caso concreto. Este um clssico

    caso de antinomia, de dois juzos de dever-ser contraditrios142, i.e., so

    previses legais aplicveis concomitantemente, mas com resultados diversos, por

    exemplo, quando uma previso permite/obriga uma conduta, e a outra a probe.As antinomias no so raras no Direito e tampouco em qualquer outra cincia. Um

    caso clssico foi criado por BERTRAND RUSSEL, segundo o qual, se se

    considerar o conjunto A formado por todos os conjuntos que no pertencem a si

    mesmo, pelo princpio do terceiro excludo, A pertence ou no pertence a A.

    Supondo-se que A pertence a A, ento, como A o conjunto de todos os

    conjuntos que no pertencem a si mesmos,A no pode pertencer aA. Admitindo-

    se ento queA pertena aA, logo, de acordo com a definio deA, este conjunto

    deve pertencer a si mesmo.143

    Como j dito (cfr. item 2.1.1, supra), o ordenamento jurdico busca resolver

    os problemas de antinomias mediante a aplicao dos critrios cronolgico,

    hierrquico e da especialidade, os quais, aos olhos do intrprete, permitem aferir o

    momento em que as previses textuais foram editadas (cronolgico), a hierarquia

    das previses em coliso (hierrquico) e os seus mbitos de validade e aplicao

    (especialidade).

    142ALEXY, Robert. Teora..., op. cit., p. 87. A respeito da antinomia, v.: ENGISCH, Karl.Introduo..., op. cit., p. 355 e ss; BOBBIO, Norberto. Teora general del derecho. Trad. JorgeGuerrero Bogot: Temis, 1999. p. 191 e ss; ROSS, Alf. Direito..., op. cit., p.124 e ss.

    143 Cfr. DA COSTA, Newton. Introduo aos fundamentos da matemtica. So Paulo: Hucitec,1977. p. 10.

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    Estas tcnicas resolvem muitos problemas jurdicos e a praxis delas se

    vale cotidianamente. H casos em que esses critrios se mostram insuficientes, e

    para eles, a ponderao pode ser invocada, na qualidade de instrumento apto a

    ser utilizado no deslinde de controvrsias judiciais. NOBERTO BOBBIO destaca

    que nos casos de conflitos entre normas, para os quais no bastam os critrios

    cronolgico, hierrquico e nem tampouco da especialidade, o intrprete tem trs

    possibilidade: (i) eliminar uma das normas, mesmo que no seja em definitivo pois

    outro Juiz pode decidir em sentido diametralmente oposto, em caso anlogo; (ii)

    eliminar as duas normas, quando diante da dvida sobre a obrigao ou proibio

    de certa conduta, o intrprete opte por uma terceira opo, dentro da qual lhe

    seria lcito praticar ou no a referida previso legal; (iii) conservar as duas normas,

    o que ocorre quando o intrprete consegue demonstrar a existncia compatveldas duas previses.144 Em virtude desse panorama, a antinomia pode (i) derrotar

    uma das normas jurdicas em conflito; (ii) derrotar as duas normas jurdicas

    conflitantes; (iii) ou no derrotar nenhuma delas.

    A relao entre regra e exceo deve ser includa neste grupo. O

    legislador se vale de tcnicas para prescrever condutas que ho de ser seguidas

    por seus destinatrios, de maneira que so definidas regras gerais (p.ex. a

    obrigao de dar coisa certa abrange os acessrios dela embora nomencionados, cfr. art. 233 do Cdigo Civil), alm de suas excees expressas

    (salvo se o contrrio resultar do ttulo ou das circunstncias do caso). Dentro desta

    relao, podem surgir conflitos entre a norma fulcrada na regra geral e a norma

    baseada na exceo expressa. De acordo com MACCORMICK, as excees

    expressas (express defeasibility) corroboram o fato de que as regras instituidoras

    de instituies jurdicas (institutive rules of legal institutions) so sempre

    consideradas como algo que afirma, apenas, condies ordinariamente

    necessrias e presumidamente suficientes para os casos que regulam.145 Estas

    celeumas costumam ser resolvidas pelas regras tradicionais de soluo de

    144BOBBIO, Norberto. Teora..., op. cit., p. 198-202.145MACCORMICK, Neil. Defeasibility..., op. cit., p. 100.

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    antinomia, ou ainda, pela produo de provas, quando a matria essencialmente

    ftica.

    Em se tratando de excees implcitas (implicit defeasibility), a dificuldade

    maior. Lembra MACCORMICK que os princpios e os valores implcitos do

    ordenamento podem interagir com previses especficas do direito positivo.146

    Nesses casos, a conseqncia da norma jurdica (da regra geral) afastada,

    inaplicada, mesmo que: (i) os fatos constitutivos do direito vindicado restem

    configurados; (ii) inexistam quaisquer excees expressas no direito positivo. Esta

    situao se inclui no chamado paradoxo da exceo principiolgica implcita,

    pelo qual todas as normas jurdicas podem ser derrotadas, ao menos em tese, em

    razo da fora normativa dos princpios (cfr. item 4.1.1, supra).

    4.1.2.2 Problemas de interpretao

    Os chamados problemas de interpretao surgem quando existem

    dvidas sobre como se deve entender a previso textual (ou as previses)

    aplicveis ao caso. Esses problemas residem na relao entre texto e intrprete,

    enquanto dificuldade enfrentada por todos aqueles que pretendem interpretar uma

    mensagem escrita e que por isso devem passar pela anlise dos planos sinttico,semntico e pragmtico. O direito positivo possui palavras com uma grande, e em

    boa medida inevitvel, dose de impreciso (vagueza, ambigidade e outras

    intoxicaes semnticas), de modo que, por mais rigoroso que seja o propsito de

    estabelecer relaes unvocas, sempre existir o risco de interpretaes diversas

    e da apario de pseudoproblemas sob a forma de disputas verbais.147

    Um grande nmero de disputas judiciais gira em torno do contedo e

    alcance de palavras inseridas no direito positivo. O Supremo Tribunal Federal

    apreciou uma srie de recursos extraordinrios nos quais se questionava a

    constitucionalidade das alteraes promovidas pela Lei 9.718/98, que ampliou a

    146MACCORMICK, Neil. Defeasibility..., op. cit., p. 101.147Cfr. ECHAVE, Delia Tereza; URQUIJO, Mara Eugenia; GUIBOURG, Ricardo. Lgica..., op. cit.,

    p. 27.

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    base de clculo da COFINS (Contribuio para o Financiamento da Seguridade

    Social) e do PIS (Programa de Integrao Social), cujo artigo 3, 1, define

    legalmente o conceito de faturamento (nova base de clculo).148O ponto central

    dessa controvrsia a amplitude semntica do conceito de faturamento, em um

    ntido problema de interpretao. A alegao de inconstitucionalidade est

    baseada no fato de que a Lei 9.718/98 alargou, margem da Constituio, a base

    de clculo do tributo, quando disps que faturamento corresponde totalidade das

    receitas auferidas pela pessoa jurdica, agregando base de clculo outras

    receitas que no aquelas permitidas pelo texto constitucional. A Constituio,

    conforme a redao original do artigo 195, I, da CF (antes da Emenda 20/98),

    dispunha que o PIS e a COFINS somente poderiam ser cobrados sobre o

    faturamento, assim entendido como a renda obtida das vendas de mercadorias eservios.

    A jurisprudncia do Supremo Tribunal Federal consolidou-se no sentido de

    que inconstitucional o 1 do artigo 3 da Lei n 9.718/98, no que ampliou o

    conceito de receita bruta para envolver a totalidade das receitas auferidas por

    pessoas jurdicas, independentemente da atividade por elas desenvolvida e da

    classificao contbil adotada.149V-se, pois, que a norma jurdica construda a

    partir do conceito restrito de faturamento, levando em conta a noo constitucionaldo tributo, derrotou a norma jurdica baseada no conceito de faturamento

    legalmente ampliado.

    Estes problemas de interpretao tambm podem ser considerados

    aqueles que ALCHOURRN e BULYGIN chamaram de lacunas de

    reconhecimento (lagunas de reconocimiento), que so os casos individuais nos

    quais, por falta de determinao semntica dos conceitos que caracterizam um

    caso genrico, no se sabe se o caso individual lhe pertence ou no.150

    148Art. 3. O faturamento a que se refere o artigo anterior corresponde receita bruta da pessoajurdica. 1. Entende-se por receita bruta a totalidade das receitas auferidas pela pessoajurdica, sendo irrelevantes o tipo de atividade por ela exercida e a classificao contbiladotada para as receitas.

    149STF, Recurso Extraordinrio n. 346084/PR, rel. Min. Ilmar Galvo, DJU01/09/2006.150ALCHOURRON, Carlos; BULYGIN, Eugenio. Introduccin..., op. cit.,p. 63.

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    4.1.2.3 Problemas de prova

    Os problemas de prova manifestam-se quando h dvidas sobre se um

    determinado fato, importante para a aplicao do direito, ocorreu. Isso acontece

    no momento em que pairam dvidas sobre a materializao do fato jurdico

    previsto no antecedente da norma jurdica, ou ainda, quando se questionam

    eventuais defeitos ou vcios na caracterizao do fato que enseja a aplicao da

    norma como, por exemplo, um vcio de consentimento.

    O Cdigo de Processo Civil brasileiro, dentro dos meios probatrios

    aceitveis, arrola uma lista no-taxativa na qual se inclui o depoimento pessoal

    (art. 342 a 347), a confisso (art. 348 a 354), a exibio de documentos ou coisa

    (art. 355 a 363), a prova documental (art. 364 a 399), a prova testemunhal (art.

    400 a 419), a prova pericial (art. 420 a 439) e a inspeo judicial (art. 440 a 443).

    O Cdigo ainda dispe, em seu artigo 332, que todos os meios legais, bem como

    os moralmente legtimos, ainda que no especificados neste Cdigo, so hbeis

    para provar a verdade dos fatos, em que se funda a ao ou a defesa.

    Os operadores do direito possuem diversos itinerrios probatrios para a

    comprovao dos fatos envolvidos na lide; entretanto, caso fracassem em tal

    desiderato, o resultado pode ser a impossibilidade de aplicao da norma jurdica

    invocada. Se a norma jurdica j foi aplicada, e processualmente restar provado

    que o fato que a originou inexiste ou possui algum defeito, ter-se- a

    derrotabilidade da norma jurdica, em razo do problema de prova.

    Para JORGE RODRGUEZ, no mbito do conceito de derrotabilidade, uma

    conduta qualificada de acordo com certas normas jurdicas, em um caso particular,

    pode resultar sensvel a variaes de contexto, tanto em relao ao contexto

    normativo como tambm ao contexto ftico. A despeito do contexto normativo,

    uma soluo normativa correlacionada a um caso genrico, por uma norma

    jurdica, pode ser afastada se for considerada outra norma que assegure uma

    soluo normativa logicamente incompatvel com a anterior, sempre que se prefira

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    a soluo estabelecida pela segunda norma em detrimento da primeira.151JORGE

    RODRGUEZ afirma que esta idia admite uma verso epistmica, uma vez que

    no somente quando se modifica o contexto normativo se torna possvel a

    variao de solues jurdicas, mas tambm quando se varia o conhecimento

    acerca das normas em jogo.

    O que aqui interessa, no entanto, a variao de contexto ftico, pela

    qual se reconhece que as qualificaes normativas se acham sensveis a

    variaes fticas, pois ao alter-las, torna-se factvel a variao de solues

    normativas. Isto ocorre, na sua tica, porque ao se modificar as informaes

    disponveis sobre os fatos de um caso particular, uma norma que se considerava

    relevante para a soluo pode deixar de s-la, ou ainda, uma norma reputada

    irrelevante pode se tornar relevante.152

    Como se v, as questes probatrias so sobremaneira relevantes na

    anlise da derrotabilidade, razo pela qual ser dedicado um captulo especfico

    para a chamada derrotabilidade processual (cfr. capitulo 5, infra).

    4.1.2.4 Problemas de qualificao

    So configurados os problemas de qualificao quando restam dvidassobre se determinado fato, que no discutido, recai ou no sobre o campo de

    aplicao de um determinado conceito. ALCHOURRN e BULYGIN chamam esse

    fenmeno de lacunas de conhecimento (lagunas de conocimento), para aludir aos

    casos individuais que, por falta de conhecimento das propriedades de fato, no se

    sabe se pertencem ou no a uma classe determinada de casos genricos. Para

    eles, tanto as lacunas de conhecimento como as de reconhecimento so

    problemas de ndole conceitual, aparecendo no mbito da aplicao das normas

    151RODRGUEZ, Jorge L. Introduccin: Normas y Razones: Aspectos lgicos y sustantivos.Discusiones: Razones y normas. n.5, 2005. p. 20-21.

    152Ibidem, p. 21.

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    aos casos individuais e tem a sua origem em problemas empricos ou emprico-

    conceituais (semnticos).153

    Da matria tributria se retira um exemplo significativo acerca desse

    problema. O Superior Tribunal de Justia enfrentou por anos uma celeuma na qual

    se discutia a incidncia ou no de ISS (Imposto sobre Servios) sobre a atividade

    de franquia (franchising). A discusso central girava ao redor do significado

    jurdico de franquia, e sobre a possibilidade de inseri-lo dentro do conceito

    constitucional de servios, para fins de cobrana do ISS. Apesar de entender que

    a matria constitucional, e, portanto, de competncia do Supremo Tribunal

    Federal, o STJ investigou o mrito da questo.

    O entendimento que prevaleceu foi aquele que considerou a franquia

    como dotada de uma natureza jurdica hbrida, indissocivel de obrigaes de dar,

    de fazer e de no fazer, sendo, dessa forma, inconcilivel com as caractersticas

    constitucionais do ISS, o qual marcado pela idia de prestao de servios,

    enquanto uma obrigao de fazer.154

    153ALCHOURRON, Carlos; BULYGIN, Eugenio. Introduccin..., op. cit., p. 63.154 1. O ISS na sua configurao constitucional incide sobre uma prestao de servio, cujo

    conceito pressuposto pela Carta Magna eclipsa ad substantia obligatio in faciendo,inconfundvel com a denominada obrigao de dar. 2. Outrossim, a Constituio utiliza osconceitos de direito no seu sentido prprio, com que implcita a norma do artigo 110, do CTN,que interdita a alterao da categorizao dos institutos. 3. Consectariamente, qualificar comoservio a atividade que no ostenta essa categoria jurdica implica em violao bifronte aopreceito constitucional, porquanto o texto maior a utiliza no s no sentido prprio, comotambm o faz para o fim de repartio tributria-constitucional (RE 116121/SP). 4. Sob esseenfoque, impositiva a regra do artigo 156, III, da Constituio Federal de 1988, verbis: Art.156. Compete aos Municpios instituir impostos sobre: (...) III - servios de qualquer natureza,no compreendidos no art. 155, II, definidos em lei complementar. (Redao dada pela EmendaConstitucional n 3, de 1993) (...) 5. A dico constitucional, como evidente, no autoriza que alei complementar inclua no seu bojo atividade que no represente servio e, a fortiori, obrigaode fazer, porque a isso corresponderia franquear a modificao de competncia tributria por leicomplementar, com violao do pacto federativo, inaltervel sequer pelo poder constituinte,

    posto blindado por clusula ptrea. 6. O conceito pressuposto pela Constituio Federal deservio e de obrigao de fazer corresponde aquele emprestado pela teoria geral do direito,segundo o qual o objeto da prestao uma conduta do obrigado, que em nada se assemelhaao dare, cujo antecedente necessrio o repasse a outrem de um bem preexistente, a qualquerttulo, consoante a homogeneidade da doutrina nacional e aliengena, quer de Direito Privado,quer de Direito Pblico. 7. Deveras, o Cdigo Tributrio Nacional, como de sabenarecepcionado como lei complementar, tratava dos Impostos sobre Servios de Qualquernatureza, em seus artigos 71 a 73, revogados pelo Decreto-Lei n 406/68, que estabeleceunormas gerais de Direito Financeiro, aplicveis ao ICMS e ao ISS. 8. Consoante o aludidodecreto-lei, constitua fato gerador do ISS a prestao, por empresa ou profissional autnomo,

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    Toda a argumentao jurdica levada a cabo nessa discusso

    concentrava-se, essencialmente, na qualificao do termo franquia. Entendeu-se

    que o conceito de servio pressuposto pela Constituio Federal de uma

    obrigao de fazer, i.e., o objeto da prestao uma conduta do obrigado,

    distante de qualquer tipo de obrigao de dar. Falando de e com a derrotabilidade,

    a norma jurdica de incidncia, que pretendia a cobrana do ISS, foi derrotada em

    razo da comprovao do no-enquadramento do conceito de franquia ao

    conceito constitucional de servios.

    4.2 CONDIES DE DERROTABILIDADE

    HUMBERTO VILA tambm analisou a derrotabilidade, a que ele chamade superabilidade, no mbito de seu estudo sobre as especificidades das regras e

    dos princpios. No seu ponto-de-vista, as regras devem ser obedecidas, em

    situaes normais, porque sua obedincia promove a soluo previsvel, eficiente

    e geralmente equnime de conflitos sociais; no entanto, no so absolutas e

    tampouco so superveis com facilidade. Partindo dessa premissa, ele

    com ou sem estabelecimento fixo, de servio constante da lista anexa ao diploma legal, aindaque sua prestao envolvesse o fornecimento de mercadoria. 9. Na citada lista de Servios,anexa ao Decreto-Lei 406/68, com a redao dada pela Lei Complementar 56, de 15 dedezembro de 1987, encontrava-se elencada a atividade de Agenciamento, corretagem ouintermediao de contratos de franquia (franchise) e de faturao (factoring) (excetuam-se osservios prestados por instituies autorizadas a funcionar pelo Banco Central);` (Item 48). 10.Destarte, a franquia no era listada como servio pelo legislador complementar, mas, sim, asatividades de corretagem, agenciamento e intermediao que a tivessem por objeto, panoramaque restou modificado pela Lei Complementar 116, de 31 de julho de 2003, que revogou osartigos 8, 10, 11 e 12, do Decreto-Lei 406/68, bem como a Lei Complementar 56/87, entreoutros dispositivos legais. 11. Os Itens 10 e 17, da Lista de Servios anexa Lei Complementar116/2003, elencam, como servios tributveis pelo ISS, o agenciamento, corretagem ouintermediao de contratos de leasing, de franchising e de factoring (Subitem 10.04), bem comoa franquia (Subitem 17.08). 12. A mera insero da operao de franquia no rol de serviosconstantes da lista anexa Lei Complementar 116/2003 no possui o condo de transmudar a

    natureza jurdica complexa do instituto, composto por um plexo indissocivel de obrigaes dedar, de fazer e de no fazer. 13. Destarte, revela-se inarredvel que a operao de franquia noconstitui prestao de servio (obrigao de fazer), escapando, portanto, da esfera datributao do ISS pelos municpios. 14. A afirmao de constitucionalidade da insero dafranquia como servio e a proposio recursal no sentido de que aquela incide em inequvocainconstitucionalidade do Subitem 17.08, da relao anexa Lei Complementar 116/2003,conjura a incompetncia imediata do STJ para a anlise de recurso que contenha essaantinomia como essncia em face da repartio constitucional que fixa os lindes entre esta E.Corte e a Corte Suprema (...). (STJ, Recurso Especial n. 885.530, rel. Min. Luiz Fux, DJU28/08/2008).

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    desenvolve um modelo bidimensional, na medida em que material (exige

    requisitos de contedo) e procedimental (exige requisitos de forma), ao mesmo

    tempo.155 A seguir, explicar-se-o estes requisitos, adequando-os quando

    necessrio.

    4.2.1 Requisitos materiais

    Para HUMBERTO VILA, a superao de uma regra ser tanto mais

    flexvel quanto menos imprevisibilidade, ineficincia e desigualdade provocar tal

    itinerrio. Nesse contexto, o grau de resistncia de uma regra superao est

    vinculado tanto promoo do valor subjacente regra (valor substancial

    especfico), quanto realizao do valor formal subjacente s regras (valor formalde segurana jurdica), de sorte que o grau de promoo do valor segurana est

    relacionado possibilidade de reaparecimento freqente de situao similar.156

    Ento, a resistncia superao ser maior quando esta comprometer a

    realizao do valor segurana jurdica, especialmente em reas onde a

    padronizao importante (Direito Penal e Direito Tributrio) e, por outro lado,

    ser muito pequena naqueles casos em que o alargamento ou a restrio da

    hiptese da regra seja indiferente em relao segurana jurdica. Aduzindoessas consideraes, HUMBERTO VILA conclui que o grau de resistncia da

    regra h de ser tanto superior quanto mais a tentativa de fazer justia para um

    caso possa afetar a promoo da justia para a maior parte dos casos.157

    Por outro lado, o grau de resistncia da regra dever ser tanto inferior

    quanto menos a tentativa de fazer justia para um caso afetar a promoo da

    justia para a maior parte dos casos (...), motivo pelo qual a superao de uma

    regradepende da aplicabilidade geral das regrase do equilbrio pretendido pelo

    sistema jurdico entre justia geral e justia individual.158Com isso, a deciso de

    155VILA, Humberto. Teoria..., op. cit., p. 114-115.156Ibidem, p. 117-118.157Ibidem, p. 117-118.158Ibidem, p. 118-119.

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    superar uma regra deveria sempre considerar a repercusso, em outras regras,

    dos termos excepcionais nela consignados.

    Pois bem. Sem embargo de concordamos com a linha de raciocnio de

    HUMBERTO VILA, especialmente sobre a necessria considerao da

    segurana jurdica nos casos de derrotabilidade, entendemos que, em um modelo

    ideal, a exceo h de ser inserida nos termos gerais da regra, mediante um

    processo de universalizao, dentro do qual os demais destinatrios normativos

    podem (e devem) se beneficiar da mesma soluo conseguida no julgamento

    excepcional. As regras possuem maior resistncia superao do que os

    princpios, todavia, quando derrotados no mbito interpretativo, o procedimento de

    universalizao/generalizao impe que a exceo seja incorporada norma,

    permitindo que possa ser invocada por todos que queiram dela se valer.

    Sem dvida, uma deciso excepcional deve considerar as suas

    conseqncias jurdicas, encampando nesse ponto a prpria essncia do

    pragmatismo, pelo qual, na viso de RICHARD POSNER, os Juzes devem se

    preocupar com as conseqncias de suas decises, no somente em relao ao

    resultado isolado do caso concreto, mas, sobretudo, acerca dos reflexos que a

    deciso que desconsidera um contrato ou foge de um precedente pode provocar

    nas atividades comerciais.159 Entretanto, quando a excepcionalizao

    promovida, a universalizao da deciso a medida que se exige em nome da

    coerncia. Bem por isso, lembra JOS RENATO CELLA, caso o intrprete no

    esteja disposto a generalizar sua deciso, ento h algum problema com seus

    fundamentos, dado que a ao e as circunstncias consideradas relevantes so

    exatamente as mesmas a menos que novas condies relevantes surjam, caso

    em que se ter um novo critrio, igualmente universalizvel.160

    A anlise da Smula 691 do Supremo Tribunal Federal constitui umexemplo elucidativo para o que se quer dizer. Este verbete prev que no

    159POSNER, Richard A. Legal Pragmatism. Metaphilosophy.v. 35, Jan/2004. p. 150.160CELLA, Jos Renato. Controle das decises jurdicas pela tcnica do auto-precedente: lgica

    dentica paraconsistente aplicada em sistemas especialistas legais. Tese de Doutoradoapresentada na Universidade Federal de Santa Catarina. Florianpolis: 2008. p. 92.

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    compete ao Supremo Tribunal Federal conhecer de habeas corpus impetrado

    contra deciso do relator que, em habeas corpus requerido a tribunal superior,

    indefere a liminar. Por mais que o enunciado da Smula mantenha-se como

    regra jurisprudencial para todos os julgamentos, isso no impediu que o STF

    conhecesse e julgasse habeas corpus quando restou evidenciado flagrante

    constrangimento ilegal.161 O Superior Tribunal de Justia tambm mantm a

    mesma inteleco a respeito da Smula 691, afastando-a em casos teratolgicos.

    Nessas decises, reconhecida a existncia de uma regra especfica para a

    situao, aplicvel de forma geral e abstrata, mas em razo da peculiaridade do

    caso e mediante profunda argumentao, emana-se uma deciso excepcional.

    Este comportamento judicante pode ser enquadrado como uma aplicao

    prtica dos adgios latinos exceptio declarat regulam(a exceo aclara a regra) e

    exceptio probat regulam (a exceo confirma a regra). Com efeito, esta prtica

    tem o condo de reforar a aplicao da regra geral, mostrando, entretanto, uma

    abertura que permite solues atpicas em razo das particularidades do caso

    concreto.162A universalizao da exceo, longe de infirmar totalmente a regra,

    medida imposta pela igualdade e justia, para a adequao dos novos termos

    normativos da regra ao entendimento, naquele momento, excepcional.

    Nesse caso, coexistem duas normas jurdicas: a primeira, atinente regra

    geral, aplicvel aos casos em que no resta configurado flagrante

    constrangimento ilegal; a segunda, a que tutela a exceo, quando est

    presente o flagrante constrangimento ilegal. No se trata de uma simples

    reviso de crena, pois cada norma ser aplicvel a uma classe especfica de

    situaes concretas.

    Com efeito, o requisito material mais importante da derrotabilidade a

    coerncia do julgador ou rgo durante a deciso. O julgamento h de serpautado pela coerncia em relao aos entendimentos pretritos, a fim de restar

    161STF, Habeas Corpus n. 85.185-1, rel. Min. Cezar Peluso; STF, Habeas Corpus n. 84.014, rel.Min. Marco Aurlio.

    162Cfr. VASCONCELLOS, Fernando Andreoni. Pragmatismo jurdico e pensamento do possvel:entre as possibilidades judicantes e a previsibilidade do direito positivo. In: KARKACHE, Sergio(coord.).Temas de Direito Pblico. Curitiba: Editora da UFPR, 2008. p. 63-73.

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    resguardada a segurana jurdica mesmo nos casos de derrotabilidade.163 Em

    nome da coerncia, o processo de insero da exceo no interior da regra

    impe o fenmeno da universalizao, a partir do qual a deciso singular se torna

    paradigmtica, referncia e modelo s ulteriores decises de casos similares.

    Efetivamente, h normas jurdicas cujo impacto da derrotabilidade maior (ou

    menor), motivo pelo qual o descrmen de HUMBERTO VILA nesse aspecto

    perfeito. Ocorre, todavia, que isso no impede o itinerrio de

    universalizao/generalizao das decises baseadas na derrotabilidade.

    4.2.1 Requisitos procedimentais

    Os requisitos procedimentaisso aqueles desenvolvidos por HUMBERTOVILA para aludir s exigncias formais da superabilidade. Em sua teoria, parte-

    se do pressuposto de que as regras possuem um carter imediatamente descritivo

    de conduta ou de atribuio de poder para a adoo, cabendo ao intrprete a

    aplicao da regra cujo conceito seja finalmente correspondente aos conceitos

    dos fatos, razo pela qual so dotadas de uma eficcia decisiva que os princpios

    no possuem. Isto porque, no seu entender, as regras estabelecem uma deciso

    para um conflito de razes, no cabendo ao aplicador substituir pura e

    simplesmente a ponderao legislativa pela sua, pois elas possuem, ademais,

    uma eficcia de trincheira (so entrincheiradas no lxico de FREDERICK

    SCHAUER), podendo ser superadas, mas s o sero por razes extraordinrias e

    mediante um nus de fundamentao maior.164

    HUMBERTO VILA comenta, ento, que a superao de uma regra deve

    ter uma justificativa condizente, com a demonstrao de incompatibilidade entre a

    hiptese da regra e sua finalidade subjacente, alm de impor a demonstrao de

    163No se descarta a possibilidade de mudana de entendimentos, porm, inclusive nesses casos,a coerncia deve estar presente, como requisito terico indispensvel, seja para a aplicao dodireito, seja para a prpria cincia do direito, como se infere das palavras de Jaap Hage eAleksander Peczenik: () la mejor teora sobre lo que el Derecho es es esa parte de la teorams coherente de todo que se ocupa de los contenidos y la naturaleza del Derecho. (HAGE,Jaap; PECZENIK, Aleksander. Conocimiento..., op. cit., p. 36).

    164VILA, Humberto. Teoria..., op. cit., p. 117-118.

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    que o afastamento da regra no provocar expressiva insegurana jurdica, da

    porque a superao de uma regra estar condicionada comprovao de que a

    justia individual no afetar substancialmente a justia geral.165

    Outrossim, sustenta HUMBERTO VILA, a superao de uma regra

    dever ter uma fundamentao condizente, impondo a exteriorizao, de modo

    racional e transparente, das razes que autorizam a superao, ou seja, uma

    regra no pode ser superada sem que as razes de sua superao sejam

    exteriorizadas. Sendo assim, a fundamentao h de ser escrita, juridicamente

    fundamentada e logicamente estruturada.166Aqui deve ser reconhecida e aplicada

    a ressalva de HABERMAS, no sentido de que a simples possibilidade de reviso

    da deciso impe uma fundamentao cuidadosa das decises, inclusive porque

    h uma necessria concentrao da jurisdio em tribunais cada vez mais altos,

    levando uniformizao e ao aperfeioamento do Direito.167A fundamentao ,

    pois, o requisito indispensvel para qualquer alegao de derrotabilidade

    normativa.

    Finalmente, HUMBERTO VILA destaca que a superao de uma regra

    dever ter uma comprovao condizente, ou seja, no sendo necessrias,

    notrias e nem presumidas, a ausncia do aumento excessivo das controvrsias,

    da incerteza e da arbitrariedade e a inexistncia de problemas de coordenao,

    altos custos de deliberao e graves problemas de conhecimento devem ser

    comprovadas por meios de prova adequados (...).168 Importa dizer, a mera

    alegao de litigiosidade da interpretao no ser suficiente para a superao de

    uma regra.

    Estes requisitos procedimentais constituem um caminho seguro a toda

    empreitada que pretenda invocar a derrotabilidade de uma regra (o que

    poderamos estender a todas as normas). O requisito mais importante, a nossover, a necessria fundamentao e motivao da deciso que se vale da

    165VILA, Humberto. Teoria..., op. cit., p. 120.166Ibidem, p. 120.167HABERMAS, Jrgen. Direito..., op. cit., p. 294-295.168VILA, Humberto. Teoria..., op. cit., p. 120.

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    derrotabilidade. Para derrotar uma interpretao prima facie do direito positivo, o

    intrprete h de motivar o seu ato, de forma densa e muito clara, sem o que a sua

    inteleco ser taxada de ilegal, por estar em descompasso com a legislao, ou

    at mesmo inconstitucional, por ser contrria aos termos da Constituio.

    H uma relao umbilical entre a norma jurdica que encampa a

    derrotabilidade e a sua fundamentao/motivao, uma necessidade apodtica

    sem a qual a pretenso de superao no ter cabimento. Se um sujeito deixa de

    parar no semforo vermelho sob alegao de estado de necessidade (levava a

    esposa ao hospital), e a penalidade do Cdigo Brasileiro de Trnsito ento

    afastada em sede de julgamento administrativo, porque foi acolhida essa

    alegao, tal deciso deve ser amplamente fundamentada e motivada. A

    fundamentao , pois, a pea chave da teoria da derrotabilidade e no se pode

    conceb-la sem esse suporte que lhe concede justificao e consistncia.

    4.3 INCIDNCIA E DERROTABILIDADE

    A incidncia uma categoria jurdica controvertida. O seu conceito

    intuitivo consiste na idia de que a norma jurdica incide quando ocorre(m) o(s)

    fato(s) previsto(s) em sua hiptese. A cincia do direito discute a relao entreincidncia e aplicao do direito, de maneira que existem dois entendimentos

    diametralmente opostos a respeito dessa relao. O primeiro grupo entende que

    incidncia e aplicao do direito no se equivalem, pois so realidades distintas

    que se referem a fenmenos (e a momentos) inconfundveis. O segundo grupo

    aproxima a incidncia da aplicao do direito, de modo que os dois conceitos

    podem (e so) tratados como uma nica realidade. A seguir, sero analisados os

    dois entendimentos, para ao final, discutir-se o qual melhor se adqua realidade

    da derrotabilidade.

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    4.3.1 Incidncia automtica e infalvel

    PONTES DE MIRANDA, no primeiro tomo do seu Tratado de Direito

    Privado, desenvolve o conceito de incidncia a partir da noo segundo a qual,

    para que os fatos sejam jurdicos, preciso que regras jurdicas (normas

    abstratas) incidam sobre eles, desam e encontrem os fatos, colorindo-os,

    fazendo-os jurdicos`.169No pensamento ponteano, quando o Cdigo Civil estatui

    que, aberta a sucesso, i.e., morto algum, o domnio e a posse da herana se

    transmitem, desde logo, aos herdeiros legtimos e testamentrios, porquanto

    estabelece o Cdigo que ao fato (jurdico) da morte suceda, imediatamente

    (automaticamente), o fato jurdico da transmisso dos bens. Na sua tica, ne-

    nhum instante fica vazio entre a propriedade do falecido e a propriedade dos

    herdeiros, pois tudo isso se desenrolaria mediante o pensamento, que est na

    regra jurdica, e incide nos fatos, porm as suas conseqncias so visveis.170

    Para PONTES, a incidnciadas regras jurdicas no se relaciona com o

    seu atendimento, exatamente porque configura fato do mundo dos pensamentos.

    Por esse motivo, a incidncia no falharia, somente o atendimento regra, razo

    bastante para se concluir que a falta no atendimento provocaria a no-

    coincidncia entre incidncia e atendimento e a necessidade de aplicao da

    previsopelo Estado.171

    Seguindo a concepo ponteana, SOUTOR MAIOR BORGES sustenta

    que o direito foi concebido, e logicamente construdo, para que as normas

    jurdicas incidissem. Mas a incidncia decorre da essncia das normas jurdico-

    positivas, no de consideraes dogmticas testveis ou concepes

    jusnaturalistas e pois extra-empricas.172O maior destaque da teoria ponteana a

    autonomia conceitual entre incidncia e aplicao. Nesse aspecto, SOUTO

    MAIOR afirma que a incidncia da norma independe de seu reconhecimento, umavez que constitui apenas uma vinculao lgica e jurdico-dogmtica entre o direito

    169MIRANDA, Pontes de. Tratado..., op. cit., p. 52.170Ibidem, p. 53.171Ibidem, p. 83 e ss.172BORGES, Jos Souto Maior. Curso..., op. cit., p. 35.

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    positivo abstrato e a conduta concreta. A incidncia, nesse ponto de vista, seria

    essencial causalidade jurdica, expressada mediante o dever-ser das normas (se

    ocorrer o fato f, ento deve-ser a prestao p), com independncia do

    reconhecimento da relao imputacional.173

    A infalibilidade da incidncia seria um corolrio lgico dessas

    pressuposies. A respeito, PONTES prope que a incidncia das regras jurdicas

    seria infalvel, isto , todos os suportes fticos, suficientes, que se compuseram,

    so coloridos por ela, sem exceo.174Nas lies ponteanas, a vontade humana

    nada poderia contra a incidncia, pois a regra jurdica somente se realizaria

    quando, alm da colorao da incidncia, os fatos ficassem efetivamente

    subordinados a ela, a partir do que a vontade humana poderia muito.175 Por

    exemplo, Se A devia cortar o cano de gua at meio-dia e o fez, A realizou a

    regra jurdica que incidira. Se A no o fez, A violou a regra jurdica.176Como se

    v, este um modelo similar teoria de DWORKIN, do tudo ou nada na aplicao

    da regra jurdica (applicable in all-or-nothing fashion).177

    4.3.2 Incidncia mediante a linguagem competente do aplicador

    PAULO DE BARROS CARVALHO construiu uma proposta terica na quala incidncia no ocorreria no mundo do pensamento, de forma infalvel e

    independente de qualquer conduta humana, pelo contrrio, seria um ato

    intrinsecamente lingstico e necessariamente intermediado pela ao humana.178

    Sem embargo de estar inserida no estudo do Direito Tributrio, esta teoria, em

    razo de sua amplitude e abrangncia, alcanou todas as reas do Direito, de

    173

    BORGES, Jos Souto Maior. Curso..., op. cit., p. 45 e ss.174MIRANDA, Pontes de. Tratado..., op. cit., p. 83 e ss.175Ibidem, p. 83 e ss.176Ibidem, p. 84.177DWORKIN, Ronald. Levando..., op. cit., p. 23 e ss.178Esse o tema central do trabalho de Paulo de Barros Carvalho intitulado Direito Tributrio:

    Fundamentos jurdicos da incidncia, tese com a qual o autor logrou alcanar o ttulo deProfessor Titular de Direito Tributrio da Universidade de So Paulo, publicada pela EditoraSaraiva, hoje em sua 6 edio.

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    modo que a incidncia voltou a ser discutida e a teoria ponteana comeou a ser

    repensada.

    Para esta doutrina, em se tratando de incidncia, necessrio distinguir

    duas categorias jurdicas, quais sejam: a dos eventos, assim entendidos como a

    realidade social, dos acontecimentos do mundo fenomnico; e a dos fatos,

    considerados como a realidade social vertida em linguagem do Direito. Importa

    dizer, os fatos so enunciados proferidos na linguagem competente do direito

    positivo, articulados em consonncia com a teoria das provas.179

    Nessa linha de raciocnio, os fatos da realidade social so considerados

    apenas eventos, enquanto no forem constitudos em linguagem jurdica prpria.

    Se o evento no existiu efetivamente, todavia um fato o relatou em linguagem

    competente, possuir ento efeitos jurdicos; no entanto, se existiu o evento,

    porm no foi vertido em linguagem, ao Direito no significar nada. As normas

    jurdicas, gerais e abstratas, de cunho conotativo (contendo uma classe de

    predicados que ho de ser observados), devem ser subsumidas por fatos

    (denotativos), sem os quais no se falar em incidncia. Os fatos no se

    equivalem aos eventos e tampouco esto contidos na hiptese da norma jurdica,

    longe disso, eles so entendidos como enunciados protocolares que fazem

    referncia espao-temporal ao momento em que o evento ocorreu.180

    179CARVALHO, Paulo de Barros. Curso..., op. cit., p. 358.180PAULO DE BARROS CARVALHO, para ilustrar a sua teoria, cita a seguinte situao:

    Pensemos num exemplo singelo: nasce uma criana. Isto um evento. Os pais, entretanto,contam aos vizinhos, relatam os pormenores aos amigos e escrevem aos parentes de fora paradar-lhes a notcia. Aquele evento, por fora dessas manifestaes de linguagem, adquiriutambm propores de um fato, num de seus aspectos, fato social. Mas no houve o fato

    jurdico correspondente. A ordem jurdica, at agora ao menos, no registrou o aparecimento deuma nova pessoa, centro de imputao de direitos e deveres. A constituio jurdica desse fatovai ocorrer quando os pais ou responsveis comparecerem ao cartrio de registro civil e

    prestarem declaraes. O oficial do cartrio expedir norma jurdica, em que o antecedente ofato jurdico do nascimento, na conformidade das declaraes prestadas, e o conseqente aprescrio de relaes jurdicas em que o recm-nascido aparece como titular de direitosubjetivos fundamentais (ao nome, integridade fsica, liberdade etc.), oponveis a todos osdemais da sociedade. Eis uma relao jurdica em que o sujeito ativo est determinado, e opassivo, em estado de indeterminao. que, muitas vezes, o direito posto no se satisfaz coma linguagem ordinria que utilizamos em nossas comunicaes corriqueiras: exige uma formaespecial, fazendo adicionar declaraes perante autoridades determinadas, requerendo apresena de testemunhas e outros requisitos mais. justamente o que sucede no caso donascimento. A linguagem do direito no aceita a comunicao que os pais fazem aos vizinhos,

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    As normas gerais e abstratas no conseguem incidir, spont propria, sem a

    positivao que ocorre por meio das normas individuais e concretas. Segundo

    este entendimento, no h incidncia automtica e infalvel apenas com a

    ocorrncia do evento no mundo fenomnico, porquanto a infalibilidade da

    incidncia existiria to-somente quando se est diante de um fato jurdico, assim

    considerado como a manifestao do intrprete por meio de uma linguagem

    competente, mediante a expedio de uma norma individual e concreta.

    Os sujeitos aptos a emitirem estas normas individuais e concretas, nessa

    linha de pensamento, no se restringem unicamente Administrao Pblica e ao

    Judicirio, mas tambm aos cidados. Isto porque o direito positivo brasileiro

    prev situaes nas quais o prprio cidado quem deve interpretar e aplicar as

    previses textuais, como no ato tributrio de lanamento por homologao, no

    qual no h participao do Poder Pblico no momento da interpretao/aplicao

    do direito.181

    V-se, pois, a diametral diferena entre as perspectivas acerca da

    incidncia normativa. Importante, agora, ser analisar qual destas noes se

    mostra mais adequada para o tratamento do fenmeno da derrotabilidade.

    4.3.3 A incidncia segundo a derrotabilidade

    Tivemos a oportunidade de revelar os principias aspectos tericos da

    derrotabilidade, assim como expusemos as duas correntes doutrinrias

    desenvolvidas para a disciplina da incidncia. Chegou o momento de cotejarmos

    as exposies realizadas em cada tpico. Segundo nos parece, a derrotabilidade

    no comporta a anlise luz dos dois conceitos, sendo, portanto, destinada a se

    amoldar a somente um deles. Para a exposio do conceito que se nos afigura

    mais congruente, trabalharemos com uma situao concreta.

    amigos e parentes. Impe, para que o fato se d por ocorrido juridicamente, um procedimentoespecfico. Eis a linguagem do direito positivo (Ldp) incidindo sobre a linguagem da realidadesocial (Lrs) para produzir uma unidade na linguagem da facticidade jurdica(Lfj). (CARVALHO,Paulo de Barros. Curso..., op. cit., p. 358-359).

    181Ibidem, p. 361 e ss.

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    A Associao Brasileira das Empresas de Transporte Rodovirio

    Intermunicipal, Interestadual e Internacional de Passageiros props Ao Direta de

    Inconstitucionalidade no Supremo Tribunal Federal, para alegar a

    inconstitucionalidade da Lei n. 8.899, de 29 de junho de 1994, que concede

    passe livre s pessoas portadoras de deficincia, sob a alegao de afronta aos

    princpios da ordem econmica, da isonomia, da livre iniciativa e do direito de

    propriedade, alm de ausncia de indicao de fonte de custeio.182

    Diante desta pretenso, o STF entendeu pela constitucionalidade da

    previso legal, ao argumento de que o Brasil assinou, perante as Naes Unidas,

    a Conveno sobre os Direitos das Pessoas com Deficincia, bem como seu

    Protocolo Facultativo, comprometendo-se a implementar medidas para dar

    efetividade ao que foi ajustado. A Lei n. 8.899/94, ento, faria parte deste

    contexto, como forma de insero dos portadores de necessidades especiais na

    sociedade e objetiva a igualdade de oportunidades e a humanizao das relaes

    sociais, em cumprimento aos fundamentos da Repblica de cidadania e dignidade

    da pessoa humana, o que se concretiza pela definio de meios para que eles

    sejam alcanados.

    A previso legal, tal como formulada, previa em seu artigo 1 que

    concedido passe livre s pessoas portadoras de deficincia, comprovadamente

    carentes, no sistema de transporte coletivo interestadual. Pois bem. Na teoria da

    incidncia ponteana, a regra pode ser assim exemplificada: Se A pessoa carente

    e portadora de deficincia, ento, automtica e infalivelmente deve gozar do passe

    livre no sistema de transporte coletivo interestadual. Se no for concedido o passe

    livre, ocorrer a violao da regra.

    Ocorre, entretanto, que as previses textuais tambm aplicveis ao caso

    no podem ser colocadas em termos de regras desjuridicizantes ou pr-juridicizantes (cfr. item 3.2.3, supra). A questo em tela essencialmente

    principiolgica e nela no se pode falar em incidncia automtica e infalvel de

    182STF, Ao Direta de Inconstitucionalidade n. 2649/DF, rel. Min. Crmen Lcia, DJU16/10/2008.

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    princpios; antes da manifestao do STF, sequer era possvel cogitar quais

    princpios seriam aplicveis situao. Foi necessria uma interpretao

    sistemtica que articulasse a aplicao dos princpios, perante o caso concreto e

    mediante linguagem competente, sem o que no se teria definida a efetiva

    incidncia da previso legal.183 A regra isolada, poderia ser interpretada (e

    cumprida)prima facie, mas sistematicamente se mostrava incerto o seu contedo.

    Por se tratar de uma questo eminentemente principiolgica, at a deciso do

    STF, no se sabia se a regra permaneceria obrigando o passe-livre, se ela seria

    considerada inconstitucional, ou ento, se existiria uma terceira soluo, p.ex.,

    com a imposio de que Poder Pblico arcasse com o custo da passagem. Resta

    clara, pois, a dificuldade no tratamento de previses textuais prima facie no bojo

    da teoria da incidncia ponteana, diante de controvrsias normativas,especialmente as principiolgicas.

    O prprio SOUTO MAIOR BORGES, a quem coube a melhor defesa da

    teoria ponteana, fez temperamentos sobre o descumprimento da regra e a

    aplicao de princpios, no sentido de que nem toda inaplicao de norma que

    incidiu deve ser havida a priori como hiptese de ilicitude. Ela pode decorrer de

    exigncias intercorrentes na aplicao ao caso concreto de leis infra-ordenadas

    CF, p.ex., quando se afasta a aplicao inconstitucional de lei constitucional. (...)Tambm aqui a lgica do direito deve ser movida pela razoabilidade.184No se

    trata, a nosso ver, do reconhecimento da razoabilidade, mas sim, do fato de que a

    incidncia automtica e infalvel se mostra incompatvel com a interpretao

    sistemtica do direito positivo e com a plurivocidade das mensagens legislativas.

    A incidncia automtica e infalvel pressupe uma univocidade do texto

    que no corresponde com a realidade. O clssico exemplo da placa determinando

    proibido usar biquni pode ser interpretado em sentidos opostos, dependendo

    183 A correlao entre a anlise principiolgica e a viso sistemtica do Direito indispensvel.Nessa linha, Jos Roberto Vieira conclui que os princpios compem de modo especial aestrutura do sistema, possuindo excepcional vigor aglutinante, frisando, nesse tpico, ainafastvel exigncia de atingir-se a trama normativa toda, e especialmente a constitucional,pela via sistemtica. (VIEIRA, Jos Roberto, A Noo de Sistema no Direito. Revista daFaculdade de Direito da UFPR. n. 33. Porto Alegre: Sntese, 2000. p. 53-64).

    184BORGES, Jos Souto Maior. Curso..., op. cit., p. 48.

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    do contexto onde a regra ser inserida, se em uma praia naturista ou em um

    restaurante. Nesse exemplo, Se A usar biquni, violar ou no a regra? A regra

    incidiu ou no?

    Com efeito, o maior problema no se encontra na incidncia de uma

    norma isolada, mas na conjuno sistemtica de diversas normas, de maneira que

    a prpria soluo normativa pode restar alterada substancialmente. A dificuldade

    maior no est em aceitar que a incidncia de uma norma isolada pode ocorrer no

    mundo do pensamento, mas em como diversas incidncias concomitantes, sem

    um valor de verdade (mesmo em uma verdade por correspondncia), pode gerar

    uma soluo jurdica diversa, de forma patentemente falvel (derrotvel).

    A teoria ponteana da incidncia constitui um modelo ideal, semelhante ao

    Juiz Hrcules de DWORKIN, mostrando-se aceitvel apenas e to-somente

    quando a norma jurdica bem formada sintaticamente, semanticamente e

    pragmaticamente. Considerando que esta perfeio contingente, possvel

    afirmar que as disposies prima facie do direito positivo devem ser obedecidas

    no porque houve a incidncia, mas por receio de eventual sano, por simples

    cumprimento de um mandamento, enfim, porque os destinatrios normativos

    sabem que devem atender s prescries textuais, salvo se existir uma razo

    suficiente para no faz-lo.

    A teoria de PAULO DE BARROS CARVALHO, por esses motivos, afigura-

    se como a mais adequada para o tratamento da incidncia em consonncia com a

    interpretao sistemtica do direito positivo. Esta linha de raciocnio, outrossim,

    permite a insero da derrotabilidade no conceito de incidncia, pois em face do

    caso concreto e durante a expedio da norma individual e concreta, pode o

    intrprete, mediante deciso fundamentada e motivada, derrotar a previso prima

    facie do direito positivo.

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    5 A DERROTABILIDADE PROCESSUAL

    5.1 INTRODUO DERROTABILIDADE PROCESSUAL

    No captulo terceiro foi exposta uma viso esttica, conceitual, dos

    pressupostos da teoria da derrotabilidade. No quarto captulo apresentou-se uma

    perspectiva esttica-dinmica da derrotabilidade em relao s normas jurdicas.

    Agora, ser trazida uma anlise processual, essencialmente dinmica, pragmtica,

    baseada naquilo que ROBERT ALEXY chamou de regras para partilhar a carga

    da argumentao. Esta exigncia, qualificada como uma das regras do discurso

    prtico, permite que toda pessoa problematize qualquer afirmao, porm com

    requisitos, porque quem se prope a tratar a pessoa A diferentemente da pessoa

    B obrigado a dar justificao por fazer isso.185

    Tal regra se equivale ao princpio da inrcia de CHAIN PERELMAN,

    segundo o qual a inrcia permite contar com o normal, o habitual, o real, o atual e

    valoriz-lo, quer se trate de uma situao existente, de uma opinio admitida ou

    de um estado de desenvolvimento contnuo e regular. A mudana, em

    compensao, deve ser justificada; uma deciso, uma vez tomada, s pode ser

    alterada por razes suficientes.186Em outras palavras, a diferena entre regra eexceo est no fato de que a exceo deve ser justificada.187

    Estes conceitos coincidem com a distribuio do nus da prova, presente

    no Processo Civil, e encontram-se no centro das atenes dos estudos de

    derrotabilidade processual. Como se viu, a derrotabilidade proporciona uma srie

    de caminhos investigativos para a Teoria Geral do Direito, afetando temas como

    aplicao, interpretao e incidncia, alm de implicar na anlise de questes

    filosficas como a incompletude do conhecimento e a indeterminao jurdica.Nesse momento, a face processual da derrotabilidade merecer ateno,

    185ALEXY, Robert. Teoria..., op. cit., p. 192.186PERELMAN, Chain; OLBRECHTS-TYTECA, Lucie. Tratado da argumentao: a nova retrica.

    Trad. Maria Ermantina Galvo Pereira. So Paulo: Martins Fontes, 2006. p. 120.187BOBBIO, Norberto. Igualdade e Liberdade. Trad. Carlos Nelson Coutinho. 5. ed. Rio de Janeiro:

    Ediouro, 2002. p. 10.

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    sobretudo a partir da tica de GIOVANNI SARTOR e NEIL MACCORMICK, dois

    autores que implementaram esquemas pragmticos para a aplicao da teoria.

    5.1.1 Teoria de Giovanni Sartor

    GIOVANNI SARTOR desenvolveu um dos sistemas mais conhecidos de

    derrotabilidade processual.188 Em seus estudos, alm de analisar diferentes

    noes lgicas de argumentao legal, SARTOR apresenta um sistema de

    argumentao derrotvel, destinado a modelar o raciocnio normativo. No presente

    estudo, o objeto estar restrito aos aspectos eminentemente processuais de sua

    teoria, sem serem aprofundados os desdobramentos analticos.189

    Em uma estrutura normativa hipottico-condicional, SARTOR explica a

    distino entre duas categorias de elementos presentes no antecedente

    normativo; a primeira atinente aos elementos que devem ser provados (chamada

    de probanda) e a segunda referente aos elementos que no podem ser

    configurados (chamada de non-refutanda). A existncia da probanda, para

    SARTOR, necessria para a derivao dos efeitos legais, situao que impe ao

    interessado o nus de demonstr-la; por outro lado, a comprovao da non

    refutanda desnecessria quele que almeja a aplicao da norma jurdica,somente interessando a quem quer ver a norma inaplicada.190

    Esta perspectiva no constitui nenhuma novidade em termos processuais,

    seguindo inclusive a regra do artigo 333 do Cdigo de Processo Civil brasileiro.

    188SARTOR, Giovanni, Defeasibility..., op. cit., p. 281-316; PRAKKEN, Henry; SARTOR, Giovanni.The three faces..., op. cit., p. 118-139; PRAKKEN, Henry; SARTOR, Giovanni. RepresentingLegal Precedents as DefeasibleArgumentation Structures (preliminary report). In:Proceedingsof the Workshop on Computational Dialectic. International Conference on Formal and Applied

    Practical Reasoning. Bonn: 1996.passim

    ; SARTOR, Giovanni. Syllogism and Defeasibilty: AComment on Neil MacCormicks Rhetoric and the Rule of Law. EUI-LAW Working Papers.n.23. European University Institute (EUI): Department of Law: 2006. p. 12.

    189 Para a perspectiva analtica da teoria de SARTOR e PRAKKEN, em lngua portuguesa, v.:MARREIROS, Maria Goreti Carvalho. Agentes de apoio argumentao e deciso em grupo.Tese de Doutorado apresentada na Universidade do Minho. Braga: 2007. p. 94-97. Veja-se,tambm: WANG, Peng-Hsiang. Defeasibility in der juristischen Begrndung. Baden-Baden:Nomos Verlagsgesellschaft, 2004. p. 68-78, no tpico intitulado Probanda und Non-refutanda:Sartors Theorie.

    190SARTOR, Giovanni, Defeasibility..., op. cit., p. 282.

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    Seu grande mrito, todavia, foi possibilitar a articulao lgica da impossibilidade

    de elaborao de uma lista de excees para cada norma jurdica, trazendo este

    fato para o seio da argumentao jurdica. Invocando a lgica no-monotnica,

    SARTOR enfrentou esta situao atravs da elaborao de mtodos de

    inferncia que derivam concluses a partir de regras gerais e que permitem o

    afastamento de tais concluses quando uma de suas condies necessrias

    venha a falhar.191

    SARTOR defende a utilizao, na argumentao jurdica, de uma lgica

    no-monotnica, pela qual possvel extrair concluses mesmo com a ausncia

    de informao completa acerca do quadro de premissas e, ainda, possibilita a

    alterao da concluso diante da modificao do conjunto de premissas, situao

    com a qual a lgica clssica (monotnica) no compatvel (v. item 3.3.1, supra).

    Nessa linha de raciocnio, a derrotabilidade se mostraria a melhor forma para

    conciliar os rigores formais da lgica e as possibilidades dialgicas da teoria da

    argumentao, pretenso que encontra nessa teoria o seu caminho mais

    adequado, pois a tenso entre a lgica e a argumentao deve preferivelmente

    ser superada estendendo-se mtodos formais para fora do domnio da deduo,

    aos momentos de conflito dialtico - e conseqentemente da escolha e da

    aplicao - que caracterizam o raciocnio legal e moral.192

    Com efeito, possvel exemplificar o entendimento de SARTOR mediante

    a anlise da seguinte situao: segundo o Cdigo de Processo Civil brasileiro, em

    seu artigo 183, decorrido o prazo, extingue-se, independentemente de declarao

    judicial, o direito de praticar o ato, ficando salvo, porm, parte provar que o no

    realizou por justa causa. Para a declarao da perda do prazo processual, o Juiz

    da causa (ou a parte interessada) no precisa investigar a existncia ou no de

    uma justa causa, mas apenas e to-somente aferir empiricamente o decurso de

    191 Nonmonotonic logics () offer inference methods to derive conclusions by means of thegeneral rules, but allow us to retract those conclusions whenever one of the necessaryqualification fails. (SARTOR, Giovanni, Defeasibility..., op. cit., p. 305).

    192The tension between logic and argumentation must instead be overcome by extending formalmethods outside the domain of deduction, to the moments of dialectical conflict and thereforeof choice and evaluation which characterise legal and moral reasoning. (SARTOR, Giovanni.A formal model of legal argumentation. Ratio Juris. v. 7, p. 177).

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    prazo sem a manifestao daquele que deveria faz-lo. A probanda da norma

    jurdica criada a partir do artigo 183 do CPC consiste na simples demonstrao do

    decurso de prazo, sendo este ato bastante-em-si para a sua aplicao.

    Sob a parte que recai o prejuzo pela perda do prazo incumbe o nus

    processual de demonstrar a justa causa, apta a afastar a precluso, i.e., a parte

    prejudicada deve se ater ao argumento non-refutanda, de modo que ele possa

    infirmar a norma jurdica cujoprobandafora configurado. A figura da non-refutanda

    equivalente aos fatos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito

    postulado, ao passo que oprobanda , por excelncia, a categorizao dos fatos

    constitutivos. Em relao ao artigo 183 do CPC, no existe um rol taxativo de

    excees capazes de impedir a irradiao dos efeitos normativos, razo pela qual

    se mostra oportuna a construo de uma teoria que permita a aplicao do

    preceito normativo, aceitando unicamente a configurao dos fatos constitutivos,

    mas que consiga inibir a fora normativa mediante a considerao de argumentos

    explcitos ou implcitos.

    O Superior Tribunal de Justia teve a oportunidade de se manifestar sobre

    um pedido de devoluo de prazo processual em razo da configurao de justa

    causa. A alegao era de que o Advogado da parte prejudicada encontrava-se

    adoecido no momento em que flua o prazo, motivo pelo qual no poderia praticar

    o ato processual. O STJ entendeu que o artigo 183, 1, do CPC, deve ser

    interpretado com a compreenso voltada para o lao de confiana firmado entre

    cliente e Advogado, da porque, se o patrono adoece e fica impossibilitado, por

    estar internado no hospital, de preparar dentro do prazo a pea recursal, o Juiz h

    de relevar a intempestividade, considerando a excepcionalidade da situao.193

    Assim, entendeu-se que a doena do Advogado pode configurar a justa causa,

    quando a molstia for imprevisvel e capaz de impedir a prtica do ato processual.A principal justificativa para este entendimento consiste no fato de que o

    Advogado no instrumento fungvel, pelo contrrio, um tcnico, um arteso,

    normalmente insubstituvel na confiana do cliente e no escopo de conseguir-se

    193STJ, Recurso Especial n. 627.867/MG, rel. Min. Jos Delgado, DJU14/06/2004, RT 829/170.

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    um trabalho eficaz, sendo que, exigir que o Advogado, vtima de mal sbito e

    transitrio, substabelea a qualquer um o seu mandato, para que se elabore s

    pressas e precariamente um ato processual, for-lo a trair a confiana de seu

    constituinte.

    Esta teoria pretende se colocar como diferenciada, noticia JUAN CARLOS

    BAYN, porque parte da premissa de que o raciocnio jurdico derrotvel, pois,

    se no o fosse, segundo a teoria sartoriana, no haveria forma de explicar como

    uma deciso pode estar realmente justificada a partir de um conjunto de

    premissas P1, ou seja, com todos os probandas configurados e, sem embargo,

    no o estar diante de um conjunto ampliado de premissas P2, que acrescenta P1

    a premissa adicional non-refutanda.194

    Fazendo referncia situao acima colecionada, a lgica clssica no

    comporta conjuntamente p r (em que p o decurso de prazo sem a

    manifestao e r representa a decretao de precluso) e (p/\ q) -r (em que

    p o decurso de prazo sem a manifestao, /\ o smbolo de conjuno lgica,

    q representa a excepcional justa causa e r significa a no decretao da

    precluso). Seguindo a no-monotonicidade, a razo forte o bastante para infirmar

    a regra geral includa logicamente na inferncia originria e com ela pode ser

    trabalhada processualmente, por meio da argumentao ftica e jurdica levada a

    cabo pelas partes. Aprobanda o simples decurso de prazo sem a realizao do

    ato processual exigido; por outro lado, a non-refutanda a inexistncia de justa

    causa. Com efeito, a primeira regra prevalece e deve ser aplicada, a menos que a

    segunda seja refutada, mediante a demonstrao da existncia de exceo;

    ambas, no entanto, convivem logicamente no sistema.

    SARTOR reconhece a existncia de diferentes formas de distribuio do

    nus da prova, como exemplifica no tratamento processual mais benficooutorgado parte mais fraca da relao jurdica (to protect the weaker party).195

    194BAYN, Juan Carlos. Por qu..., op. cit., p. 40.195SARTOR, Giovanni. Syllogism..., op. cit., p. 12.

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    Entretanto, quando no h uma exceo ou regra especfica, a regra geral impe

    que aquele que alega deve provar os fatos que embasam as suas razes.

    A derrotabilidade, afirma SARTOR, possui uma funo heurstica,

    porquanto as concluses normativas conseguidas mediante inferncia no-

    monotnica podem ser derrotadas em razo de uma nova informao. Isto

    contudo no exclui a certeza do direito, destinada a direcionar e a controlar as

    decises judiciais. No deslinde de muitas celeumas, somente os aspectos

    legalmente relevantes emergem, ou ento, o conflito pode ser resolvido apenas

    pelos critrios de prioridade fornecidos pelo ordenamento. Para ele, a existncia

    de limites processuais e temporais constitui estmulo importante para a discusso

    legal, na medida em que as partes so induzidas a fornecerem todos os

    argumentos relevantes para o desfecho da causa. Isso se refere aos aspectos

    fticos e tambm aos jurdicos; embora prevalea o adgio de que o Juiz sabe a

    lei (jura novit curia), a parte interessada deve aduzir os fundamentos jurdicos e as

    interpretaes capazes de corroborar as alegaes defendidas.196

    Analisando a teoria de DWORKIN a respeito da diferena entre regras e

    princpios, SARTOR entende que no Direito (e na moral) no possvel encontrar

    regras no modelo tudo-ou-nada, uma vez que normas condicionais perfeitas

    (prescries que subordinam um efeito legal a uma condio suficiente), no so

    estruturas lingsticas que existem concretamente no mundo legal (legal world),

    mas apenas em um modelo ideal. Portanto, reescrever o sistema legal em um

    padro condicional perfeito constituiu itinerrio que nunca poder ser concludo, e

    se fosse pretendido, levaria em todo o caso a formulaes extremamente

    complexas, difceis inclusive de se modificar, pois a introduo de uma exceo

    imporia a modificao dos antecedentes de todas as normas incompatveis com

    aquela exceo, alm de ser extremamente incerto, porque na criao doantecedente total, restariam incertos todos os conflitos a serem resolvidos para

    que este modelo ideal fosse concludo.197

    196SARTOR, Giovanni, Defeasibility..., op. cit., p. 306.197

    Ibidem, p. 307 e ss.

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    SARTOR, ento, defende que cada norma jurdica (leia-se previso

    textual) possui as caractersticas que DWORKIN atribui aos princpios, i.e., no

    so derrotveis em um nvel abstrato e pr-determinado de circunstncias e

    permanecem vlidas mesmo se no restarem aplicadas em determinados casos.

    Quando se encampa a noo de derrotabilidade, nenhuma norma jurdica

    aplicvel exatamente a um conjunto de casos bem definidos (exactly to a set of

    well-defined cases), e mesmo quando claramente expressa, a indeterminao

    acerca de sua relao com outras normas, ou ainda, a sua posio no

    ordenamento, pode se tornar um ponto relevante.198 Sendo assim, a distino

    entre regras e princpios, baseada na derrotabilidade, no uma separao entre

    categorias de normas com diferentes estruturas lgicas, mas, no mximo, uma

    distino emprica e gradual, relacionada prevalncia de aspectos que cadanorma possui, at certo ponto. Por isso, SARTOR diz apenas que a norma uma

    regra quando o seu antecedente contm termos descritivos exatos (precise

    descriptive terms), e a sua prioridade (importncia) em relao a outras normas

    exatamente determinada; por outro lado, um princpio possuiria o antecedente

    com termos imprecisos e sem uma prioridade determinada.199

    Como se v, a derrotabilidade processual de SARTOR fundada na

    distribuio do nus da prova, mas possui ntidos reflexos na estrutura normativa,de regras e princpios, e envolve a modificao da prpria lgica do sistema

    jurdico.

    5.1.2 Teoria de Neil MacCormick

    NEIL MACCORMICK elaborou um modelo de derrotabilidade processual a

    partir do reconhecimento de que os arranjos jurdicos apresentam requisitos

    ordinariamente necessrios e presumivelmente suficientes (ordinarily necessary

    198V. nota 80, supra, acerca da norma jurdica perfeita de Klaus Gnther.199SARTOR, Giovanni, Defeasibility..., op. cit., p. 310 e ss.

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    and presumptively sufficient conditions).200 Em sua teoria, um arranjo construdo

    com base em regras jurdicas (arranjo que se pode chamar de normas jurdicas),

    pode ter uma aparncia de validade e, no entanto, pode ainda estar sujeito a

    algum tipo de interveno que o invalide. MACCORMICK explica a derrotabilidade,

    exemplificando-a a partir da noo de uma regra sobre um Direito D, que

    expressamente prev as condies positivas para atribuir D a uma pessoa

    apropriada, mas que tambm sujeita a concesso desse direito a algumas

    excees ou ressalvas. Assim, a formulao das condies em relao a D prev

    os seguintes termos: se as condies c1, c2 e c3 so satisfeitas, ento A pode

    opor D contra B, mas no se B mostrar que existe a condio excepcional e1.201

    Dentro da pragmtica dos pleitos de direitos (right-claims) e do gozo de

    direitos (right-enjoyment), tudo queA precisa fazer para estabelecer a pretenso D

    satisfazer as condies c1, c2, c3. No cabe a A mostrar que a situao no

    excepcional, pois cabe a outra parte interessada, B, mostrar a excepcionalidade

    do caso em razo da existncia de e1. Ao fazer isso, B derrota a pretenso deA,

    que seria vlida no fosse tal exceo. Qualquer afirmao que A faz em relao

    ao pleito de um direito com base em c1, c2 e c3 derrotvel, e ser invalidada, se

    Bcomprovar e1. Por outro lado, quando no h controvrsia, a confiana que A

    possui no seu pleito (ou no seu prprio direito), depende de que B seja incapaz demostrar ou provar e1; para existir segurana total, necessrio que no exista

    e1.202

    Diante do caso dos legatrios homicidas (ou herdeiros), que perdem o

    legado em razo do princpio implcito de que ningum pode se beneficiar da

    prpria torpeza, MACCORMICK questiona se, nesse caso, o direito nunca existiu

    ou existiu, mas considerado derrotvel. Escrevendo em termos pragmticos,

    MACCORMICK entende o mais correto como a caracterizao de uma pretensoao legado derrotvel, ou seja, h um direito que primeiro existe e depois

    200MACCORMICK, Neil. Retrica..., op. cit., p. 310 e ss; MACCORMICK, Neil. Defeasibility..., op.cit.,p. 99 e ss.

    201MACCORMICK, Neil. Retrica, op. cit., p. 311-312.202Ibidem, p. 312.

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    derrotado. O direito (right) considerado como um fato institucional, presente

    apenas e to-somente onde haja satisfao perfeita e no-excepcionada

    (undefeated) de todas as condies (implcitas e explcitas) efetivamente exigidas

    em um dado caso, sendo derrotvel, portanto, a atribuio de um direito, ou a

    afirmao de um pleito a algum (ou daquilo que algum busca receber por meio

    do direito).203

    Segundo MACCORMICK, o Direito (law) deve ser formulado em termos

    gerais, entretanto, estas formulaes so sempre capazes de omitir referncias a

    algum elemento que pode se tornar o fato operativo-chave no caso concreto. Isto

    ocorre em razo da multiplicidade de condies possveis que surgem da

    interao entre diferentes partes do Direito, entre regras explcitas ou

    reelaboraes doutrinrias de regras articuladas com princpios e valores. Seria

    extremamente difcil (e talvez impossvel) tentar formular todas as precondies

    concebveis de validade em cada enunciado de cada regra, o que levaria qualquer

    pretenso de faz-lo a um efeito desastroso prpria inteligibilidade do Direito.

    Considerando que as formulaes gerais no explicitam muitas condies,

    MACCORMICK conclui que qualquer pessoa pode se sentir segura, quanto quiser,

    no contexto de algum arranjo ou vantagem jurdica, mas a segurana ltima se

    encontra na efetivao judicial, aps enfrentar as alegaes de fatos impeditivos,a partir da viso de nus prova.204

    Em um ntido reconhecimento do direito de ao e do direito de defesa,

    MACCORMICK afirma que qualquer coisa pleiteada pode tambm ser refutada,

    mesmo que a refutao no merea ser bem sucedida, e possa, de fato, falhar.

    Seja qual for a soluo sugerida por uma pessoa num debate sobre relevncia ou

    interpretao (ou, s vezes, classificao) para justificar seu pleito particular,

    alguma outra pessoa pode ver uma potencial exceo (...).205

    Esta situaoenvolve o nus da prova e a indispensvel fundamentao das partes que

    pretendem ver o seu ponto de vista acolhido.

    203MACCORMICK, Neil. Retrica, op. cit., p. 314-315.204Ibidem, p. 314-321.205Ibidem,p. 327.

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    Como se v, as perspectivas de MACCORMICK e SARTOR se

    aproximam e em alguns momentos se correlacionam. Ambos partem de uma

    matriz hartiana e a desenvolvem em vista da viso processual da derrotabilidade.

    Enquanto SARTOR se mostra mais preocupado com a reviso de conceitos e a

    referncia a aspectos lgicos, MACCORMICK mais pragmtico e se debrua

    sobre problemas prticos da derrotabilidade. Os dois caminham para caracterizar

    a derrotabilidade como um fenmeno intrnseco ao Direito e aos direitos,

    sobretudo quando levados discusso no mbito judicial.

    5.2 NUS DA PROVA E NORMAS JURDICAS

    luz da derrotabilidade, o nus da prova no somente um conceito dedireito processual, mas tambm de direito material. Tal como ocorre na teoria da

    incidncia, na viso que a entende configurada quando vertida em linguagem

    competente, aps a devida articulao com a teoria das provas, em relao

    derrotabilidade, a anlise probatria tambm se faz necessria. A configurao

    dos fatos constitutivos, aptos a ensejarem a aplicao normativa, se enquadra na

    teoria das provas, assim como possveis fatos impeditivos que podem

    eventualmente tolher os efeitos da norma jurdica invocada.

    O nus da prova, entretanto, varia conforme a rea do Direito analisada.

    No Direito Penal, por exemplo, vale a presuno de inocncia, regra probatria

    que no STF impe a no-culpabilidade como dispensvel de qualquer

    demonstrao ou elemento de prova, pois presumida, ao passo que o seu oposto

    (a culpabilidade) que demanda prova, i.e., a prova inequvoca de protagonizao

    do fato criminoso.206 O Cdigo de Processo Civil brasileiro adotou a teoria de

    CHIOVENDA, como regra geral inserida no artigo 333, dentro da qual cabe ao

    autor o nus da prova quanto ao fato constitutivo do seu direito, e ao ru, quanto

    existncia de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor.207

    206STF, Habeas Corpus n. 92.435/SP, rel. Min. Carlos Brito, DJU17/10/2008.207La cuestin de la carga de la prueba redcese, por lo mismo, en el caso concreto, determinar

    cules son los hechos que, tenidos por existentes por el juez, deben bastar para inducirlo a

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    Nas palavras de PONTES DE MIRANDA, a prova refere-se a fatos;

    portanto: a elementos do suporte ftico, ao suporte ftico e aos fatos jurdicos que

    de suportes fticos resultam. Direitos, pretenses, aes e excees so efeitos

    de fatos jurdicos: preciso que se provem os fatos jurdicos para que se tenham

    por existentes, no tempo e no espao, esses efeitos.208Dessarte, o nus da prova

    correlacionado a questes de fato, no entanto, mesmo em matrias

    unicamente de direito, parte interessada cabe defender a sua tese por meio de

    uma argumentao capaz de convencer o Juiz da causa, seja para acolher a

    alegao de que o caso concreto se subsume hiptese legal invocada, seja para

    ponderar acerca dos argumentos levantados em casos mais complexos.

    NUNO MANUEL PINTO OLIVEIRA, nesse contexto, entende que o critrio

    mais coerente para a repartio das conseqncias jurdicas, em matria

    probatria, o formulado pela teoria das normas. Para ele, o nus da prova

    quanto a cada facto incumbe parte cuja pretenso processual s pode obter

    xito mediante a aplicao da norma de que ele pressuposto.209

    O raciocnio em que a teoria das normas` se funda meridianamente

    claro: firmada a ideia segundo a qual o juiz s pode aplicar uma norma se

    estiverem provados os pressupostos de facto que integram a sua hiptese, quem

    estimar la demanda (constitutivos). (CHIOVENDA, Giuseppe. Princpios de derecho procesalcivil. Trad. Jose Casais y Santal. t. II. Madrid: Reus, 1925. p. 254.

    208MIRANDA, Pontes. Comentrios ao Cdigo de Processo Civil. t. IV, 3. ed. Rio de Janeiro:Forense, 1996. p. 155. E Pontes continua: Quando de diz prove o seu direito`, prove apretenso, a ao, ou a exceo`, emprega-se forma elptica; em verdade o que se pensou foi:prove o fato jurdico de que se irradia o direito, a pretenso, a ao, ou a exceo de que setrata`. A prova concerne, portanto, existncia e inexistncia no mundo ftico ou no mundo

    jurdico. H prova de fatos do mundo ftico e prova de fatos do mundo jurdico (= de suportesfticos + entrada no mundo jurdico). Os fatos compreendem os fatos que entram nacomposio de suportes fticos e os fatos mesmos das regras jurdicas que incidem sobre

    aqueles. Em princpio, portanto, a regra jurdica teria de ser provada, como fato que . Aafirmao de existir tal regra jurdica (= ter de incidir) teria de entrar no tema probatrio. a) Anecessidade de ser conhecida de todos (e, pois, do juiz) a lei levou a se sobrepor ao principiode necessria alegao e prova dos fatos o da desnecessariedade da prova da lei

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    pretende beneficiar (retirar efeitos favorveis) da aplicao de uma norma tem o

    encargo de demonstrar a existncia dos respectivos pressupostos.210

    Logo, os fatos considerados ordinariamente necessrios e

    presumidamente suficientes para a irradiao dos efeitos da norma jurdica ho de

    ser provados mediante a teoria das provas, ou, em se tratando de matria

    eminentemente de direito, devem ser articulados por meio de substancial

    argumentao.

    5.2.1 Os conceitos de fatos constitutivos, impeditivos, extintivos e

    modificativos

    Em razo da correlao entre os temas, seguir-se- o modelo de NUNO

    MANUEL PINTO OLIVEIRA a respeito do nus da prova, apresentado em seu

    livro Estudos sobre o no cumprimento das obrigaes. A premissa por ele

    utilizada a mesma do sistema processual brasileiro, por meio da distino entre

    os fatos que servem de fundamento pretenso (fatos constitutivos do direito

    alegado) e os fatos que servem de fundamento exceo (fatos impeditivos,

    modificativos ou extintivos do direito invocado). O conceito de fato constitutivo

    assumido refere-se a factos idneos, segundo a lei substantiva, para fazer nascero direito que o autor se arroga contra o ru.211

    Ante a pretenso do autor, em sendo comprovados os seus fatos, pode o

    ru se defender, negando o fundamento da demanda, ou, ento, pode invocar

    novos fatos, impeditivos, modificativos ou extintivos. Desta relao nasce a

    distino entre fatos constitutivos e fatos extintivos baseada em dois critrios

    complementares: o critrio cronolgicoe o critrio funcional. O primeiro indica que

    o facto constitutivo contemporneo da formao da relao jurdica, enquanto o

    facto extintivo posterior. O segundo o critrio funcional diz-nos que o facto

    210PINTO OLIVEIRA, Nuno Manuel. Estudos, op. cit., p. 78.211Ibidem, p. 78.

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    constitutivo faz nascer um direito, enquanto o facto extintivo destri um direito

    previamente constitudo.212

    Acerca da diferena entre fatos constitutivos e fatos impeditivos, NUNO

    MANUEL invoca os critrios de normalidade e funcionalidade para o descrmen.

    Nessa linha de pensamento, em razo do critrio da normalidade, o autor que

    pretende invocar um direito, ter de demonstrar os factos que normalmente o

    integram; o ru, para se defender, ter de provar os factos anormais que excluem

    ou impedem a eficcia dos elementos constitutivos`.213

    Quanto ao critrio funcional, so constitutivos os factos suscetveis de

    produzir, segundo a norma jurdica aplicvel, o efeito jurdico que a parte pretende

    obter; ao passo que so impeditivos os factos que se destinam a determinar a

    ineficcia jurdica dos factos constitutivos.214Por outro lado, a categoria dos fatos

    modificativos no merece, na sua linha de raciocnio, um tratamento autnomo,

    pois devem ser tratados como impeditivos ou extintivos, conforme o sentido da

    modificao. 215

    Finalmente, NUNO MANUEL esclarece que a classificao destes fatos

    como constitutivos, impeditivos, modificativos ou extintivos h-de ser efectuada

    em concreto, e no em abstracto, pois no h temas probatrios fixos pontos

    de facto quanto aos quais o nus da prova haja de pesar sempre sobre

    determinado sujeito da relao material correspondente.216 Isto significa que