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Na anemia falciforme, as células vermelhas do sangue (hemácias), que normalmente têm um formato discóide (A), assumem formasbizarras que lembram foices quando em baixas tensões de oxigênio, seja no laboratório ou em alguns órgãos do corpo, como o baço.

Colunas / Deriva genética

Anemia falciforme: uma doença molecular

Colunista mostra como os estudos dessa moléstia abriram as portas para a medicina genômica

Por: Sergio Pena

Pu blica do em 1 4 /03 /2 008 | A tu a liza do em 1 1 /1 2 /2 009

Em 1945 Linus Pauling, o notável químico americano laureado duas vezes com o Nobel em sua carreira (prêmio de Química em 1954 e daPaz em 1962), teve a idéia genial de que a anemia falciforme era uma doença da molécula de hemoglobina – literalmente, uma doençamolecular.

A moléstia, uma anemia severa e freqüentemente fatal da infância, havia sido descrita bem antes, em 1910. A principal característicalaboratorial da anemia falciforme – e a razão do seu nome – é uma mudança da forma das células vermelhas (hemácias) do sangue do seuaspecto normal discóide para um formato de foice (“falciforme”) quando expostas a baixas tensões de oxigênio (ver figura).

A propósito, um outro nome para a anemia falciforme é drepanocitose (da palavra grega para foice) e as hemácias anormais são chamadasdrepanócitos. Um detalhe interessante é que existem pessoas que são sadias, mas cujas hemácias, quando expostas a pouco oxigênio,também assumem o formato de foice, o que é chamado de “traço falcêmico”.

Vale lembrar que a hemoglobina, uma proteína, é o principal constituinte das hemácias e responsável pela cor vermelha que colore essascélulas e o próprio sangue. A função principal da hemoglobina é carrear oxigênio dos pulmões para os tecidos e gás carbônico dos tecidos

para os pulmões.

Ao tomar conhecimento da anemia falciforme em 1945, durante uma conversa com o Dr. William Castle, da Universidade Harvard, Paulingjá sabia que a molécula de hemoglobina tinha conformações diferentes na presença ou ausência de oxigênio. Ele intuiu, corretamente, que oformato em foice das hemácias na doença deveria ser devido a uma anormalidade da molécula de hemoglobina.

Um ano depois, chegou para fazer um doutorado no laboratório de Pauling no Instituto de Tecnologia da Califórnia (Caltech) um jovemmédico chamado Harvey Itano. A ele foi dado o projeto de estudar a molécula de hemoglobina dos pacientes com anemia falciforme. Itanousou a técnica da eletroforese em fronteiras movediças (moving boundary electrophoresis), inventada alguns anos antes pelo sueco ArneTiselius (1902-1971, Nobel de Química em 1948) e que permitia o estudo das propriedades das proteínas pela sua mobilidade quandosubmetidas a um campo elétrico.

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Separação das moléculas de hemoglobina em campo elétrico (eletroforese), feita pela primeira vez por Harvey Itano no laboratório deLinus Pauling. No paciente com anemia falciforme é vista uma única espécie molecular com mobilidade reduzida (hemoglobina S) emcomparação a uma pessoa normal (hemoglobina A), enquanto na pessoa sadia com traço falcêmico são vistas as duas formas dahemoglobina.

Exemplar da biblioteca do colunista: volume 2, de 1947, dos Arquivos da Universidade da Bahia, contendo o artigo de Jessé Acciolyintitulado “Anemia falciforme: relato de um caso com infantilismo”. À direita, o diagrama usado por Jessé Accioly para explicar a suahipótese de herança autossômica recessiva da anemia falciforme.

Ao comparar as hemoglobinas de indivíduos normais e afetados, foi “pimba na gorduchinha”, como diria o grande locutor esportivo OsmarSantos! A molécula da hemoglobina dos pacientes com drepanocitose mostrou ter uma migração mais lenta em campo elétrico (ver figura).

Uma nova medicina Esta foi uma descoberta fundamental de Pauling e sua equipe, merecedora até de um terceiro Nobel! Nunca antes a causa de uma doençahavia sido traçada a uma lesão em uma molécula. Uma pequena mudança de carga em uma proteína podia significar a diferença entre avida e a morte! Os resultados foram publicados em 1949 na revista Science, em um artigo memoravelmente intitulado “Sickle cell anemia: amolecular disease” (“Anemia falciforme: uma doença molecular”). Nascia uma nova medicina, a medicina molecular.

Clique aqui para ver um vídeo de Pauling, em 1960, contando a estória dessa importantíssima descoberta.

Quatro meses antes do artigo de Pauling e Itano na Science, apareceu na mesma revista um outro artigo publicado pelo americano James V.Neel (1915-2000), geneticista da Universidade de Michigan, com o título “The inheritance of sickle cell anemia” (“A hereditariedade daanemia falciforme”).

Neel estudou 21 casais, pais de crianças com anemia falciforme, e observou que todos eles tinham o “traço falcêmico”, ou seja, eram sadios,mas suas células vermelhas assumiam o formato de foice quando expostas a pouco oxigênio no laboratório. Com base nisso, Neel postulouque os pacientes com anemia falciforme eram homozigotos para um gene anormal, enquanto seus pais com o traço falcêmico eramheterozigotos. Resumo da ópera: a doença era herdada de acordo com princípios mendelianos, de forma recessiva.

No final do artigo, Neel destacou que, à luz desse novo conhecimento da transmissão genética da anemia falciforme, era possível predizer aocorrência da doença em uma família a partir da presença do traço falcêmico em ambos os membros de um casal. Emergia assim oaconselhamento genético moderno, lastreado em sólidas bases científicas. Neel adicionou ainda que, em teoria, esse aconselhamento poderiaser aplicado em escala populacional, reduzindo a incidência da doença.

Genial, não? Mas havia um interessante precedente para essas idéias. Em 1947, Jessé Accioly, então um formando de medicina em Salvador,publicou nos Arquivos da Universidade da Bahia um artigo intitulado “Anemia falciforme: apresentação de um caso com infantilismo”, noqual ele já propunha a hipótese de uma herança autossômica recessiva para a doença. Esse detalhe histórico foi apontado pela geneticistabrasileira Eliane Azevedo em um artigo publicado em 1973 no American Journal of Human Genetics.

Um brasileiro injustiçado? Vou fazer parênteses para um estorinha interessante. Como sou um “rato de sebos”, tomo o cuidado de levar o meu Guia dos sebos dascidades do Rio de Janeiro e São Paulo de Antônio Carlos Secchin quando vou a essas cidades. Pois bem: há uns 3 ou 4 anos, estava eu emCopacabana, com algumas horas para matar antes embarcar de volta para Belô, quando decidi visitar alguns sebos na vizinhança. Eis queme deparo com um exemplar dos Arquivos da Universidade da Bahia de 1947, contendo o artigo de Accioly, que adquiri imediatamente e quepode ser visto na figura ao lado.

É possível, a partir dessa publicação, concluir, como clamado por alguns nacionalistas roxos, que o verdadeiro descobridor do mecanismo deherança da anemia falciforme foi Jessé Accioly? Sinto muito, mas, apesar de eu reconhecer o brilhantismo e excelente intuição do jovembaiano, não acho possível endossar essa tese.

Assim como Neel faria mais tarde, Accioly corretamente percebeu que, para a sua hipótese ser verdadeira, “seria preciso que todos ospacientes com anemia falciforme fossem filhos de dois falcêmicos”. A diferença fundamental entre eles foi que o americano testouexperimentalmente a sua hipótese, mas o baiano, não. O progresso da ciência depende de hipóteses e de experimentação. Infelizmente,hipóteses apenas não bastam.

Além disso, estabelecer prioridades em ciência é complicado, especialmente em se tratando de idéias e conceitos. O próprio Neel já haviamencionado anteriormente a hipótese autossômica recessiva da anemia falciforme em uma publicação no periódico Medicine em 1947.Ademais, em 1944 ele já havia publicado no Archives of Internal Medicine a demonstração da herança autossômica recessiva de uma outraanemia hemolítica, a talassemia, que mais tarde provou também ser uma doença da hemoglobina.

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O brilhante químico americano Linus Pauling (1901-1994), do Caltech, em foto de dezembro de 1949, época da publicação de seu seminalartigo na Science (foto: Ava Helen and Linus Pauling Papers).

Não bastando isto, Linus Pauling também reivindicou a prioridade da idéia da herança recessiva em seu revolucionário artigo com Itano, em1949, escrevendo (minha tradução): “Nossos resultados já haviam permitido que fizéssemos essa inferência antes da publicação do artigo deNeel. A existência da hemoglobina normal e da hemoglobina da anemia falciforme em proporções mais ou menos iguais no traço falcêmicoestá em completo acordo com esta hipótese”.

Logo após estes artigos, Itano e Neel começaram a colaborar, o que levou quase que imediatamente à descoberta de uma segunda doençacom alterações na hemoglobina, a “anemia de células em alvo”, menos grave que a anemia falciforme. Conjuntamente, eles descreveramvárias outras “hemoglobinopatias” nos anos subseqüentes.

A meu ver, podemos estabelecer 1949 como a data de nascimento da medicina molecular, mas em um parto multigemelar, pois junto comela nasceram também a genética médica moderna e a genética molecular.

A explicação na escala do DNA Oito anos após a publicação do artigo de Pauling e exatamente 10 anos após o artigo de Jessé Accioly, o bioquímico teuto-americano VernonIngram (1924-2006) publicou na Nature um artigo de enorme importância. Ele mostrou que na porção beta-globina da molécula dehemoglobina de pacientes com anemia falciforme (agora chamada hemoglobina S) havia uma troca do sexto aminoácido, uma substituiçãode ácido glutâmico para valina.

Na presença de pouco oxigênio, a hemoglobina sofre uma mudança conformacional e expõe essa valina, o que cria uma instabilidadetermodinâmica que só se resolve com a polimerização da hemoglobina em longas fibras. Estas, por sua vez, precipitam-se no interior dashemácias, forçando-as a assumir o formato de foice. Quod erat demonstrandum.

Com a elucidação do código genético no final da década de 1950, ficou claro que, na escala do DNA, a única mudança de base nucleotídicacapaz de levar a uma troca de um ácido glutâmico por uma valina era uma mutação GAG → GTG no sexto códon. Assim, estava esclarecidaa natureza da doença desde as suas característica clínicas até o seu nível mais íntimo na molécula de DNA.

Interessantemente, a anemia de células alvo estudada por Itano e Neel (hemoglobina C) também apresenta mutação no mesmo códon,desta vez com uma alteração GAG → AAG, levando a uma troca do ácido glutâmico por uma lisina. Percebemos, assim, a delicadeza doprocesso de doença molecular – minúsculas diferenças moleculares podem ter impactos fenotípicos enormes.

Outro avanço importante ocorreu em 1978, quando Yuet W. Kan e Andrée Dozy em São Francisco demonstraram que era possíveldiagnosticar a presença da mutação que causa a anemia falciforme diretamente no DNA do paciente. Essa descoberta permite, inclusive, odiagnóstico pré-natal da anemia falciforme em células fetais do líquido amniótico colhido no segundo trimestre de gestação. A técnica usadapor eles – o polimorfismo de tamanho de fragmentos de restrição (RFLP) – é usada até hoje para o diagnóstico de centenas de doenças emlaboratórios de genética de todo o mundo.

Quando, em 1985, foi desenvolvida uma outra técnica revolucionária de estudo do DNA, a PCR – reação em cadeia da polimerase –, pelobioquímico americano Kari Mullis (Nobel de Química de 1993), a primeira aplicação do método foi no diagnóstico molecular pré-natal daanemia falciforme.

Assim, temos a anemia falciforme não só como pivô do nascimento da medicina molecular, da genética médica moderna e da genéticamolecular, como também dos principais avanços posteriores feitos nessas áreas. No próximo mês continuarei a abordar a anemia falciforme,discorrendo sobre alguns de seus aspectos evolucionários e populacionais.

Sergio Danilo Pena Professor Titular do Departamento de Bioquímica e Imunologia Universidade Federal de Minas Gerais 14/03/2008