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ANÁLISE COMPARATIVA ENTRE O ROMANCE “MEMÓRIAS PÓSTUMAS DE BRÁS CUBAS”, DE MACHADO DE ASSIS, E OS FILMES “BRÁS CUBAS”, DE JÚLIO BRESSANE, E “MEMÓRIAS PÓSTUMAS”, DE ANDRÉ KLOTZEL. Katrym Aline Bordinhão dos Santos (PROVIC/CNPq-UEPG), Silvana Oliveira (Orientadora), e-mail: [email protected] . Universidade Estadual de Ponta Grossa/Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes. Palavras-chave: literatura, cinema, Memórias Póstumas de Brás Cubas. Resumo: Este trabalho busca analisar como o livro de Machado de Assis, “Memórias Póstumas de Brás Cubas” (1880), foi adaptado nos filmes “Memórias Póstumas” (2001), de André Klotzel e “Brás Cubas” (1985), de Júlio Bressane. Para isso, nos baseamos na teoria da narrativa, mais precisamente em estudos que focam a figura do narrador, tais como Seis passeios pelo bosque da ficção, de Umberto Eco (1995), e também os estudos desenvolvidos por Roberto Schwarz sobre o narrador em Machado de Assis (OLIVEIRA, 2007). O objetivo da comparação entre as três obras foi orientado inicialmente pela leitura e análise das características do romance, uma vez que se trata de uma obra que subverte os paradigmas da narrativa no momento em que foi publicada. Tais características contribuíram para a denominação do autor como “introdutor e corruptor do realismo”, daí nosso interesse em verificar como a obra foi “lida” e “reinterpretada” para o cinema nos dois filmes em foco neste trabalho. Posteriormente à análise do romance empreendeu-se verificação das diferenças entre as duas adaptações para o cinema; destacaram-se neste trabalho, prioritariamente, os aspectos relacionados à representação do narrador, da ironia e das estratégias narrativas de quebra da tradição literária presentes no texto do romance; buscou-se, assim, perceber como o cinema se apropriou, ou aproveitou, a potencialidade questionadora do romance. Introdução “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, de Machado de Assis, reúne características que justificam o fato de ser um livro tão estudado. Primeiramente, é considerada a obra introdutora do realismo brasileiro, por conter um retrato realista da burguesia carioca, e, ao mesmo tempo, corruptora dessa fase, já que apresenta como narrador um defunto. Além disso, insere recursos narrativos até então não utilizados, como a interlocução com o leitor, por vezes grosseira, tamanho e formatação dos capítulos, metalinguagem, assim como outros recursos que culminam na configuração de um novo tipo de leitor, que deixa de ser passivo. Essa perda de passividade se dá porque, primeiramente, o narrador se coloca entre os capítulos, muitas vezes até prevendo reações do leitor, Anais do XVIII EAIC – 30 de setembro a 2 de outubro de 2009

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ANÁLISE COMPARATIVA ENTRE O ROMANCE “MEMÓRIAS PÓSTUMAS DE BRÁS CUBAS”, DE MACHADO DE ASSIS, E OS FILMES

“BRÁS CUBAS”, DE JÚLIO BRESSANE, E “MEMÓRIAS PÓSTUMAS”, DE ANDRÉ KLOTZEL.

Katrym Aline Bordinhão dos Santos (PROVIC/CNPq-UEPG), Silvana Oliveira

(Orientadora), e-mail: [email protected].

Universidade Estadual de Ponta Grossa/Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes.

Palavras-chave: literatura, cinema, Memórias Póstumas de Brás Cubas. Resumo: Este trabalho busca analisar como o livro de Machado de Assis, “Memórias Póstumas de Brás Cubas” (1880), foi adaptado nos filmes “Memórias Póstumas” (2001), de André Klotzel e “Brás Cubas” (1985), de Júlio Bressane. Para isso, nos baseamos na teoria da narrativa, mais precisamente em estudos que focam a figura do narrador, tais como Seis passeios pelo bosque da ficção, de Umberto Eco (1995), e também os estudos desenvolvidos por Roberto Schwarz sobre o narrador em Machado de Assis (OLIVEIRA, 2007). O objetivo da comparação entre as três obras foi orientado inicialmente pela leitura e análise das características do romance, uma vez que se trata de uma obra que subverte os paradigmas da narrativa no momento em que foi publicada. Tais características contribuíram para a denominação do autor como “introdutor e corruptor do realismo”, daí nosso interesse em verificar como a obra foi “lida” e “reinterpretada” para o cinema nos dois filmes em foco neste trabalho. Posteriormente à análise do romance empreendeu-se verificação das diferenças entre as duas adaptações para o cinema; destacaram-se neste trabalho, prioritariamente, os aspectos relacionados à representação do narrador, da ironia e das estratégias narrativas de quebra da tradição literária presentes no texto do romance; buscou-se, assim, perceber como o cinema se apropriou, ou aproveitou, a potencialidade questionadora do romance. Introdução “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, de Machado de Assis, reúne características que justificam o fato de ser um livro tão estudado. Primeiramente, é considerada a obra introdutora do realismo brasileiro, por conter um retrato realista da burguesia carioca, e, ao mesmo tempo, corruptora dessa fase, já que apresenta como narrador um defunto.

Além disso, insere recursos narrativos até então não utilizados, como a interlocução com o leitor, por vezes grosseira, tamanho e formatação dos capítulos, metalinguagem, assim como outros recursos que culminam na configuração de um novo tipo de leitor, que deixa de ser passivo.

Essa perda de passividade se dá porque, primeiramente, o narrador se coloca entre os capítulos, muitas vezes até prevendo reações do leitor,

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como no capítulo 71 em que o narrador salienta ser o leitor o maior defeito do livro e justifica: “Tu tens pressa de envelhecer, e o livro anda devagar, tu amas a narração direta e nutrida (...) e este livro e meu estilo são ébrios” (p.103). Nas palavras de SCHWARZ: “A disparidade interna é desconcertante, problemática em alto grau, compondo uma figura inadequada ao acordo nacional precedente”. (SCHWARTZ, Apud. OLIVEIRA, 2007, p.114)

A partir disso, podemos justificar a atividade do leitor, que se faz presente na cobrança de capacidade para acompanhar e entender o estilo “ébrio” do autor, que inclui capítulos que remetem a anteriores (capítulo 61); que se utilizam apenas de algumas palavras entremeadas por pontuações (capítulo 55), que simplesmente contém máximas criadas pelo autor à época dos acontecimentos (capítulo 119), entre outros que obrigam o leitor a optar constantemente para que possa interpretar esses recursos.

O foco principal da análise teve como objetivo verificar em que medida as obras cinematográficas alcançam, pelos recursos próprios de expressão do cinema, o efeito de subversão e questionamento da tradição narrativa que o romance alcança

A análise das adaptações cinematográficas não se pautaram pela fidelidade ou não à obra e ao enredo machadiano, uma vez que se trata de dois meios artísticos diferentes – a literatura e o cinema -, cujas linguagens e meios de expressão diferem em diversos aspectos.

. Materiais e Métodos A pesquisa bibliográfica acerca da teoria literária foi baseada principalmente em textos de Roberto Schwarz, Mikhail Bakhtin e Cândida Vilares Gancho, que analisavam, além do autor, a obra literária em questão.

A teoria que aborda a relação entre cinema e literatura, de autores como Anelise Reich Corseuil e Glória Maria Palma, assim como entrevistas com teóricos que pautavam o tema do narrador de Machado no cinema, como a de Cesar Zamberlan 1também foram utilizadas, já que é necessário entender que ambas são manifestações artísticas diferentes, e de que modo aproximam-se ou não.

Os dois filmes foram diversas vezes observados, a fim de identificar peculiaridades entre eles para uma comparação que leve em conta características que se mostram relevantes no livro e o modo como aparecem nos filmes. Resultados e Discussão No romance “Memórias Póstumas de Brás Cubas” destacamos três pontos principais para a análise (representação do narrador, metalinguagem e ironia).

Já no prefácio do romance, intitulado “Ao leitor” (p. 16), o narrador aparece como uma figura que interage com o leitor (“se te agradar, fino 1 Entrevista disponível no endereço http://www.unisinos.br/ihuonline/index.php?option=com_tema_capa&Itemid=23&task=detalhe&id=1324

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leitor, pago-me da tarefa; se te não agradar, pago-te com um piparote, e adeus” (p.16)). Ao afirmar que “a obra em si mesma é tudo” (p.16), o narrador demonstra desinteresse pelo gosto ou afinidade do leitor.

O narrador se dirige ao leitor com ironia, atitude constante também no restante do livro, através das previsões acerca do número de leitores que atrairia. Ao justificar o seu breve prólogo, ressalta, ironicamente, que esse seria um modo de “angariar as simpatias da opinião”.

Percebemos aí também a metalinguagem presente no discurso do narrador, assim como ao expor que adotou a forma livre de um Sterne ou de um Xavier de Maistre e ao admitir que escreveu com a pena da galhofa e a tinta da melancolia.

Todos esses aspectos relacionados ao procedimento do narrador representam uma inovação, explicada por SCHWARZ : “A novidade está no narrador, humorística e agressivamente arbitrário, funcionando como um princípio formal, que sujeita as personagens, a convenção literária e o próprio leitor, sem falar na autoridade da função narrativa, a desplantes periódicos” (SCHWARTZ, Apud. OLIVEIRA, 2007, p.113)

Através da análise do filmes selecionados para esta pesquisa foi possível perceber que o filme “Brás Cubas” aproxima-se da obra literária no sentido em que cria uma versão experimental dela, não apenas levando para o cinema a história contada por Brás, mas sim, apresentado-a de forma inusitada e provocativa.

Na primeira cena do filme, um esqueleto é percorrido por um microfone, e é possível interpretar esse fato como um modo de esclarecer que se trata de alguém já morto que vai falar (na representação do microfone no esqueleto), no caso o narrador defunto do romance machadiano.

A maneira como a idéia do emplastro se instaurou na cabeça de Brás apresenta-se no filme “Brás Cubas” tão intrigante quanto no romance de Machado, pois Brás comenta, enquanto narrador do romance, que a idéia havia se pendurado no trapézio que ele tinha no cérebro; vemos isso no filme através um grande livro em que a letra X (definida como a forma da idéia) executa diversos movimentos, representando as “cabriolas” da idéia em seu cérebro, descritas pelo narrador do livro.

A figura do narrador é suprimida nessa versão, numa consideração da capacidade da imagem de falar por si só. Desse modo, faz-se com que o leitor atue, como no livro, para que seja possível entender o desenrolar da trama, sem explicações acerca do que acontece, que aparece através da visão de um focalizador, como exposto por CORSEIUL: “O focalizador é o agente que vê e sente, e é através de sua sensibilidade que a platéia de um filme pode entender as emoções dos personagens e a visão que eles têm do mundo ficcional, sem que a manipulação do narrador (ou o câmera narrator) se torne visível” (CORSEUIL,2005,p.322).

O filme “Memórias Póstumas”, por sua vez, opta por manter a figura de um narrador, que aparece como um fantasma que nos transmite a história que se passa na obra e, algumas vezes, interage em cena com personagens.

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Essa interação aparece na cena que representa parte do capítulo 51 do livro, no qual Brás encontra uma moeda que tenta restituir ao verdadeiro dono através da polícia. Tanto no livro quanto no filme há uma ironia na exclamação da frase “É minha!” significando a posse de Virgília e da moeda. Porém no filme de 2001, a moeda encontrada por Brás é jogada na rua por seu fantasma (narrador), numa clara intervenção do fantasma no desenrolar da história, transformando-o, ao menos naquele momento, em um personagem.

E como expõe CORSEUIL: “O termo narrador não está necessariamente associado a uma individualidade, mas revela a presença de um agente organizador da diegese, ou seja, da narrativa”. (CORSEUIL,2005,p.322)

Assim, esse narrador tem papel fundamental na compreensão do filme por parte do espectador, que apenas assiste aos fatos. Essa característica distancia o filme do livro em questão, uma vez que há uma passividade do espectador, o que não acontecia com o leitor.

Conclusões A pesquisa possibilitou a compreensão de que as duas obras cinematográficas optaram por diferentes maneiras de retratar o complexo narrador machadiano, o que confirma a relevância do narrador como o ponto mais criativo e inovador do romance Memórias Póstumas de Brás Cubas.

O filme “Memórias Póstumas” constrói um narrador que atua de forma diferente ao do livro, ao passo que “Brás Cubas” simplesmente suprime-o. Assim também ocorre na representação da quebra da linearidade narrativa, que no primeiro aparece sendo esclarecida pelo narrador, e no segundo acontece implicitamente, exigindo que o espectador a interprete.

Em suma, nas adaptações de “Memórias Póstumas de Brás Cubas” analisadas nesse trabalho foi possível perceber que “Brás Cubas” transmite para as telas a atividade cobrada do leitor machadiano, juntamente com a ironia, enquanto que “Memórias Póstumas” trabalha com uma espécie de recontagem do enredo da obra. Referências

Assis, M. de. Memórias Póstumas de Brás Cubas. São Paulo: Ática, 2001. Corseuil, A.R. Literatura e cinema. In: Bonnici, T.; Zolin, L. O. (orgs.). Teoria Literária: abordagens históricas e tendências contemporâneas. Maringá: Eduem, 2005, p. 317-326. Eco, U. Seis passeios pelos bosques da ficção. São Paulo: Companhia das Letras, 1994. Oliveira, S. Realismo na Literatura Brasileira. Curitiba: IESDE Brasil S.A., 2008.

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