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940 Análise Social, vol. XLII (3.º), 2007 sition politics (políticas integradas de transição) é recomendado. Este mo- delo implica que as fronteiras entre educação, segurança social, mercado de trabalho e políticas de juventude se tornem permeáveis para servir as perspectivas de vida individualmente significativas e a inclusão social sus- tentada. Embora se possam pôr questões relevantes sobre a recolha e análise dos dados, os autores estão plenamente conscientes das (im)possibilidades do seu projecto e, consequentemente, eles próprios levantam e respondem a essas questões. Algumas noções ou marcas teóricas poderão escapar aos especialistas disciplinares, mas o objectivo dos autores de ligar as di- ferentes tradições é inovador, pro- missor e de forma nenhuma exagera- do. Apesar do vasto alcance do livro — ou melhor, como resultado da enorme quantidade de investigação levada a cabo —, é impossível cobrir num só livro todo o material com que o projecto de investigação se deve ter ido deparando. Por exem- plo, é prestada pouca atenção à im- portância, características e funciona- mento de valências informais e do capital social que os jovens desen- volvem no âmbito das suas culturas juvenis. Um tema que parece essen- cial nas experiências de transição, de que os «marcadores de tendências» são prova, mas que, felizmente, é tra- tado com maior ênfase noutras pu- blicações destes autores. Esta obser- vação é por si só prova suficiente de que o complexo e relevante tema de participation in transition merece a nossa continuada atenção. ISABELLE DIEPSTRATEN Manuel Villaverde Cabral, José Luís Garcia e Helena Mateus Jerónimo (orgs.), Razão, Tempo e Tecnolo- gia: Estudos em Homenagem a Hermínio Martins, Lisboa, Impren- sa de Ciências Sociais, 2006, 498 páginas. Não tem grande tradição em Por- tugal a edição de obras em homena- gem a figuras maiores das ciências sociais 1 , mas é precisamente este o âmbito da presente obra. Académico português pouco conhecido no nos- so país, mas de grande relevo na sociologia anglo-saxónica, de acordo com a biografia pessoal e científica que serve de introdução a este livro (p. 15), Hermínio Martins tem vindo a ganhar crescente proeminência no país natal graças à edição em portu- guês de alguns dos seus ensaios em colectâneas 2 ou revistas, a ter de- sempenhado a função de investiga- dor coordenador no Instituto de Ciências Sociais após a jubilação na Universidade de Oxford em 2001, a receber o doutoramento honoris cau- sa pela Universidade de Lisboa em 2006.

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sition politics (políticas integradas detransição) é recomendado. Este mo-delo implica que as fronteiras entreeducação, segurança social, mercadode trabalho e políticas de juventudese tornem permeáveis para servir asperspectivas de vida individualmentesignificativas e a inclusão social sus-tentada.

Embora se possam pôr questõesrelevantes sobre a recolha e análise dosdados, os autores estão plenamenteconscientes das (im)possibilidades doseu projecto e, consequentemente,eles próprios levantam e respondema essas questões. Algumas noçõesou marcas teóricas poderão escaparaos especialistas disciplinares, mas oobjectivo dos autores de ligar as di-ferentes tradições é inovador, pro-missor e de forma nenhuma exagera-do.

Apesar do vasto alcance do livro— ou melhor, como resultado daenorme quantidade de investigaçãolevada a cabo —, é impossível cobrirnum só livro todo o material comque o projecto de investigação sedeve ter ido deparando. Por exem-plo, é prestada pouca atenção à im-portância, características e funciona-mento de valências informais e docapital social que os jovens desen-volvem no âmbito das suas culturasjuvenis. Um tema que parece essen-cial nas experiências de transição, deque os «marcadores de tendências»são prova, mas que, felizmente, é tra-tado com maior ênfase noutras pu-blicações destes autores. Esta obser-vação é por si só prova suficiente deque o complexo e relevante tema de

participation in transition merece anossa continuada atenção.

ISABELLE DIEPSTRATEN

Manuel Villaverde Cabral, José LuísGarcia e Helena Mateus Jerónimo(orgs.), Razão, Tempo e Tecnolo-gia: Estudos em Homenagem aHermínio Martins, Lisboa, Impren-sa de Ciências Sociais, 2006, 498páginas.

Não tem grande tradição em Por-tugal a edição de obras em homena-gem a figuras maiores das ciênciassociais1, mas é precisamente este oâmbito da presente obra. Académicoportuguês pouco conhecido no nos-so país, mas de grande relevo nasociologia anglo-saxónica, de acordocom a biografia pessoal e científicaque serve de introdução a este livro(p. 15), Hermínio Martins tem vindoa ganhar crescente proeminência nopaís natal graças à edição em portu-guês de alguns dos seus ensaios emcolectâneas2 ou revistas, a ter de-sempenhado a função de investiga-dor coordenador no Instituto deCiências Sociais após a jubilação naUniversidade de Oxford em 2001, areceber o doutoramento honoris cau-sa pela Universidade de Lisboa em2006.

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Ao contrário de colectâneas estri-tamente temáticas, mais usuais, apresente obra oferece um conjuntoecléctico de ensaios que reflectem asprincipais áreas de trabalho e interes-se do homenageado, assim como,em parte, a sua trajectória pessoal eacadémica. É de notar a pluralidade(e em alguns casos transversalidade)disciplinar dos ensaios e a variedadede origem dos autores (académicosportugueses, britânicos, brasileiros,espanhóis, gregos, norte-america-nos). É também ecléctico o registodos textos que a compõem: encon-tram-se reflexões biográficas na pri-meira pessoa (como os artigos assi-nados por John Rex ou TerryLovell), ensaios eminentemente teóri-cos (como o de Bridget Fowler, so-bre a fotografia, ou de LaymertGarcia dos Santos, sobre a tecnolo-gia e o futuro do humano), apresen-tação de resultados de investigação(como o artigo de João de PinaCabral, sobre as identidades emMoçambique, ou o de Rui GraçaFeijó, sobre a subida ao trono de D.Maria I). É igualmente variável arelação dos artigos com a obra deHermínio Martins. Se alguns ensaiosdiscutem demoradamente o seucontributo para o tema em causa(como o artigo de Maria TeresaCruz, sobre a era do design total, ouo de Paula Sibila, sobre a cirurgiaplástica) ou referem um conceito ouaspecto teórico por ele desenvolvido(como o artigo de A. Costa Pinto,sobre a imagem carismática duranteo salazarismo, ou o texto de Renato

Lessa, sobre os campos de extermí-nio como exemplo da quebra da nor-malidade), outros não lhe fazemqualquer menção nem é claramenteidentificável o critério de inclusão nacolectânea, para além da relação pes-soal ou profissional entre autor ehomenageado (como o texto de JoséBragança de Miranda, sobre o concei-to de plasticidade, ou de PerryAnderson, sobre o multiculturalismo).Alguns autores optaram por republicartextos já apresentados em conferên-cias (como Roland Robertson, comum artigo sobre globalização) ou obrasanteriores (como Joan Martinez-Alier,sobre conflitos ecológicos), acrescen-tando apenas dedicatórias ou notas derodapé para reconhecerem a influên-cia do homenageado no seu trabalho.

A presente publicação encontra-seorganizada em cinco partes, que agre-gam tematicamente os ensaios, «Me-mórias e experiências», «Globalizaçãoe nacionalismo», «História e mundolusófono», «Cultura e modernidade»e «Sociologia e filosofia da tecnolo-gia». Atendendo à extensão da obra,aqui apenas será mencionado umartigo de cada parte, exemplar (espe-ra-se) do conjunto.

Na parte I, em «As ciências so-ciais na metrópole depois do fim docolonialismo», John Rex (que foitambém alvo de um volume de ho-menagem organizado pelo próprioHermínio Martins em 1993) narraalguns episódios do seu percursopessoal e profissional que revelamalguns pontos em comum com a tra-jectória do homenageado: a origem

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social de classe, o nascimento e edu-cação numa colónia africana, a expe-riência directa da segregação racial,o interesse pela sociologia, a passa-gem para o meio académico britâni-co, o posicionamento político «deesquerda». Estes apontamentos bio-gráficos servirão sobretudo para te-cer pontes com as temáticas de in-vestigação escolhidas pelo autor(relações étnicas) e tornar explícitosos valores que inspiram o seu traba-lho, debatendo «como e em que cir-cunstâncias institucionais pode al-guém honestamente perseguir oconhecimento e manter ao mesmotempo compromissos morais impor-tantes» (p. 62). Tal encontra parale-lismo na justificação dada porHermínio Martins para incluir temasportugueses entre os seus interessesde investigação (essencialmente so-bre filosofia das ciências sociais eteorias sociológicas) no final dosanos 70: «O que me afectava acimade tudo era a indignação moral e apaixão política com respeito a umaguerra colonial sem sentido e umregime autoritário infindável3.»

No breve ensaio intitulado «JanusBifronte: sobre a ambivalência do na-cionalismo» (parte II), SalvadorGiner, que, como Hermínio Martins,foi um sociólogo «imigrante» nosEstados Unidos e no Reino Unidoantes de regressar ao país de origem,reflecte sobre a ambivalência do na-cionalismo não só no domínio políti-co, fonte de conflito e de coesão,como também no domínio científico:face a uma ciência (sobretudo natu-

ral) «de indubitável natureza transna-cional», impera uma lógica de pensa-mento nacional (no financiamento,na competição pelas inovações, naspolíticas de fomento) que é aindamais visível nas ciências sociais, fac-to a que H. Martins chamou naciona-lismo metodológico: «a comunidadenacional constitui a unidade terminal ea condição limite para a demarcaçãode problemas e fenómenos para asciências sociais» (p. 139)4.

Retomando uma temática recor-rente no seu trabalho5, Manuel Villa-verde Cabral, em «Despotismo doEstado e sociedade civil real em Por-tugal: distância ao poder, comunica-ção política e familismo amoral»(parte III), procura explicar um fenó-meno repetidamente identificado nosinquéritos à população portuguesa(tomando como exemplo o inquéritoàs atitudes sociais de 1997) — o daacentuada distância ao poder — comfactores históricos, que se perpe-tuam no tempo, a despeito «da reno-vação demográfica das gerações e doincremento dos níveis de instrução»(p. 161). A atitude receosa face aopoder e o escasso exercício dos direi-tos de cidadania política são explica-dos pelas «estratégias de sobrevi-vência de gerações sucessivas defamílias desmunidas não só de recur-sos económicos como sobretudo derecursos simbólicos» (pp. 162-163).A muito tardia massificação do ensinoe o despotismo administrativo con-correram para manter um regime de«familismo amoral», que permite re-produzir o poder das elites e a subor-dinação das massas.

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Exemplar da vertente filosóficado trabalho de Hermínio Martins, oensaio de Viriato Soromenho Mar-ques, «Dialécticas da natureza indo-mável — Kant em 1755 e depois»(parte IV), procura traçar ligações en-tre pontos distantes no tempo (oséculo XVIII e a actualidade), no espa-ço (a Ásia e Lisboa), no pensamentoteórico (Kant e Ulrich Beck), natipologia das catástrofes (naturais ouprovocadas pela acção humana).Numa era em que se superlativam osriscos da sociedade industrial, otsunami de 2004, tal como o terra-moto de 1755, faz reflectir sobre acapacidade destrutiva da natureza,interpretada «à luz da esperança hu-mana de conferir a cada biografia aconfiguração de um sentido narrati-vo» (p. 342).

Por fim, em «Cirurgiões plásti-cos: da beleza como dom divino aosimperativos fáusticos» (Parte V),Paula Sibila recorre à teorização deHermínio Martins sobre as concep-ções prometeicas e fáusticas datecnociência6 para compreender asimplicações culturais da cirurgiaplástica, traçando a história da tran-sição «entre dois tipos de intervençãocientífica nos corpos humanos: dosprocedimentos prometeicos (dissi-mular, aperfeiçoar, melhorar) para osmétodos fáusticos (corrigir, criar,ultrapassar)» (p. 456), no que é tam-bém exemplar de uma mudança doparadigma mecânico para o bio-informático e do horizonte analógicopara o digital.

Em suma, a presente obra acu-mula as virtudes de potencialmente

interessar a um público diversifica-do, de poder funcionar como apre-sentação ao variado trabalho científi-co de Hermínio Martins, assim comode reflectir a sua crescente impor-tância no pensamento sociológicoactual, transcendendo os limites docampo científico nacional. Poder-se--lhe-á, porém, somente apontar aqualidade desigual dos artigos e adesnecessariamente hiperbólica intro-dução de cariz biográfico, que chegaa ombrear o homenageado com Cer-vantes e Karl Marx (p. 45).

NOTAS

1 Excepção feita à área do direito e aoutros casos esparsos, como, por exemplo,Ernesto Veiga de Oliveira (Estudos em Ho-menagem a Ernesto Veiga de Oliveira, ed. F.O. Baptista, Lisboa, Instituto Nacional deInvestiígação Científica, 1989), Jean Roche(Livro de Homenagem a Jean Roche, ed. V.O. Jorge, Lisboa, Instituto Nacional de Inves-tigação Científica, 1989), Jorge Borges deMacedo (Estudos em Homenagem a JorgeBorges de Macedo, ed. J. V. Serrão, Lisboa,Instituto Nacional de Investigação Científica,1992) ou António Borges Coelho (Uma Vidaem História: Estudos em Homenagem a An-tónio Borges Coelho, ed. A. Farinha, Lisboa,Caminho, 2001).

2 Para mencionar apenas as de que éautor único: Hegel, Texas e Outros Ensaiosde Teoria Social, Lisboa, Século XXI, 1996;Classe, Status e Poder, Lisboa, Imprensa deCiências Sociais, 2001.

3 «Introdução» a Martins (2001), op. cit.,p. 13.

4 «Tempo e teoria em sociologia», inMartins (1996), op cit, p. 144.

5 V., a título de exemplo, M. V. Cabral,(2004), «Confiança, mobilização e representa-ção política em Portugal», in M. Costa Lobo,Pedro Magalhães e A. Freire (orgs.). Portugala Votos: as Eleições Legislativas de 2002,

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Christopher Lord e Erika Harris,Democracy in the New Europe,Basingstoke, Palgrave Macmillan,2006, 222 páginas.

Avaliar a qualidade democráticada União Europeia é uma empresaarriscada, entre outros aspectos,porque as suas características insti-tucionais inéditas tornam-na difícilde analisar com base nos critérios«clássicos» da democracia, estreita-mente ligados ao Estado-nação. Po-rém, o tema da democracia na UEfoi de grande actualidade nos últimostempos, particularmente depois domau êxito dos referendos sobre aConstituição Europeia em França e naHolanda. Enquanto antes se apontavaprincipalmente para a falta de demo-cracia na UE, agora começou-se aduvidar — algo cinicamente, quandoos cidadãos não decidem em acordocom as elites políticas — se as ques-tões europeias precisam realmente de

democracia. O livro de ChristopherLord e Erika Harris Democracy inthe New Europe tenta analisar, deforma global, essa relação complexaentre a UE e a democracia.

Os autores apontam três tesesprincipais que, segundo eles, distin-guem esta obra das inúmeras já exis-tentes sobre este tema1. A primeiratese é que a «nova» Europa — termonão definido de maneira precisa —está a estabelecer uma experiênciabi-dimensional de democracia queultrapassa o Estado-nação. A primei-ra dimensão consiste num esforçohorizontal para que a Europa seja umespaço geográfico composto uni-camente de Estados democráticos,enquanto a segunda é um esforçovertical para aplicar princípios demo-cráticos a nível supranacional (a UE).A segunda e terceira teses têm a vercom as interdependências entre de-mocracia nacional e supranacional.Em primeiro lugar, para ser efectiva,a democracia não pode continuar aser perspectivada exclusivamente emtermos nacionais. Em segundo lugar,todas as tentativas para estabeleceruma forma de democracia que ultra-passe o nível nacional terão de sebasear sobre as concepções existen-tes de democracia a nível nacional.Assim, a democracia dentro e alémdo Estado-nação tornou-se incrivel-mente associada, deixando de serpossível haver um bom funcionamen-to da primeira sem um funcionamentoefectivo da segunda, e vice-versa.

Esse argumento estrutura os oitocapítulos do livro, que tentam abor-dar a questão da democracia na

Lisboa, Imprensa de Ciências Sociais, pp. 301--331, ou M. V. Cabral, (200), «O exercício dacidadania política em Portugal», in M. V.Cabral, Jorge Vala e João Freire (orgs.), Ati-tudes Sociais dos Portugueses — Trabalho eCidadania, Lisboa, Imprensa de Ciências So-ciais, pp. 123-162.

6 A partir do ensaio «Tecnologia, moder-nidade e política», publicado in Martins(1996), op. cit.

ANA DELICADO