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O lento processo de evolução do direito dos cursos de água internacionais está profundamente associado aos diferentes contextos políticos e económicos das épo- cas que atravessou. No século XIX, o controlo dos Estados sobre os rios internacionais foi con- frontado com os princípios universais da liberdade de navegação e do comércio, sendo a sua abertura operada principalmente através de tratados de paz. Essa aber- tura deparou-se na Europa com o princípio sacrossanto da soberania dos Estados, mas desenvolveu-se de uma forma mais cooperativa nas colónias, onde as vantagens económicas prevaleciam sobre quaisquer outras considerações, territoriais ou po- líticas. O século XX demarcou-se, no domínio das águas internacionais, pela mul- tiplicação dos seus usos para fins económicos múltiplos.Tal multiplicação, associada à crescente industrialização, ao forte crescimento e pressão demográficas, à desa- gregação dos impérios e às sucessivas vagas de descolonização, contribuiu para que os usos das águas internacionais fossem cada vez mais factor de controvérsia. Não obstante os esforços de organizações internacionais e de organizações não governamentais, como a Sociedade das Nações ou a Associação de Direito Interna- cional, a prática dos tratados tem-se mantido largamente impregnada pelas relações de força entre os Estados e consideravelmente dependente de regimes de financia- mento internacionais. A abertura de negociações no seio das Nações Unidas para a codificação do direito dos cursos de água internacionais para fins diferentes da navegação é fruto dessa consciência, mas também de um imperativo de segurança. Com efeito, dos 263 rios internacionais actualmente existentes (conjunto das águas de superfície e subterrâneas que alimentam um rio internacional), cobrindo 47% da superfície terrestre e abarcando mais de 40% da população mundial, apenas pouco mais de 1/4 são abrangidos pelos cerca de 500 tratados presentemente em vigor, sendo que mais de metade destes tratados não prevêem quaisquer mecanismos de resolução de conflitos. Negócios Estrangeiros . N.º6 Dezembro de 2003 39 Luís Ferreira | Investigador do Instituto Português de Relações Internacionais e Segurança - IPRIS Ano Internacional da Água Doce: repensar a hidropolítica no contexto da segurança regional Ano Internacional da Água Doce: repensar a hidropolítica no contexto da segurança regional Introdução

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Page 1: Ano Internacional da Água Doce: repensar a hidropolítica no ...

O lento processo de evolução do direito dos cursos de água internacionais está

profundamente associado aos diferentes contextos políticos e económicos das épo-

cas que atravessou.

No século XIX, o controlo dos Estados sobre os rios internacionais foi con-

frontado com os princípios universais da liberdade de navegação e do comércio,

sendo a sua abertura operada principalmente através de tratados de paz. Essa aber-

tura deparou-se na Europa com o princípio sacrossanto da soberania dos Estados,

mas desenvolveu-se de uma forma mais cooperativa nas colónias, onde as vantagens

económicas prevaleciam sobre quaisquer outras considerações, territoriais ou po-

líticas.

O século XX demarcou-se, no domínio das águas internacionais, pela mul-

tiplicação dos seus usos para fins económicos múltiplos.Tal multiplicação, associada

à crescente industrialização, ao forte crescimento e pressão demográficas, à desa-

gregação dos impérios e às sucessivas vagas de descolonização, contribuiu para que

os usos das águas internacionais fossem cada vez mais factor de controvérsia.

Não obstante os esforços de organizações internacionais e de organizações não

governamentais, como a Sociedade das Nações ou a Associação de Direito Interna-

cional, a prática dos tratados tem-se mantido largamente impregnada pelas relações

de força entre os Estados e consideravelmente dependente de regimes de financia-

mento internacionais.

A abertura de negociações no seio das Nações Unidas para a codificação do

direito dos cursos de água internacionais para fins diferentes da navegação é fruto

dessa consciência, mas também de um imperativo de segurança. Com efeito, dos

263 rios internacionais actualmente existentes (conjunto das águas de superfície e

subterrâneas que alimentam um rio internacional), cobrindo 47% da superfície

terrestre e abarcando mais de 40% da população mundial, apenas pouco mais de

1/4 são abrangidos pelos cerca de 500 tratados presentemente em vigor, sendo que

mais de metade destes tratados não prevêem quaisquer mecanismos de resolução de

conflitos.

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Luís Ferreira | Investigador do Instituto Português de Relações Internacionais e Segurança - IPRIS

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Ano Internacional da Água Doce: repensar a hidropolítica

no contexto da segurança regional

Introdução

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A Convenção das Nações Unidas sobre o direito dos cursos de água inter-

nacionais para fins diferentes da navegação surge, na década de 70, como tentativa

de resolução política dos usos das águas internacionais. As negociações conduzidas,

numa primeira fase, pela Comissão de Direito Internacional (CDI), prolongaram-se

por vinte anos (1974-1994), tendo sido o respectivo documento de trabalho, numa

segunda fase, objecto de negociações intergovernamentais em duas sessões do Gru-

po de Trabalho Plenário (GTP), uma em 1996 e outra em 1997.

Aprovada em 1997 pela Assembleia Geral das Nações Unidas, a Convenção das

Nações Unidas sobre o direito dos cursos de água internacionais para fins diferentes

da navegação (adiante designada por Convenção de 1997) apenas recolheu, até

2003, doze ratificações, incluindo a de Portugal, das 35 necessárias para a sua en-

trada em vigor.

Neste Ano Internacional da Água Doce, em que a Assembleia Geral das Nações

Unidas, através da Resolução 55/96, apelou para a tomada de consciência da uti-

lização, gestão e protecção duradoura dos recursos hídricos, importa retroceder um

pouco no tempo e reflectir sobre as razões pelas quais esta Convenção não preenche

to-talmente a sua função de instrumento pacificador dos conflitos inerentes às águas

internacionais.

A abundância de água no planeta é manifesta: repartindo-

-se por 71% da superfície terrestre, para um volume de 1.400 milhões de quiló-

metros cúbicos, sendo que 98% desse volume tem um teor em sal demasiado ele-

vado para consumo humano, até mesmo para a maior parte dos usos industriais1.

Os 2% utilizáveis são, na sua maioria, reservas de água doce retidas nas calotes gla-

ciares dos pólos, nos glaciares e águas subterrâneas. Já as águas superficiais dos rios

e dos lagos representam apenas 0.014% desse conjunto2.

O caudal das águas continentais, oriundo das águas superficiais e subterrâneas,

é de longe a fonte mais importante de água para consumo humano, representando

44.500 quilómetros cúbicos3. Esta disponibilidade é contudo muito variável nas

diferentes regiões do mundo. Com efeito, os maiores volumes de água concentram-

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O potencial de conflito da água

1 Sironneau, Jacques, L'eau. Nouvel enjeu stratégique mondial, coll. Poche Geopolitique, Economica, n.º6, Paris,

1996.2 ibidem.3 Wallensteen, Peter/ Swain, Ashok, Comprehensive assessment of the freshwater ressources of the world, Stockholm

Environment Institute, Stockholm, 1997.

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-se nas zonas temperadas e regiões equatoriais, zonas de menor concentração po-

pulacional. No caso da Europa, por exemplo, o volume de água per capita representa

metade da média mundial do volume de água total per capita4. Mas, a maior parte do

continente está na zona temperada e muitos rios mantêm um débito constante,

situação que já não se verifica noutras regiões. É o caso das regiões tropicais e áridas,

onde os limitados recursos hídricos se encontram desigualmente repartidos, con-

frontando essas regiões com a rarefacção desse recurso vital. Assim, o caudal do rio

Amazonas representa 80% do caudal médio das águas da América do Sul; a bacia do

rio Congo é responsável por 30% das águas do continente africano5. Além do mais,

nas grandes bacias transclimáticas e internacionais, como a dos rios Nilo, Senegal,

Níger, Tigre, Eufrates, Indo e Mekong, os recursos em água formam-se essencial-

mente nas zonas a montante, “produtoras”, com clima húmido, que contrastam

com as zonas a jusante, “consumidoras”, de clima mais árido, o que acentua ainda

mais a partilha desigual das águas6. Os débitos dos rios das regiões áridas e tropicais

são submetidos a fortes flutuações sazonais, fazendo com que a maior disponibi-

lidade em água ocorra durante períodos de uma curta e intensa estação de chuvas.

A estas desigualdades naturais juntam-se as pressões da procura para fins de

desenvolvimento económico e social, principais factores da diminuição das dispo-

nibilidades e do acréscimo da vulnerabilidade do recurso em água. À semelhança da

distribuição, também os usos da água têm a sua geografia.

Assim, verifica-se que as regiões que mais sofrem da desigual distribuição geo-

gráfica dos recursos hídricos – nomeadamente o norte, o leste e o sul de África, o

Próximo e o Médio Oriente, e o sul da Ásia – são aquelas onde a procura é mais

importante. A irrigação continua a ser, no mundo, a principal utilização do recurso

em água, com 70% do volume global, seguida da indústria e da energia, muito à

frente do abastecimento das colectividades locais. Os países em vias de desenvol-

vimento são os principais consumidores de água para fins agrícolas, mas também os

que mais a desperdiçam. Com efeito, calcula-se que sejam utilizados, nesses países,

duas vezes mais água por hectare do que nos países industrializados para uma pro-

dução agrícola três vezes menos elevada7. Também o acesso à agua potável e as dis-

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4 ibidem.5 ibidem.6 Margat, Jean, Que savons nous aujourd'hui des ressources en eau?, in Margat, Jean et Tiercelin, Jean Robert (et al.),

L'eau en questions, Romillat, Paris, 1998.7 Sironneau, Jacques, L'eau. Nouvel enjeu stratégique mondial, coll. Poche Geopolitique, Economica, n.º6, Paris,

1996.

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ponibilidades deste recurso atingem actualmente limites que penalizam fortemente

as opções de desenvolvimento daqueles países, limites esses a que as elevadas taxas

de crescimento populacional em nada contribuem para a sua segurança alimentar e

hídrica – segundo o Banco Mundial mais de 95% do crescimento da população

mundial terá lugar nos países menos desenvolvidos dos continentes africano, asiá-

tico e sul-americano8. Em 2015, cerca de 3 biliões de pessoas viverão em países com

dificuldades em mobilizar água suficiente para satisfazer as necessidades alimen-

tares, industriais ou domésticas dos seus cidadãos9. Essa vulnerabilidade é acrescida

se tivermos em conta que para responder às exigências internas, os recursos em

água não provêm exclusivamente do interior das fronteiras, mas são partilhados e

dependentes de outros Estados.

O mandato de 8 de Dezembro de

1970 da Assembleia Geral das Nações Unidas recomendava à CDI o estudo do direito

dos cursos de água internacionais para fins diferentes dos da navegação, com vista

ao seu desenvolvimento progressivo e à sua codificação. Nesse sentido, os objectivos

do mandato da Assembleia Geral eram claros: a CDI deveria distinguir os desenvol-

vimentos a longo prazo das noções transitórias, identificar os problemas emergentes

a que o direito teria que responder e redigir normas claras relativamente aos usos

das águas internacionais. Todavia, na apresentação do primeiro relatório, em 1974,

os membros da CDI cedo se aperceberam de que as divergências de fundo, entre os

Estados e no seio da Comissão, eram consideráveis, tanto no que diz respeito à co-

dificação dos princípios gerais como quanto ao alcance da futura convenção. A con-

trovérsia prolongou-se por mais vinte anos.

O consenso obtido em 1997 na Assembleia Geral em torno do texto apresen-

tado obedece à lógica dos interesses geopolíticos dos Estados. Esses interesses in-

troduziram elementos de resistência importantes nas negociações, aumentando a

sua complexidade. Os fortes obstáculos políticos na CDI impediram a aplicação de

uma visão funcionalista e de princípios universalmente reconhecidos às águas dos

rios internacionais.As negociações encetadas no Grupo de Trabalho, em 1996 (quadro

1), foram difíceis e a discussão sobre os projectos de artigos mais controversos

sistematicamente adiada. O consenso obtido na segunda sessão de trabalho, em 1997

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As negociações da água e a resistência dos Estados

8 Wallensteen, Peter/ Swain, Ashok, Comprehensive assessment of the freshwater ressources of the world, Stockholm

Environment Institute, Stockholm, 1997.9 Postel, Sandra/Wolf, Aaron, “Dehydrating conflict”, Foreign Policy, n.º 126, Set.-Out. 2001.

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(quadro 2), foi qualificado de “insuficiente” e de “imaturo”, não contribuindo para

a resolução dos diferendos existentes entre Estados ribeirinhos. Essas deficiências em

torno do projecto de convenção projectaram-se inexoravelmente sobre o resultado

das votações na Assembleia Geral, onde a maior parte dos votos contra e das abs-

tenções provinham de países em vias de desenvolvimento ou de países inseridos

num contexto regional de marcada insegurança hídrica.

Patricia Wouters descreveu o compromisso a que tinha chegado o GTP como

sendo aceitável para a maioria dos Estados10. Esta especialista lembra-nos que se

pudéssemos ter acompanhado a posição dos Estados ao longo das negociações,

aperceber-nos-íamos que alguns deles mantiveram posições inflexíveis, acrescen-

tando que esta situação se encontra todavia diluída na votação final de 1997, na

medida em que podemos facilmente constatar que uma maioria de Estados de

montante e de jusante votaram a favor desta convenção, demonstrando a sua con-

vicção na importância deste instrumento para todos os ribeirinhos11.

QUADRO 1 – Resultados da votação sobre o projecto de Convenção (GTP, 1996)

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10 Wouters, Patricia/Vinogradov, Sergei, Current developments in the law relating to international watercourses: implica-

tions for Portugal, Nação e Defesa, 2.ª edição, n.º 86, verão 1998, Instituto da Defesa Nacional, Lisboa.11 Entrevista com Patricia Wouters, 31 de Agosto de 1999.

Fonte: Documents officiels de l'Assemblée générale, Sixième Commission, 51ème session, 1997, UNDOC. A/C.6/51/SR.62/Add.1, parag. 2.

África do Sul, Alemanha, Argélia, Áustria,

Bangladesh, Bélgica, Brasil, Camboja,

Canadá, Chile, Dinamarca, Estados

Unidos da América, Etiópia, Finlândia,

Grécia, Hungria, Irão, Itália, Jordânia,

Liechtenstein, Macedónia, Malásia,

Malawi, México, Moçambique, Namíbia,

Nigéria, Noruega, Países Baixos, Portugal,

Reino Unido, República Checa, Roménia,

Síria, Suíça, Tailândia, Tunísia, Vaticano,

Venezuela, Vietname, Zimbabwe

China, França, Turquia

A FAVOR CONTRA ABSTENÇÕES

Argentina, Bolívia,

Bulgária, Colômbia,

Egipto, Equador,

Eslováquia, Espanha,

Índia, Israel, Japão,

Lesoto, Líbano, Mali,

Paquistão, Ruanda,

Rússia, Tanzânia

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Na verdade, esta análise deve ser mitigada. Se é certo que uma maioria de Esta-

dos se pronunciou a favor da adopção desta convenção nas diferentes etapas da sua

elaboração, não é menos certo que foram constantemente os Estados das mesmas

bacias hidrográficas internacionais que se lhe opuseram. É assim legítimo questio-

nar a pretensa universalidade desta convenção, não pela maioria dos países que a

aceita mas pela grande minoria dos que a rejeitam.

Com efeito, os interesses defendidos pelos Estados nas negociações desta con-

venção são antagónicos e importantes, fazendo com que seja problemática, nalgu-

mas regiões do globo, a aceitação das disposições fundamentais desta convenção e

da sua universalidade. Encontram-se nesta situação países do Médio Oriente (Jor-

dânia, Líbano e Israel), do Próximo Oriente (Turquia, Síria e Iraque), de África

(Egipto, Etiópia, Sudão, Burundi, Ruanda, Tanzânia, Quénia e Mali), da Ásia Central

e do Sul (Índia, Paquistão, Bangladesh e China), da América Latina (Argentina, Pa-

raguai, Colômbia, Bolívia, Equador e Peru), da Europa central (Eslováquia e Bulgá-

ria); da Europa do Sul (Espanha), e, finalmente, dos Estados emergentes da desagre-

gação da URSS (Usbequistão e Azerbaijão).

O ponto comum a estas regiões é que a exploração das suas águas internacio-

nais constitui, para cada uma delas, e por razões diferentes, um factor fundamental

para o desenvolvimento dos países que as integram. Para a maioria desses países a

Convenção de 1997 não enuncia de forma clara nem equilibrada os direitos dos

países ribeirinhos quanto à utilização das suas águas internacionais, sendo certo que

os conflitos decorrentes de utilizações contestadas não assumirão proporções idên-

ticas nas regiões identificadas. Com efeito, o grau de cooperação e a existência de

mecanismos de integração regional, outros que não os enunciados pela Convenção

de 1997, fazem com que os problemas inerentes ao desenvolvimento das utilizações

dos recursos internacionais partilhados sejam enquadrados de forma diferente.

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QUADRO 2 – Resultados da votação sobre o projecto de Convenção (Assembleia Geral das

Nações Unidas, 1997)

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Fonte: Wouters, Patricia/Vinogradov, Sergei, “Current developments in the law relating to international watercourses: implicationsfor Portugal”, Nação e Defesa, 2.ª édition, n.º 86, verão 1998, Instituto da Defesa Nacional, Lisboa.

África do Sul, Albânia, Alemanha, Angola,

Antígua e Barbuda, Arábia Saudita, Argélia,

Arménia, Austrália, Bahrein, Bangladesh,

Bélgica, Bielorrússia, Botswana, Brasil, Brunei,

Burkina Faso, Camarões, Camboja, Canadá,

Quatar, Cazaquistão, Chile, Chipre, Costa do

Marfim, Costa Rica, Croácia, Dinamarca,

Djibuti, Emirados Árabes Unidos, Eslováquia,

Eslovénia, Estados Unidos da América,

Estónia, Federação Russa, Filipinas, Finlândia,

Gabão, Geórgia, Grécia, Gronelândia, Guiana,

Haiti, Honduras, Hungria, Iémen, Ilhas Marshall,

Indonésia, Irão, Irlanda, Itália, Jamaica, Japão,

Jordânia, Kuwait, Laos, Letónia, Liechtenstein,

Lituânia, Luxemburgo, Madagáscar, Malásia,

Malawi, Maldivas, Malta, Marrocos, Maurícias,

México, Micronésia, Moçambique, Namíbia,

Nepal, Noruega, Nova Guiné, Nova Zelândia,

Omã, Países Baixos, Polónia, Portugal, Quénia,

Reino Unido, República Checa, República da

Coreia, Roménia, Samoa, São Marino, Serra

Leoa, Singapura, Síria, Sudão, Suécia, Suriname,

Tailândia, Trindade e Tobago, Tunísia, Ucrânia,

Uruguai, Venezuela, Vietname, Zâmbia

Burundi, China,Turquia

A FAVOR CONTRA ABSTENÇÕES

Andorra, Argentina,

Arzebaijão, Bolívia,

Bulgária, Colômbia,

Cuba, Egipto, Equador,

Espanha, Etiópia, França,

Gana, Guatemala, Índia,

Israel, Mali, Mongólia,

Panamá, Paquistão,

Paraguai, Peru, Ruanda

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Constata-se assim que nas regiões do Médio Oriente, Próximo Oriente, norte de

África e Ásia central e do sul, a inexistência ou a fraca adesão a instrumentos de

cooperação internacional agravará os contenciosos existentes relativos à exploração

de águas internacionais comuns. Nessas regiões e no decurso das negociações, os

Estados defenderam constantemente o seu direito ao desenvolvimento, tendo sido

as orientações de voto inevitavelmente influenciadas pelas suas posições relativas

nos cursos de água internacionais. As divergências constatadas não são desprovidas

de sentido. Um rio internacional não é explorado indiferenciadamente pelos Estados

que atravessa. É geralmente reconhecido que os países de jusante, pela sua topo-

grafia, prestam-se mais rapidamente ao desenvolvimento do sector agrícola, recor-

rendo a uma utilização intensiva das águas internacionais. Exemplos dessa situação

são o caso do Iraque, em relação à Turquia, e do Egipto, em relação à Etiópia e aos

principais contribuintes das águas do Nilo.

Os planos e os esforços de desenvolvimento mais tardio dos países de montante

levantam grandes objecções pelos ribeirinhos de jusante. Esta postura foi uma cons-

tante no decurso das negociações, na medida em que esses Estados reivindicaram

quer direitos históricos ou primeiros sobre a utilização das águas, quer a preser-

vação desses direitos face a um potencial prejuízo significativo, inerente ao desen-

volvimento dos países de montante. Por seu turno, os países de montante sempre

defenderam o seu direito a uma participação e utilização equitativa das águas inter-

nacionais, sendo que o seu desenvolvimento tardio não poderia ser submetido a

critérios concorrentes e demasiado estritos (utilização razoável e equitativa, e in-

terdição de prejuízo significativo), na medida em que estes se poderiam traduzir

num obstáculo ao seu progresso, e que, consequentemente, a noção de prejuízo

significativo deve ser vista nos dois sentidos, a montante e a jusante. Como o refere

McCaffrey, estas controvérsias resolvem-se normalmente (i) se os ribeirinhos man-

tiverem relações de boa vizinhança; (ii) quando um dos Estados é mais poderoso

que o(s) outro(s) ribeirinho(s) e pretende resolver o litígio; (iii) quando o inte-

resse mútuo é superior à manutenção da disputa12.

A conciliação desses interesses, nem sempre convergentes, é uma das principais

lacunas da Convenção de 1997, na medida em que esta não conseguiu acomodar os

seus objectivos de codificação e de inovação do direito às necessidades emergentes

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12 Mccaffrey, Stephen, “Water, politics and international law”, in Gleick, Peter H., Water in crisis: a guide to the world's

fresh water resources, Oxford University Press, Oxford, 1993.

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das regiões onde este recurso é vital e os mecanismos de cooperação incipientes.

Para essas regiões, a Convenção de 1997 representa mais uma limitação do que um

acesso ao desenvolvimento. São representativos dessas limitações os princípios am-

bientais, defendidos essencialmente pelos países desenvolvidos, relativos à protecção

dos ecossistemas, o princípio da precaução13 ou ainda o do desenvolvimento sus-

tentável14. A defesa destes princípios, ligados aos problemas inerentes à indus-

trialização e à poluição transfronteiriça, suscitou veementes declarações por parte da

Turquia, Índia, Etiópia, Líbano, Síria ou ainda do Quénia15. A Índia explicou a sua

abstenção pelo facto de «nada ter contra o facto de se acordar a considerações eco-

lógicas a atenção que merecem (...) mas, como qualquer outra questão de ambiente,

essas considerações não devem ser isoladas do desenvolvimento, das transferências

de recursos técnicos e da valorização das competências em todos os Estados, so-

bretudo nos países em desenvolvimento. O desenvolvimento sustentável, a pro-

tecção, a salvaguarda e o ordenamento do território são princípios directores fun-

damentais que não podem ser considerados regras internacionais concretas de

aplicação directa16».

Para além das limitações acima enunciadas, a Convenção de 1997 é ainda sus-

ceptível de abrir mais contenciosos do que aqueles que efectivamente pretende

resolver. Esta percepção baseia-se no facto de ali virem enunciados mais princípios

concorrentes e ambíguos, não sendo clarificados aqueles que devem reger as uti-

lizações das águas internacionais. Com efeito, é nesse contexto que se instalou a

controvérsia em torno dos artigos relativos ao uso equitativo e razoável e à inter-

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13 O princípio da precaução vem enunciado, por exemplo, na Declaração do Rio de 1992 sobre o ambien-

te e o desenvolvimento (UNDOC. A/CONF.151/26 (vol.I)), que estipula no seu Princípio 15 que

«pour protéger l'environnement, des mesures de précaution doivent être largement appliquées par les Etats selon leurs capacités.

En cas de risque de dommage grave ou irréversible, l'absence de certitude scientifique absolue ne doit pas servir de prétexte pour

remettre à plus tard l'adoption de mesures effectives visant à prévenir la dégradation de l'environnement».14 Se bem que não exista uma definição estrita de desenvolvimento sustentável, este principio vem referido

em numerosos documentos internacionais, nomeadamente Declaração do Rio de 1992, que o en-

quadra no seu Princípio 3 da seguinte forma: «Le droit au développement doit être réalisé de façon à satisfaire

équitablement les besoins relatifs au développement et à l'environnement des générations présentes et futures», e no Princípio

4: «Pour parvenir à un développement durable, la protection de l'environnement doit faire partie intégrante du processus de

développement et ne peut être considérée isolément».15 Para todos os países citados, ver Documents officiels de l'Assemblée générale, Sixième Commission, 51ème session,

1996, UNDOC. A/C.6/51/SR.15, parag. 8, 12, 16,19, 20, e 39, respectivamente.16 Documents officiels de l'Assemblée générale, Sixième Commission, 51ème session, 1996, UNDOC. A/C.6/51/SR.62/

Add.1, parag. 6.

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dição de prejuízo significativo, mas também dos relativos ao dever de partilha de

informação dos países ribeirinhos e às relações existentes entre os diferentes tipos

de usos. É nesse sentido que se deve entender a posição do Egipto quando refere que

esses princípios não podem «nem anular nem substituir as regras estabelecidas pelo

direito consuetudinário»17 e que «a convenção-quadro não pode esvaziar o valor

jurídico de costumes que sempre existiram e que existirão sempre, e que são reflexo

de regras internacionais estabelecidas. Ela não pode também substituir os acordos

bilaterais, multilaterais e internacionais dos cursos de água internacionais, porque

esses acordos respondem às normas gerais das convenções internacionais e porque

se assim fosse traduzir-se-ia por incalculáveis prejuízos nalgumas regiões»18. No

outro extremo, a posição da Etiópia que, se bem que tenha votado a favor, formulou

reservas, na expectativa de que «as doutrinas ambíguas a que se referiram alguns

Estados em matéria de utilização das águas internacionais não sejam tomadas em

consideração», sublinhando que «nenhum Estado pode reivindicar um direito ex-

clusivo alegando princípios caducos e estabelecidos unilateralmente no seu interesse

próprio»19.

Em caso de conflito de princípios, a resolução dos diferendos deverá ter em

especial atenção as necessidades básicas do Homem. Mais uma vez, como distinguir

essa prioridade em regiões onde as águas internacionais são indispensáveis à auto-

-suficiência de países de montante – como o defenderam as delegações etíope e tur-

ca – e, simultaneamente, vitais ao abastecimento das populações dos países de

jusante – como o sustentaram as delegações egípcia, síria e israelita?

A universalidade a que Patricia Wouters aludia é, se não duvidosa, pelo menos

relativa. Ela não afectará – como o sublinha Aaron Wolf – os Estados que mantêm

relações cordiais, se bem que se possam referir ao texto da Convenção de 1997 em

tratados futuros, nem os Estados que mantêm entre eles relações frias, que conti-

nuarão a evitar qualquer negociação ou as restringirão no âmbito e no alcance20.

Acresce que a entrada em vigor desta Convenção depende de um número mínimo

de 35 assinaturas. Este número, largamente discutido e contestado, também põe em

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17 Documents officiels de l'Assemblée générale, Sixième Commission, 51ème session, 1997, UNDOC. A/C.6/51/

SR.62/Add.1, parag. 1018 Documents officiels de l'Assemblée générale, Sixième Commission, 51ème session, 1997, UNDOC. A/C.6/51/

SR.62/Add.1, parag. 9.19 Ibidem, parag. 32.20 Entrevista com Aaron Wolf, 31 de Agosto de 1999.

Page 11: Ano Internacional da Água Doce: repensar a hidropolítica no ...

causa aquela universalidade. Em primeiro lugar, por não se afigurar suficiente para

ser largamente aceite na comunidade internacional – estando, aliás, em contradição

com o alcance do mandato da CDI de 1970. Em segundo lugar, e como já o su-

blinhámos, para se impor como uma referência, terá que ser aceite por um número

minimamente expressivo de ribeirinhos, o que equivale dizer pelos mais poderosos,

e esse não é o caso.

As negociações sobre o direito dos usos das

águas internacionais para fins diferentes da navegação tiveram como objectivo prin-

cipal a codificação de princípios gerais universalmente aceitáveis e a criação de um

instrumento de referência para os tratados futuros entre ribeirinhos, independen-

temente da sua localização geográfica e dos contextos sócio-económicos e políticos

dos Estados. Essa codificação respondia a uma necessidade fundamental: a ausência

de regras e de mecanismos de resolução internacionais dos diferendos neste domí-

nio. Pretendia, em última análise, preencher o vazio de segurança existente, inci-

tando os países ribeirinhos à institucionalização de mecanismos de gestão e de

regulação, designadamente através da criação de comissões internacionais de bacia.

Esse desiderato fracassou manifestamente dado que a maioria dos Estados para os

quais as águas internacionais são essenciais ao desenvolvimento das suas economias,

e onde uma gestão internacional concertada dos usos é a única via de prevenção de

conflitos, emitiram sérias reservas às disposições fundamentais fixadas pela con-

venção.

Se bem que orientada pela universalidade, a Convenção de 1997 não conseguiu

impor-se nas regiões onde os usos das águas internacionais não relevam unicamente

de uma questão de direito mas também de segurança. Nesse sentido, veio corro-

borar a existência de complexos de segurança hidropolíticos, alguns de grande ins-

tabilidade, e, consequentemente, a sua inaptidão universal a esses casos particulares.

Uma das conclusões possíveis da análise das negociações da Convenção de 1997

é a de que a existir uma dialéctica entre universalidade e casos particulares no do-

mínio dos usos das águas internacionais, ela segue antes de mais uma lógica re-

gional. Essa conclusão é tanto mais importante quanto nos permite perceber que as

divergências não assentam numa concepção diferente de valores, como os da equi-

dade ou da igualdade de acesso ao desenvolvimento, mas sim sobre interesses nacio-

nais distintos. Uma comunidade de segurança deve ser contudo precedida de uma

comunidade de valores, minimamente partilhados. Essa abordagem é, desde há muito,

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Os complexos de segurança hidropolíticos

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regional, e é promovida pela própria Carta das Nações Unidas como factor primor-

dial para a segurança internacional. Foi também essa a abordagem seguida pela

União Europeia, onde a interdependência crescente dos Estados, inicialmente eco-

nómica, conduziu a uma comunidade de valores mais abrangente e, consequen-

temente, a uma comunidade de segurança. Nessa concepção está implícita a ideia de

que alguns países se encontram, independentemente da sua vontade, interligados

num complexo de segurança regional21.

As negociações da Convenção de 1997 revelam claramente as regiões para as

quais a segurança hídrica é matéria de segurança nacional, em que a importância

relativa das águas internacionais partilhadas para a segurança nacional dos Estados

ribeirinhos influencia consideravelmente, e até decisivamente, o conjunto das re-

lações entre os países do complexo, levando a que a segurança nacional de uns não

possa ser considerada separadamente da dos outros. Como o refere Günther Bächler,

aquela importância relativa é tanto maior quanto menores forem os mecanismos de

integração e de cooperação internacional ou de regulação dos diferendos nessas re-

giões, em que as partes retiram vantagens do recurso à ameaça da utilização da força22.

Disso são exemplo os complexos de segurança hidropolíticos das regiões do

Médio Oriente (Jordão, Tigre-Eufrates), de África (Nilo, Senegal) da Ásia Central

(Amu Darya e Syr Darya) ou ainda da Ásia do Sul (Ganges-Bramaputra, Indo). Nes-

sas regiões, e ao contrário dos complexos de segurança hidropolíticos estáveis, a

grande inimizade entre os países do complexo ou a inexistência de instrumentos de

cooperação regional, conjugadas com interesses antagónicos entre países ribeiri-

nhos de montante e de jusante, contribuem para a instabilidade relativa, e por vezes

desmesurada, das relações de segurança do conjunto do complexo regional. Disso

mesmo é paradigmático o caso da bacia hidrográfica internacional do Nilo.

O Nilo percorre mais de 6.800 km do la-

go Vitória ao Mediterrâneo e atravessa, na sua área hidrográfica, o território de dez

países: Tanzânia, Burundi, Ruanda, República Democrática do Congo (RDC), Qué-

nia, Uganda, Etiópia, Eritreia, Sudão e Egipto, ou seja, mais de três milhões de km2,

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O complexo de segurança hidropolítico do Nilo

21 Buzan, Barry, People, States & Fear : an agenda for international security studies in the post-Cold War era, 2.ª ed., Harvester

Wheatsheaf, London, 1991.22 Bachler, Gunther, “The anthropogenic transformation of the environment : a source of war? Historical background, typology

and conclusions”, in Spillmann, Kurt R./Gunther, Bachler (eds.), Environmental crisis: regional conflicts and ways

of co-operation, occasional paper, n.º 14, Setembro 1995, Environment and Conflicts Project (ENCOP) Center for Security

Studies and Conflict Research, Zurich.

Page 13: Ano Internacional da Água Doce: repensar a hidropolítica no ...

o equivalente a 1/10 da superfície do continente africano. Os dois mais importantes

afluentes do Nilo – o Nilo Branco e o Nilo Azul – confluem em Cartum, no Sudão,

e definem as fronteiras subsistémicas deste complexo hidrológico. O Nilo Branco,

responsável por cerca de 15% do caudal anual do Nilo, nasce na Tanzânia e inclui na

sua bacia de drenagem todos os países ribeirinhos à excepção do Egipto. O Nilo

Azul, abrangendo os territórios do Egipto, Sudão, Etiópia e Eritreia, tem origem nas

terras altas da Etiópia e contribui com cerca de 85% para o caudal anual do Nilo

(tabela 1).

TABELA 1: Principais contributos para o caudal do rio Nilo

Para o Egipto, cujo território é ocupado em 98% por deserto, o Nilo é, no senti-

do literal, fonte de vida. Potência económica e militar incontestada na região, o Egipto

revela-se, contudo, do ponto de vista hídrico, o mais vulnerável. Não detendo qual-

quer controlo sobre as nascentes deste rio internacional, depende daquelas águas para

o abastecimento de uma população em forte crescimento demográfico e para o desen-

volvimento económico de um país que irriga a totalidade da agricultura que pratica.

Essa vulnerabilidade, com consequências da maior relevância para a política

regional, tende a agravar-se, por um lado, pela progressiva diminuição das disponi-

bilidades em água, não só no Egipto mas também na Tanzânia, Burundi, Quénia e

Etiópia, e, por outro lado, pela intransigência crescente dos restantes países da bacia,

metade dos quais se encontram entre os vinte países menos desenvolvidos do mun-

do, em aceitar um regime hídrico que estimam ser um direito de veto inaceitável ao

seu desenvolvimento e à sua segurança.

Anwar al-Sadat referia, em 1979, que a única questão que poderia levar o

Egipto a outra guerra seria a água. Boutros-Boutros Ghali, ex-Secretário-Geral das

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Nilo Azul 59% 68%

Sobat 14% 5%

Atbara 13% 22%

Origem na Etiópia 86% 95%

Nilo Branco 14% 5%

VALORES EM PERCENTAGEM DO CAUDAL TOTAL ANUAL PERÍODO DE INUNDAÇÕES

Fonte:Waterbury, J., The Nile Basin: National Determinants of Collective Action, New Haven and London,Yale University Press,2002.

Page 14: Ano Internacional da Água Doce: repensar a hidropolítica no ...

Nações Unidas, reiterando o anátema que lançou nos anos oitenta, salientava

recentemente as dificuldades que envolvem a distribuição equitativa das águas do

Nilo pelos Estados ribeirinhos e o facto de a consequente competição pelo controlo

deste recurso poder gerar situações dramáticas em que a confrontação armada será

inevitável23.

Para além da retórica política, o tom destes discursos é revelador dos receios, se

bem que excessivos, de planos de diversão das águas do Nilo pelos países a mon-

tante, mas também da postura intransigente do Egipto quanto à alteração do status

quo do regime hídrico na bacia.

Ao contrário da maior parte das bacias internacionais, a posição dominante é

exercida por países a jusante, que defendem direitos históricos e adquiridos sobre

as águas do Nilo. A situação actual, reflexo das políticas sustentadas na época co-

lonial e durante a Guerra-Fria, evidencia a urgência na promoção de uma acção

colectiva na gestão global dos recursos hídricos desta região.

Em 1959, foi assinado entre os dois países o Tratado para a Plena Utilização das

Águas do Nilo. Este tratado, ainda em vigor, redefiniu e reforçou os direitos egípcios

e sudaneses relativamente às quotas estabelecidas em 1929. O tratado de 1929 tinha

deixado de fora cerca de 30 biliões de metros cúbicos de água (bm3), resultante da

época das cheias, agora plenamente aproveitada pelos dois países. Do débito esti-

mado de 84 bm3 de água medidos na barragem do Assuão, 55.5 bm3 (75%) rever-

tem para o Egipto, 18.5 bm3 (25%) para o Sudão. Os restantes 10 bm3 são perdidos

na barragem por evaporação de superfície. Ou seja, em relação a 1929 houve um

ganho líquido de 7.5 bm3 para o Egipto e de 14.5 bm3 para o Sudão24.

Mais equitativo, e favorável para o Sudão, o tratado de 1959, apesar dos esforços

da Grã-Bretanha, não teve em conta, novamente, os interesses dos restantes países

ribeirinhos. Antecipando futuras reivindicações dos países nilóticos a montante,

Egipto e Sudão estabeleceram ainda que, nesse caso, as negociações seriam conjun-

tas e de acordo com uma posição comum. Qualquer afectação de águas do Nilo a

um dos países ribeirinhos seria, nos termos do tratado, deduzida das quotas de

ambos os países, em partes iguais. Nenhum dos Estados do Alto Nilo foi consultado.

Se o que esteve em causa nas negociações que conduziram ao tratado de 1929 foi o

favorecimento dos interesses ingleses no Egipto e no Sudão, já no tratado de 1959,

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23 Entrevista com Boutros-Boutros Ghali feita por Francesca de Châtel, em 13/03/2003, no jornal Islamonline.24 Waterbury, J., The Nile Basin: National Determinants of Collective Action, New Haven and London, Yale University

Press, 2002.

Page 15: Ano Internacional da Água Doce: repensar a hidropolítica no ...

para além da apropriação total das águas do Nilo, está em causa, não só o aumento

mas a consolidação das quotas de 1929, ou seja, a transformação de cerca de 52

bm3 (48 bm3 para o Egipto; 4 bm3 para o Sudão) em direitos adquiridos, que não

poderão ser reivindicadas por outros países em futuras negociações de partilha. É

neste contexto que surgem as tomadas de posição, em diferentes ocasiões, de go-

vernos do Alto Nilo que estiveram sob administração inglesa e da Etiópia, de não

reconhecimento dos tratados de 1929 e de 1959, por não aceitarem as obrigações

dos tratados celebrados pela administração colonial e, sobretudo, por nenhum des-

ses tratados envolver a generalidade dos ribeirinhos25.

Com a vaga de independências dos anos sessenta, os países a montante do Nilo

alinharam com uma das superpotências, cujo apoio a regimes despóticos e assis-

tência militar massiva contribuiu de forma dramática para prolongadas e devasta-

doras guerras civis, agravadas pela ingerência frequente dos países vizinhos.

A instabilidade regional e a volatilidade política interna constituíram, no perío-

do da Guerra-Fria, o principal obstáculo à emergência de uma acção colectiva na

gestão internacional das águas do Nilo.

Actualmente, persistem conflitos armados nos territórios do Ruanda, Burundi,

Uganda, Etiópia, Sudão e República Democrática do Congo (RDC). No conjunto

destes países mais de 7 milhões de pessoas foram deslocadas internamente, vítimas

desses conflitos, de perseguição ou da violência generalizada, ou seja, 70% dos des-

locados internos do continente africano encontram-se na bacia do Nilo26. Esta

situação é agravada pelo facto de o Burundi, o Egipto, o Quénia e o Ruanda se en-

contrarem em situação de penúria hídrica (menos de 1000 m3 de água por pessoa

e por ano). Três outros – a Eritreia, a Etiópia e o Sudão – estão em situação de stress

hídrico (<1700m3/pessoa/ano) ou de pré-stress hídrico (1700-2000 m3/pessoa/

ano)27.

O deficiente acesso à água, a distribuição e o crescimento da população nos

países da região acentua ainda mais a competição por este recurso escasso. Nos

países a montante do Egipto e do Sudão uma pessoa em cada duas não tem acesso

à água.Também é no Alto Nilo que se concentram 2/3 da população da bacia (tabela

2), prevendo-se um aumento populacional, na totalidade dos países nilóticos, de

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25 Hultin, J., The Nile: Source of Life, Source of Conflict, in Leif Ohlsson (ed.), Hydropolitics. Conflicts over Water as a

Development Constraint, London & New Jersey, University Press Ltd, 1995.26 Dados do US Comittee for Refugees, 2003.27 Dados das Nações Unidas, 2003.

Page 16: Ano Internacional da Água Doce: repensar a hidropolítica no ...

120 milhões de pessoas nos próximos quinze anos e uma duplicação da população

nos próximos 25 anos.

Segundo dados das Nações Unidas, entre 1990 e 2001, 75% da população desta

região viveu com menos de dois euros por dia. A agricultura, designadamente a de

subsistência, grande consumidora de água, é pois a principal actividade económica

(90% da população activa) dos países da bacia do Nilo, todos eles importadores

líquidos de bens alimentares. As obras hidráulicas no Nilo permitiram ao Egipto e

ao Sudão aumentar a sua capacidade de irrigação, fazer face às necessidades das suas

populações e até exportar bens agrícolas, como o algodão. Contudo, o controlo do

Nilo trouxe consequências nefastas para os solos, nomeadamente o recurso indis-

criminado aos químicos agrícolas e a salinização dos solos aráveis, tornando esta

actividade cada vez mais insustentável.

TABELA 2: População e recursos hídricos dos países do Nilo

Os desafios são portanto enormes. Muitos destes países não dispõem de capaci-

dade económica suficiente para subverter o ciclo de subdesenvolvimento endémico

em que se encontram. Esse ciclo é, para alguns, vicioso, porquanto se encontra intima-

mente ligado à incapacidade de estabilização política das suas sociedades, reduzindo

de forma dramática as possibilidades de angariação de financiamentos internacionais.

Esta realidade verifica-se na generalidade dos países ribeirinhos do Nilo, mas é

gritante no Sudão, Etiópia, Uganda, Ruanda e Burundi, países com uma percen-

tagem importante do território no interior da bacia hidrográfica.

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120 Egipto 69,1 90,0 32,6 97 859 97

138 Sudão 32,2 41,4 79,0 75 2074 77

169 Etiópia 67,3 93,8 33,2 24 1749 0

171 Burundi 6,4 9,8 47,6 78 566 0

155 Eritreia 3,8 5,9 20,4 46 1722 56

146 Quénia 31,1 36,9 8,0 57 985 33

167 RDC 49,8 74,2 0,9 45 25183 30

158 Ruanda 8,1 10,6 75,5 41 683 0

160 Tanzânia 35,6 45,9 8,9 68 2591 10

147 Uganda 24,2 39,3 98,1 52 2833 41

IDH PAÍS POPULAÇÃO ÁREA DO ACESSO DISPONIBILIDADE DEPENDÊNCIA

(EM MILHÕES) PAÍS NA À ÁGUA EM ÁGUA EXTERNA

2001 2015 BACIA (%) (%) (m3/CAPITA/ANO) (%)

Fonte: FAO/ONU, 2003.

Page 17: Ano Internacional da Água Doce: repensar a hidropolítica no ...

O Sudão é o maior país africano. O norte e o centro desérticos e semi-desérticos

contrastam com o terço meridional, onde se estendem pantanais (Sudd) irrigados

pelo Nilo Branco. É no Sul do Sudão que se concentra o actual conflito que opõe,

desde 1958, islâmicos de Cartum a movimentos rebeldes laicos do sul (Aliança

Democrática Nacional e Movimento de Libertação do Povo Sudanês), apoiados pelo

Uganda, Etiópia e Eritreia. O fracasso do acordo de Addis Abeba de 1972, que con-

cedera autonomia a esta região do país, reacendeu o conflito que, desde 1980, já fez

mais de 1,5 milhões de mortos.

É também no Sul do Sudão que se encontram os recursos hídricos e o petróleo,

que fazem desta região um eixo vital para o futuro desenvolvimento do país. É ainda

dali que parte um importante transvase destinado a abastecer o norte desértico e a

fornecer água ao Egipto: o canal de Jonglei.

Inicialmente concebido por um britânico, num tempo em que a Grã-Bretanha

exercia um controlo efectivo sobre o Egipto e o Sudão, o canal de Jonglei destinava-

-se a drenar as águas dos pântanos no Sul do Sudão, à irrigação e à produção de

energia hidroeléctrica para ambos os países. A construção deste canal de 360 km só

começou em 1978, depois de longas negociações bilaterais, mais uma vez sem

consulta dos restantes ribeirinhos. Cinco anos depois do início da sua construção,

os trabalhos foram interrompidos devido à acuidade do conflito no Sul do Sudão. A

sua finalização está hoje sujeita à manutenção da integridade territorial do Sudão, à

cessação das hostilidades no sul do país, bem como à aceitação deste projecto pelo

Quénia,Tanzânia e Uganda, países directa e ambientalmente afectados pelo projecto.

Depois do golpe militar de 1974, que depôs Haile Selassie, e com a subida ao

poder de Mengistu em 1977, apoiado pela então URSS, a Etiópia confronta-se com

uma guerra civil, de cariz étnico e religioso, que só abrandou com o declínio da

ajuda soviética nos anos oitenta. A par da guerra civil, os etíopes confrontam-se,

desde os anos setenta, com períodos de seca e de fome, alguns deles determinantes

na queda de sucessivos regimes políticos. A política de transferência populacional

forçada dos anos oitenta, criticada pela comunidade internacional, revelou-se um

fracasso. No fim dos anos noventa, quebras na produção, induzidas pela seca, colo-

caram as vidas de 8 milhões de etíopes em risco. A segurança alimentar é assim um

objectivo de segurança nacional. Actualmente, dos 90.000 hectares de terras irri-

gadas, a maior parte encontra-se na bacia do Nilo Azul. Contudo, esta bacia repre-

senta somente 25% da área total potencialmente irrigável no país, e o seu desenvol-

vimento é muito limitado. Refira-se que a Etiópia, principal contribuinte das águas

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do Nilo, utiliza menos de 1% dessas águas, as quais constituem, de acordo com um

relatório do Banco Mundial, o melhor “activo” natural contra o aumento da pobreza

e da grave penúria energética e de alimentos que enfrenta, representando simulta-

neamente a base de qualquer futura estratégia de exportação28.

O Uganda, considerado como uma das pérolas do império britânico, encontra-

-se mergulhado no caos das guerras tribais desde 1967. Para além dos problemas

internos, também está directamente afectado pelas crises internas nos vizinhos Ruan-

da, Burundi e RDC, tendo firmado com este último um acordo de paz em 2002.

No plano dos recursos hídricos, o Uganda é sem sombra de dúvida um país da

bacia do Nilo, porquanto a totalidade do seu território está inserido naquela bacia

de drenagem. Os problemas do Uganda, relativamente à utilização dessas águas, são,

à imagem da Etiópia, sobretudo hidroeléctricos. Embora mantenha em funciona-

mento a barragem de Owen Falls, que, desde 1964, serve um duplo propósito –

regular o caudal do Nilo e gerar electricidade –, as necessidades hidroeléctricas do

Uganda são maiores e o seu potencial é grande. Exemplo disso mesmo é o potencial

de produção hidroeléctrica de pelo menos 2000 megawatts, fruto dos mais de 500

metros de declive do Lago Vitória ao Lago Alberto (gráfico 1), muito acima da capa-

cidade actual instalada de apenas 400 megawatts.

GRÁFICO 1: Desnível do rio Nilo

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28 Erlich, H., The Cross and the River: Ethiopia, Egypt, and the Nile, London, Lynne Rienner Publishers, 2002.

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1800

1500

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600

300

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Nilo Branco Nilo

7000

Kagera

Nilo AzulNascente Kagera

Lago Tana

L. Vitória

L. Kioga

L. AlbertoNimule

Bor

Malakal

Rosenis

SennarCartum

MeroweL. Nasser Assuão

RosetaCairo

Fonte:Waterbury, J., The Nile Basin: National Determinants of Collective Action, New Haven and London,Yale University Press,2002.

Page 19: Ano Internacional da Água Doce: repensar a hidropolítica no ...

O Ruanda e o Burundi são dois países profundamente marcados pelo conflito

armado, pela violência étnica e pelo genocídio, que geraram grandes fluxos de

refugiados e de deslocados, implicando países vizinhos como a RDC, Uganda e

Tanzânia no conflito entre hutus e tutsis. Como refere Alexander Carius, a manu-

tenção do actual conflito, associada aos problemas do rápido crescimento demográ-

fico, da pobreza, dos movimentos forçados de população, da instabilidade política e

das tensões étnicas, conduz à crescente degradação ambiental e à escassez dos recur-

sos hídricos, ambas causa e efeito desses problemas socio-económicos29.

Todos os indicadores económicos, políticos e sociais da região apontam para a

manutenção de relações conflituais na bacia do Nilo, exacerbados se tivermos em

conta os índices de vulnerabilidade hídrica, como sejam o rácio oferta/procura da

água, a sua disponibilidade per capita, as dependências externas e hidroeléctricas

(Gleick:1998). Nenhum destes indicadores abona em favor da cooperação regional,

e muito menos ao nível das águas, já que o único regime vigente impõe um status

quo há quatro décadas, impedindo oito ribeirinhos de quaisquer intervenções no

Nilo.

A visão de unidade da bacia do Nilo, na época colonial, deu lugar, com a vaga

de independências, à efectiva soberania territorial sobre os recursos. Aquela unidade

era possível por não existirem, na lógica colonial, interesses territoriais mas sim, e

essencialmente, critérios económicos, o que facilitou a abordagem multilateral e a

gestão dos recursos para aqueles fins.

Após as independências, privilegiaram-se os grandes projectos, pretendendo-se

responder rapidamente e de forma duradoura às necessidades nacionais de desen-

volvimento e de segurança alimentar. Estes projectos contendiam e afectavam o

principal país a jusante, o Egipto, que tinha vindo a adquirir grande competência

técnica internacional no domínio hidropolítico, recorrendo à larga influência de

que dispunha junto das instituições internacionais, como o Banco Mundial, para in-

viabilizar projectos de grande dimensão nos países a montante.

Para evitar qualquer veleidade, o Egipto tem vindo a apoiar financeiramente, des-

de os anos oitenta, os países ribeirinhos do Nilo, incluindo a Etiópia. Foi também

nessa década que o então Ministro dos Negócios Estrangeiros, Boutros-Boutros

Ghali, decidiu repor o problema da gestão da água ao nível da unidade da bacia

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29 Carius, A., “A crise global da água: do conflito à cooperação”, in Viriato Soromenho-Marques (et al), O desafio da

água no século XXI: entre o conflito e a cooperação, Editorial Notícias (no prelo).

Page 20: Ano Internacional da Água Doce: repensar a hidropolítica no ...

hidrográfica, única promotora de uma acção colectiva e da instituição de uma

verdadeira comunidade de ribeirinhos. Ghali acreditava que a segurança do Egipto

dependia do seu relacionamento com o sul (Sudão e Etiópia) e não com o leste

(Israel). Nesse sentido patrocinou, sem sucesso, a criação do grupo de Undugu (ter-

mo que em swahili significa “irmandade”), em 1983, com vista à criação de uma

rede de barragens que possibilitariam a produção de energia hidroeléctrica nos paí-

ses da região e até para exportação.

Com o fim da Guerra-Fria, e o fim da presença russa no Corno de África, os

países da região voltam-se para o investimento directo internacional e para o Banco

Mundial. As instituições que foram criadas no pós-Guerra-Fria, ao nível político e

científico, para a elaboração de um quadro multilateral que permitisse o estabele-

cimento de um diálogo permanente entre os países ribeirinhos, constituíam um

fórum importante e uma porta para a comunidade internacional.

O estabelecimento de uma Comissão de Cooperação Técnica para a Promoção

do Desenvolvimento e da Protecção Ambiental da Bacia do Nilo (Tecconile), em

1992, essencialmente liderada por técnicos egípcios, foi vista com grande descon-

fiança pelos etíopes, já que visava essencialmente a recolha de dados e a monito-

rização dos recursos nacionais. Em 1997, o Tecconile foi substituído pela Iniciativa

da Bacia do Nilo (IBN), cujo objectivo foi o de implementar uma comissão multi-

lateral para a gestão comum das águas do Nilo. Apoiada pelo Banco Mundial e pelo

Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), esta plataforma, à

qual aderiu formalmente a Etiópia, em 1999, visa o desenvolvimento socio-econó-

mico sustentável através do uso equitativo dos recursos do Nilo.Tal como a sua pre-

decessora, o grupo de Undugu, a IBN confronta-se com a desconfiança e a suspeição

entre os ribeirinhos. Até agora, as iniciativas limitam-se a medidas de confiança e ao

estudo de projectos que podem beneficiar a totalidade dos ribeirinhos, não respon-

dendo, por enquanto, às questões de fundo que implicam o inevitável confronto de

interesses entre os países do Nilo.

A água é um bem essencial ao desenvolvimento de qualquer sociedade. No

Nilo, esta realidade é acompanhada pela exigência inadiável dos países a montante

de quebrar o ciclo de desenvolvimento endémico em que se encontram. Essa exi-

gência, exacerbada pelos conflitos que grassam na região e pela degradação das con-

dições socio-económicas dos países em conflito, agravam a competição por este

recurso escasso.

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A partilha total das águas do Nilo pelo Egipto e pelo Sudão dura há quatro

décadas. O regime estabelecido está desadequado face às profundas transformações

na estrutura económica das sociedades desde então, hoje mais industriais do que

agrícolas.

O grau de cooperação a instituir na bacia do Nilo dependerá sempre da flexi-

bilidade dos países a jusante em aceitar uma redefinição dos seus interesses estra-

tégicos e assumir a responsabilidade no desenvolvimento dos países do Alto Nilo, o

que implica projectos com um elevado grau de interdependência, com um propó-

sito comum.

A Convenção das Nações Unidas sobre o direito dos cursos de água internacio-

nais para fins diferentes da navegação teve que superar obstáculos consideráveis, ao

longo de 27 anos de negociações, sendo que o compromisso político possível não

permite afirmar que este instrumento internacional contribuirá de forma decisiva

para a segurança internacional.

Essa realidade vem demonstrar que a oposição entre princípios universais e in-

teresses particulares sempre dominou os usos das águas internacionais e está hoje

presente nas regiões onde a ligação entre a segurança e o desenvolvimento é mais

instável, atingindo níveis preocupantes em alguns complexos de segurança hidro-

políticos. Essa dialéctica é tanto mais forte quanto se inscreve nos interesses antinó-

micos dos Estados de montante e de jusante, onde o domínio exercido sobre a hi-

dropolítica é simultaneamente atributo e símbolo de poder regional.

A Convenção das Nações Unidas sobre o direito dos cursos de água interna-

cionais para fins diferentes da navegação não instituiu mecanismos que permitissem

às regiões mais instáveis atenuar ou resolver os conflitos sobre as águas que par-

tilham. Na verdade, ela exclui-as duplamente. Em primeiro lugar, porque coloca em

pé de igualdade os princípios da utilização equitativa e da interdição de prejuízo

significativo, o que é susceptível de criar mais contenciosos do que resolver utiliza-

ções contestadas. Mesmo se aquela igualdade fosse superada, os usos existentes não

seriam tidos em conta na contabilidade hídrica da partilha entre os países ribeiri-

nhos, o que equivaleria a dar uma vantagem significativa aos países de jusante, nor-

malmente mais desenvolvidos nesse domínio, institucionalizando o princípio, que

se considera actualmente caduco, da integridade territorial.

Em segundo lugar, a Convenção de 1997 institui obstáculos importantes para

os países em vias de desenvolvimento. Com efeito, os apelos ao desenvolvimento

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Conclusão

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sustentável, ao princípio da precaução ou à defesa dos ecossistemas são indispen-

sáveis à preservação do ambiente e dos recursos ambientais para as gerações futuras,

reforçando a ideia de que as estratégias de desenvolvimento convencionais devam

adaptar-se às necessidades das regiões mais desfavorecidas hidricamente, sem pôr

em causa os pilares do seu desenvolvimento. Esses apelos equivalem a uma limitação

do consumo global dos recursos, quando estes são a matéria-prima daqueles países

para a sua segurança económica. Esta contradição não foi resolvida pela Convenção

de 1997, na medida em que esta, optando pela defesa intransigente do ambiente,

não forneceu nenhum instrumento que permitisse aos países mais instáveis no pla-

no hídrico fazer face aos riscos das interdependências espaciais, ambientais, econó-

micas e políticas e, por consequência, de segurança, subjacentes à gestão das suas

bacias hidrográficas partilhadas.NE

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