ANO IV #40 Vitória/ES Abril de 2018 · não foi suficiente para retirar de nossa análise a...

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1 ANO IV—#40 Vitória/ES Abril de 2018

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ANO IV—#40 Vitória/ES Abril de 2018

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Editor

Raphael Faé Baptista

Editoração:

Felipe Sellin

Colaboram nessa Edição:

Felipe Sellin

Raphael Faé Baptista

Miguel Rios

Mônica Paulino Lannes

Interaja conosco, sua opinião

é muito importante para nós:

[email protected]

Edição n°39—Março de 2018

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Editorial

Ao adentrarmos no mês de abril, o tem-

po cronológico passa, mas muitas ques-

tões permanecem em aberto.

Uma dessas questões, talvez um dos

acontecimentos mais importantes da

história recente do Brasil, ainda conti-

nua sem solução: o assassinato de Mari-

elle Franco, e seu motorista, Anderson,

no dia 14 de março de 2018.

Marielle reunia o que parte da socieda-

de brasileira mais odeia: pobre, negra e

favelada, era ferrenha defensora dos

direitos e da dignidade de pobres, ne-

gros e favelados contra a tirania e o

arbítrio de agentes do estado. Num lo-

cal em que o estado aparece apenas

para matar e cometer ilegalidades, Ma-

rielle se opunha a isso e exigia o respei-

to pela vida alheia e que cada um res-

pondesse conforme manda a lei.

Mas, para uma sociedade que se formou

sob a escravidão, nada mais insuportá-

vel para alguns que a senzala gritando e

exigindo o que quer que seja. E Marielle

o fez, e foi reunindo desafetos entre os

agentes da ilegalidade, dentro e fora do

Estado. Com a intervenção militar na

segurança pública do estado do Rio de

Janeiro, mais uma ação pirotécnica de

um desgoverno sem apoio popular, feita

a toque de caixa, os grupos criminosos

que já operavam no Rio de Janeiro pre-

cisaram se reorganizar. E, não há dúvi-

das, Marielle era uma pedra no sapato

de muita gente, gente acostumada a se

servir das camadas mais desfavorecidas

como “carvão para queimar”, como diz

Darcy Ribeiro, e precisaram retirá-la do

caminho.

Sem dúvidas, isso nos leva a debates

infinitos sobre a sociedade brasileira e

suas questões, sobre política e direitos

humanos, sobre a história passada e

recente, etc.

Desse modo, Felipe Sellin, coeditor do

Jornal Crítica Espírita, professor uni-

versitário e sociólogo, traz uma impor-

tante reflexão sobre o significado de

Marielle Franco, de seu trabalho em

vida e de seu assassinato.

Na sequência, a professora universitária

Mônica Lanes, em mais uma excelente

contribuição, aborda a relação entre

espiritismo e política. Em tempos de

tanta ignorância política, de desman-

dos, perseguições e conchavos, trata-se

de um tema sempre necessário.

Por fim, o jornalista Miguel Rios, tam-

bém colaborador do Jornal, abre as

portas de sua afetividade para nos mos-

trar como ele lida com o desencarne de

seu marido. O público espírita, tão acos-

tumado a jargões como “a morte não

existe” e coisas do tipo, precisa ter mais

atenção, respeito e maturidade quanto a

esse ponto da existência humana: as

nossas perdas.

Tenham uma excelente leitura!

Os editores,

Raphael Faé e Felipe Sellin

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EU SOU PORQUE NÓS SOMOS!

JUSTIÇA

A frase titulo deste texto era também a

preferida de Marielle Franco, um chama-

do para a compreensão da crise que vive a

humanidade, um chamado para a empa-

tia. Mas, em março de 2018, a vereadora

do Rio de Janeiro, defensora dos direitos

humanos e crítica à intervenção militar

federal no estado do Rio de Janeiro foi

assassinada quando voltava de um evento

do movimento feminista no centro do Rio.

O ataque contra Marielle vitima também

seu motorista, Anderson Gomes.

Mas a violência foi sentida por muitos,

por todos nós, Brasil afora, mundo afora!

Mesmo passado pouco mais de um mês,

não foi suficiente para retirar de nossa

análise a profunda dor que nos abala.

Certamente, leitora e leitor, você pode

compartilhar do mesmo sentimento e

lerá, cada uma destas palavras, com a

mesma sensação de soco no estômago

com que escrevo. Mas, ainda que imbuído

de todo amor ao próximo e empatia, outra

leitora ou leitor poderia estar confuso: “A

morte é só uma passagem”, “Escolhemos

nossas provas”, “Uma vida não vale mais

que outras”, poderíamos ouvir. Por estas e

outras razões, precisamos lembrar quem

foi Marielle.

Em uma sociedade machista, Marielle era

uma mulher lutadora, que ensinou ao

próprio pai que, se queremos um mundo

diferente, é necessário que homens e mu-

lheres sejam feministas. Em uma socieda-

de branca e racista, Marielle, negra, de-

fendeu as vidas brancas e negras vítimas

principalmente do próprio Estado e da

corrupção deste aparato repressivo. Em

uma sociedade elitista, Marielle nasceu na

Maré, uma comunidade da periferia da

cidade do Rio de Janeiro, e construiu sua

militância fincada em suas bases sociais.

Em uma sociedade heteronormativa, Ma-

rielle era bissexual, tornou-se mãe aos 19

anos e deixou inconsolável sua compa-

nheira de tantos anos. Em uma sociedade

que não elege mulheres, Marielle teve

mais de 46 mil votos e resolveu não jogar

o mesquinho jogo político, fazia a cada ato

ou pronunciamento um contraponto à

política tradicional. A simples existência

de Marielle já seria um contraste à hege-

monia de uma sociedade opressora.

Ainda assim, a vida de Marielle, por si só,

não vale mais que outras. Mas o valor

simbólico que este ataque provoca é o que

merece atenção e o que causou maior co-

moção. Marielle dedicou sua vida aos

mais pobres. Tornou-se militante por

direitos humanos ainda quando fazia um

pré-vestibular comunitário e teve uma

amiga morta por um tiro de bala perdida.

Solidarizou-se com familiares de morado-

res de periferia que foram mortos e que o

Estado nunca tratou de apurar o crime

adequadamente. Também ajudou famílias

de policiais mortos, cujas corporações

corruptas escondem as verdadeiras causas

da morte. Matar Marielle é, portanto, uma

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tentativa de acabar com os defensores da

vida, da dignidade, do respeito ao próxi-

mo.

Em meio à enorme insatisfação com os

políticos em geral, pouco tempo após os

escândalos de corrupção terem levado os

políticos à maior impopularidade já regis-

trada por aqui, e em que muitos protestos

de rua gritaram “Fora Todos”, Marielle foi

representante digna de seus ideais. De tal

maneira que tentaram promover uma

campanha difamatória contra ela. Queri-

am fazer crer que ela “não vale nada” e

com isso fazer com que sua morte seja,

para muitos, justificada. Ainda que as

calunias divulgadas pelo Movimento Bra-

sil Livre (movimento que se diz liberal,

mas ataca uma das maiores conquistas do

liberalismo, que é a Declaração Universal

dos Direitos Humanos) fossem verdadei-

ras, o assassinato, com munições oriun-

das da própria polícia, com indícios de

ligações com milicianos, persistiria inad-

missível!

Contraditoriamente, as mesmas pessoas

que se adiantaram em dizer que outras

mortes não causaram tanta comoção, fo-

ram os mesmos que tentaram desqualifi-

car a história de Marielle e banalizar a sua

morte. Você não precisa concordar com a

Marielle, não é necessário votar no PSOL,

sequer ser de esquerda, para compreen-

der que seu assassinato é inaceitável. Ali-

ás, tais tentativas de desqualificação são

comuns na história de luta e resistência

contra a opressão. Sempre que um grupo

oprimido ou rejeitado levanta uma ban-

deira qualquer, outros setores da socieda-

de buscam desmerecê-la, especialmente

os ligados à política e à religião.

No entanto, o que os assassinos não espe-

ravam, é que, no dia seguinte, antes mes-

mo de enxugar as lágrimas, já estávamos

nas ruas, na luta, na resistência. Reuni-

mos milhares de ativistas ao redor do

Brasil e em diversas cidades ao redor do

planeta. E mesmo quem não pôde ir às

ruas se uniu em sentimentos e pensamen-

tos. Gritamos, um grito embargado pelo

choro, que não iremos nos calar. Oramos,

seja católico, evangélico, mulçumano,

umbandista, candomblé, espírita. Houve

atos ecumênicos para amparar o espírito

dessa lutadora.

Daí, exigimos das autoridades policiais a

investigação rápida e eficaz sobre os as-

sassinatos de Marielle e Anderson! Segui-

mos, de pé, em nossos trabalhos e escolas,

cientes das nossas necessidades de trans-

formação interna e, principalmente, da

necessidade de transformação social, pois

ambas ocorrem ao mesmo tempo e de

forma intercalada.

Como se já não fosse o suficiente para

provocar indignação, o ataque à Marielle

foi uma tentativa muito maior, de matar

uma concepção de mundo. Mas, literal-

mente, Marielle Vive, seja no plano espiri-

tual, seja no plano das ideias que ela culti-

vou, seja no plano político que ela concre-

tizou, e que continuam presentes! Os

opressores continuarão a dizer que Mari-

elle está morta ou que foi uma pessoa

qualquer. Continuarão a desmerecer qual-

quer luta por dignidade e pelo fim da

opressão. Mas nós, ao contrário, sabemos

que Marielle segue Viva, Marielle está

Presente, agora e sempre!

Felipe Sellin é sociólogo e coeditor do

Jornal Crítica Espírita.

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Quem nunca ouviu a expressão “política,

religião e futebol não se discutem”? Mas,

se observarmos o nosso cotidiano, fica

evidente que não seguimos essa máxima.

Seja na fila do ônibus ou do banco, seja

nas mídias sociais todos dizemos ou re-

produzimos algo que lemos ou ouvimos

sobre política (mesmo sem saber que es-

tamos debatendo sobre política), religião

ou futebol. E isso é muito bom! Ter a li-

berdade de expressar nossa opinião sobre

diversos assuntos, mesmo não sendo es-

pecialistas neles, é extremamente saudá-

vel e retrata dimensões de uma sociedade

minimamente democrática(1).

Contudo, em se tratando de política, mui-

tas vezes, quando não se chega à um con-

senso o debate que se iniciou de modo

saudável termina com a expressão menci-

onada acima, encerrando o debate e a

diversidade. E quando inserimos nesse

debate sobre política o espiritismo as

chances de encerrar o diálogo ou de que

ele nem mesmo comece são maiores. Con-

trariando essa tendência, nossa proposta

aqui é conversarmos sobre política e espi-

ritismo.

Antes de continuarmos, precisaremos

primeiro fazer alguns esclarecimentos. O

primeiro deles é explicitar de que política

estamos falando. Apesar de reconhecer a

extrema importância da participação polí-

tica partidária(2), nosso objetivo é pensar

a política enquanto dimensão elementar

da vida social, ou seja, como estratégia de

organização do espaço público.

O segundo esclarecimento é reconhecer a

importância do Estado laico. A separação

entre igreja e Estado(3) é uma importante

conquista, pois as questões políticas e do

campo social – que são de interesse coleti-

vo – não devem ser orientadas e determi-

nadas pelas opções éticas e religiosas de

determinados indivíduos. Tal separação é

um dos mecanismos que asseguram a

igualdade e o respeito à diversidade entre

os sujeitos de um dado país. No entanto,

essa separação entre as nossas escolhas

individuais e as coletivas, que caracteriza

o Estado laico, não significa que os religi-

osos não possam debater sobre política.

Ao contrário, as questões coletivas devem

ser debatidas por todos!

Com essa observação queremos ressaltar

que o debate público deve ser feito coleti-

vamente, expressando as diversas opini-

ões e percepções sobre os mais variados

assuntos e temas que tocam na organiza-

ção do espaço público, mas as igrejas e

religiões (todas elas e qualquer uma de-

las) não devem pautar, influenciar, orien-

POLÍTICA E ESPITISMO – Tempos de Utopia?

A utopia está lá no horizonte. Me aproximo dois passos, ela se afasta dois passos. Cami-nho dez passos e o horizonte corre dez passos. Por mais que eu caminhe, jamais alcan-çarei. Para que serve a uto-p i a ? S e r v e p a r a isso: para que eu não deixe de caminhar.

Eduardo Galeano

POLÍTICA

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tar ou determinar a gestão do espaço pú-

blico, o que não exclui os cidadãos que

professam uma determinada religião do

debate na arena pública.

O último esclarecimento se refere à nossa

dificuldade no trato político nos espaços

públicos. Nós, brasileiros, temos uma

grande dificuldade não só em debater,

mas de vivenciar a política, de experienci-

ar espaços verdadeiramente democráticos

e participativos. Esse nosso traço históri-

co se relaciona diretamente à formação

social brasileira e os seus impactos para a

organização de nossa sociedade atual.

Para Fernandes (2006), o processo de

transição da sociedade colonial para a

capitalista no Brasil deixou marcas pro-

fundas em nossa formação social, dentre

elas: um Estado heterônomico e de-

pendente (o Estado brasileiro não tem

absoluta autonomia para deliberar sobre

interesses nacionais, dependendo dos

interesses das economias centrais e dos

organismos internacionais para decidir

sobre assuntos nacionais); a consolidação

de um “Estado amálgama” – ou seja,

um Estado que fica entre o liberalismo

formal (como fundamento) e o patrimoni-

alismo (como prática), garantindo os pri-

vilégios estamentais; e a democracia

restrita – a ausência das camadas popu-

lares nas esferas de decisão. Esse aspecto

evidencia a raiz de nossa dificuldade com

a política. Em países com histórico de

participação popular há uma maior facili-

dade e liberdade em tratar de política, já

para nós, que temos sempre um pé nas

ditaduras, falar de política pode ser algo

mais estranho e difícil, ou no mínimo

truncado.

Compreender esse traço histórico nos

ajuda a não tratarmos do as-

sunto de

forma moralista e maniqueísta (os politi-

zados x não-politizados). Esse traço nos

mostra uma das origens do problema e

nos coloca o desafio de como superá-lo,

que certamente a educação (inclusiva,

democrática, participativa) é um dos ca-

minhos.

Feitas os esclarecimentos podemos tratar

da relação entre espiritismo e política. Um

dos elementos mais belos da Doutrina

Espírita, em meu entendimento, é que,

apesar de apresentar a realidade da vida

espiritual, ela nunca foi uma doutrina

abstrata que trata exclusivamente da vida

futura. Ela – a Doutrina Espírita – é o

estudo cientifico, filosófico e teológico da

relação entre a vida material e a vida espi-

ritual, apresentando a relação entre as

duas dimensões, mas, simultaneamente,

tratando com seriedade e critério os fenô-

menos e questões que atingem os seres

nesse mundo. A melhor prova disso é o

próprio Livro dos Espíritos.

Grande parte dos temas propostos por

Kardec aos espíritos expressam as preocu-

pações da sociedade daquela época relati-

vas à ciência, às questões ético-morais, à

organização da sociedade, ou seja, ques-

tões relativas à vida social e política da-

quela sociedade e sua relação

com o mundo espiritual. O

estudo da ter- ceira parte

do Livro dos Espíritos – As

Leis Mo- rais –

evidencia não só a

importância da di-

mensão polí- tica para a

organização social e

dessa para o ser huma-

no (numa relação

dialética), bem como

explicita uma forte crítica social(4), ou

seja, explicita não só uma preocupação

com a organização social, mas tem por

objetivo transformá-la.

Mas há ainda uma outra forte relação

entre espiritismo e política. O objetivo

principal da política é melhorar a organi-

zação social – do espaço público, alinhan-

do os interesses particulares e privados

aos interesses da coletividade, asseguran-

do qualidade de vida aos partícipes de

uma determinada sociedade, o que pode

significar manter ou transformar uma

ordem social. Mantém-se se ela atende

aos interesses de todos, transforma-se se

ela não mais atende aos seus membros.

Isso, claro, numa sociedade onde todos

são devidamente representados e onde os

que representam se importam com os que

são representados.

Na realidade concreta, esse objetivo da

política fica mais no campo do horizonte,

como um ideal. Visualizamos no dia-a-

dia, não só nas instâncias parlamentares,

uma sociedade do salve-se quem puder,

orientada pelo individualismo, e a defesa

dos interesses daqueles de maior poder

econômico e político. Mas a realidade não

elimina a utopia. Neste sentido, tanto a

política (em seu sentido mais amplo)

quanto o espiritismo tem como horizonte

a construção de uma sociedade justa e

igualitária.

Se você chegou até aqui, já podemos con-

cordar que política se discute e que políti-

ca e espiritismo também podem ser deba-

tidos. Mas, o que o espírita defenderá no

espaço público? Qual o seu posicionamen-

to político? Não há outra resposta possível

a não ser essa: o que ele quiser! Em uma

sociedade verdadeiramente democrática

(que ainda não é a nossa), os sujeitos

ma-

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nifestam suas opiniões e posicionamentos

livremente, e são respeitados em suas

opiniões. No entanto, cabe a cada um de

nós que nos identificamos com o espiritis-

mo uma importante reflexão: na defesa de

qual posicionamento eu serei mais coe-

rente com os princípios éticos do Cristo e

do Espiritismo?

Antes de adentrar nesse item, é preciso

esclarecer que essa não é a prescrição do

que é ser espírita, nem tão pouco a defini-

ção do que é certo ou errado, bom ou mal,

cristão ou não-cristão. As próximas linhas

são apenas um convite para pensarmos

juntos.

Em uma sociedade escravagista, que não

percebia a mulher como sujeito social, de

dominação imperialista (o Império Roma-

no) e forte opressão dos mais fortes eco-

nômica e politicamente, Jesus optou jus-

tamente por estar lado a lado com aqueles

que não tinham lugar e voz no Império: os

pobres, as mulheres, os doentes, as viú-

vas, os escravos, os renegados, afirmando

que todos somos iguais. Jesus revolucio-

nou a sociedade ao defender essa igualda-

de e ao se colocar ao lado dos oprimidos.

Preciso dizer, então, que nosso modelo

guia é um revolucionário! Isso já bastaria

para sabermos de que

lado estaremos.

Mas, relembre-

mos, ainda, que

a Doutrina Es-

pírita é progressista!

Assim como Jesus, o espi-

ritismo também escolheu

um lado. O lado que contribua

para a construção de uma so-

ciedade justa e igualitária.

Uma leitura cuidadosa dos

itens indicados aqui do Livro

dos Espíritos (e também nas demais

obras) vai mostrar isso com facilidade,

mas Kardec é muito claro quanto à alian-

ça com os valores progressistas quando

ele afirma que:

“[...] Avançando para o mesmo alvo e

realizando seus objetivos, o Espiritismo

se encontrará com ela [a nova geração]

no mesmo terreno. Aos homens progres-

sistas se deparará nas ideias espíritas

poderosa alavanca e o Espiritismo acha-

rá, nos novos homens, espíritos inteira-

mente dispostos a acolhê-lo. Dado esse

estado de coisas, que poderão fazer os

que entendam de opor-se-lhe? [...] Pelo

seu poder moralizador, por suas tendên-

cias progressistas, pela amplitude de

suas vistas, pela generalidade das ques-

tões que abrange, o Espiritismo é mais

apto, do que qualquer outra doutrina, a

secundar o movimento de regeneração;

por isso é ele contemporâneo desse movi-

mento” (KARDEC, 2013, p. 368).

É importante ressaltar que nosso autor

não pretendeu afirmar que o espiritismo é

o único sujeito social que seria capaz de

guiar o movimento de regeneração, mas

ele o considerava apto a auxiliar o movi-

mento coletivo da regeneração.

Podemos concordar, então, que o espiri-

tismo é progressista! Mas o que significa

ser progressista? Cabem várias bandeiras

sob o guarda-chuva

pro-

gressista. Há lugar para os sociais demo-

cratas, para as/os feministas, para os re-

formistas, para os ambientalistas, para os

socialistas e para muitos outros. Mas é

certo que não cabe todo mundo! Não é

possível ser progressista e manter certas

defesas.

Uma dessas bandeiras progressistas já foi

tema de estudo entre grandes estudiosos

espíritas – o socialismo(6). Pensando

nisso, considero extremamente interes-

sante as observações que o autor Michel

Löwy faz sobre a relação entre o socialis-

mo e o cristianismo em seu livro “A teolo-

gia da libertação e o marxismo”. Para ele,

ambos movimentos têm mais elementos

em comum do que parece, como por

exemplo: 1) ambos rejeitam a afirmação

de que o indivíduo é a base ética, e com-

partilham a ideia de valores transindivi-

duais; 2) os dois acreditam que os pobres

são vítimas de injustiça social; 3) compar-

tilham o universalismo; 4) ambos valori-

zam a comunidade (a partilha comunitá-

ria de bens); 5) ambos criticam o capita-

lismo e o liberalismo; 6) os dois têm espe-

ranças de um reino de justiça e liberdade,

paz e fraternidade entre toda a humanida-

de.

Mesmo não abor-

dando especifica-

mente sobre o espiritismo,

penso que as ponderações do autor

merecem uma análise

cuidadosa e carinhosa por nós, não

precisamos concordar com todas elas,

mas podemos e precisamos pensar sobre

elas. Primeiro, porque alguns dos valores

explicitados acima fazem parte dos valo-

res éticos contidos no espiritismo, e, se-

gundo, porque não deve ter sido mero

acaso que o tema socialismo e espiritis-

mo foi tema de debate de Leon Denis,

resultando no livro “Socialismo e

Espiritismo”.

Mas essa é apenas uma das ban-

deiras progressista, essa não pre-

cisa ser a sua. Em uma socieda-

de democrática e em um movi-

mento espírita democrático, nós

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podemos escolher e expressar nossos po-

sicionamentos políticos livremente, inclu-

sive divergindo um dos outros. Lembran-

do Kardec (2005), o espiritismo combate

a fé cega, pois essa impõe ao ser que ele

abdique da própria razão. E fé inabalável

é só aquela que pode encarar de frente a

razão em todas épocas históricas. Mas,

encarar a razão só é possível no campo

político que tem a democracia e a liberda-

de como um dos componentes do seu

horizonte e de seu cotidiano, seja no espa-

ço público ou privado.

A conjuntura social e política brasileira

nos requisita um posicionamento, que

assumamos um lugar na arena política,

não só porque as consequências e direcio-

namentos do que resultar de todo esse

processo é também responsabilidade nos-

sa, mas porque nós podemos e devemos.

Debater sobre nossa sociedade, e as for-

mas mais justas e igualitárias de adminis-

trá-la competem a todos nós!

E quando estivermos no calor do debate

retomemos o pensamento de um grande

ativista do movimento pelos direitos civis

e políticos da população negra nos EUA –

Martin Luther King: “Lembremo-nos de

que existe no mundo um poder de amor

que é capaz de abrir caminho onde não

há caminho e de transformar o ontem

escuro em um amanhã luminoso”. Mas

esse amanhã luminoso requer trabalho e

lutas de todos os corações, mentes e

mãos. Não precisamos ser iguais, apenas

sonhar o mesmo sonho.

Mônica Lanes é professora universitá-

ria.

NOTAS:

(1) Minimamente, pois, democracia é um

conceito muito mais amplo. Uma socieda-

de democrática, em nossa percepção, é

aquela que assegura aos seus cidadãos

todos os direitos civis, políticos e sociais

(emprego, moradia, direito à cidade, saú-

de, educação, transporte, segurança, habi-

tação e outros). Assim, uma sociedade

onde a desigualdade é gritante como no

Brasil não podemos considera-la como

plenamente democrática, ela só o será

quando as desigualdades sociais forem

pelo menos reduzidas significativamente.

E não podemos desconsiderar as viola-

ções aos direitos civis, que são históricas

no Brasil, e que tem se intensificado e

ampliado recentemente.

(2) Há uma grande controvérsia no que se

refere a participação política partidária e

espiritismo, mas não lidaremos dessa

celeuma no momento, o que importa res-

saltar é que partilhamos da interpretação

de alguns autores que compreendem par-

tido político como algo muito mais amplo

do que uma simples sigla partidária de

atuação parlamentar. Um desses autores,

Antonio Gramsci, afirma que partido é a

forma de organização de uma classe soci-

al, organização essa que inclui a educação

e a formação de intelectuais orgânicos da

classe, e que tem por finalidade última a

transformação da sociedade.

(3) A separação entre igreja e Estado foi

uma das bandeiras do Iluminismo e tam-

bém das Revoluções burguesas dos países

europeus, e motivou a criação de sistemas

administrativos e jurídicos ditos laicos.

(4) Indicamos especificamente as ques-

tões: 801,881, 922.

(5) Esse é um tema muito controverso,

muitas das opiniões emitidas sobre o soci-

alismo são apenas reprodução e não re-

sultado do estudo sério sobre o assunto.

Assim como devemos estudar Kardec

através do próprio Kardec, é importante

também estudar o socialismo através dos

diversos autores que o estudam, inclusive

em suas diversas tendências. Uma socie-

dade socialista é uma sociedade a ser

construída (ela não está pronta, não há

modelos acabados perfeitos) e que tenha

como objetivo principal produzir para

atender às necessidades do ser humano e

não para a acumulação, atendendo às

necessidades da coletividade e não de

uma minoria privilegiada.

REFERÊNCIAS:

FERNANDES, Florestan. A Revolução

Burguesa no Brasil: Ensaio de inter-

pretação sociológica. 5 ed. São Pau-

lo:Globo, 2006.

KARDEC, Allan. Obras Póstumas. Tra-

dução de Guillon Ribeiro. Brasília: FEB,

2005.

_______. O Livro dos Espíritos. Tra-

dução de Herculano Pires. 66ª ed. São

Paulo: Lake, 2006.

______. A Gênese. Tradu-

ção de Guillon Ribeiro. Brasí-

lia: FEB, 2013.

LÖWY, Michel. A teologia da

libertação e o marxismo. In:

____ O que é cristianismo

da libertação? Religião e

Política na América Latina.

Fundação Perseu Abramo e

Expressão Popular, São Paulo,

2016, pg. 121 – 140.

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Quando Cristiano adoeceu e mergulhou

na inconsciência, meus silêncios foram

aumentados. Eu habitava um apartamen-

to esvaziado por uma tragédia. Ele a UTI,

primeiro em coma, depois em estado ve-

getativo. Foram oito meses em que visita-

va meu marido, companheiro de 17 anos,

duas vezes ao dia, todo dia, observando

seu definhar e catando nele esperança de

melhoras. Foram mais sete meses e meio

morando com ele em um quarto de hospi-

tal, quando dava sinais de melhora e ou-

sava desafiar a letra fria da neurologia,

recuperando consciência até não se sabe

quanto e teimando em não desistir de si

mesmo ao enfrentar uma Síndrome de

Guillain-Barré, doença autoimune que

ataca o sistema nervoso. Foi das mais

brutais, que lhe lesionou de forma drásti-

ca membros e até o cérebro.

Cristiano, entre melhoras e pioras, já per-

cebia o ambiente e interagia vez por outra

conosco, mas com a incógnita de como

nos percebia. A uma das pioras, ele não

resistiu e nos deixou em 18 de abril de

2016. Não há métrica que me dê precisão

do que eu passei, muito menos do que ele

passou. Sei que me deixou sequelas. Foi e

é difícil lidar com o vácuo. Mais que vazio,

é um buraco escavado de forma grosseira,

como os buracos por erosão são.

Quis contar com a compreensão alheia,

mas a real compreensão é rara. Queria

empatia. Mas é ainda mais escassa. O

enlutado vive em realidade paralela, en-

quanto o entorno segue a rotina. A perda

de quem se ama toca o próximo, mas o

próximo se mantém preso aos inúmeros

clichês que circundam a morte. Até mes-

mo como chamá-la. “Finitude”,

“passagem”, “falecimento, “descanso”,

“voltar a Deus”, “morte”. Não tenho pro-

blema com nenhum destes termos. Desco-

nheço quem não tenha empregado vários

deles ao se deparar com tal situação e

quem tenha real certeza do que está por

vir, tenha a crença que tiver. No porão do

íntimo, a dúvida arranha, mesmo a não

assumida.

E dessas certezas arrotadas nascem co-

branças. Cobravam que precisava aceitar,

me resignar, não me opor. Da expressiva

maioria, foi o que recebi. Apoio camufla-

do, embalado em voz calma e confortante.

Não nego as boas intenções. Mas fica cla-

ro o adestramento a que as pessoas estão

submetidas. Oferecem ombro e textão de

autoajuda. Sem saber que um abraço si-

lencioso seria bem mais confortável e re-

frescante.

A morte, a passagem, ou como queiram,

pode não romper laços espirituais como

eu creio, insisto em crer, mas rompe pre-

Luto, dores e cobranças ao se romper um grande amor

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senças, dilacera relações e afetos. Amar

sem apego, que me perdoem os ultrailu-

minados, me parece utópico. Egoísmo de

manter ao lado a todo custo é uma coisa.

Desapego de não ligar se vai ou fica é ou-

tra. Deixar ir, mesmo quando nos esfa-

queia, é a decisão difícil a ser tomada e

que me foi a mais cabível, quando Cristia-

no ainda em coma, os médicos nos ofere-

ceram a alternativa de ortotanásia, que é

não interromper o processo de morte

quando ele se instala em um paciente já

terminal.

Minha decisão mais dura de vida. Tomei-

a com a certeza de que Cristiano não me-

recia ser mantido em existência artificial.

Ele teimou e melhorou, a ortotanásia foi

afastada. Mas quando acordei na noite de

18 de abril e o vi sem vida na cama, corri

para alertar enfermeiros e médicos. Qui-

seram reanimá-lo. Impedi. “Ele tá morto”,

atestei. Foi uma declaração abrupta, mas

fincada em conceder-lhe liberdade.

Ao mesmo tempo em que eu o via avançar

em consciência, ainda que devagar e sem

muita expectativa de grandes melhoras,

notava que em certos momentos seu olhar

era depressivo, sofrido e impaciente pela

situação em que se encontrava. Cristiano

penava por um ano e quatro meses deita-

do, tendo que ser cuidado, limpo e moni-

torado por mãos alheias, perfurado por

agulhas, examinado, sem a capacidade de

se expressar, pensar direito, de ser Cristi-

ano como era. Um período que me foi de

dubiedade. Um Miguel que torcia e se

alegrava com um mínimo de recuperação,

outro que racionalizava que nada seria

como antes e como Cristiano padeceria

por isso.

Foi todo um processo de sequelas para ele

e para mim. E sequelas não se resumem a

cicatrizes. Não são simples lembranças.

Muito menos mazelas que o tempo cura.

Sequelas duram. São perenes até. No meu

caso, invisíveis aos olhos que me circulam

e me investigam. Mas presentes a cada

acordar, a cada adormecer, a cada imagi-

nar de como seria se Cristiano estivesse

ali, o que diria, como se comportaria, co-

mo me agradaria, como me irritaria.

Tenho datas que me serão cortantes. Em

6 de janeiro de 2015, Cristiano chegava ao

hospital. Andando, falando, interagindo,

consciente. Dia 13 de janeiro, foi para

UTI. Dia 16 de janeiro, foi sedado e entu-

bado. Não mais recobrou a consciência. 18

de abril de 2016, Cristiano morreu. Datas

que vão me perseguir como cães de caça

até o fim da minha vida. Datas que me

lembrarão o buraco grosseiro escavado

que se recusa a fechar. Que a erosão, si-

lenciosa e matreira, mina por baixo, me

ilude. Quando dou por mim, está mais

amplo. Sem retroceder.

Coleciono recordações constantes e invo-

luntárias, caço esperanças de que, ao me-

nos, vou me acostumar. Dor sem novida-

de é dor menor. Torço para que seja. Vou

catando sorrisos e contentamentos, os

distribuindo como posso e insisto.

Mas é inegável que sou sequelado. E, ao

contrário do que pensam, não é uma auto-

condenação. É um reconhecimento para

lidar melhor e conviver, se, por acaso,

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nunca superar. Superar nem sempre é se

curar por inteiro. É conseguir carregar.

Viver com. Assumir minhas sequelas e

encará-las me tem sido um processo tal-

vez não de cura, mas de autoconhecimen-

to e determinação pra seguir em frente.

Sequela é um termo forte que incomoda à

ditadura do alto astral, do superar. Incon-

cebível no universo dos conselheiros que

interrompem minha fala, meu desabafo,

para ditar as verdades deles. “Serão ape-

nas cicatrizes em breve”, “Ele está em um

lugar melhor”, “Descansou”.

Manifestações de luto constrangem uma

cultura montada em torno da felicidade a

qualquer preço. Mas se não pudermos

chorar e gritar a dor pela morte de alguém

que amamos em que outra circunstância

daremos voz e espaço a nossas dores?

Como já disse, entendo que há boa inten-

ção. Mas boa intenção machuca quando

despejada sem noção do real impacto, do

tamanho da ferida onde ela toca. Quando

eu demonstro tristeza, vem a cobrança de

erguer a cabeça, de entender que o sofri-

mento ajuda a evoluir e torna mais forte.

Até agora ninguém me convenceu que a

gente tem que penar em uma UTI para ser

melhor. Usar a dor de Cristiano e a minha

para ministrar aulas de evolução, enxergo

como um despropósito conveniente, para

dar alívio de placebo.

Não sou uma pessoa melhor. Sou uma

pessoa com sequelas. Pessoa melhor se

faz com conhecimento e com o uso dele

para modificar a realidade social injusta

em que vivemos. Ao menos, mudar cons-

ciências. Eu já possuía alguma e vou agre-

gando. Não precisei perder um amor para

aprender que há dor nessa lacuna. Antes

da morte de Cristiano, eu já sabia. Viver

traz dor, traz perdas, mas se alguém ne-

cessita delas para se solidarizar com os

outros daí em diante, não é por o sofri-

mento ser a única lição, é por uma trajetó-

ria anterior materialista e carente de hu-

manismo.

Como vivemos em uma sociedade puniti-

vista, onde castigos são vistos como

aprendizado desde 1500, faz sentido que

se pense assim. Feitores batiam em escra-

vos para que aprendessem. Maridos bati-

am (e batem) em esposas para que apren-

dessem. Pais batem em filhos para que

aprendam. Policiais batem em pessoas,

criminosas ou não, para que aprendam. A

conscientização, botam fé, está na bordoa-

da. Assim, o universo, o divino, precisa

descer sua chibata para ensinar as criatu-

ras.

Não sou bem-vindo aos meios conselhei-

ros se me defino como sequelado. Não

importa se eu passei oito meses visitando

uma UTI, dia após dia, no mínimo duas

vezes, tempo bom ou tempo ruim. Não

importa se eu vivi na gangorra de Cristia-

no melhorar e piorar, melhorar e piorar,

ortotanásia ou distanásia, resistir ou de-

sistir, cansaço físico e psicológico. Se vi

umas nove pessoas morrerem, se compar-

tilhei dores e esperanças com gente com-

panheira de antessala. Se morei oito me-

ses em um quarto de hospital, acordando

de hora em hora durante a noite para velá

-lo, ajudando na higiene pessoal, carre-

gando no braço, dando banho, conversan-

do sem receber resposta, me entusias-

mando com os rompantes de comunica-

ção rudimentar.

Não importa se vi Cristiano melhorar, sair

de um estado vegetativo, ter uns momen-

tos de interação e outros de total aliena-

ção. Se tive de encontrá-lo sem vida. Não

importa se o enterrei, se vi 18 anos de

convivência, dormindo e acordando jun-

tos, sepultadas. Não importa que a viuvez

me trouxe uma casa vazia que mesmo

quarto e sala ficou imensa e de silêncios

estridentes.

Exigem que seja o Miguel com determina-

ção de ironman para vencer os obstácu-

los. Sem se importarem em reconhecer

que os rituais de morte são essenciais no

processo de luto e como todo processo

íntimo, é individual e solitário. Sou o

Miguel possível. Nem um filhote de gato

molhado, com frio e com fome, necessita-

do de socorro, nem um efusivo e nirvâni-

co ser de luz desprendido das angústias

terrenas. Prazer, sou o Miguel que consi-

go.

Eu me nego a enterrar Cristiano de vez se

me é impossível. E se nunca conseguir,

não vou forçar. Vou carregá-lo comigo.

Sem culpas. Nem adianta me dizer que é

atraso espiritual. Não vou me culpar por

um peso

que não

provo-

quei,

que

me

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caiu como uma avalanche e me soterrou, a

qual escavo na velocidade que posso e dou

os intervalos que mereço e concluo neces-

sários. De onde vier essa mensagem de

mais esforço, só respondo: “Se esforce

também daí em compreender e não me

depositar mais carrego. Dá pra transfor-

mar toda essa boa intenção em empatia?

Se houver esforço, daí você consegue,

irmãozinho”.

Nem se todos os orixás se unissem, me

tirariam a compressão. E eles confessam

serem incapazes. Só me oferecem ombro e

braço. Eu os amo por isso. Sem a presun-

ção de superpoderes, de perfeição. O ideal

de perfeição é que atrasa o ser humano. A

ideia de santidade, de purificação, de que

suportar cruzes e calvários traz mais hon-

ra e evolução. De alcançar o inalcançável.

Por isso, se cobram e nos cobram tanto.

Por Cristiano não sinto qualquer vibração

complicada. Cristiano decidiu ir, como

acredito, insisto em acreditar. Mais cons-

ciente, ele passou uma segunda-feira em

alto estresse pela situação em que se en-

contrava, tentou arrancar a sonda gástrica

e até o tubo que levava uma lufada de

oxigênio ao traqueóstomo. Seu rosto car-

regava uma nítida expressão de descon-

tentamento, de tristeza, de pouca espe-

rança em uma situação melhor. Estava

insuportável. Curativos, picadas de agu-

lha, procedimentos quase 24 horas por

dia. A vida era dele. E ele colocou um pon-

to final.

Eu insisti em uma conversa, onde ele

mostrava raiva e dor no olhar, que os ga-

nhos eram visíveis e inegáveis. Mas quem

sou eu pra escolher por ele? Quem sou eu

pra insistir por ele? Persistimos até onde

ele ganhou consciência suficiente para

reivindicar seu protagonismo. Tranquili-

zou, adormeceu e eu cochilei ao lado. Des-

pertei com a sensação de uma espetada no

ombro. Conferi seu rosto e ele estava mor-

to.

A palavra final foi dele como tinha que

ser. Agradeço os grandes anos da minha

vida, uma relação que será sempre nossa e

indestrutível. Vou chorar cada dia após o

outro. Para chorar, dispenso lágrimas.

Vez por outra, sonho com Cristiano. Às

vezes, mais chateado, às vezes mais ale-

gre. Não fala muito, mas me diz demais

com o olhar. Conforta-me a informação

que me passaram que foi uma escolha

dele, diante de uma situação inesperada,

que foi tratada ao máximo, sem desistên-

cia, mas que não havia mais perspectivas

de grandes melhoras e nem tempo certo

para elas, caso viessem. Ele optou não

ficar. A vida era dele, a escolha foi e tinha

de ser dele.

Se o nosso compromisso tiver de seguir

que siga. Mas, por agora, estamos em

rumos bem diferentes e não me cabe co-

brar presença, nem espera, nem aliança.

Se ele tiver de viver outras sensações que

viva. Está em uma realidade distinta com

muito a descobrir.

Já me dei novas chances, já namoro Ro-

drigo. Levo a vida com maior abraço, com

mais risos e olhares brilhantes. Mas Cris-

tiano me é lembrança pétrea e viva, nunca

ausente, mesmo que sem toque ou visão.

É a pessoa que se jogou comigo na aven-

tura de um amor entre homens, que di-

zem ser infértil, e que jamais me sugeriu

tempo ou separação. É muito além de

fotos ou lugares marcantes. Será Cristia-

no. Ele é saudade e esse oco escavado em

corrosão.

Miguel Rios é Jornalista